58
1 CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA Prof. Marcos Aurélio Fernandes UnB – Fil: 2019.1 TEXTO 9 3. O PENSAMENTO ORIGINÁRIO 3.8. PARMÊNIDES Parmênides de Eleia (colônia itálica da Grécia no sul da Itália, atual Velia – ca. 540/530 – 470/460 a. C.), teria sido aluno de Xenófanes (c. 576/570) 1 , rapsodo jônio (de Cólofon) que, depois de ter peregrinado pelas cidades gregas e passado um tempo pela Sicília, se fixou em Eleia e ali morreu com cerca de 92 anos 2 . Entre os poemas de Xenófanes estava um acerca da (phýsis). No livro I (c. 5) da Metafísica, Aristóteles Aristóteles coloca os eleatas Xenófanes, Parmênides e Melisso, entre aqueles que sustentaram acerca do Todo ( - perì tou pantós) que era uma realidade única ( hos mias ouses phýseos). Diz que Xenófanes, antes de Parmênides e Melisso, olhando para o alto, para todo o céu [isto é, o céu na sua inteireza] ( eis ton holon ouranon), disse que o Um era o Deus ( - tò Hén einai fesi tòn theón) 3 . 1 Aristóteles, Metafísica I, 5; Platão, Sofista. 2 Diógenes Laércio (IX, 21) relata também que Parmênides tenha tido convivência com Ameinias, um filósofo pitagórico, homem pobre, mas de absoluta retidão. Diz que Parmênides, quando este morreu, fez erigir para ele um “Heroon” (túmulo monumental, construído para um herói). E acrescenta: foi graças a Ameinias, e não a Xenófanes, que ele, Parmênides, se voltou para a quietude do recolhimento ( - eis hesychían). Parmênides era de estirpe nobre e rica. Ele teria escrito as leis de sua cidade. 3 Karl Reinhardt sustentou a tese de que Parmênides desteologizou o pensamamento de Xenófanes.

CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

  • Upload
    others

  • View
    2

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

1

CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA

Prof. Marcos Aurélio Fernandes

UnB – Fil: 2019.1

TEXTO 9

3. O PENSAMENTO ORIGINÁRIO

3.8. PARMÊNIDES

Parmênides de Eleia (colônia itálica da Grécia no sul da Itália, atual Velia – ca.

540/530 – 470/460 a. C.), teria sido aluno de Xenófanes (c. 576/570)1, rapsodo jônio (de

Cólofon) que, depois de ter peregrinado pelas cidades gregas e passado um tempo pela

Sicília, se fixou em Eleia e ali morreu com cerca de 92 anos2. Entre os poemas de

Xenófanes estava um acerca da (phýsis). No livro I (c. 5) da Metafísica, Aristóteles

Aristóteles coloca os eleatas Xenófanes, Parmênides e Melisso, entre aqueles que

sustentaram acerca do Todo (- perì tou pantós) que era uma

realidade única (hos mias ouses phýseos). Diz que

Xenófanes, antes de Parmênides e Melisso, olhando para o alto, para todo o céu [isto é,

o céu na sua inteireza] (eis ton holon ouranon), disse que o Um

era o Deus (- tò Hén einai fesi tòn theón)3.

1 Aristóteles, Metafísica I, 5; Platão, Sofista. 2 Diógenes Laércio (IX, 21) relata também que Parmênides tenha tido convivência com Ameinias, um filósofo pitagórico, homem pobre, mas de absoluta retidão. Diz que Parmênides, quando este morreu, fez erigir para ele um “Heroon” (túmulo monumental, construído para um herói). E acrescenta: foi graças a Ameinias, e não a Xenófanes, que ele, Parmênides, se voltou para a quietude do recolhimento (- eis hesychían). Parmênides era de estirpe nobre e rica. Ele teria escrito as leis de sua cidade. 3 Karl Reinhardt sustentou a tese de que Parmênides desteologizou o pensamamento de Xenófanes.

Page 2: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

2

Parmênides escreveu também um poema (perì phýseos), na esfera

da (phýsis). Este poema é mencionado por Platão, Aristóteles, Plutarco, Sexto

Empírico e Simplício. Este último diz que o texto já teria se tornado raro na sua época.

O que nos chegou são fragmentos. A edição crítica de Diels-Kranz (1903/1034) recolhe

19 fragmentos, 18 em grego e 1 em latim. O poema fora escrito em versos hexámetros,

marca do estilo épico. O poema está dividido em duas partes. No fragmento I, versos

29ss se lê algo que pode ser a chave do sentido desta divisão:

(Chreo dé se pánta pythésthai emèn Aletheíes

eukykleos atremés etor edè brotôn dóxas, taîs ouk eni pístis alethés) – “É necessário que

tu experimentes tudo, tanto o ânimo intrépido da verdade bem redonda, como as

aparências dos mortais, nas quais não há uma confiança desvelante”.

Os intérpretes da história da filosofia discutem o problema das duas partes.

Zeller e Wilamowitz entendiam que na segunda parte, Parmênides tencionava oferecer

não a verdade plena (a do ser), mas só hipótese mais prováveis que tornassem

compreensíveis o devir. Mas esta concepção está comprometida pela compreensão

epistemológica do século XIX. Esquece que, para Parmênides, em referência à verdade

não há graus, mas esta é absoluta, como o ser e o não-ser. Entre a verdade e a mera

aparência não intermédios, mas uma alternativa seca. Diels e Burnet eram do parecer

que, na segunda parte, Parmênides não estaria oferecendo uma explicação sua, mas

apenas referindo opiniões de outros (os pitagóricos?). Mas, será preciso advertir que

Parmênides teria entendendo estas opiniões apenas como opiniões, isto é, como

(meras) aparências, não como a verdade (do ser). K. Joel sugeriu que a segunda parte

seria apenas um exercício de erística, uma disputa que oferecia uma ocasião apenas

para ter razão e refutar os outros. Mas, pode-se supor que um pensador do nível de

Parmênides teria se rebaixado a tanto? Karl Reinhardt rejeitou estas interpretações e

indicou uma nova possibilidade: a segunda parte constituiria um elemento essencial da

teoria do conhecimento de Parmênides. O problema é que “teoria do conhecimento” é

algo por demais moderno. Mas, em todo o caso, pode-se tentar ver aí uma indicação

importante: tratava-se do problema da verdade. Acontece que a verdade, na

experiência grega, tem o seu nexo mais íntimo e profundo não com o problema do

Page 3: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

3

conhecer, mas com o problema do ser. Em questão deve estar, assim, a verdade do ser

e o ser da verdade. Mas, ao ser da verdade pertence, essencialmente, a não-verdade?

O erro tem sua razão de ser? Como acontece o erro? Em todo o caso, a não verdade

pressupõe a possibilidade mais própria da verdade. O mutável e o devir e, com isso, a

(dóxa), a aparência, a opinião, deve pertencer também à verdade.

No poema de Parmênides, pois, está em questão o relacionamento de verdade

e ser, bem como de ser e pensar. O ser é aquilo de que trata o pensar. O pensar é o

pensar do ser. Através e dentro da única verdade – a verdade “bem redonda”, “esférica”

– se percebe o ser, que o Um, o único. E só em referência ao ser é que se dá e acontece

verdade. A deusa que guia Parmênides o exorta a ficar longe da outra via. E, no entanto,

ele deve compreender também a outra via. É preciso compreender tanto a via da

(alétheia) – verdade, quanto a via da (dóxa), aparência, parecer, opinião4.

A deusa admoesta o pensador a (krínein lógoi) – a realizar a crítica, isto

é, a discernir e decidir, em virtude e com base na meditação do pensamento e na sua

escuta, o que são e como são as duas possibilidades (cf. frag. VII). Em jogo está a decisão

– se o mortal quiser ser um pensador – a decisão pelo ser e pela verdade. Ser pensador

é uma escolha livre, uma autodeterminação do mortal, uma decisão pela verdade e pelo

ser, e, com isso, uma decisão pela transparência do próprio existir. Trata-se, pois, de

uma escolha e de uma decisão pela liberdade. Liberdade é o homem deixar agir em si as

possibilidades autênticas do existir humano. O pensamento é o exercício de uma

contínua libertação para a liberdade – uma libertação que se consuma no poder

questionar, buscar, investigar, e no poder pensar o sentido do ser, a verdade do ser. O

homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um

com o Um.

Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides.

4 Em grego são vários os significados de dóxa:

1. o aparecer e o dar-se do ente no seu ser; 2. o aparecimento extraordinário: glória e fama; 3. a consideração que alguém encontra no mundo da convivência; 4. o aspecto, a feição, com que algo ou alguém se apresenta (o eidos, a idea); 5. a visão que alguém tem de alguma coisa ou de alguém; 6. o parecer (a consideração) que alguém tem de alguma coisa ou algo; 7. a opinião.

Page 4: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

4

No fragmento I temos a abertura do poema. Os versos de 1 a 21 preparam o

encontro do pensador com a deusa. O pensador é carregado por cavalos tão longe

quanto o ânimo de vida (- thymòs) alcança5.

Ele estava num envio, pois (daímones), cintilações do mistério,

doações e aparições extraordinárias femininas, tinham encaminhado o pensador a

trilhar um caminho (polýphemon) muito famoso, muito celebrado, um

caminho de glória. Glória é o aparecer, no sentido do esplendor e do brilho do ser. Não

se trata ainda da aparência no sentido do aparecimento em que algo chega e se torna

presente; nem da aparência como mera aparência, ilusão. Não se trata de um aparecer

que se acresce ao ser. Não. Trata-se de um aparecer que mostra o vigor e o brilho do

ser. O caminho a que Parmênides alude é o caminho em que se cumpre o disse Píndaro:

“torna-te o que tu és, aprendendo” – isto é: queiras mostrar-te como aquele que tu és,

aprendendo. Ou ainda: queiras nascer, crescere e aparecer na nobreza que é dada pela

sua proveniência a partir do ser e na grandeza que se funda nele – e faça isso,

aprendendo. Os poetas gregos magnificam os heróis, isto é, eles prestavam e

demonstravam consideração por eles, no sentido de trazer à luz o brilho e a consistência

do seu ser. Isso era, para os gregos, a fama. O modo de ser famoso do heroi não se

confunde com o que hoje é o modo de ser das celebridades da opinião pública, aqueles

que são promovidos pela imprensa, pelos meios de comunicação de massa, pelas redes

sociais no mundo virtual. Para eles, a poesia servia para magnificar a grandeza, a

consistência, o brilho do ser, que se manifestava nos heróis. As odes de Píndaro se dão

neste sentido. A fama é o aparecer que pertence ao ser. O ser vige também no aparecer.

O brilho do ser no aparecer é a (dóxa), não como parecer, opinião, mas no sentido

de glória, brilho de ser. Outra palavra para fama é, em grego, (kléos). Diz a fama

no sentido de notoriedade, renome, isto é, da perspectiva do ouvir e do evocar.

5 Filho da noite e do mistério, o cavalo é um arquétipo portador de vida e de morte. Está relacionado ao fogo. Fala da impetuosidade do desejo ardente. De origem infernal/ctônica (do subterrâneo), acabou se tornando um símbolo urânico (celeste) e solar. Um homem sábio (sapiente) que cavalga significa o iniciado, em que as forças do instinto e do espírito, da alma e do espírito, da animalidade e da racionalidade, se unem. Cavalos sensatos. O cavalo é, aqui, símbolo da força espiritual do desejo. Significa força, juventude, jovialidade, ardor, fecundidade e generosidade. Potência criadora: conotação tanto sexual quanto espiritual. Aqui não há separação entre corpo e espírito! Antes, ambos estão unidos! Sinal de maturidade: o filósofo é, aqui, o homem sapiente, individuado, amadurecido: anér sophón. Os cavalos puxam o carro do Sol e são consagrados a ele. É um atributo de Apolo, auriga do carro solar.

Page 5: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

5

Heráclito diz: “Antes de tudo escolhem uma coisa os mais nobres: a fama (kléos) que

permanece constante frente ao que morre. A multidão está saciada, como o gado” (frag.

29).

O pensador é encaminhado neste caminho por (daimónes), deusas.

Não se trata dos “espíritos maus”, “espíritos impuros”, a que se refere o cristianismo. Já

vimos como Aristóteles, na Ética a Nicômaco, coloca entre as coisas que eram sabidas

pelos homens sábios dos antigos as coisas extraordinárias [(perittà)], ou seja,

coisas admiráveis [(thaumastà)], coisas difíceis [(chalepà)] e,

portanto,[(daimónia)]. As coisas concernentes aos (daimónes)

excedem o ordinário, são admiráveis e difíceis. Os (polloí), os muitos (a

multidão), se ocupam com os entes e com as vantagens que podem alcançar para si em

meio à lida com eles. Eles, no relacionamento com os entes, veem o ser, mas, ao mesmo

tempo, não o veem, isto é, elas compreendem o ente (o real), mas não notam, não

percebem, o ser (a realidade). Em contraste, os sábios são os que têm o ser no seu foco:

o in-comum, o excessivo, o maravilhoso, o difícil. É o que já sempre está se doando, em

cada coisa ordinária, comum. O ser brilha silenciosamente nos entes. O ser é o simples.

Mas só os sábios têm olhos para o simples. O ser se mostra em todo o ordinário, sem

ser ordinário. O ser não é a exceção. É o que há de mais simples e natural em tudo – o

que os gregos chamavam de (phýsis). É o de onde todo o ordinário emerge, em

que está suspenso, e para recai. (tò daimónion) é a doação originária da

(phýsis), o divino, o maravilhoso, o extraordinário dela. A palavra

(daímon), nome com o qual os gregos evocam a divindade de um deus ou de

uma deusa, o poder divino, mas também o nume tutelar (o gênio, para os romanos), e,

por conseguinte, o destino de cada um, remete ao verbo (daíomai), que quer

dizer dividir, partilhar, repartir, distribuir. O verbo (daío), por sua vez, significa

acender (fogo), arder, brilhar. Os (daimónes) são, assim, como que cintilações

do fogo do ser, que se divide, se partilha, em tudo o que está sendo. Se doam e se

mostram a partir da lareira da (alétheia), da verdade (revelação) do ser.

