Curso de Filosofia Do Direito- Eduardo Bitar

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filosofia do direito

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EDUARDO C. B. BITTARProfessor Doutor do Departamento de Filosofia e Teoria Geral doDireito da Faculdade de Direito da Universidade de So PauloGUILHERME ASSIS DE ALMEIDADoutor pelo Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direitoda Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo ePesquisador Snior do Ncleo de Estudos da Violncia (USP)Curso de Filosofia do Direito

I -Panorama HistricoII -Tpicos Conceituais3 Edio

SAO PAULOEDITORA ATLAS S.A. -2004

@ 2001 by EDITORA ATLAS S.A.

Cromo: Agncia KeystoneComposio: Formato Servios de Editorao S/C Ltda.Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)Bittar, Eduardo Carlos BiancaCurso de filosofia do direito / Eduardo C. B. Bittar, Guilherme Assis de Almeida. -3. ed. -So Paulo: Atlas, 2004.Contedo parcial: I. Panorama histrico -II. Tpicos conceituais.Bibliografia.ISBN 85-224-3696-71. Direito -Filosofia 2. Direitos humanos 3. Filosofia -Brasil I. Ttulo.01-0093 CDU-340.12ndices para catlogo sistemtico:1. Direito: Filosofia 340.122. Filosofia do direito 340.12

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS proibida a reproduo total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio. A violao dos direitos de autor (Lei n9.610/98) crime estabelecido pelo artigo 184 do Cdigo Penal.Depsito legal na Biblioteca Nacional conforme Decreto n1.825, de 20 de dezembro de 1907.Impresso no Brasil/ Printed in BrazilSumrioINTRODUO, 191 Importncia da filosofia, 192 Podem os filsofos modificar o mundo?, 233 Os conhecimentos humanos, 264 Partes da filosofia, 294.1 Principais representantes da filosofia ocidental: sntese de autores e de idias para a compreenso da histria da filosofia, 305 Mtodo, cincia, filosofia e senso comum, 355.1 Filosofia, cincia e senso comum, 385.2 Os "ismos" e a filosofia, 415.3 Cincias jurdicas como cincias humanas, 446 Filosofia do direito como parte da filosofia?, 467 Filosofia do Direito: conceito, atribuies, funes, 48

CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITOParte I -Panorama Histrico, 531 SOFISTAS: DISCURSO E RELATMSMO DA JUSTIA, 551.1 Contexto histrico-cultural, 551.2 Importncia do discurso, 581.3 Retrica e prtica judiciria, 591.4 Justia a servio dos interesses, 60Concluses, 62

2 SOCRATES: ETICA, EDUCAAO, VIRTUDE E OBEDIENCIA, 642.1 Filosofia socrtica e testemunho tico, 642.2 tica socrtica, 652.3 Primado da tica do coletivo sobre a tica do individual, 68 Concluses, 753 PLATO: IDEALISMO, VIRTUDE E TRANSCENDNCIA TICA, 77 3.1 Virtuosismo platnico e socratismo, 773.2 Virtude e vcio: ordem e desordem, 793.3 Idealismo tico e mito de Er, 833.4 tica, justia e metafsica, 863.5 tica, alma e ordem poltica, 88 Concluses, 894 ARISTTELES: JUSTIA COMO VIRTUDE, 904.1 O tema da justia e a tica, 904.2 Justia como virtude, 934.3 Acepes acerca do justo e do injusto: o justo total, 954.4 Acepes acerca do justo e do injusto: o justo particular, 984.5 Justo particular distributivo, 994.6 Justo particular corretivo, 1014.7 Justo da cidade e da casa: justo poltico e justo domstico, 106 4.8 Justo legal e justo natural, 109

SUMRIO

4.9 Eqidade e justia, 115 4.10 Amizade e justia, 119 4.11 Juiz: justia animada, 122 Concluses 123 5 EPICURISMO: TICA, PRAZER E SENSAO, 1265.1 Doutrina epicrea, 1265.2 tica epicrea, 1285.3 Prazer e justia, 131Concluses, 135

6 CCERO: ESTOICISMO ROMANO E LEI NATURAL, 1366.1 Pensamento ciceroniano, 1366.2 tica estica, 1406.3 tica ciceroniana e justia, 143Concluses, 152

7 JUSTIA CRIST, 1547.1 Justia e religio, 1547.2 Ruptura com a lei mosaica, 1567.3 Lei divina e lei humana, 1617.4 Lei de amor e caridade, 171Concluses, 172

8 SANTO AGOSTINHO: A JUSTIA E O DAR A CADA UM O SEU, 1748.1 Filosofia e medievo, 1748.2 Vita theologica, 1778.3 Lex aeterna e lex temporalem, 1808.4 Alma, justia divina e livre-arbtrio, 1868.5 Preocupaes com o Estado, 190Concluses, 194

10 CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO

9 SANTO TOMS DE AQUINO: JUSTIA E SINDERESE, 196 9.1 Filosofia tomista, 196 9.2 Razo prtica, sinderese e tica, 1989.3 Sinderese e hbito, 2019.4 Definio de justia, 2029.5 Justia e direito, 2049.6 Acepes do termo justia, 2049.7 Regime das leis, 2099.8 Justia, lei e atividade do juiz, 2109.9 Injusto e vcios da justia, 2129.10 Justia e sua prtica, 214Concluses, 215

10 THOMAS MORE: UTOPIA E DIREITO, 217

10.1 Thomas More: seu tempo e sua obra, 21710.2 A ilha de Utopia: narrativa, idealizao e exposio de idias, 220 10.2.1 Do encontro, 22110.2.2 Da anlise social, 22110.2.3 Da geografia regional, 22210.2.4 Do sistema poltico, 22310.2.5 Das relaes com outros povos, 22410.2.6 Do bem-estar social, 22410.2.7 Da juridicidade,22410.2.8 Do belicismo, 11510.2.9 Do pensamento religioso, 225Concluses, 226

11 JUSNATURALISMO, 22711.1 Iluminismo e racionalismo: ruptura com a teocracia, 22711.2 Hugo Grcio, 22811.3 Pufendorf, 23011.4 Locke,232

11 SUMARIO

11.5 Hobbes234Concluses, 236

12 ROUSSEAU E O CONTRATO SOCIAL, 23712.1 Rousseau: seu tempo e sua obra, 237 12.2 A vontade geral e o contrato social, 238 12.3 Direitos naturais e direitos civis, 24312.4 Leis e justia, 249Concluses, 253

13 HUME: TICA, JUSTIA, UTILIDADE E EMPIRISMO, 25413.1 Empirismo humeano, 25413.2 tica, justia e direito, 25613.3 tica, justia, lei e utilidade, 260Concluses, 266

14 KANT: CRITICISMO E DEONTOLOGIA, 26714.1 Racionalismo kantiano, 26714.2 tica kantiana, 27014.3 Direito e moral, 27814.4 A paz perpetua, 280Concluses, 281

15 HEGEL: RAZO, HISTRIA E DIREITO, 28315.1 Sistema hegeliano, 28315.2 Doutrina hegeliana, 28615.3 Justia e direito para Hegel, 28915.4 Direito e Estado tico, 299Concluses, 305

16 MARX: HISTRIA, DIALTICA E REVOLUO, 30616.1 A histria como prova da ruptura marxista, 306

12 CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO

16.2 Capitalismo e desigualdades sociais, 31516.3 Marx e o direito, 321Concluses, 327

17 AVATARES DO POSITMSMO JURDICO, 32817.1 Jurisprudncia dos conceitos, 32817.2 Pandectismo e escola da exegese, 32917.3 Escola analtica, 33017.4 Jurisprudncia dos interesses, 331Concluses, 334

18 POSITMSMO JURDICO: O NORMATMSMO DE HANS KELSEN, 335 18.1 Positivismo jurdico e normativismo, 33618.2 Cincia do Direito, 34118.3 Justia e direito, 343Concluses, 349

19 COSSIO: EGOLOGIA, CONDUTA E CULTURA, 35119.1 Carlos Cossio e a teoria egol6gica, 35119.2 Direito e conduta, 353Concluses, 354

20 EXISTENCIALISMO JURDICO, 35520.1 Os existencialismos, 35520.1.1 Existencialismo camusiano, 35720.1.2 Existencialismo sartreano, 36020.2 Proposta existencialista, 36420.3 Existencialismo jurdico, 368Concluses, 373

21 HANNAH ARENDT: PODER, LIBERDADE E DIREITOS HUMANOS, 375 21.1 O poder no violento, 375

13 SMARIO

21.2 O desvirtuamento do poder e a violncia, 376 21.3 Gandhi e a no-violncia, 37821.4 Liberdade arendtiana, 382 :1 O;21.5 Direitos humanos, 384Concluses, 386

22 RAWLS: TICA, INSTITUIES, DIREITOS E DEVERES, 38722.1 Justia como eqidade, 38722.2 Os dois princpios, 392Concluses, 401

23 VIEHWEG E A REDESCOBERTA DA TPICA, 403 23.1 O que a tpica, 403 23.2 Tpica e argumentao, 405Concluses, 407

24 PERELMAN: ARGUMENTAO, LGICA E DIREITO, 40824.1 O autor e suas preocupaes, 40824.2 Combate ao positivismo jurdico, 41124.3 Combate lgica formal, 41424.4 Papel da argumentao no julgamento, 41624.5 Nova retrica e proposta perelmaniana, 418Concluses, 420

25 SEMITICA JURDICA: SENTIDO E DISCURSO DO DIREITO, 42125.1 A afirmao dos estudos sobre a linguagem jurdica, 42125.2 Definio dos quadrantes da semitica jurdica, 42225.3 Semitica jurdica: saber crtico sobre o sentido jurdico, 430Concluses, 434

14 CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO

Parte II -Tpicos Conceituais, 435

26 DIREITO E MORAL: NORMAS JURDICAS E NORMAS MORAIS, 437 Concluses, 441

27 DIREITO E JUSTIA, 44227.1 Justia e finalidade do direito, 444Concluses, 445

28 DIREITO E UBERDADE: CONTRAPONTOS ENTRE PODER, NO-PODER E DEVER, 44628.1 Sentidos de liberdade, 44628.2 A liberdade social, 448Concluses, 454

29 DIREITO E TICA: TICA E COMPORTAMENTO HUMANO, 45529.1 A dimenso do saber tico, 45529.2 A tica e o poder de escolha, 457Concluses, 460

30 DIREITO, HISTRIA E VALOR, 46130.1 O sentido da histria e a teoria tridimensional do direito, 46130.2 Era nuclear e totalitarismo, 46330.3 Valores: caractersticas principais, 46530.4 Liberdade enquanto valorao, 46630.5 Dignidade da pessoa humana, 46730.6 Declarao Universal dos Direitos Humanos (1948),468Concluses, 470

31 DIREITO, NORMA E SISTEMA, 47231.1 Norma jurdica, 47231.2 Das vrias espcies normativas, 47431.3 Direito como sistema de normas, 475Concluses, 477

SUMRIO 15

32 DIREITO E LINGUAGEM: LINGUAGENS FORMAL E NATURAL NA FORMAAO DO DISCURSO JURIDICO, 478 Concluses, 492

33 DIREITO E INTERPRETAO: SENTIDO DAS NORMAS JURDICAS, 493 Concluses, 496

34 DIREITO E LGICA: RACIOcNIO RAZOVEL NO DIREITO, 498Concluses, 50435 DIREITO E PODER: FORA, SANO, COERO E RELAES JURDICAS, 505Concluses, 510

