d - Silva, Sandra Maria Pereira Fischer Da

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SANDRA MARIA PEREIRA FISCHER DA SILVA

O APANHADOR NO CAMPO DE CENTEIO:0 MARGINAL NA LITERATURA

Dissertao apresentada ao Curso de PsGraduao em Letras, rea de concentrao: Literaturas de Lngua Inglesa, do Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paran, para obteno do grau de Mestre em Letras. Orientador: Prof.3 Dr.a Brunilda Tempel Reichmann

CURITIBA

1989

Para Edson, meu pai. Por Edson, meu filho.

)

Com o apoio do Professor Doutor dison Jos da Costa, fessor to diferente. um pro-

Com a colaborao renitente porm real e imprescindvel de Nilma Terezinha, minha m

E com Brunilda, sempre com Brunilda, apenas e to somente com Brunilda. Luminosamente com Brunilda. Para la, todas as estrelas de porque

todos os rebanhos de luz do Universo. Para sempre.i i

AGRADECIMENTO

A CAPES, pelo auxlio financeiro.

V

Eu queria que esta tese fosse uma tese marginal. Desejaria que ela se misturasse com as idias que sustenta, e que escapasse das linhas, e que no fosse formal, e que rompesse o academicismo, e que fosse estendida, que fosse entendida, e que fosse mastigada e

ainda que nao de todo engoli-

da. Nas prateleiras por onde andei, nos sacrrios das bibliotecas por onde me meti, as teses quase todas se mostraram sempre muito corretas e elegantes pomposas mesmo. Na minha rea, com raras excesses, elas sao sempre

muito dignas, perfeitas e soberanas em suas literariedades. Intactas esfinges de branco, imaculadas s vezes ligeiramente empoeiradas, h que se

dizer outras vezes amareladas, mas que fazer? ... Ao menos o tempo foi, amigo, pousar em acalanto sobre seus corpos inertes e gelados consult-las, Respeito

acobert-las, ampar-las em suas eretas determinaes eruditas. aquelas teses todas, muito

mesmo porque elas sabem se dar ao respeito, e aviltada,

como! ... Mas esta, eu queria desrespeitada. Aberta, manuseada,

riscada. Eu queria esta uma tese,gritalhona, estridente, anormal. Eu a queria mal falada, perturbando ... prostituda, incontrolvel, germinalmas, por Deus, viva! Eu queria mesmo que esta tese de mestrado, rebento mundo ficcional, fosse real de um

e til! Queria, assim, que fosse to escandade no

losamente misturada com a realidade dos de sua temtica, ao ponto

ser possvel discernir o que fosse papel do que fosse pele do que fosse letra do que fosse margem do que fosse carne do que fosse marginal do que

fosse tinta do que fosse sangue do que fosse teoria do que fosse vida ... Por favor, ento, senhores eventuais leitores por favor: se desacreditem

em algumas linhas esta tese, portanto, sair dos trilhos, no

dela por isto, no a torturem . . Ela ter sido apenas marginal, nunca de.. linqente. A delinqente sou eu.

vi BIBLIOTECA CENTRAL

Universidade Fedoral do Parafi

SUMRIORESUMO ABSTRACT INTRODUO CAPTULO I - MARGINAL NA MARGINALIDADE CAPTULO II - MARGINAL DE CHAPU E LUVA CAPTULO III - MARGINAL DE CORPO E ALMA CAPTULO IV - MARGINAL-MESSIAS CONCLUSO REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS vi i i x 1 20 49 75 Ill 141 149

vi i

RESUMOEste trabalho pretende examinar o tema da marginalidade em 0 apanhador no campo de centeio, de J. D.Salinger, do estudo do protagonista da obra, o adolescente .Holden field. Na INTRODUO, explicitamos as razoes e os objetivos nosso estudo, indicamos o que entendemos por marginal e o de tipo a partir Caul-

de marginalidade em que tencionamos nos concentrar; alm disso, apresentamos a estrutura planejada para o trabalho e a forma de abordagem que utilizaremos para a anlise do romance de ger. Na primeira parte, MARGINAL NA MARGINALIDADE, mos a construo, profundidade e extenso do carter verificamarginal Salin-

do narrador-protagonista de O apanhador no campo de centeio; na segunda parte, MARGINAL DE CHAPU E LUVA, analisamos os los hericos de identificao e proteo que acompanham o smboper-

sonagem. Na terceira parte, MARGINAL DE CORPO E ALMA, demonstramos como a marginalidade do protagonista se reflete, de sas maneiras, em seu prprio corpo e no corpo narrativo; quarta parte, MARGINAL-MESSIAS, trabalhamos a noo da diverna pos.tura um

messinica do protagonista e a inverso de papis deste com importante personagem secundrio.

