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CURSO DE HUMANÍSTICA MP - CE -------------------------------------------------------------- TEORIA DA NORMA JURÍDICA RESUMO AULA 1 #SouOuse #AquiéMP #TôDentro

CURSO DE HUMANÍSTICA MP -CE - Ouse Saber · 2020. 3. 27. · 3 DIMOULIS, Dimitri. Manual de Introdução ao Estudo do Direito. 2ª ed. rev., atual ... No processo de realização

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TEORIA DA NORMA JURÍDICA

RESUMO AULA 1

#SouOuse#AquiéMP#TôDentro

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1. Teoria da Norma Jurídica

1.1. Conceitos Iniciais de Norma Jurídica

Com relação à norma jurídica, incontáveis páginas já foram escritas tentando-se alcançar um conceito preciso, no entanto, a divergência sobre tal definição parece distante do fim.

Em que pese exista muita divergência dentro da Teoria do Direito, um sentido aceitável de norma jurídica é o conceito semântico-deôntico de norma, ou seja, aquele que considera a norma como o resultado da interpretação de uma prescrição ou de um mandamento formulável por meio de modais deônticos de permissão, obrigação ou proibição. Em outras palavras, para esse conceito semântico-deôntico, a norma é um sentido (é um resultado de uma interpretação).

Pode-se então assim apresentar:

Norma = resultado de uma interpretação extraível de:

a) uma prescrição prescrição é o comando, a ordem que determina alguma conduta. Por exemplo: Art. 103. (...) § 1º O Procurador-Geral da República deverá ser previamente ouvido nas ações de inconstitucionalidade e em todos os processos de competência do Supremo Tribunal Federal; ou

b) um mandamento formulável por modais deônticos mandamento é a frase que contem uma proposição, o que deve, pode ou não pode ser feito pelo destinatário da norma. É sinônimo de prescrição. Já os modais deônticos são as formas pelas quais, de modo simplificado, a norma pode expressar as diferentes condutas de para quem ela se destina, podendo ser de três tipos, por isso, três são os possíveis modais deônticos:

b.i) de permissão: é o que está no campo de liberdade do destinatário da norma. Cabe apenas a ele decidir fazer (ou não) o que a norma tolera. Por exemplo: Art. 166. (...) § 5º O Presidente da República poderá enviar mensagem ao Congresso Nacional para propor modificação nos projetos a que se refere este artigo enquanto não iniciada a votação, na Comissão mista, da parte cuja alteração é proposta.

b.ii) de obrigação: não há liberdade para o destinatário da norma. A norma determina claramente o que ele deve fazer. Por exemplo: Art. 165. (...) § 10. A administração tem o dever de executar as programações orçamentárias, adotando os meios e as medidas necessários, com o propósito de garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade.

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b.iii) de proibição: não há liberdade para o destinatário da norma. A norma veda claramente certos comportamentos, retirando tais condutas de sua esfera de possibilidades de atuação. Por exemplo: Art. 167. São vedados: I - o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual; II - a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais; (...)

Cabe perceber que os dispositivos da citados no quadro acima ainda não as normas. São ainda apenas o texto, ou seja, os mandamentos, as prescrições, as proposições de onde, por meio da interpretação, podem ser extraídas as normas. A estrutura lógico-gramatical de tais textos nos indica interpretações possíveis, mas a ilação final levará em conta vários outros fatores, como a realidade a que tal texto se destina e até mesmo a visão de mundo de quem interpreta. Por isso, sempre é necessário repetir que a norma não se confunde com o texto. Norma é o resultado interpretativo que se dá entre o texto da norma e a realidade. Se a realidade se altera, obviamente que a norma será diferente (mesmo que o texto normativo continue inalterado).

Vários autores defendem esse sentido de norma:

“O que efetivamente caracteriza uma norma jurídica, de qualquer espécie, é o fato de ser uma estrutura proposicional enunciativa de uma forma de organização ou de conduta, que deve ser seguida de maneira objetiva e obrigatória”1.

“O dever-ser – a norma – é o sentido de um querer, de um ato de vontade, e – se a norma constitui uma prescrição, um mandamento – é o sentido de um ato dirigido à conduta de outrem, de um ato, cujo sentido é que um (ou outros) deve (ou devem) conduzir-se de determinado modo”2.

Também fica claro o conceito semântico-deôntico de norma nos seguintes trechos:

“A Norma jurídica (ou regra jurídica) é uma proposição de linguagem (texto de norma) incluída nas fontes do direito válidas em determinado país e lugar; seu significado é fixado no âmbito de interpretação jurídica; a norma jurídica objetiva regulamentar o comportamento social de forma imperativa, estabelecendo proibições, obrigações e

1 REALE, Miguel. Lições Preliminares do Direito. São Paulo: Saraiva, 2000. P. 95.

2 KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. (Allgemeine Theorie Der Normen). Tradução José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1986. P. 3.

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permissões. Na maioria dos casos, o descumprimento da norma está associado a sanções negativas”3.

“Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constroem no objeto da interpretação; e as normas no seu resultado”4.

Então, percebe-se que a norma jurídica só ganha seus contornos finais depois da interpretação (sai-se de um texto de norma e, por meio da interpretação, chega-se à norma em si).

O conceito semântico, todavia, enfrenta resistências. Friedrich Müller5, por exemplo, acusa formulações desse viés de positivistas, afirmando que a norma jurídica não pode ser entendida como “uma ordem abstrata daquilo que deve ser”6, bem como atacando “o axioma segundo o qual as decisões jurídicas podem ser deduzidas, em sua totalidade, do texto da norma, isto é, de estruturas linguísticas”7.

O autor de Heidelberg propõe um conceito bastante complexo de norma jurídica, que a transforma em algo que não pode ser extraído apenas semanticamente pelo interprete do texto normativo, mas em um verdadeiro processo dialético entre Direito e realidade, podendo ser explicado por meio de três elementos: “âmbito material”, “âmbito normativo” e “programa normativo”8.

Assim, Müller propõe um conceito de norma totalmente diferente (a norma vai se dividir em três partes). Ele propõe com isso um método próprio de hermenêutica, que é o método normativo-estruturante.

3 DIMOULIS, Dimitri. Manual de Introdução ao Estudo do Direito. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2007. P 67.

4 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2006. P. 30

5 MÜLLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

6 Idem. Idibem. P. 20.

7 Idem. Ibidem.

8 “A norma jurídica é entendida, por conseguinte, como modelo de ordenamento marcado por sua matéria, como projeto vinculante de um ordenamento parcial dentro de uma comunidade jurídica, projeto que o preceito jurí-dico espelha mais ou menos acertadamente por meio da linguagem, em que aquele que ordena e o ordenamento se pertencem mutuamente e se completam com frequência na realização prática do direito. No processo de realização do direito resulta que a norma é o modelo vinculante de um ordenamento parcial marcado por sua matéria, mas não por ela absorvido pelos fatos materiais. As distinções estabelecidas, por exemplo, entre âmbito normativo e programa nor-mativo, entre partes do âmbito normativo criadas ou não criadas pelo direito, são reduções conceituais para o ponto de vista aqui desenvolvido”. Idem. Ibidem. P. 30.

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Desse modo, os fatos concretos da vida que a norma pretende regular (“âmbito material”), a partir do momento que são captados pelo intérprete, entram em tensão com o preceito contido na norma (“programa normativo”), gerando uma modificação tanto da norma como da realidade (“âmbito normativo”).

A norma em Müller será formada então pela iteração entre:

a) âmbito material: que são os fatos concretos da vida que a norma pretende regular, ou seja, a parcela da realidade a ser regulada;

b) programa normativo: são os preceitos contidos na norma, ou seja, a teleologia da norma, logo, aquilo que a norma busca alcançar, normalmente, aprimorando a realidade;

c) âmbito normativo: é o resultado da tensão entre ambito material e o programa normativo, isto é, a modificação ocorrida tanto no interprete como da realidade como resultado da interpretação, tendo como constructo disso a própria norma.

Em outras palavras, para Müller, norma é a relação entre âmbito material e programa normativo que gera um âmbito normativo. Então, Müller foi um crítico do conceito semântico, pois este seria positivista. Defendeu que s poderia criar normas de forma abstrata (apenas da interpretação das proposições linguísticas). Na verdade, não se deveria interpretar a norma, mas sim construir a norma a partir da realidade.

