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FACULDADE DE SÃO BENTO
Curso de Filosofia
Trabalho de Conclusão de Curso
“A Cosmologia Peirciana”
Thiago Ferreira da Motta Gehrmann Castro
RGM: 949
SÃO PAULO
2017
FACULDADE DE SÃO BENTO
Curso de Filosofia
Trabalho de Conclusão de Curso
“A Cosmologia Peirciana”
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado como requisito parcial à
obtenção do título de Bacharel em
Filosofia com Licenciatura, sob
orientação do Profº. Dr. Ivo Assad Ibri
Thiago Ferreira da Motta Gehrmann Castro
RGM: 949
SÃO PAULO
2017
Apresentado e Avaliado em ___ / ___ / ___
Banca Examinadora:
_____________________________________
_____________________________________
_____________________________________
_____________________________________
Índice
Introdução ............................................................................................................... 03
Apresentação do Autor .................................................................................. 03
Apresentação do Trabalho de Conclusão de Curso ...................................... 05
Das Obras Principais e da Metodologia ................................................................. 08
I. Do Mundo como Aparência ................................................................................. 09
II Do Mundo como Realidade .................................................................................. 15
III. Da Cosmologia Peirciana ................................................................................. 24
IV. Do Idealismo Objetivo e do Continuum ............................................................ 37
Conclusão ............................................................................................................... 46
Referências Bibliográficas .................................................................................... 50
3
Introdução
Apresentação do Autor
Charles Sanders Peirce nasceu em 10 de Setembro de 1839, filho de Sarah
Mills Peirce (1808-1887) e Benjamin Peirce (1809-1880). Sua mãe Sarah foi filha do
senador de Elijah Hunt Mills (1776-1829) enquanto que seu pai, Benjamin, fora por
cinquenta anos professor em Harvard, com grandes contribuições nas áreas da
Mecânica Celeste, Estatística, Teoria dos Números, Álgebra e Filosofia da
Matemática.
Peirce fora o segundo filho dos cinco que o casal Sarah e Benjamin geraram.
Viveu setenta e quatro anos. Casou-se em 16 de Outubro de 1863 com Harret Fay,
tendo dela se separado no ano 1876. Em 30 de Abril de 1883 Peirce se casou pela
segunda vez com Julliette Froissy.
A segunda esposa de Peirce, Julliette, desempenharia papel fundamental para
a posteridade de suas obras. Após a morte do filósofo em 19 de Abril de 1914 é ela
quem leva os manuscritos de Peirce à Harvard. Lá ela os vende impelida pelo desejo
de ver a obra de seu falecido marido reconhecida.
Em vida Peirce dedicou-se principalmente à Filosofia, fundando a Ciência da
Semiótica e do Pragmatismo. Contudo Peirce fora também homem de laboratório,
trabalhou com química e física experimentais. Por influência paterna, desde cedo, já
era familiarizado com a Matemática e a Filosofia da Matemática.
Pelos predicados de sua obra podemos fazer uma lista dos filósofos com que
Peirce convivera em sua psique. Sua Filosofia pressupõe a leitura, em primeiro lugar,
do conjunto dos “Pré-Socráticos”, Tales de Mileto, Pitágoras, Demócrito, Anaxágoras,
Parmênides, Heráclito etc.
Ainda na “Grécia Clássica”, o filósofo americano ancora várias de suas ideias
e conceitos. Platão e Aristóteles estão constantemente, explicita ou implicitamente,
presentes na obra de Peirce. Da “Antiguidade Tardia” poderíamos citar Plotino e
Porfírio. Estes desempenharam papel fundamental no que viria a se transformar, no
medievo, na Querela dos Universais.
4
Da “Filosofia Medieval” é imprescindível a leitura de Johannes Duns Scotus e
Guilherme de Ockham continuadores, entre outros, da Querela acima mencionada,
que, grosso modo, pode ser expressa da seguinte maneira: os universais subsistem
por si ou são apenas propriedades da linguagem? Ao concordarmos com a primeira
assertiva teríamos uma posição Realista. Ao consentirmos à segunda, Nominalista.
Peirce, ao longo de sua vasta obra, muitas vezes se auto intitula um realista à
moda scotista. Após a notoriedade que o Pragmatismo alcançara, ainda em vida,
Peirce rejeita as interpretações de sua obra feitas por William James e John Dewey,
justamente por identificar neles a semente nominalista.
A obra peirciana passa, necessariamente, pela leitura de Descartes, assim
como Kant. Todo o Idealismo Alemão lhe é bastante caro, principalmente no que diz
respeito a Schelling. De forma geral, Peirce reúne em sua própria obra as vastas
contribuições da Tradição, colocando aqueles que a integram em permanente diálogo.
Se por um lado Peirce recebera, desde a infância, sólida formação nas Ciências
da Matemática e da Natureza, por outro, sua formação filosófica é deveras ampla e
profunda. Contudo o filósofo, em vida, não publicou nenhum livro sequer.
Sua obra é constituída de alguns ensaios que publicara em revistas
especializadas e periódicos, e de seus manuscritos que permaneceram inéditos até
anos depois de sua morte. Hoje estes manuscritos se encontram sob os cuidados do
departamento de Filosofia da Universidade de Harvard.
Em 1931-35 e 1958 a Universidade de Harvard publicou sobre o título de Collect
Papers of Charles Sanders Peirce, cerca de quatro mil páginas daqueles ensaios e
manuscritos outrora inéditos. Este trabalho fora dividido em 8 volumes e cobre de
modo consistente boa parte do pensamento peirciano.
5
Apresentação do Trabalho de Conclusão de Curso
Feita a breve apresentação da vida do, talvez, maior filósofo norte-americano,
passemos agora à consideração do nosso Trabalho de Conclusão de Curso.
Este trabalho tem como tema central a Cosmologia peirciana e, de forma mais
específica, seu Idealismo Objetivo. Para este empreendimento será necessário
termos como subtemas a Ciência da Fenomenologia, a Ciência da Metafísica, bem
como, as Categorias peircianas: primeiridade, segundidade e terceiridade.
Ao pretendemos um estudo acerca da origem do cosmos, teremos, para
trabalho tão ambicioso, que tocar, através da teoria peirciana, as relações entre
determinismo e indeterminismo, entre substâncias e leis psíquicas e físicas, anotando
qual delas pode ser tida como a primordial num estágio fundante do cosmos.
Da problemática engendrada pelas possibilidades da natureza da substância
primeira, nos debruçaremos sobre cada uma das hipóteses levantadas e a
consequente repercussão destas. Notaremos como a Cosmologia evolucionária do
autor advém de uma posição metafisicamente constituída.
Nosso estudo iniciar-se-á como as distinções acerca dos diferentes campos do
saber. Visualizaremos as três grandes classes das Ciências: a Matemática, a Filosofia
e a Idioscopia ou Ciências Especiais. Feitas estas separações nos deteremos na
Fenomenologia do autor.
No interior da Ciência da Fenomenologia, primeira Ciência Positiva da Filosofia,
trataremos das simples faculdades exigidas por esta Ciência para o alcance de seus
objetos: ver, atentar para e generalizar.
A Fenomenologia, cujo objeto é inventariar e catalogar os fenômenos tais quais
se apresentam na mente, responde a pergunta sobre como o mundo aparece. Para
tanto, semeadas por aquelas simples faculdades, veremos florescer de dentro da
desta Ciência as Categorias da Experiência: primeiridade, segundidade e terceiridade
Entretanto por ser a Ciência Fenomenológica confinada ao mundo das
aparências, deveremos nos perguntar sobre como o mundo deve ser para que nos
6
apareça desta maneira e não de outra qualquer? A partir deste questionamento já
adentraremos o terreno Metafísico.
Mostraremos como as Categorias da experiência evidenciadas no primeiro
momento pela Fenomenologia compõem o próprio substrato ontológico do real.
Notaremos como a primeiridade refere-se diretamente ao Acaso, assim como a
segundidade à Existência e a terceiridade à Lei.
A partir da relação tensional entre Acaso, Existência e Lei iremos aos
fundamentos da Metafisica peirciana, o que nos possibilitará tratarmos de sua
Cosmologia Evolucionista e sua matriz indeterminista.
Buscaremos mostrar a ampla crítica peirciana ao determinismo, que ao
considerar apenas o aspecto Lei do real, nas últimas consequências reduz a
Sociologia a uma certa “Física Social” e a Psicologia a uma “Física da Psique”,
colocando em cheque inclusive a liberdade humana.
Examinaremos a análise peirciana acerca da autocontraditória hipótese da
incognoscibilidade do Ser. Desta análise, somada à posição Metafísica do filósofo
sobre o real, isto é, a relação tensional entre Acaso, Existência e Lei, notaremos a
constituição da Doutrina do Falibilismo.
Buscaremos compreender as relações entre aquilo que chamamos universo
material e aquilo que chamamos universo mental. Para tanto regressaremos ao
estágio zero do cosmos conjecturando sobre a natureza da substância e das leis
físicas e psíquicas.
Inventariaremos as possibilidades de resposta a este problema. Para tanto
serão abordados a posição dualista cartesiana (res cogitans e res extensa), a monista
ou neutralista, a materialista e a idealista.
A partir desta investigação, observaremos as críticas de Peirce às respostas
cartesiana, monista e materialista. Desta maneira anunciaremos que a única teoria
inteligível do universo é a do idealismo objetivo.
Por fim, uniremos à investigação acima citada a de outro conceito chave na
arquitetura Metafísica do autor: o continuum. Este conceito que, em grande parte das
vezes, identifica-se com a plena possibilidade será de fundamental importância tanto
7
para uma boa investigação do idealismo objetivo peirciano, quanto para nosso estudo
acerca do estágio zero do cosmos.
8
Das Obras Principais e da Metodologia
Em nosso Trabalho de Conclusão de Curso utilizaremos como obra primordial
o livro “Kósmos Noetós, a Arquitetura Metafisica de Charles S. Peirce”, de autoria de
nosso professor orientador Dr. Ivo Assad Ibri.
Iremos, através da exposição de nosso orientador, buscar os pontos
fundamentais dos argumentos peircianos nos diferentes temas por ele investigados,
com o intuito de convergi-los todos na Cosmologia de Peirce e em seu idealismo
objetivo.
Algumas vezes iremos diretamente aos Collect Papers of Charles S. Peirce,
principalmente no que diz respeito ao volume VI, no qual é tratado de forma mais
específica nosso tema central e as discussões que o circundam.
Nossa metodologia consistirá, em resumo, em seguirmos os passos já trilhados
por nosso orientador. Sua obra, ao mesmo tempo em que esmiúça o pensamento
peirciano retirando dele seu néctar mais salutar, coloca Peirce em diálogo com
filósofos como Platão, Aristóteles, Descartes, Kant e Schelling, ganhando-se assim,
em larga medida, profundidade.
Contudo, também nos debruçaremos, mais especificamente, seja na obra
Cosmos Noetós, seja nos Collected Papers of Charles S. Peirce, naquelas partes em
que mais nos serão úteis para a perquisição de nosso tema central: o idealismo
objetivo de peirciano.