Finalmente, na CONCLUSO, tecemos uma apreciao sobre o estudo que realizamos, e passamos em revista as etapas e as concluses a que tal estudo nos conduziu; apresentamos, ainda, alV iii

gumas consideraes subjetivas relativas s questes do marginal e da marginalidade.

iX

ABSTRACTThe main purpose of this study is to examine the theme of marginality in The Catcher in the Rye, by J. D. Salinger, through an analysis of its narrator participant protagonist Holden Caulfield. In the INTRODUCTION, we present the reasons for and the adolescent

objectives of our study, as well as we indicate what we mean by marginal and the kind of marginality we intend to concentrate upon; we also present the structure of the thesis and the

approach we have chosen to analyse Salinger's novel. In the first part, MARGINAL WITHIN ITS MARGINALITY, verify the intensity and the extension of the creation of we the

marginal personality of the character in The Catcher in the Rye; in the second part, MARGINAL IN HAT AND GLOVE, we analyse heroic symbols of identification and protection which the symbolic status of the protagonist. In the third MARGINAL IN BODY AND SOUL, we demonstrate the way the the

enhance part, major in

character's marginality reflects itself on his own body and the structure of the narrative as well; in the fourth

part,

MARGINAL-MESSIAH, we develop the notion of the protagonist's messianic behavior and concentrate upon the inversion of roles that occur between the protagonist and a significant character. Finally in the CONCLUSION, we examine our study and sum up its phases and the conclusions reached; besides, we present some considerations concerning the notions marginality. of marginal and second

INTRODUOO corpo de baile que dana a coreografia cotidiana da sociedade dos homens, visto assim, do alto, em seu todo zante como massa nica e integrada globalium ha-

, via de regra,

corpo bem sincronizado, uniforme, competente e comportado,

bilidosamente ensaiado. Baila obediente, na cadncia de sons de uma impressionante orquestra de conceitos, preconceitos, dogmas, instituies, tradies e contradies. A harmonia chega a quase perfeita, ao ponto de que nem sempre se consegue nir, na meia-luz do imenso palco do Universo, quem ser

discerbailarino

de quem msico de quem dana de quem msica de quem maestro de quem instrumento de quem batuta de quem movimento de quem ritmo de quem nota de quem cho de quem criatura de quem criador de quem tudo de quem nada nada nad:. . . Algumas vezes, no entanto, percebe-se com estonteante e dolorosa nitidez que um ou outro destes elementos te to bem fundidos e confundidos aparentemen-

destoa; numa violncia tmas

mida de bailarino que se recusa a acompanhar a companhia,

que tambm no deseja ou nao consegue por completo abandon-la, algum destoa ligeiramente, destacando-se do todo; danarino titubeante que permanece no programa, mas, num ou noutro gesto,

numa ou noutra nota, deslizando sai do previsto, voluntariamente, evidenciando em seu descompasso a rebeldia contida: bailarinos desconexos, transtornados, so os marginais. Os sajustados todos da sociedade, seja l qual for a roupagem estes deque

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os traveste

se a de louco, bandido, criminoso, paranico, videsequilia

ciado, idealista, doente, esquizofrnico, artista,

brado, neurtico, gnio, mstico ou simplesmente to somente de poeta no importa, so todos marginais.