A análise do mecanismo de concretização do Direito proposto por Müller, no entanto, demonstra que ele também não está isento de semântica. Vale questionar: Como se define o programa normativo? Como o interprete manejará o método concretizador sem conferir um sentido aos âmbitos material e normativo? Essas perguntas demonstram que aquilo que Müller designa de métodos linguísticos e de lógica formal fazem parte do próprio processo interpretativo, inevitável. Não obstante as possíveis críticas à metódica de Müller, ele é um autor muito importante, por isso, atenção ao seu conceito de norma.

Voltanto ao conceito semântico das normas, ele leva, como já visto, a uma distinção entre norma e texto de norma. Normas nascem quando da interpretação de textos escritos, mas, antes disso, estes são apenas limites de possibilidades para normas. Um texto normativo é um fragmento escrito ao qual se atribui o senhorio de ser o limite textual da atribuição de sentido possível para o intérprete, mas que não fecha por completo as possibilidades de compreensão e aplicação a um ou mais casos concretos, de modo a gerar uma decisão. Um texto normativo é um “repositório de sentidos”, um topos argumentativo (ponto de partida semântico) que inicia e abre um caleidoscópio de possíveis interpretações, dentre as quais, o intérprete fundamentadamente terá de escolher. Esses múltiplos sentidos possíveis, abertos por um texto normativo, são “candidatos a normas”.

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Veja o seguinte esquema que sintetiza a diferença entre texto e norma:

Tudo o acima demonstra o que é e como se forma (constrói ou interpreta) a norma jurídica.

1.2. Teoria da Norma Jurídica de Bobbio Nesse trecho, a opção foi trabalhar com base no livro Teoria da Norma Jurídica de

Norberto Bobbio. A principal e fundamental obra sobre o tema.

Escrita por Norberto Bobbio, jurista italiano, a obra “Teoria da Norma Jurídica” é orientada a partir de um ponto de vista normativo, que reconhece o Direito como um con-junto de normas que compõem regras de conduta humana. A experiência jurídica é, portan-to, uma experiência normativa, presente no quotidiano da vivência humana.

Temos a sensação de liberdade, mas essas regras de conduta ditam a nossa vida desde o nascimento, acompanhando-a até à morte. A presença delas é tão comum que muitas se tornam imperceptíveis. Observando externamente o desenvolvimento da vida de um homem, percebemos que que ele se desenvolve guiado por regras de conduta, e sob a constante sujeição a novas regras. A nossa é repleta de normas: algumas permissivas, ou-tras proibitivas. Eis que uma constatação nos salta aos olhos: o Direito constitui uma parte notável, e talvez a mais visível, dessa experiência normativa. E o seu estudo nos torna cons-cientes sobre a importância do “normativo” na vida individual e social.

Considerando as sociedades humanas, e, portanto, a História, vemos que o fenô-meno da normatividade se apresenta como algo não menos impressionante e ainda mais merecedor da nossa reflexão. Na História das sociedades, as regras de conduta (morais, re-ligiosas, jurídicas, sociais) serviram como represas, que detiveram os excessos das paixões, interesses, dos instintos, e permitiram a formação de sociedades estáveis, com instituições e ordenamentos, adjetivadas de civilizadas. Temos, pois, um ponto de vista normativo: as civilizações são caracterizadas pelos ordenamentos de regras nas quais as ações dos ho-mens que as criaram estão contidas. A história se apresenta como um complexo de ordena-mentos normativos, que se sucedem, se contrapõem, se sobrepõem, se integram. Estudar uma civilização, do ponto de vista normativo, é estudar quais condutas eram permitidas,

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quais eram proibidas. Isto é, consiste em estudar em quais direções fundamentais a vida dos homens se guiaram. E, portanto, os ordenamentos normativos serviram para caracte-rizar as sociedades e diferenciá-las umas das outras. A depender do sistema normativo em que uma sociedade estivesse inserida, era possível responder perguntas fundamentais so-bre ela, e, assim, distingui-la.

1.2.1 Variedade e multiplicidade das normas

O mundo do normativo revela-se como enormemente vário e múltiplo. Nesse

mundo, as normas jurídicas são apenas uma parte dessa experiência normativa. Existem preceitos religiosos, regras morais, sociais, costumeiras, de etiqueta, de boa educação, etc. As normas são das mais variadas: regulam a relação do homem com as divindades, do ho-mem com os demais homens, e até do homem consigo mesmo. O homem pertence a diver-sas associações (religiosa, econômica, social, cultural, política, recreativa), e quanto maior o número dessas associações, maior o número de ordenamentos a que terá que se subme-ter, isso porque essas associações se desenvolvem justamente com base em ordenamentos.

O homem, singularizado, ao estabelecer seus planos/metas, traça um conjunto de regras a seguir – de igual modo o faz os agrupamentos humanos. Então, essa relação meio/fim dá origem a regras, normas, modos de proceder. Elenca-se e normatiza-se as con-dutas adequadas (ou consideradas ideais) para se atingir um determinado objetivo. Então, desde o jogo do xadrez, perpassando pelas prescrições médicas, desbocando nos artigos de uma Constituição, tudo isso é regra, norma. Diferenciam-se pelo conteúdo, pelo tipo de obrigação que as faz surgir, pelo âmbito de suas validades, pelos sujeitos a quem se diri-gem e pelas finalidades que perseguem; por outro lado são semelhantes em um ponto: na finalidade precípua de influenciar e orientar o comportamento humano (individualmente considerado ou em conjunto).

Bobbio chega a afirmar que o número de regras que nos deparamos é infinito e, por isso, incalculável. Contá-las, seria como contar aos grãos de areia que formam uma praia. Por serem tão numerosas, tornam-se imperceptíveis. Passamos a segui-las como num modo “automático”. A título de exemplo, o autor nos presenteia com uma análise do itinerário de uma carta, desde a sua confecção até a sua remeça ao destinatário, fazendo-a sob o prisma jurídico, demonstrando que, num ato simples que é o envio de uma carta, só (e enfatize esse “só”) no campo jurídico, inúmeras são as regras que o disciplinam, fazendo nascer direitos e obrigações.

1.2.2 Estrutura e Função das Normas

A norma jurídica estudada por Bobbio se apresenta em seu aspecto formal e, sob esse ponto de vista, a norma é uma proposição. Conceitua-se proposição como um conjun-to de palavras que possui um significado em sua unidade. A mesma proposição pode ter

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enunciados diversos e o mesmo enunciado pode exprimir proposições diversas. O conjunto de normas jurídicas enquanto proposições formam Códigos e Constituições e, nesse aspec-to, são proposições prescritivas, ou seja, prescrevem ações e comportamentos. Podem exis-tir proposições com significado e, no entanto. falsas, bem como uma proposição normativa pode ter um significado e ser inválida ou injusta.

Há três funções fundamentais da linguagem: descritiva (linguagem científica),

expressiva (linguagem poética) e prescritiva (linguagem normativa). Bobbio escolhe anali-sar a função prescritiva, que dá origem ao conjunto de leis ou regulamentos, códigos, cons-tituições, etc.

A categoria das prescrições é vastíssima: existem regras morais, regras gramati-

cais, normas jurídicas, prescrições médicas, dentre outras. Bobbio elenca três critérios fun-damentais de distinção: a relação entre sujeito ativo e passivo (imperativos autônomos e heterônomos); a forma da prescrição (imperativos categóricos e hipotéticos); e a força obri-gante/vinculante da prescrição (comandos e conselhos).

O imperativo autônomo é aquele em que uma mesma pessoa é quem formula

e executa a norma, enquanto nos heterônomos quem formula a norma e quem a executa são pessoas diversas. Tais conceitos foram elaborados por Immanuel Kant, a moral envolve sempre imperativos autônomos, enquanto o Direito é regido por imperativos heterônomos, visto que o legislador moral é interno e o jurídico é externo e diverso.

Os imperativos autônomos podem ser encontrados também no campo do Direi-

to, por exemplo na autonomia privada existente no Direito privado, que, em sua forma clás-sica independentemente do poder público, e na ideia do Estado democrático, no qual as leis que são seguidas pelos cidadãos devem ser elaboradas por esses mesmos cidadãos ou pelos seus representantes eleitos. Regimes democráticos, portanto, são fundados na auto-nomia, enquanto Regimes aristocráticos em geral tendem a imperativos heterônomos.