9
I. Do Mundo como Aparência
Iniciando nossos trabalhos, notamos que, de plano, Peirce divide as Ciências
em três grandes classes: a Matemática, a Filosofia e a Idioscopia ou Ciências
Especiais. Numa Rápida definição dessas disciplinas, a Matemática “constrói seus
objetos na forma de hipóteses, sem, contudo, lidar com questões de fato”1. A
Idioscopia ou Ciências Especiais produzirá suas construções a partir de observações
especiais, tal como acontece na Física, Química etc. Enquanto que a Filosofia, será a
Ciência que examinará a experiência cotidiana “buscando afirmar o que sobre ela é
verdadeiro”2
Não pertencendo ao escopo deste trabalho a Matemática e a Idiscopia,
voltemos nossa atenção à Filosofia. Esta Ciência, por sua vez, será subdividida em
três grandes grupos, a saber a Fenomenologia, as Ciências Normativas e a
Metafísica.
Feitas estas separações, discorreremos especificamente sobre a
Fenomenologia, objeto deste primeiro capítulo. Para Peirce a “Fenomenologia é a
primeira das Ciências positivas da Filosofia”3 podendo também ser chamada de
Faneroscopia ou Doutrina das Categorias e terá como objetivo “efetuar um inventário
das características do faneron ou fenômeno”4. Fenômeno na filosofia peirciana será
entendido como “o total coletivo de tudo aquilo que estará de qualquer modo presente
na mente, sem qualquer consideração se isso corresponde a qualquer coisa real ou
não”5, disso decorrerá que a percepção de um objeto, um sonho, um pensamento, ou,
de forma geral, qualquer coisa concebível ou pensável serão um fenômeno.
Tendo como objetivo efetuar um inventário das características do faneron ou
fenômeno a Fenomenologia, para o cumprimento dessa empreitada e necessitando
manter seu caráter de cientificidade, deverá superar as idiossincrasias da experiência
individual de forma a possibilitar generalizações. Caso contrário nos veríamos presos
1 IBRI, Ivo Assad. Kósmos Noetós. São Paulo. Paulus, 2015. p. 21. 2 Loc. Cit. 3 Loc. Cit. 4 Ibidem, p. 22. 5 Cp. 1.284.
10
apenas aos aspectos particulares da experiência, não derivando daí qualquer
conhecimento universal.
A realização desse projeto será possível já que o “aspecto particular da
experiência será irrelevante”6 pois “o que a entretecerá será um modo geral de ser
que permeia toda experiência”7.
A experiência sobre a qual se baseia a Filosofia será definida como “o inteiro
resultado cognitivo do viver”8 sendo ela o próprio curso da vida. Possuirá ainda um
duplo aspecto, por um lado será fonte do poder humano de gerar ideias e por outro
terá um aspecto corretivo do pensamento. Gradualmente filtrará e separará as ideias
falsas das verdadeiras.
Podemos afirmar que a experiência é nossa única mestra, não no sentido
empirista inglês do termo, mas sobretudo no sentido em que o poder humano de
originar ideias verdadeiras é constantemente ameaçado por um oceano de noções
falsas, “o que a experiência gradualmente faz é, por uma espécie de fracionamento,
precipitar e filtrar as ideias, eliminando-as e deixando a verdade verter em sua corrente
vigorosa”9
Entretanto a Fenomenologia não se pretende uma Ciência da realidade já que
“buscará escrutinar as classes que permeiam toda experiência comum, ficando restrita
às suas aparências”10. A pergunta: como deve ser o real para que ele apareça assim?
Será objeto de outra Ciência que veremos detalhadamente adiante, a Metafísica.
Isto posto, a Fenomenologia não requererá modos especiais de observação,
entretanto recomendará ao estudioso da fenomenologia “abrir os olhos mentais, olhar
bem para o fenômeno e dizer quais características que nele nunca estão ausentes”11.
Fica evidenciado por essa recomendação as três faculdades necessárias ao
exercício da Fenomenologia: a primeira é “ver o que está diante dos olhos, tal como
se apresenta sem qualquer interpretação”12, a segunda faculdade é “uma
6 IBRI, Op. Cit. p. 22. 7 Loc. Cit. 8 CP. 7.527 9 CP, 5.50 EP 2.153 10 IBRI, Op. Cit. p. 22. 11 CP 5.41. EP2.147 12 Loc. Cit.
11
descriminação resoluta que se fixa como um bulldog sobre o aspecto específico que
estejamos estudando”13, e , por fim, como terceira faculdade aparece “o poder
generalizador do matemático, que produz a fórmula abstrata que compreende a
essência mesma da característica sob exame”14. Podemos sintetizar as três
faculdades fenomenológicas em “ver, atentar para e generalizar”15
A partir destas três faculdades Peirce reduz os modos de ser da experiência a
três Categorias universais, suficientes e irredutíveis para o propósito da Ciência
Fenomênica. Serão elas a primeiridade, a segundidade e a terceiridade. Seguindo os
passos de nosso orientador, exporemos em primeiro lugar a Categoria da
segundidade, para que ganhemos em clareza e inteligibilidade.
A segundidade pode ser entendida como o mundo que acontece
independentemente da vontade daquele que nele está. Como o outro em relação a
um primeiro, como alteridade. “Há neste elemento da experiência uma consciência de
dualidade entre duas coisas: uma que age e outra que reage ao modo de binaridade
de forças”16. Desta relação ação-reação decorre a ideia de negação, no sentido em
que a experiência bruta, sem mediações, se opõe a.
“Esse caráter individual do segundo, que se opõe aqui e agora ao sujeito,
conferindo-lhe uma experiência de dualidade torna-se para o ego sua negação, ou
seja, um não-ego”. A partir da experiência do segundo, isto é, do não eu, tornamo-nos
conscientes do eu. Como se o território do eu fosse delimitado pela experiência bruta
daquilo que não é ele.
Nota-se o caráter realista da filosofia de Peirce. A gênese da consciência do
eu, ao contrário da filosofia cartesiana, não surge de uma dúvida formulada artificial e
conceitualmente, interna ao cogito. O “eu” está no caráter imediatamente bruto do
“não eu”, em sua alteridade.
Em mais um aspecto, o segundo se faz presente também de forma interna, na
coleção de experiências pretéritas que possuímos. Assim como a água que passa
embaixo da ponte nunca voltará, somos constituídos de fatos pretéritos que se tornam
13 Loc. Cit. 14 Loc. Cit. 15 IBRI, Op. Cit. p. 25. 16 Ibidem, p. 26.
12
um segundo para nós mesmos, de maneira que nada podemos realizar no presente
que alterará o realizado no passado. O que podemos, com relação a esse outro em
nós, é estabelecermos mediações.
A partir destas mediações temos que o “passado como ego é passado
generalizado e, portanto, mediatizado numa representação geral que, como tal,
assume o estatuto do resultado cognitivo do viver”17
No próprio conceito de segundidade está a ideia de segundo em relação a um
primeiro e é sobre este último que repousa a Categoria da primeiridade: “a ideia de
Primeiro é predominante nas ideias de novidade vida e liberdade”18 já que estas ideias
decorrem daquilo que é original, diferente, único, no sentido de ser “sem referência ou
relação com qualquer outra coisa”19.
A Categoria da primeiridade não está em relação com qualquer outra coisa. Ela
é pura possibilidade, presentidade. É, na verdade, a origem de tudo aquilo que é
espontâneo, não condicionado, livre, a tudo aquilo não submetido a causalidade, a
leis.
A única descrição plausível da primeiridade é, metaforicamente, como um
contiuum de plena possibilidade, na qual não impera a necessidade, já que esta é da
ordem da Lei. Podemos dizer que experimentamos a primeiridade quando
mergulhamos no oceano do absoluto, quando nos perdemos a nós mesmos,
abandonamos os nomes, as comparações e apenas comtemplamos, sem mediações,
os fenômenos.
Assim como a apreciação de uma bela obra de arte, ou de um aroma, ou de
um som, ou mesmo um sentimento sentido ao se contemplar uma belíssima
paisagem. “É bastante simples que tudo o que está imediatamente presente para um
homem é o que está na sua mente no instante presente. Toda sua vida está no
presente”20.
17 Ibidem, p. 29. 18 CP. 1.302. 19 IBRI, Op. Cit. p. 30 20 CP. 1.304
13
Interpor qualquer instância analítica na mente para mediar conceitualmente o
conteúdo do sentimento é perde-lo em sua presentidade, uma vez que a
análise envolve comparação com uma experiência pretérita.21
Este sentimento não mediado, apenas contemplado ou sentido em sua
presentidade, que se furta a descontinuidade conceitual, receberá o nome de talidade:
“excluímos o aspecto de factualidade do passado e de intencionalidade para um
futuro, a forma lógica deste estado de consciência é mera possibilidade”22
Quando da experiência da primeiridade, que é puro presente imediato,
tentamos conceitualizá-la, defini-la acabamos por perde-la. A primeiridade se
confunde com o ilimitado, com o continuum de possibilidades, ela só pode ser na
medida em que é sentida ou contemplada. Ao buscarmos sua adjetivação,
conceitualização, apanhamo-la do seu estado de possibilidades ilimitadas e a
circunscrevemos no descontínuo temporal, limitando-a num aqui e agora.
Vimos até aqui as Categorias da segundidade e da primeiridade, aquela
caracterizada como a experiência bruta do “não ego”, enquanto está sendo pura
potencialidade e presentidade. Por terceridade, última Categoria a ser apresentada,
temos o elemento mediador já que “terceridade, no sentido da Categoria é o mesmo
que mediação”23
Como elemento de mediação, o pensamento não poderá ser desvinculado do
passado e destituído de intencionalidade para um futuro. A terceira Categoria é aquela
que mediará o passado, isto é, criará aparatos racionais e inteligíveis sobre ele, para
que no futuro sejam desenvolvidos novos hábitos visando a adaptação à realidade.
Racionalidade, conceitualização, interpretação, linguagem, hábito, tudo aquilo
que diz respeito a generalidades, tudo aquilo que possui aspecto de Lei corresponderá
ao espectro próprio da terceira Categoria.
Diante dos fatos brutos (segundidade), conhecemo-los por seus hábitos,
percebendo sua “linha mundo”. Através da percepção dos fatos passado conseguimos
inferir a ação futura. Conhecer é, de certo modo, estar apto a prever.
21 IBRI, Op. Cit., p. 31. 22 Loc. Cit. 23 CP. 1.328.
14
Sendo a terceridade a Categoria responsável pelas generalizações será
também esta Categoria que nos possibilitará lançarmos mão de prognósticos, nas
palavras de Peirce, “cinco minutos de nossa vida consciente dificilmente passarão
sem que façamos algum tipo de previsão”24.
Por fim percebemos que “a ação humana está em geral prenhe de expectativas
engendradas em experiências bem-sucedidas dentro de irregularidades já
constatadas no mundo”25. Racionalizar, conceituar, interpretar serão intrinsecamente
necessários a esta Categoria. Será ela extremamente necessária para que
quebremos a crosta do fato bruto, para assim sermos capazes conhece-los e,
portanto, prevê-los.