36 DIREITO E LEGITIMIDADE: PRTICAS JURDICAS E SEUS FUNDAMENTOS SOCIAIS E POLTICOS, 51136.1 Poltica e neutralidade do jurista, 51136.2 Desobedincia civil, 512Concluses, 515

37 DIREITO E NO-VIOLNCIA: MINIMUM DOS POVOS, 51637.1 O que a no-violncia, 51637.2 Kant: paz perptua -uma ordem internacional no violenta, 519 37.3 Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH) como minimum dos povos, 52637.4 Gnese da norma proibitiva de guerra, 52737.5 Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948 como Documento Matriz do Direito Internacional dos Direitos Humanos, 52937.6 Histrico da proteo internacional dos direitos humanos, 53737.7 Sistema global de proteo dos direitos humanos, 537Concluses, 550

CONCLUSES, 551

Introduo

1 Importncia da filosofiaPara que se destaque a importncia da filosofia, mister que se debruce a anlise sobre algumas capacidades humanas, delas extraindo-se a atividade filosfica. Nesse sentido, trabalhando as noes de ao e pensamento, pode-se, por meio dessa dicotomia, alcanar uma discusso a respeito dos meandros filosficos e do papel da especulao reflexiva.De incio, deve-se dizer que o homem capaz de ao e de pensamento. Entre os gregos, essa dicotomia expressava-se por meio da relao entre prxis e theora. Na tradio latina, a dicotomia foi incorporada como actio e contemplatio. De qualquer forma, o que se quer acentuar, para os fins desta discusso que, de certa maneira, quando se age, se imediatizam foras que comprometem o raciocnio, as atividades corpreas, os estmulos sensoriais para responder a uma necessidade da ao (construir um barril; lapidar um diamante; socorrer uma pessoa em perigo; assinar um decreto...); com essa canalizao de esforos, o manancial reflexivo drenado para sustentar a carncia e a necessidade da ao. Quando se reflete, procura-se um distanciamento que isola o homem da atividade, da operosidade, da fenomenologia e dos acontecimentos para que possa observar (theora = observao) e analisar (ana-lisis = quebra, ruptura, dissoluo para resolver); com essa canalizao de esforos, agora direcionados para a reflexo acerca de algo, prioriza-se o alcance de uma proposta coerente de entendimento, explicao e busca das causas do fenmeno investigado.20 CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO

esta investigao uma proposta de retomo ao momento de cunhagem do termo filosofia. Isto porque o termo filosofia, em seu surgimento, traz consigo o dilema dicotmico da ao e do pensamento. Pitgoras, a quem se atribui a criao do termo filosofia (philosophia)l como forma de designar aquele que ainda no alcanou a sabedoria, mas amigo da sabedoria, porque em sua busca se encontra. A preocupao de Pitgoras com o fato de que a percepo do todo no dada quele que atua, que age, que pratica, ou que exerce alguma atividade. Enxergar com distanciamento, ter a viso completa do horizonte, adentrar todos os quadrantes do observado... so caractersticas daquele que contempla, e no daquele que age, imiscudo que est com os procedimentos da ao e com os reflexos e resultados da mesma.Utilizando-se de uma alegoria, Pitgoras ilustra essa relao da ao e da observao com bastante clareza. Imerso num teatro, ou se participa ativamente dos jogos (ao), ou se observam os jogos (observao). Aquele que est imerso na ao dos jogos, disputando, lutando por uma posio de destaque, exercendo esforos fsicos no pode ter a noo da conjuntura dos acontecimentos que se do dentro do estdio. Aquele que se encontra na posio de observador, pelo contrrio, no age, no participa, no disputa, no concorre, mas possui a noo de todo, a viso privilegiada das ocorrncias dentro do estdio. Na filosofia pitagrica, o filsofo apontado, por meio de um simbolismo alegrico, como aquele que participa da vida como espectador dos acontecimentos, e no como aquele que se coloca em posio ativa no desenvolvimento de diversas atividades. A prpria raiz etimolgica do termo theora descende diretamente de theastai, o que transmite a idia da superioridade da observao com relao participao.2Com a elucidao desenvolvida, procurou-se demonstrar que o prprio surgimento da palavra filosofia encontra-se mesclado a um clima de desenvolvimento da tenso entre ao e observao. Quer-se desenvolver essa preocupao para que se possam alcanar algumas conseqncias no entendimento da importncia da filosofia.1. "Pelo relato tradicional grego Pitgoras foi o primeiro a usar o termo philosophia (ver D. L. I, 12; Ccero, Tusc. 3, 8), e dotou a palavra com um sentido fortemente religioso e tico, que melhor se pode ver na opinio do filsofo exposta por Scrates no Fdon, 62c-6ge. Em Aristteles perderam-se estes matizes pitagricos (o mesmo processo visvel em Plato): philosophia tornou-se agora um sinnimo de episteme no sentido de uma disciplina intelectual que procura as causas (met., 1026 a). No mesmo passo Aristteles menciona primeira filosofia (prote philosophia) ou teologia que tem como seu objeto no as coisas mutveis como a fsica, ou as relacionadas com a matria, como a matemtica, mas o ser (on), que eterno, imutvel e seParado da matria. Esta a mesma cincia chamada sophia na Met. 982 a 983a" (Peters, Termos filosficos gregos: um lxico histrico, 2. ed., 1983, p. 188, verbete philosophia).2. Extrai-se esta reflexo diretamente de uma importante lio contida no Apndice I do livro de Werner Jaeger, Aristteles: bases para Ia historia de su dessarrollo intelectual, 1992, p. 467-515. Maiores esclarecimentos sobre a dicotomia theoria/praxis podem ser encontrados em Blumenberg, Il riso della donna di Tracia: una preistoria della teoria, 1988.

INTRODUO 21

Assim, a ao pode ser entendida, em primeiro lugar, como a atividade resultante do envolvimento corporal humano com algum resultado imediato que se visa extrair da operosidade tcnica e das habilidades manuais humanas. Entretanto, a ao tambm pode ser vista como uma manifestao, ou seja, como uma man festao de centenas ou milhares de prticas humanas anterior e secularmente realizadas, que se tomam at, por vezes, atitudes impensadas e desenraizadas, tendo-se em vista o carter remoto das tradies e habilidades humanas.Nesse ltimo sentido do termo ao, esta representa apenas um comportamento mecanizado diante de determinado estmulo, ou ainda, a cristalizao ou o acomodamento do homem diante de situaes que reclamam decises. Aqui, aparece a palavra deciso (decisio, decisionem), querendo significar que se pe fim a determinada necessidade mediante uma ao humana; a deciso uma toma- da de posio, o eplogo de algo que poderia delongar-se na ausncia da mesma. Decidir (decidere), s vezes, figura no vocabulrio como ato de coragem, como intrepidez diante das situaes; arrostar o perigo da indeciso, ou mesmo preencher o vcuo da incapacidade de dar uma resposta a uma demanda, representa o contedo de toda deciso. Todavia, se isto que se entende por deciso, ento decidir no o problema.O problema est em re-pensar constantemente a capacidade humana de decidir. Se decidir apresentar respostas, ainda que falhas e insuficientes, ainda que equvocas, ento re-pensar o porqu, o como, o para que se decide que parece representar o maior desafio, e isto com vistas ao revisionismo perene de todas as possveis escolhas destinadas a todas as situaes que demandem decises.Pelo que se viu, ento, a ao est intimamente ligada deciso. O comprometimento daquela com esta intrnseco. No h ao sem deciso; ainda que o contedo da deciso seja mnimo, toda ao pressupe uma deciso. Nesse sentiDo que se pode dizer que a investigao sobre os fundamentos da deciso, tarefa da filosofia, incompatvel com os reclamos da deciso imediata.Agir responder por condutas positivas ou negativas a estmulos de diversas naturezas (morais, econmicos, jurdicos, afetivos, religiosos...). Da se poder falar em ao com estmulo moral, em ao jurdica, em ao afetiva... O que h de comum a todas o fato de necessitarem de decises e reclamarem respostas. Como todas as demais espcies de ao, a ao jurdica reclama deciso. Ater-se ao jurdica, no entanto, deter-se e bastar-se com a simples deciso, com a resposta. E, de fato, o que se pode dizer desde j que a ao uma resposta, positiva ou negativa, a um estmulo (externo ou interno). Uma ao colrica que, por vingana a um mal sofrido anteriormente, se desdobra em um assassnio, uma deciso de tirar a vida de outrem, com base em sentimentos pessoais e relacionais de simpatia, antipatia...Todavia, investigar as causas, buscar os fundamentos, postular acerca dos balizamentos enfim, partir da superfcie em direo profundidade, nesse sentido, conflita com o decisionismo que marca o campo da ao, da vida ativa (vita

22 CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO

activa).l Por vezes, parece necessrio que essa resposta seja colocada em questo. Est aberto o campo para a filosofia. A atitude que pensa os fundamentos, que reclama os princpios, que analisa as conseqncias, que destaca as origens, que resgata as incongruncias... a atitude tipicamente filosfica. Em suma, trata-se daquela atitude que absorve pela observao, que demanda especulao, oniscincia do fenmeno, e no ao, ou mesmo deciso. Trata-se de uma atitude tipicamente racional, que, por ligaes lgicas, dedutivas, indutivas e dialticas, estabelece relaes e atribui sentidos aos fenmenos analisados.O prprio estremecimento dos fundamentos da ao impede a estruturao de respostas imediatas. nesse terreno de incertezas, mais de perguntas que de respostas, que deve desfilar o pensamento. A filosofia no pode estar plenamente comprometida com a ao, sob pena de converter-se ao tecnicismo decisrio.Compreenda-se, portanto, que a filosofia no uma inimiga da ao, nem prescinde da ao. ela grande aliada da ao, mas no sentido de sua iluminao. Investigar, e no agir, sua proposta. Ou, at mesmo, agir racionalmente objetivando melhor conhecimento da ao humana, esta sua proposta. E, com esta, atrela-se a um objeto de estudo extremamente vasto, que abarca inmeras prticas sociais e capacidades intrnsecas humanas (ao cientfica, ao religiosa, ao moral, ao lgica, ao poltica, ao tica, ao retrica, ao jurdica, ao burocrtica...), ao qual se detm de modo universal.Esta uma proposta franca e declaradamente humanista, no sentido de reverter a reflexo a favor do prprio homem. Nesse sentido, o homem que se coloca no laboratrio para ser dissecado, ao lado do mundo, ou ainda o homem que investiga a si mesmo, em suas caractersticas intrnsecas, ou em suas projees sociais.Nesse sentido, quer-se afirmar que a filosofia pode representar o potencial de libertao racional do homem.2 Trata-se de uma libertao, por meio do pensamento, e no da ao, porque a capacidade de crtica retira o vu que encobre os olhos humanos atrelados s miudezas do quotidiano, ao procedimental, ao ritual, ao que facilmente aceito, ao dogmtico, ao unilateral, ao acidental, ao qualitativo, ao quantitativo, ao mono dimensional... A filosofia permite o questionamento, abrindo espao para outros horizontes, introduzindo novas possibi-1. A expresso estudada a fundo, em seu surgimento e em toda a sua significao, por Hannah Arendt, A condio humana, 1988. Da mesma autora, consulte-se, ainda, Entre o passado e o futuro, 2. ed., 1968.2. Essa a viso de Marilena Chaui: "Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for til; se no se deixar guiar pela submisso s idias dominantes e aos poderes estabelecidos for til; se buscar compreender a significao do mundo, da cultura, da histria for til; se conhecer o sentido das criaes humanas nas artes, nas cincias e na poltica for til; se dar a cada um de ns e nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas aes numa prtica que deseja a liberdade e a felicidade para todos for til, ento podemos dizer que a Filosofia o mais til de todos os saberes de que os seres humanos so capazes" (Chaui, COR,; vire filosofia, 1999, p. 18).