Outra distinção trazida por Bobbio é a distinção entre imperativos categóricos e

imperativos hipotéticos, feita por Kant. Os imperativos categóricos prescrevem uma ação boa em si mesma, em sentido absoluto, que deve ser cumprida incondicionalmente, ou com nenhum outro fim a não ser o seu cumprimento enquanto ação devida. São próprios da legislação moral e entendidos como sinônimos de normas éticas.

Já os imperativos hipotéticos prescrevem uma ação boa para atingir um fim, isto

é, uma ação que não é boa em sentido absoluto, mas boa somente quando se deseja atingir um fim determinado e, assim, é cumprida condicionalmente para a obtenção do fim. Essa finalidade pode ser possível (que os indivíduos podem perseguir ou não) ou real (que os homens não podem deixar de perseguir). Em suma, para Kant há três tipos de normas: as normas éticas, que prescrevem um dever, as normas técnicas, que prescrevem uma orienta-

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ção para atingir determinado fim, e as normas pragmáticas, que prescrevem um dever para atingir determinado fim.

Quanto à força vinculante da norma, elas podem ser comandos ou conselhos.

As categorias referenciadas acima são comandos e têm maior força vinculante, de forma que o comportamento previsto pelo imperativo é obrigatório. Os conselhos são modos mais brandos, menos vinculantes, de influenciar o comportamento alheio. A distinção entre co-mandos e conselhos pode servir para diferenciar o Direito da moral, assim como servem as distinções entre normas autônomas e heterônomas, e normas categóricas e hipotéticas.

Nem todas as prescrições que encontramos no ordenamento jurídico são coman-

dos. Em todo ordenamento jurídico, ao lado dos órgãos deliberativos, há os órgãos consulti-vos (autoridade menor, com a função de guiar ou dirigir o comportamento alheio). No orde-namento internacional, os organismos internacionais não têm no confronto entre Estados (que conservam suas soberanias) o poder de decidir obrigatoriamente, mas de endereçar suas recomendações.

Segundo a doutrina majoritária, as proposições que compõem um ordenamento

jurídico pertencem à linguagem prescritiva, mas também foram sustentadas por diversos autores doutrinas mistas, em que apenas uma parte das proposições que compõem um or-denamento jurídico é imperativa, ou seja, prescrevem comandos, bem como doutrinas ne-gativas, segundo as quais estas proposições não são imperativas e prescrevem proibições. Para a maioria dos teóricos, a doutrina imperativista é a mais aceita, sendo intrinsecamente relacionada às teorias estatualista (normas jurídicas são somente as emanadas pelo Esta-do) e coacionista (uma característica da norma jurídica é a coercibilidade ou coação).

1.2.3 Diferenças da Norma Jurídica para as demais normas

O grande diferencial entre as normas jurídicas das demais normas é a sanção, que corresponde à resposta à violação da norma de Direito. Uma norma prescreve o que deve ser, mas aquilo que deve ser não corresponde sempre ao que é. Se a ação real não corresponde à ação prescrita, houve violação da norma e a essa violação dá-se o nome de ilícito. O ilícito consiste em uma ação quando a norma é um imperativo negativo e em uma omissão quando a norma é um imperativo positivo.

A sanção é o expediente através do qual se busca, em um sistema normativo, salvaguardar a lei da erosão das ações contrárias. Todo sistema normativo implica o expe-diente da sanção. A finalidade da sanção é prevenir a violação ou, no caso em que a violação seja verificada, eliminar as consequências nocivas.

Existem diversos tipos de sanção e são estas que identificam a natureza da norma

em questão. São morais aquelas normas cuja sanção é puramente interior, cuja única con-

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sequência desagradável seria o sentimento de culpa, um estado incômodo, de perturbação, de angústia, de remorso ou arrependimento. As sanções sociais são externas e voltadas a tornar mais fácil ou menos difícil a convivência. Os comportamentos sancionadores apre-sentam diversos graus de gravidade: reprovação, eliminação do grupo, isolamento, expul-são, linchamento, etc. A reação do grupo à violação das normas que garantem sua coesão é um dos mais eficazes meios de controle social, no entanto essas sanções têm êxito incerto e apresenta inconsistência em sua aplicação pela falta de medida entre violação e resposta.

A sanção jurídica distingue-se da moral por ser externa e da social por ser institu-

cionalizada. A presença de uma sanção externa e institucionalizada é uma característica dos ordenamentos jurídicos. O argumento mais comum contra a teoria que vê na sanção um dos elementos constitutivos de um ordenamento jurídico se funda na presença, em todo or-denamento jurídico, de normas não garantidas por sanção. Quando se fala em uma sanção organizada como elemento constitutivo do Direito, queremos nos referir ao ordenamento normativo tomado no seu conjunto, e não a normas singulares.

1.3 Planos de Análise das Normas

Para entender a existência, validade, vigência, aplicabilidade e eficácia será utilizada a escada (ou escala) ponteana.

Na visão de Pontes de Miranda, os atos e negócios jurídicos em geral possuem três planos9, o que gera um esquema gráfico como uma escada com três degraus. Esses três degraus seriam:

Primeiro degrau (o plano da existência):  onde estão os elementos mínimos, os pressupostos de existência. Sem eles, o negócio não existe (agente, vontade, objeto e forma).

Segundo degrau (o plano da validade): onde estão os requisitos de validade. Partes capazes, vontade livre (sem vícios), objeto lícito, possível ou determinado ou determinável, e forma prescrita ou não defesa em lei.

Terceiro degrau (o plano da eficácia): onde estão as conseqüências do negócio jurídico, seus efeitos práticos no caso concreto. Elementos acidentais (condição, termo e encargo).

O que foi dito pode ser sistematizado na seguinte imagem:

9 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo IV. 4ª edição. São Paulo: RT, 212. P. 66 e ss.

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Assim, quando o fenômeno jurídico reúne esses três elementos (subindo os degraus da escada ponteana), ele alcança a perfectibilidade.

Como isso se aplica às normas? Analisando as normas sob a perspectiva da escada ponteana, é possível perceber à luz dos parâmetros estabelecidos pelo ordenamento jurídico, essas normas gozam de perfectibilidade (existência, validade e eficácia).

Para que a norma cumpra o plano de existência terá apenas de possuir um sujeito (alguém que cria essa norma), um objeto (assunto sobre o qual essa norma vai tratar) e uma forma (meio de externalização).

Já o plano de validade qualifica esses elementos do plano de existência, ou seja, não basta ter um sujeito para a norma seja válida, é necessário que o sujeito seja legítimo. Da mesma forma, o objeto da norma deve ser materialmente com as normas jurídicas superiores, bem como a forma deve ser conforme o devido processo legal (forma qualificada).

Por sua vez, no plano da eficácia, há situações fático-jurídicas aptas a tornarem a norma apta a sua realização social.

Veja-se casos em que essa aplicação revela-se importante.

1.3.1 Existência

Na história brasileira, há um caso emblemático de norma inexistente:

Anistia: Inconstitucionalidade: O Tribunal, por unanimidade, indeferiu habeas corpus impetrado por paciente condenado pelo crime do art. 95, d, da Lei 8.212/91 (...), em que se pleiteava a aplicação do parágrafo único do art. 11 da Lei 9.639, publicada em 26.05.98, que concedia anistia a todos os responsáveis pela prática do aludido

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crime, sendo que a referida Lei foi republicada no dia seguinte com exclusão do citado parágrafo. Considerou-se que o § único do art. 11, incluído na publicação primitiva, não fora aprovado pelo Congresso Nacional quando da votação do projeto de lei, existindo apenas em decorrência da inexatidão material nos autógrafos encaminhados à sanção do Presidente da República, ficando evidente a sua invalidade por inobservância do processo legislativo. Consequentemente, o Tribunal declarou, incidenter tantum, a inconstitucionalidade do § único do art. 11 da Lei 9.639, em sua publicação de 26 de maio de 1998, explicitando-se que a declaração tem efeitos ex tunc. (HC 77.724-SP, rel. Min. Marco Aurélio e HC 77.734-SC, rel. Min. Néri da Silveira, 4.11.98.)

Neste caso, foi publicado no Diário Oficial da União um dispositivo legal que concedia anistia a todos os responsáveis pela prática de determinado crime previdenciário. Ocorre, todavia, que o Congresso jamais aprovou esta lei, logo, nunca houve um sujeito criador da norma, portanto, revela-se como uma lei inexistente, não atendendo aos requisitos mínimos de existência presentes no texto da Constituição.