Inventariamos os três modos de ser do fenômeno, que em última análise,
constituem as três Categorias peircianas, entretanto devemos refazer a pergunta que
outrora fizemos: como deve ser o mundo para que este nos apareça desta maneira?
No capítulo seguinte pretenderemos responder a contento tal indagação.
24 CP. 126. 25 IBRI, Op. Cit., p. 38.
15
II. Do Mundo como Realidade
“A Fenomenologia, confinada ao universo das aparências, simplesmente
escrutinizou os elementos pertinentes a toda experiência”26, evidenciando, desta
maneira, as três Categorias fenomenológicas: primeiridade, segundidade e
terceiridade.
Como visto, estas Categorias se apresentam externa e internamente no
indivíduo. Entretanto “talvez se possa contestá-la como Ciência, já que esse título
impregna as mais sofisticadas abstrações e conclusões de cunho experimental e
lógicos”27.
A resposta a essa possível contestação está no fato de, por um lado a
Fenomenologia ter caráter universal devido a abrangência de suas três Categorias, e,
por outro, estar a Ciência Normativa da Lógica a serviço da Ciência Positiva
Fenomenológica. No primeiro caso o caráter universal da Fenomenologia pode ser
constatado por qualquer um que se proponha à pesquisa Fenomenológica, no
segundo, vemos que a Ciência Normativa da Lógica deriva sua existência da Ciência
Positiva Fenomenológica e não o contrário. Isto garante incontestavelmente o
aspecto científico da Fenomenologia peirciana. Nas palavras do próprio Peirce:
A Ciência da Fenomenologia, é, na minha visão, a mais primária das Ciências
positivas. Isto é, ela não é baseada, no que respeita a seus princípios, sobre
qualquer outra Ciência positiva. Por Ciência positiva considero uma
investigação que procura pelo conhecimento positivo, isto é, por aquele
conhecimento que pode ser expresso em uma proposição categórica.28
Como Ciência das aparências, a Fenomenologia não tem por objetivo
afirmar sobre o que é ou deve ser, mas apenas constatar e classificar aquilo que está
apresentado de modo difuso no mundo, se afeiçoando muito mais à Matemática, do
que propriamente à Lógica.
26 IBRI, Op. Cit., p. 41 27 Ibidem, p. 42 28 CP 5.39 EP 2.144
16
Enquanto a Matemática também não se pretende como uma Ciência
afirmativa do real, concluindo apenas as consequências dos problemas por ela
mesma colocados, a Lógica, por seu turno, trata da validade ou não validade do que
se propõe como sendo verdadeiro ou falso
Temos, então, que “a Fenomenologia, que se encontra exatamente na
fronteira da puramente hipotética Ciência da Matemática, dificilmente faz quaisquer
asserções explícitas”29.
Portanto a Fenomenologia não pretende concluir verdadeiramente nada.
Ao contrário de Aristóteles, Hegel e Kant, Peirce restringe-se aos modos de ser das
aparências para a elaboração das Categorias. Nos outros pensadores suas
Categorias são resultado interno dos seus sistemas Lógicos. Nota-se a oposição
“entre a gênese fenomenológica das Categorias peircianas e a gênese lógica das
Categorias dos três autores mencionados”30
Diferentemente da Fenomenologia a Metafisica será uma Ciência da
realidade e deverá ter o procedimento e estratégia de uma Ciência Especial, isto é,
seus argumentos deverão passar pelo crivo da Lógica. Como observamos na própria
obra de Peirce “de fato, pode ser dito que dificilmente existiu um metafísico de primeira
linha que não tenha feito da lógica a pedra basilar da metafísica”31
Observamos nesta passagem que o filósofo de maneira alguma prescinde
da Lógica, sobretudo no que tange a Metafísica pois, nas palavras do próprio Peirce:
Parece que uma metafísica não fundada na Ciência da lógica é, de todos os
ramos de investigação científica, o mais trôpego e inseguro, e absolutamente
inadequado para suporte de um assunto tão importante como a lógica, que
deve, de seu lado, ser utilizada como base para as Ciências mais exatas e
suas mais profundas belas questões.32
Vimos a necessidade da Metafisica ter na lógica sua pedra angular,
contudo devemos ter em mente os campos de cada uma, enquanto a lógica é a
29 Ibri, Op. Cit., p. 43 30 Apud IBRI, 2015, p. 43 31 CP 1.282 32 CP 2.36, CP 1.487, CP 1.624, EP 2.30 3 1.625, EP 2.31.
17
filosofia do pensamento a metafísica é a filosofia do ser, e, por isso mesmo, querer
“fundar a lógica na Metafisica é um esquema insano”33
A Lógica, como Ciência experimental ou positiva, não poderá adotar
arbitrariamente suas premissas, paralelamente a filosofia também não poderá
escolher seus primeiros princípios, deverá aceita-los como eles são. De forma quase
que oposta, a Matemática, por não ser uma Ciência positiva, é livre para afirmar o que
quiser, desde que de modo consistente. Podemos ler isto num dos trechos do filósofo
A matemática não é uma Ciência positiva; pois o matemático mantém-se livre
para afirmar que A é B ou que A não é B, tendo como única obrigação, na
medida em que diz que A é B, de fazê-lo consistentemente. Mas a lógica
principia por ser uma Ciência positiva; desde que existem algumas coisas em
relação às quais o lógico não está livre para supor que elas são ou não são;
mas reconhece uma compulsão sobre si para afirmar uma e negar outra.34
Tal fato evidencia um elemento de alteridade no interior da Lógica e da
Filosofia e, portanto, concluímos que há de estar também no interior da Metafísica. A
Ciência Metafísica decorrerá da aceitação dos princípios Lógicos e das Verdades do
Ser, decorrendo daí que “a raiz de todo ser é o Uno; e na medida em que sujeito
diferentes têm um caráter comum, eles participam de um ser idêntico”35.
Para Peirce, a Metafísica é uma Ciência altamente abstrata, contudo se
encontra numa condição de deplorável atraso. Não por estar além da possibilidade de
cognição humana, e nem pelo próprio fato de ser ela uma Ciência abstrata, já que
quanto mais abstrata é uma Ciência, mais fácil ela se torna. Exemplo disto é a
Matemática que “é acentuadamente mais abstrata que a metafísica e certamente mais
desenvolvida que qualquer Ciência especial”36.
Na verdade, o que ocorre com a Metafísica é estar sendo ela
fundamentada em tipos de “fenômenos com os quais a experiência do homem está
tão saturada que ele, naturalmente, não lhes dá atenção particular”37 e, de forma
alguma, a qualquer dificuldade intrínseca a própria Ciência.
33 CP 2.168 34 CP 3.428, apud IBRI, p. 45 35 CP 1487 36 IBRI, Op. Cit., p. 47 37 Ibidem, p. 48
18
Tendo como objeto “estudar os aspectos mais gerais da realidade e dos
objetos reais”38 a Metafísica peirciana recorrerá a Jonh Duns Scotus que cunhou o
termo realidade, para designar aquele modo de ser que é independentemente de
qualquer subjetividade. Tendo Scotus como um dos alicerces de sua filosofia Peirce
nos diz que
Os objetos são divididos em ficções, sonhos etc., de um lado, e realidades,
de outro. Os primeiros são aqueles que existem apenas porque você, ou eu,
ou alguém os imagina, os últimos são aqueles que têm uma existência
independente da sua ou da minha mente, ou de qualquer número de pessoas.
O real é aquilo que não é o que eventualmente dele pensamos, mas que
permanece não afetado pelo que possamos dele pensar.39
Nota-se aqui aquele elemento de alteridade no interior da Metafísica. Aquilo
que é real é por si próprio, não necessitando que seja pensado ou percebido,
constituindo-se num não-ego, num elemento de alteridade. De forma oposta, os
objetos não reais constituídos pela imaginação ou inconsciente humano não possuem
força compulsiva para a consciência. Não são possuidores de exterioridade e,
consequentemente, não se constituem como um segundo que insiste contra a própria
consciência.
Os objetos reais são para além da consciência que os representa,
permanecendo independentes. Mesmo nos universos das Artes e da Matemática que
se “assemelham por engendrarem dentro de si o objeto de suas representações”40
existem certos elementos de alteridade. Por exemplo, na dúvida do pintor sobre que
cor usar, ou na do músico sobre que timbre soará melhor na composição, ou mesmo
da insistência que um problema possa exercer sobre a mente de um matemático.
Contudo “tão logo a volição do fazer se desfaz, desfaz-se também a
insistência do objeto”41. Esta não é a ideia genuína de segundo. Este permanece
insistindo contra ela, é fato duro, exigindo da mente racionalidade, mudanças de
hábitos, mediações.
38 CP 6.6 39 CP 8.12; EP 1.87-88; W 2.467-468, apud IBRI, p. 50 40 IBRI, Op. Cit., p. 50 41 Loc. Cit.
19
Na ideia de realidade, a Segundidade é predominante; pois realidade é aquilo
que insiste, forçando seu modo de ser à recognição como alguma outra coisa
que não a criação da mente.42
Extraímos daí que este certo aspecto de alteridade no interior das Artes e
das Matemáticas não pode ser interpretado como um segundo genuíno. Pois só há
verdadeira alteridade quando esta se impõe brutalmente contra aquela mente, de
forma a exigir dela mediações.
É só a partir da ideia de alteridade que há condição de possibilidade de
afirmarmos que algo é verdadeiro. Diferentemente da Matemática, a qual seu objeto
é construído no interior de sua própria linguagem e seu valor de verdade é decorrente
da consistência ou não das construções argumentativas e sintáticas.
Já na Filosofia o valor de verdade reside justamente na adequação da
representação a um objeto que lhe é exterior. Por de trás deste argumento peirciano
parece-nos surgir suas influencias medievais acerca da concepção de verdade:
veritas adequacio intellectus ad rem. A verdade é a adequação do intelecto à coisa.
Entretanto não fazemos esta afirmação de forma categórica, apenas indicamos tal
questão como futura fonte de pesquisa.
Isto posto, notamos que da alteridade relativa à segunda Categoria se
estatui a ideia Metafísica de Existência. Na própria etimologia do conceito existir, do
latim “ex-sistere”, “sair da cisterna”, vemos o segundo que se opõe ao outro. Donde
decorre que “a existência é caracterizada por suas oposições binárias, em que cada
coisa é por não ser outra”43.
Dizer que algo possui existência é o mesmo que dizer que este algo está
em oposição a outro. Um livro que possua existência terá um peso (atração
gravitacional), estará sujeito a lei da inércia, (dinamicamente reage com outras
coisas), terá capacidade definida de calor etc. Dizer que um livro possui existência
42 Loc. Cit. 43 IBRI, Op. Cit., p. 53
20
sem que este tenha a capacidade de produzir qualquer efeito físico, é falar de um livro
imaginário. “Uma coisa sem oposição, ipso facto não existe”44
Contudo não podemos reduzir a realidade a mera existência, o próprio fato
da existência ser a permanente oposição a, já traz consigo a ideia de uma regularidade
incontroversa. Ao reconhecermos a insistência da alteridade do segundo em oposição
a mente, notamos a generalidade exterior como o fundamento da generalidade do
pensamento, como representação mediadora.