INTRODUO 23

lidades, rediscutindo premissas e princpios, reavaliando o que parece slido e consensual, abrindo abordagens diferenciadas para questes antigas... Enfim, no lugar de decidir, sua proposta a de investigar, no lugar de agir, sua proposta a de especular, no lugar de aceitar, sua proposta a de questionar.2 Podem os filsofos modificar o mundo?Seria demasiado exagero considerar que pretenso dos filsofos modificarem o mundo. Suas idias, porm, no se lanam ao mundo sem motivo, sem objetivos, sem finalidades. O pensamento se exerce de forma to presencial entre os homens do mundo que, uma vez acolhidas e adotadas como formas de comportamento, trazem como desencadeamento certa modificao do mundo. Ento, o filsofo modifica indiretamente o mundo, pois seu rastro sua marca impressa sobre as coisas e as pessoas, medida que suas idias so recepcionadas, dispersas, divulgadas pelas comunidades a que se destinam. Essa modificao decorre do fato de as pessoas abraarem a ideologia apregoada na seara filosfica, de modo a criar-se na prtica o que no pensamento foi arquitetado pelo pensador. Este no age sozinho, mas com o respaldo, com o auxlio, com o concurso, com a empreitada de adeptos, continuadores, idealizadores de suas idias...At mesmo dizer que o filsofo age sobre o mundo, por vezes, parece ser um contra-senso. O modus vivendi do filsofo, em geral, em meio a idias, e no na praxe cotidiana de desenvolvimento das mesmas. Todavia, de qualquer forma, o que h que se dizer que o filsofo age por meio do pensamento; seu modo de ao d-se por meio de palavras, de idias, de discursos, de escritos... que so formas sutis de atuao sobre a realidade.1 , portanto, por meio do pensamento, com o pensamento e pelo pensamento que a interveno mais direta do filsofo sobre o mundo se d. Seria, pelo contrrio, incoerente pensar que o filsofo no pretende agir sobre o mundo, que pretende ver-se excludo, distanciado e deslocado dos processos decisrios polticos, jurdicos, sociais, ticos, humanos... Se nem mesmo o mais idealista dos pensadores, Plato, se manteve alheio a pretenses de ingerncia poltica sobre o mundo,2 o que dizer dos demais filsofos atuantes1. De acordo com esse pensamento tambm se expressa Marilena Chaui: "No somos, porm, somente seres pensantes. Somos, tambm, seres que agem no mundo, que se relacionam com os outros seres humanos, com os animais, as plantas, as coisas, os fatos e acontecimentos, e exprimimos essas relaes tanto por meio da linguagem quanto por meio de gestos e aes. A reflexo filosfica tambm se volta para essas relaes que mantemos com a realidade circundante, para o que dizemos e para as aes que realizamos nessas relaes" (Chaui, Convite a filosofia, 1999, p. 14).2. "O ceticismo de Plato com relao intercesso direta e participao ativa no processo de educao do povo ateniense pelo pensador conduziu-o eleio do bos theoretiks como mtodo pedaggico de atuao sobre os membros da sociedade. A fundao da Academia em 387 a.C. revitaliza a paidia pitagrica do sculo VI a.C., que deslocava o filsofo do meio social para situ-lo em ambientes que propiciassem o livre desenvolvimento da capacidade meditati-

24 CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO

na prtica poltica... Ento, de fato, o legado de cada pensador possui uma carga diferenciada de atuao sobre o mundo.O que pensar da histria do pensamento ocidental aps a marcante passagem de Scrates pela Grcia no sculo V a.C.? Seria possvel desconsiderar a influncia que produziu sobre o pensamento de Plato e de Aristteles? Seria possvel desmerecer sua participao no re-direcionamento do papel do filsofo aps sua morte? Seria possvel dizer que a certeza com que se dirigiu para a morte, quando condenado a beber cicuta, no transmitiu certezas espirituais a seus conterrneos e discpulos? Apagar da histria do pensamento a figura de Scrates seria o mesmo que apagar da histria das religies a figura do Cristo, o que, com certeza, distorceria profundamente os destinos da humanidade.Filosofias mais detidamente cientficas acabam por determinar o percurso intelectual da humanidade durante sculos. O que pensar da histria da lgica, sem os conceitos da lgica formal e analtica formulados por Aristteles (sculo IV a.C.)? O que pensar da filosofia de Santo Toms de Aquino (sculo XIII d.C.) sem a leitura das obras de Aristteles? Quais os reflexos da inexistncia de Aristteles para o mundo ocidental, tendo em vista que se tomou durante alguns sculos a leitura bsica para a formao dos telogos da cristandade a partir do sculo XIII? O que pensar do ensino universitrio sem o concurso da dialtica, da retrica, da tica e da poltica aristotlicas? Negar a influncia do aristotelismo sobre o pensamento ocidental seria o mesmo que dizer que a histria das cincias comeou somente no sculo XV d.C., o que traduz forte equvoco, e certo anacronismo.Filosofias mais abstratas acabam por determinar os destinos da prpria cincia e da prpria filosofia aps sua interveno nos meios cientficos. Seria possvel imaginar a modernidade sem a determinao do pensamento de Immanuel Kant (sculo XVIII d.C.)? Quais os destinos do pensamento moderno sem o criticismo kantiano, que acabou por dar origem toda uma nova gerao de filsofos antikantianos e ps-kantianos? Seria possvel imaginar o desenvolvimento de um pensamento como o de Hegel (sculo XIX d.C.) sem a existncia e as conquistas conceituais e tericas do kantismo? Sem a interveno do kantismo e do hegelianismo, quais as concepes possveis no plano do Direito, tendo em vista as largas contribuies e influncia que estes autores geraram sobre juristas e sistemas filosfico-jurdicos? Desconsiderar essa realidade seria o mesmo que dizer que a teoria do heliocentrismo em nada modificou o contexto da cincia e os destinos da prpria fsica moderna.va humana. Assim mesmo, o ideal paidutico platnico, em momento algum se descura da preparao do filsofo como instrumento de transformao da sociedade; o educador ter seu lugar primordial no contexto da Repblica, assim como tambm o verdadeiro governante o governante-filsofo, aquele que tem a sapincia das eidai" (Bittar,Ajustia em Aristteles, 1999, p.4).

INTRODUO

Filosofias mais radicais, de maior cunho poltico, de profunda crtica social, no geral, so produtoras de maiores reflexos sobre a sociedade e as estruturas de poder vigentes. O que pensar da filosofia e da poltica do sculo XX sem a existncia de Karl Marx e de Friedrich Engels? O que pensar, historicamente, a respeito da Revoluo Russa de 1917, ou seja, teria ela lugar ou no no curso dos acontecimentos polticos do sculo XX? O que pensar da disperso dos partidos de esquerda e das mltiplas tendncias sociais, social-democratas, socialistas, trabalhistas, sindicalistas durante o processo de formao da poltica de massa no sculo XX? Qual a condio dos direitos sociais nas Cartas e Declaraes Internacionais sem a interveno e disperso de idias sociais pelos pensadores e idealizadores do movimento comunista? Teria lugar uma Guerra Fria entre URSS e EUA, em funo da diviso do mundo em tomo de duas bandeiras ideolgicas, militares e econmicas? Desconsiderar essas influncias e contribuies seria o mesmo que dizer que a descoberta do tomo em nada influenciou na formao da bomba atmica, o que , claramente, uma insanidade.Filosofias de maior peso espiritual acabam por formar um conjunto de prescries que direcionam os discpulos observncia de determinados comportamentos, que, na base dessa f e dessa certeza, passam a constituir regras gerais de comportamento, por vezes, em toda uma sociedade. Seria possvel desconsiderar o l papel da filosofia da no-violncia de Mahatma Gandhi em meio ao processo de separatismo da ndia da Inglaterra? Em pleno sculo XX, em que guerras sangrentas r ceifaram inmeras vidas, seria possvel imaginar o confronto que surgiria se a ndia tivesse se conduzido de modo radical, sem seu lder espiritual? Negar a importncia desses eventos o mesmo que apagar da histria da fsica quntica o nome de Albert Einstein, o que traduz uma impossibilidade.Filosofias mais propriamente jurdicas determinaram a fundamentao lgica e sistemtica do Direito, como ocorre com a doutrina de Hans Kelsen. O que : pensar do ensino jurdico universitrio sem o concurso desse jurista? O que pensar dos destinos do positivismo jurdico no sculo XX sem a existncia da teoria r piramidal e normativa do sistema jurdico? O que pensar das sucessivas dcadas de profissionais do direito formados sob a ideologia positivista normativista sem a existncia de Hans Kelsen? Boa ou m, sua contribuio um marco indelvel na cultura e na literatura jurdicas universais.Ento, qual o poder das palavras dos filsofos? Entre idealizar algo e realmente alcanar seus frutos vai larga distncia. Talvez, a filosofia esteja mais enraizada na vida quotidiana de cada um do que se possa mesmo imaginar. Talvez esteja ela to impregnada de usos e costumes sociais, de hbitos e crenas populares, de sentenas e opsculos de pensamento, que seja difcil diferenciar o que filosfico do que folclrico ou cultural. Pequenas e sutis brechas do quotidiano e da vida fazem perceber que a filosofia , antes de idealismo, realidade presente e palpvel na vida das pessoas. Quando se diz: "gostaria de viver um amor platnico", j se est a traduzir certo conhecimento da proposta do filsofo Plato;