1.3.2 Validade

A validade é uma questão de existência técnica. Não basta existir. Tem de existir conforme o que propõe ordenamento jurídico. A validade está assim relacionada ao fato de ser emanada de um órgão competente, elaborada conforme suas regras pré-ordenadas de produção e guardar compatibilidade material com as normas que lhe são superiores. Por isso, fala-se em:

i) Validez Formal: está relacionada ao fato de ser emanada de um órgão competente, elaborada conforme suas regras pré-ordenadas de produção.

ii) Validez Material: está relacionada com a necessidade de a norma guardar compatibilidade material, ou seja, de conteúdo com as normas que lhe são superiores.

Assim sendo, as normas inferiores devem sempre buscar manter uma relação de validez formal e material para com as normas superiores.

1.3.3 Vigência

Veja o seguinte conceito:

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”Viger é ter força para reger as condutas inter-humanas sobre as quais a norma incide. Vigência é uma propriedade da norma jurídica que está pronta para propagar efeitos assim que ocorrerem os fatos previstos em suas hipóteses”10.

Vigência é assim a qualidade que possibilita a produção dos efeitos previstos para as normas válidas. Não há uma relação de condicionamento entre validade e vigência, mas de pertinência. A vigência comunica que os efeitos pertinentes à validade estão aptos a serem efetivados.

1.3.4 Eficácia

José Afonso da Silva:

“Eficácia é a capacidade de atingir objetivos previamente fixados como metas. Tratando-se de normas jurídicas, a eficácia consiste na capacidade de atingir os objetivos nela traduzidos, que vêm a ser, em última análise, realizar os ditames jurídicos objetivados pelo legislador”11.

Eficácia também é potência, mas pode ser a potência de produzir efeitos jurídicos (sendo sinônimo de aplicabilidade) ou materiais (sinônimo de efetividade).

“Por isso é que se diz que a eficácia jurídica da norma designa a qualidade de produzir, em maior ou menor grau efeitos jurídicos, ao regular, desde logo, as situações, relações e comportamentos de que cogita; nesse sentido, a eficácia diz respeito à aplicabilidade, a exigibilidade ou executoriedade da norma, como possibilidade de sua aplicação jurídica. O alcance dos objetivos da norma constitui a efetividade12.

Nesses termos, segundo José Afonso da Silva, a eficácia pode ser:

i) Eficácia Jurídica: é sinônimo de Aplicabilidade, ou seja, é a potência de a norma produzir efeitos no mundo jurídico (Ex.: Revogar normas anteriores que lhe forem contrárias).

10 PELÁ, Carlos. O Ordenamento e as Normas Inconstitucionais. In: A Validade e a Eficácia das Normas Jurídicas. P. 100.

11 Idem. Ibidem. P. 66.

12 Idem. Ibidem.

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ii) Eficácia Social: é sinônimo de Efetividade, ou seja, é a real capacidade de transformar a realidade social (Ex.: Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida. (...) § 2º Aos maiores de sessenta e cinco anos é garantida a gratuidade dos transportes coletivos urbanos. Visto que esse norma vem sendo respeitada no Brasil, pode-se afirmar que ela é efetiva).

Pedro Lenza explica que eficácia social se verifica na hipótese de a norma vigente, isto é, com potencialidade para regular determinadas relações, ser efetivamente aplicada a casos concretos. Eficácia jurídica, por sua vez, significa que a norma está apta a produzir efeitos na ocorrência de relações concretas; mas já produz efeitos jurídicos na medida em que a sua simples edição resulta na revogação de todas as normas anteriores que com ela conflitam13.

Segundo Ferraz Jr., uma norma considera-se dotada de efetividade quando encontra na realidade as condições adequadas para produzir os efeitos que lhes são próprios. O que depende, portanto, da presença de pressupostos de natureza fática, sem os quais fica comprometida a aplicação concreta da norma. Ferraz Jr. dá como exemplo a norma que exige o uso de um equipamento que não exista no mercado. Mas é a ocorrência de lacunas institucionais que explica boa parte da ineficácia social das normas. Serve de ilustração a respeito: se uma norma garante ao preso o direito de ser defendido por defensor público, porém não há defensor que possa ser nomeado, a norma não é socialmente eficaz, ou seja, encontra-se desprovida de efetividade14.

1.3.5 A eficácia como condição de validade em Kelsen. Eficácia e validade da norma jurídica, em regra, são vistos pelos autores como

juízos distintos. Dizer que uma norma é válida não implica, necessariamente dizer que ela é eficaz. Kelsen, no entanto, estabelece uma importante relação condicional entre eficácia e validade. A eficácia da norma é uma condição de sua validade. “Uma norma não é válida porque é eficaz, entretanto uma norma é válida se a ordem à qual pertence é, como um todo, eficaz”.

1.3.6 Critérios de Valoração das Normas de Bobbio

Segundo Bobbio, toda norma jurídica pode ser submetida a três valorações dis-tintas, e que estas valorações são independentes umas das outras: 1) se é justa ou injusta; 2) se é válida ou inválida; 3) se é eficaz ou ineficaz. Trata-se dos três problemas distintos: da justiça, da validade e da eficácia de uma norma jurídica.

13 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 20ª Edição. São Paulo: Saraiva 2016.

14 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 4ª edição, revista e ampliada. São Paulo: Atlas, 2002.

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Apesar de identificar a norma jurídica como objeto de análise, o autor questiona o que faz com que os indivíduos sigam tais regras. Afinal, sempre existiram regras de condu-ta (morais, religiosas, éticas, etc.) que muitas vezes foram mais destacadas e eficazes que o Direito. Mas a partir do momento que o Estado passou por um processo de secularização e não havia mais a figura de um Deus para forçar a obediência às regras, o que nos tornou as regras jurídicas de fato eficazes?

O critério da Justiça representa o problema da correspondência ou não da nor-

ma aos valores últimos ou finais que inspiram determinado ordenamento jurídico. Ou seja, o conflito entre o Real e o Ideal. É, portanto, um problema deontológico do Direito, pois se propõe a examinar os deveres e as regras de natureza ética, no campo da Teoria da Justiça.

O critério de Validade corresponde ao problema da existência da regra enquanto regra jurídica, independente de qualquer juízo de valor. São subcritérios de Validade a legi-timidade de poder da autoridade da qual a norma jurídica emanou; a sua não ab-rogação e a sua compatibilidade com as outras normas do sistema (incluindo as normas hierarquica-mente superiores). Apenas se presentes essas três características a norma pode ser conside-rada válida. É, portanto, um problema ontológico do Direito, pois se propõe a estudar o ser por meio da Teoria do Direito.

Já a eficácia corresponde à problemática de saber se a norma é ou não seguida pelas pessoas a quem é destinada (destinatários da norma jurídica) e, caso seja violada, se é executada com meios coercitivos pela autoridade que a estabeleceu. O fato de uma norma existir enquanto norma jurídica não implica que ela também seja constantemente seguida, devendo ser examinado sob uma ótica fenomenológica do Direito pela Sociologia Jurídica.

Os três critérios são independentes, apesar de poderem ser combinados de for-

ma a possibilitar uma análise mais aprofundada das normas e evitar sua análise reducionis-ta. Desta forma, Bobbio destaca as seguintes possibilidades:

• Norma justa e inválida: as proposições jusnaturalistas, os direitos naturais não inseridos em nenhum ordenamento positivo.

• Norma válida e injusta: a pena de morte ou de mutilação, sendo essas contrárias aos direitos humanos e a um referencial ético cristão, por exemplo;

• Norma válida e ineficaz: são casos de normas que entram em desuso com o tem-po, ou que foram emanadas, mas não surtiram efeito social.

• Norma eficaz e inválida: são as normas espontâneas de boa convivência ou mes-mo as normas estabelecidas por uma autoridade paraestatal que são obedecidas pelos habitantes;

• Norma justa e ineficaz: uma norma que, apesar de justa, não é respeitada e apli-cada.

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• Norma eficaz e injusta: algo pode ser extremamente difundido, porém, depen-dendo de um referencial, injusto.

1.4. A Ressignificação das Normas no Pós-Positivismo

O período pós-positivista tem como marca a ressignificação do conceito de norma, o que tem causado grandes alterações na própria compreensão do fenômeno jurídico.