Podemos observar mais um eixo da Metafisica peirciana, já que ao
dizermos ser a existência uma reação a, uma oposição binária de forças, dizemos, em
verdade, que há uma generalidade na existência. Uma reação repetida produze duas
reações, mas se estas prosseguem por um período isto já envolve certa regularidade,
e, consequentemente, a terceira Categoria.
Estes dois eixos da metafísica peirciana (alteridade e generalidade),
revelam, portanto, a existência do universo dos individuais que permanentemente
agem e reagem entre si e, desta permanente insistência de ação-reação, o universo
da regularidade, da universalidade.
A questão dos universais é afeita não apenas às relações entre os termos
e seus referentes, mas, de modo mais amplo, às relações entre o geral e o particular
sob o ponto de vista da Lógica e da Metafísica. Tais atributos (da generalidade e da
alteridade) estão relacionados a leis naturais reais.
A generalidade da lei não se pode confinar a uma representação de um
arranjo contingente de individuais. A conformação da previsão com o curso dos
eventos no tempo faz pensar que a regra contida na representação é real. A regra
possui um esse “in futuro” que é o que lhe confere seus dois atributos de realidade:
alteridade, que lhe faz extensa no tempo e no espaço e o predicado de uma
multiplicidade de individuais.
44 CP 1.457, apud IBRI, p. 53
21
A representação está tensionada permanentemente para o curso da
experiência “in futuro”. As teorias cientificas não podem ser substituídas por um ato
de arbitrariedade, mas pela alteridade da experiência do sujeito do pensamento.
A condição de possibilidade de qualquer cognição é a generalidade que se
força contra a própria consciência cognoscente, fundamentando-a. Generalidade real
é terceiridade na sua condição de realidade. A Lógica guia a Metafísica na sua
admissão de que entidades gerais são reais; neste sentido, inequivocamente, Peirce
pode ser considerado como um realista escolástico, como ele mesmo o afirma, “eu
mesmo sou, até certo ponto, um realista escolástico de um tipo estremado”45
Temos agora, até o presente estágio de desenvolvimento da
argumentação, que a Metafísica peirciana está fundada, na ordem do dever ser, na
“segundidade e na terceiridade como a realidade da lei e a determinação da
existência”46.
Contudo vemos no mundo elementos de aleatoriedade e variedade,
conforme fora inventariado pela Fenomenologia. Não haveria, portanto, espaço para
a primeiridade como Categoria ontologicamente constituinte da própria realidade?
Não seria ilógico admitir que na segunda e terceira Categorias fundassem princípios
de aleatoriedade observados na experiência quotidiana?
As palavras de Peirce são certeiras a este respeito:
Vocês podem notar por si mesmos que lei prescreve resultados semelhantes
sob circunstâncias semelhantes. Isto é o que a palavra lei implica. Por
conseguinte, toda a exuberante diversidade da natureza não pode ser
resultado da lei.47
A partir do rigor lógico somos conduzidos a aceitarmos mais um “princípio”
como ontologicamente constitutivo da realidade. Responsável pela aleatoriedade
produtora da diversidade constatada anteriormente pela investigação
fenomenológica.
45 CP 5.470 46 IBRI, Op. Cit., p. 64. 47 CP 1.161
22
Se lei não produz variedade, mas regularidade, há espaço, no nível
Metafísico, para a Categoria da primeiridade, a qual funda-se sob o “princípio”
ontológico do Acaso. “Essa é a própria concepção de distribuição fortuita que nos traz
a ideia de primeiro, conforme conceituada na Fenomenologia – ele não tem outro que
lhe condicione o modo de ser”48 é da sua própria natureza ser primeiro, e aquilo que
é primeiro é Acaso.
Retornemos a pergunta inicialmente proposta, como deve ser o real para
que ele apareça assim? Ora, agora parece-nos que temos condições de principiar
esta difícil resposta.
Conforme as palavras de nosso orientador “poderemos sintetizar as três
Categorias ao nível metafísico concebendo-as como Acaso, Existência e Lei. São
esses os modos de ser que entretecem a realidade de como o mundo nos aparece”49.
Como já visto o Acaso será aquilo pelo qual é possível a distribuição fortuita
de eventos e propriedades, o que engendra a variedade e a diversidade constatáveis
na natureza. A Existência consistirá em suas oposições binárias, em que cada um é
por não ser outro, revelando o alter que persiste contra a mente. Por fim, a Lei que
prescreve resultados semelhantes sob condições semelhantes, permitindo assim a
mediação da mente cognoscente. Temos então como modos ontologicamente
constitutivos do real a primeiridade, segundidade e terceiridade. Ou, em outras
palavras, a realidade é a relação tensional entre Acaso, Existência e Lei.
Esboçamos a resposta àquela questão inicial, contudo, a partir desta
resposta, nos são trazidas em consequência outras, não de menor importância, mas
extrema relevância para o desenvolvimento de nossa investigação acerca da Filosofia
peirciana.
Como seria possível a geração ou constituição mútua entre Lei e Acaso?
Como poderíamos lidar com a ruptura da causalidade estrita no interior da Metafísica
peirciana? Pode o Acaso ser tomado como “princípio” explicativo do Ser?
48 IBRI, Op. Cit., p. 65 49 Loc. Cit.
23
No seguimento do presente trabalho procuraremos responder a estes
questionamentos, os quais nos darão oportunidade de discorrermos sobre pontos
centrais na filosofia de Peirce, tais como seu indeterminismo e sua matriz
evolucionista.
24
III. Da Cosmologia Peirciana
No fim do capítulo anterior levantamos propositadamente algumas
questões que tratam de pontos cruciais, não só da Filosofia peirciana, como também
de qualquer investigação séria acerca da constituição do real. Começaremos por
esboçar suas respostas nesse capítulo.
Discorremos relativamente sobre a ontologia indeterminista de Peirce, seu
evolucionismo, bem como delinearemos de forma mais precisa sua concepção de
Acaso como o princípio responsável pela diversidade e variedade constatadas na
natureza.
Ao chamarmos Acaso “princípio responsável”, de maneira alguma
queremos atribui-lo qualquer estatuto de “causa”, o que seria mais apropriado ao
universo da Lei. “Como princípio, ele é um modo de ser correlacionado com
irregularidade e assimetria atinentes com o que está imediatamente presente nos
fatos”50.
Como já visto, o Acaso é da ordem da primeira Categoria, a Categoria da
liberdade, da possibilidade, da criatividade. Como um modo de ser que suscita a
diversidade e variedade da natureza faz como que “a segundidade do fato não seja
estritamente regida pela terceiridade da lei”51, já que as assimetrias e irregularidades
presentes no mundo estão para além da estrita dimensão da terceira Categoria.
A partir da introdução do Acaso como “princípio” ontologicamente
constitutivo do real, rejeita-se, consequentemente, a ideia de um mundo estritamente
causal, isto é, regido por leis de causa e efeito indefectíveis, como um relógio, no qual
cada engrenagem conecta-se a outra promovendo a interdependência do todo em
relação a cada parte.
Para termos uma maior clareza na exposição do presente tema
recorreremos a teoria das probabilidades, a qual enuncia que eventos independentes
50 Ibidem, p. 67 51 IBRI, Op. Cit., p. 68
25
ocorrem sem vinculações de qualquer natureza. Não há qualquer condicionamento
dos eventos sucessivos em relação aos eventos anteriores.
Podemos atestar esta teoria através da ilustração de um corriqueiro jogo
de dados. Imaginemos que na primeira jogada efetuada nos apareça o número três.
Imaginemos uma segunda jogada, na qual ocorra o número um. Novamente, em mais
uma, em que desponte o número seis.
Perguntamos após os três lances, qual o condicionamento ou, no mínimo,
qual a relação entre o resultado primeiro, segundo e terceiro? Respondemos de modo
indubitável. Nenhum condicionamento e nenhuma relação.
O evento primeiro ocorre independentemente do evento segundo e vice-
versa. Por sua vez, o evento terceiro em nada diz respeito aos dois eventos anteriores.
Não há relação causal entre nenhum destes resultados.
O exemplo acima nos faz concluir que o Acaso é este modo de ser que
confere liberdade entre os eventos particulares. Podemos estender este raciocínio a
multiplicidade que se constata numa mesma espécie em que cada ser conserva em
si propriedades e arranjos próprios não encontradas da mesma maneira em nenhum
outro organismo daquela espécie.
Dos organismos unicelulares ao homem, em cada indivíduo da mesma
espécie há espaço para características diferentes. A natureza é resultado também da
espontaneidade e diversidade deste modo de ser.
Acaso, então, como um fenômeno objetivo, é a propriedade de uma
distribuição. Suponha-se uma grande coleção consistindo, digamos, de
coisas coloridas e coisas brancas. Acaso é a maneira particular de
distribuição de cores entre todas as coisas.52
Notamos a partir desta passagem que o Acaso assume o papel de “livre
pintor das coisas”, da distribuição fortuita das propriedades gerais em cada ser
individual.
Não há razões, a partir da mais simples observação Fenomenológica, para
pensarmos que toda a natureza estaria completamente determinada pela Lei. Se Lei
52 Loc. Cit.
26
produz semelhança como explicaríamos a diversidade constatada seja numa espécie,
seja na variedade de espécies, ou, de forma geral, no cosmos?
Assim o Acaso faz com que “a segundidade do fato não seja estritamente
regida pela terceiridade da lei”53, mas dota a realidade de um modo de ser vinculado
à espontaneidade, o que fora conferido pelo caráter primeiro do Acaso.
Antes de adentrarmos propriamente nas relações específicas entre Lei e
Acaso, faz-se necessário que tenhamos claro um conceito caríssimo à filosofia
peirciana, a saber, o conceito de qualidade.
Que é, então uma qualidade? Antes de responder tal questão, seria melhor
dizer o que ela não é. Ela não é nada que seja, em seu ser, dependente da
mente, quer na forma dos sentidos ou do pensamento. Nem é dependente,
em seu ser, do fato de que alguma coisa material a possua. Que qualidade
seja dependente dos sentidos é o grande erro dos conceitualistas. Que seja
dependente do sujeito no qual ela se realiza é o grande erro de todas as
escolas nominalistas. Uma qualidade é mera possibilidade abstrata, e o erro
daquelas escolas reside na afirmação de que o potencial, ou possível, nada
é senão que o atual fá-lo ser.54
O Acaso possui papel fundamental no modo pelo qual as qualidades são
fixadas nos individuais. Ao examinarmos as qualidades, vemos que estas por serem
gerais, são vagas e potenciais, entretanto sua ocorrência no mundo se dá de maneira
individual, ipso facto.
As qualidades, apesar de serem concernentes aos fatos, não são os
próprios fatos. Da mesma maneira que uma qualidade esteja presente numa coisa
material não faz dela algo, necessariamente, material.