0 organismo do sistema social tem mecanismos fortes e poderosos que moldam e enclausuram o ser humano, enredando-o malhas de um cotidiano anestsico e alienante, que, em seu senrolar opressivo e massacrante, massifica e tiraniza o nas deindi-

vduo, inibindo e frustrando a manifestao genuna da espontaneidade, da singularidade; para alguns elementos, a presso revela demasiadamente insuportvel e, ento, alguma parte se do

consciente ou do inconsciente, da mente e do comportamento, viaja rumo a algum tipo especifico de marginalidade. A Histria e a Literatura de todos os tempos e de todos da

os mundos esto repletas de exemplos relacionados questo

marginalidade. Vincent Van Gogh, nos idos de mil e oitocentos, tumultuou, com sua busca obsessiva da cor e da revoluo, universo que no estava, absolutamente, preparado para cont-lo um sequer

quanto mais compreend-lo. Em primeira instncia, o

pintor perdeu a parada; a valente coreografia do corpo de baile de seu tempo atropelou-o impiedosamente sublime mgica mesmo e sua arte iluminada, sua

foi brutalmente desprezada por

poca. Van Gogh suicidou-se, em 189 0, vencido pela angstia, pela misria, pelo desajuste, pelo sistema ... Hoje, envergonhada de tanta cegueira e insensibilidade, a humanidade em romaria de final

rende-lhe tributo, reverenciando o inestimvel patrimnio suas telas sem par; e, provavelmente, assim ser at o

dos tempos. S que Van Gogh j foi embora; irremediavelmente pisoteado, irrecuperavelmente ferido. Para quem se importa, resta

3

o consolo e a esperana da crena de que a arte, sendo possivelmente a nica forma plausvel e eficaz de negar a transitorie-

dade da vida, resgate, com sua eternidade, a dor do artista, do criador, servindo-lhe, assim, de blsamo e redeno ... Como Van Gogh, Joana D'Arc na Frana, no ano de ao 1431 perce-

foi tambm aniquilida pelo sistema; este ltimo,

ber-se ameaado em seus alicerces pelo comportamento, pela postura e pelas atitudes de Joana, sentiu-se to fragilizado ponto de necessitar em prol da autopreservao ao

queim-la sabe

numa fogueira, numa violenta, macabra e intil

hoje se

manobra para que dela s restassem as cinzas. No sculo XVI, suas

um cientista brilhante, Galileu Galilei, precisou omitir

descobertas, negar suas idias e disfarar seus conhecimentos, para que a sociedade lhe outorgasse o direito de permanecer vivendo . Sado da pena de William Shakespeare, um Hamlet perdido

em algum tempo da Dinamarca, debateu-se e sucumbiu, atormentado pela tragdia da dvida atroz entre o conformar-se com uma tuao determinada, adaptando-se s circunstncias que lhe ram impostas, ou o rebelar-se contra tal situao, opondo-se ela numa ao enrgica de vingana. Vrias obras literrias escritas na segunda metade do sifoa

nosso sculo XX tratam da questo da marginalidade, apresentando protagonistas marginais; Invisible Man,"'" de Ralph Ellison, vive

tematiza o tormento de um jovem negro norte-americano que

em conflito interior e exterior, em busca de sua identidade; de pessoa pura, inocente, idealista, cheia de f e esperana na

vida e na humanidade, este jovem transforma-se num homem magoado e marcado, que resolve tornar-se invisvel simbolicamente

uma vez que percebe, a duras penas, que exatamente o "tor-

nar-se invisvel" que a sociedade espera dele. Decepcionado, decide viver margem da comunidade, que se lhe afigura de natureza insuportavelmente hostil e trapaceira, insensvel e estpida 2 Esther, a jovem protagonista de The Bell Jar , de autoria de com

Sylvia Plath, no consegue integrar-se consigo mesma, nem

o mundo que a rodeia; afasta-se da realidade, no obtm sucesso ao tentar encontrar foras para inserir-se num sistema social

que a repele e oprime e, tampouco, tem energias suficientes para lutar contra a tirania mrbida deste sistema. Aturdida, perdida em si mesma, Esther tem comprometida e distorcida a sua no' o da realidade e de si prpria, pois a precisa personificao da angstia e do caos. Francis, o vagabundo mendigo e anda3 rilho sobre quem versa Ironweed , de William Kennedy, atravesfaaspara

sa violenta crise existencial que o obriga a afastar-se da mlia, de seus relacionamntos e de suas atividades e,

sim, vivncia um longo processo simblico de purificao, que, ento, consiga recuperar a coragem de tentar,

novamente,

encarar a si, aos seus prprios dilemas e s outras pessoas; fugindo de si mesmo e, talvez, buscando a morte, que

Francis aceitar miste-

consegue aproximar-se da perspectiva de encontrar-se e a prpria inadequao riosa de paz e de vida. atingindo, assim, alguma forma 4