A ideia de pós-positivismo surge do profícuo debate entre Herbert L. A. Hart15 e Ronald Dworkin16. Esse foi um dos mais profícuos embates do Direito no final do século XX. O pano de fundo era o confronto entre o positivismo de Hart e o nascente pós-positivismo de Dworkin. Considerando que a divergência entre os pensadores é vasta e densa, sendo, por isso, impossível de ser tratada aqui, não sem alguma rudeza no corte epistemológico, serão resumidos aqui os dois pontos centrais de discordância no que tange às normas jurídicas: i) a relação entre direito e moral; ii) a distinção entre regras e principios.

1.4.1 Relação entre Direito e Moral

No que tange à relação entre direito e moral, Hart, em seu pós-escrito na obra O Conceito de Direito17, afirma que é necessário, para a existência do poder coercitivo, que boa parte dos indivíduos submetidos às regras cooperem voluntariamente no seu cumprimento. Aponta ainda que o Direito dos Estados modernos já absorveu em muitos pontos a moral aceita, e, além disso, professam ideais morais mais vastas, ressaltando que a textura aberta do Direito deixa um campo de ação para os juízes, que não estão obrigados à aceitação cega da lei ou a dedução mecânica de regras.

Desse modo, na visão de Hart, os juízes podem fazer escolhas não mecânicas ou arbitrárias, valendo-se de “virtudes judiciais” (imparcialidade e a neutralidade), ao examinar as alternativas, considerando os interesses de todos os que serão afetados e a preocupação com a colocação de um princípio geral aceitável como base racional de decisão. De qualquer modo, para Hart, os direitos das partes envolvidas devem ser identificados por meio da consulta às fontes tradicionais do direito, isto é, o juiz deve apenas aplicar a lei ao caso sem uma preocupação de justificação moral.

Dworkin, por sua vez, dirá que quem afirma que o juiz deve aplicar a lei ao caso sem uma preocupação de justificação moral, na verdade, já está aplicando o Direito em uma perspectiva não neutra:

15 HART, Herbert L. A. O conceito de direito. 3.ed. Traduação de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001.

16 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução: Nelson Boeira. 3ª edição. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

17 HART, Herbert L. Ibidem.

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“Os juristas são treinados para analisar leis escritas e decisões judiciais de modo que extraem uma doutrina jurídica dessas fontes oficiais. Eles são treinados para analisar situações factuais complexas com o objetivo de resumir, de forma precisa, os fatos essenciais. E são treinados para pensar em termos táticos, para conceber leis e instituições jurídicas que produzirão mudanças sociais específicas, anteriormente decididas. A abordagem profissional da teoria do direito tentou reformular as questões relativas à doutrina legal de tal maneira que uma ou mais dessas qualificações pudesse ser empregada. Essa abordagem produziu apenas a ilusão de progresso e deixou intocadas as questões de princípio, genuinamente importantes, que existem no direito”18.

Para Dworkin, a identificação do Direito ocorre por uma “interpretação da prática jurídica”. Não fala, tal como faz Hart, em uma descrição neutra do fenômeno jurídico. Isso implica não somente em uma descrição da prática jurídica, mas também em uma “justificação moral dessa prática”, o que não é compartilhado por Hart. Assim sendo, a teoria jurídica dworkiniana é baseada em convicções morais.

“Mas Hart está errado ao descartar dessa maneira a teoria da responsabilização moral; na minha opinião, ele confunde duas razões pelas quais uma violação da lei pode ser moralmente errada. Pode ser errado violar uma lei porque o ato que a lei condena (matar, por exemplo) é errado em si mesmo. Ou pode ser errado, mesmo que o ato condenado não seja errado em si mesmo, simplesmente porque a lei o proíbe”19.

Com efeito, a decisão judicial, tal como posta por Dworkin, é uma questão não só jurídica, mas também política e moral. Essa reflexão abala os alicerces do positivismo até então reinante no cenário jurídico do período (que era avesso à proximidade entre Direito e Moral), levando à já citada ressignificação do conceito de norma jurídica, o que se manifesta na dicotômia entre princípios e regras.

1.4.2 A distinção entre regras e princípios

Os dois pensadores também divergem radicalmente quanto à categorização das normas jurídicas em regras e princípios. Para Hart, somente existiam regras, de modo que uma regra encontrava seu fundamento de validade em outra regra, até as finais de estruturação de toda a ordem jurídica, chamadas por ele de “regras de reconhecimento”.

18 DWORKIN, Ronald. Ibidem. P. 4.

19 Idem. Ibidem. P. 15.

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Dworkin, por outro lado, faz uma ressignificação do conceito de norma, apontando que ela pode ser de três espécies: princípios, políticas e regras. A posição de Dworkin é a de que os princípios e as políticas distinguem-se das regras em virtude de uma dimensão de peso, o que significa que princípios e políticas possuem um peso axiológioco (moral) maior. Trata-se assim de uma análise da importancia central da norma enquanto elemento moral de constituição da sociedade, transcedendo a mera análise de validade do positivismo. As regras, por sua vez, obedeceriam a um modelo de “tudo-ou-nada” (all or nothing), isto é, os casos de aplicação ao caso concreto são conclusivos ou não:

“A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão”20.

Hart, por outro lado, não pretende estabelecer uma diferença clara entre regras e princípios. Para o jurista inglês, a noção de princípios desenvolvida por Dworkin poderia se aplicar ao modelo de Direito proposto em seu Conceito de Direito. Para Hart, a única distinção entre regras e princípios seria gradativa e não qualitativa (ou ‘lógica’, como propõe Dworkin). Refuta, nesses termos, a crítica de que sua noção de regras se identifica com a noção dworkiniana de regras “tudo-ou-nada”. Dworkin, por sua vez, pretende provar que a noção de princípios por si desenvolvida é completamente incompatível com a teoria positivista hartiana.

Vale pontuar aqui que a distinção entre políticas (policies) e princípios para Dworkin é apenas a de que aquelas seriam as normas que garantem interesses coletivos ou sociais, por isso, sendo normalmente vistas como “políticas públicas”, enquanto os princípios, por sua vez, teriam um caráter mais individual. Tal ponto será melhor analisado abaixo, mas, desde já, mecece registro o fato de que a ideia de políticas de Dworkin não contou com ampla adesão no Brasil ou no restante do mundo, diferentemente, da crítica principiológica à noção de regra, que fez com que norma passasse a ser vista como gênero e princípios e regras como espécies, ponto este que contou com ampla aceitação na literatura.

O pós-positivismo, então, traz consigo uma ressignificação do conceito de norma, uma vez que, para o positivismo, havia uma identificação entre norma e regra (eram sinônimos), enquanto que, para o pós-positivismo, norma é gênero do qual serão espécies as regras e os princípios.

20 Idem. Ibibem. P. 61.

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1.4.3 A estrutura das normas na contemporaneidade

A questão da estrutura da norma atualmente é a da discussão a respeito de suas espécies, o que se consubstancia, basicamente, na busca de respostas aos seguintes questionamentos: Quais são as espécies estruturais de normas?; São apenas os princípios e as regras ou há outras categorias?; O que diferencia estruturalmente os princípios das regras?; É pacífica essa distinção entre princípios e regras? Agora serão investigadas as respostas a tais pontos.

Inicialmente, pode-se afirmar que, segundo a literatura majoritária, apenas princípios e regras são espécies de normas. Os autores da corrente divergente serão vistos em tópico mais abaixo.

Existe também grande controvérsia em relação a o que diferencia estruturalmente princípios e regras. Existem autores que defendem uma distinção forte (“tese da demarcação forte”) e outros que defendem uma distinção fraca (“tese da demarcação fraca”).

A tese da “demarcação forte” defende que a diferença entre princípios e regras é qualitativa, havendo distinções tanto na estrutura como no conteúdo das normas. A tese da “demarcação fraca”, por sua vez, decorre das críticas à tese da demarcação forte e assegura que o aspecto diferenciador seria apenas estrutural, relacionado ao maior grau de generalidade dos princípios.

A distinção entre regras e princípios com maior aceitação nos dias atuais é encontrada na obra Robert Alexy21, baseando-se, em grande medida, no trabalho de Ronald Dworkin, sendo caracterizada por defender uma diferenciação forte entre as espécies normativas.

Alexy diferencia as duas espécies normativas com base nos seguintes critérios:

a) grau de possibilidade de realização; b) forma do caráter mandamental;

21 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.

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c) forma de resolução de conflitos; d) aproximação de conteúdos axiológicos22.