. Além disso, pelos sentidos percebemos as qualidades, mas elas não
dependem deles. O vermelho no escuro continua sendo vermelho, em outras
palavras, mesmo que nossos sentidos não sejam afetados pelo vermelho devido à
falta de luz, ele lá continua.
Não sendo a qualidade algo que dependa da mente, seja dos pensamentos
ou dos sentidos, nem dependente, em seu ser, de que alguma coisa material a
53 Loc. Cit. 54
27
possua, concluímos que a qualidade possui um aspecto “monádico”, ou seja, ela é o
que é, independentemente de ser pensada ou sentida.
Sendo o Acaso o modo de ser uma distribuição fortuita, necessita-se uma
potencialidade de algo a ser distribuído, isto é, da qualidade no fato. Em outras
palavras, o que é primeiro no que é segundo. Com isso, parece-nos lícito afirmar que
há um par indissolúvel formado por Acaso e Qualidade.
Examinada as relações entre Acaso e Qualidade, passemos agora às
relações entre Lei e Acaso. Começaremos tal exame sob a perspectiva da análise de
uma problemática caríssima à Peirce, a qual o filósofo estadunidense longamente se
debruçou: o determinismo ontológico.
A posição determinista moderna tem seu início a partir das sucessivas
revoluções nas Ciências nos séculos XVI e XVII, com Kepler, Galileu, Descartes,
Francis Bacon, atingindo seu ápice em Newton e estabelecendo-se como mentalidade
cientifica dominante inquestionável até o advento da física quântica.
Estes grandes nomes do pensamento humano nunca se auto intitularam
deterministas, entretanto, a partir das sucessivas revoluções deste período, fora
engendrado um grande “otimismo epistemológico” na mentalidade científica
dominante da época. Nesta toada, supôs-se que as leis do cosmos estariam prontas
e acabas e que o conhecimento humano, por sua vez, encontrá-las-ia todas, do
movimento dos astros as leis da história, tudo seria calculável.
É certo que, como já dito, toda física pós-renascentista nos trouxe inúmeros
avanços no conhecimento do mundo: as leis da cinemática, da dinâmica, do
eletromagnetismo etc. Pela primeira vez na história humana fomos capazes de
calcular as trajetórias sejam das órbitas dos planetas, sejam das quedas de maças
Estes magníficos avanços no campo científico foram o sustentáculo da
crença no determinismo ontológico do mundo, isto é, na concepção de que o universo
é um relógio em que a perfeita causalidade faz às vezes de sua engrenagem.
Lembremos que a fé determinista não se estendeu somente ao
renascimento e à Ciência clássica, mesmo Einstein negou qualquer papel ao Acaso
como ator no teatro do mundo. Para ele, conforme o conhecimento progredisse todas
as indeterminações do cosmos seriam desfeitas.
28
Peirce nos diz que esta posição ou se fundamenta numa extrema
ignorância a respeito da Lógica da Ciência ou o defensor da regularidade exata irá
logo se ver levado a razões a priori para fundamentar sua tese.
Mas, será dito, você se esquece das leis que são por nós conhecidas a priori,
os axiomas da geometria, os princípios da lógica, as máximas da causalidade
e outras tantas mais. Aquelas são absolutamente certas, exatas e sem
exceção. A isto eu replico que me parece existir a mais positiva prova histórica
de que as verdades inatas são particularmente incertas e misturadas ao erro,
portanto, a fortiori não sem exceção. Esta prova histórica é evidente, não
infalível, mas muito forte. Por conseguinte, eu pergunto como você sabe que
a verdade a priori é certa, sem exceções e exata? Você não o pode saber
pelo raciocínio. Pois ele estaria sujeito à incerteza e à imprecisão. Então,
deve-se considerar que você o sabe a priori; isto é, você toma juízos a priori
para sua própria avaliação, sem críticas ou credenciais. Isto é barrar a porta
da investigação.55
Rejeitado o a priori, restar-nos-ia outra variante da crença determinista, a
qual afirma ser o Acaso a medida mesma da nossa própria ignorância.
Esta variante epistemológica determinista nos diz que o acesso ao mundo
da perfectibilidade das leis, em toda a sua determinação, estaria parcialmente vedado
a cognoscibilidade por incapacidades do sujeito cognoscente, caso contrário a relação
de causalidade estrita entre todos os fenômenos do cosmos ser-nos-ia evidente.
Mesmo Einstein não admitira a concepção ontológica do Acaso como
“princípio” explicativo do Ser. Defendia o brilhante cientista que o objeto da
investigação científica seriam leis físicas acabadas. Nesse sentido, caso pudéssemos
eliminar os erros de observação e se estivéssemos num estágio final de observação
“dispensaríamos a teoria da probabilidade e a lógica dos eventos como modelos
grosseiros de representação da realidade”56
Para entendermos a posição peirciana sobre esta problemática, devemos
ter em mente que o americano não se debruçou apenas sobre problemas filosóficos,
mas fora um homem das Ciências Teóricas e Experimentais da Física e da Química,
55 CP 1.144, apud IBRI, p. 75 56 IBRI, Op. Cit., p. 75
29
o que o proporcionava estreita relação como o laboratório, assim conseguimos
compreender que:
Tente verificar qualquer lei da natureza e você descobrirá que quanto mais
precisas suas observações, mais certamente elas evidenciarão afastamentos
irregulares da lei.57
De fato, nossa atenção é chamada para um ponto específico: quanto mais
precisão na condução experimental, tanto menos observaremos a estrita
correspondência do objeto a Lei. De modo que “a precisão da experiência conduz à
descoberta da imprecisão do mundo.”58
Peirce sabia da dificuldade que a concepção de um universo não
plenamente determinado causaria. O filosofo estava ciente do furor que sua teoria
engendraria nas mentes que tentam afastar de si qualquer aspecto tensional do
conhecimento.
Para ele, a crença da perfeita da causalidade, como já dito, é uma fé
moderna que tomou de assaltado as mentalidades científicas, filosóficas etc.
recorramos as suas palavras:
Aristóteles frequentemente afirma que algumas coisas são determinadas por
causas, enquanto outras ocorrem por acaso. Lucrécio, seguindo Demócrito,
supõe que seus átomos primordiais desviam-se de trajetórias retilíneas de
modo fortuito, sem qualquer razão para tanto. Para os antigos, nada havia de
estranho em tais noções: elas eram corriqueiras; estranho teria sido
considerar que não havia acaso.59
Ora, torna-se então evidente que a fé determinista não é uma crença
instintivamente originária, como, por exemplo, aquela em que o espaço tem três
dimensões. O maior argumento para sua refutação é que não encontramos qualquer
fato que a sustente.
Retomemos duas das três perguntas que fizemos no encerramento do
capítulo segundo, tendo em vista que, a partir do que foi exposto, já temos condições
de começarmos a delinear suas respostas. Como seria possível a geração ou
57 CP 1.304; EP W 8.8118, apud IBRI, p. 76 58 IBRI, Op. Cit., p. 76 59 CP 1.403 EP 1.274; W 6.204, apud IBRRI, p. 73
30
constituição mútua entre Lei e Acaso? Como seria possível lidarmos com a ruptura da
causalidade estrita no interior da metafísica peirciana?
Todos aqueles que trabalham com qualquer Ciência que lida com o curso
do tempo notam uma crescente complexificação de seu objeto ao longo do tempo.
Complexificação neste sentido pode ser entendida como sinônimo de crescente
variedade ou diversificação.
Parecer-nos-ia contraditório concluirmos que todas as especificações
arbitrárias do universo se deram num princípio e numa “dose única”, pois o que
constatamos, Fenomelogicamente, é uma complexificação crescente.
Podemos ter como exemplo deste argumento inúmeras Ciências: da
História Natural à Geologia, da Astronomia à História das Constituições do Estados.
Mesmo a linguagem, as instituições, a tecnologia, em suma, tudo aquilo que podemos
pensar no tempo envolve maior complexificação.
Destes fatos claros e onipresentes podemos satisfatoriamente inferir, através
da lógica mais irrepreensível, que há, provavelmente, na natureza, algum
princípio pelo qual a complexidade e diversidade das coisas possa ser
crescente.60
Examinemos por um momento a hipótese de Peirce estar redondamente
enganado, ou seja, que a fé determinista difundida da modernidade a Einstein
correspondam a realidade.
Se estamos neste universo estritamente causal, em última análise, em
algum estágio de determinação no tempo, estaríamos aptos a prever o curso dos
acontecimentos em todas as suas nuanças, inclusive aqueles que dizem respeito à
própria vida interior, as qualidades de sentimentos etc.
Assim, dado o estado do universo na nebulosa original, e dadas as leis da
mecânica, uma mente suficientemente poderosa poderia deduzir destes
dados a forma precisa de cada rabisco de todas as letras que agora estou
escrevendo.61
60 CP 6.57-58; EP 1.307; W 8.122, apud IBRI, p. 77 61
31
Ainda como consequência desta hipótese, estaríamos aptos a concluir que
a própria liberdade humana nada mais seria que uma ilusão, visto que através de um
complexo sistema de equações poderíamos prever a conduta de qualquer indivíduo.
Neste sentido a psicologia estaria reduzida a uma extensão da física, e a
ilusão da vida interior individual repousaria na combinação de aspecto físico-químicos.
A sociologia, por sua, também poderia ser interpretada como uma certa “física social”
na qual, dada as circunstâncias e variáveis necessárias, estaríamos aptos a calcular
todo o “movimento das sociedades”
Como consequência disto estaríamos presos a alguma sociedade distópica
como aquela produzida por Orwell, ou ainda, no Admirável Mundo Novo de Huxley.
Estas “sociedades perfeitas”, a que estes grandes autores se referem, poderiam ser
atingidas não por intervenções progressivas do Estado na vida individual, nem por
guerras ou sangrentas revoluções, mas justamente por ser possível a previsão da
conduta de todo e qualquer indivíduo, de modo que “apenas aqueles cidadãos cujo o
programa previsto de vida fosse pleno de eventos felizes”62 estariam autorizados a
viver.
Da sufocante ideia da plena determinação, retiramos, não de modo
exaustivo, algumas consequências, suficientes para nos perguntarmos acerca de sua
possibilidade real de aplicação. No caso da aceitação das premissas deterministas,
consequentemente nos veríamos obrigados a concluirmos tais efeitos,
necessariamente.
Assim, em resumo, um mundo estritamente determinado pela lei deve levar
às seguintes consequências:
a) Se determinável, recai-se num universo de Orwell ou Huxley;
b) Se indeterminável, configura-se o espectro do incognoscível, hipótese
que nada explica, e por isso se auto contradiz;
c) Os defensores das alternativas a ou b, quando arguidos sobre a origem
da determinação ontológica, ou seja, sobre a gênese das leis, são
levados a:
c. 1 obra de um Criador, conquanto ininteligível;
c. 2 incognoscibilidade.63
62 IBRI, Op. Cit., p. 78 63 Ibidem, p. 80
32
O conceito de incognoscibilidade, defendido por grande parte dos
deterministas, encerra em algumas contradições internas: Se, por um lado, afirmamos
algo como incognoscível, supomo-lo como inexplicável. Por outro se dizemos que este
algo é incognoscível, inevitavelmente, o conhecemos, pelo menos o suficiente para
propormos que seja incognoscível.
