Cursos de Gilles Deleuze

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  • 8/11/2019 Cursos de Gilles Deleuze

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    Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Helio Rebello Cardoso Jr. sobre esta traduo portuguesa

    INTRODUO

    Gostaramos inicialmente de registrar nosso agradecimento ao Professor Ernesto HernndesSantiago, da cidade de Cali, Colmbia, responsvel pelas excelentes tradues dos cursosde Gilles Deleuze para o espanhol expostas na Web Deleuze, a gentil autorizao paratraduzirmos os cursos para o Portugus.

    Entretanto, este trabalho ainda um devir. um vir a ser em dois sentidos: no sentido deque as prprias transcries dos cursos proferidos por Deleuze ainda esto por serem postosna WEB Deleuze; e, um devir no sentido de que o nosso trabalho uma pequena parcelados cursos. Traduzimos apenas os cursos proferidos em Vincennes, sobre Spinoza, noperodo de 24 de janeiro de 1978 a 24 de maro de 1981 e que foram traduzidos para oespanhol. Tal seleo, ainda que modesta, cumpre parte de nosso objetivo de divulgao da

    leitura deleuziana de Spinoza, bem como do prprio pensamento de Deleuze, a um nmerocada vez mais crescente de estudiosos de Deleuze e de Spinoza.

    Os cursos de Deleuze tm caractersticas peculiares, no s por serem transcries de fitascassetes gravadas no decorrer das aulas, mas tambm pelo estilo coloquial prprio de umasala de aula. Em nossa traduo, atravs de um cotejo sistemtico com as transcries emfrancs, procuramos conservar o estilo coloquial original o mximo possvel, a despeito dosprejuzos que possamos ter causado na adequao do texto lngua portuguesa. Tal fatoocasionou em algumas ocasies a necessidade de sacrificarmos o vocabulrio e a sintaxeprpria da lngua portuguesa, ocasionando algumas construes frasais pouco usuais emportugus, mas bastante usuais em francs. Entretanto, ainda que poucos usuais, taisconstrues no comprometeram o sentido do texto original, bem como seu entendimento

    em portugus; ou seja, sempre que tnhamos que optar entre o estilo coloquial original e oestilo coloquial prprio da lngua portuguesa, optamos pela traduo o mais literal possvelda primeira. Alm disto, mantivemos as intervenes dos alunos ocorridas ao longo dasaulas (algumas jocosas), as interrupes decorrentes do processo de gravao (trmino dafita, parada da fita para mudar o lado, etc.), as descries por parte da responsvel pelasgravaes das fitas das expresses faciais ou corporais, assumidas por Deleuze paraenfatizar determinadas afirmaes, bem como as expresses prprias do francs utilizadaspor Deleuze (interjeies, etc.), conforme assinaladas nas transcries, com o intuito depassar ao leitor a imagem mais prxima possvel de Deleuze atuando na sala de aula.

    Utilizamos notas somente quando o entendimento do texto poderia ficar comprometido seno o fizssemos, pois procuramos evitar sempre a quebra de ritmo na leitura. Ademais, oestilo prprio de Deleuze extremamente claro e bastante didtico, ocasionando poucasocasies de acrescentarmos notas explicativas.

    No que se refere pontuao, devido ao fato dos cursos serem transcries de fitas,sentimo-nos muito vontade para buscar uma adequao lngua portuguesa. Donde, aalterao substancial tanto na pontuao utilizada na transcrio, quanto na utilizada pelatraduo espanhola.

    Por fim, quanto diviso por pargrafos, ou paragrafao, observamos aquela utilizadanas tradues para o espanhol, pois nos pareceu mais elaborada quanto diviso porassuntos tratados nos cursos do que a transcrio francesa.

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    Deleuze e Spinoza

    Deleuze traa um retrato de Spinoza em que sobressai um tom de afeto e de admirao.Estampada na vida de Spinoza estaria a solido do filsofo1, que no necessariamente oisolamento asctico e nem mesmo o recolhimento da contemplao, caractersticas com queusualmente nos comprazemos em caricaturar a vida de um filsofo.

    A solido do filsofo advm da impossibilidade de sua integrao nos meios em que vive,mesmo que ele tenha escolhido viver neste ou naquele ambiente mais favorvel atividadefilosfica. Tal era a solido de Spinoza que, com certeza, procurou os meios democrticosholandeses, em fuga da opresso do gueto e da ortodoxia judaica. No entanto, essa pousadajunto aos liberais no quer dizer que sua filosofia se identificasse ou desposasse algum fimpoltico ou do Estado, pois, como assevera Deleuze, o filsofo pode habitar diversos

    Estados, freqentar diversos meios, mas como um eremita, uma sombra, viajante, inquilinode quartos mobiliados2.

    Essa caracterizao da vida de Spinoza serve, inclusive, para um contraste com Leibniz,filsofo tambm estudado e apreciado por Deleuze. De fato, ambos estariam muitoprximos quanto aos princpios ontolgicos que norteiam seus pensamentos, muito embora,em dois textos, Leibniz tenha declarado seu desacordo com Spinoza3.

    A divergncia parece dever-se muito mais ao estilo de vida de ambos que potncia deseus pensamentos. Leibniz, sendo um filsofo da corte, teria ocultado seu encontro comSpinoza a fim de resguardar-se do comprometimento poltico com um pensador associadoaos republicanos holandeses e combatido por representantes de diversas correntesfilosficas vigentes em seu tempo. Entre um filsofo da corte e um filsofo viandante,mundanos em sentidos diferentes, tinha de haver um estranhamento, apesar de suaproximidade como criadores da filosofia.

    Spinoza muito mais um operrio ou arteso da filosofia. A sua maneira de viver,incluindo o ofcio de confeccionar lentes, nos mostra Deleuze, est plenamente de acordocom seu pensamento filosfico. Na vida de Spinoza j encontramos razo suficiente paravalorizar seu pensamento, visto podermos dizer que h, nos conceitos que prope, um estilode vida propriamente spinozista. Spinoza teria criado uma zona de vizinhana, um eloimanente entre sua criao conceitual e sua maneira de viver. Esse acontecimento no irrelevante em termos da filosofia, uma vez que o senso comum apregoa que o pensamentosofreria de uma deficincia com relao vida. Muitas vezes, vemos o pensamento acuado

    com relao vida, a ela inadaptado, segregado em sua altivez ou ressentido em suaafetao.

    curioso, contudo, notar que h um desacordo ou uma relao inversamente proporcionalentre a fidelidade da vida de um filsofo ao seu pensamento e a memria que lhe reserva ahistria da filosofia.

    1DELEUZE, Spinoza: philosophie pratique., Paris: Minuit, 1981, p. 10.2Ibid., p. 11.3Cf. DELEUZE, Spinoza et le problme de lexpression. Paris: Minuit, 1968, p. 66-69.

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    Spinoza foi um desses filsofos que a histria da filosofia classificou de maneira vaga emesmo com uma certa negligncia. O seu pensamento foi induzido a participar de umcarter dbio, malogrado, que em geral se utiliza para escrever por sobre um pensamento

    uma histria que lhe estranha. Spinoza ficou assim dividido entre o herdeiro da filosofiamedieval e o cartesianismo que no pudera levar a cabo. Se, por um lado, procurara escapar herana medieval por meio de categorias cartesianas, por outro lado, continuara a carregaro fardo escolstico, justamente porque no conseguira consumar um cartesianismo que lheestaria latente.

    Este seria o veredicto mais recorrente a respeito do pensamento spinozista, caracterizando-ocomo um captulo da histria da filosofia.

    Deleuze v a justamente a oportunidade de liberar as foras de um pensamento,conquistando um aliado, pois, ao invs de ficar cindido entre a tradio escolstica e amodernidade cartesiana, Spinoza teria se servido do cartesianismo como um meio no de

    suprimir, mas de depurar toda a escolstica, o pensamento judeu e renascentista, para delesextrair algo profundamente novo que pertence to somente a Spinoza4.

    Tal inovao estende-se igualmente questo teolgica, pois Deus, em sua filosofia, definido como um verdadeiro conceito ou, se quisermos consider-lo um princpio em suafilosofia, que seja um princpio ou potncia de criao conceitual.

    Encetando esta trilha, Deleuze constata que o Deus de Spinoza, em consonncia com anovidade presente em sua criao filosfica, no o amarra, que o deixa livre para pensar,pois no um Deus da transcendncia. Com efeito, Deleuze tem mais reservas quanto sfilosofias que, tendo banido o princpio teolgico do sistema de pensamento, continuaram apressupor algum tipo de transcendncia. Ao contrrio, Spinoza procura criar a idia de um

    Deus imanente a suas criaturas ou Natureza, como princpio ontolgico em sua filosofia.Deste modo, Spinoza tem muito a ensinar a uma filosofia que no sua por causa e noapesar de seu Deus como possvel construir a imanncia do pensamento. Era necessriodefinir Deus a fim de que aprendssemos a conquistar a imanncia para o pensamento.

    O tratamento dispensado por Deleuze a Spinoza renova as disposies do primeiro comrelao histria da filosofia. Deleuze no s extrai de seu pensamento um Spinoza doanti-cartesianismo e o pe no lugar de um cartesiano mal sucedido, como tambm osada por estender seus benefcios alm de seu tempo, pois o reparo que Hegel far aSpinoza, de ter ignorado o negativo e sua fora, acaba por ser a glria e a inocncia deSpinoza, a sua prpria descoberta5.

    Spinoza ignora o trabalho do negativo e inventa a afirmao da imanncia. Em vista disso,no hesita em afirmar Deleuze, Spinoza o prncipe dos filsofos. Talvez o nico a nofirmar nenhum compromisso com a transcendncia6, isto porque ele pensou o melhorplano de imanncia, isto , o mais puro, o que no se d ao transcendente ..., o que inspiramenos iluses, maus sentimentos e percepes equivocadas...7.

    4DELEUZE, Spinoza: philosophie pratique.. Op. cit., p. 16.5DELEUZE, Spinoza: philosophie pratique. Op. cit., p. 22.6DELEUZE & GUATTARI, Quest-ce que la philosophie?. Paris: Minuit, 1991, p. 49.7Ibid., p. 59.

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    A conexo entre a teoria do conhecimento, em particular a teoria das idias, e a ontologia,no pensamento de Spinoza, parece, primeira vista, um tanto embaraosa, pois, filosofiacontempornea, soa anacrnica a idia de que preocupaes epistemolgicas tenham de se

    haver com questes ontolgicas; estranhamento este ainda agravado pelo fato destasquestes envolverem um Deus.

    Seja como for, permitimo-nos afirmar, numa visada abrangente, que o ponto de destaquena teoria do conhecimento baseada num pensamento da imanncia sua ressonnciaprtica, onde se articula o binmio construir a imanncia/experimentar modos de vida.

    esse o elemento-chave das aulas de Deleuze.