Cabe, então, estudar cada um desses critérios.

a) O Grau de Possibilidade de Realização

Alexy distingue regras e princípios utilizando como critério o grau de possibilidade de realização da norma. Com isso, o autor alemão quer afirmar que os princípios possuem diferentes graus de aplicabilidade, ou seja, normas-princípio podem ser mais ou menos realizadas. Os princípios podem ser executados em um grau de eficiência maior ou menor a depender do esforço dos poderes constituídos. As regras, contudo, tal como antes alertado por Dworkin, são pautadas por uma realização baseada em um “tudo ou nada”, isto é, ou são plenamente implementadas ou são totalmente descumpridas.

Nesse sentido, mesmo que a efetivação de um princípio não seja plena, isso não significa que tal norma seja inválida. As regras, ao contrário, não possuem graus possíveis de realização, caso não sejam plenamente satisfeitas, estarão imediatamente violadas. Veja-se o art. 37 da CF/88:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte (...)

Nesse passo, pegando-se o Princípio da Moralidade da Administração Pública, percebe-se que ele pode ser cumprido em diferentes níveis. Se, por exemplo, a Administração consegue impedir completamente o nepotismo dentro do serviço público, o princípio foi cumprido em um grau excelente. Se, todavia, ainda há resquícios de nepostimo cruzado ou de parentes mais afastados, isso não significa que o princípio está sendo totalmente descumprido, mas que ele ainda pode ser manejado de modo mais eficiente. Logo, há diferentes graus de aplicabilidade dos princípios.

Por outro lado, veja-se o art. 111-A da CF/88:

Art. 111-A. O Tribunal Superior do Trabalho compor-se-á de vinte e sete Ministros (...) I - um quinto dentre advogados com mais de dez anos de efetiva atividade profissional e membros do Ministério Público do Trabalho com mais de dez anos de efetivo exercício, observado o disposto no art. 94.

22 Apesar de aqui ser desenvolvida a teoria principiológica com base em Robert Alexy, não se pode deixar de mencionar original teorização nacional sobre o assunto: ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplica-ção dos princípios jurídicos. 5ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2006. Pp. 156-157.

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Neste caso, ou bem os Tribunais respeitam a regra que garante que um quinto de suas vagas devem ser destinadas a advogados e membros do Ministério Público com mais de dez anos de efetivo exercício profissional ou não cumprem, sendo difícil existir um meio termo neste aspecto23.

Dessarte, o principal fator de distinção entre as espécies normativas, segundo Alexy, consiste no fato de os princípios poderem ser realizados em graus variados, sendo, por isso, chamados de “mandamentos de otimização”.

b) A Forma do Caráter Mandamental

Segundo Alexy, a forma do texto jurírdico (proposições ou mandamentos) pelo qual se exprimem os princípios possui um caráter prima facie, ou seja, os princípios determinam algo que deve ser realizado na maior medida possível (mesma noção de mandamento de otimização vista acima), não sendo possível aos mandamentos normativos principiológicos apresentarem toda a extensão de seu conteúdo, apenas indicando um seu primeiro sentido. As regras, ao contrário, seriam mandamentos definitivos, exigindo que seja feito exatamente aquilo presente em sua formulação jurídica, necessitando externar amplamente suas possibilidades fáticas e jurídicas, o que faz com que se afirme que possuem o caráter prescritivo.

c) A Forma de Resolução de Conflitos

Outro critério decisivo de distinção entre regras e princípios consiste na forma de resolução de conflitos, já que, segundo Alexy, quando os princípios entram em conflito, não há a necessidade de um princípio ser declarado inválido para que o outro possa prevalecer, havendo apenas uma precedência condicionada em uma determinada situação de um dos princípios. Já as regras resolvem seus conflitos por meio da invalidação de uma das duas normas em choque, através de regras de solução de antinomia.

Quanto ao critério da forma de resolução de conflitos, nota-se a forte influência do pensamento de Dworkin sobre Alexy, já que o autor americano ressalta que os princípios possuem uma “dimensão de peso”, que as regras não possuem, fazendo com que os princípios, em caso de embate normativo, exijam ponderação, enquanto as regras baseiam-se em uma lógica de “tudo ou nada”.

d) A Aproximação de Conteúdos Axiológicos

Há ainda a diferença baseada no critério de aproximação da espécie normativa de conteúdos axiológicos, pois Alexy estabelece uma correlação entre princípios e valores, afirmando que ambos apresentam o mesmo comportamento no que tange aos casos de

23 Veja-se o tópico abaixo sobre a possibilidade de ponderação das regras.

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“colisão”, “ponderação” e “cumprimento gradual”, funcionando os princípios como “critérios de valoração”, que são aqueles que podem ser sopesados. Nesses termos, os princípios são espécies normativas que possuem aproximação com conteúdos axiológicos, enquanto as regras possuiriam baixa carga axiológica.

Neste ponto, nota-se a influência do embate Hart-Dworkin no atual cenário pós-positivista, pois é da crítica de Dworkin à visão jurídico-positivista de Hart, acéptica à moral, que vai se construir uma teoria axiológica contemporânea do Direito, baseada, essencialmente, nos princípios como normas que consagram os valores dentro do sistema jurídico.

CRITÉRIOS DE DISTINÇÃO ENTRE PRINCÍPIOS E REGRAS PARA A

TEORIA DA DEMARCAÇÃO FORTEPRINCÍPIOS REGRAS

POSSIBILIDADE DE REALIZAÇÃO Graus Variados Total ou Não

MANDAMENTOS De Otimização Definitivos/Prescritivos

FORMA DE EXPRESSÃO Prima Facie Prescritivo

CONFLITO Ponderação “Tudo ou nada”

CARGA AXIOLÓGICA Forte Fraca

1.4.4 Críticas a uma distinção forte entre princípios e regras

Nos termos citados acima, há autores que criticam a dicotomia entre princípios e regras, apresentando objeções aos critérios de distinção sistematizados por Alexy. Dessas críticas, surge a chamada teoria da demarcação fraca entre princípios e regras. As críticas centrais à teoria principiológica de Alexy podem ser resumidas da seguinte forma:

a) incompatibilidade com o conceito semântico de norma; b) incompreensão hermenêutico-metodológica; c) retrocesso na conceituação de regra; d) autocontradição no que tange à noção de otimização.

a) Incompatibilidade com o Conceito Semântico de Norma

A presente crítica pode ser encontrada no autor finlandês Aulis Aarnio. Inicialmente, vale lembrar que o conceito semântico considera como normas o resultado do desdobramento hermenêutico dos modais deônticos presentes nos enunciados normativos. Desse modo, os aspectos linguísticos do texto normativo e o conjunto dos fatos que compõe a realidade são levados em consideração no processo interpretativo, logo, ao final de iter

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hermêneutico, o interprete chegará invariavelmente a uma regra a ser aplicada ao caso concreto, o que, poranto, dispensaria a distinção apriorística entre regras e princípios.

Em outras palavras, Aulis Aarnio quer dizer que os autores que realizam a distinção entre princípios e regras não estão analisando propriamente as normas, mas apenas os textos normativos, pois as normas em si só surgem ao final do processo interpretativo e, nesto momento, levando em conta todos os fatores (texto, realidade, a própria subjetividade do interprete etc.), o que surgirá será uma regra a ser aplicada ao caso concreto, sendo despiciendo a distinção apriorística entre princípios e regras24.

Resumidamente, a dicotomia teórica entre princípios e regras é inócua e, do ponto de vista prático, apenas as regras é que ganham densidade normativa suficientes para serem aplicadas.

b) Incompreensão Hermenêutica

É uma consequência da crítica anterior. Neste ponto, assevera-se que a distinção entre regras e princípios, principalmente, no que tange ao critério de distinção da forma de resolução de conflitos, incorre em uma incompreensão hermenêutico-metodológica do sistema jurídico. Tal se afirma, pois, como já foi demonstrado, partindo-se de um conceito semântico de norma, a interpretação com base em todos os fatos produzirá a regra a ser aplicada, sendo esta norma do caso concreto a solução dos aparentes conflitos entre os enunciados normativos abstratamente considerados.

Desse modo, a ideia de que o conflito entre princípios seria resolvido por ponderação e que o conflito entre regras seria sanadao por uma lógica de “tudo ou nada” não se sustentataria, posto que, nos dois casos, caberia uma lógica interpretativa levando em conta todos os fatores, que, por si só, evitaria esse choque e garantiria uma regra de aplicação ao caso concreto.