Em outro aspecto, a função epistemológica de uma hipótese é buscar a
veracidade ou, ao menos, a verossimilhança entre o conjecturado e o real. Ora, ao se
levantar uma hipótese que enuncia a impossibilidade do conhecimento, esta hipótese
em si mesma é contraditória, seria mais adequado o silêncio.
Supor uma coisa inexplicável é não apenas falhar em explicá-la e, assim,
elaborar uma hipótese injustificável, mas pior ainda, estabelecer uma barreira
no caminho da Ciência é proibir toda a tentativa de entender o fenômeno.64
Examinamos a possibilidade da incognoscibilidade para levantarmos o
traço comum de suas consequências: nelas ocorrem “o traço comum da
irredutibilidade”, isto é, o elemento tensional entre a possibilidade do conhecer e do
não conhecer é retirado, isto do ponto de vista epistemológico.
Sob a perspectiva ontológica, ou o mundo é totalmente determinado ou
totalmente indeterminado. Novamente o elemento tensional é esquecido, barrando
assim a porta da investigação.
Como então podemos conciliar Lei e Acaso de modo que não tenhamos
uma postura anti-tensional, pois como visto, abandonar a tensionalidade é desistir da
investigação.
Para Peirce a explicação que se apresenta como a mais plausível é uma
explicação evolucionária, na qual as próprias Leis estão em processo de evolução.
Mas, se as leis da natureza são o resultado de uma evolução, este processo
evolucionário deve ser suposto ainda em progresso. Pois ele não pode estar
completo na medida em que as constantes das leis não encontraram nenhum
limite possível último.65
Vemos que nos aproximamos mais da resposta àquelas controversas
questões levantadas anteriormente. A relação entre Lei e Acaso começa a se tornar
mais explícita.
64 CP 6.171, apud IBRI, p. 79 65 CP 7.514
33
Se as leis acabadas não estão no início do processo evolucionário, rompe-
se com isto a causalidade estrita no interior da metafísica peirciana. Recorramos mais
uma vez as palavras do filósofo:
Além disso, há outras razões para essa conclusão. Porém se as leis estão
ainda em processo de evolução de um estado de coisas no passado
infinitamente distante no qual não havia quaisquer leis, segue-se que nem
mesmo agora os eventos são absolutamente regulados pela lei66.
Ora, o argumento de Peirce repousa na concepção de que se as leis da
natureza são resultado de uma contínua evolução elas devem proceder de acordo
com algum princípio, entretanto este princípio será, em si, da natureza de uma Lei.
Consequentemente esta Lei poderá evoluir por si mesma.
Na linguagem das Categorias peircianas, se afirmamos que as leis derivam
de um estado de coisas caótico incialmente, então “a terceiridade real resulta
evolucionariamente da segundidade que caracteriza a existência, regida nos seus
primórdios, pela primeiridade que subsume o Acaso.”67
Da hipótese peirciana acerca da origem das leis decorrem duas
consequências de ordens distintas. A primeira, de teor metafísico, sobre a possível
matriz comum entre o universo mental e o universo material. A segunda, de caráter
epistemológico, nos diz que, à luz da matriz evolucionista, o objeto do conhecimento
está destituído de determinação final.
Metafisicamente se a exterioridade material tem sua conduta moldada pela
generalidade da lei e supondo que a gênese da terceiridade real possua uma
tendência a aquisição de hábitos, “licita-se conjecturar sobre a natureza mental da
matéria”68 e “essa tendência como uma eminente lei do universo”69.
Epistemologicamente, se o objeto do conhecimento está destituído da
determinação final, a experiência não autoriza a representação da necessidade
estrita, já que “seria absurdo pretender que a representação daquelas leis contenha
uma determinação que a evolução ainda não lhes conferiu”70
66 CP 7.514, apud IBRI, p. 81 67 IBRI, Op. Cit., p. 81 68 Ibidem, p. 82 69 Loc. Cit. 70 Loc. Cit.
34
Sobre as consequências da hipótese peirciana da origem da lei podemos
ler em suas palavras:
Evidentemente ela deve ser uma tendência à generalização – uma tendência
generalizadora [...]. Contudo, a tendência generalizadora é a grande lei da
mente, a lei de associação, a lei de aquisição de hábitos [...] Assim sou levado
à hipótese de que as leis do universo têm sido formadas sob uma tendência
universal de todas as coisas à generalização e à aquisição de hábitos.71
Antes de avançarmos, parecem emergir da passagem anteriormente citada
algumas importantes questões: O que Peirce quer dizer ao empregar a expressão “a
grande lei da mente”? Como seria possível conjecturarmos sobre a natureza mental
da matéria? Pretendemos responder a estas questões no próximo capítulo.
Por ora, há a necessidade do esclarecimento de alguns outros conceitos-
chave na arquitetura metafísica peirciana para que possamos efetuar,
satisfatoriamente, às repostas das questões levantadas.
Deixadas nossas novas questões para o tempo oportuno, voltemo-nos a
um outro aspecto que a articulação entre Lei e Acaso engendram: a doutrina do
Falibilismo.
Esta doutrina epistemológica por um lado nos diz que nosso conhecimento
é falível, não obstante seja ele possível. O Falibilismo é a consequência
epistemológica da doutrina ontologia proposta pelo filósofo como veremos no
seguimento deste trabalho:
Se lei é resultado de evolução, a qual é um processo permanente ao longo
do tempo, segue-se que nenhuma lei é absoluta. Ou seja, devemos supor
que os fenômenos em si mesmos envolvem afastamentos da lei análogos a
erros de observação.72
Ora, para Peirce se errare humanum est e nas Ciências, de forma geral,
sabemos o quanto erramos estamos diante de um universo que também “erra”, haja
vista os desvios dos fatos em relação às leis que os constituem. Notamos, nas
palavras do filósofo que:
71 CP 7.515, apud IBRI, p. 82 72 CP 6.101, apud IBRI, p. 83
35
Todo raciocínio positivo é da natureza de julgar a proporção de alguma coisa
no todo de uma coleção de proporção encontrada em uma amostra. Assim,
há três coisas que nunca podemos esperar obter pelo raciocínio, a saber,
certeza absoluta, exatidão absoluta, universalidade absoluta73
Começamos agora a delimitar a terceira e última resposta deixada no fim
do capítulo segundo: como o Acaso pode ser tomado como “princípio” explicativo do
Ser?
A partir de tudo aquilo que foi exposto mais relevante seria se
invertêssemos a questão: como o Acaso pode não ser considerado nas teorias que
se propõem a explicar o Ser?
Ora, como já visto, o universo contém um aspecto fortuito que foge a
determinação da Lei, não levar isto em consideração é uma grave falha do raciocínio.
Desconsiderar o que deve ser considerado, mesmo que este seja o imponderável é o
mesmo que perder-se na investigação.
Se estamos diante de um universo “errante” o Falibilismo, bem como a
Teoria da Probabilidade e a Lógica dos Eventos passam a ter papel epistemológico
fundamental. Já que “a descrição das leis não poderá transgredir os limites em que
elas próprias operam”74.
Ao admitirmos o Acaso como uma hipótese explicativa da diversidade
constitutiva do Ser e ao reconciliarmo-lo ao modo de ser da Lei, tem-se que o
Falibilismo mostra-se como a teoria adequada para todos que concebem o Ser como
resultado do Acaso, Existência e Lei.
Além disto o Falibilismo é “a doutrina de que nosso conhecimento nunca é
absoluto, mas como se flutuasse em um continuum de incerteza e indeterminação”75.
Começa aqui a evidenciar-se outro conceito-chave na metafísica de
peirciana, qual seja, o de continuum. Este conceito ao lado das novas questões
levantadas, serão o objeto de nossa próxima investigação.
73 CP 1.141, apud IBRI, p. 83 74 IBRI, Op. Cit., p. 84 75 CP 1.171, apud IBRI, p. 85
36
Por enquanto basta termos em mente as relações que começam a se
desenhar entre complexificação ao longo do tempo e espraiamento de racionalidade,
possibilidades e determinações, já que será nestas relações que se darão as
principais ideias por nós trabalhas agora: “idealismo objetivo” e “continuum”.
37
IV. Do Idealismo Objetivo e do Continuum
No capítulo anterior notamos que o crescimento da terceiridade real resulta da
concepção evolucionista do autor. A origem das leis é apontada como fruto da
admissão objetiva do Acaso como modo de ser daquilo que é diversamente existente.
Ainda no capítulo anterior deixamos algumas questões a serem, por nós, agora
respondidas. O que Peirce quer dizer ao empregar a expressão “a grande lei da
mente”? Como seria possível conjecturarmos sobre a natureza mental da matéria?
Sobre estas questões, as quais se apresentam no cerne da opção cosmológica
de Peirce, nos debruçaremos com o intuito de esboçarmos suas respostas. Para tanto
citemos as palavras de nosso orientador:
“O realismo radical de Peirce, fundado em sua concepção do binômio
generalidade-alteridade, não se consuma numa ideia causal do mundo, mas
pressupõe um universo dinâmico cujo vetor aponta o desenvolvimento natural
urdido na forma da lei, e pela mediação do pensamento cognitivo”76.
Da concepção peirciana do evolucionismo notamos a ideia que o surgimento
das leis se identifica com uma tendência geral à aquisição de hábitos, isto subjaz
propriamente à estrutura do real, possibilitando sua inteligibilidade. Torna-se
consequência inescrutável a natureza eidética – Eidos no sentido platônico de Forma
- tanto do próprio real quanto de sua inteligibilidade.
O predicado de natureza eidética que nos é evidenciado legitima a hipótese da
matriz comum entre aquilo que chamamos matéria e aquilo que chamamos mente.
Ainda, em mais um aspecto, tipifica-se a regra primordial da mente parecendo-nos
assim antecipar-se um idealismo de teor ontológico objetivo que faria do eidos algo
não meramente acidental, mas essencial no mundo.
Do interior de seu sistema Peirce recorre ao realismo, como a condição de
possibilidade do pensamento e o faz penetrando a realidade da terceira Categoria,
isto é, da generalidade real que é substrato e fonte de possibilidades e mediação.
Ao admitirmos que o particular não é inteiramente reduzível à razão, mas
apenas o é no que diz respeito à sua participação na generalidade, também o próprio
76 IBRI, Op. Cit., p. 87
38
objeto do pensamento deve ser de caráter geral, “constatando-se, simplesmente, o
reconhecimento de Platão e de Aristóteles que “Ciência é Ciência do universal”77.
Como consequência ser-nos-ia lícito inferir um substrato de idealidade que
permeia todo o pensamento, existindo, portanto, uma co-naturalidade do objeto
pensado com o próprio pensamento. O entendimento nos guia ao caráter eidético do
objeto.