    Londrina (PR), inverno de 2000 (1 Verso)

    Fortaleza (CE), inverno de 2005 (Verso atual)

    Emanuel Angelo da Rocha FragosoHlio Rebello Cardoso Jr.

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    Curso de 24/01/1978

    Hoje faremos uma pausa em nosso trabalho sobre a variao contnua, e voltaremosprovisoriamente, por uma sesso, Histria da Filosofia, sobre um ponto muito preciso. como um corte, pedido por alguns de vocs. Esse ponto muito preciso concerne a isto: oque uma Idia e o que um Afeto em Spinoza ? Idia e Afeto em Spinoza. No transcursode maro, a pedido de alguns de vocs, tambm faremos um corte sobre o problema dasntese, e o problema do tempo em Kant.

    Experimento um curioso efeito ao voltar histria. Quisera que vocs tomassem este corteda Histria da Filosofia como uma histria literal. Apesar de tudo, um filsofo no somente algum que inventa noes, talvez ele tambm invente maneiras de perceber.Procedo quase por enumerao. Comeo, sobretudo, por observaes terminolgicas.Suponho que a sala est relativamente misturada. Eu creio que, de todos os filsofos que aHistria da Filosofia nos fala, Spinoza est numa situao muito excepcional: a maneira aqual ele toca aqueles que entram em seus livros no tem equivalente.

    Pouco importa que o tenham lido ou no, eu conto uma histria. Eu comeo pelas advertnciasterminolgicas. No livro principal de Spinoza, e que se chama tica, escrito em latim, seencontram duas palavras: affectio eaffectus. Alguns tradutores muito estranhamente as traduzemda mesma maneira. uma catstrofe. Traduzem os dois termos affectioeaffectuspor afeco.

    Eu digo que uma catstrofe, porque, quando um filsofo emprega duas palavras que, porprincpio, tem uma razo, sobretudo que o francs nos d facilmente as duas palavras quecorrespondem rigorosamente a affectioe affectus, e so afeco para affectioe afeto para affectus.Alguns tradutores traduzem affectiopor afeco e affectuspor sentimento, isto melhor do quetraduzi-las com a mesma palavra, porm eu no vejo a necessidade de recorrer palavrasentimentoquando o francs dispe da palavra afeto8.

    Ento, quando emprego a palavra afetoisso remete ao affectusde Spinoza, quando digo apalavra afeco, esta remete a affectio.

    Primeiro ponto: o que uma idia ? O que uma idia para compreender at mesmo asproposies mais simples de Spinoza ? Sobre este ponto Spinoza no original, ele toma a

    palavra idia no sentido em que todo mundo sempre a tomou. O que chamamos idia, nosentido em que todo mundo sempre a tomou na Histria da Filosofia, um modo depensamento que representa qualquer coisa. Um modo de pensamento representativo. Porexemplo, a idia do tringulo o modo de pensamento que representa o tringulo. Do pontode vista sempre da terminologia, muito til saber que desde a Idade Mdia este aspecto daidia denominado realidade objetiva. Em um texto do sculo XVII ou de antes, quandovocs encontram a realidade objetiva da idia isto quer dizer sempre: a idia consideradacomo representao de qualquer coisa. A idia, enquanto representa qualquer coisa dita

    8NT: Em portugus tambm temos as duas palavras: afeco(affectio)e afeto(affectus).

    Traduo de:Emanuel Angelo da Rocha Fragoso

    Hlio Rebello Cardoso Jr.

    [email protected] Brasil

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    ter uma realidade objetiva. Esta realidade objetiva a relao da idia com o objeto que elarepresenta.

    Ento, se parte de uma coisa muito simples: a idia um modo de pensar definido por seucarter representativo. Isto j nos d um primeiro ponto de partida para distinguir idia e afeto(affectus) porque se chama afeto a todo modo de pensamento que no representa nada. O que que isto quer dizer ? Tomemos ao acaso isto, no importando que se chame afeto ousentimento, uma esperana por exemplo, uma angstia, um amor, o que no representativo.Nisto h bem uma idia da coisa amada, h bem uma idia de alguma coisa prometida, mas aesperana enquanto tal ou o amor enquanto tal no representam nada, estritamente nada.

    Todo modo de pensamento enquanto no representativo ser denominado afeto. Umavolio, uma vontade, implica bem, a rigor, que eu quero alguma coisa, isto que eu quero, objeto de representao, isso que eu quero est dado em uma idia, mas o fato de quererno uma idia, um afeto porque um modo de pensamento no representativo.

    Funciona, isto no complicado.Conclui-se imediatamente um primado da idia sobre o afeto, e isto comum a todo osculo XVII; ainda no entramos no que prprio de Spinoza. H um primado da idiasobre o afeto por uma razo muito simples e que para amar necessrio ter uma idia, pormais confusa que ela seja, por mais indeterminada que ela seja, do que se ama.

    Para querer necessrio ter uma idia, por mais confusa, por mais indeterminada que ela seja,do que se quer. Mesmo quando dizemos eu no sei o que sinto, h uma representao,igualmente confusa, do objeto. H uma idia, se bem que confusa. H, pois, um primadocronolgico e lgico da idia sobre o afeto, isto , dos modos representativos do pensamentosobre os modos no representativos. Haveria um contra-senso, inteiramente desastroso, se o

    leitor transformar este primado lgico em reduo. Que o afeto pressupe a idia, isto,sobretudo, no quer dizer que ele se reduz idia ou uma combinao de idias. Nsdevemos partir disto, que idia e afeto so duas espcies de modos de pensamento que diferemem natureza, irredutveis um ao outro, porm simplesmente apanhados em uma tal relao queo afeto pressupe uma idia, por mais confusa que ela seja. Este o primeiro ponto.

    Segunda maneira menos superficial de apresentar a relao idia-afeto. Vocs recordamque ns partimos de um carter de fato absolutamente simples da idia. A idia umpensamento enquanto representativa, um modo de pensamento enquanto representativa, e neste sentido, se falar da realidade objetiva de uma idia. Uma idia notem somente uma realidade objetiva, segundo a terminologia consagrada ela tem tambmuma realidade formal. O que a realidade formal da idia, uma vez dito que a realidade

    objetiva a realidade da idia enquanto ela representa alguma coisa ? A realidade formal daidia, se diria, , agora isso se torna muito mais complicado e de pronto mais interessante, a realidade da idia enquanto ela ela mesma alguma coisa.

    A realidade objetiva da idia de tringulo a idia de tringulo enquanto representando acoisa tringulo, porm a idia de tringulo, ela ela mesma qualquer coisa; por outra parte,enquanto ela alguma coisa, eu posso formar uma idia desta coisa, eu posso sempreformar uma idia da idia. Eu diria, ento, que no somente toda idia idia de algumacoisa dizer que toda idia idia de alguma coisa, dizer que toda idia tem uma

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    realidade objetiva, ela representa qualquer coisa , porm eu tambm diria que a idia temuma realidade formal visto que ela ela mesma, alguma coisa enquanto idia.

    Que quer dizer isto, a realidade formal da idia ? No podemos continuar muito longe nestenvel, vai ser preciso deixar isso de lado. Basta acrescentar que esta realidade formal daidia vai ser o que Spinoza denomina muito freqentemente um certo grau de realidade oude perfeio que a idia tem enquanto tal. Cada idia tem, enquanto tal, um certo grau derealidade ou de perfeio. Sem dvida este grau de realidade ou de perfeio est ligado aoobjeto que ela representa, porm no se confunde com ele: a realidade formal da idia, asaber, a coisa de que a idia ou o grau de realidade ou de perfeio que ela possui em si, seu carter intrnseco. A realidade objetiva da idia, a saber, a relao da idia com o objetoque ela representa seu carter extrnseco; pode ser que o carter extrnseco e o carterintrnseco da idia estejam fundamentalmente ligados, porm no so a mesma coisa. Aidia de Deus e a idia de r tm uma realidade objetiva diferente, a saber: elas no

    representam a mesma coisa, mas ao mesmo tempo elas no tm a mesma realidadeintrnseca, elas no tm a mesma realidade formal, a saber, que uma vocs o sentem bem tem um grau de realidade infinitamente maior do que a outra. A idia de Deus tem umarealidade formal, um grau de realidade ou de perfeio intrnseca infinitamente maior doque a idia de r que a idia de uma coisa finita.

    Se vocs compreenderam isto, vocs compreenderam quase tudo. H ento uma realidadeformal da idia, isto , que a idia qualquer coisa em si mesma, esta realidade formal seu carter intrnseco e o grau de realidade ou de perfeio que ela envolve em si mesma.

    At agora, quando eu definia a idia por sua realidade objetiva ou por seu carterrepresentativo, eu opunha imediatamente a idia ao afeto dizendo que o afeto precisamente um modo de pensamento que no tem carter representativo. Agora acabo dedefinir a idia por isto: toda idia alguma coisa, no somente idia de alguma coisa, mastambm alguma coisa, isto , tem um grau de realidade ou de perfeio que lhe prprio. necessrio ento que, a este segundo nvel, eu descubra uma diferena fundamental entreidia e afeto. O que que se passa concretamente na vida ? Se passa duas coisas... E a, curioso como Spinoza emprega um mtodo geomtrico, vocs sabem que a tica seapresenta sob a forma de Proposies, Demonstraes, etc... e ao mesmo tempo, quantomais isto matemtico, mais isto extraordinariamente concreto.

    Tudo que eu digo e todos esses comentrios sobre idia e afeto remetem aos Livros II e IIIdatica. Nestes Livros II e III, ele nos faz uma espcie de retrato geomtrico de nossa vidaque, me parece, muito, muito convincente. Este retrato geomtrico consiste em dizer-nos,

    a grosso modo, que nossas idias se sucedem constantemente: uma idia persegue a outra,uma idia substitui a outra, por exemplo, como o instante. Uma percepo um certo tipode idia, logo veremos porqu. At o momento eu tinha a cabea girada at ali, eu via ocanto da sala, eu volto..., uma outra idia; eu caminho por uma rua onde eu conheo aspessoas, eu digo bom dia Pedro e depois eu me volto e digo bom dia Paulo. Ou bem so ascoisas que mudam: eu observo o sol, e o sol pouco a pouco desaparece e eu me encontro nanoite; so ento, uma srie de sucesses, de coexistncias de idias, sucesses de idias.Porm, o que ocorre alm disto ? Nossa vida cotidiana no feita somente de idias que sesucedem. Spinoza emprega o termo automaton; ns somos, diz ele, os autmatosespirituais, isto quer dizer que menos ns que temos as idias do que as idias que se

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    afirmam em ns. Que que ocorre tambm, aparte esta sucesso de idias ? H outra coisa,a saber: qualquer coisa em mim no cessa de variar. H um regime da variao que no amesma coisa que a sucesso das idias em si-mesmas. Variaes, isto deve servir-nos

    para o que queremos fazer, o chato que ele no emprega a palavra... O que esta variao? Eu retomo meu exemplo: eu cruzo na rua com Pedro que me muito antiptico, e depoisque eu o ultrapasso, digo bom dia Pedro, ou bem eu tenho medo e depois eu vejorepentinamente a Paulo que me muito encantador, e eu digo bom dia Paulo, tranqilizado,contente. Bem. De que se trata ? De uma parte, sucesso de duas idias, a idia de Pedro e aidia de Paulo; porm h outra coisa: operou em mim, tambm, uma variao aqui, aspalavras de Spinoza so muito precisas, eu as cito: (variao) de minha fora de existir, ououtra palavra que ele emprega como sinnimo: vis existendi, a fora de existir ou potentiaagendi, a potncia de agir, e suas variaes so perptuas.