No caminho referido é encaminhado, diz o pensador, o homem que sabe -

(eidóta), isto é, o homem que sabe, por ter visto, por estar em constante e

consistente relacionamento com o des-encobrimento, a (alétheia) [palavra que

Page 6: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

6

evoca a experiência grega originária da verdade]. O homem que sabe é o que está na

esfera do desencobrimento iluminador, no lume da verdade. Ao homem que sabe se

contrapõem “os mortais, que não sabem nada” (brotoì eidótes

oudèn), aos quais se refere o fragmento VI. Os “mortais, que não sabem nada” são os

que “trilham errantes”. Eles são chamados de “bicéfalos” – têm duas cabeças, estão

divididos, indecisos, irresolutos, indiferentes quanto ao ser e ao não-ser, quanto à

verdade e à aparência: “Uma confusão no coração deles dá testemunho de um espírito

confundível: são os que se arrastam, surdos e ao mesmo tempo cegos, estupefatos,

multidão sem decisão, a quem ser e não-ser vale como o mesmo e como o não-mesmo,

para quem o caminho de tudo é reversível” (VI).

O caminho do homem que sabe conduz para além das moradas dos mortais que

nada sabem (I). “Por este caminho eu era conduzido”, diz o narrador do poema, o

pensador. “Pois cavalos muito sensatos” (polýphrastoi hýpoi)

me conduziam, o carro se potencializando no embalo, moças, no entanto, mostravam o

caminho” (I). Os cavalos são sensatos, pois vêem a direção, mesmo no escuro e mostram

uma sabedoria instintiva, arcaica. Poderíamos tomar isso como evocação de uma

inteligência instintiva ou de um instinto inteligente que é dada(o) ao homem, como vigor

nascivo da mente (“bona mens” – bom senso)6?

Os cavalos puxam o carro do Sol e são consagrados a ele. É um atributo de Apolo,

auriga do carro solar. O pensamento de Parmênides, assim como o de Heráclito, se dão

na proximidade de Apolo: o deus da claridade meridiana da (alétheia), o

desencobrimento, a verdade. Carro (carruagem) é veículo, condução7. Tem a ver com

6 Cf. Descartes: “O bom senso é a coisa mais bem partilhada: porque cada um pensa estar tão bem provido dele, que mesmo aqueles que são os mais difíceis de se acontentar em todas as outras coisas, não costumam desejar mais do que têm. Nisso, não é verossímil que todos se enganem; mas, antes, isso testemunha que a potência de bem julgar, e distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente aquilo que se chama de bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens; e assim a diversidade de nossas opiniões não vem do fato de que uns são mais razoáveis que os outros, mas somente do fato de que nós conduzimos nossos pensamentos por diversas vias, e não consideramos as mesmas coisas. Pois não é questão de ter o espírito bom, mas a questão principal é a de aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios bem como das maiores virtudes; e aqueles que não marcham a não ser com grande lentidão podem avançar muito além, se eles seguem sempre o caminho reto, em relação àqueles que correm, mas que se distanciam” (A.T. 1, 17- 2, 19). 7 Carro (carruagem) traz consigo um conjunto de significações fundamentais no mundo antigo. Na China, é símbolo do mundo. A base quadrada é a terra e a cobertura redonda, o céu. Na Índia, a base é o eixo do mundo, e as duas rodas, o céu e a terra. O carro é também símbolo do eu: sua destinação e sua condução no mundo (entre o céu e a terra). No budismo, quem conduz o carro do sábio é prâna (o espírito, o sopro)

Page 7: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

7

via, viagem, experiência. Diz movimentação como encaminhamento, destinação, e

experiência (ser posto à prova, no caminho). Evoca o desafio de ser bem-aventurado na

viagem da vida (bem-aventurança: deslanchar do lance da existência). O carro é muitas

vezes associado ao sol, como acontece neste poema grego. Traz consigo a significação

do curso (correr) do céu. Desde os tempos pré-históricos o deslocamento do sol é visto

como uma curva (um arco) que une o oriente e o ocidente, o nascer e o morrer, a vida

e a morte. O carro do sol se torna o carro de Apolo, Deus da claridade, do desvelamento.

“Em Apolo, a clareza mais elevada e a escuridão devastadora da morte se equilibram

nos limites exteriores, nas profundidades se enfrentam com uma perfeita igualdade”,

diz Karl Kerényi.8

ou atmâ (o si-mesmo, o eu verdadeiro), ou buddhi (o intelecto). A palavra sânscrita Yana significa veículo – No budismo, fala-se de Hinayana, Mahayana, Vajrayana – diversos caminhos de iluminação. 8 Jung, C. G. e Kerényi, K. A criança divina: uma introdução à essência da mitologia. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 153-154.

Page 8: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

8

Figura 1: Statue du type de l'Apollon sauroctone (« tueur de lézard »). Copie romaine du Ier siècle apr. J.-C. (?) d'un original de Praxitèle de 450 av. J.-C. environ, restaurations des XVIIe et XVIIIe siècles. Découverte à Rome au XVIIe siècle (?).

Page 9: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

9

Figura 2: Apollo Belvedere - Roman copy after a Greek bronze original of 330–320 BC. attributed to Leochares. Found in the late 15th century.

Page 10: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

10

A linha 5 do fragmento I diz: (kourai d’ hodòn

hegemóneuon) – Moças (condutoras da carruagem) indicavam o caminho.

(Kóre) significa menina ou moça. A arte grega arcaica celebra em estátuas

a figura da jovem. A jovem divina é um arquétipo da alma humana (C. G. Jung). Algumas

deusas do mito grego tinham o aspecto de moças. Artemis era uma dessas; Atena, outra.

Page 11: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

11

Este era inclusive o epíteto de Perséfone9. Também haviam as Heliades, filhas de Helios

que, por sua vez, era filho do titã Hipérion e da deusa Théia, mãe de todo o brilho.

Figura 3: Helios in his chariot, early 4th century BC, Athena's temple, Ilion.

Helios era irmão de Selene (Lua) e de Eos (Aurora). E também está associado a

Apolo. Vejamos esta imagem, de uma pintura de Guido Reni (1614), intitulada Aurora.

Aqui Apolo tem Aurora à frente, é ladeado pelas “Horas” e acompanhado por

“phóphoros”: o portador da luz.

O Sol é uma epifania urânia (manifestação demônica celeste). Filho do deus

supremo. Olho do deus supremo. Coração do mundo. Centro da roda do zodíaco (as 12

constelações celestes). O sol imortal se levanta toda a manhã para o mundo dos vivos

(do desvelamento) e se deita toda a tardinha mergulhando no mundo dos mortos (do

velamento). Platão fez do sol a imagem do Bem. Para os ritos órficos, é a inteligência do

mundo. Os raios do sol significam o conhecimento intelectivo: o noéin. É fonte de luz,

de calor e de vida. Os seus raios são as influências celestes na vida da terra e dos terrenos

9 Cf. o poema de D. H. Lawrence, “Fidelity”: “a little torrent of life / leaps up to the summit of the stem, gleams, turns / over round / the bend / of the parabola of curved flight, / sinks, and is gone, like a comet curving into the / invisible” (uma pequena torrente de vida salta para o topo do caule, brilha, gira em torno da curva da parábola do voo curvo, afunda-se e desaparece, como um cometa curvando-se no invisível).

Page 12: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

12

– mortais. O sol torna as coisas visíveis, as faz se tornar fenômenos. É o princípio e o fim

de toda manifestação, revelação, de todo o phainesthai (vir à luz, phôs). É pai e é rei

(monarca: o Um que governa tudo). Apolo é o deus solar por excelência. Sua flecha é

como o raio do sol.

No poema, ao ser referir às moças, Parmênides evoca as Heliades Meninas10 -

(Heliádes kourai):

O eixo flamejante no cubo colocava em movimento uma tonância vibrante de flauta (pois ela se acelerava de ambas as direções em duplos círculos dia-ferentes), quando as heliades meninas, deixando a morada da noite ser, e impelindo para trás com as mãos os véus de suas cabeças, se lançavam em me conduzir para a luz11.

10 Heliades ou Helíades – Filhas de Hélios (o sol) e da oceanide Climene. Nomes: Aiteria, Dioxipe (ou Lampetia), Febe, Hélia, Merope. Guiavam o carro e os corcéis de Hélios. 11 Leão, E. C. e Wrublewski, S (tradutores). Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Petrópólis: Vozes, p. 43.

Page 13: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

13

A roda fala da perfeição do círculo. Entretanto, é um círculo que gira. Fala, pois,

da perfeição do ser no mundo do devir. O devir é compreendido como ciclos, repetições

do mesmo, renovações do sempre o mesmo. O mundo é como uma roda na roda, uma

esfera na esfera (Nicolau de Cusa). A roda lembra a viagem cíclica dos astros. É um

símbolo solar: rodas de ‘carruagens de fogo’. Está relacionada com Apolo. O eixo imóvel

deixa rodar a roda. No centro: o imóvel. Na periferia: o imóvel. O centro da roda é o Um

que não está sujeito à transformação, pois a transformação pertence aos muitos. No

centro, tudo é Um e tudo é quieto. Só na periferia é que tudo é múltiplo e se agita no

correr cíclico do devir. A roda é, pois, símbolo da emanação do múltiplo a partir do Um.

As rodas do carro do sol no poema são duplos círculos que giram de modo

diferente entre si, produzindo um assobio que é como o som de uma flauta. A flauta é

uma invenção de Pan: daimon das grutas e dos bosques e dos pastores – filho de Hermes

(deus do velamento, do ocultamento, irmão de Apolo, deus do desvelamento e do

desocultamento), metade homem e metade animal12. Com a flauta ele entretinha as

ninfas, os deuses, os homens e os animais. Aparece também como companheiro de

Dionísio. Remete também a Orfeu: o deus da música. Não podemos deixar de aludir,

aqui, à significância ontológica da música para os gregos:

Os gregos foram quem deram ao Ocidente esta vigência ontológica da música. Na música eles não viam apenas uma expressão imediata da alma; nas vibrações do som e nas oscilações do ritmo sentiam desfazer-se os limites e as barreiras das realizações e viam brilhar um relâmpago sobre o abismo noturno da realidade onde brotam a vida e a morte, o mundo e o imundo, a ordem e o caos13.

Rilke, em seus Sonetos a Orfeu tornou poesia esta vigência ontológica da música:

12 Deus dos rebanhos e pastores. Às vezes descrito como filho de Hermes. Representado parcialmente com o corpo de bode. Amante das ninfas. Inventor da gaita de sete canudos (Syrinx). Despertava terrores súbitos nos que se movimentavam nas florestas e lugares desertos (pânico). Os romanos o identificaram com o Fauno. 13 Leão, E. C. Aprendendo a Pensar II. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 38.

Page 14: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

14

Então elevou-se uma árvore! Pura elevação!

Orfeu está cantando! Uma grande árvore no ouvido!

E tudo silenciou! Mas mesmo no silêncio unânime,

Nasceu novo princípio, gesto e transformação!

Animais do silêncio se precipitaram

Da floresta livre e clara de ninhos e moradias:

E apareceu que, se estavam tão quietos,

Não era por medo ou astúcia,

Mas por escutar! Bramir, gritar, gemer

Pareciam pequenos a seus corações! E onde

Mal havia uma choupana para receber,

Um abrigo nascido do mais obscuro desejo,

Com um acesso de pilares trepidantes,

Aí criaste um templo na escuta!

Parmênides é conduzido pelas Heliades Meninas até um portal:

Lá é o portal das sendas da noite e do dia, moldura e umbral de pedra os mantém num contraponto; o portal, etérico, tem poderosos batentes; acerca dele dike – quem muito labora – mantém o ferrolho que abre e fecha.

Para os gregos, a Noite (Nyx) era a filha do Caos e a mãe dos dois deuses

primordiais: o casal Urano (céu) e Gaia (terra). Dela vem também o sono e a morte, os

sonhos e a angústia, a ternura e o engano. A ela os gregos sacrificavam uma ovelha

Page 15: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

15

negra. Ela percorria o céu envolta em um véu escuro, sobre um carro com 4 cavalos

negros. Cortejavam as Fúrias, suas filhas, prontas a punir quem transgredisse os limites

da mortalidade com sua arrogância (a hýbris). Lembremos do fragmento 94 de Heráclito,

que dizia:

(Hélios ou hyperbésetai métra: ei de me, Erinyes min Díkes epikouroi exeurésousin)

– “o Sol não ultrapassará as medidas; se o fizer, as Eríneas, ajudantes de Dike, o

encontrarão”. Assim, a dimensão da claridade e do desvelamento, a dimensão de Apolo

e de Helios, por mais vigorosa que seja, provém, para o mito e o pensamento originário

grego, da dimensão noturna, abismal, da escuridão, do velamento - (léthe). No

cuidado pelas medidas está Dike: o vigor da articulação e da justeza, conforme já

interpretamos, quando meditamos o dito de Anaximandro.

Tudo provém da Noite da realidade. E a noite, por sua vez, provém do Caos. Já

refletimos sobre o sentido do Caos para os gregos. Apenas vamos tornar presente algo

sobre isso. O que está em jogo é o Chaos, como o abrir-se abissal da Imensidão, que

está aquém de toda a ordem e desordem. É, antes, o que possibilita, inaugura e instaura

toda a determinação e indeterminação, toda ordem e desordem. O chaos mantém o

kósmos em contínua realização e desrealização, gênese e perecimento, aparecimento e

desaparecimento, nascimento e morte. Ele vige como o abismo que está sempre se

abrindo, rasgando espaço para o emergir de tudo na dinâmica da diferenciação do

mesmo e de identificação do diferente, que faz aparecer a divergência convergente e a

convergência divergente de todas as coisas. É do abismo e da noite do caos que

emergem e vêm à luz a Terra e o Céu, e, com estes, todo o kósmos: a ordenação essencial

de terra e mundo, mortais e imortais.