“É preciso, de um lado, considerar que há também regras mais ou menos vagas ou ambíguas, em função das quais a conseqüência jurídica não pode ser imediatamente implementada (regras que contém conceitos jurídicos indeterminados, p. ex.); (...). Assim, a afirmação segundo a qual as regras são aplicadas do modo ‘tudo ou nada’ só tem sentido quando todas as questões relacionadas à validade, ao sentido e à subsunção final dos fatos já estiverem superadas. (...) Isso porque a vagueza não é traço distintivo dos princípios, mas elemento comum de qualquer enunciado prescritivo, seja ele um princípio, seja ele uma regra. A única diferença permanece sendo de grau. Isso,

24 AARNIO, Aulis. Las reglas en serio. In: AARNIO, Aulis; VALDÉS, Ernesto Garzón; UUSITALO, Jyrki (coord.). La nor-matividad del derecho. Barcelona: Gedisa, 1997.

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entretanto, importa dizer que a característica específica das regras (implementação de conseqüência predeterminada) só pode surgir após a sua interpretação. Só aí é que podem ser compreendidas quais as conseqüências que, no caso de sua aplicação diante de um caso concreto, serão supostamente implementadas”25.

Arremata de modo incisivo Humberto Ávila:

“Vale dizer: a distinção entre princípios e regras não pode ser baseada no suposto método ‘tudo ou nada’ de aplicação das regras, pois também elas precisam, para que sejam implementadas as suas conseqüências, de um processo prévio - e por vezes longo e complexo como o dos princípios - de interpretação que demonstre quais as conseqüências que serão implementadas. E, ainda assim, só a aplicação diante do caso concreto é que irá corroborar as hipóteses anteriormente havidas como automáticas. Nesse sentido, após a interpretação diante de circunstâncias específicas (ato de aplicação), tanto as regras quanto os princípios, em vez de se extremarem, se aproximam”26.

Além disso, sustentam os autores da tese da demarcação fraca que as regras também podem ser ponderadas27 (logo, não são necessariamente “tudo ou nada”). Como as regras também são resultado de um processo hermenêutico, elas também podem ser ponderadas:

“Com efeito, a ponderação não é método privativo de aplicação dos princípios. A ponderação ou balanceamento (weighing and balan-cing, Abwagung), enquanto sopesamento de razões e contra-razões que culmina com a decisão de interpretação, também pode estar presente no caso de dispositivos hipoteticamente formulados, cuja aplicação é preliminarmente havida como automática (no caso de regras, consoante o critério aqui investigado), como se comprova mediante a análise de alguns exemplos”28.

Tal se deve justamente pelo fato de as regras apenas viverem em harmonia em abstrato, mas, na concretude de sua aplicação, entrarem em conflito, tal como conflituosa é a própria disputa dos interesses sociais que cada uma delas busca a defender. Logo, não

25 ÁVILA, Humberto. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Disponível em: file:///C:/Users/dpu/Downloads/47313-94245-1-PB%20(1).pdf. Acesso em 20.08.19, às 20h:02min.

26 Idem. Ibidem.

27 PECZENIK, Aleksander. On law and reason. Springer, 2008.

28 ÁVILA, Humenberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. P. 16.

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pode ocorrer de regra ser ponderada com outra regra para se preservar ao máximo os inte-resses sociais em questão.

Um exemplo possível é a questão do Tribunal do Júri e os crimes praticados por e contra militares. O Art. 5º, XXXVII da CF/88 afirma:

XXXVII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Já o Art. 124 também da CF/88 afirma:

Art. 124. à Justiça Militar compete processar e julgar os crimes mili-tares definidos em lei.

Nesses termos, questiona-se: e se um civil pratica um crime doloso contra a vida de militar em serviço ou um militar em serviço pratica um crime doloso contra a vida de civil, será competência do Tribunal do Júri, logo, da Justiça Comum ou será competência da Justiça Militar?

O STF, por exemplo, asseverou que crime praticado por civil contra militar no exercício de suas funções é competência da Justiça Militar e não do Tribunal do Júri:

A jurisprudência do STF é no sentido de ser constitucional o julgamento dos crimes dolosos contra a vida de militar em serviço pela Justiça Castrense, sem a submissão destes crimes ao tribunal do júri, nos termos do art. 9º, III, d, do CPM. [HC 91.003, rel. min. Cármen Lúcia, j. 22-5-2007, 1ª T, DJ de 3-8-2007.]

Da leitura do inteiro teor do julgado, notam-se uma série de ponderações realizadas pelo tribunal, mesmo sem se utilizar expressamente da terminologia “ponderação” com o fim de prestigiar a proteção do militar abatido em serviço. Do mesmo modo, em outros julgados, é possível verificar ponderações outras para afirmar que os crimes praticados por militares sem relação com a farda são de competência da Justiça Comum29.

29 “EMENTA: PROCESSUAL MILITAR. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO PRATICADO CONTRA CÔNJUGE POR MOTIVOS ALHEIOS ÀS FUNÇÕES MILITARES, FORA DE SITUAÇÃO DE ATIVIDADE E DE LOCAL SUJEITO À ADMINISTRAÇÃO MILITAR. CRIME MILITAR DESCARACTERIZADO (ART. 9º, II, “A”, DO CPM). COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. ORDEM CONCEDI-DA”. (HABEAS CORPUS 103.812/SP)

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c) Retrocesso na Conceituação de Regra

A presente censura pauta-se no retrocesso na conceituação de regra, decorrente da distinção entre as duas espécies normativas. Tal oposição faz sentido, quando se observa que o conceito de regra presente na teoria principiológica de Alexy é bastante restrito, enquadrando-se em tal definição apenas normas que exigem uma baixíssima carga argumentativa. O que se observa é que a tese de Alexy subestima a noção de regra, pois a trata como um mandamento definitivo, com baixa carga de abstração e generalidade, além de não guardar correspondência com o conteúdo axiológico, o que foi reservado apenas para os princípios em tal teoria.

Como bem vai ponderar Marcelo Neves, as regras também podem ser abstratas, gerais e possuir alta carga axiológica:

“Mas cabe acrescentar que os valores não entram no sistema jurídico apenas por via dos princípios, senão também diretamente mediante regras, como já demonstramos acima com vários exemplos referentes a preceitos constitucionais e legais. (...) Enfim, diante do exposto, não se pode, a rigor, distinguir princípios e regras constitucionais pelo caráter teleológico ou valorativo dos primeiros em detrimento das segundas, nem pela maneira que esses tipos se referem a valores. Tanto há princípios quanto regras que se referem imediata, direta e explicitamente a valores e fins, como há princípios que não se caracterizam por essa maneira de referência a eles”30.

Nesses termos, não cabe uma euforia desmedida sobre os princípios em detrimento das regras como se aqueles fossem estruturas prioritárias do sistema jurídico em detrimento destas. Ambas as estruturas normativas desempenham função complementar dentro do sistema jurídico, sendo algumas regras casulos para valores essenciais ao ordenamento, como, por exemplo, a citada regra que estabelece a competência do Tribunal do Juri, responsável por consagrar o valor vida, que é um axioma essencial ao nosso ordenamento.

d) Autocontradição no que tange à noção de Otimização

A quinta crítica é a da autocontradição no que tange à noção de otimização. Esta crítica resulta da percepção de que a noção de mandamento de otimização, ao se apresentar, como algo que deve ser realizado na maior medida possível, na realidade, expressa-se sob uma lógica de “tudo ou nada”, ou seja, possui um formato de regra. Em outras palavras, se todo princípio é algo que deve ser realizado na maior medida possível, logo, todo princípio traz

30 NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: Martins Fontes, 2013. P. 41.

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dentro de de si uma lógica prescritiva, portanto, uma lógica de regra! Nesses termos, gera-se uma contradição insustentável, afinal, como podem os princípios serem mandamentos de otimização e os mandamentos de otimização serem regras? A conclusão seria: princípios são regras!

Alexy absorveu esta crítica e buscou reformular o conceito de “mandamento de otimização”, passando afirmar que, mais tecnicamente, os princípios seriam, em verdade, “mandamentos a serem otimizados”, ou seja, os princípios passaram a não mais ser os ca-talizadores da otimização, mas o objeto de tal otimização. Tal mudança de posicionamente, todavia, alçou os princípios a um nível ainda mais abstrato e de difícil conceituação, passan-do a constituir, segundo Alexy, não um elemento do mundo do “dever ser” (Sollen) 31, mas de uma esfera do “dever ser ideal” (ideales Sollen)32.