    Eu diria que para Spinoza h variao contnua e existir quer dizer isto da fora de

    existir ou da potncia de agir.Como se encaixa isto com meu exemplo estpido, porm que de Spinoza, bom dia Pedro,bom dia Paulo ? Quando vejo a Pedro que me desagrada, uma idia, a idia de Pedro me dada; quando vejo a Paulo que me agrada, a idia de Paulo me dada. Cada uma dessasidias em relao a mim tem um certo grau de realidade ou de perfeio. Eu diria que aidia de Paulo, em relao a mim, tem mais perfeio intrnseca que a idia de Pedro postoque a idia de Paulo me alegra e a idia de Pedro me entristece. Quando a idia de Paulosucede idia de Pedro, convm dizer que minha fora de existir ou minha potncia de agir aumentada ou favorecida; quando, ao contrrio, o inverso, quando depois de ter vistoalgum que me torna alegre, eu vejo algum que me torna triste, eu digo que minhapotncia de agir inibida ou impedida. Neste nvel, no sabemos mais se estamos ainda nas

    observaes terminolgicas ou se estamos j em alguma coisa muito mais concreta.Eu diria ento que medida que as idias se sucedem em ns, cada uma tendo seu grau deperfeio, seu grau de realidade ou de perfeio intrnseca, esse que tem essas idias, eu, eu nocesso de passar de um grau de perfeio a outro. Em outros termos, h uma variao contnuasob a forma aumento-diminuio-aumento-diminuio da potncia de agir ou da fora deexistir de acordo com as idias que se tem. Atravs deste exerccio penoso, sinto como aflora abeleza. J ruim esta representao da existncia, a existncia na rua o verdadeiramente, hque imaginar Spinoza passeando, e ele vive verdadeiramente a existncia como esta espcie devariao contnua: medida que uma idia substitui outra, eu no cesso de passar de um graude perfeio a outro, mesmo minsculo, e esta espcie de linha meldica da variao contnuaque vai definir o afeto (affectus) ao mesmo tempo em sua correlao com as idias e suadiferena de natureza com as idias. Ns nos damos conta desta diferena de natureza e destacorrelao. Vocs diro se isto lhes convm ou no. Ns temos todos uma definio muitoslida do affectus; o affectusem Spinoza a variao (ele fala por minha boca; no o disseporque morreu demasiado jovem...), a variao contnua da fora de existir, enquanto estavariao determinada pelas idias que se tem.

    Ento, em um texto muito importante no final do Livro III, que leva o ttulo DefinioGeral dos affectus, Spinoza nos diz: sobretudo no creio que o affectus, tal como oconcebo, depende de uma comparao de idias. Ele quer dizer que a idia por mais queseja primeira em relao ao afeto, a idia e o afeto so duas coisas que diferem em

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    natureza, o afeto no se reduz a uma comparao intelectual das idias, o afeto estconstitudo pela transio vivida ou pela passagem vivida de um grau de perfeio a outro,enquanto esta passagem determinada pelas idias; porm em si mesmo, ele no consiste

    em uma idia, ele constitui o afeto.Quando eu passo da idia de Pedro idia de Paulo, eu digo que minha potncia de agir aumentada; quando passo da idia de Paulo idia de Pedro, eu digo que minha potncia de agir diminuda. O que quer dizer que quando vejo a Pedro, eu sou afetado de tristeza; quando vejo aPaulo eu sou afetado de alegria. E, sobre esta linha meldica da variao contnua constitudapelo afeto, Spinoza vai assinalar dois plos: alegria-tristeza, que sero para ele as paixesfundamentais, e ser triste toda paixo, qualquer paixo que envolva uma diminuio de minhapotncia de agir, e ser alegre toda paixo que envolva um aumento de minha potncia de agir. Oqual permite a Spinoza abrir-se, por exemplo, sobre um problema moral e poltico fundamental eque ser sua maneira de formular o problema poltico: como sucede que as pessoas que tm o

    poder, no importa em que domnio, tenham necessidade de afetar-nos de uma forma triste ? Aspaixes tristes como necessrias. Inspirar as paixes tristes necessrio ao exerccio do poder. ESpinoza diz, no Tratado Teolgico-Poltico, que este o lao profundo entre o dspota e osacerdote, eles tm necessidade da tristeza de seus sujeitos. Aqui, vocs compreendem bem queele no toma a tristeza num sentido vago, ele toma a tristeza no sentido rigoroso que ele soube lhedar: a tristeza o afeto enquanto envolve a diminuio da potncia de agir.

    Quando eu dizia, em minha primeira diferena idia-afeto, (que a idia o modo de pensar querepresenta algo), que o afeto o modo de pensar que no representa nada, eu diria, em termostcnicos, que isto no mais do que uma simples definio nominal, ou, se vocs preferem,exterior, extrnseca.

    A segunda, quando eu digo por um lado, que a idia o que tem em si uma realidadeintrnseca, e o afeto a variao contnua ou a passagem de um grau de realidade a outro oude um grau de perfeio a outro, ns j no estamos mais no domnio das definies ditasnominais, ns j temos a uma definio real, chamando definio real definio quemostra, ao mesmo tempo que ela define a coisa, a possibilidade desta coisa.

    O importante que vocs vejam como, segundo Spinoza, ns somos fabricados comoautmatos espirituais. Enquanto autmatos espirituais, todo o tempo h idias que sesucedem em ns, e seguindo esta sucesso de idias, nossa potncia de agir ou nossa forade existir aumentada ou diminuda de uma maneira contnua, sobre uma linha contnua, eisto o que ns chamamos afeto, isto o que ns chamamos existir.

    O affectus ento a variao contnua da fora de existir de algum, enquanto esta variao

    determinada pelas idias que ele tem. Porm, uma vez mais, determinada no quer dizerque a variao se reduz s idias que ele tem, posto que a idia que eu tenho s d conta desua conseqncia, a saber, que ela aumenta minha potncia de agir ou ao contrrio, adiminui em relao idia que tinha at um instante, e no se trata de uma comparao, setrata de uma espcie de resvalo, de queda ou de elevao da potncia de agir.

    Nem problema, nem pergunta.

    Para Spinoza se tem trs tipos de idias. Por agora, ns no falaremos mais do affectus, doafeto, posto que em efeito o afeto determinado pelas idias que se tem, porm, ele no sereduz s idias que se tem, ele determinado pelas idias que se tem; ento, o que

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    essencial ver um pouco quais so as idias que determinam os afetos, tendo bem presenteem nosso esprito que o afeto no se reduz s idias que ns temos, ele absolutamenteirredutvel. O afeto de outra ordem.

    As trs espcies de idias que Spinoza distingue, so as idias afeces (affectio); ns vamos verque o affectio, contrariamente ao affectus, um certo tipo de idia. Estariam, ento, em primeiroas idias affectio, em um segundo momento nos sucede tambm ter as idias que Spinoza chamanoes, e em terceiro lugar, para um pequeno nmero de ns, porque isto muito difcil,chegamos a ter as idias essncias. Eis pois, antes de tudo, estes trs tipos de idias.

    O que uma afeco (affectio) ? Eu vejo literalmente seus olhos fecharem-se... Tudo isso muito curioso. primeira vista, e h que ater-se ao texto de Spinoza, isso no tem nada aver com uma idia; mas, tambm no tem nada a ver com um afeto. Ns determinamos oaffectus como a variao da potncia de agir. E uma afeco, o que ? Em primeiradeterminao, uma afeco isto: o estado de um corpo enquanto sofre a ao de um outro

    corpo. Que quer dizer isto ? Eu sinto o sol sobre mim, ou bem um raio de sol pousousobre voc; uma afeco de seu corpo. Que uma afeco de seu corpo ? No o sol, masa ao do sol ou o efeito do sol sobre voc. Em outros termos, um efeito, ou a ao queum corpo produz sobre um outro, uma vez dito que Spinoza, por razes de sua Fsica, nocr em uma ao distncia, a ao implica sempre um contato, uma mistura de corpos.A affectio uma mistura de dois corpos, um corpo que dito agir sobre o outro, e o outrovai acolher a marca do primeiro. Toda mistura de corpos ser chamada afeco.

    Spinoza conclui que a affectioestando definida como uma mistura de corpos, indica a naturezado corpo modificado, a natureza do corpo desejado ou afetado, a afeco indica a natureza docorpo afetado muito mais do que a natureza do corpo afetante. Ele analisa seu clebre exemploeu vejo o sol como um disco achatado situado a trezentos ps. Isso uma affectioou, aomenos, a percepo de uma affectio. claro que minha percepo do sol indica muito mais aconstituio de meu corpo, a maneira como meu corpo est constitudo, do que a maneira comoo sol est constitudo. Eu percebo o sol assim em virtude do estado de minhas percepesvisuais. Uma mosca perceber o sol de outra maneira.

    Para guardar o rigor de sua terminologia, Spinoza dir que uma affectio indica a naturezado corpo modificado melhor do que a natureza do corpo modificante, e ela envolve anatureza do corpo modificante. Eu diria que a primeira espcie de idias para Spinoza todo modo de pensamento que represente uma afeco do corpo... isto , a mistura de umcorpo com um outro corpo, ou melhor, a marca de um outro corpo sobre o meu corpo serdenominado idia de afeco. nesse sentido que ns podemos dizer o que uma idia-

    afeco, que o primeiro tipo de idias. E este primeiro tipo de idias responde ao queSpinoza chama o primeiro gnero de conhecimento. o mais baixo.