John Fowles, em The Collector , cria Frederick Clegg, um solitrio, complexado e frustrado jovem que coleciona borbole-

tas; numa pattica e absurda tentativa de colorir de vida o iso lamento de seu universo montono e cinzento, Frederick aprisiona no poro de casa Miranda Grey uma moa que, na sua viso

neurtica, preencheria, com a vivacidade e energia que lhe eram

peculiares, o abismo de solido e apatia de sua vida. Miranda, no cativeiro, morre, acometida de p n e u m o n i a e no se sabe

exatamente se, nesta alegoria, o que se tem um carrasco e uma vitima, ou simplesmente duas vitimas da trgica e desesperadora ausncia de liberdade e comunicao que caracteriza a sociedade contempornea. Hplden Caulfield, o problemtico adolescente norte-americano de The Catcher in the Rye^, no consegue suportar o coti-

diano e conviver com a hipocrisia, a falsidade e a inconsistncia da sociedade a que pertence ou, melhor, a que no per-

tence de fato. No compartilhando dos valores absurdamente distorcidos e superficiais sustentados por uma comunidade baseada

em um mundo de princpios que violam a dignidad, a individualidade e os sentimentos do ser humano, o movimento dos dias de

Holden consiste numa dolorida e interminvel rotina de desajustes e crises. 0 que tm em comum os parcos exemplos da Histria e Literatura que apresentamos t aqui o fato de que todos seus personagens reais ou ficcionais da os

de alguma forma porde maneira s e

taram-se, na maior parte do tempo de seus tempos,

especialmente singular, diferenciada, marginal. Com relao obras literrias citadas, podemos afirmar que The Bell Jar

The Collector revelam-se como as mais enfaticamente pessimistas uma vez.;que no permitem entrever, praticamente em momento gum, nem mesmo uma partcula de rstia de luz ou de Esther,.de The Bell Jar, encontra, ao final do livro, al-

esperana. apenas

uma trgua incerta consigo msma e "com o mundo. No h luz, cer teza ou acalanto para esta criatura marginal, s dvida e a sen sao d desespero, dramaticamente evidenciadas na passagem em

que a protagonista, no momento de deixar a clinica 1 onde

se,

encontrava em tratamento, aps sucessivas crises e infrutferas tentativas de suicdio reflete sobre sua incerteza com rela-

o a no mais vir a ter necessidade de regressar ao hospital:

... Valerie's last, cheerful cry had been "So long'. Be seeing you". "Not if I know it", I thought. But I wasn't sure. I wasn't :; sure at all. How did I kohw that someday at college, in Europe, somewhere, anywhere the bell jar, with its stifling distortions, wouldn't descend again?6

Numa contundente, dramtica e irnica fuso entre arte e artista, entre fico e realidade, sabe-se. que, alguns anos a para o

mais tarde em relao data de publicao de The Bell Jar,7

autora, Sylvia Plath , num gesto trgico de solidariedade com a personagem que criara, cumpre-lhe a profecia, abrindo gs do fogo e suicidando-se, justamente na Europa, aos anos de idade, no esplendor da vida neurtica de sua intelectual e artstica.

trinta carreira

Frederick, o protagonista de The Collector, por sua vez, tambm no traz em sua estria indicao alguma de redeno; ao contrrio, o final do livro refora a promessa amarga de que o

protagonista continuar meticulosamente incomunicvel e solitrio, para sempre emparedado e emparedando:

The room's cleaned out now and good as new. I shall put what she wrote and her hair up in the loft in the deed-box which will not be opened till my death, so I dont't expect for forty or fifty years. I have not made up my mind about Marian (another I ' m. I heard the supervisor call her name), this time it won't be love, it would just be for . the interest of the thing and to compare them and

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also the other thing, which as I say I would like to go into in more detail and I could teach her now. And the chothes would fit. Of course I would make it clear from the start who's boss and what I expect. But it is still just an idea. I only put the stove down there today because the room needs drying out anyway."