A tentativa de salvar a teoria principiológica não parece ter sido exitosa, restando notória alguma tautologia da formulação do “dever ser ideal”.

Lado outro, apesar as críticas apresentadas, prevalece na literatura brasileira a tese da demarcação forte, mesmo que, recentemente, venha ganhando força a tese da demarcação fraca, a qual defende que a diferença entre regras e princípios é apenas na forma como os textos normativos são enunciados (princípios, em regra, seriam enunciados de forma mais geral e abstrata e as regras, comumente, seriam enunciadas de forma mais prescritiva).

1.4.5 Outras espécies estruturais de normas

Há uma quase unanimidade entre os autores que só há duas espécies de normas jurídicas: os princípio e as regras. No entanto, alguns autores citam ainda: as “políticas” (policys) e os postulados (metanormas ou normas de segundo grau).

Vejam-se essas espécies:

a) Políticas

São defendidas por Dworkin como mencionado acima. Na teoria de Dworkin, princípios e políticas teriam uma dimensão de peso, seriam mais gerais e abstratos e possuiriam uma carga axiológica mais elevada, o que os diferenciaria das regras. A diferença entre princípios e políticas, por sua vez, seria que estas teriam um caráter social, enquanto aqueles um caráter individual. Nas palavras do autor:

31 ALEXY, Robert. Ibidem. P. 139.

32 Para uma análise mais detida sobre a idéia de “dever-ser ideal” nas palavras do próprio Alexy cfr: Idem. La con-strucción de los Derechos Fundamentales. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2010. Pp. 40-64. Recente publicação que também trata do tema: Idem. Teoria Discursiva do Direito. Organização, tradução e estudo introdutório: Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. P. 199-203.

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“Denomino ‘política’ aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade (...). Denomino ‘princípio’ um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade”33.

As políticas, como espécie do gênero norma, não ganharam adesão expressiva entre os autores seja no Brasil seja no estrangeiro.

b) Postulados

Quem trabalha com a ideia de postulados é Humberto Ávila. Veja-se o que diz o autor:

“Os postulados normativos são entendidos como condições de possibilidade do conhecimento do fenômeno jurídico. (...) As condições de possibilidade do conhecimento jurídico reveladas pela hermenêutica jurídica consubstanciam postulados normativos: o conhecimento da norma pressupõe o do sistema e o entendimento do sistema só é possível com a compreensão das suas normas (postulado da coerência); só é possível conhecer a norma com a análise simultânea do fato, e descrever os fatos com recurso aos textos normativos (postulado da integridade); só é possível conhecer uma norma tendo em vista a sua pré-compreensão pelo sujeito cognoscente, definida como a expectativa quanto à solução concreta, já que o texto sem a hipótese não é problemático, e a hipótese, por sua vez, só surge com o texto (postulado da reflexão)”34.

Assim, para Humberto Ávila, postulados são condições para compreender o próprio fenômeno jurídico. Os postulados não seriam normas destinadas diretamente à sociedade. Na verdade, seriam normas que estão acima das demais (não hierarquicamente) e que ensinam o interprete a compreender as normas que seriam destinadas especificamente à sociedade (por isso que são chamadas de metanormas).

A noção de postulado, como espécie do gênero norma, também não ganhou adesão expressiva entre os autores seja no Brasil seja no estrangeiro.

33 DWORKIN, Ronald. Ibidem. P. 36.

34 ÁVILA, Humberto. A distinção entre Princípios e Regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. P. 165.

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1.5 Princípios Jurídicos

1.5.1. Evolução do conceito

Paulo Bonavides afirma que os princípios apresentam-se em três fases dentro da história.

a) Fase Jusnaturalista

Destaca-se por um forte teor metafísico e abstrato na apreciação dos princípios. Nas palavras do autor:

“A primeira – a mais antiga e tradicional – é a fase jusnaturalista; aqui, os princípios habitam ainda esfera por inteiro abstrata e sua normatividade, basicamente nula e duvidosa, contrataste com o reconhecimento de sua dimensão ético-valorativa de ideia que inspira os postulados de justiça”35.

Neste período, os princípios praticamente não possuem carga normativa, não sendo vistos sequer como normas.

Na fase jusnaturalista, os princípios possuem como caraterísticas: serem basea-dos na ideia de justiça; adotarem um modelo axiomático (vistos como verdades universais, mas sem cientificidade); apresentarem forte teor metafísico (abstrato e além do direito po-sitivo); serem extrajurídicos (não eram vistos como integrantes do campo do direito positi-vo); e serem fundados na ideia do Direito Natural.

b) Fase Positivista

Nessa fase, os princípios passam a ser vistos como algo diretamente componente do sistema jurídico, no entanto, de modo limitado, sendo tratados apenas como meios de integração do ordenamento:

“A segunda fase da teorização dos princípios vem a ser a juspositivista, com os princípios entrando já nos Códigos como fonte normativa subsidiária ou, segundo Gordillo Cañas, como ‘válvula de segurança’ que ‘garante o reinado absoluto da lei’”36.

Dessa forma, os princípios não eram vistos como fontes primárias, mas sim acessórias (supletivas, subsidiárias) do ordenamento jurídico.

35 BONAVIDES, Paulo. Ibidem. P. 232.

36 Idem. Ibidem. P. 235.

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Na fase positivista, os princípios possuem como caraterísticas: eram vistos como meios de integração do ordenamento; eram decorrentes de normas gerais ou extraíveis como ideais centrais da Ciência do Direito; eram extrajurídicos.

No Brasil, pode-se afirmar, inclusive, que foi positivada essa visão dos princípios como meios de integração do ordenamento, conforme art. 4º da LINDB:

Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

Antigamente, inclusive, entendia-se que entre esses meios de integração existia uma relação de preferência. Dessa forma, em caso de omissão, devia-se buscar primeiro a analogia, depois os costumes e, apenas por último, os princípios gerais do direito. Essa visão pode ser contemplada no seguinte trecho:

“A generalibus júri principiis, da qual deve ser extraída a decisão judicial quando a lei for omissa, falhe a analogia e não existam costumes adequados, tem como determinante o ‘espírito da ordem jurídica’, que se manifesta através de ‘valoração da camada dirigente’, como ultimum refugium do Juiz”37.

Esta compreensão, obviamente, resta defasada ante as visões contemporâneas do Direito.

c) Fase Pós-Positivista: a normatividade tardia dos princípios

Incialmente, veja-se trecho de Paulo Bonavides:

“A terceira fase, enfim, é a do pós-positivismo, que corresponde aos grandes momentos constituintes das últimas décadas deste século. As novas Constituições promulgadas acentuam a hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais”38.

Nota-se assim que esta é a fase atual em que vivemos, partindo das compreensões pós-Dworkin/Alexy e a ressignificação do conceito de norma.

Na fase pós-positivista, os princípios possuem como caraterísticas: reconhecida carga elevada de normatividade; alta carga axiológica; vistos como mandamentos de otimização; multifuncionais (passam a exercer diversas funções diferentes).

37 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 18ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

38 BONAVIDES, Paulo. Ibidem. P. 237.

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1.5.2. Multifuncionalidade e a Força Normogenética dos Princípios

a) Multifuncionalidade

Os princípios, em sua atual fase, com grande destaque dentro do sistema jurídico, passam a possuir múltiplas funções, podendo ser citadas:

a) Fundamentam o Ordenamento Jurídico;a) Servem como vetores interpretativos do Direito;b) Trabalham como fontes integradoras (ou integrativas) do Direito;c) Apontam os rumos do Estado e da Sociedade.

b) Força Normogenética dos Princípios (Canotilho)

Está relacionado com a função de fundamentação do ordenamento jurídico acima citada. Segundo J. J. Gomes Canotilho, os princípios são fundamentos de outras normas, ou seja, possuem o potencial de criar outros princípios ou outras regras a partir de si. São normas que geram outras normas (normo: normas + gênese: gerar; originar):

“Os princípios são fundamento de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundante”39.

Daí possuírem uma força criadora dentro do sistema jurídico.

39 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª Edição. 2ª Reimpressão. Coimbra: Edições Almedina, 2003. P. 1161.