    Por que mais baixo ? de si mesmo ser o mais baixo, porque essas idias de afecoconhecem as coisas por seus efeitos: eu sinto a afeco do sol sobre mim, a marca do solsobre mim. o efeito do sol sobre meu corpo. Mas as causas, a saber, o que meu corpo, oque o corpo do sol, e a relao entre estes dois corpos de tal maneira que um produzasobre o outro tal efeito melhor do que outra coisa, disto eu no sei absolutamente nada.Tomemos um outro exemplo: o sol faz fundir a cera e endurecer a argila. No se trata deoutra coisa. So as idias de affectio. Eu vejo a cera que se liquefaz, e depois, justo ao lado,eu vejo a argila que endurece; uma afeco da cera e uma afeco da argila, e eu tenho

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    uma idia destas afeces, eu percebo os efeitos. Em virtude de qual constituio corporal aargila se endurece sob a ao do sol ? Enquanto eu permaneo na percepo da afeco, euno sei nada. Diremos que as idias-afeces so as representaes de efeitos sem as suas

    causas, e isto precisamente o que Spinoza chama de idias inadequadas. As idias demistura separadas das causas da mistura.

    , com efeito, que ns, ao nvel das idias-afeces, somente tenhamos idias inadequadas econfusas, se compreende muito bem, posto que so o que, na ordem da vida, as idias-afeces ?E sem dvida, infelizmente, muito dentre ns, que no fazem Filosofia, vivem assim.

    Uma vez, somente uma vez, Spinoza emprega uma palavra latina que muito estranhaporm muito importante, se trata de occursus. Literalmente encontro. Enquanto eutenho idias-afeces, eu vivo ao acaso dos encontros: eu caminho na rua, eu vejo a Pedroque no me agrada, em funo da constituio de seu corpo e de sua alma e da constituiode meu corpo e de minha alma. Algum que me desagrada, em corpo e alma, que quer dizer

    isto ? Eu quisera compreender por que Spinoza tem uma to forte reputao de materialista,enquanto ele no cessava de falar de esprito e de alma, uma reputao de ateu enquanto eleno cessava de falar de Deus, muito curioso. Ns vemos bem porque as pessoas dizemque ele pertence ao materialismo puro. Quando eu digo: isso no me agrada, isto quer dizer,ao p da letra, que o efeito de seu corpo sobre o meu, o efeito de sua alma sobre a minha,me afeta desagradavelmente, so as misturas de corpos ou as misturas de almas. H umamistura nociva ou uma boa mistura, tanto ao nvel do corpo quanto da alma.

    exatamente como: eu no gosto de queijo. Que quer dizer isto: eu no gosto de queijo ?Quer dizer que isso se mistura com meu corpo de tal maneira que isso que eu sou semodifica de uma maneira desagradvel, no quer dizer outra coisa. Ento no h nenhumarazo para fazer diferenas entre as simpatias espirituais e as relaes corporais. Em: euno gosto de queijo h tambm um assunto de alma, mas em Pedro ou Paulo no meagrada, tambm h um assunto de corpo, tudo isto exatamente igual. Simplesmenteporque uma idia confusa, esta idia-afeco, esta mistura, forosamente confusa einadequada posto que eu no sei absolutamente nada, neste nvel, em virtude de que e comoo corpo ou a alma de Pedro constitudo, de tal maneira que ela no convm com a minha,ou de tal maneira que seu corpo no convm com o meu. Eu posso dizer que isto noconvm, mas em virtude de qual constituio dos dois corpos, e do corpo afetante e docorpo afetado, e do corpo que atua e do corpo que sofre, a este nvel eu no sei nada. Comodiz Spinoza, so conseqncias separadas de suas premissas ou, se vocs preferem, umconhecimento dos efeitos independentemente do conhecimento das causas. , ento, oacaso dos encontros. O que que pode se passar ao acaso dos encontros ?

    Porm, que um corpo ? Eu no vou desenvolv-lo, isso seria objeto de um curso especial.A teoria de o que um corpo, ou uma alma, vem a ser o mesmo, se encontra no Livro II datica. Para Spinoza, a individualidade de um corpo se define por isto: quando uma certarelao composta (eu insisto nisso, muito composta, muito complexa) ou complexa demovimento e de repouso se mantm atravs de todas as mudanas que afetam as partesdesse corpo. a permanncia de uma relao de movimento e de repouso atravs de todasas mudanas que afetam todas as partes ao infinito, do corpo considerado. Vocscompreendem que um corpo necessariamente composto ao infinito. Meu olho, porexemplo, meu olho e a relativa constncia de meu olho, se definem por uma certa relao

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    de movimento e de repouso atravs de todas as modificaes das diversas partes do meuolho; porm, meu olho em si mesmo, que tem j uma infinidade de partes, uma parte daspartes do meu corpo; o olho, por sua vez, uma parte do rosto e o rosto, por sua vez, uma

    parte do meu corpo, etc... Ento vocs tm todo tipo de relao que vo compor-se umascom as outras para formar uma individualidade de tal ou qual grau. Porm, em cada umdesses nveis ou graus, a individualidade ser definida por uma certa relao composta domovimento e de repouso.

    O que pode ocorrer se meu corpo assim feito, uma certa relao de movimento e de repousoque subsome uma infinidade de partes. Pode ocorrer duas coisas: eu como alguma coisa que eugosto; ou bem outro exemplo: eu como alguma coisa e eu caio envenenado. Estritamente, em umcaso, eu fao um bom encontro, e em outro caso, eu fao um mau encontro. Tudo isso dacategoria do occursus. Quando fao um mau encontro, isto quer dizer que o corpo que se misturacom o meu destri minha relao constituinte, ou tende a destruir uma de minhas relaes

    subordinadas. Por exemplo, eu como qualquer coisa e eu tenho dor de barriga, isto no me mata;isto destri ou inibe, compromete uma de minhas sub-relaes, uma de minhas relaescomponentes. Depois eu como qualquer coisa e eu morro. Aqui, isto decomps minha relaocomposta, isto decomps a relao complexa que definia minha individualidade. Isto no destruiusimplesmente uma de minhas relaes subordinadas que compunha uma de minhassubindividualidades, mas destruiu a relao caracterstica de meu corpo. Ao contrrio de quandoeu como alguma coisa que me convm.

    Que o mal ? Pergunta Spinoza. Ns encontramos isto na correspondncia; so as cartasque lhe envia um jovem holands mal intencionado. Este holands no gosta de Spinoza e oatacava constantemente, exigindo: diga-me o que para voc o mal. Vocs sabem quenaqueles tempos, as cartas eram muito importantes e os filsofos enviavam muitas cartas.

    Spinoza que muito, muito gentil cr, a princpio, que um jovem que quer instruir-se e,pouco a pouco, compreende que no bem assim, que o holands quer sua pele. De cartaem carta, a clera de Blyenberg, que era um bom cristo, cresce e termina por dizer-lhe:mas voc o diabo ! Spinoza diz que o mal, e isto no difcil, o mal um mau encontro.Encontrar um corpo que se mistura mau com o seu. Misturar-se mal quer dizer misturar-seem condies tais que uma de suas relaes subordinadas ou que sua relao constituinteest, amenizada ou comprometida, ou mesmo, destruda.

    Cada vez mais alegre, querendo mostrar que tem razo, Spinoza analisa a sua maneira oexemplo de Ado. Nas condies em que ns vivemos, ns parecemos absolutamentecondenados a ter somente um tipo de idias, as idias-afeces. Por qual milagre nspoderamos sair dessas aes de corpos que no nos esperam para existir, como elevar-se aum conhecimento das causas ? Por agora ns vemos bem que tudo o que nos dado so asidias de afeco, as idias de mistura. Por agora ns vemos bem que desde que nsnascemos, ns estamos condenados ao acaso dos encontros; ento, no vamos longe. O queisto implica ? Implica j uma reao furiosa contra Descartes, posto que Spinoza afirmartaxativamente, no Livro II, que ns no podemos conhecer-nos a ns mesmos, e ns nopodemos conhecer os corpos exteriores, a no ser pelas afeces que os corpos exterioresproduzem sobre o nosso. Para aqueles que recordam um pouco de Descartes, esta aproposio anticartesiana de base, posto que ela exclui toda apreenso da coisa pensantepor si mesma, a saber, exclui toda a possibilidade do cogito. Eu no conheo mais do que as

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    misturas de corpos e somente me conheo a mim mesmo pela ao de outros corpos sobre omeu, e pelas misturas.

    Isto no somente anticartesiano, mas tambm anticristo, por qu ? Porque um dospontos fundamentais da teologia a perfeio imediata do primeiro homem criado, o que sechama em teologia, a Teoria da Perfeio Admica. Ado, antes de pecar, criado toperfeito como pode s-lo, pois esta a histria do pecado que precisamente a histria daqueda, porm a queda pressupe um Ado perfeito como criatura. Esta idia parece muitograciosa a Spinoza. Sua idia que isto no possvel; se supormos que ns temos a idiade um primeiro homem, ns s a podemos ter como a do ser mais impotente, o maisimperfeito, posto que o primeiro homem somente pode existir ao acaso dos encontros e dasaes de outros corpos sobre ele. Ento, ao supor que Ado existe, ele existe sob um modode imperfeio e de inadequao absoluta, existe sob o modo de um pequeno beb expostoao acaso dos encontros, a menos que esteja em um meio protegido, porm isso dizer

    muito. O que seria um meio protegido ?O mal o mau encontro, o que quer dizer isto ? Spinoza, em sua correspondncia com oholands, lhe disse: tu me propes todo o tempo o exemplo de Deus que proibiu Ado decomer a ma, e tu citas isto como exemplo de lei moral. A primeira proibio. Spinoza lhediz: porm isso no , de maneira nenhuma, o que se passa e Spinoza retoma toda a histriade Ado sob a forma de um envenenamento e de uma intoxicao. O que se passa narealidade ? Deus jamais proibiu o que quer que seja a Ado, Ele lhe outorga uma revelao.Preveniu-o do efeito nocivo que o corpo da ma teria sobre a constituio de seu corpo, ode Ado. Em outros termos: a ma um veneno para Ado. O corpo da ma existe sobuma tal relao caracterstica, de uma maneira tal que somente pode agir sobre o corpo deAdo, assim como este est constitudo, decompondo a relao do corpo de Ado. E se

    culpado de no escutar a Deus, no o no sentido de que Lhe desobedeceu, e sim nosentido de que no tenha entendido nada. Isto existe tambm entre os animais, alguns tmum instinto que os desviam do que venenoso para eles; e outros, sobre este ponto, nopossuem este instinto.

    Quando fao um encontro tal que a relao do corpo que me modifica, que atua sobre mim, secombina com minha prpria relao, com a relao caracterstica de meu prprio corpo, o que sepassa ? Eu diria que minha potncia de agir aumentada; ela ao menos aumentada sob estarelao. Quando, ao contrrio, eu fao um encontro tal que a relao caracterstica do corpo que memodifica compromete ou destri uma de minhas relaes, ou minha relao caracterstica, eu diriaque minha potncia de agir diminuda ou mesmo destruda. Ns reencontramos aqui nossos doisafetos affectus, fundamentais: a tristeza e a alegria.