26 CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO"a morte a passagem desta para uma melhor", h nisto forte sabor otimista cristo; "a virtude consiste num meio-termo, nem no excesso nem no exagero", est- se a traduzir em midos a teoria tica de Aristteles; "a natureza senhora soberana de todos e exemplo para o homem", est-se a verificar e identificar na natureza a origem dos direitos, como pregado pela corrente jusnaturalista.Talvez, seja uma teoria, uma idia, uma ideologia, um texto, um livro... a origem de um comportamento atual, cuja memria do incio j se apagou por completo, ou, o que ainda mais grave, a origem de massivos comportamentos sociais.Talvez, com toda a limitao que peculiar ao pensamento, as palavras dos filsofos tenham mais influncia que se possa efetivamente medir. Talvez, as letras filosficas tenham influenciado mais a histria da humanidade do que muito lder poltico sonhador tenha jamais pensado poder fazer. Talvez, smbolos, slabas, letras e frases ressoem mais que espadas que tiritam no ar. Talvez, sistemas ideolgicos teoricamente arquitetados alcancem maiores repercusses sociais que sistemas burocrticos inteiros, com massas de inumerveis funcionrios, no so capazes de construir. Eis a a ambivalncia e o poder da filosofia.3 Os conhecimentos humanosA diversidade dos conhecimentos humanos requer sejam identificadas algumas categorias bsicas que demonstram a versatilidade do homem na aplicao de sua razo e de suas capacidades anmicas. O senso comum, a religio, a tcnica, a cincia e a filosofia so as principais formas de projeo do homem, formas que acabam por compor as mais evidentes e as mais destacadas categorias culturais humanas.l Ento, como pressuposto do desenvolvimento das investigaes subseqentes, mister conceituar e apresentar essas nuanas, como necessrio recurso de anlise e pesquisa neste contexto, como segue:Senso comum -a categoria do senso comum formada pelas noes superficiais, gerais e assistemticas sobre o mundo absorvidas pelo homem enquanto interage com o mesmo. O conhecimento de senso comum , antes de tudo, um conjunto de juzos no aprofundados retirados da experincia cotidiana com as "coisas. Seu perigo encontra-se no fato de que nem tudo o que presume, de que nem tudo o que pressupe, de que nem tudo o que intui como correto ou como errado realmente o . Carente de busca das causas, desprovido de mtodo, impotente pela falta de provas e testemunhos a respeito de algo, suas deficincias logo despontam como1. Semelhante diviso dos conhecimentos humanos pode-se encontrar em D'Onofrio, Metodologia do trabalho intelectual 4 1999, p. 5-12. Porm, o autor acrescenta a essa lista o conhecimento mtico como forma separada e diferenciada do conhecimento religioso.INTRODUO 27recursos insuficientes para se averiguar uma realidade, um fenmeno, um sentido... Porm, de seu bojo, de suas impresses, de suas desconfianas, de suas preliminares investigaes surge o saber cientfico, surgem as grandes indagaes humanas. Se se puder discriminar os conhecimentos em fases, em etapas, esta a primeira delas em direo sapincia humana.Religio -a f uma das manifestaes humanas mais precoces na histria dos tempos. De fato, nascida com o prprio homem, gestada em datas imemoriais, as manifestaes de f no tardaram a despontar, seja em funo do medo, seja em funo do temor, seja em funo da carncia de conhecimentos e explicaes cientficas, seja em funo da crena em poderes naturais ou sobrenaturais, seja em funo da intuio da existncia de foras superiores... o homem mostrou-se desde o princpio de sua jornada terrena engajado em msticas e, inclusive, em cultos. No de todo estranho que os poderes sociais nas comunidades mais rudimentares se tenham estruturado na base dos poderes religiosos e espirituais. A f, de qualquer forma, liberta o homem da contingncia em que se encontra, uma vez que outros poderes (naturais/ sobrenaturais), outras perspectivas (mundanas /csmicas), outras vidas (terrestres /espirituais), outros seres (lderes/ deuses)... podem sempre interferir na constituio das regras do jogo, redefinindo-as em seus termos, alterando-as por completo, fazendo-as cumprir , pois a f deposita fora do que esperado,fora do que visvel aos olhos, fora do que aceito normalmente seu poder, sua ao, sua fora. Quem tem f, seja num princpio, seja num preceito, seja num culto, seja num poder determina seu modo de proceder e de interpretar a vida a partir de sua crena. Contudo, por se pe sar que a f pura crena (ato de confiana e entrega de si), pensa-se normalmente que est dissociada de qualquer preocupao racional. Ao contrrio, a verdadeira e inabalvel crena solidifica-se por instrumentos racionais, por expedientes comprobatrios, lgicos e lcidos, distanciando-se, dessa forma, do fanatismo e da cegueira sectria. Iluminao da alma, que tem relao com a vida e a sobre-vida do ser, a f esclarecida grande aliada das expectativas acerca do porvir. Nutrida por naturais ansiedades existenciais, pela obscuridade da penetrao dos sentidos em dados extra-sensrios, e escorada pela razo, criteriosamente lastreada por auxlios lgicos, a f converte-se em forte aliada das multides nos processos convencionais de convvio, relacionamento, estruturao e projeo da vida. Tornada recurso nico da humanidade, pode-se por ela ceifar milhares de vidas, em nome da converso e da salvao, bem como podem-se construir ou destruir imprios com sua interveno sobre a vida ordinria, temporal e mundana. Abolida por completo, pode-se perceber o vazio e o non sense do existir. Sua indispensvel presena parece residir no meio termo entre a razo e o fanatismo, entre a crena e o

28 CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITOritualismo exterior, entre a honestidade carismtica e o charlatanismo vulgar, entre a responsabilidade e o messianismo descontrolado.Tcnica -sabendo-se que toda conquista humana vem acompanhada pelo aprimoramento de um saber-fazer, a tcnica representa o meio pelo qual se podem realizar determinadas atividades de interao e adaptao mecnica do homem com o meio em que vive. A tcnica representa a soluo prtica de que necessita o homem para interagir com outrem ou com algo de modo mais eficiente e com menor sacrifcio pessoal (encurta distncias, celeriza processos, demanda menor mo-de-obra. ..). A tcnica liberta o homem de sua condio corprea, abrindo-lhe horizontes produtivos, criativos, relacionais, quantitativos, qualitativos... incomensurveis. de valiosa importncia para a humanidade medida que sem ela se pode correr o risco de se permanecer estacionrio o modo de vida e de organizao humanos. O homem escravo da tcnica converte-se em humanide, mecaniza-se e escraviza-se, abandonando sua prpria essencialidade; o homem sem a tcnica mais um ser merc das contingncias materiais da vida e incapaz de impor parmetros racionais para ad- ministrar necessidades prticas surgi das da interao ambiental.Arte -o senso esttico desenvolve-se no homem como uma capacidade de interao simblica com as coisas e de representao criativa dos objetos (lgicos, simblicos, imagticos, concretos...). A arte realiza-se no momento em que o homem plasma sobre a matria-prima de que dispe manifestaes de sua personalidade em interao com realidades as mais diversas. O juzo esttico aceita o exterior como interior para plasmar novamente no exterior o que o interior pde produzir ou interpretar sobre si mesmo. Alm de tudo, a arte pressupe conhecimento e faz conhecimento, por produzir e re-produzir conceitos e valores humanos projetados sobre as coisas. A arte requer, mais que qualquer coisa, o impulso criativo, a liberdade de expresso, a manipulao de formas, a materializao simblica da idia esttica (num poema, numa pintura, numa criao artesanal, num desenho...). Sem tcnica, a arte toma-se escrava da imperfeio da forma; se pura tcnica, a arte converte-se em instrumento acadmico para a castrao da livre expresso criativa e imaginativa humana.Cincia -manifestao racional humana que busca a causa dos fenmenos para explic-los, coloca prova do raciocnio e da testabilidade emprica as hipteses formuladas para explicar os fenmenos que circundam a humanidade, seja em seu aspecto intrnseco, seja em seu aspecto extrnseco. Depositando no mtodo sua capacidade de se distanciar da mera opinio pessoal, procura universalizar respostas para satisfazer a inquietaes e necessidades humanas (especficas e especializa das) surgidas do inter-relacionamento e da vivncia mundana.

29 INTRODUO -Filosofia -como atividade do pensamento, a especulao distingue-se da mera observao passiva, da mera contemplao admirativa, uma vez que postula, procura as causas primeiras, explica, critica..., favorecendo a liberdade humana de pensar; a filosofia aparece como uma forma de busca racional para as questes que a prpria cincia se julga impotente para responder. Para alm dos estreitos limites da causalidade emprica, pode a filosofia racionalmente avanar, sem recair necessariamente nos domnios da crena e da f religiosa. Sem compromissos imediatos, sem preocupao com produtos racionais, sem limites to claramente delineados, sem vnculo de apresentar respostas, com a filosofia a racionalidade humana galga a condio da liberdade intelectual. Seus objetos so amplos, universais e infinitos. Pode, sem dvida nenhuma, representar grande instrumento de esclarecimento e questionamento sobre meios e fins, sobre os princpios e as causas, sobre os destinos e as metas, sobre o de onde e o por onde...4 Partes da filosofia costume apontar, de acordo com o acmulo das experincias filosficas desde a Antigidade, subdivises didticas dos saberes filosficos. As classificaes so muitas, as opinies so as mais variadas, as diferenas entre tericos, ainda maiores. Convm apenas que se diga que a filosofia se espraia por campos infinitos de conhecimento, medida que inesgotveis so os saberes, e suas distenses tericas so as que seguem: 1tica: mora, comportamento, costumes, altos, atitude e perante SI e perante o outro, limites da ao humana, fins e meios da deciso do agir, regras de proceder social, defesa de interesses scio-humanos... so estas as principais preocupaes da filosofia tica;.Lgica: raciocnio, pensamento, certeza proposicional, formas de estruturar os encadeamentos racionais, formas de conhecer o mundo e o prprio homem, regras do procedimento racional, inferncias, dedues, abdues, indues, possibilidade do conhecimento... so estas as principais preocupaes da filosofia lgica;.Esttica: sensibilidade, capacidade artstica, imitao da natureza, potencial criativo, juzo de gosto, proporo, inveno, gnio, a arte como prtica social e cultural... so estas as principais preocupaes da filosofia esttica;1. Cf. Chaui, Convite filosofia, 1999, p. 55.

30 CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO.Epistemologia: rigor cientfico, mtodo, procedimentos de pesquisa, exeqibilidade das experincias cientficas, fins das atitudes cientficas, possibilidade de alcance da verdade, papel social das cincias... so estas as principais preocupaes da filosofia das cincias;.Filosofia Poltica: poder, legitimidade, consenso, vontade popular, representatividade, participao, cidadania, totalitarismo, opresso, desvio de poder, governo, justia social e distribuio das riquezas, polticas sociais, gesto social... so estas as principais preocupaes da filosofia poltica;.Metafsica: origem das coisas, unidade divina, relao criador/criatura, preexistncia do mundo, subsistncia do ser, alma, destino, governo do universo, causa das causas, sentido da vida... so estas as principais preocupaes da filosofia metafsica;.Histria da Filosofia: conceitos filosficos, escolas de pensadores, dou- trinas e injunes histricas das doutrinas, atrelamentos entre o pensador e seu tempo, ou seus predecessores, discusses que perpassam a histria com continuidades ou descontinuidades... so estas as principais preocupaes da histria da filosofia;.Filosofia da Histria: os limites do saber histrico, a valorao humana sobre os fatos passados, os meandros da ao humana sobre a histria, as descontinuidades histricas, a histria e sua escrita, a determinao ideolgica das prticas e do saber histrico... so estas as principais preocupaes da filosofia da histria;.Filosofia da Linguagem: o poder de significao das palavras, o pronunciamento do homem sobre a realidade, a dimenso do signo, a dependncia da razo da linguagem, a participao do discurso na construo de arqutipos sociais, a anlise dos instrumentos de comunicao, a interao social, as diversas linguagens, da gestual escrita, a ambigidade da linguagem, a manipulao da linguagem, o poder persuasrio da linguagem... so estas as principais preocupaes da filosofia da linguagem.4.1 Principais representantes da filosofia ocidental: sntese de autores e de idias para a compreenso da histria da filosofiaEsta apertada sntese das principais referncias filosficas de cada sculo ou perodo permite que se entrevejam, entre traos 'biogrficos e noes filosficas, algumas tendncias e movimentos que se deram no limiar dos tempos. A herana filosfica, no sendo construda por interrupes, ou por lapsos desconexos de genialidade, inter-age com o meio, com a obra e com a diversidade das doutrinas, de modo a tomar-se necessria a compreenso dos principais correspondentes espa-