Admitindo a experiência como sujeito do pensamento o agente que faz
pensar que –, refletir sobre o conteúdo intelectual de uma ideia acerca de um
objeto real conduz, por consequência, a concebe-lo eidético. A inteligência só
é possível sobre o inteligível.78
Da constatação do caráter eidético tanto do pensamento quanto do objeto
pensado de maneira alguma estaríamos autorizados a supor que o caráter de
idealidade das leis da natureza é construído pela razão humana, haja vista a
necessidade da alteridade que, como já explicitado, é componente indispensável
àquilo que chamamos real: “Acaso, Existência e Lei”.
A metafísica peirciana não nos legitimaria supormos coisa diferente “a
qualidade eidética não se confina, desse modo, a objetos interiores à consciência,
mas estende-se à exterioridade como condição de possibilidade da mediação”79.
Em outra passagem podemos notar o realismo peirciano ainda mais pulsante,
afirmando ele que
A diferença entre o mundo real e um sonho é que o mundo real é coerente e
é consciente. Sem dúvida, essa é a característica principal. Os eventos reais
conspiram como se fossem contrários aos irreais, porque não há espaço para
todos.80
A necessidade da mediação evidencia a necessidade lógica do objeto da
mediação, para que, de fato, ocorra a inteligibilidade. Em outro ponto, só podemos
estabelecer mediações, se aquele que estabelece a mediação e aquilo que é objeto
77 Ibidem, p. 88 78 Ibidem, p. 89 79 Loc. Cit. 80 Loc. Cit.
39
dela, de alguma maneira, participam do mesmo. Portanto “a natureza somente é
inteligível à medida em que pareça racional, ou seja, à medida em que seus processos
são considerados similares a processos do pensamento”81.
O realismo para Peirce é mais que aceitação dos universais, sobretudo é
aceitação da natureza intelectual da realidade. De modo que a co-naturalidade entre
representação e objeto real elimina a barreira nominalista entre sujeito e objeto, entre
consciência, linguagem e mundo. “Estamos acostumados a falar de um mundo
externo e de um mundo interno de pensamento. Mas eles são apenas adjacências
sem nenhuma linha fronteiriça real entre eles”82.
Partindo da teoria evolucionista peirciana sabemos que hábitos adquiridos
cristalizam-se e são responsáveis pelas leis dos cosmos. Entretanto a aquisição de
um hábito é própria daquilo que é mental que, de certa maneira, engloba aquilo que é
material.
Ao notarmos o universo repleto de hábitos, e o fazemos, haja vista que seu
substrato eidético compatibiliza-se, ideal e objetivamente com sua inteligibilidade, há
de se admitir que existe nele algo de natureza mental. Se o universo material é provido
de hábitos de conduta na forma de leis naturais, há que o conceber como uma forma
de mente”83.
Este argumento já responderia a contento as questões colocadas. Entretanto
para que continuemos a subir os degraus do edifício peirciano é prudente que
tenhamo-nos firmado bem os pés.
Antes de continuarmos com a grande lei da mente examinaremos as demais
possibilidades sobre a origem das leis e consequentemente as possíveis relações
entre mente e matéria.
A velha noção dualística entre mente e matéria tão proeminente no
cartesianismo, como dois tipos de substancias radicalmente diferentes,
dificilmente hoje irá encontrar defensores. Rejeitando-a, somos levados a
alguma forma de hilozoísmo, e o caso contrário denominado monismo. Surge
então, a questão se, de um lado, a lei física e, de outro, a lei psíquica, devem
ser consideradas:
81 CP 3.422, apud IBRI, p. 89 82 CP 7438, apud IBRI, p. 90 83 IBRI, Op. Cit., p. 91
40
a) Como independente, constituindo uma doutrina frequentemente chamada
monismo, mas que o denominaria neutralismo; ou
b) A lei psíquica como derivada e especial, e apenas a lei física como
primordial, o que é materialismo; ou
c) A lei física como derivada especial e somente a lei psíquica como
primordial, o que é o idealismo”84.
A partir da discriminação das possíveis relações entre mente e matéria,
analisaremos caso a caso como estas podem se dar de fato e, com isso,
estabeleceremos as relações entre lei psíquica e lei física.
No caso de conjecturarmos as leis psíquicas e as leis físicas como
independentes uma da outra, neutralismo, teríamos como decorrência lógica que num
estado primordial da constituição do universo haveria dois princípios: um no que diz
respeito a parte interna e outro no que se refere à parte externa da substância.
Ora, neste caso suporíamos dois elementos o que seria “condenado pela
máxima lógica conhecida como a navalha de Ockham, isto é, que não devem ser
supostos mais elementos independentes que o necessário.”85
Analisando a possibilidade da lei psíquica ser derivada da lei física,
materialismo, por um lado cairíamos em raciocínio absurdo, pois seria necessário que
um certo tipo de mecanismo fosse sentir, o que seria uma hipótese irredutível à razão.
Por outro uma lei física absoluta requer é uma relação exata. Logo de uma lei
como já dito não pode sobrevir àquilo que engendra a diversidade, de modo que seria
igualmente irredutível à razão tentarmos derivar a lei psíquica da lei física.
Disto decorre que o materialismo e o mecanicismo se confundem, pois não há
espaço ontológico para a primeira Categoria, tudo o que diz respeito à variedade e à
aleatoriedade não poderia ser constatado fenomenologicamente caso esta hipótese
fosse a verdadeira.
Como já dito mesmo à liberdade humana não haveria espaço, pois aquilo que
chamamos escolha humana nada mais seria que a manifestação do princípio Lei
aplicado às ações humanas.
Parece-nos que “a única teoria inteligível do universo é a do idealismo objetivo
de que matéria é mente esgotada, hábitos inveterados tornando-se leis físicas”86.
84 CP. 6.24; EP. 1292; W. 8.105, apud IBRI, p. 91 85 CP 6.24-25, apud IBRI, p. 92 86 CP. 624-25, apud IBRI, p. 92
41
Desta maneira afastamos a duplicação de variáveis como no neutralismo e ao mesmo
tempo nos diferenciamos do materialismo ou mecanicismo, já que no levantamento
das hipóteses sobre a origem do cosmos vamos ao um ponto anterior ao material.
Num estado primordial do cosmos, nossa posição de recuarmos ao ponto em
que nada existia, inclusive a matéria, faze-nos novamente conjecturamos um
Continuum de possiblidades infinitas de qualidades.
A lógica que vemos emergir da Cosmologia peirciana é a lógica das
possibilidades, em que o possível deve deixar de ser possível para de fato ser
possível. O definido sucede ao indefinido. Aquilo que eternamente fora uma potência,
uma capacidade e que não entra, de fato, na existência, em verdade, nunca fora uma
possibilidade.
Daquilo que anteriormente fora possibilidade à existência, vemos o movimento
interno das Categorias, da primeira, um estágio de possibilidade e indeterminação, à
segunda um estado de existência e determinação.
Em outras palavras, a partir do Continuum de possibilidades infinitas, discretiza-
se na segunda Categoria a existência. Esta existência específica e não outra qualquer.
Aquilo que se define, inevitavelmente, rejeita todas as demais possibilidades que não
aquela fruto da definição.
A existência tem sua raiz na paridade. Tao logo surge a dualidade como no
contraste entre a qualidade e o sentimento de qualidade, existe já um
prenuncio ou um tipo profético de real, mas é a composição de paridade em
exclusão de outro par, como reunir ou emparelhar juntos tais pares exclusivos
que produz a qualidade de ser isto (thisness) [...] a qualidade de ser isto
(thisness) do acidente do mundo é positivamente repugnante à generalidade.
Assim é devido à sua dualidade intrínseca e se você a chama individual está
se esquecendo de um termo do par.87
Ao considerarmos como individual aquele que discretizou-se do anterior
continuum de possibilidades passando à existência, abole-se a paridade necessária à
segunda Categoria responsável pela possibilidade consumada, ou seja, a negação de
todas as outras possibilidades que não se verificaram.
87 IBRI, Ivo Assad. Kósmos Noetós. São Paulo. Paulus, 2015. p. 125
42
“Isto” deve ser visto como objeto justamente por estar em reação a um sujeito.
Um “isto” é necessariamente acidental haja vista o continuum de possibilidades que
outrora se configurava. Por ser isto e não aquilo, este modo de ser, a qualidade de ser
isto (thisness), em suma, é reação. A reação é reação a algo, logo tem natureza anti-
geral. Reação é dualidade, é ato. Assim como é segundidade e não primeiridade, não
é potência.
Não podemos senão supor que aquelas qualidades sensíveis que agora
experienciamos – cores, odores, sons, sentimentos de toda descrição,
amores aflições, surpresas – são relíquias de antigas ruínas de um continuum
de qualidades, como umas poucas colunas de pé aqui e ali em testemunho
de que algum fórum de um velho mundo, com suas basílicas e templos,
constituiu, uma vez, um conjunto magnificente. E assim como aquele fórum,
antes de ser realmente construído, teve uma vaga subsistência na mente de
quem planejou sua construção, de modo similar, também o cosmos de
qualidades sensíveis, que eu levaria o leitor a supor em algum estágio
primordial de ser, era tão real quanto sua vida pessoal o é neste minuto, e
teve, num estágio antecedente de desenvolvimento, um ser mais vago, antes
de as relações de suas dimensões tornarem-se definidas e contraídas.88
Para ilustrarmos o abstrato assunto dos continua lançaremos mão de uma
analogia, por sua natureza imperfeita, mas que pode nos proporcionar uma maior
compreensão, por ser mais “palpável”:
Numa gravidez, a partir da fecundação e durante a gestação, temos um
continuum evolutivo que culminará num individuo particular existente, que será aquele
e não outro, possuirá nome, data de nascimento etc.
Não obstante o continuum desta evolução primordial, do zigoto até o
nascimento, notamos diversos outros continua, correspondentes, por exemplo, à
formação de cada órgão daquele corpo particular.
Se, por um lado, há um continuum mais fundamental que terá como desfecho
o nascimento daquele indivíduo, há, por outro, inumeráveis outros continua que, tendo
sido iniciados por aquele primordial, também se discretizam na formação de cada
órgão específico.
Talvez poderíamos buscar um exemplo ainda mais pretencioso: caso
pudéssemos regressar à estaca zero no que concerne ao conhecimento humano,
88 CP 6.197, apud IBRI, p. 132
43
chegaríamos ao ponto em que nada seria conhecido por ninguém. Ora, teríamos todo
um continuum de possibilidades de conhecimento ainda não discretizados, isto é
ainda não existentes.
Àquele que se atente à diversidade de ramificações dos diferentes campos do
saber, têm exemplos destes continua específicos que se discretizaram ao longo do
tempo. Claramente nota-se que tais ramificações nada mais representam que
continua “dentro” do continuum saber humano, que no estágio zero era nenhum.
Da mesma maneira que nos órgãos do feto discretiza-se do continuum
específico, aquela célula, aquele tecido, aquele órgão a “soma” de todos os continua
específicos concorrerão para a discretização daquele ser individual.