    Para reagrupar tudo neste nvel, em funo das idias de afeco que eu tenho, h dois tipos deidias de afeco: idia de um efeito que se concilia ou que favorece minha prpria relaocaracterstica; segundo tipo de idia de afeco: a idia de um efeito que compromete ou destriminha prpria relao caracterstica. A estes dois tipos de idias de afeco vo corresponder osdois movimentos da variao no affectus, os dois plos da variao: em um caso minha potncia deagir aumentada e experimento um affectusde alegria, no outro caso a minha potncia de agir diminuda e experimento um affectusde tristeza.

    E todas as paixes, em seus detalhes, Spinoza vai engendr-las a partir desses dois afetosfundamentais: a alegria como aumento da potncia de agir, a tristeza como diminuio ou

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    destruio da potncia de agir. Voltamos a dizer que cada coisa, corpo ou alma, se definepor uma certa relao caracterstica, complexa, mas eu tambm havia dito que cada coisa,corpo ou alma, se define por um certo poder de ser afetado. Tudo se passa como se cada um

    de ns tivesse um certo poder de ser afetado. Se vocs considerarem as bestas, Spinoza sertaxativo ao dizer-nos que o que conta nos animais no so os gneros ou as espcies; osgneros e as espcies so as noes absolutamente confusas, so as idias abstratas. O queconta : de que capaz um corpo ? E lana, a, uma das questes mais fundamentais detoda a sua filosofia (antes dele havia sido Hobbes e outros) dizendo que a nica questo que ns no sabemos mesmo de que capaz um corpo, ns tagarelamos sobre a alma esobre o esprito e ns no sabemos o que pode um corpo. Ora, um corpo deve ser definidopelo conjunto das relaes que o compem, ou, o que vem a ser exatamente o mesmo, peloseu poder de ser afetado. Enquanto vocs no saberem qual o poder de ser afetado de umcorpo, enquanto o apreendem ao acaso dos encontros, vocs no tero uma vida prudente,vocs no tero a sabedoria.

    Saber de que vocs so capazes. No como uma questo de moral, mas sim antes de tudocomo uma questo fsica, como uma questo do corpo e da alma. Um corpo tem qualquercoisa fundamentalmente escondida: ns podemos falar da espcie humana, do gnerohumano, isto no nos dir o que capaz de afetar nosso corpo, o que capaz de destru-lo.A nica questo esse poder de ser afetado. O que distingue uma r de um macaco ? Noso os caracteres especficos ou genricos, diz Spinoza, mas sim que eles no so capazesdas mesmas afeces. Haver pois que fazer, para cada animal, verdadeiros mapas deafetos, os afetos do qual uma besta capaz. E igual para os homens: os afetos de que umhomem capaz. Nesse momento perceberemos que, segundo as culturas, segundo associedades, os homens no so capazes dos mesmos afetos.

    bem conhecido que um mtodo com o qual certos governos liquidaram os ndios daAmrica do Sul, foi o de deixar nos caminhos por onde passavam os ndios, roupas degripados, as roupas tiradas dos dispensrios, porque os ndios no suportam o afeto gripe.Sem necessidade de metralh-los, eles caam como moscas. um fato que ns, nascondies de vida da selva, corremos o risco de no viver muito tempo. Ento, gnerohumano, espcie humana ou mesmo raa, Spinoza dir que isto no tem nenhumaimportncia enquanto no fizermos a lista dos afetos da qual cada um capaz, no sentidomais forte da palavra capaz, compreendidas as enfermidades de que capaz. evidente queo cavalo de passeio e o cavalo de trabalho so da mesma espcie, so duas variedades deuma mesma espcie, todavia, os afetos so muito diferentes, as enfermidades soabsolutamente diferentes, a capacidade de ser afetado completamente diferente e, deste

    ponto de vista, h que dizer que um cavalo de trabalho est mais prximo ao burro do quede um cavalo de passeio. Ento, um mapa etolgico dos afetos muito diferente de umadeterminao genrica e especfica dos animais.

    Vejam vocs que o poder de ser afetado pode ser realizado de duas maneiras. Quando souenvenenado meu poder de ser afetado realizado completamente, porm realizado de talmaneira que minha potncia de agir tende a zero, isto , que ela inibida. Inversamente,quando experimento alegria, isto , quando encontro um corpo que compe sua relaocom o meu, meu poder de ser afetado realizado igualmente e minha potncia de agiraumenta e tende at... o que ?

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    No caso de um mau encontro, toda a minha fora de existir (vis existendi) est concentrada,tendendo at a seguinte meta: cercar a marca do corpo que me afeta para rechaar o efeitodesse corpo, se bem que minha potncia de agir diminuda na mesma proporo.

    So coisas muito concretas: vocs tm dor de cabea e dizem: eu no posso mais nem mesmo ler; issoquer dizer que sua fora de existir cerca de tal maneira a marca da enxaqueca, isto implica mudanas emuma de suas relaes subordinadas, ela cerca de tal maneira a marca da enxaqueca que sua potncia deagir est diminuda na mesma proporo. Ao contrrio, quando vocs dizem: sinto-me bem, e vocest contente, voc est contente tambm porque os corpos se misturam com o seu em propores econdies que so favorveis sua relao; nesse momento, a potncia do corpo que o afeta se combinacom a sua de tal maneira que sua potncia de agir est aumentada. Ainda que nos dois casos seu poderde ser afetado estar completamente realizado, ele pode ser realizado de tal maneira que a potncia deagir diminua ao infinito ou que a potncia de agir aumente ao infinito.

    Ao infinito ? isto verdadeiro ? Evidentemente no, posto que ao nosso nvel as foras de

    existir, os poderes de ser afetado e as potncias de agir so forosamente finitas. SomenteDeus tem uma potncia absolutamente infinita. Bom, porm em certos limites eu nodeixarei de passar por essas variaes da potncia de agir em funo das idias de afecoque eu tenho, eu no deixarei de seguir a linha de variao contnua dos affectusem funodas idias-afeces que eu tenho e dos encontros que eu fao, de tal maneira que, a cadainstante, meu poder de ser afetado estar completamente efetuado, completamenterealizado. Simplesmente realizado sob o modo da tristeza ou sob o modo da alegria. Bementendido, os dois ao mesmo tempo visto que, claro est, pois nas sub-relaes que noscompe, uma parte de ns mesmos pode ser composta de tristeza e uma outra parte de nsmesmos ser composta de alegria. Existem as tristezas locais e as alegrias locais. Porexemplo, Spinoza d como definio de ccegas: uma alegria local; isto no quer dizer que

    tudo alegria nas ccegas, isto pode ser uma alegria de tal natureza que implique umairritao coexistente de outra natureza, irritao que tristeza: meu poder de ser afetadotende a ser superado. Nada bom para algum que supera seu poder de ser afetado. Umpoder de ser afetado realmente uma intensidade ou um limite de intensidade.

    O que realmente quer Spinoza, definir a essncia de cada um de uma maneira intensiva comouma quantidade intensiva. Enquanto vocs no conhecerem suas intensidades vocs se arriscamao mau encontro e vocs tero que dizer: que bom o excesso e a desmesura... no a desmesuratotal, a somente h fracasso, nada mais do que fracasso. Aviso para as superdoses. istoprecisamente o fenmeno do poder de ser afetado que superado com uma destruio total.

    Seguramente em minha gerao, em promessa, ns ramos mais cultos ou sbios em filosofia,

    quando a fazamos, e ao contrrio, ns tnhamos uma espcie de incultura muito patente emoutros domnios, em msica, em pintura, em cinema.

    Eu tenho a impresso de que para muitos dentre vocs a relao mudou, isto , que vocs nosabem absolutamente nada, nada de filosofia e que vocs sabem, ou melhor, vocs tm ummanuseio concreto de coisas como uma cor, vocs sabem o que um som ou o que uma imagem.

    Uma filosofia uma espcie de sintetizador de conceitos, criar um conceito no demaneira nenhuma da ideologia; um conceito, uma besta.

    O que eu defini at agora unicamente aumento e diminuio da potncia de agir, ou que apotncia de agir aumenta ou diminui, o afeto correspondente (affectus) sempre uma

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    paixo. Quer seja uma alegria que aumente minha potncia de agir ou uma tristeza quediminui minha potncia de agir, nos dois casos so as paixes: paixes alegres ou paixestristes. Spinoza, uma vez mais, denuncia um conluio no universo daqueles que tm

    interesse em afetar-nos com paixes tristes. O sacerdote tem necessidade da tristeza de seussujeitos, eles tm necessidade de que seus sujeitos se sintam culpados. Todavia, eu nodefini ainda o que a potncia de agir. As auto-afeces ou afetos ativos supem que nspossumos nossa potncia de agir e que, sobre tal ou tal ponto, ns samos do domnio daspaixes para entrar no domnio das aes. Isso o que nos resta por ver.

    Como ns poderamos sair das idias-afeces, como ns poderamos sair dos afetos passivosque consistem em aumento ou diminuio de nossa potncia de agir, como poderamos sair domundo das idias inadequadas uma vez dito que nossa condio parece condenar-nosestritamente a este mundo. Por isto que preciso ler a ticacomo preparando uma espcie decena teatral inesperada. Ela vai nos falar de afetos ativos onde j no h paixes, onde a potncia

    de agir conquistada em vez de passar por todas as variaes contnuas. L, este um pontomuito estrito. H uma diferena fundamental entre tica e moral. Spinoza no faz moral, por umarazo muito simples: ele nunca se pergunta o que ns devemos, ele se pergunta todo o tempo doque ns somos capazes, o que que est em nossa potncia, a tica um problema de potncia, ejamais um problema de dever. Nesse sentido Spinoza profundamente imoral. O problemamoral, o bem e o mal; Spinoza tem uma natureza alegre porque no compreende o que isto querdizer. O que ele compreende so os bons encontros, os maus encontros, os aumentos e asdiminuies de potncia. L, ele faz uma tica e de maneira nenhuma uma moral. Por isto queele tanto marcou Nietzsche.

    Ns estamos completamente encerrados nesse mundo das idias-afeces e de suas variaesafetivas contnuas de alegria e de tristeza, e neste caso, ora minha potncia de agir aumenta, e

    bem, ora ela diminui; mas, quer ela aumente ou quer ela diminua, eu permaneo na paixoporque, nos dois casos, eu no a possuo: eu estou ainda separado de minha potncia de agir.Neste caso, quando minha potncia de agir aumenta, isto quer dizer que estou relativamentemenos separado, e inversamente; mas eu estou separado formalmente de minha potncia de agir,eu no a possuo. Em outros termos, eu no sou causa de meus prprios afetos, e posto que eu nosou causa de meus prprios afetos, eles so produzidos em mim por outra coisa: eu sou portantopassivo, eu estou no mundo da paixo.