A noite é filha do Caos, mãe do Céu e da Terra, de onde tudo surge: os mortais e

os imortais... A noite deve ser vista, aqui, ao modo grego, como velamento -

(léthe). O dia, por sua vez, há de ser tomado como a dimensão do desvelamento:

(alétheia). O portal recolhe as sendas do dia, isto é, do desvelamento, e da

noite, isto é, do velamento. Trazemos aqui uma foto da “Porta Rosa”, situada em Velia,

nome italiano para a antiga Elea:

Page 16: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

16

O portal é a passagem entre dois mundos: o conhecido e o incógnito. Iniciação

ao mistério. Transição do profano ao sagrado. Acesso a um conhecimento superior. O

portal fala de caminho e de passagem. Diz transformação.

A guardiã o portal é (Dike). Ela é invocada pelo coro na tragédia Antígona,

de Sóflocles:

Page 17: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

17

“Muitas são as coisas estranhas, nada, porém, há de mais estranho do que o homem.

Parte sobre as espumas da préeia-mar no meio da tempestade do inverno sulino e cruza as montanhas de vagas, que abrem abismos de raiva. Extenua a infatigabilidade indestrutível da mais sublime das deusas, a Terra, revolvendo-a ano após ano arrastando com cavalos para lá e para cá os arados. Sempre astuto, o homem enreda o bando de pássaros em revoada e caça os animais da selva e os agitados moradores do mar. Com astúcia domina o animal, que pernoita e anda pelos montes, subjuga o dorso de ásperas crinas do corsel e põe o jugo das cangas de madeira ao touro não domesticado.

A si mesmo encontrou tanto no soar da palavra e no pensamento, que, com a rapidez do vento, tudo abarca, como na ousadia, com que domina as cidades.

Igualmente pensou como escapar aos dardos do clima, bem como às inclemências do frio.

Pondo-se a caminho por toda a parte, desprovido de experiência, e em aporia, chega ele ao nada. A morte é a única agressão, de que ele não pode se defender por nenhuma fuga, embora consiga esquivar-se habilmente às penas da enfermidade.

Garboso muito embora, porque domina, mais do que o esperado, a habilidade inventiva, cai muitas vezes até na perversidade, outras vezes saem-lhe bem nobres empresas.

Por entre as leis da terra e a justiça dos deuses anda ele.

Ao ultrapassar o seu lugar, o perde, a audácia o faz favorecer o não-ser contra o ser.

Aquele que põe isso em obras, não se torne familiar de minha lareira nem tão pouco o meu saber compartilhe comigo o seu desvairar-se”.

O poema começa dizendo algo de inusitado para o senso comum: “Muitas são

as coisas estranhas, nada, porém, há de mais estranho do que um homem”. O homem é

Page 18: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

18

a coisa mais estranha que existe: tó deinótaton. O homem se ergue sobre a Terra,

elevando-se para as alturas de sua capacidade inventiva, de sua habilidade produtiva,

de sua genialidade criativa (téchne). Ele não se aloja simplesmente na natureza. Ele abre

espaço dentro dela, cria mundo, gera cultura, institui um reino de produções, de arte,

de conhecimento. Aparece, assim, como senhor e dominador do real. Em meio ao vigor

da natureza, ele instaura o vigor da arte, da cultura. O auge e a consumação desse vigor

criativo humano se encontram, por sua vez, na linguagem e no pensamento. É pela

linguagem e pensamento que o homem, então, institui a Pólis: a comunidade de

convivência histórica, baseada na idéia da livre soberania do homem racional, da cor-

responsabilidade de homens livres.

Esse seu mundo familiar, entretanto, repousa sobre a estranheza de um abismo:

“Pondo-se a caminho por toda a parte, desprovido de experiência, e em aporia, chega

ele ao nada. A morte é a única agressão, de que ele não pode se defender por nenhuma

fuga, embora consiga esquivar-se habilmente às penas da enfermidade”. O homem, que

por toda a parte abre caminhos, encontra, então, o beco sem saída da morte (aporia). A

morte é, porém, o véu do nada. Ele, que vive continuamente em comunidade, na Pólis,

se torna só: ápolis. Se olharmos o homem nas alturas de sua vitalidade e de seu poder

inventivo, encontramo-lo dominando a Pólis. Se olharmos o homem nas profundezas,

nos abismos, de sua mortalidade e finitude, encontramo-lo “ápolis”: sem cidade, sem

abrigo, sem morada, sem-terra e sem-teto, apátrida.

Figura 4: Dike e Nêmesis perseguem um criminoso

Page 19: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

19

A audácia do homem encontra o seu limite na Justiça. Traduzimos por “Justiça”

o nome Dike. Aqui, porém, não se há de entender a Justiça como virtude moral, muito

menos no sentido jurídico. A Justiça é aqui a justeza do Todo, a justeza da Natureza, da

Vida (Cf. o dito de Anaximandro, que já comentamos). Dike significa a articulação íntima

de todas as coisas, a ordem do universo, a harmonia invisível do cosmos. Existindo no

meio do espaço aberto da liberdade, o homem precisa, no entanto, sempre de novo

encontrar a justeza na articulação íntima de todas as coisas no universo. Dike é a que

mostra a justeza: a existência “nos eixos”, ajustada, integrada em si mesma e bem

encadeada com o real. O nome “Dike” vem de “dikéin”: lançar; ou de deiknymi: mostrar,

indicar. Dike é o lance que mostra ao homem o seu lugar no mundo, o que lhe está

disposto, isto é, destinado, e a que o homem deve dispor-se, para poder viver uma

existência histórica bem encaixada no universo, bem concatenada com todas as coisas,

bem articulada com o Céu e a Terra, bem integrada no Todo. A injustiça (adikía) é

desajuste, desatino, desarmonia, desintegração. Dike é, pois, a juntura. Juntura quer

dizer, em primeiro lugar, articulação. Mas podemos entender também como disposição,

destinação, indicação, a saber, do ser, da (Phýsis) [da realidade]. O vigor da

(Phýsis) se impõe ao homem. É na conjuntura dela que ele vive. O ser, a

(Phýsis), como vigor que se impõe ao homem, é a unidade originária que tudo

reúne, articula, dispõe, é o (Lógos), de Heráclito. Dike é a conjuntura que dispõe

tudo aquilo que é.

Dike punia os homens, não lhes abrindo a porta da verdade. As meninas, no caso,

com palavras afáveis, persuadem Dike a abrir ao pensador o acesso à morada da

Alétheia:

As meninas, falando palavras afáveis, persuadiram-na diligentemente a lhes descerrar com presteza o ferrolho trancado do portal; este, abrindo-se com ímpeto, fez com que a dupla abertura imensa das portas girasse os eixos de bronze nos cubos ajustados com cones e cilindros. Então através do portal as meninas mantinham o

Page 20: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

20

carro e cavalos abertamente segundo a pertinência do caminho14.

A abertura do portal dá o ensejo para a revelação da deusa. O pensador é, então,

acolhido por ela:

E a deusa me acolheu com ânimo propício, tomou minha mão direita na sua; então ela, trazendo à fala a palavra (- épos fáto), se dirigiu a mim neste modo: Oh jovem (o kour’), companheiro de imortais condutoras de carro, que te trazem, com os cavalos, alcançando nossa morada: salve! Pois de nenhuma maneira uma moira () ruim te enviou a trilhares este caminho, - pois, em verdade, ele está para além do homens, fora da senda muito batida deles, - mas Themis e Dike.

É necessário que experimentes tudo: tanto o coração intrépido da verdade bem redonda - aletheíes eukýkleos atremés hêtor), quanto as aparências dos mortais (brotôn dóxas), nas quais não há a confiabilidade da verdade (pistis alethés). Mas é necessário, também, experimentares e estas coisas aprenderes: como aquelas coisas que aparecem necessitavam, de maneira adequada ao aparecer, ser o que reluz através de tudo levando tudo à consumação.

Com a abertura do portal, vem ao encontro do pensador, a deusa – ela é

simplesmente a deusa: (theà). Em grego há uma palavra semelhante a (theà),

a deusa - (théa): a visão. Esta semelhança, por sua vez, se parece com outra

semelhança: entre (biós), arco; e (bíos), vida (no sentido de vida humana,

histórica: marcada por vicissitudes e peripécias, destino). No fragmento 48, Heráclito

diz: (to oun tóxoi ónoma bíos, ergon dè

thánatos) – “o arco tem por nome a vida, por obra, a morte”. Aqui as palavras

14 Leão, E. C. e Wrublewski, S (tradutores). Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Petrópólis: Vozes, p. 43.

Page 21: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

21

(biós), arco; e (bíos), vida humana, são convertidas uma na outra. O nome

próprio para arco é (biós). Heráclito, no entanto, ouve (biós) como

(bíos). O arco evoca, em seu nome, a vida, no entanto, o que ele produz, na medida

mesma em que evoca a vida, é a morte. De fato, a vida do homem é uma vida mortal. A

mesma assimilação e conversão poderia ser feita, pensando-se o sentido, entre

(theà), a deusa - e (théa): a visão. A deusa evoca a visão. (théa) é a visão,

a saber, no sentido da visão que algo, o brilhar do sol, por exemplo, oferece de si. A visão

diz, aqui, o modo como algo aparece, brilha, e, assim, deixa e se faz ver, se mostra, se

dá a perceber. O ver, a visão, no sentido do perceber e da percepção do homem já é

uma resposta, uma correspondência, à visão, tomada originariamente, não como o

visto, mas como o aparecer e mostrar-se de algo. A visão, no sentido originário, é auto-

emergência e o auto-descobrir-se luminoso de algo: o vir-à-luz, o brilhar para o

descoberto. A visão originária, assim entendida, concede presencialização ao que se

presenta. Visão quer dizer aqui, originariamente, o auto-apresentar-se que emerge. O

verbo (theáo) significa um tal auto-apresentar-se emergente. Em contrapartida, o

ver no sentido de perceber, a visão no sentido de apreensão, se diz com o verbo

(theáomai): olhar, no sentido de observar, considerar, contemplar, perscrutar.

A experiência grega do divino - (tò theíon) – tem a ver com a visão

originária da (phýsis) e com a contemplação, a perscrutação dela, por parte do

mortal, o homem. (hoi theói) são, de certo modo, (theáontes),

aqueles que vêm para dentro da visão originária, do desencoberto, e, assim, dão um

aceno para o mortal. Neste sentido são (daíontes), os que oferecem aceno.

Assim, (theói) e (daímones) são as cintilações e aparições extraordinárias

cuja visão originária são um espetáculo digno acima de tudo de contemplação, de

perscrutação. Este extraordinário se oferece e dá o seu aceno ao homem a partir de seu

ordinário. Por isso é que os deuses, para os gregos, se oferecem na forma animal e

também na forma humana. Não se trata de antropomorfização. Não é assim que os

deuses são pensados como humanos, antropomorfizados. O que acontece, segundo o

sentido da experiência grega, é que a visão originária do deus – a sua mirada – irrompe

no homem, emerge nele. O deus é a visão originária – a mirada primordial – do mistério,

que irrompe, emerge, no homem e como humano. É que o homem não é um ente entre

Page 22: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

22

outros entes, simplesmente. O homem é aquele ente cujo ser é determinado através de

sua relação com o próprio ser, que se auto-desvela, que auto-emerge, a (phýsis).

Porque o homem é assim determinado é que ele pode não só mirar e perscrutar o divino,

que o mira do fundo do mistério, como também pode aparecer como divino. Entre

deuses, imortais, e humanos, mortais, se dá assim uma mirada recíproca, um encontro

gracioso.

Entretanto, tudo isso só é possível graças à (théa), à visão originária, a visão

de todas as visões, a saber, a visão da (phýsis), que se dá como

(alétheia). A (theà), a deusa, é, assim, a (théa), a visão de todas as

visões, a (alétheia), a verdade.

A palavra para verdade é (alétheia); para verdadeiro, (alethés);

para dizer a verdade ou o verdadeiro, (aletheúein). A tradução de

(alétheia) para verdade, palavra portuguesa que remonta à palavra latina

veritas, que traz, por sua vez, a experiência da verdade no horizonte do juízo e do julgar,

encobre, mais do que desencobre a experiência grega de pensamento. Que experiência,

porém, está subjacente à palavra fundamental (alétheia), no mundo histórico

da lingua grega? Resposta: a experiência do desencobrimento. A palavra

(alétheia) é negativa em seu modo de significar, embora seja positiva no modo

daquilo que ela dá a compreender e no modo de ser a que ela se refere. Ela é, no seu

modo de significar, algo assim como a negação de uma negação. Diz o des (não)-

encobrimento. O encobrimento impede o acesso a algo. Palavras gregas cujas

significações direcionam para esta experiência do encobrimento: (lathón): o que

está oculto, o que se mantém escondido; (láthra): secretamente, de modo

velado, oculto; (lathráios): clandestino; (laithargós): o que morde

em silêncio, de soslaio, o falso, no sentide de mofino, covarde; (láthrios):

letárgico, indolente, preguiçoso, a qualidade de quem tira o corpo fora; (léthe):

encobrimento, esquecimento – no mito, é o nome de um dos rios do Hades.

Etimologicamente, a raiz indoeuropeia é: ldh. Esta se apresenta em grau A com

infixo nasal (n) no presente do indicativo, no verbo (lantháno): escapar da

atenção, passar despercebido, permanecer ignoto ou escondido, e, daí, não se dar

conta, não saber, e, daí, por sua vez, deixar-se escapar, negligenciar, esquecer. Em vez

Page 23: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

23

da voz ativa, o que melhor dá a entender a experiência grega do esquecimento é a voz

medial: (lanthánomai), o esquecer no sentido de que algo está oculto,

mantém-se escondido, para alguém (aquele que se esquece). A raiz indoeuropeia ldh

aparece também em grau A sem infixo nasal (n) no aoristo15 forte ativo

(élathon), tendo esquecido. Aparece em grau E, no presente, (létho),

esqueço. É preciso, porém, captar o esquecer, na experiência grega, não a partir do

sujeito e de sua consciência. É preciso captar o esquecer como um evento. Como evento

constitutivo da experiência humana, esquecer implica no esquecimento do

esquecimento. O esquecer vige e vigora enquanto se esquece que se esqueceu. Esta

reduplicação do esquecimento, que vige e vigora como esquecimento do esquecimento,

vem à luz no verbo (epilantánomai): esquecer-se.