Usamos a palavra “soma” na falta de outra que represente o agrupamento, o
convergimento, a reunião dos continua específicos no continnum principal.
Analogamente os continua específicos dos saberes humanos convergem ao
continuum do conhecimento humano, enquanto o continuum principal é plena
possibilidade no que se refere aos continua específicos.
Aquilo que chamamos continuum específico nada mais seria do que aquela
possibilidade que passou a existência, discretizando-se, mas que guarda ainda um
continuum de possibilidades. Assim ad infinitum.
Numa conjectura poderíamos entender a matéria, de certo modo, como uma
descontinuidade, não obstante sendo, em si, um continuum, que num estágio bastante
recuado no tempo pode ter engendrado outras descontinuidades, da mesma maneira,
com infinitas possibilidades em si: a figura, a extensão, o tempo etc
O que outrora manifestava-se ainda como possibilidade, ainda sob a primeira
Categoria ao discretizar-se tem a propriedade de ser isto e não aquilo. O que é resulta
do passar a existência e, portanto, à segunda Categoria.
Colocamo-nos, então, no início do tempo qualidade de ação possíveis. A
existência efetiva se iniciou. Surgem reações acidentais. São estabelecidos
diversos contínuos. Uma tendência à generalização é operativa. Não se pode,
porém, ainda dizer que a alguma coisa existia; muito menos alguma
consciência pessoal. As reações acidentais são puramente acidentais, não
reguladas em qualquer grau pela lei; constituem o trabalho do acaso cego e
brutal. [...] mas agora, a tendência à generalização, que já é operativa e que,
de fato, é mais antiga que a própria existência, começa a agrupar as reações
acidentais em contínuos fragmentados. Em contínuos porque tal é a natureza
44
logica da generalização. Em contínuos fragmentados porque a tendência à
generalização tem de lutar com a brutalidade sem lei do acaso, com seu
frescor jovem e vivacidade ebuliente [...]”89.
Ao colocarmo-nos no estágio inicial do cosmos temos apenas um “continuum
primordial”, um continuum de qualidade de sentimentos. A partir daí, notar-se-á que a
existência efetivamente já se inicia. Contudo esta existência efetiva não diz respeito a
qualquer coisa, ou consciência específicas. Podemos entende-la como uma existência
que se traduz numa tendência operativa.
Deste “continuum primordial” entendido como uma tendência à generalização
cujo predicado é a operatividade, diversas reações acidentais ocorrem. Estas
acontecem livres, no máximo grau, produtos do Acaso.
Parece haver neste estágio de “desenvolvimento do cosmos” duas tendências
contrárias entre si: a primeira, a tendência à generalização, que agrupa as reações
acidentais já que a própria natureza lógica da generalização é a continuidade.
Enquanto que a segunda, a tendência à fragmentação, é proporcionada pelo Acaso,
que em sua própria natureza é contraria à natureza da generalização.
Como resultado, por um lado observamos a tendência à formação de continua,
enquanto que por outro, estes continua serão de algum modo segmentados,
desagregados.
[...] esta foi a primeira das leis da natureza e ainda está continuamente
reforçando a si mesma. Um hábito de adquirir hábitos começa a ser
estabelecido, e um hábito de reforçar o hábito de reforçar hábitos, e um hábito
de reforçar aquele hábito e assim por diante, ad infinitum.90
Apesar da tendência à generalização notamos que o Acaso, cego e brutal,
fragmenta as continuidades em formação. Contudo a mais fundamental lei da
natureza continuamente reforça-se a si mesma. Em outras palavras aquilo que fora
desagregado pelo “jovem” Acaso é “petrificado” pela aquisição dos hábitos, que no
processo de alto reforço, acabam por cristalizar-se, tornando-se leis, que auto se
reforçam.
89 IBRI, Ivo Assad. Kósmos Noetós. São Paulo. Paulus, 2015. p. 126 90 Idem
45
“Em qualquer tempo, entretanto, um elemento de puro Acaso sobrevive e
permanecerá até que o mundo se torne um sistema absolutamente perfeito,
racional e simétrico, no qual a mente seja por fim cristalizada em um futuro
infinitamente distante”91.
91 CP, 6. 33; EP, 1.297; W, 8.110, apud IBRI, p. 134
46
Conclusão
Retomemos o caminho que iniciamos no princípio deste trabalho. Partimos das
mais simples faculdades requeridas pela da Ciência Fenomenológica: ver, atentar
para e generalizar. Com isto notamos que esta não se pretende uma Ciência da
realidade, contudo, busca apenas inventariar as características dos fenômenos.
Procuramos mostrar que nesta filosofia fenômeno pode ser entendido como o
total de tudo aquilo que está presente de alguma maneira na mente, sem distinções
se isto corresponde a coisas reais ou não.
Da catalogação do mundo fenomênico vimos emergir as Categorias
Fenomenológicas: primeiridade, segundidade e terceiridade. A primeira compatível ao
modo de ser do Acaso. A segunda relativa à alteridade da existência. A terceira diz
respeito à generalidade, à mediação.
Notamos que estas Categorias são universais e irredutíveis permeando todo o
modo de ser da experiência que, imediatamente, temos acesso. A partir do mundo
como nos aparece levantamos a questão: como ele deve ser para que nos apareça
assim?
A partir desta pergunta já adentramos o campo da Ciência da Metafisica.
Enquanto a Fenomenologia apenas constatou e classificou aquilo que está
imediatamente no fenômeno, a Metafisica através do crivo da Lógica buscou dizer
aquilo que o mundo é.
Em seu interior constatamos que as Categorias anteriormente evidenciadas
pela Fenomenologia compunham o próprio substrato da realidade: Acaso, Existência
e Lei, respectivamente, correspondentes aquelas Categorias: primeiridade,
segundidade e terceiridade.
Observamos que as articulações destes três modos de ser do real são
responsáveis seja pela variedade existente no cosmos, seja por sua “mesmidade”. O
novo e o mesmo.
A partir da Metafisica peirciana discorremos sobre sua Ontologia indeterminista.
Expomos que o Acaso passa a desempenhar papel fundamental quer na composição
das leis do cosmos, quer no modo em que as qualidades são distribuídas aos
particulares.
47
Apontamos para o pesadelo determinista que, apenas considerando o modo de
ser Lei, faz da psicologia e da sociologia extensões da física. Mostramos como desde
o renascimento a mentalidade determinista moderna tornou-se a fé dominante das
“mentes esclarecidas”, bem como as consequências que tal mentalidade
necessariamente engendra, inclusive sob o ponto de vista da liberdade humana
Apesar da defesa do Acaso com o modo de ser do real e, portanto, como
“principio” explicativo do Ser, notamos que o real deve ser considerado em toda a sua
tensionalidade, isto é, na relação entre Acaso, Existência e Lei.
Colocamos a hipótese da incognocibilidade que, como visto por um lado, fecha
as portas da investigação enquanto que, por outro, se auto contradiz já que postula
como explicação a incognocibilidade.
Ainda sobre a Cosmologia de Peirce, mostramos que a terceiridade real resulta
da segundidade, de forma evolucionária. Disto extraímos duas consequências: uma
de cunho metafisico outra de cunho epistemológico.
A consequência metafísica apontada foi que se a gênese da terceiridade real
possui uma tendência à aquisição de hábitos, nos parece correto inferirmos que a
matéria possui natureza mental e tal tendência seria como a eminente lei do universo.
Sobre a consequência epistemológica mostramos que se o objeto do
conhecimento está destituído de determinação final, isto é, está em pleno processo
evolucionário, então pretender que a representação das leis contenha uma
determinação que a evolução ainda não lhes conferiu é um absurdo lógico.
Como resultado deste raciocínio apontamos para a doutrina do Falibilismo.
Como visto, esta doutrina nos apontou que não podemos esperar certeza absoluta,
exatidão absoluta e universalidade absoluta. O Falibilismo se evidenciou como a
consequência epistemológica da doutrina ontológica de Peirce.
Da concepção cosmológica evolucionista vimos que o surgimento das leis se
identifica com uma tendência geral à aquisição de hábitos. A partir daí apresentamos
a natureza eidética tanto do real quanto de sua inteligibilidade.
Mostramos que o realismo de Peirce torna-se mais que aceitação dos
universais, sobretudo, é aceitação da natureza intelectual da realidade.
Examinamos a noção dualista cartesiana e ao nos afastarmos dela fomos
forçados a examinar as possibilidades no que diz respeito a gênese das leis físicas e
das leis psíquicas.
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Levantamos as três hipóteses distintas e auto excludentes. A monista ou
neutralista, em que as leis psíquicas e as leis físicas são independentes entre si. A
materialista na qual a lei física é fundamental e a lei psíquica um caso especial. Por
fim, a idealista objetiva em que a lei psíquica é primordial e a lei física é derivada da
lei psíquica.
Nos utilizando da navalha de Ockham nos afastamos do monismo ou
neutralismo. Por ser irredutível a razão que um certo tipo de arranjo material tenha a
capacidade de sentir e com intuito de investigarmos o estágio zero do cosmos fomos
forçados também a rejeitar a tese materialista. Desta forma, anunciamos que a única
teoria inteligível do universo é a do idealismo objetivo.
Por fim, abordamos o continuum peirciano, um fluxo de indeterminação de
possibilidades prévios “contidos” na primeiridade que ainda não se discretizaram na
existência, segunda Categoria.
Vimos que o possível deve deixar de ser possível para que realmente seja
possível. Aquilo que eternamente fora uma possibilidade e que não se realiza, que
não passa a segunda categoria, à existência, de fato, nunca fora possível.
A partir deste raciocínio colocamo-nos no estágio zero do cosmos. Logo após,
ainda neste estágio primordial imaterial, com apenas qualidades de sentimentos,
mostramos como pode ser compreendida a ideia de continuidade e continuidade
fragmentada, as quais as relações entre Acaso, Existência e Lei se articulam de modo
a dar origem ao cosmos.
Não poderíamos, de modo algum, supor, como já dito, conjecturar a matéria
como continuum fundamental já que isto implicaria em que propriedades necessárias
à tudo aquilo que é material tais como, dimensão, espaço, figura, extensão seriam
continua que precederiam a matéria ou, no mínimo, se dariam concomitantemente à
ela.
Por fim, podemos concluir que de alguma forma participantes da “grande lei da
mente” e considerando quer a constituição dos elementos químicos ou a constituição
das galáxias, quer a constituição dos corpos materiais ou a constituição dos estados,
somos forçados a conjecturar um princípio que evolucionariamente se complexifica ao
longo do tempo, concomitantemente engendrando o mesmo e o novo.
O idealismo objetivo deu suporte conceitual à tese realista de Peirce de que a
terceiridade encontra-se espraiada no Universo. A cosmologia do autor mostrou que
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a evolução parece estar orientada a um telos agápico – Amor que reúne os
dessemelhantes - que, sem cessar, cria diversificação e relações lógicas reais. Esse
universo assim concebido, dinamicamente se desenvolve e cresce, pulsando como
uma grande sinfonia que oscila não entre som e silêncio mas entre Eidos e Ágape.