    Mas, h as idias-noes e as idias-essncias. j no nvel das idias-noes que vaiaparecer uma espcie de sada deste mundo. Ns estamos completamente asfixiados,encerrados em um mundo de impotncia absoluta, mesmo quando minha potncia de agiraumenta sobre um segmento de variao, nada me garantir que, na esquina da rua, euno v receber um golpe de basto na cabea e que minha potncia de agir sucumba.

    Vocs recordaro que uma idia-afeco a idia de uma mistura, isto , a idia de umefeito de um corpo sobre o meu. Uma idia-noo no concerne mais ao efeito de um outrocorpo sobre o meu, uma idia que concerne e que tem por objeto a convenincia e a noconvenincia das relaes caractersticas entre os dois corpos. Se h uma idia tal ns nosabemos ainda se h, porm ns sempre poderemos definir qualquer coisa com a liberdadede concluir que isto no pode existir , o que ns chamamos de uma definio nominal.Eu diria que a definio nominal da noo que uma idia que, ao invs de representar o

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    efeito de um corpo sobre o um outro, isto , a mistura de dois corpos, representa aconvenincia ou a no convenincia interna das relaes caractersticas dos dois corpos.

    Exemplo: se eu conheo suficiente sobre a relao caracterstica do corpo denominadoarsnico e sobre a relao caracterstica do corpo humano, eu posso formar uma noodaquilo em que essas duas relaes no convm ao ponto do arsnico, sob sua relaocaracterstica, destruir a relao caracterstica de meu corpo. Eu sou envenenado, eu morro.

    Vocs vem que, diferente da idia de afeco, ao invs de ser a apreenso da misturaextrnseca de um corpo com um outro, ou do efeito de um corpo sobre um outro, a noo seeleva compreenso da causa, a saber, se a mistura tem tal ou tal efeito em virtude danatureza da relao dos dois corpos considerados e da maneira na qual a relao de um doscorpos se compe com a relao do outro corpo. H sempre composio de relaes.Quando eu sou envenenado que o corpo arsnico induziu as partes de meu corpo a entrarsob uma outra relao, diferente da relao que me caracteriza. Nesse momento, as partes

    do meu corpo entram sob uma nova relao induzida pelo arsnico, que se compeperfeitamente com o arsnico; o arsnico est feliz pois se nutre de mim. O arsnicoexperimenta uma paixo alegre pois, como diz bem Spinoza, todo corpo tem uma alma.Ento o arsnico est alegre; eu evidentemente, no o estou. Ele induziu as partes do meucorpo a entrar sob uma relao que se compe com a sua, arsnico. Eu estou triste, eu vouem direo a morte. Vejam vocs que a noo, se ns pudermos alcan-la, uma coisaformidvel.

    No se est longe de uma geometria analtica. Uma noo, no de maneira nenhuma umabstrato, muito concreta: este corpo aqui, este corpo l. Se eu tiver a relao caractersticada alma e do corpo daquela que eu digo que no me convm, por relao minha relaocaracterstica em mim, eu compreenderia tudo, eu conheceria pelas causas ao invs desomente conhecer os efeitos separados de suas causas. Nesse momento eu teria uma idiaadequada. Igualmente, se eu compreender porque algum me agrada. Eu peguei comoexemplo as relaes alimentcias, no h que trocar uma s linha para as relaes amorosas.No se trata de maneira nenhuma que Spinoza conceba o amor como a alimentao, eletambm conceber a alimentao como amor. Tomemos um casamento Strinberg, estaespcie de decomposio das relaes e que depois se recompem para recomear. Que essa variao contnua de affectus, e como ocorre que certa no-convenincia convenha aalguns ? Porque alguns somente podem viver sob a forma da cena de casamentoindefinidamente repetida ? Saem dali como se isso tivesse sido um banho de gua frescapara eles.

    Vocs compreendem a diferena entre uma idia-noo e uma idia-afeco. Uma idia-noo forosamente adequada posto que um conhecimento pelas causas. Spinozaemprega a, no somente o termo de noo para qualificar esse segundo tipo de idia, masele emprega o termo de noo comum. A palavra muito ambgua: isto quer dizer comuma todos os espritos ? Sim e no, isto muito minucioso em Spinoza. Em todo caso, elenunca confunde uma noo comum com uma abstrao. Uma noo comum ele sempre adefine como: a idia de qualquer coisa que comum a todos os corpos ou a muitos corpos dois ao menos e que comum ao todo e parte. Ento, h seguramente as noescomuns que so comuns a todos os espritos, mas elas somente so comuns a todos osespritos na medida em que elas so de incio a idia de qualquer coisa que comum a

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    todos os corpos. Ento, j no so de maneira nenhuma abstratas. O que comum a todosos corpos ? Por exemplo, estar em movimento ou em repouso. O movimento e o repousoso objetos das noes ditas comuns a todos os corpos. Ento h as noes comuns que

    designam qualquer coisa de comum a todos os corpos. H tambm as noes comuns quedesignam qualquer coisa de comum a dois corpos ou a duas almas, por exemplo, algumque eu ame. Uma vez mais as noes comuns no so abstratas, no tm nada a ver com asespcies e os gneros, elas so verdadeiramente o enunciado do que comum a muitoscorpos ou a todos os corpos; ora, como no h um s corpo que no seja ele mesmo muitos,ns podemos dizer que h coisas comuns ou noes comuns em cada corpo. Donde, nsretornamos pois, para a pergunta: como que ns podemos sair dessa situao que noscondena s misturas ?

    Aqui, os textos de Spinoza so muito complicados. Ns s podemos conceber essa sada damaneira seguinte: quando eu sou afetado, ao acaso dos encontros, ou bem eu sou afetado de

    tristeza ou bem de alegria, a grosso modo. Quando eu sou afetado de tristeza, minhapotncia de agir diminui; isto , eu estou ainda mais separado dessa potncia. Quando eusou afetado de alegria, ela aumenta; isto , eu estou menos separado dessa potncia. Bem.Se voc se considera como afetado de tristeza, eu creio que tudo est arruinado, no hmais sada por uma razo simples: nada h na tristeza que diminua sua potncia de agir,nada h na tristeza que possa induzi-los a formar a noo comum de uma coisa qualquerque seria comum aos corpos que nos afetam de tristeza e aos de vocs. Por uma razo muitosimples, que o corpo que nos afeta de tristeza somente nos afeta de tristeza na medida emque ele nos afeta sob uma relao que no convm com a nossa.

    Spinoza quer dizer algo muito simples, que a tristeza no nos torna inteligentes. Na tristezaestamos arruinados. por isto que os poderes tm necessidade de que os sujeitos sejam

    tristes. A angstia jamais foi um jogo de cultivo da inteligncia ou da vivacidade. Enquantovocs tm um afeto triste, que um corpo atua sobre o seu, uma alma atua sobre a sua emcondies tais e sob uma relao que no convm com a de vocs. Desde ento, nada natristeza pode induzi-los a formar a noo comum, isto , a idia de qualquer coisa decomum entre os dois corpos e as duas almas. O que Spinoza nos dir est pleno desabedoria. Por isto que pensar na morte a coisa mais imunda. Ele se ope a toda atradio filosfica que uma meditao sobre a morte. Sua frmula que a filosofia umameditao da vida e no da morte. Evidentemente, porque a morte sempre um mauencontro.

    Outro caso. Vocs so afetados de alegria. Sua potncia de agir aumentada, isso no querdizer que vocs a possuem ainda, mas o fato de que vocs sejam afetados de alegriasignifica e indica que o corpo ou a alma que os afetam assim, os afeta sob uma relao quese combina com a de vocs e que se compe com a de vocs, e isto vai da frmula do amor frmula da alimentao. Num afeto de alegria ento, o corpo que nos afeta indicadocomo compondo sua relao com o nosso e no sua relao decompondo a nossa. Desdeento, qualquer coisa nos induz a formar a noo do que comum ao corpo que nos afeta eao nosso, alma que nos afeta e nossa. Nesse sentido a alegria torna-se inteligente. Aquins sentimos que isto uma coisa estranha porque, mtodo geomtrico ou no, tudoconcorda, ele pode demonstr-lo, porm h um apelo evidente a uma espcie de experinciavivida. H um apelo evidente a uma maneira de perceber, e bem mais, a uma maneira de

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    viver. Necessita-se ter um tal dio pelas paixes tristes, a lista das paixes tristes emSpinoza infinita, ele vai at dizer que toda idia de recompensa envolve uma paixo triste,toda idia de segurana envolve uma paixo triste, toda idia de orgulho, a culpabilidade.

    Este um dos momentos mais maravilhosos da tica. Os afetos de alegria so como seestivssemos em um trampolim, eles nos fazem passar atravs de qualquer coisa que nsnunca passaramos se somente houvesse tristezas. ele nos solicita formar a idia do que comum ao corpo afetante e ao corpo afetado. Isso pode falhar, porm pode lograr-se e eufico inteligente.

    Algum que se torna bom em latim ao mesmo tempo que enamorado... se viu nosseminrios. A que est ligado ? Como algum faz progresso ? Ns no fazemos jamaisprogressos sobre uma linha homognea, um acaso aqui que nos faz progredir l, como seuma pequena alegria houvesse soltado um gatilho. A nova necessidade de um mapa: que que se passa ali para que isso se desbloqueie aqui ? Uma pequena alegria nos precipita num

    mundo de idias concretas que barram os afetos tristes ou lutam com eles, tudo isso fazparte da variao contnua. Mas, ao mesmo tempo, essa alegria nos propulsiona emqualquer tipo fora da variao contnua, ela nos faz adquirir, ao menos, a potencialidade deuma noo comum. H que conceber isto muito concretamente, so coisas muito locais. Sevocs conseguem formar uma noo comum, sobre qualquer ponto de sua relao com talpessoa ou com tal animal, vocs dizem: enfim, eu compreendi qualquer coisa, eu soumenos besta que ontem. O eu compreendi que se diz, s vezes o momento em quevocs formaram uma noo comum. Vocs a formaram muito localmente, isto no lhes deutodas as noes comuns. Spinoza no pensa de maneira nenhuma como um racionalista,entre os racionalistas h o mundo da razo e o mundo das idias. Se vocs tm uma,evidentemente vocs as tm todas: vocs so racionais. Spinoza pensa que ser racional, ouser sbio, um problema de devir, o qual muda singularmente o contedo do conceito derazo. H que saber fazer os encontros que nos convm. Ningum poder jamais dizer que bom para ele qualquer coisa que supera seu poder de ser afetado. O mais belo viversobre as bordas, no limite do seu prprio poder de ser afetado, a condio de que esse seja olimite alegre, pois h o limite da alegria e o limite da tristeza; porm tudo que excede seupoder de ser afetado feio. Relativamente feio: o que bom para as moscas no forosamente bom para vocs...