INTRODUO 31

ciais e temporais que deram origem a esta ou quela filosofia. A s presena de um nmero considervel de filsofos nos quadrantes da filosofia ocidental tornaria invivel esta tentativa de esboar suas mais peculiares diferenas e identidades.No entanto, o que se quer no re-constituir a histria da filosofia ocidental, mas oferecer um quadro referencial que minimamente permita sejam assentadas as principais dinmicas de idias de alguns autores, com base nos quais a leitura filosfica se torne menos densa e complicada, e mais simples e orgnica: Tales de Mileto (625-547 a.C.) -Teria sido o primeiro pensador que registra a histria ocidental, no se tendo notcias de seus escritos. Est entre os sete sbios da Grcia e destacou-se por suas idias matemticas, astronmicas e cosmolgicas. O elemento gua identificado em sua doutrina como o princpio de i todas as coisas.Anaximandro (? -647 a.C.) -Para este filsofo pr-socrtico, o peiron .o elemento formador e originrio do universo, substncia cuja identidade no se t confunde nem com a gua, nem com a terra, nem com o ar, nem com o fogo.Anaxmenes (546 a.C. -?) -O ar, para este pensador, era considerado a origem de tudo, e a substncia compsita da alma e do universo. Poucos traos de sua obra podem ser encontrados, mas, mesmo assim, suas idias se eternizaramo entre as dos demais pensadores pr-socrticos.Pitgoras (572-510 a.C.) -Conhecido por sua intimidade com os nmeros, em verdade foi um pensador e mstico que fundou uma congregao de iniciados. Segundo este filsofo, era possvel ouvir os sons dos astros e explicar a essncia das coisas por meio de categorias numricas e seus sentidos.Demcrito (460-370 a.C.) -Com sua teoria atomstica, explicava a composio dos corpos a partir do elemento indivisvel: o tomo. As diferenas entre os corpos devem-se s diferenas entre os tomos que os compem. Nada resta de sua obra.protgoras (490-421 a.C.) -Sofista de maior renome, autor da frase que caracteriza o pensamento da escola e do perodo: "O homem o princpio de todas as coisas." Os sofistas relativizam o absoluto dos pr-socrticos e situam a filosofia no seio da vida econmica e poltica das cidades. protgoras destacou-se, sobretudo, por seus dons de oratria, com os quais movia multides para ensinar, mediante pagamento, as estratgias sofistas. .Scrates (469-399 a.C.) -Polmico pensador que tumultuou a Atenas do sculo V a.C. com sua iluminao filosfica e com sua maiutica dialtica. Dedicou sua filosofia cidade-estado (plis), Atenas, que era o centro das atenes do perodo, bem como aos cidados, enfocando sobretudo temas morais e antropocntricos, sem deixar obra escrita, pois seus dilogos eram travados em praa pblica (agor). Condenado a beber do veneno cicuta em 399 a.C., acusado de perverter a juventude e de propalar adorao a outros deuses, sentena do tribunal popular resignou-se, tornando-se mrtir histrico da filosofia.

32 CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO

PIato (427-347 a.C.) -Autor de inmeros dilogos, com destaque para a Repblica.. foi discpulo de Scrates e fundador da Academia de Atenas. Sua filosofia ontolgica e dualista pressupe a existncia de uma (R)ealidade para alm da (r)ealidade mundana, representando certa fuso da dialtica e da tica socrticas com o orfo- pitagorismo e o sincretismo oriental. Sua doutrina do Estado revela o primeiro dos comunismos possveis.Aristteles (384-322 a.C.) -Discpulo de Plato, nascido na Macednia, autor de extensa obra em forma de grandes tratados. Notabilizou-se pelo carter cientfico de seus escritos, pela fundao de vrios saberes (lgica, biologia...) e pelo afinco ao estudo da natureza e das causas das coisas e fenmenos. Considerado o pai das cincias, operou a sntese da cultura grega em desaparecimento em pleno sculo N a.C.Zeno de Ctio (334-262 a.C.) - o fundador do estoicismo grego, dou. trina helenstica que colocava o homem em relao e em sintonia com o ksmos A ataraxa o meio de alcanar virtude e sabedoria para este pensamento. Este escola encontrou tambm fortes adeptos entre os pensadores romanos.Epicuro (341-271 a.C.) -Deu incio corrente filosfica conhecida como ( epicurismo. Prega que o conhecimento se origina da sensao e que a felicidadt decorre do prazer (no do prazer sensual), que pode conduzir ao bem-estar mximo e harmnico da alma.Plotino (205-270 d.C.) -D origem ao neoplatonismo, revigorando o estudo pago do filsofo grego Plato; sua principal obra (Enadas) provoca forte influncias no panorama da filosofia de poca.Agostinho de Hipona (354-430 d.C.) -Tendo-se iniciado na retrica no maniquesmo, converteu-se ao cristianismo, alcanando posteriormente a funo de Bispo de Hipona. Sua obra filosfica de peso, e revela a unio entre platonismo e os ideais cristos, tendo-se tornado o principal representante d pensamento cristo no perodo da patrstica.Abelardo (1079-1142) -Engajado na discusso e na querela medieval de universais, , sem dvida, o maior prottipo do perodo escolstico, sendo de destacar sua atuao como hbil instrumentador da lgica, da gramtica, da retrica, da dialtica e da razo. Sua turbulenta biografia , em parte, fruto do Contraste de sua obra com o pensamento de poca.Toms de Aquino (1225 -1274) -Reconhecido como o DoctorAngelicu sua extensa obra tornou-se o cone da produo filosfica crist e a referncia obrigatria do Ocidente medieval, aps longos e turbulentos perodos atravs dos em que a filosofia de Aristteles pendia entre a heresia total e o fascnio dogmtico. Sua doutrina concilia dogmas cristos com idias aristotlicas, destacando-se seu grande compndio, a Summa theologica.

INTRODUO 33Francis Bacon (1561-1626) -Filsofo de origem inglesa, fundou a forrma de pensar da cincia moderna na base do indutivismo, bem como dotou a lgica da pesquisa de instrumentos mais slidos, sobretudo organizando o saber da desconstruo daquilo que chama de idola, em seu principal texto, Novum organum.Ren Descartes (1596-1650) -O pensamento cartesiano dota o mtodo cientfico de caractersticas inconfundveis, assim como instaura a dvida como meio de persecuo da verdade, pois a nica certeza est no cogito, ergo sumo Sua obra de destaque Discurso do mtodo.John Locke (1632-1704) -O ingls Locke possui uma obra de notvel significado poltico e filosfico (Dois tratados sobre o governo civil e Ensaio sobre o entendimento humano). Sua obra normalmente contrastada de Thomas Hobbes, no que tange s idias sobre o estado de natureza. Discorre sobre temas ligados teoria do conhecimento e origem da sociedade, como meio de garantia e sobre- vivncia para os indivduos.Voltaire (1694-1778) -A obra de Voltaire representa um forte bastio da modernidade contra a hipocrisia, a obscuridade dos espritos e a intolerncia religiosa. com humor sarcstico que tece seus diversos textos, muitos dos quais lhe causaram srios problemas polticos que o levaram vrias vezes ao exlio.Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) -O pensador de Genebra o famoso autor de O contrato social, onde discute a origem da sociedade, descreve o estado de natureza e polemiza o estado cvico. O bucolismo de suas concepes decorre de sua interpretao paradisaca da vida no estado de natureza. Para Rousseau, a pena de morte jamais um ato legtimo do Estado contra o cidado, pois este no aliena ao Estado, ao aderir ao pacto social, o direito sobre sua vida.Immanuel Kant (1724-1804) -Sem dvida, o maior representante da filosofia do sculo XVIII, fundou o criticismo filosfico e trouxe notveis contribuies aos temas da lgica, da tica, da metafsica. Suas trs Crticas e seu opsculo paz perptua so obras de definitiva influncia sobre o pensamento ocidental. A idia de a priori que governa sua moral funda uma srie de discusses que dominam o espao da tica e do direito, perdurando acentuadamente no panorama das discusses at meados do sculo xx.Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) -O filsofo alemo, que chegou titularidade da Universidade de Berlim, o maior representante do idealismo filosfico do sculo XIX. Em seu sistema de idias, a razo domina tudo, pois o saber a verdadeira sede ontolgica das coisas, sendo a dialtica a forma pela qual as coisas entram em movimento. A idia de Estado algo semelhante a uma necessidade social de transformao do anrquico da vontade livre em racional da estrutura burocrtica e pensada na ordem estatal.Karl Marx (1818-1883) -Em parte influenciado por Feurbach e em parte por Hegel, incrementa o materialismo, tornando-o dialtico e histrico, sabendo

34 CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITOentrever na histria humana a sucesso de regimes econmicos de explorao e de alternncia de classes dominantes. Identifica estrutura e superestrutura. Sua leitura dos mtodos capitalistas de acumulao primitiva apuradssima. Juntamente com Engels, consegue dar incio, bem como acompanhar, os principais movimentos de trabalhadores do sculo XIX, ideologia engatilhada sobretudo a partir do Manifesto comunista. Sua doutrina traz fortes influncias sobre os movi- mentos sociais dos sculos XIX e XX.Friedrich Nietzsche (1844-1900) -Representante do voluntarismo, lana as fundaes do niilismo. A filosofia de Nietzsche irrompe com uma crtica ctica tradio metafsica ocidental, e discorre sobre a vontade de poder. Para ele, a constituio da realidade decorre de uma exploso multifria de formas desordenadas, e a tica dos tempos deve ser posta em dvida pelo mtodo genealgico.Edmund Husserl (1859-1938) -Inicia seus estudos pela matemtica, passando lgica e filosofia, para tomar-se o fundador da fenomenologia, corrente de pensamento que projeta na busca da essncia das coisas-em-si a verdadeira meta do saber. Nenhum juzo sobre as coisas deve estar contaminado pela viso que comumente se tem sobre elas, pois se toma desde j obscuro; a identidade de algo decorre de sua natureza e constituio mais ntimas, e nisso que consiste a pesquisa fenomenolgica, que haver de fazer nascer de dentro de si tambm o existencialismo.Mamn Heidegger (1889-1976) -Filsofo alemo e autor de Ser e tempo, dedicou-se fenomenologia. Deteve-se na pergunta sobre o ser, com especial ateno para o tema do dasein (ser). Apesar das polmicas ligaes polticas iniciais com o nacional-socialismo alemo pr-Segunda Guerra Mundial, soube distanciar-se de um papel partidrio ativo, a ponto de no se envolver nos crimes do regime nazista.Hannah Arendt (1906-1975) -Sua dedicao filosofia poltica e sua franca oposio intolerncia anti-semita e ao nazismo tomam sua obra o mais fiel retrato dos dilemas do homem inserido no sculo XX. As causas do poder e de seus desvios so temas recorrentes nas referncias de filosofia poltica de Hannah Arendt, judia alem que teve de expatriar-se quando da disseminao do nazismo alemo, dando continuidade a seus cursos e publicaes nos EUA. Suas contribuies para a temtica da condio humana tambm so de extrema valia.Jean-Paul Sartre (1905-1980) -A peregrinao sartriana uma vivncia entre a militncia marxista e o existencialismo filosfico, por ele muito bem representado em meio aos intelectuais franceses. Prescinde de tratar de temas ontolgicos e de grandes questes da filosofia para construo de uma obra inteiramente focada sobre a figura frgil do homem enquanto ser-a, enquanto ser-no-mundo. Dedica-se a temas existenciais, psicolgicos, literrios, filosficos e teatrais. Sua ampla obra revela uma incontestvel defesa da liberdade do esprito e certo tnus humanista

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Jrgen Habermas (1929-) -Centrando-se na anlise da comunicatividade e na anlise dos discursos sociais, Habermas destaca-se como pensador contemporneo ligado teoria hermenutica dentro da Escola de Frankfurt, com escritos de substancial influncia sobre o pensamento de vanguarda filosfica, na busca de uma base tico-discursiva para a deciso jurdica.5 Mtodo, cincia, filosofia e senso comum ponto pacfico que a atividade cientfica no pode possuir o mesmo grau de incerteza que possui o senso comum. De fato, se o senso comum corresponde a um conjunto assistemtico de conhecimentos de diversas naturezas, que corresponde multiplicidade das informaes recebidas e colhidas ao longo de determinado tempo de experincia humana, a cincia no poder encontrar-se ao sabor das mesmas incertezas. A cincia, ento, dever representar o conhecimento sistematizado, especializado, testado, organizado, diludo em uma trama de postulados metodolgicos.1 Trata-se de uma prtica racional da qual resultam conhecimentos mais rigorosamente testados que aqueles adquiridos informalmente.2 As- sim que se pode dizer que o grau de probabilidade e de certeza nas concluses cientficas maior que no conhecimento vulgar.3A cincia possui como pretenso fundamental a construo do saber adequado e certo, ou seja, dotado de validade universal (sem fronteiras espaciais) e eficcia definitiva (sem limites temporais), expressando-se inclusive de forma a alcanar definies universais e englobantes,4 tendo em vista que busca resultados que alcancem o maior nmero de pessoas no maior dilastrio de tempo.As ambies cientficas de alcance do maior auditrio e da maior constncia no tempo contrastam com as parcas ambies dos juzos emitidos pelo conheci; mento vulgar. Isto porque a cincia um produto de todos e para todos, enquanto a opinio uma expresso de pensamentos subjetivos de ambio circunscrita, fugaz, apaixonada, tendenciosa e, na maioria das vezes, de incomprovada demonstrao.