Da mesma raiz indoeuropeia ldh vem o verbo latino lateo, que se forma como

uma diminuição do mesmo radical com a perda da aspirada (h) e a mudança da labial,

de d para t. Lateo significa: estou oculto, escondido, latente. O verbo também traz a

significação de escapar a, ser desconhecido de; mas também, no mesmo sentido, de

estar em segurança, protegido, livre de, preservado. A palavra latens é formada como

particípio presente de lateo, e significa: escondido, oculto, secreto, misterioso. A

experiência grega da verdade, neste sentido, seria a de uma não-latência, de um não-

escondimento. O contrário de latens, em latim, é patens, que é formado como particípio

presente de pateo, e que significa descoberto, aberto, patente, exposto; evidente,

manifesto. O verbo pateo, com efeito, significa: estar aberto; daí: estar exposto, estar

acessível; ser evidente, manifesto, visível, patente; e, por extensão: estar disponível; ter

campo e caminho livre para...

O sentido arcaico de (lantháno) como ficar oculto, manter-se velado,

encoberto ou escondido aparece no canto VIII da Odisseia de Homero. O rapsodo

Demódoco, depois do banquete festivo oferecido pelo rei dos Feácios ao desconhecido

que fora encontrado na praia nu e sem sentidos, cantando ao som da lira, conta sobre a

pesada sorte que caiu sobre os gregos diante de Tróia. A recordação daqueles tempos

15 O aoristo apresenta a significação de um verbo como ação pura, sem determinação. Tempo passado indefinido, indeterminado, na sua duração. Pode significar uma ação no seu caráter pontual, momentâneo.

Page 24: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

24

cobre de tristeza o coração de Ulisses. Por causa de sua tristeza com a lembrança deste

tempo, Odisseu cobre sua cabeça com o seu casaco (v. 93). O texto grego diz:

A nossa tendência contemporânea é de traduzir: “Então ele derramou lágrimas,

sem que todos os outros o percebessem, Alcino unicamente viu e notou, sentado junto

dele...”.

Contudo, para render a experiência arcaica notável na tradução, é preciso outra

transposição. Decisivo aqui é o verbo (elánthane): ele escondeu. O verbo é

transitivo. Escondeu o que? Resposta: as lágrimas. Porque ele escondeu as lágrimas ele

passou despercebido pelos outros. Decisivo é o escondimento, o ter ficado oculto. Só

em virtude do escondimento é que Odisseu pôde passar despecebido em seu pranto por

parte dos convivas. Para respeitar a regência do verbo (elánthane): ele

escondeu, é preciso uma outra tradução. Façamos a tentativa de uma tradução que siga

mais de perto o modo de dizer grego: “então, de um lado, (Odisseu) manteve-se

escondido para todos os outros, derramando lágrimas; de outro, somente Alcino o

notou e soube, sentado junto dele...”. Nossa compreensão, porém, se centra no sujeito,

no agente, e na sua ação, no derramar lágrimas. A compreensão do grego se centra no

evento: no manter-se escondido16.

O mesmo desafio de compreensão nos vem ao encontro quando se trata de

entender o lema estoico: (láthe biósas). Nossa tendência é de traduzir:

“viva escondido”. Nosso foco está no sujeito-agente. O “escondido” segue o verbo

“viva”. Mas, para o grego, o decisivo é o modo de dar-se do evento na constituição da

experiência. Assim, o lema estoico, pensado neste horizonte, poderia querer dizer:

“permaneça velado no modo como conduzes tua vida”. Decisivo, aqui, é que o

velamento determine o modo de viver do homem entre os homens. O velamento e o

desvelamento concernem, primordialmente, ao ente – no caso, ao vivente, ao existente

humano – e não ao notar e saber. Para o grego, em toda realização do real a realidade

16 Outra passagem semelhante se dá na Ilíada X, 22, verso 277.

Page 25: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

25

vige e vigora como mistério, isto é, como a unidade de velamento e desvelamento,

encobrimento e desencobrimento, latência e patência.

Para a experiência grega, (alethés), o verdadeiro, é o não-latente, o des-

encoberto, o des-velado, o des-vendado. A função negativa se dá com o alfa privativo:

o (a) da (alétheia). A verdade é, neste experiência, fundamentalmente um

evento, o evento do desencobrimento, ou melhor, é o evento como desencobrimento.

Bem antes de Hegel, os gregos já conheceram “a força extraordinária do negativo”.

Dizíamos que na palavra (alétheia) o modo de significar é negativo, mas o modo

de inteligir e o modo de ser a ele correlatos (falando em termos de gramática modista,

especulativa), são positivos. É o que se dá com palavras como “imortal”, “inocente”. A

significação se cumpre funcionando como uma negação da negação. O que significa de

modo positivo – “mortal” – dá a intelegir e se refere a um modo ser que é negativo. Já

o que significa de modo negativo – “imortal” – dá a inteligir e se refere a um modo de

ser positivo. No caso de “inocente” não há nem mesmo uma forma positiva de significar.

Não existe, com efeito, “nocente”. Só existe o adjetivo “nocivo”.

O entendimento da verdade como evento de desencobrimento que concerne ao

ente no seu ser ou ao ser mesmo aponta para quatro direções: 1) o desencobrimento

remete para o encobrimento – este, o encobrimento, permeia a vigência primordial da

verdade; 2) a verdade só vem à tona numa luta com a não-verdade (cf. o -

pólemos, em Heráclito, bem como a decisão pelo caminho da verdade contra o caminho

da aparência, em Parmênides); 3) A não-verdade, neste sentido, não precisa ser a

falsidade; pode ser também, por exemplo, a latência, o escondimento, o mistério; 4) o

desencobrimento não é a mera remoção do encobrimento, mas se dá como um chegar

a ser, um advento, um tornar-se presente. Trata-se, neste último sentido, de um

emergir, sim, de uma auto-emergência. Os gregos pensaram esta auto-emergência, este

chegar a ser e aparecer, como (phýsis).

Na experiência grega, enfim, verdade vige, vigora, essencialmente, como evento

de desencobrimento que diz respeito, antes de tudo, ao ente mesmo e ao seu ser. A

verdade no seu entendimento tradicional, concebida a partir do discurso e do

enunciado, não é da mesma essência que a verdade neste sentido da experiência grega

originária.

Page 26: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

26

A experiência originária, a que nos remetem os gregos com a palavra (a-léth-eia), nada tem a ver com discurso ou conhecimento, com sentença, enunciado ou proposição, quer em suas funções de coerência e consistência, de completude e consequência, quer em seus papéis de correspondência e adequação, de conveniência e correção ou concordância. É que ser encoberto ou velado e ser des-encoberto ou re-velado não se movem num mesmo nível, nem pertencem ao mesmo plano de coincidir ou concordar com, de reger-se por ou de adequar-se a. Verdade, como revelação, e verdade, como correção, são processos ontológicos heterogêneos, por pertencerem a experiências de ser e realizar-se fundamentalmente diversas e essencialmente irredutíveis entre si, embora não sejam desconectadas nem disparatadas17.

Como, porém, perceber a conexão entre os dois planos de verdade, o originário

e o derivado?

Se partimos da quarta direção (o desencobrimento como auto-emergência,

como advento, isto é, um chegar a ser e aparecer), então talvez descubramos uma

possível conexão. O aparecer se dá numa ambiguidade. Vige como um brilhar e como

um mostrar-se. Neste sentido, do mostrar-se, requer, solicita, uma recepção e uma

percepção. Isso implica uma relação com os homens. A percepção apreende o que se

mostra a si mesmo. Pode-se se esquecer, porém, desta auto-mostração, e se ficar

somente com o percebido enquanto percebido. A ênfase pode recair no homem, que

percebe o real e não na auto-mostração e auto-emergência do real, do seu chegar a ser

e aparecer, do seu tornar-se presente.

Nos primórdios do pensamento grego, a verdade, no sentido de

desencobrimento, de abertura da dimensão em que se dá descobrimento e revelação,

pertence ao próprio ser. A verdade é a verdade do ser. A verdade do ser se encobre, no

17 Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia grega: uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 52.

Page 27: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

27

entanto, a si mesma, para proteger e revelar o ente em seu ser. É assim que se instaura

e se institui história.

A experiência originária da (a-léth-eia) é a realização inaugural, as primícias da constituição humana, em que o filho da terra rompe o silêncio da noite cósmica e o descendente de Prometeu des-cobre claridade nas e das próprias trevas. Trata-se de “algo” primordial e derradeiro. É o alfa e omega do mundo, o princípio e o fim da história dos homens18.

A verdade como desencobrimento, revelação, não é um acréscimo ao ser, mas

lhe pertence. Se a verdade pertence à vigência do ser, então o verdadeiro é, como tal,

ente. O verdadeiro é, neste sentido, o ente enquanto se mostra, se dá, se dá a perceber.

Com isso, além do relacionamento de ser e verdade, entra em questão a relação de ser

e pensar. Parmênides chama a percepção do ser de (noeîn): pensar. O pensar

não há de ser tomado, aqui, como uma faculdade humana meramente. O pensar, no

sentido da percepção do ser, é um acontecimento, em que o homem, nele acontecendo,

entra no acontecer historico como o ente que ele é, isto é, é o acontecimento em que o

homem mesmo chega a ser19. Neste sentido, o pensar não é uma propriedade do

homem, mas, antes o contrário: o homem é que é uma propriedade do pensar. Isto quer

dizer: o pensar é o acontecimento que constitui e que possui o homem. Este

acontecimento é o aparecimento do homem como histórico. Ele institui o homem como

o guardião do ser. A percepção do ser – o (noeîn) – , no entanto, requer o

(lógos), necessita-o. O (lógos), por sua vez, institui e funda a vigência da

linguagem. Isso constitui o fundamento fundante da existência histórica do homem no

meio do ente em sua totalidade.

A deusa, isto é, a (alétheia), verdade enquanto revelação do ser, toma

a mão direita do pensador em sua mão, dirigindo-lhe a palavra. A expressão grega é:

(épos pháto). O poema traz a integração das três formas fundamentais de

linguagem na experiência grega: (mythos),(épos) e(lógos). A

primeira forma, o (mythos), é a linguagem enquanto contar estórias, enquanto

18 Idem, ibidem. 19 Cf. Heidegger, M. Introdução à metafísica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987, p. 165.

Page 28: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

28

saga. Mítico é o desencobrir e encobrir salvaguardados na palavra que desvela e vela a

manifestação primordial da vigência fundamental do próprio ser. O poema de

Parmênides é, neste sentido, uma obra mítica. Ele deixa ser a percussão e a repercussão

do mistério do ser. A estória que Parmênides conta é uma estória que traz à linguagem

a destinação do pensamento sob a égide da revelação do mistério do ser, da

(alétheia). No (mythos) todo o jogo de relacionamentos de caos e

cósmos, de mortais (homens) e imortais (daimones e theói) se dá sob a égide da verdade

do ser. O (mythos) é a saga da linguagem, enquanto preserva e resguarda o

desvelamento originário da (léthe), isto é, da retração do mistério, do velado e

encoberto. O mito é, assim, uma experiência originária de verdade, de linguagem, de

pensamento. É originária, pois habita junto à origem, ao mistério do ser.

A segunda experiência de linguagem fundamental é o (épos): a palavra

cantada. Mas, o que é cantar? Ouçamos o testemunho de quem entende da coisa:

escutemos o Terceiro soneto a Orfeu, escrito pelo poeta R. M. Rilke:

Um deus pode! No entanto, dize-me como

Um homem há de segui-lo pela estreita lira?

O sentido lhe é bifurcação. No cruzamento de dois

Caminhos do coração, nenhum templo se ergue para

Apolo.

Cantar, como tu ensinas, não é cobiça

Nem conquista de algo que por fim se alcança.

Cantar é existir. Para um deus, muito fácil.

Mas nós, quando é que existimos? E quando ele

Faz voltar para nós a terra e as estrelas?

Page 29: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

29

Jovem, amar ainda não é nada, -

Embora a voz te force a boca – aprende

A esquecer que en-cantaste. Isso se apaga.

Na verdade, cantar é um outro sopro.

Um sopro pelo nada. Um vibrar em deus. Um vento.

O (épos) é a palavra enquanto canto, enquanto poética. Poesia é criação.

A palavra poética é a que entoa a linguagem como canto, na dinâmica da criação.

“Poesia é todo deixar e fazer passar do não ser ao ser”, dizia Platão (Simpósio 205 b)...

Todas as criações de todas as artes são poesias e todos os criadores são poetas. Poética

por excelência e originariamente é a própria (physis). Toda a criação é repentina,

advento do inesperado. Toda criação nasce do impacto subreptício, oblíquo, da

realidade. Poética é, antes de tudo, a realidade em retração-escondimento,

(léthe), e em doação-desescondimento, (alétheia). A força inaugural de

toda a obra poemática está no poético do mistério do ser. Poetas e pensadores são

vigias da poética do mistério do ser.

A palavra da deusa dirigida ao pensador da-se como o vir à fala de um

(épos), de uma palavra cantada, poética. Escutemos novamente as palavras do

poema:

(kaì me theà próphon hypedéxato,

cheíra dè cheirí dexiterèn, hode d’ épos pháto

kaì me proseúda): e a mim a deusa recebeu

favorável e prenunciando, mão, com a mão,

porém, tomou a direita, disse então a palavra

e cantou para mim:...

Page 30: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

30

O (mythos) é, aqui, o acontecer da linguagem como um apelo, uma

interpelação, graciosa, favorável, gratuita, benevolente. Na tragédia Aias (v. 522),

Sófocles diz: (cháris chárin gár estin he títous’

aeí) – a benevolência é o que sempre faz apelo à benevolência. O (épos) da deusa

é o entoar do apelo do mistério do ser e de sua revelação. Como, no entanto, soa este

apelo?