    No h mais noo abstrata, nem uma boa frmula para o homem em geral. O que conta qual seu poder em voc. Lawrence dizia uma coisa diretamente spinozista: umaintensidade que supera nosso poder de ser afetado, essa intensidade m (EscritosPstumos). Se forado: um azul demasiado intenso para meus olhos, no me far dizer

    que belo, qui seja belo para outro. H o bom para todos, me diro... Sim, porque ospoderes de ser afetado se compem.

    Suponhamos que h um poder de ser afetado que define o poder de ser afetado do universointeiro, isto bem possvel posto que todas as relaes se compem ao infinito, porm noimporta em que ordem. Minha relao no se compe com a do arsnico, mas, o que quese pode fazer ? Evidentemente, a mim, isto faz muito, porm no momento em que as partesde meu corpo entram sob uma nova relao que se compe com a do arsnico. Haveria quesaber em que ordem se compe as relaes. Ora, se ns soubssemos em que ordem secompe as relaes de todo o universo, ns poderamos definir um poder de ser afetado do

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    universo inteiro, isto seria o cosmo, o mundo enquanto corpo ou enquanto alma. Naquelemomento, o mundo inteiro um s corpo segundo a ordem das relaes que o compem.Naquele momento, vocs teriam um poder de ser afetado universal, propriamente falando:

    Deus, que o universo inteiro enquanto causa, tem por natureza um poder de ser afetadouniversal. Intil dizer que Spinoza est usando estranhamente a idia de Deus.

    Vocs experimentam uma alegria, vocs sentem que essa alegria lhes concerne a vocs, queela concerne a alguma coisa importante quanto s suas relaes principais, suas relaescaractersticas. Ento a voc necessita servir-se como de um trampolim, vocs formam aidia-noo: em que se convm o corpo que me afeta e em que o meu lhe convm ? Em quese convm a alma que me afeta e em que a minha lhe convm, do ponto de vista dacomposio de suas relaes, e no mais do ponto de vista do acaso dos encontros. Vocsfazem a operao inversa daquela que ns fazemos geralmente. Geralmente as pessoasfazem a soma de seus males, mesmo a que a neurose comea, ou a depresso, quando ns

    nos metemos a somar; oh, merda, h isto e aquilo. Spinoza prope o inverso: em lugar defazer a soma de nossas tristezas, tome um ponto de partida local sobre uma alegria com acondio de que ns sintamos que ela nos concerne verdadeiramente. A esse respeito nsformamos a noo comum, a esse respeito ns ensaiamos ganhar localmente, entender essaalegria. um trabalho da vida. Ns intentamos diminuir a poro respectiva das tristezasem relao poro respectiva de uma alegria, e ns intentamos o seguinte golpeformidvel: ns estamos to seguro das noes comuns que remetem s relaes deconvenincia entre tal ou tal corpo e o meu, ns vamos tentar agora aplicar o mesmomtodo tristeza, porm ns no o podemos fazer a partir da tristeza, isto , ns vamostentar formar as noes comuns pelas quais ns chegaremos a compreender de maneiravital em que tal ou tal corpo no convm e j no mais convm. Disso advm, no maisuma variao contnua, disso advm uma curva em sino.

    Vocs partem de paixes alegres, aumento da potncia de agir; vocs se servem delas paraformar noes comuns de um primeiro tipo, noo do que h de comum entre o corpo queme afeta de alegria e o meu, voc entende ao mximo suas noes comuns viventes eretrocede at a tristeza, desta vez com as noes comuns que voc forma para compreenderem que tal corpo no convm com o seu, tal alma no convm com a sua.

    Nesse momento voc j pode dizer que est na idia adequada posto que, com efeito, vocpassou ao conhecimento das causas. Voc j pode dizer que est na filosofia. Somenteconta uma coisa, as maneiras de viver. Somente conta uma coisa, a meditao da vida, e afilosofia no pode ser outra coisa que uma meditao da vida, e longe de ser uma meditaoda morte a operao que consiste em fazer com que a morte finalmente somente afete aproporo relativamente menor em mim, a saber, viv-la como um mal encontro.Simplesmente se sabe que, medida que um corpo se cansa, as probabilidades de mausencontros aumentam. uma noo comum, uma noo comum de no convenincia.Enquanto sou jovem, a morte verdadeiramente algo que vem de fora, verdadeiramente umacidente extrnseco, salvo em caso de enfermidade interna. No se tem noo comum, aocontrrio, verdade que quando um corpo envelhece, sua potncia de agir diminui: noposso mais fazer o que ontem ainda eu podia fazer; isso, isso me fascina noenvelhecimento, essa espcie de diminuio da potncia de agir. O que ,fundamentalmente, um palhao ? o tipo que, precisamente, no aceita o envelhecimento,

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    no sabe envelhecer to rpido. No necessrio envelhecer demasiado rpido, posto queesta outra maneira de ser palhao: fazer o velho. Mais se envelhece e menos se desejoufazer maus encontros, porm quando se jovem, lana-se no risco do mau encontro.

    fascinante o tipo que, medida que sua potncia de agir diminui em funo doenvelhecimento, seu poder de ser afetado varia, ele no o faz, continua querendo se fazer dejovem. muito triste. H uma passagem fascinante de um romance de Fitzgerald (o nmerode esqui aqutico), h dez pginas belssimas sobre ele no saber envelhecer... vocs sabemos espetculos que so incmodos para os espectadores mesmos.

    Saber envelhecer chegar o momento em que as noes comuns devem faz-loscompreender em que as coisas e os outros corpos no convm com o nosso. Entoforosamente, vai ser preciso encontrar uma nova graa que ser aquela da nossa idade,sobretudo para no agarrar-se. Isso sabedoria. No a boa sade que faz dizer viva avida, isto no mais do que a vontade de agarrar-se a vida. Spinoza soube morrer

    admiravelmente, porm ele sabia muito bem do que era capaz, ele sabia dizer merda aosoutros filsofos. Leibniz vinha lhe passar a mo em partes dos manuscritos, para depoisdizer que eram seus. H histrias muito curiosas, Leibniz era um homem perigoso.

    Termino dizendo que nesse segundo nvel, alcanou-se a idia-noo na qual as relaes secompem, e uma vez mais isso no abstrato, posto que, eu tentei dizer, era uma empresaextraordinariamente viva. Se sai das paixes. Adquiriu-se a possesso formal da potnciade agir. A formao das noes, que no so idias abstratas, so estritamente regras devida, que me do a possesso da potncia de agir. As noes comuns, isto , o segundognero de conhecimento. Para compreender o terceiro h que compreender o segundo. Aoterceiro gnero somente entrou Spinoza. Mais alm das noes comuns... afirmamos que asnoes comuns no so abstratas, elas so coletivas, elas remetem sempre a uma

    multiplicidade, porm elas no so menos individuais. Isto , em que tal e tal outro corpoconvm, ao limite em que todos os corpos convm, porm nesse momento o mundo inteiro uma individualidade. Ento as noes comuns so sempre individuais.

    Mais alm ainda das composies de relaes, das convenincias interiores que definiam asnoes comuns, esto as essncias singulares. O que as diferencia ? Haveria que dizer olimite que a relao e as relaes que me caracterizam exprimem minha essncia singular,mas, no entanto no so a mesma coisa. Por qu ? Porque a relao que me caracteriza... oque digo no est absolutamente no texto, porm quase... as noes comuns ou as relaesque me caracterizam concernem ainda s partes extensivas de meu corpo. Meu corpo composto de uma infinidade de partes extensas ao infinito, e essas partes entram sob tais etais relaes que correspondem a minha essncia. As relaes que me caracterizamcorrespondem a minha essncia mas no se confundem com minha essncia, porque asrelaes que me caracterizam so ainda as regras sob as quais se associam, em movimentoou em repouso, as partes extensas de meu corpo. Enquanto que a essncia singular, um graude potncia, isto , so meus limiares de intensidade. Entre o mais baixo e o mais alto, entremeu nascimento e minha morte, esses so meus limiares intensivos. O que Spinoza chamaessncia singular, me parece que uma quantidade intensiva, como se cada um de nsestivera definido por uma espcie de complexos de intensidades que remete a sua essncia,e tambm as relaes que regulam as partes extensas, as partes extensivas. Se bem que,quando tenho conhecimento das noes, isto , das relaes de movimento e de repouso

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    que regulam a convenincia ou a no convenincia dos corpos desde o ponto de vista desuas partes extensas, desde o ponto de vista de sua extenso, eu no tenho ainda plenapossesso de minha essncia enquanto intensidade. E Deus, o que ? Quando Spinoza

    define Deus como potncia absolutamente infinita, se exprime bem. Todos os termos queemprega explicitamente: grau, grau em latim grados, e grados remete a uma amplatradio na filosofia da Idade Mdia. O grados a quantidade intensiva, por oposio oupor diferena com as partes extensivas. Ento, seria necessrio conceber que a essnciasingular de cada um seja essa espcie de intensidade, ou de limite de intensidade. Ela singular porque, qualquer que seja nossa comunidade de gnero ou de espcie, ns somostodos os homens por exemplo, nenhum de ns tem os mesmos limiares de intensidades queo outro. O terceiro gnero de conhecimento, ou a descoberta da idia de essncia, quando,a partir das noes comuns, por uma nova teatralizao, se chega a passar a essa terceiraesfera do mundo: o mundo das essncias. A se conhece em sua correlao o que Spinozachama de toda maneira no se pode conhecer a um sem o outro e a essncia singular,

    que a minha, e a essncia singular, que a de Deus e a essncia singular das coisasexteriores.

    Que esse terceiro gnero de conhecimento faa apelo , de uma parte, toda uma tradio damstica judia, de outra parte que implique uma espcie de experincia mstica mesmo atia,prpria de Spinoza, eu creio que a nica maneira de compreender esse terceiro gnero percebendo que, mais alm da ordem dos encontros e das misturas, h outro estado dasnoes que remete s relaes caractersticas. Porm mais alm das relaes caractersticasest ainda o mundo das essncias singulares.

    Ento, quando se forma as idias que so como puras intensidades, na qual minha prpriaintensidade vai convir com a intensidade das coisas exteriores, nesse momento, este o

    terceiro gnero porque, se verdade que todos os corpos no convm uns com os outros, se verdade que, do ponto de vista das relaes que regem as partes extensas de um corpo oude uma alma, as partes extensivas, todos os corpos no convm uns com os outros; sechegamos a um mundo de puras intensidades, todas so supostas a convir umas com asoutras. Nesse momento, o amor de vocs a si mesmos, e ao mesmo tempo, como dizSpinoza, o amor das outras coisas alm de vocs, e ao mesmo tempo o amor de Deus, e oamor que Deus tem a si mesmo, etc... este mundo das intensidades o que me interessanessa ponta mstica. A, estamos em possesso, no somente formal, mais sim completa. Jno se trata de alegria, Spinoza encontra a palavra mstica de beatitude ou o afeto ativo, isto, o auto-afeto. Mas, isto segue sendo muito concreto. O terceiro gnero de conhecimento um mundo de intensidades puras.