Comparadas a The Bell Jar e The Colletor, as estrias dos marginais de Invisible Man e Ironweed deixam no ar o eco de uma

reverberao de sonoridade mais positiva: o Francis de Ironweed, por exemplo, d a impresso de ter obtido uma espcie de paz espiritual ao trmino do livro, cujo final parece literalmente banhado -por luminoso sol matinal, como implica o texto:

... He'd head where it was marm, where he would never again have to run from men or weather. The empyrean, which is not spatial at all, does not move and has no poles. It girds, with light and love, the primum mobile, the utmost and swiftest of the material heavens. Angels are manifested in the primum mobile. But if they weren't on to him, then he'd mention it to Annie someday (she lready had the thought, he could tell that) about setting up the cot down in Danny's room, when things got to be absolutely right, and straight. That room of Danny's had some space to it. And it got the morning light too. It was a mighty nice little room.^

Tambm o jovem negro que se torna "invisvel" consegue, ao final de Invisible Man, esmaecer um pouco o horror da atmosfera de desalento, decepo e crueldade que emana das de sua estria, na medida em que afirma que, apesar de pginas tudo, margem da

mesmo sua "invisibilidade" no o coloca integralmente

da vida, ao ponto de eximir-lhe de todo a responsabilidade participao e de tolher-lhe a intensidade dos sentimentos:

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... I denounce because though implicated and partially responsible, I have been hurt to the point of abysmal pain, hurt to the point of invisibility. And I defend because in spite of all I find that I love. In order to get some of it down I have to love. I sell you no phony forgiveness, I'm a desperate man but too much of your life will be lost, its meaning lost, unless you approach it through division. So I denounce and I defend and I hate and I lo-

A insistncia do protagonista annimo em denunciar, fender, odiar e amar

de-

objetivando tambm, assim, minar um sismarginaliza

tema social injusto e corrompido que o martiriza e

uma promessa de caminhada que continua, a despeito da qua-

se intransponibilidade dos obstculos. Diferentemente dos demais exemplos literrios enfocados no.

aqui, The Catcher in the Rye, acreditamos firmemente, deixa ar, at certo ponto, a indefinio e a perplexidade

tanto no

que se refere ao marginal protagonista, Holden Caulfield, quanto no que se refere ao leitor. Ainda que Howard M. HARPER, Jr., em seu artigo intitulado "J. D. Salinger through the glasses

darkly", afirme que a indefinio e a perplexidade ficam apenas por conta do protagonista, que, alm de no possuir suficiente

sofisticao intelectual para estar alerta em relao natureza arquetpica de sua odissia ou s suas conseqentes es iniciatrias, tambm no aprende com sua estria quanto o leitor, percebemos e insistimos que pode no ser situatanto exa-

tamente desta forma. Referindo-se a Holden, HARPER sustenta que

... Though Holden is not as naive as Huck, he is not as sophisticated as Salinger or,hopefully, Salinger's audience. He is not sophisticated enough to be aware of the archetypal nature of his Odyssey or its initiatory

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situations. And he does not learn as much from his experiences as the reader does. D. B. had asked him what he thought about his story; Holden tells. ; us that "if you want to know ' the ' . truth, I don't know what I think about it". . But Salinger has given us enough information to know what to think about it. . ..H

Assim como Holden no sabe exatamente como julgar

..suas

experincias, imediatamente aps acabar de relat-las, tambm o leitor se criterioso e sensvel ainda que sofisticado, co-

mo supe Howard Harper, Jr., e apesar de toda a informao fornecida por Salinger, poder perfeitamente no conseguir com clareza o prprio julgamento a respeito de alguns situar prismas

da alegoria do texto. Como Holden, poder, por exemplo, no saber determinar com preciso, ao final da narrativa remos posteriormente como veinte-

se houve realmente a acomodao,

grao e redeno do adolescente, quando do episdio do carrossel. Pode ser que realmente ele tenha superado seu perodo transio e ingressado na vida adulta de

adaptando-se ao siste-

ma; mas tambm pode ser que apenas momentaneamente se acomodou, para, posteriormente, insistir na preservao da marginalidade. Como coloca Ihab HASSAN, The Catcher in the Rye revela-se preocupado "far less with the education or initiation of an adolescent than with a dramatic exposure of the manner in which ideals are denied access to our lives and of the modes which mendacity 12 assumes in our urban culture". Se, na verdade ainda que em

primeira instncia a obra tematize o ritual de iniciao e travessia do adolescente rumo maturidade sua preocupao fundos

damental , como efetivamente nos parece, com a frustrao

ideais do indivduo e com o fantasma da hipocrisia e da falsidade na cultura urbana, ento no de todo improcedente afirmar