Oh jovem (o kour’), companheiro de imortais condutoras de carro, que te trazem, com os cavalos, alcançando nossa morada: salve! Pois de nenhuma maneira uma moira () ruim te enviou a trilhares este caminho, - pois, em verdade, ele está para além do homens, fora da senda muito batida deles, - mas Themis e Dike.

É necessário que experimentes tudo: tanto o coração intrépido da verdade bem redonda - aletheíes eukýkleos atremés hêtor), quanto as aparências dos mortais (brotôn dóxas), nas quais não há a confiabilidade da verdade (pistis alethés). Mas é necessário, também, experimentares e estas coisas aprenderes: como aquelas coisas que aparecem necessitavam, de maneira adequada ao aparecer, ser o que reluz através de tudo levando tudo à consumação.

O pensador é chamado de (kouros), jovem. A ele é dada a juventude no

modo da jovialidade. Aquele que é conduzido e acompanhado pelas

(Heliádes kourai), moças filhas do Sol, é, ele mesmo, em virtude dessa condução

e dessa companhia, um (kouros), um jovem. Quem vive junto à fonte da luz e da

vida recebe e resguarda a jovialidade, a alegria de viver – a gaia ciência. Ao pensador é

destinada uma serenidade jovial e uma jovialidade serena, como dádiva divina. A

imagem do (kouros) marca a escultura grega dos primórdios.

Page 31: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

31

Figura 5: Detalhe do Kouros Rampin, c. 550 a.C., Atenas.

Page 32: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

32

Figura 6: Kouros anavissos

A deusa saúda o pensador chamando-o de Kouros, e dizendo-lhe: (chaîr’)

– isto é, “alegra-te!”, “salve!”, “viva!”. A bênção divina está com o pensador. Com ela, a

alegria, a jovialidade, a plenitude da vida, a saúde, a salvação. A saudação da deusa

comunica salvação. A (alétheia), a verdade, diz alegria, paz, salvação, pois vige

e vigora, essencializa-se, como liberdade. Livre significa preservado de... resguardado.

Libertar é resguardar. Resguardar, porém, não quer dizer meramente algo negativo: não

fazer nada com aquilo que se resguarda. Resguardar é algo positivo, é um deixar ser, no

sentido de entregar algo ao vigor de sua essência, é restituir algo ao abrigo de sua

essência. O homem é pacificado na liberdade da pertença à verdade. Nesse resguardo,

Page 33: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

33

é-lhe dada a alegria, a jovialidade serena, a sernidade jovial. O brilho, o sorriso, do

Kouros guarda este segredo, talvez?

Entretanto, como elucidar esta bênção da (alétheia)? Qual é o seu

fundamento? A resposta da deusa é:

Pois de nenhuma maneira uma moira () ruim te enviou a trilhares este caminho, - pois, em verdade, ele está para além do homens, fora da senda muito batida deles, - mas Themis e Dike.

O pensador é bem-aventurado, encontra a beatitude, em virtude da

(Moira). O nome “Moira” remete ao verbo medial meiromai: dividir, repartir.

“Moira” significa, com efeito, a parte que toca, a porção que é assinalada, reservada e

destinada, a cada ente, também a cada homem, no todo, isto é. Daí: destino. Moira

nomeia, pois, a partilha, que resguardando, concede participações, deixa e faz ser

partes, no desdodramento do mistério do ser e de sua revelação. A parte que toca a

cada ente no Todo é recebida a modo de destinação, de envio, encaminhamento. O ser

é a via de todas as vias. Na via do ser são enviados os entes. Cada ente tem o seu

caminho de essencialização e de realização, a sua via, a sua viagem. Cada história de

cada ente é o mythos, a saga, desta destinação. Narrar a história ou a estória de cada

ente é dizer, isto é, mostrar como ele veio a ser o que ele é nas peripécias e vicissitudes

de um envio, de uma destinação. (Moira) é o nome para o ser, enquanto envio,

destinação. É o vigorar da vigência do vigente no modo do destino e da partilha

essencial, fundamental. Na partilha, tudo que está com-plicado no Um se ex-plica. A

(Moira), isto é, à destinação do ser, é um vigor que contém em sua mão e

resguarda tudo: todo o ente, céu e terra, o que subjaz no céu e na terra, os mortais

(homens) e os imortais (daimones e theoí). O ente no todo está sob a regência da

(Moira), isto é, da destinação do ser. No fragmento VIII (v. 37s) lemos:

...

(...epeì tó ge Moir’ epédesen

oulon akíneton t’ émmenai)

Page 34: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

34

... Já que a Moira lhe impôs (ao ente)

Ser todo e imóvel.

A deusa diz ao pensador que não foi uma Moira ruim que o enviou à sua morada,

mas (Themis) e (Díke). Themis é uma titânide, filha de Urano e Gaia (Céu e

Terra), os pais primordiais. (Themis) é a que põe e institui as leis eternas dos

deuses. De fato, o seu nome tem a ver com o verbo títhemi: pôr, colocar. Significa, pois:

posição, colocação. Por isso, ela era a conselheira de Zeus e tinha a autoridade de reunir

e dissolver as assembleias dos deuses e dos homens. Themis gerou com Zeus as Moiras,

deusas do Destino.

Figura 7: Themis and King Aegeus, Athenian red-figure kylix C5th B.C., Antikensammlung Berlin

(Díke), como já vimos, é filha de (Themis) com Zeus. (Díke) é,

já acenamos, a justeza da articulação e estruturação, da conjuntura essencial e originária

de todas as coisas. (Díke) significa a articulação íntima de todas as coisas,

Page 35: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

35

enquanto pertencentes, todas, nas suas realizações e desrealizações, ao Mesmo, ao

mistério do Ser.

Figura 8: Dike x Adikia (Justiça x injustiça)

(Díke) é a porteira do portal do dia e da noite. Ela é a guardiã da chave que

abre, des-vela, e fecha, vela. Ela rege a (alétheia), o des-encobrimento, como

também a (léthe), o encobrimento. Com ela se manifesta tanto o ser, que se des-

tranca, quanto o nada, que se tranca. Ela é a conjutura, portanto, do ente no ser, e a

conjuntura de ser e nada, bem como de verdade e aparência.

O (épos), a palavra cantada, da deusa continua:

Urge, porém, que saibas tudo, tanto o coração intrépido que descobre a verdade de circularidade perfeita, quando os pareceres dos mortais, a que não pertence confiança no desvelamento da verdade. Mas apesar de tudo, hás de aprender também o seguinte, que e como as aparências têm urgência de penetrar, em sua própria condição de aparência em todas as coisas através de tudo.

Page 36: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

36

A deusa está dirigindo sua palavra ao pensador. Este é um mortal. A ele não é

dado saber e experimentar “o coração intrépido que descobre a verdade de

circularidade perfeita” - (aletheíes eukýkleos

atremés hétor) – sem ter que saber e experimentar, também os pareceres dos mortais -

(brotôn dóxas). A aparência não está fora, excluída, do ser. Ela pertence

ao ser. (phýsis) é tanto ser quanto aparecer, luz, (phós). O mostrar-se do

que aparece e se presenta pertence imediatamente ao ser. O ser se mantém no aparecer

do ente, atravessa-o com o seu brilho, consumando-o, levando-o à perfeição.

O ser é a verdade, isto é, a revelação de circularidade perfeita, a beleza esférica

(unidade simples e infinita). Ele perpassa todo o ente, todo o vigente, todas as coisas -

(tà eonta) –, tudo aquilo que aparece - (tà dokounta). E, no

entanto, algo pode aparecer como é ou pode aparecer como o que não é. No primeiro

caso, o ser coincide com o aparecer. No segundo caso, não. No segundo caso a aparência

é mera aparência, engano, ilusão. Algo aparece e, neste aparecer, parece ser isto ou

aquilo, parece ser assim e assim... e, no entanto, não é. Todavia, para que algo possa

aparecer de maneira ilusória, é preciso que algo apareça. Sem aparecer genuíno não há

um aparecer ilusório, que naquele se funda, a modo de uma distorção, de uma

dissimulação, de um simulacro. A aparência, no sentido do mero aparentar, não

pertence, contudo, ao ser. A mera aparência não só faz aparecer o ente como aquilo

que ele não é, de modo distorcido, dissimulado, e, nisso, enganoso, encobridor, como

ela também se encobre a si mesma, se dissimula a si mesma, apresentando-se como o

ser mesmo, sua revelação, sua consistência. A mera aparência passa-se pelo ser e pela

verdade. Ser um mortal é estar sob a constante necessidade de discernir o que é um

aparecer genuíno, consistente, verdadeiro, perpassado pelo vigor e pelo brilho do ser, e

o que é um aparecer no sentido da mera aparência, da distorção, da dissimulação, do

engano. Ser e aparecer são, assim, potências que estão ao encalço do homem na sua

existência cotidiana. O mortal é aquele que é urgido, constantemente, a fazer este

embate e discernir entre o ser e o seu originário aparecer e o mero parecer e a

aparência. Nos pareceres, isto é, nas opiniões dos mortais, neste sentido não mora uma

confiança desvelante. Os mortais são, fundamentalmente, seres errantes, expostos ao

Page 37: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

37

engano, à equivocação. Pensar é comprometer-se, porém, com fazer da existência um

único e intrépido empenho de desvelamento do ser.

Passemos agora ao fragmento II:

Eis pois, que, eu vou dizer, tendo tu escutado cuida, porém da saga da linguagem (- mython), quais caminhos (- hodói) de investigação (dizésios) somente são para pensar (- noésai): um é como se dá ser e também, como não se dá não ser (- me eínai); é pista de confiança (peitoùs esti kéleuthos) – pois acompanha o desvelamento (- oletheíei) –; o outro, como não se dá ( - hos ouk estin), e também quão necessário é (hos chreón esti) se dar não ser (- me einai); esta, com efeito, proclamo ser (- phrázo émmen) uma vereda toda inacessível (- panapeuthéa... átarpón); pois nem poderias conhecer (- oute gar an gnoíes) o não ser (- to ge me eón), de vez que inacessível - ou gar anystón), nem dizer em palavras - oute phrásais).

Parmênides vai dizer, isto é, indicar, mostrar, tornar acessível o que concerne aos

caminhos do pensar. Aquele a quem ele dirige sua palavra é convidado a se colocar no

recolhimento da ausculta e, assim, a cuidar do (mythos). O (mythos) é a

saga da linguagem, enquanto preserva e resguarda tanto a (alétheia), o

desvelamento do ser, como (lethe), o velamento do não ser. Agora já não está em

questão a distinção de verdade do ser e aparência - dóxa), em que a não-verdade

se dá como distorção e dissimulação, como engano, ilusão, erro (no sentido de errância).

Agora está em questão outra distinção: aquela entre ser e não ser, ou seja, entre

verdade, no sentido de desvelamento, e não-verdade, no sentido de velamento,

encobrimento, mistério. Assim como a aparência pertence, de certo modo, e não

pertence, de certo modo ao ser (pertence, enquanto ser se dá num aparecer e o

Page 38: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

38

aparecer precisa ser e precisa do que ser que aparece, mesmo para haver um parecer

que se mostra como sendo, enquanto, de fato, não é), assim também o não ser pertence

e não pertence ao ser. Tentemos entender como.

Ambos os caminhos, o do ser e o do não ser, são vias de investigação dignos de

serem percebidos, pensados (- noésai). Primeiramente, Parmênides indica o

caminho do ser. Ele atenta para isso: como se dá ser e como não se dá não ser. O

caminho do ser para o ser é o caminho da revelação, do desencobrimento, da verdade:

(alétheia). Estar numa senda de confiança fundada é seguir a revelação, o

desencobrimento do ser. Neste sentido, o não ser não se dá. O não ser não acontece,

pois, na via do ser, isto é, na via do desencobrimento, do manifesto.

O outro caminho de investigação que se há de ter em mira é o seguinte: como

não se dá ser e quão necessário é não se dar ser. Esta é uma vereda que não se pode

interpelar. Aqui está em questão o inviável, o insondável, o incognoscível, o inefável. É

a via inviável, por ser a via que leva ao não ser. O não ser, o nada, não é algo de ente –

o que não significa que ele deva ser tomado por uma nulidade. O caminho do nada não

pode ser seguido. Mas também não se carece de seguir. Se não não podemos ir ao nada

não significa que o nada não venha a nós. Na verdade, a vigência, a força do nada, está

sempre se dando. Tudo sempre é e não é. Nós mesmos, sempre estamos sendo e não

sendo. O não ser, o nada, não é o resultado de uma negação, embora sua força esteja

atuando, como condição prévia, em toda a negatividade. Enquanto não ente, o nada

tem a ver com o ser. Também o ser se diferencia do ente. Ser e não ser não são ente

nem nada de ente. Ser e não ser se pertencem – e, neste sentido, são o mesmo. Mas

não se trata de uma identidade sem diferença. Ser e não ser se diferenciam. Ser vige

como desvelamento - (alétheia); não ser, como velamento (lethe). O

velamento, a retração, a subtração do ser, se proclama, nas palavras de Parmênides,

como o não se dá ser. Tanto é necessário se dar ser – a sua doação, enquanto

desvelamento; quanto é necessário não se dar ser – o seu retraimento, a sua subtração

– o nada (?). Os dois caminhos, o do ser e o do não ser, são um e o mesmo. O caminho

de ser para ser e de não ser para não ser está sempre acontecendo. E nós estamos

sempre sendo interpelados a tanto seguir o caminho do ser, o do desvelamento, quanto

a não estranhar o caminho do nada, o do velamento.

Page 39: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

39

Nós, os mortais, estamos de início e na maior parte das vezes voltados para o

ente. Conhecemos, sabemos, o ente, e nada mais. Nos relacionamos com o ente, e nada

mais. A dimensão do ser, isto é, do não-ente, nos é desconhecida, ignorada. Neste

sentido, para nós, o ser vale como não ser. Mas, uma vez que nós damos ouvidos à

verdade, e deixamos de percorrer a senda batida da aparência cotidiana, podemos

pensar, isto é, perceber ((- noésai) tanto o caminho do ser quanto o do não ser.