1. "O termo cincia encarado de um ponto de vista objetivo e de um ponto de vista subjetivo: a) " objetivamente: a cincia um conjunto de verdades certas e logicamente encadeadas entre si,de maneira que forme um sistema coerente C...); b) subjetivamente: a cincia o conhecimento certo das coisas por suas causas ou por suas leis" (Jolivet, Curso de filosofia, 18. ed., 1990, p.76).2. "Cincia conhecimento que resulta de um trabalho racional" CChaui, Convite filosofia, 1997, p.251).3. Cf. Pinto, Cincia e existncia: problemas filosficos da pesquisa cientfica, 1979, p. 20.4. As teorias cientficas so enunciados universais. Como todas as representaes lingsticas, so sistemas de signos ou smbolos" CPopper, A lgica da pesquisa cientfica, 1993, p. 61).5. Cf. Chaui, Convite filosofia, 1997, p. 250-251.

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caracterstica da cincia a atividade dubitativa, questionadora, postulatria, uma vez que visa pr prova, testar, analisar, enfim, pesquisar seus objetos com uma delimitao tal que se torne um estudo detido e aprofundado de um mesmo assunto.Isto porque possui uma funo social, qual seja, a disperso de conhecimentos, o aprimoramento da tcnica e o progresso da capacidade cognoscitiva humana. No se pode pensar que nas pginas de uma obra cientfica se encontraro expressas idias com a mesma desateno, com a mesma insensatez, com a mesma precipitao, com a mesma insolncia, com a mesma informalidade... com que se pronunciam e expressam idias de conhecimento vulgar nos juzos quotidianos sobre as coisas.A cincia , ainda, produto social, por acompanhar a gradual evoluo da relao meio-homem, e tambm instrumento de transformao, pois ela que conduz o homem a novas formas de interao e convvio com o meio. Do ponto de vista ideolgico, ora ela representa a forma de perpetuao, de manuteno e conservao de um status quo dominante, simplesmente espelhando e compactuando racional e intelectualmente a conquista de momento ou o pensamento predominante ou a opinio comum, ora representa o papel das ondas revolucionrias, crticas e contestadoras, impondo as regras para as mudanas e rupturas necessrias, tudo objetivando a instaurao da crise salutar.H que se dizer, nesse sentido, que o pensamento cientfico surgiu da atividade de perquirio filosfica; o primeiro uivo do homem, no sentido da procura de si mesmo e da compreenso do que o cerca, destilou-se e transformou-se na reflexo filosfica. A atual diviso da cincia, em seus mltiplos ramos, corresponde a um longo percurso de compartimentao do saber, que a princpio era uno.2Quando se pensa na compartimentao dos saberes, talvez se veja nisso um linear processo de produo de novidades at o alcance de um estado mais evoludo; em verdade, a histria das idias, e, sobretudo da cincia, demonstra que os saberes se conquistam por revolues, muitas vezes sem compromisso tom seu tempo, perodo, estado tcnico... Enfim, so saltos que se entrelaam e, finalmente, produzem algo chamado cincia.3Mais que isso, a cincia produto da necessidade, e surgiu medida que a razo humana foi-se destacando como forma de conhecimento, clculo e dom-1. A respeito do tema, consulte-se Chaui, Convite filosofia, 1997, p. 249-250.2. "O que aconteceu? Pois aconteceu que grandes setores do ser em geral, grandes setores da realidade, se constituram em provncias. E por que se constituram em provncias? Pois precisa- mente porque prescindiram do resto; porque deliberadamente se especializaram; porque deliberadamente renunciaram a ter o carter de objetos totais" (Morente, Fundamentos de filosofia, 1980, p. 31).3. 'A cincia, portanto, no caminha numa via linear contnua e progressiva, mas por saltos e revolues" (Chaui, Convite filosofia, 1997, p. 258).

INTRODUO 37nio. Pode ser dita um esforo de controle racional, previso e compreenso. em interao, premida por necessidades (materiais, psicolgicas, morais, sentimentais...), que as conquistas foram burilando-se. Ela permite, sem dvida alguma, melhor interao do homem com o mundo que o cerca pela via da compreenso.Alm do que se disse, as cincias so fruto das contribuies de tericos, sbios, sacerdotes e filsofos, desde o nascimento dos saberes (principium sapientiae) na Antigidade. Nesse passo, no se podem olvidar as contribuies dos filsofos pr-socrticos e a especulao sobre a natureza das coisas e o cosmo. No se pode esquecer a contribuio aristotlica, com a proposta de classificao das cincias (cincias prticas, cincias tericas, cincias produtivas) e o desenvolvimento de mltiplos de seus ramos (Biologia, Psicologia, Cosmologia, Lgica...).Diversas outras conquistas hauridas durante o Renascimento e o Iluminismo (Giordano Bruno, Leonardo Da Vinci, Galileo Galilei, Bacon, Newton, Leibniz...) vieram a acalentar ainda mais essa necessidade de se experimentar o mundo, do ponto de vista cognoscitivo, a ponto de se alcanarem sentidos mais e mais precisos acerca da realidade, fsica ou metafsica.Nesse sentido, h que se ressaltar sobretudo a proposta cartesiana de construo de um mtodo cientfico slido,2 unvoco, more geomtrico,3 capaz de fazer do conhecimento uma atividade certeira e precisa, assim como clara e fcil.4 Enfim, o idealismo do cogito cartesiano introduziu a dimenso do sujeito na filosofia, trazendo, por conseqncia, toda uma ordem de reflexes infectadas pela idia de unidade entre os saberes cientficos, que poderiam estar sob um nico manto metodolgico derivado da razo matemtica.5 O homem sujeito do conhecimento, de posse do mtodo, estaria suficientemente instrumentado para desvelar a natureza das coisas, a realidade e suas verdades.6Todo esse percurso culminou na formao do esprito cientificista e positivista do sculo XIX, momento de grande acmulo de conhecimento e tcnicas, sob os auspcios de cuja orientao se alcanou a compartimentao dos saberes. Se, no incio da histria do pensamento, a filosofia correspondia ao saber sobre tudo e todas as coisas (sobre o ser, suas contingncias, seus atributos, suas qualidades, os juzos a seu respeito.. .), esse saber foi-se, paulatinamente, fragmentando em provncias que se chamam cincias. Cada cincia possui seu prprio objeto de es-1. Nesse sentido: As teorias so redes, lanadas para capturar aquilo que denominamos o mundo: para racionaliz-lo, explic-lo, domin-lo" (Popper, A lgica da pesquisa cientfica, 1993, p.61).2. Descartes, Discurso sobre o mtodo, p. 40.3. Consulte-se Morente, Fundamentos de filosofia, 1980, p. 176.4. "Em conseqncia do que, passando em revista, mentalmente, todos os objetos que at o presente se tinham apresentado aos meus sentidos, atrevo-me a declarar que no percebi nada que no pudesse facilmente explicar com os princpios que encontrara" (Descartes, Discurso sobre o mtodo, p. 117).5. Idem, ibidem, p. 40-41.6. Idem, ibidem, p. 115-116.

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tudo especfico, e seu territrio cientfico, forosamente, possui uma rea de competncia indelegvel. Mais que isso, com a especializao das cincias, com seus ramos, braos, derivaes..., tomou-se necessria a especializao tambm dos mtodos por elas adotados, de modo que se possa dizer que cada cincia possui seu mtodo prprio.Enfim, o onicompreensivo saber filosfico teve de ceder espao aos saberes especializados que irrompiam, que eram conquistados ou descobertos. Todavia, ainda resta a lio: in principium, philosophia.5.1 Filosofia, cincia e senso comum freqente afirmar que a cincia e a filosofia constituem-se em saberes sistemticos, complexos, verticalizados e metodologicamente amparados; so, por isso, saberes diferenciados do saber vulgar. Esse tipo de preocupao acaba por concentrar os esforos e as atenes dos doutrinadores e cientistas, que se distanciam de uma reflexo mais apurada das relaes entre a cincia, a filosofia e o senso comum.O que se quer dizer que, normalmente, ao se tratar do tema em foco, costuma-se mesmo acentuar o que diferencia os saberes cientfico e filosfico do saber vulgar (senso comum), destacando-se o fato de que so um aperfeioamento sistemtico e crtico capaz de superar as fraquezas do raciocnio vulgar. No com a mesma fora nem com a mesma dedicao procura-se discutir quais as caractersticas que aproximam ou assemelham esses saberes entre si. O prejuzo enorme que decorre desse tipo de postura o fosso criado entre o saber vulgar (senso comum) e os saberes especficos da cincia e da filosofia. Como conseqncia, tem-se o distanciamento dessas duas prticas de conhecimento do senso comum, de modo que seja dificultada qualquer tentativa de dilogo e interao entre as linguagens do cientista, do filsofo e do homem comum. De certa forma, rejeita-se toda experincia pr-cientfica ou pr-filosfica como no metodolgica, e, feito isso, descarta-se a possibilidade de aceit-las como dignas de ateno.Passa-se, ento, a falar em ignorncia, em incompreenso, em falta de acesso ao estudo cientfico, em crise educacional generalizada... que, evidentemente, somente aparecem quando, entre outros fatores, as prticas eruditas distanciam-se das prticas populares. Quer-se dizer que h uma dissintonia gerada pela falta de transparncia (de linguagem, de interesse, de finalidades...) que pre-1. "Compreende-se que cada categoria de cincia, sendo por definio irredutvel s outras categorias, exige o emprego de um mtodo diferente. O mtodo a empregar numa cincia depende da natureza do objeto desta cincia. No se estuda a inteligncia, que imaterial, pelos mesmos processos que se utilizam para conhecer o corpo e seus rgos. O estudo da vida pede mtodos diversos dos do estudo da matria inorgnica ou da pura quantidade abstrata" (Jolivet, Curso defilosofia, 18. ed., 1990, p. 79).