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    Curso de 12/12/1980

    Interveno de Comtesse. [inaudvel a partir do K7]

    Gilles: eu sinto que ainda resta entre voc e eu uma diferena. Voc tem a tendncia aacentuar demasiado rpido uma noo autenticamente spinozista, a da tendncia porperseverar no ser. Na ltima vez, voc me falava do conatus, isto , a tendncia aperseverar no ser, e voc me perguntava: por que voc no o faz ? Eu, eu lhe respondia queno momento eu no posso introduzi-la porque, em minha leitura, eu acentuo outras noes

    spinozistas, e a tendncia a perseverar no ser, eu a concluiria de outras noes que so paramim as noes essenciais, as de potncia e de afeto. Hoje, voc retorna ao mesmo tema.No h lugar para uma discusso, voc propunha outra leitura, isto , uma leitura acentuadadiferentemente. Quanto ao problema do homem racional e do homem demente, eu respondoexatamente isto: o que distingue o demente e o racional segundo Spinoza, e, inversamente eao mesmo tempo, o que que no os distingue ? De qual ponto de vista eles no podemdistinguir-se, de qual ponto de vista eles tm que ser distinguidos ? Eu diria, pela minhaleitura, que a resposta de Spinoza muito rigorosa. Se eu resumo a resposta de Spinoza, meparece que o resumo seria este: de um certo ponto de vista, no h nenhuma razo parafazer uma diferena entre o homem racional e o demente. De um outro ponto de vista, huma razo para fazer uma diferena.

    Primeiramente, do ponto de vista da potncia, no h nenhuma razo para introduzir umadiferena entre o homem racional e o homem demente. Que quer dizer isto ? Isto quer dizerque eles tm a mesma potncia ? No, isto no quer dizer que eles tenham a mesmapotncia, mas quer dizer que cada um, pelo tanto que tem em si, realiza ou efetua suapotncia. dizer que cada um, pelo tanto que tem em si, se esfora por perseverar em seuser. Ento, do ponto de vista da potncia, enquanto cada um, segundo o direito natural, seesfora por perseverar em seu ser, isto , efetua sua potncia, vejam vocs que eu sempreponho entre parntesis esforo, no que ele intente perseverar, de toda maneira, elepersevera em seu ser tanto quanto ele tem em si, por isto que eu no gosto muito da idiade conatus, a idia de esforo, que no traduz o pensamento de Spinoza pois o que elechama um esforo por perseverar no ser o fato que eu efetuo minha potncia a cada

    momento, tanto quanto tem em mim. Isto no um esforo, mas do ponto de vista dapotncia, ento, eu posso dizer que cada um vale, no tanto porque cada um tem a mesmapotncia, com efeito a potncia do demente no a mesma que a do homem racional, massim que isto que h de comum entre os dois, que, qualquer que seja a potncia, cada umefetua a sua. Ento, deste ponto de vista, eu no diria que o homem racional melhor doque o demente. Eu no posso, eu no tenho nenhum meio de dizer: cada um tem umapotncia, cada um efetua esta potncia tanto quanto tem em si. Esse o direito natural, este o mundo da natureza. Deste ponto de vista, eu no poderia estabelecer nenhuma diferenade qualidade entre o homem racional e o louco.

    Traduo de:Emanuel Angelo da Rocha Fragoso

    [email protected]

    Fortaleza Brasil

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    Mas de um outro ponto de vista, eu sei bem que o homem racional melhor do que olouco. Melhor, o que isto quer dizer ? Mais potente, no sentido spinozista da palavra. Ento,desse segundo ponto de vista, eu devo fazer e eu fao uma diferena entre o homem

    racional e o louco. Qual esse ponto de vista ? Minha resposta, segundo Spinoza, seriaexatamente esta: do ponto de vista da potncia, vocs no tm nenhuma razo paradistinguir o racional do louco, mas, de outro ponto de vista, a saber, o dos afetos, vocsdistinguem o racional do louco. De onde vem este outro ponto de vista ? Vocs recordamque a potncia sempre em ato, ela sempre efetuada. So os afetos que a efetuam. Osafetos so as efetuaes da potncia. O que eu experimento em ao ou em paixo, o queefetua minha potncia a cada instante.

    Se o homem racional e o louco se distinguem, no pela potncia, cada um realiza suapotncia, pelos afetos. Os afetos do homem racional no so os mesmos que aqueles dolouco. Donde todo o problema da razo ser convertido por Spinoza em um caso especial do

    problema mais geral dos afetos. A razo designa um certo tipo de afetos. Isto muito novo.Dizer que a razo no se define pelas idias, seguramente, ela se definir tambm pelasidias. H uma razo prtica que consiste em um certo tipo de afetos, em uma certa maneirade ser afetado. Isto pe um problema muito prtico da razo. O que quer dizer racional,neste momento ? Forosamente um conjunto de afetos, a razo, pela simples razo queso precisamente as formas sob as quais a potncia se efetua em tais ou quais condies.Ento, questo que acaba de pr Comtesse, minha resposta relativamente estrita; comefeito, qual a diferena que h entre um homem racional e o louco ? De um certo ponto devista, nenhuma. Este o ponto de vista da potncia; de um outro ponto de vista a diferena enorme, do ponto de vista dos afetos que efetuam a potncia.

    [Interveno de Comtesse.]

    Gilles: voc assinala uma diferena entre Spinoza e Hobbes e voc tem razocompletamente. Se eu a resumo, a diferena : tanto para um como para o outro, Spinoza eHobbes, sensato sair do estado de natureza por um contrato. Mas no caso de Hobbes, setrata de um contrato pelo qual eu renuncio ao meu direito de natureza. Eu vou ser preciso,pois mais complicado: se verdade que eu renuncio ao meu direito natural, emcontrapartida, o soberano, ele, no renuncia tambm. Ento, de uma certa maneira, o direitode natureza conservado. Para Spinoza, ao contrrio, no contrato eu no renuncio ao meudireito de natureza, e h a frmula clebre de Spinoza em uma carta: eu conservo o direitode natureza mesmo no estado civil. Esta frmula clebre de Spinoza significa claramente,para todo leitor da poca, que sobre este ponto, rompe com Hobbes. Ele, de uma certamaneira, conservava tambm o direito natural no estado civil, mas somente em proveito dosoberano. Eu digo isto muito rpido.

    Spinoza, grosso modo, discpulo de Hobbes. Por que ? Porque sobre dois pontos gerais,mas fundamentais, ele segue inteiramente a revoluo hobbesiana, e eu creio que a filosofiapoltica de Spinoza teria sido impossvel sem a espcie de golpe de fora que Hobbes haviaintroduzido na filosofia poltica. Qual este duplo golpe de fora, novidade prodigiosamuito, muito importante ? , primeira novidade, ter concebido o estado de natureza e odireito natural de uma maneira tal que rompe inteiramente com a tradio ciceroniana. Ora,sobre este ponto, Spinoza ratifica inteiramente a revoluo de Hobbes. Segundo ponto:desde ento, ter substitudo a idia de um pacto de consentimento como fundamento do

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    estado civil relao de competncia tal como era na filosofia Clssica, de Plato a SoToms. Ora, sobre esses dois pontos fundamentais, o estado civil somente pode remeter aum pacto de consentimento e no a uma relao de competncia na qual havia uma

    superioridade do sbio, e toda a concepo, de outra parte, do estado de natureza e dodireito natural como potncia e efetuao da potncia, estes dois pontos fundamentaispertencem a Hobbes. em funo destes dois pontos fundamentais que eu diria que adiferena evidente que Comtesse acaba de assinalar entre Spinoza e Hobbes, supe esomente pode inscrever-se na semelhana prvia, semelhana para a qual Spinoza segue osdois princpios fundamentais de Hobbes. Isto se converte em seguida em um acerto decontas entre eles, mas no interior desses novos pressupostos introduzidos na filosofiapoltica por Hobbes.

    Da concepo poltica de Spinoza, seremos levados a falar este ano do ponto de vista daspesquisas que fazemos sobre a Ontologia: em que sentido a Ontologia pode comportar ou

    deve comportar uma filosofia poltica ? No esqueam que h todo um percurso poltico deSpinoza, eu vou muito rpido. Um percurso poltico muito fascinante porque no se podemesmo ler um livro de filosofia poltica de Spinoza sem compreender quais os problemasque ele pe, e quais os problemas polticos que ele vive. Os Pases-Baixos na poca deSpinoza, no era algo simples e todos os escritos polticos de Spinoza esto muitoenraizados nesta situao. No por acaso que Spinoza faz dois livros de filosofia poltica,um o Tratado Teolgico-Poltico, o outro o Tratado Poltico, e que, entre os dois,passam-se muitas coisas que fazem com que Spinoza evolua. Os Pases-Baixos nesta poca,estavam despedaados entre duas tendncias. Havia a tendncia da casa de Orange, e haviaa tendncia liberal dos irmos De Witt. Ora, os irmos De Witt, em condies muitoobscuras, prevaleceram em uma ocasio. A casa de Orange no far nada: isto poria emjogo as relaes de poltica exterior, as relaes com a Espanha, a guerra ou a paz. Osirmos De Witt eram fundamentalmente pacifistas. Isto poria em jogo a estruturaeconmica, a casa de Orange apoiava as grandes companhias, os irmos eram muito hostiss grandes companhias. Esta oposio incendiava tudo. Ora, os irmos De Witt foramassassinados em condies absolutamente penosas. Spinoza ressentiu isto comoverdadeiramente o ltimo momento no qual ele no poderia mais escrever, e poderiaocorrer tambm a ele. O crculo dos irmos De Witt protegia a Spinoza. Isto o haviagolpeado. A diferena de tom poltico entre o Tratado Teolgico-Poltico e o TratadoPolticose explica porque, entre os dois, houve o assassinato, e Spinoza j no cr mais, talcomo havia dito antes, na monarquia liberal.

    Seu problema poltico ele o ps de uma maneira muito bela, ainda muito atual; sim, ele no

    tem mais do que um problema poltico e o que ele havia de tentar compreender, fazer atica na poltica. Compreender o que ? Compreender por que que as pessoas lutam porsua escravido. Eles parecem estar contentes em serem escravos, tanto que eles se prestama tudo para permanecerem escravos. Como explicar coisa semelhante ? Isto o fascina.Literalmente, como explicar que as pessoas no se revoltem ? Mas ao mesmo tempo,revolta ou revoluo, vocs no encontraro jamais isto em Spinoza. Dizem destas coisasmuitas besteiras. Ao mesmo tempo, ele fazia os desenhos. H uma reproduo de umdesenho dele que uma coisa muito obscura. Ele desenhou a si mesmo sob a forma de umrevolucionrio napolitano que e