Talvez sejamos até capazes de perceber o caminho do ser e de saber este caminho – o

caminho do saber e do conhecimento ontológico. Se não fosse possível perceber o

caminho do ser como é que teria sido possível haver a filosofia e toda a sua história? No

entanto, o poema de Parmênides é ainda mais exigente, ao falar do caminho do não-

ser, do nada. O ocidente teve uma grande dificuldade de perceber este caminho. O nada

permaneceu apócrifo, em certo sentido, na filosofia, no pensamento do ocidente. Mas

no oriente é o tema fundamental do pensar. Por isso, evocamos, aqui, duas estórias de

Chuang Tzu, que nos convidam a tomar a sério o caminho do nada.

“És ou não és?”, a Luz perguntou ao Nada. O Nada era escuro e vazio. O dia todo a Luz experimentou ver. Mas não pôde ver o Nada. Auscultou. Mas não o pôde ouvir. Tentou tocá-lo. Mas não o pôde encontrar. “Oh!”, disse a Luz consigo mesmo, “isto é pois o máximo! Quem pode atingir uma tal altura?! Eu posso saber que não sei o que é o Nada. Não posso, porém, não saber que não sei o que é o Nada. Se sei que não sei o que é o Nada, resta sempre ainda o saber do meu não saber. Como pode alguém alcançar essa culminância?!

O professor Carneiro Leão reinventou esta estória. Vejamos como:

De certa feita, não saber foi visitar saber com a pergunta de uma provocação: o que é o nada? – Saber que sabe tudo não pode não saber que é o nada! E de fato saber respondeu de pronto: ora, nada é o que há de mais óbvio e evidente: nada é não ser. Mas não saber não ficou satisfeito com a resposta de saber.

Por isso contestou: mas, neste caso, para nada ser mesmo nada, precisaria ser e, sendo, já não

Page 40: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

40

seria nada, seria ser. Saber, portanto, não é saber, é não saber. Pois como todo o saber não sabe o que é o nada. – Saber ficou invocado. Será mesmo que não saber o pegou pelo pé, pelo que saber tem de próprio, o saber? Ocorreu logo a saber o paradoxo do mentiroso, a doutrina das suposições de Guilherme de Ockham, a teoria dos tipos de Bertrand Russel e a lógica das funções da língua. Mas tudo isto se lhe afigurava mais vaidade do que validade. Pois não lhe valia para saber o que é o nada. Saber saiu, então, perguntando por toda a parte: é ou não é?, enquanto não saber repetia: é e não é! Saber aguçou os ouvidos, nenhum ruído. Abriu a boca, nenhum sabor. Fechou os olhos, nenhuma luz. Já ia desistir, quando de repente foi tomado por uma força: então, é isso! Claro que é isso mesmo! Mas é o máximo! Foi procurar não saber com a resposta: não posso saber o que é o nada, mas posso saber que não sei! Assim saber ainda estava vencido por não saber. O maior poder, pois, não é o não saber de saber, mas o saber de não saber! –

Não saber comentou apenas: com tanto poder, saber só não pode não saber o que é o nada!20

O pensar não vai ao nada pelo saber. Mas o nada vem ao pensar pelo não saber.

É a vigência do mistério. O pensador precisa aprender a experimentar ambos: o caminho

do ser, necessário. E o caminho do não ser, inviável, insondável. O mistério dando-se

enquanto mistério, isto é, retraindo-se, retirando-se, recusando-se, encobrindo-se, e,

nisso, protegendo o que está doado, desencoberto, desvelado. O pensar se dá entre

saber e não saber. O pensar experimenta tanto a clareira – a abertura livre, desbastada,

clara e ressonante – do ser; quanto o cerrado – a mata fechada, densa, escura, silenciosa

– do não ser. O humano no homem acontece como um estar entre a des-ocultação e a

ocultação. Na des-ocultação acontece patência do ente e des-velamento do ser. Na

ocultação a latência e o velamento do não ser. O homem precisa experimentar ambos:

a linguagem do ser, sua sonância e ressonância; como também a linguagem do não ser,

seu silêncio, seu retraimento:

20 Leão, E. C. Filosofia Grega: uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 187-188.

Page 41: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

41

O retraimento da Linguagem é a Linguagem do mistério em doação nos empenhos de ser e nos desempenhos de realizar-se. Por e para perfazer a força de qualquer dizer, a Linguagem tem de retirarse das falas e, ao fazê-lo, abre espaço e deixa lugar para o sentido correr pelos discursos das línguas. Desde o Tractatus Logico-Philosophicus de 1922, Wittgenstein não se cansa de repetir que os limites do dizer apontam para os limites do mundo, mas não da vida, de vez que a Linguagem sempre mostra o que o discurso não pode dizer. Este mostrar recolhe em si toda a impossibilidade de dizer das línguas. Por isso é que, num esboço para Mnemosine, Hoelderlin, o poeta da poesia, nos remete para a dinâmica do esquecimento no âmago da própria memória:

Ein Zeichen sind wir deutungslos,

Schmerzlos sind wir und haben fast

Die Sprache in der Fremde verloren!

Somos um sinal sem sentido,

Insensíveis à dor, quase perdemos

A língua no estrangeiro21.

Do oriente, da China de Lao Tsé, nos vem um poema do pensar poético que

celebra o mistério do nada e sua vigência fundamental na vida dos homens. Sem o nada

o ser mesmo perde sua vigência. Niilismo não é a celebração do vigor do nada. Niilismo

é a perda de vigência do ser no esquecimento do nada. E niilismo é a destinação que

tomou o pensamento ocidental, em virtude do esquecimento do ser e do nada, da

linguagem e do silêncio, tendo se aferrado unicamente ao ente e sua entidade, isto é,

ao vigente e sua vigência, ao presente e sua presença. Vejamos, pois, o poema de Lao

Tsé. Primeiro, na tradução Richard Wilhelm:

Trinta raios cercam o eixo:

a utilidade do carro consiste no seu nada.

21 Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia contemporânea, p. 225.

Page 42: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

42

Escava-se a argila para modelar vasos:

a utilidade dos vasos está no seu nada.

Abrem-se portas e janelas para que haja um quarto:

a utilidade do quarto está no seu nada.

Por isso o que existe serve para ser possuído

e o que não existe, para ser útil22.

Na versão poética (adensada) do prof. Emmanuel Carneiro Leão lemos:

Sustentados pelo aro, trinta raios rodeiam um eixo,

mas onde os raios não raiam que roda a roda.

Vasa-se a vasa e se faz o vaso,

mas é o vazio que perfaz a vasilha.

Levantam-se paredes e se encaixam portas,

mas é onde não há nada que se está em casa.

Falam-se palavras e se apalavram falas,

mas é no silêncio que mora a linguagem.

O ser presta serviços,

mas é o nada que dá sentido23.

O caminho do ser e o caminho do não ser são os caminhos de investigação que

o pensador precisa pensar, perceber - (noésai). Pensar é, aqui, (noeîn),

perceber, no sentido de dar-se conta da experiência já sempre feita de que não ser é

condição de possibilidade, é requisito de possibilitação para ser.

O fragmento III é fundamental. Ele diz, simplesmente:

22 Lao Tzu. Tao-te-King. Texto e comentário de Richard Wilhelm. São Paulo: Ed. Pensamento, 2006, p. 47. 23 Leão, E. C. Filosofia grega: uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 188-189.

Page 43: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

43

...

(...tò gár autò noeîn estín te kaì eînai).

... pois o mesmo é pensar e ser.

Esta sentença de Parmênides dá a pensar. Ela oferece, na verdade, a coisa

mesma do pensar, isto é, o que é a sua questão, a sua tarefa, o a-se-pensar. Esta

sentença fundamental para toda a história do pensamento ocidental carece de ser

elucidada em nossa meditação. Ela é por demais enigmática. Vamos buscar ajuda, para

a sua elucidação, num outro fragmento do poema. Tomemos em consideração o

fragmento VIII, numa perícope que abrange os versos 34 a 41.

O mesmo é pensar e aquilo graças a que o pensamento é;

pois sem o ser, em que foi dito,

não encontraríeis o pensar: pois nenhuma coisa é ou será ao lado ou de fora do ser, já que a Moira o amarrou, de modo a ser todo (inteiro) e imóvel: por isso, tudo será nome, (a saber) o que os mortais (a-)firmaram, convictos de ser verdadeiro: tanto o surgir quanto o sucumbir, tanto ser quanto não ser, e o alternar do lugar, e o mudar do que aparece através das cores.

Page 44: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

44

Os versos, num primeiro momento, não elucidam, isto é, não esclarecem, o que

foi dito no fragmento III: ... (...tò gár autò noeîn

estín te kaì eînai) - ... pois o mesmo é pensar e ser. Como a tradição interpretou este

dito? A interpretação tradicional do dito se movimenta em três direções:

1) primeiramente, encontra-se o pensamento como algo que é, que ocorre,

simplesmente dado, como algo que jaz antes de qualquer operação, e, neste

sentido, é. O pensamento é contado como um ente entre outros entes, faz

parte do todo, cuja unidade é chamada de ser. Porque é ente igual aos

demais entes. Ele pertence ao todo homogêneo do ente, cuja unidade é o

ser. O pensar é igual ao ser. Ele pertence ao ente como qualquer outra

atividade humana. Tudo o que é, seja algo de humano, seja algo de não

humano, é ente – pertence ao todo do ente, cuja unidade é o ser. Ao lado e

fora desse todo nenhum ente é.

_ Acontece, porém, que Parmênides não diz que o pensar está incluído entre

os (os entes). Não afirma que o pensar é um ente entre outros entes,

que, igualmente, pertencem ao todo, cuja unidade é o ser. Não diz que o

pensar pertence às aparências (tà dokounta) – as coisas que

ora são, ora não são, e que, intermitentes, advêm e passam.

2) A segunda perspectiva de interpretação, típica da filosofia moderna, toma o

pensar como conhecer e o ser como a realidade efetiva. A impostação

dominante é, aqui, a da teoria do conhecimento. A filosofia moderna

experimenta o ente como objeto. O objeto é o representado do representar.

A representação fornece o objeto, o representado, ao eu, que representa.

Representar é perceber e apeter: é um apeter apreender (cf. Leibniz). Ser é

o que é percebido, isto é, o que é apreendido, representado. O ser é em

virtude do pensar, do representar. Esse est percipi (Berkeley). O ser é igual ao

pensar, na medida em que é constituído na consciência, capaz de atuar

representações, no modo do “eu penso alguma coisa”. O ser é afirmação do

pensar que se produz a si mesmo: pertence ao âmbito da “idea”, do ideal. O

ser é o mesmo que o pensar, no sentido de que o ser é o que o pensar enuncia

Page 45: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

45

e afirma (cf. Hegel). Hegel considerou, em virtude disso, que é com

Parmênides que se inicia o filosofar em sentido próprio, embora fosse um

começo ainda turvo e indeterminado. Para ele, o pensar-se a si mesmo do

saber absoluto é pura e simplesmente a própria realidade. Tosco é o começo

da filosofia em Parmênides, segundo Hegel, pois ainda falta a dialética. Esta,

para ele, teria aparecido com Heráclito. Na lógica especulativa de Hegel a

sentença “esse est percipi” (ser é ser percebido, isto é, representado),

alcança sua realização incondicional.

_ Porém, é preciso atentar para algo aqui. Em ambas as passagens (III e VIII,

34), Parmênides enuncia primeiro o (noeîn), o pensar ou perceber, e

só depois o (eînai), o ser. Se Berkeley remete o ser ao pensar. Já

Parmênides confia o pensar ao ser. Para os modernos, pensar é representar

e ser é ser-representado. Para os gregos, pensar é um perceber reunidor, e

ser é a vigência do vigente (respectivamente, a presença do presente). Para

o pensamento originário, o pensar, no sentido do perceber, está remetido ao

ser, no sentido da vigência do vigente. O pensar está confiado ao ser.

3) A terceira perspectiva de interpretação provém de Platão. Para este, o ser é

a presença constante, a (ousía), e esta, por sua vez, se dá como

(idea), feição, ou (eidos), aspecto. As ideias são o constitutivo de

todo ente, são aquilo que está propriamente sendo em todo o ente, a

vigência do vigente. Elas, no entanto, não são visíveis, perceptíveis, como as

coisas sensíveis - (aisthetà). Elas só são perceptíveis, visíveis, no

(noein), no perceber intelectivo, ou seja, no pensar. Plotino, segundo

Platão, interpretou que, com esta sentença, Parmênides quis dizer que o ser

não é algo sensível. Também aqui o acento recai sobre o pensar, embora de

modo diverso, em referência à filosofia moderna. O pensar é um captar não

sensível. O ser é o pensado do pensar, isto é, é o correlato não sensível do

pensar. Para esta interpretação, a sentença de Parmênides, no que ela está

dizendo, está afirmando a pertença de ambos, pensar e ser, ao âmbito do

não sensível ou do supra-sensível, dos (noetà), isto é, dos inteligíveis.

Entretanto, é preciso deixar falar a sentença de Parmênides a partir do reino e

do domínio de sua morada, de sua estadia. Uma interpretação fenomenológico-

Page 46: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

46

hermenêutica da sentença de Parmênides precisa se dar como um diálogo com o seu

pensamento, que não transponha a sentença e o seu dito para o campo de escuta e o

âmbito de visão da metafísica (do pensamento posterior em que o ser está sob a égide

do pensar e não o contrário); precisa se dar, pois, como uma conversa aberta, que lhe

concede liberdade para o seu próprio dizer e se permita corresponder ao apelo

questionador do pensamento originário. Precisa, pois, transpor-se para o campo de

escuta e o círculo de visão do pensamento originário e questionar este pensamento, no

sentido de solicitar, pedir, demandar dele o que ele tem a dizer.