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judica claramente a difuso dos conhecimentos e a disperso das informaes em sociedade.Desde longa data, a filosofia passou a caminhar em dissintonia com os reclamos do senso comum. Mais que isso, em funo do grande grau de tecnicismo e estilismo, a prpria linguagem filosfica tomou-se inacessvel aos leitores no especializados e/ ou familiarizados com as nuanas filosficas. O mesmo se pode ;, dizer com relao cincia e suas tecnologias do verbo, do discurso, das frmulas, dos elementos qumicos, dos usos... O que no se leva, normalmente, em considerao o fato de que todo aperfeioamento cientfico ou filosfico surge das evidncias mais banais (a observao da queda de uma ma para a descoberta da lei da gravitao universal), das experincias mais frustrantes (quantas tentativas foram necessrias para o avio voar?), dos testes mais malogrados (quantos foram os acontecimentos e as conquistas para a energia dos raios ser canalizada por uma pipa numa noite de tempestade?), que logo so alijadas para as valas do esquecimento. Que pretenso essa que pode superar todos os aforismos populares? Que pretenso essa que pode contestar todas as crenas populares? Que pretenso essa que pode modificar tudo o que a experincia imediata ensina? Que pretenso essa que pode converter verdades em inverdades? Que pretenso essa que no consegue enxergar na literatura princpios filosficos? Que pretenso essa que no consegue expor conquistas de conhecimento no palco de um teatro ou na tela da televiso? Percebe-se que a impresso confirma a desconfiana de que se vive da diferena entre cultos e incultos, numa diviso ao estilo colonialista.Somente a pretenso de letrados poderia converter as intuies do senso comum em experincias dignas do esquecimento, a pretexto de dogmatizar a verdade e de cristalizar a circulao livre dos conhecimentos. Se a toga e suas conquistas podem representar uma evoluo da humanidade, que se libertou de antigas deficincias, que conseguiu inverter a situao de opresso com relao aos elementos da natureza, que galgou uma nova forma de organizao dos sistemas de conhecimento e relao com a natureza. ..ainda assim no se faa dela o novo smbolo de opresso da humanidade. Sua funo deve estar vinculada a necessidades e carncias humanas e sociais, bem como suas limitaes esto sugeridas pelas prprias deficincias e relatividades que caracterizam a humanidade. Quando, pelo poder criativo racional, cientfico ou filosfico, o homem quer fazer-se deus, a se inicia sua investida contra si prprio por um poder que no possui, ou seja, o poder de controlar variveis. Cincia e filosofia so teis, mas so feitas. por humanos e para humanos, devendo contribuir nessa mesma medida da humanidade, em face da relatividade que a todos caracteriza.Todavia, em verdade, o que tanto cincia como filosofia querem tratar so" assuntos de interesse de todos, a saber: como curar o cncer?, ou, ainda, o que fazer para prevenir gastrite? (cincia); por que as coisas existem?, ou, ainda, qual

40 CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITOO destino de todo homem? (filosofia). desse infantilismo 1 que surge todo o pensar racional, de modo que toda a origem do conhecimento d-se apoiada em experincias humanas de senso comum; deve-se grifar o fato de que o saber vulgar, seguido da estupefao e pelo desejo de saber, a matriz de todo conhecimento cientfico ou filosfico.Quando, porm, se trata da questo do saber vulgar como uma etapa vencida da humanidade, ou como um saber de segunda categoria, com relao aos saberes cientfico e fIlosfico, h uma grande perda. Isso porque filosofia e cincia passam a irmanar-se no exerccio de uma prtica que recai sempre sobre o mesmo auditrio de interessados, ou seja, constroem-se conceitos e inova-se em conhecimentos, direcionando-se esses aperfeioamentos para um conjunto de conhecedores da matria sobre a qual se versa. H nisso certa mentalidade elitista e antidemocrtica mascaradas na pretensa distncia do saber vulgar com relao aos saberes cientfico e filosfico, em parte, por culpa dos prprios cientistas e filsofos. Criam-se mitos onde estes no existem, criam-se fetiches onde estes no existem..., tudo em funo da dicotomizao dos saberes, que, em lugar de se somarem, dividem-se e excluem-se.Essa minorao de auditrio dos cientistas e dos filsofos faz com que os discursos cientfico e filosfico tomem-se cada vez mais rebuscados e sutis em seu alcance tcnico, voltando-se sempre para suas prprias produes, afastando-se, portanto, de seu compromisso com a sociedade em geral, a qual se encontra sempre revelia das discusses em debate. Um discurso mdico ou jurdico sem qualquer alcance social, ou sem alcance externo aos viciados circuitos em que normalmente circulam, um discurso que se volta para si mesmo. A misso elucidativa das cincias e da filosofia acaba, nesse nterim, corrompendo-se, abandonada que est sua ligao com realidades externas ao prprio pensar racional.Deve-se, portanto, atentar para o fato de que a transparncia deve chamar mais a ateno dos produtores de conhecimentos especficos. Deve-se propor que ambas as experincias, a experincia dos saberes cientfico e filosfico e a experincia do senso comum, convivam lado a lado, abolindo-se os preconceitos normalmente aceitos como impeditivos de um dilogo entre ambas as linguagens; convivendo, somente vantagens maiores podero advir desse relacionamento.21. Pode parecer estranho utilizar-se da palavra infantilismo em meio a um Curso de Filosofia, ma: leia-se o que diz Manuel Garcia Morente a esse respeito: "O filsofo necessita, pois, uma primem dose de infantilidade, uma capacidade de admirao, que o homem j feito, que o homem enrijecido, encanecido, no costuma possuir" (Morente, Fundamentos de filosofia, 1980, p. 36).2. interessante perceber que todo o conjunto dos tratados de Aristteles vem construdo com base em diversas fontes de conhecimento: de um lado, as eruditas, como a literatura grega, , filosofia pr-socrtica, os textos histricos..., de outro lado, as informais, como a narrativa do pescadores, os dizeres populares, os conceitos normalmente aceitos, as designaes dos agricultores... Percebe-se que se valorizam todas as fontes de conhecimento, mas de modo crtico aproveitando-se de cada uma o que digno de ateno e respeito. Isto prova de que as fonte eruditas podem conviver com as fontes informais.

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Os preconceitos, tradicionalmente sedimentados, esto a bloquear qualquer tentativa de aproximao de ambas as experincias. Costuma-se pensar e admitir que as impresses do senso comum so falsas e que as construes da cincia e da filosofia so impermeveis. Est criada a inviabilidade de comunicao; ambos os plos de difuso de sentido esto pr-valorando as experincias advindas do plo oposto.O resultado dessa situao o que se v em todas as partes: o senso comum diz, a cincia e a filosofia devem desdizer; o senso comum teme, a filosofia deve espantar o temor; o senso comum intui, a cincia e a filosofia banalizam; o senso comum aceita, a filosofia e a cincia repelem; a filosofia e a cincia dizem, o senso comum repele como ditames incompreensveis, ou como assunto para especialistas...O que se deve propor a essa altura da discusso a conjugao de .ambas as experincias, por meio de um dilogo contnuo e informativo, de modo que se forme um circuito possvel de intercmbio e de relaes. Quer-se dizer que, como forma de superar uma crise de comunicao secular, devem-se instituir canais de difuso e informao em que se priorizem a acessibilidade e a expanso das conquistas especficas da cincia e da filosofia. O empecilho da linguagem no pode constituir-se em barreira para o cumprimento da funo social dos saberes.5.2 Os "ismos" e afilosofia comum formar-se um juzo a respeito do sincretismo da linguagem filosfica. Normalmente, o que filosfico dito como erudito, como misterioso, de difcil acesso, de compreenso complicada. A filosofia, aqui, sinnimo de ocultismo, sobretudo em funo de seu baile de palavras, de seus exerccios de raciocnio complicados, enfim, de sua linguagem hermtica. Na vida cotidiana, no difcil encontrar pessoas que, na medida em que se comea a falar por meio de conceitos obscuros e confusos, dizem: "Pare! Voc j est filosofando..."Esse nefasto processo de erudio da filosofia afastou-a de sua verdadeira misso: a mais intensa transmisso de seus enunciados. Sua matriz tornou-se distante demais, por sculos e sculos de paulatina aculturao da filosofia. Ento, constata-se que, atualmente, est-se diante de uma cultura erudita, de poucos e para poucos, incapaz de tocar as almas para que se conscientizem dos fenmenos estudados pela filosofia.Ao se adentrar na dimenso da histria da filosofia, as dificuldades aumentam ainda mais. Depara-se o leitor de filosofia com uma imensido de escolas, pensamentos, autores, doutrinas, correntes de idias... A torrente de "ismos" confunde e atordoa, intimida e amedronta, obstaculiza e apavora o nefito. Ora, esse estremecimento inicial no deve ser nem constituir o impedimento para o acesso dimenso do que filosfico. Somente o excessivo academicismo pode trans-

42 -CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITOformar um conjunto de enunciados, aforismos e mensagens simples em doutrinas inexpugnveis e ininteligveis, denegrindo a prpria importncia social da filosofia como saber de todos para todos.A filosofia contm ensinamentos que, em sua pureza, em sua dimenso mais ntima, so ensinamentos dotados de grande simplicidade. Esses ensina- mentos demandam sempre a existncia de um pressuposto para sua compreenso, qual seja: vivncia. Por isso que ler e entender filosofia menos um exerccio de deteno de informaes eruditas sobre as correntes filosficas e suas diferentes sutilezas, dos "ismos" (realismo, idealismo, empirismo, gnosticismo, racionalismo, criticismo, dialeticismo, ontologismo, existencialismo...), e mais um exerccio de compreenso da dimenso profunda que os significados filosficos possuem (valores ticos, ordem social, proteo da humanidade, exerccio da liberdade, responsabilidade social...). Mais que isso, ler e entender filosofia representa o compromisso de incorpor-la, vivenci-la, coloc-la em ao. Filosofia estagnada como conhecimento retrico, como mero charme das palavras, como conjunto de mximas para impressionar especialistas, mero exerccio de arrogncia; mais que tudo, ela demanda sua prtica e sua traduo em aes respectivas no sentido da transformao do mundo.Por isso, pode-se dizer, a filosofia menos os "ismos", e deve ser mais o conjunto dos ensinos que capaz de transmitir. Deve-se deter menos as especificidades e os detalhes cronolgicos e as categorizaes das escolas e suas sutis diferenas, prendendo-se o leitor nas importantes lies a contidas, nos ensinamentos contidos nos textos, nos comandos prticos de vida transmitidos por meio de pensamentos.O no-apego aos "ismos" pode e deve significar algo mais. Tradicionalmente, a filosofia (geral e jurdica) reconhecidamente emparelhada a um conhecimento hermtico, fechado, enclausurado, at mesmo mtico, incapaz de transparncia, de inteligibilidade e de democraticidade. Do que que padece o discurso filosfico? Qual o mal que afeta este discurso e o torna uma fala-sem-sentido, uma certa experincia do inefvel, feita palavra, que se converte numa letra-morta na medida em que no afeta queles que deveria alcanar? Se a filosofia serve para alguma coisa, para que serve se no nem mesmo capaz de comunicar os resultados de suas investigaes e perquiries?Ora, o discurso filosfico , tradicionalmente, um discurso que fala de coisas que no se entendem e se faz fortemente incapaz de compreenso, criando-se e recriando-se, no tempo e no espao, o mito de que a filosofia "mora na estratosfera", de que "assunto de filsofo ininteligvel".O que se deve evitar que a filosofia se converta num discurso-para-si, no qual filsofos falam para filsofos de coisas que somente filsofos entendem. H nesse circuito de informaes filosficas uma espcie de crculo vicioso, cuja dinmica a exata medida do impedimento da realizao dafilosofia-extra-muros-