Tentemos, pois, escutar o que diz a sentença de Parmênides. Algo que

primeiramente demanda a nossa atenção é que no fragmento III aparece o verbo

(einai), ser e, já no fragmento VIII (34s), aparece o particípio substantivado

(eón), sendo-ser ou ser-sendo. O (eón) não diz, simplesmente, o ente, mas a

duplicidade de ser e ente. Diz, assim, o ser do ente, ou o ente no ser. A palavra guarda

o vislumbre do que se confiou à linguagem em palavras como (physis),

(Lógos), (Hen). Esta duplicidade é a morada do pensar. É no interior dela,

de seu desdobramento, que o pensar encontra a sua estadia permanente. Trata-se, aqui,

da clareira ser do ente. É a abertura de um caminho de liberdade, que abre um campo

de escuta e um círculo de visão. Nela se dá toda a sonância e ressonância, todo

luzimento e reluzência. Embora ela seja a redondeza aberta em que tudo se descerra e

clareia, ela ficou cerrada e escondida, para o pensamento ocidental.

(physis krýptestai phílei). O desencobrimento já tende ao

encobrimento. O desencobrimento permanece, ele mesmo, encoberto, para os homens.

Por outro lado, o encobrimento do mistério, a (lethe), ela mesma fica ainda mais

encoberta. Passa despercebido que não pode se dar (alétheia),

desencobrimento, sem (lethe), encobrimento.

O fragmento III diz, de maneira precisa e concisa, que pensar pertence a ser.

Como se dá este pertencimento? O fragmento diz: (tò gàr autò)... “pois o

mesmo...”. O fragmento VIII, 34, por sua vez diz: (tautòn): “o mesmo...”. Eis a

palavra enigmática em todo o pensamento de Parmênides. Uma interpretação

fenomenológico-hermenêutica desta palavra requer escutá-la e deixá-la resguardar-se

em si mesma enquanto enigmática. Em jogo não está, simplesmente, a posição

Page 47: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

47

tradicional de que a identidade é o pressuposto claro, dotado de uma evidência

meridiana, da pensabilidade de todo o pensável. Em jogo está, ao que parece, o

pertencer do pensar ao ser. No fragmento III, Parmênides fala do ser: (einai); no

fragmento VIII, fala do (eón): a duplicidade de ser e sendo(ente). No fragmento III,

ele fala do pensar (noeîn). No fragmento VIII, (noeîn) evoca

(nóema): o tomado em atenção de um perceber atencioso. O (eón), a

duplicidade de ser-sendo ou sendo-ser, é dito (hoúneken esti

nóema): em virtude de que e por mor de que vige pensamento. O pensamento vige a

partir da duplicidade ser-ente e se encaminha para ela. A duplicidade mesma reclama,

requer, para si mesma, o pensar. O Mesmo vive na e da pertinência recíproca de pensar

e ser. O pensamento pertence ao ser na medida que vige tomando em atenção o ser e

encaminhando-se para a duplicidade.

O pensamento não pode ser sem o ser. O ser é o seu medium, isto é, o seu

elemento. Como o peixe pertence à água, como o pássaro pertence ao ar, como a

minhoca pertence à terra, assim também o pensar pertence ao ser. O pensar se move

no ser. Pensar é compreender, isto é, recolher, reunir a doação do ser. É (lógos).

Os que não escutam o (Lógos), que vige como o (Hen Panta), o Um-

Tudo, são ditos, no fragmento 1 de Heráclito, (axýnetoi)24: os que não

compreendem. O (Lógos) é a con-juntura universal de todo o ente (sendo) no

ser. Por isso, a compreensão do ser, é o seguir e ter em atenção esta conjuntura

universal, comum a tudo o que é. Em virtude disso, a compreensão do ser é, ela mesma,

universal, isto é, aberta para a imensidão, a altura e a profundidade, e a originariedade

do ser, que tudo reúne na sua unidade. Aquele que não escuta o (Lógos), a

conjuntura comum de tudo o que é, tem uma compreensão privada, particular:

(tou

lógou d’ eóntos xynou zóousin hoi polloì hos idían échontes phrónesin): “mas enquanto

o Lógos vive em con-juntura, a massa vive como se tivesse um entendimento próprio e

particular” (fragm. 2). Destes diz o fragmento 34: “Sem compreensão: ouvindo parecem

surdos, o dito lhes atesta: presentes estão ausentes”. Os que não ajuntam o conjunto

24 Esta palavra provém da negação (a-) de (syníemi): pôr junto, ajuntar, e, daí, perceber, ouvir, entender, apreender, conhecer, compreender.

Page 48: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

48

de tudo o que está sendo na unidade do ser equivalem, aqui, a surdos. Como não estão

atentos à presença que tudo permeia, embora sendo presentes, é como se não fossem.

Falta-lhes a presença de espírito. São como ausentes. O (Lógos) é a conjuntura

do ser, em que se ajuntam todos os entes. É a juntura em que se articulam todos, nas

suas diferenças. Em Parmênides o (Lógos) é dito (tò eón): o ser (o vigorar

que rege a duplicidade de vigência e vigente, de ser e ente). É chamado, no fragmento

V, de (xynón), presença reunida, a conjuntura, que reúne tudo em si e o mantém

junto. O fragmento V diz:

(xynón dé moí

estin, hoppóten árxomai: tothi gar pálin híxomai authis): “o comum me é dado, de onde

sempre inicio; pois para lá eu irei retornar de novo”. O pensar provém do ser, se

encaminha para o ser, e se movimenta, se encaminha, no elemento do ser.

Parmênides, no fragmento VIII, diz:

(tautòn d’ esti noein kai houneken esti

nóema) – o mesmo é o pensar, a percepção, o recolhimento, e aquilo em virtude do qual

o pensar, a percepção, o recolhimento, se dá. Ser diz vir e estar na luz, aparecer, entrar

na revelação e no desencobrimento - (alétheia), verdade. Onde o ser vigora e

reina dá-se também o viger do pensamento.

Ainda é dito:

(ou gar

aneu tou eóntos, em ho pephatisménon estin, euréseis tò noein) – com efeito, sem o ser,

em que foi dito (o ser), não encontrarás (alcançarás) o pensar, isto é, o perceber que

reúne, isto é, o compreender. O (noein), o pensar, no sentido do perceber, se

funda no (légein), no recolher e deixar subjazer. O (nóema) é o

(nooúmenon) do (noein): o percebido é o que está sendo captado

pelo perceber pensante, isto é, pelo pensar perceptivo, intuitivo). Se, contudo, o

(noein), o pensar perceptivo, intuitivo, se funda no e vige a partir do

(légein), do recolher e deixar subjazer, então, o (nóema), o percebido, é

um (legómenon), algo que está sendo recolhido, e, assim, algo que está

subjazendo, e que, deste modo, pode ser falado, dito, enunciado. Mas, para que isso

seja possível e aconteça, é necessário que o (tò eón), o ser, tenha se tornado

Page 49: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

49

fenômeno. O ser vem ao dizer – (phánai), isto é, ele se mostra, no ente. Algo pode

ter sido dito, sem ter sido pronunciado. Algo pode ter sido dito silenciosamente. No

entanto, se algo foi pronunciado, este pronunciamento se funda num ter sido dito. O ser

se dá como (phásis), como a saga do dizer, isto é, do mostrar, do trazer à luz, do

deixar e fazer aparecer ao modo de um brilhar. O ser se dá, pois, como a aparição

originária - (phasma). Somente com base nisso é que pode acontecer um dizer

no sentido de (phásko) – este verbo significa dizer, afirmar, mas precisa ser

experimentado como um deixar aparecer, na dinâmica de um chamar, convocar, evocar,

celebrar. Em grego, o verbo (phemí), eu digo, dizer, tem a ver com a dinâmica de

trazer à luz, deixar e fazer aparecer, mostrar. Vige neste verbo o mesmo que no verbo

(légo), falo, no sentido de: recolho, deixo subjazer, trazendo à luz.

Parmênides fez a experiência do (noein) como

(pephatisménon): como o dito no ser. O pensar foi trazido à luz no ser.

No vir à luz do ser aconteceu o trazer à luz do pensar. Não se poderia achar, encontrar,

descobrir o pensar a não ser no viger do ser, de sua auto-abertura, de sua auto-

emergência - (physis), de sua auto-revelação - (alétheia), de sua auto-

iluminação. O pensar pertence à auto manifestação do ser. Parmênides diz:

(ou gar aneu tou eontos... euréseis to

noein): não podes encontrar o penser sem o ser/sendo. O pensar é provocado pelo ser.

Ele é suscitado pelo ser como destinatário de seu apelo, de sua convocação. O pensar é

nomeado pelo ser para ser o seu lugar-tenente.

O pensar não capta e recolhe qualquer coisa. O pensar reúne apenas “uma

coisa”, o Um único que tudo reúne, o ser. O fragmento VI diz:

(chrè tò légein te noeîn t’ eón émmenai) – “é

necessário tanto dizer (trazer à luz) quanto pensar (perceber), que o ente é”. Com outras

palavras: é necessário tanto o dizer quanto o pensar que traz à luz e perscruta isto: o

ente em seu ser. Na lingua de Parmênides, porém, se lê assim:

Page 50: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

50

Necessário

Tanto o dizer como o pensar

Ente

Ser

Não se trata de uma leitura sintática, mas, antes, paratática. Poderíamos ler

também assim: “urge: tanto o dizer como o pensar: ente no seu ser”. Urge tanto o trazer

à luz e recolher e deixar subjazer quanto o tomar em atenção. O (noeîn) se

desdobra no(légein). O tomar do perceber é um deixar advir daquilo que é

subjacente. Por outro lado, o (noeîn) é contído no (légein). A atenção, em

que o pensar toma o ser, pertence à concentração, ao recolhimento, em que o

subjacente enquanto tal está resguardado. Neste sentido podemos ler a sentença de

Parmênides assim: (chrè tò légein te noeîn te...) –

“urge: o deixar-subjazer tanto como o tomar em atenção...”.

Entretanto, a que se referem este deixar-subjazer e este tomar em atenção e sua

mútua implicância? A sentença se completa com: (eón émmenai). Falta o

artigo a (eón). É a forma arcaica de (on). No (e) está evocada a raiz *es: ser, no

sentido de viver, respirar, estar animado, ter fôlego ou alento. As duas palavras finais da

sentença poderia ser lida assim: : eón : émmenai) – “ente: ser”. A palavra

(eón) é um particípio. Ele é ambíguo, por concernir à duplicidade de sendo-ser. De

acordo com esta duplicidade, o ente (o que é, o que está sendo) vige (vigora e perdura)

no ser, e ser vige como ser do ente. Ente, na experiência grega, quer dizer: vigente-

presente; já ser, diz: viger, vigorar-perdurar, permanecer. É a partir do viger do vigente,

do (émmenai) do (eón), que fala, agora a palavra inicial da sentença:

(chré) – “é necessário”, “urge”. O ser do ente, o viger do vigente, se serve do

(légein), do deixar subjazer, e do (noein), do tomar em atenção.

Page 51: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

51

Estamos tentando meditar a respeito do fragmento III:

(...tò gár autò noeîn estín te kaì eînai). Para

nós, isso soa assim agora: “nomeadamente, o mesmo é o tomar em atenção, assim

como aquilo a caminho de que o perceber atencioso está, o viger do vigente (o ser do

ente)”. O pensar vige ele mesmo em referência ao ser, ele pertence ao ser, serve ao ser.

Ele vem à luz no ser, vive em virtude dele e se encaminha para ele. O pensar, no entanto,

se cumpre num dizer, isto é, num mostrar, num deixar vir à luz. Dizendo, deixa subjazer

e recolhe. É (phasis) e (lógos). Nisso se consuma um descobrir. Os gregos

chamam de (alétheia), verdade, a este descobrir. Retornamos, assim, à deusa

do poema de Parmênides.

Pensada a partir da (alétheia), a sentença deixa de encontrar o seu

suporte, o seu sustento, o seu “sujeito” no pensar e passa a encontrar na palavra

enigmática: (tò autò): o Mesmo. (tò... autò... estin) – “o

mesmo... é”. Isto quer dizer: “o Mesmo vige, guarda e resguarda”. O Mesmo é o Simples

– o sem dobras. Mas o Mesmo vige deixando se dar o desdobramento de dizer e pensar

e ser (no sentido da duplicidade de ser e ente). Tanto o dizer, que recolhe e deixa

subjazer, quanto o pensar, que toma em atenção, quanto o ser do ente, se dão como o

desdobramento do Mesmo.

O fragmento VI diz:

(chrè tò légein te noeîn t’

eón émmenai: esti gàr eínai). O que se acrescentou agora é: esti gàr

eínai). A tradução literal seria: “é, pois, ser”. Se nos atemos ao que nos está mais

próximo, ao que nos aparece no cotidiano, o ser parece não ser. Para nós, de início e na

maior parte das vezes, é como se o ser não fosse. E, no entanto, o pensamento de

Parmênides diz: o ser é. Se o é deve ser dito propriamente de “algo”, então deve ser dito

do ser. O ser, pois, é. O desafio é, agora, não representar o ser como um ente. Por isso,

em vez de dizer “é, pois, o ser” ou “o ser, com efeito, é”, poderíamos, agora, dizer: “dá-

se, pois, ser”. A história só acontece em virtude da doação e, ao mesmo tempo, da

retração, do ser. A história é a destinação da doação (e da retração) do ser. Cada época

é o modo como acontece a retenção - (epoché) – do ser. A história, assim,

convida a vislumbrar pelo espírito o ausente como presente (cf. fragmento IV).

Page 52: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

52

O fragmento VIII começa assim:

Mas então permanece apenas a saga da linguagem de um percurso, de como se dá ser; neste percurso, com efeito, são muitos os discursos, sobre como ser é sem nascer e sem perecer, pois se dá tanto todo inteiro quanto intrépido e ainda sem nenhuma possibilidade de aperfeiçoamento; nem foi outrora, nem será noutra hora, pois no agora de qualquer hora, se dá todo junto, todo unido, todo contido.

O que é dito do ser, aqui, são (sémata). Não se trata de sinais nem de

predicados do ser. São acenos. Eles acenam para que se tome em atenção o ser nele

mesmo a partir dele mesmo. O uso de negações, a saber, de (alfa) privativo, de

(oudé), de(medé), de (ou) e de (me) serve para, por meio de

retiradas, de subtrações, conduzir a atenção pensante para a positividade inaugural,

plena, originária, do ser. A vigência do ser é inaugural. Ela se dá em toda a presença e

em toda a ausência, em toda possibilidade e impossibilidade, em toda a necessidade e

contingência. Sem ela não se daria nenhum aparecer nem nenhum devir. Sem ela não

se daria pensar e dizer. Não se daria nenhuma afirmação nem nenhuma negação. Não

se daria nenhuma posição, oposição e composição. A vigência do ser se dá como firmeza,

solidez, consistência, concentração em si mesma. A Moira firmou o ser e determinou-o

para viger como todo e como imóvel, em sua quietude. Estes muitos acenos do ser -

(sémata tou eontos) – não são signos ou sinais que remetem a

outra coisa. São o brilho múltiplo do Um, do Mesmo, do Simples, que vigora na

duplicidade de ser e ente.

O Mesmo é o (eón), a duplicidade ser-ente, em Parmênides; o

(Lógos), em Heráclito; e (Tò Chreón) em Anaximandro. Os três falam

da (phýsis), do vigor de ser, a partir de e como (alétheia) e (léthe),

desencobrimento e encobrimento (do mistério). Para Heráclito, physis é lógos, a força

de reunião que perpassa e domina tudo, força que reúne o que tende a contrapor-se,

que mantém numa constância o que oscila, a harmonia inaparente e mais forte, que

disciplina os contrastes e que impede que o todo se disperse e se perca num mero

Page 53: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

53

amontoado25. Ora, segundo Heidegger, ao contrário do que se costuma a ensinar,

Heráclito e Parmênides pensaram e tentaram dizer o mesmo. Este mesmo que Heráclito

pensou como a força de reunião, de unidade que domina desde o íntimo da physis, por

ele denominada de lógos, foi experimentada e pensada por Parmênides como hen, um,

ou, simplesmente, como einai (ser), isto é, como “a própria solidez do consistente,

concentrada em si mesma, não atingida por nenhuma inconstância nem mudança”26 . O

ser se contrapõe ao vir-a-ser e ao aparecer. Entretanto, ao mesmo tempo, o vir-a-ser e

o aparecer co-pertencem ao ser e vice-versa. O vir-a-ser é o aparecer do ser; e o

aparecer é o vir-a-ser do ser. O ser é presença. O vir-a-ser é o chegar à presença e o sair

dela. O aparecer é o apresentar-se que se clareia e brilha. Assim como o vir-a-ser e o

aparece co-pertencem ao ser, também o não-ser, o nada, pertence ao ser. Ser e não-ser

se co-pertencem como presença e ausência, como emergir e submergir, como

manifestação e ocultação (Cf. IM, p. 140-141)27. O homem está em meio a tudo isso.

O pensador conhece o caminho do ser e do não ser. Ao mesmo tempo, enquanto

mortal, ele precisa ser advertido pela deusa (alétheia) para não se deixar

enveredar pelo caminho batido dos mortais, o das aparências, de modo a descuidar do

caminho do ser e do não ser. Neste caminho, o pensamento se retira e a linguagem se

defasa. No fragmento VI traz à fala o caminho batido dos mortais, o caminho das

aparências, em que o pensamento, isto é, o tomar em atenção o dar-se do ser, se

ausenta e a linguagem, entendida como lógos, isto é, como recolhimento e deixar

subjazer do ser, cede lugar para a lingua, no sentido da fala vazia, da tagarelice. O

fragmento VI adverte contra o perigo da ausência de pensamento:

Urge tanto dizer quanto pensar o sendo no ser; pois ser (- einai) se dá, nada - medèn), porém, não se dá; é o que eu mando pronunciar para ti, pois deste primeiro caminho de pesquisa te afasto, ms ainda também deste que, então, mortais, que nada sabem, cursam, bicéfalos. Pois um desamparo no peito lhes guia o senso hesitante, paralisados, porém, se arrastam broncos e cegos, bando de indecisos para os quais o ser e também o não ser valem o mesmo e não valem o

25 Heidegger, M. Introdução à Metafísica (IM). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987, p. 157-158. 26 Idem, p. 124. 27 Idem, p. 140-141.

Page 54: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

54

mesmo, mas, assim, porém, a pista de todas as coisas é ida e volta.

Urge tanto o dizer, em sua dinâmica de recolher e de deixar subjazer, quanto o

pensar, no sentido de perceber, de tomar em atenção o ser. Dá-se ser. É o acontecer do

mistério em sua doação inaugural. Ao ser pertence o “é”. O nada não é: não lhe pertence

o “é”. O pensador é interpelado, advertido, é-lhe chamada a atenção. Primeiramente,

ele há de afastar-se deste caminho de investigação, e, também, mais ainda, do caminho

da (dóxa), tomada no sentido da aparência. Neste caminho, o ente se deixa ver

ora de uma maneira ora de outra. É o reino do parecer e dos pareceres. As aparências

do ente são intermitentes. No domínio delas falta a estabilidade de conexão e de

coesão. Aí impera a debilidade e a inconstância, a liquidez, a inconsistência, a dispersão.

Por aí caminham “os homens que não sabem”, estes “bicéfalos”, isto é, homens

divididos em sua mente, que não sabem se orientar, que vão sendo empurrados ora

para lá ora para cá, errantes. Sem presença de espírito, são como ausentes. Sem

capacidade de recolher-se na escuta, são como que surdos; sem capacidade de ver o

que há de mais luminoso, são como que cegos; sem atenção para o ser, cambaleiam no

ente, como tontos. Têm um espírito confuso. Não sabem distinguir, separar. São

impressionados por tudo o que aparece. Não têm decisão. Vivem na indiferença quanto

ao que concerne ao ser e ao não ser. Para eles tanto faz o curso das coisas ir para um

rumo ou para o outro. Aqui impera o anti-ser, o pseudo-ser, a inessência do ser.

O fragmento VII, por sua vez, adverte contra a defasagem da linguagem.

Primeiramente, como no fragmento VI, o pensador é advertido a não tomar o não-ser

como algo que é, como um ente, isto é, como alguma coisa (ou, o que daria no mesmo,

como uma mera negação ou ausência de coisas, mesmo que seja de todas as coisas):

“Pois jamais poderás urgir isto, que o não-ser seja; tu, porém, afasta o pensamento

deste caminho de investigação”. Em seguida, de novo, como no fragmento VI, é

acrescentada uma outra advertência:

“e o costume muito perito não te deve de forma alguma forçar em direção desse caminho [nota: da aparência]. Pois tu te perderias a ti mesmo num olhar que não vê e num ouvir ensurdecedor e

Page 55: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

55

na facilidade da lingua (glossa). Decide-te antes separando, colocando diante de ti, recolhido numa unidade, a indicação do conflito que te proponho”.

Nesta passagem estão em oposição: o (lógos), a linguagem e a

(glóssa), a lingua; a palavra que diz e a tagarelice que nada diz; o que mostra e

o que não mostra; o que deixa brilhar e o que faz opaco; o que recolhe e o que dispersa;

o que deixa subjazer e o que intervém arbitrariamente no curso das coisas e da história.

No exercício do (lógos), o homem é capaz de crítica, isto é, de (krínein):

de separar, distinguir, diferenciar, de cindir, no sentido de de-cidir, a partir da unidade

com o Um, isto é, a partir da concentração que se recolhe na unidade da reunião do ser.

No exercício do (lógos) o homem colhe, recolhe, e, ao mesmo tempo escolhe o

que é digno de ser pensado e dito e o que urge resguardar e abrigar. E esta escolha se

dá a partir da escuta e da visão do ser. A escuta e a visão das aparências são perturbadas.

A visão acontece como se fosse cega: olha-se e não se vê. A audição se dá como se fosse

surdez, como se os rumores e ruídos da comunicação humana zunissem de modo

ensurdecedor. Aí impera o verbalismo e a dissipassão. A compulsão, a repetição estéril,

não deve poder se impôr com violência sobre o pensador. O pensador precisa de vigor

firme e decidido para não se deixar levar por uma tal imposição e decidir-se pelo reino

da verdade do ser contra o reino das aparências e suas distorções e dissimulações. É

preciso muito vigor crítico, isto é, de cisão e de decisão para exercer o discernimento e

do desvelamento e para conservar, resguardar e guardar, a manifestação do ser e o

mistério do não ser.

No entanto, é preciso que voltemos ao que a deusa diz ao mortal Parmênides no

fim do proêmio do poema:

É necessário que experimentes tudo: tanto o coração intrépido da verdade bem redonda - aletheíes eukýkleos atremés hêtor), quanto as aparências dos mortais (brotôn dóxas), nas quais não há a confiabilidade da verdade (pistis alethés). Mas é necessário, também, experimentares e estas coisas aprenderes:

Page 56: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

56

como aquelas coisas que aparecem (- tà dokounta) necessitavam, de maneira adequada ao aparecer, ser o que reluz através de tudo levando tudo à consumação.

O mortal é o lugar de encontro, a encruzilhada, o trevo, de três caminhos: do ser,

do não-ser e das aparências (- tà dokounta). Por isso, a ele não é dado

nem viver puramente no brilho e na glória do ser nem puramente na escuridão do não

ser. A ele só é dado viver no lusco-fusco. Por isso é que a coruja é o animal totem da

existência humana e da filosofia, que é o empenho mais autônomo e, ao mesmo tempo,

mais finito da existência humana em sua referência ao todo. A coruja é o animal que voa

no lusco-fusco do entardecer. No domínio do aparecer (- tà dokounta) é

que se encontram e se cruzam os caminhos de ser e não ser. Por isso, o homem precisa,

sempre de novo, discernir entre ser e não ser e entre ser e mero aparecer (meras

aparências, enganos, errâncias). E carece de, em meio ao caminho de inconstância dos

mortais, aos quais ele também pertence, dar chances ao pensar do ser e do não ser nas

e entre as aparências. É somente no e a partir do aparecimento das aparências que se

desvelam ser e não ser. É o apelo que nos diz:

Mas é necessário, também, experimentares e estas coisas aprenderes: como aquelas coisas que aparecem (- tà dokounta) necessitavam, de maneira adequada ao aparecer, ser o que reluz através de tudo levando tudo à consumação.

Enfim, dá-se, para o pensador, no trevo da existência humana, o cruzamento de

três caminhos. A deusa (alétheia) lhe indica, de modo tríplice, mas unitário,

este cruzamento:

O caminho para o ser é incontornável, inevitável, imprescindível.

O caminho para o Nada é inacessível.

O caminho para a aparência é sempre acessível e o mais batido mas evitável.

Page 57: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

57

O pensador se torna um (sophós), um sábio, quando se torna bem

experiente a respeito deste trevo, deste cruzamento dos três caminhos.

Um homem verdadeiramente sábio não é aquele que perssegue cegamente uma verdade. É somente aquele que conhece constantemente todos os três caminhos, o do ser, o do não-ser e o da aparência. Um saber superior e todo saber é superioridade, só é concedido àquele que experimentou o ímpeto alado do caminho para o ser. Que não estranhou o espanto do segundo caminho para o abismo do nada. E que aceitou, como constante necessidade, o terceiro caminho, o da aparência28.

Um homem sábio é um homem humano. É quem descobre sua humanidade no

trevo do cruzamento dos três caminhos. É quem não corre atrás, bronco e cego, de uma

única opinião, que ele tem por verdadeira. Mas é quem percorre, num só percurso, o da

viagem da vida, os três caminhos: o do ser, o do não ser e o da aparência. O seu saber

é, pois, um saber de experiência feito. É o saber do sabor de ser, de não ser e de

aparecer. Nesta experiência, ele é lançado para fora de si e para além de si, é instigado

a superar a si mesmo, sempre de novo, nunca se contentando com méritos e conquistas,

mas se alegrando com a dádiva do ser, do não ser e do aparecer. Em tudo isso, ele segue

o envio da (Moira) do (eón): do destino do ser. E, seguindo, entra no diálogo

sem fim do pensamento. Sem fim é este diálogo pois inesgotável: sempre de novo, de

maneira nova, dá a pensar. Na disposição deste diálogo, o pensador não tira o corpo

fora do seu tempo, isto é, das tempestades do ser, não recusa a angústia do não ser, e

não despreza a contingência do aparecer e parecer, em todas as situações da existência

histórica.

Este homem humano sabe-se, antes de tudo, como mortal. Morte e silêncio são

afins. No veias da linguagem criativa corre o sangue do silêncio. O homem que exerce o

(lógos) está sempre se calando, mesmo quando fala. É que o homem está sempre

morrendo, mesmo quando vive. O homem é o mais finito dos entes, pois é o ente que

sabe o sabor da finitude. Sendo homem humano, ele experimenta, porém, a infinitude

28 Heidegger, M. Introdução à metafísica, p. 139.

Page 58: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um com o Um. Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides. 4 Em grego são

58

na finitude e a finitude na infinitude. O silêncio da linguagem é “a terceira margem do

rio” (João Guimarães Rosa) na travessia do homem humano.

Por tudo isso, o pensamento, sendo exercício finito do mais finito dos entes,

nunca encontra a finitude como falta, deficiência, carência. Mas celebra a finitude como

o resguardar do infinito:

A conversa com Parmênides nunca chega ao fim; não apenas porque muito se mantém obscuro nos fragmentos preservados de seu poema, mas porque também o que neles se disse é sempre ainda digno de se pensar. Um diálogo sem fim não é falta. É sinal do ilimitado que resguarda, em si e para o pensamento, a possibilidadde de uma transformação de destino.

Quem, no entanto, só espera do pensar um asseguramento, e calcula o dia em que o pensamento possa ser preterido e deixado de lado, esse só é capaz de exigir do pensamento auto-aniquilamento. Essa exigência aparece sob uma estranha luz, quando se considera atentamente que o vigor essencial dos mortais está convocado a concentrar-se no apelo de serem os que chegam a morrer. Enquanto possibilidade mais extrema da presença humana, a morte não é o fim do possível, mas a cordilheira mais elevada (a montanha reunidora) do misterioso chamado para um descobrir29.

29 Heidegger, M. Ensaios e Conferências, p. 226.