INTRODUO 43acadmicos. assim que ela tem sido praticada, cultivada, e, tambm, ostentada por uns e odiada por outros:"Mas quem deve ser filsofo dentro do grupo hegemnico ou dos grupos que aceitam sua liderana? Alguns, muitos ou todos? Esta pergunta raramente colocada pelos filsofos. que a concepo tradicional da filosofia faz desta, explcita ou implicitamente, a ocupao sofisticada de uns poucos. Claro: se a filosofia constitui urna atividade abstrata voltada para assuntos alheios s preocupaes da grande maioria -ou se a relao da filosofia com essas preocupaes por demais complicada e requer muitas explicaes para ser entendida pelo homem comum -, faz pouco sentido exigir que ela seja cultivada fora de um crculo restrito de especialistas. Mas, se a filosofia o princpio de estruturao da experincia coletiva, isso significa, ao contrrio, que suas sugestes concernem direta ou indiretamente a todos. Logo, razovel supor que ela possa ou deva interessar a muitos, ou talvez a todos" (Debrun, Gramsci: filosofia, poltica e bom senso, 2001, p. 36).Definitivamente, a filosofia tem deixado de cumprir sua real tarefa, de fazer- se um saber que compartilhado pelas massas, na medida em que sua real funo, e a advertncia de Gramsci, a criao de um esclarecimento que se converte, na mente coletiva, em bom-senso. a isso que serve todo o processo de depurao de idias, de conceitos, de crticas elaboradas ao longo das discusses e especulaes filosficas, na prpria medida da utilidade social e do esclarecimento geral que capaz de produzir. Nesse sentido, a participao coletiva na filosofia. parece ser algo determinante no prprio estatuto das prticas filosficas. Fazendo-se ecoar a leitura de Debrun:"O 'Bom Senso', para Gramsci, a prpria filosofia, quando esta satisfaz dupla condio de ser verdadeira -ou orientada para o verdadeiro -e compartilhada por muitos, pelas 'massas'. a verdade tornada ideologia 'orgnica', 'concepo do mundo que se exprime implicitamente na arte, no Direito, na atividade econmica, em todas as manifestaes de vida individuais e coletivas'. O Bom Senso no constitui, portanto, urna disposio genrica, inscrita numa Natureza Humana. Urna faculdade. Sem dvida, ela pressupe a inteligncia dos filsofos, de todos os homens na medida em que todos podem se tornar filsofos. E a inteligncia, esta, pode ser encarada em parte corno urna disposio genrica. Mas no passa de um suporte do Bom Senso. Mesmo porque se deve tambm levar em conta o carter comunitrio, e no apenas comum, deste. O Bom Senso participao coletiva na filosofia. E por isso, o fundamento do consenso social, pelo menos quando uma civilizao est numa fase ascendente ou ainda no entrou em declnio"! (Debrun, Gramsci: filosofia, poltica e bom senso, 2001, p. 169).

CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO 445.3 Cincias jurdicas como cincias humanas.Durante longo perodo, entravada a reflexo jurdica pela nvoa positivista, pregou-se a possibilidade de um parentesco entre o mtodo das cincias naturais com as cincias humanas, nestas ltimas includas as cincias jurdicas. Esse prejudicial raciocnio tornou vivel a sustentao de que o raciocnio e a lgica jurdica obedecem ao mesmo grau de certeza dos saberes naturais, que se estruturam a partir das categorias da causa e do efeito. Passou-se a estabelecer semelhanas que retiraram das cincias jurdicas seu carter de cincia valorativa, desnaturando sua principal caracterstica, a saber, a de estar constantemente assolada pela possibilidade de reviso de suas concluses, a de ser dependente da moralidade social e dos hbitos costumeiros de uma sociedade, a de vaguear conforme as peculiaridades de casos concretos imprevisveis a priori.lOra, suprimir a peculiaridade das cincias humanas, a essncia valorativa de suas questes, comprometer toda e qualquer possibilidade de acerto na discusso do papel que representam.2 As cincias humanas ou sociais e as cincias exa- tas ou naturais diferem entre si, a saber, pela importncia e pelo peso do valor na construo racional da realidade, e pela importncia da relao causa /efeito capaz de redundar na formulao de leis cientficas. Destarte, as cincias humanas no podem abandonar seu compromisso com a diversidade dos fenmenos socioculturais.Enfim, onde h cultura h valor, e onde h valor abre-se uma dimenso incontornvel de perspectivas axiolgicas para o cientista.3 certo que nas cincias naturais ou exatas o juzo de valor tem importncia,4 mas no se pode equiparar sua importncia lateral para essas cincias com o papel que desempenha nas cincias humanas ou sociais.5 Nestas h a conscincia e a adoo do valor, ou, ainda, nestas o valor estudado, comentado, criticado, valorado e valorizado.

1. Consulte-se a respeito Bittar, Metodologia da pesquisa jurdica. So Paulo: Saraiva, 2001. 2. Cf. Bruyne, Herman, Schoutheete, Dinmica da pesquisa em cincias sociais, 1991, p. 202.3. Cf. Weber, A 'objetividade' do conhecimento na cincia social e na cincia poltica. In: Paulo de Salles Oliveira (Org.). Metodologia das cincias humanas, 1988, p. 84.4. "No existe nenhuma anlise cientfica totalmente 'objetivada' da vida cultural, ou -o que pode significar algo mais limitado, mas seguramente no essencialmente diverso, para os nossos propsitos -dos fenmenos sociais, que seja independente de determinadas perspectivas especiais e parciais, graas s quais estas manifestaes possam ser, explcita e implicitamente, consciente ou inconscientemente, seleciona das, analisadas e organizadas na exposio, enquanto objeto de pesquisa. Isso se deve ao carter particular da meta do conhecimento de qualquer trabalho das cincias sociais que se proponha ir alm de um estudo meramente formal das normas -legais ou convencionais -da convivncia social" (Weber, A 'objetividade' do conheci- mento na cincia social e na cincia poltica. In: Paulo de Salles Oliveira (Org.). Metodologia das cincias humanas, 1998, p. 101).5. 'Alm do mais, a diviso das cincias em Cincias da Natureza e Cincias do Valor pode levar ao equvoco de que as coisas da natureza so insuscetveis de valor. Ora, evidente que o homem atribui valor no s aos bens espirituais, como tambm s coisas do Mundo fsico" (Telles Jnior, O direito quntico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurdica, p. 210).

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Em sntese, as cincias humanas no se comprometem com os interesses universais e calculados das cincias exatas ou naturais.Os mtodos em cincias humanas, para lidar com os mais variados temas (o dialtico, o positivista, o sistemista, o estruturalista, o funcionalista), no podem mascarar a assuno de tendncias e muito menos ideologias; essa uma situao incontornvel para todas as cincias, sobretudo para aquelas intituladas sociais ou humanas.2 A neutralidade, nesse sentido, utopia.Ao versar sobre os direitos, os deveres, os poderes, as faculdades, as instituies, as prticas burocrticas..., est lidando diretamente com questes de interesse humano, quando no com os prprios valores humanos. Assim, esto em jogo a liberdade, a moralidade, o comportamento, todos esses valores de intensa significao humana.Todavia, entre as cincias humanas ou sociais, a cincia jurdica cincia normativa e aplicada. Comunga com as demais cincias sociais a natureza de um saber voltado para as preocupaes no naturalsticas, mas valorativas. Aqui, o que est em jogo o comportamento humano.3 O cerne do problema jurdico o problema do valor.As cincias jurdicas, no entanto, esto algemadas a necessidades que as tornam saberes parciais (direito comercial somente a ptica comercialista da sociedade) sobre fenmenos sociais, alm de saberes normativos sobre fenmenos sociais (direito comercial representa a viso normativa vigorante a respeito das relaes comerciais humanas em determinada sociedade, dentro de determinadas condies temporais).A filosofia do direito , em meio ao emaranhado das contribuies cientficas do direito, a proposta de investigao que valoriza a abstrao conceitual, servindo de reflexo crtica, engajada e dialtica sobre as construes jurdicas, sobre os discursos jurdicos, sobre as prticas jurdicas, sobre os fatos e as normas jurdicas. Por sua proposta mais aberta, livre das amarras do direito vigente, livre dos pr-conceitos contidos na legislao positiva, descompromissada com a moral1. "Uma anlise cientfica vai caracterizar-se precisamente pelo compromisso metodolgico de controle da ideologia, buscando o tratamento mais argumentado possvel da realidade" (Demo, Cincia, ideologia e poder: uma stira s cincias sociais, 1988, p. 21).2. "Quando as cincias sociais levantam a pretenso de se tomarem no ideolgicas, objetivas, evidentes, caem no ridculo mais penoso de sua prpria construo histrica, porque acabam apenas encobrindo uma nova farsa. Esto apenas fazendo autodefesa, disfarando novas formas de convencimento do pblico, camuflando imposies que se desejariam inquestionveis" (Demo, Introduo metodologia da cincia, 1987, p. 71).3. "Cincias culturais, cincia do esprito, cincias humanas, cincias morais, cincias ideogrficas ou cincias sociais so as que tm por objeto material o comportamento humano, apesar de cada uma delas ter objeto formal prprio, ou seja, a perspectiva mediante a qual contempla o homem e estuda os fatos de sua conduta" (Diniz, Compndio de introduo cincia do direito, 1988, p. 197).

46CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITOpredominante ou com os hbitos sociais majoritrios, funciona como escora re- flexiva das cincias jurdicas.Contribuindo com seu papel crtico, a filosofia do direito desgarra-se da proposta das demais cincias jurdicas, compromissadas que esto com a produo de saberes claramente vinculados soluo jurdica de conflitos, com a aplicao e a interpretao das normas jurdicas em vigor, com a sistematicidade do direito e com a orgnica do ordenamento jurdico vigente.6 Filosofia do direito como parte da filosofia?A Filosofia do Direito parte da Filosofia.2 Essa afirmao, de grande gravidade, parece no intimidar a maioria dos autores que se dedica a seu estudo. No entanto, por sua importncia, essa afirmao deve ser avaliada, com vista, inclusive, na melhor compreenso das prprias finalidades e propostas da jus filosofia.A princpio, trata-se-ia de se compreender a Filosofia do Direito como mero desdobramento dos saberes filosficos j estabelecidos, de modo que a esta somente caberia observar as mesmas conquistas, as mesmas tcnicas, os mesmos mtodos e seguir cautelosamente os mesmos passos daquela qual se vincula como matriz, inclusive por ser anterior e mais genrica. Para isso muito contribuiu a prpria histria do pensamento, pois, at o advento do hegelianismo, toda a histria das idias sobre o Direito encontra-se mesclada a sistemas e pensamentos de filsofos (dos sofistas a Emmanuel Kant). Ento, esses eram, a um s tempo, pensadores dos problemas ticos, sociais, polticos, metafsicos, estticos, lgicos... e, inclusive, jurdicos.Todavia, a Filosofia do Direito desgarrou-se de maiores atrelamentos com sua matriz, produzindo sua prpria autonomia, podendo-se mesmo falar da existncia de uma Filosofia do Direito implcita como algo diferenciado de uma Filosofia do Direito explcita.3 De fato, a partir de Hegel, nota-se crescente movimento de1. Cf. Ferraz Jr., Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. So Paulo: Atlas,1994.2.A Filosofia do direito uma parte da Filosofia. Toma-se por isso indispensvel, antes de tudo, indicar os pressupostos filosficos gerais da Filosofia do Direito" (Radbruch, Filosofia do direi- to, 6. ed., 1997, p. 39). E no somente em Radbruch que se encontra esse tipo de afirmao, pois existe quase um consenso entre os autores em dizerem que a Filosofia do Direito consiste numa derivao da Filosofia, em funo da especificidade do objeto. o que se encontra em DeI Vecchio: "Como claramente transparece do nome, a Filosofia do Direito aquele ramo da filosofia que concerne ao direit