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que a obra descreve todo um ritual de iniciao que, em anlise, no se consuma. Pode ser encarada como uma

ltima alegoria

crtica sociedade que, como j dissemos, anula a manifestao da individualidade, da espontaneidade e da autenticidade, prensando entre seus dogmas o ser humano em-

assim como a fbula, entre

ou o enunciado de The Catcher in the Rye est emprensado

uma espcie de introduo e de concluso que remetem diretamente ao momento da enunciao quando o adolescente est enclau-

surado numa clnica para doentes com problemas mentais, supostamente recuperando-se de um esgotamento nervoso. A interpretao crtica de The Catcher in the Rye, talvez consideravelmente simples e confortvel, aparentemente, exige, com efeito, razovel

dose de cuidado, sutileza e reflexo, como veremos neste trabalho. Pela originalidade e pela beleza genuna da construo e da composio psicolgica da personalidade marginal do protagonista de The Catcher in the Rye, de J. D. Salinger, que nos causa assombro e perplexidade, que optamos por desenvolver, atravs dessa obra, nosso estudo sobre o marginal e a marginalidade. Por que mais? Porque inicialmente, como j dissemos zo ao subjetivismo dando vae so-

o tema da marginalidade nos apaixona

acreditamos que qualquer estudo (ainda que despretensioso)

bre a marginalidade e a marginalizao do ser humano, na medida em que aborde com propriedade adequao a psicologia, a conduta e a cosmoviso do marginal, pode vir a ser significativo pae menos Ainda

ra a concretizao de uma sociedade mais equilibrada injusta, mais honesta e coerente, mais alerta e digna.

por que o marginal de The Catcher in the Rye? Porque este foi o marginal que nos conquistou e apaixonou, irreversivelmente, com a sua franca e cristalina autenticidade; porque vislumbramos na

figura dele

to desconexa em sua integridade, e to plena em a personificao do marginal universal de

sua marginalidade todos os tempos.

Se estudssemos, dentre os exemplos que indicamos aqui, Esther, em The Bell Jar, talvez corrssemos o risco de nos li-

mitarmos, na empolgao da anlise, a examinar a marginalidade restrita aos elementos representativos da intelectualidade minina duplamente vulnerveis e expostos em suas fe-

condies protago

de mulher e de intelectual; se nos concentrssemos no

nista de Invisible Man, quem sabe ficssemos circunscritos anlise da marginalidade inerente s minorias raciais; ao colecionador, de The Collector, quase certo que absorvidos

quanto seramos

ainda que no nos esquecssemos de que o texto

uma alegoria que remete ao enclausuramento e incomunicabilida de em que enredam o ser humano as engrenagens cruis da dade contempornea socie-

pela nfase na marginalidade caractersti

ca do neurtico, do paranico, enfim do ser considerado patolgico, e clinicamente louco; o estudo da marginalidade de Fran-

cis, em Ironweed, poderia ser comprometido.pela questo da inadequao talvez apenas temporria do personagem uma vez que j

este se coloca voluntariamente margem da sociedade, como

observamos, por um determinado perodo de tempo, com a finalida de de expiar a culpa de atos que julga terem sido faltas suas. Ao decidirmo-nos a estudar o marginal de The Catcher in

the Rye, pareceu-nos que tnhamos alguma oportunidade de tentar apresentar um estudo um pouco trais original e abrangente. Naturalmente, no estamos a esquecer o fato de que, ao nos inclinar mos para The Catcher in the Rye, poderamos tambm incorrer no

deslize de nos limitarmos a abordar, to somente, a marginalida de normal e previsvel do adolescente em conflito que vivencia

seu ritual de admisso na idade adulta; no foi difcil

evitar nos

este erro, todavia, porque o texto esteve constantemente a

evidenciar e afirmar sua transcendncia em relao fbula que tece. A trajetria de iniciao de Holden na maturidade, enquanto alegoria que remete ao drama do ser humano encarcerado numa

sociedade claustrofbica e massificante, somada s caractersticas do carter e da psicologia do personagem de Holden, empresta-lhe uma dimenso de marginalidade absolutamente verdadeira e sincera e positivamente cada linha da narrativa, entrelaada narrador, so testemunhas eloqentes desta

com cada gesto do

marginalidade. A inadequao de Holden remete, em essncia, indignao de todos os marginais do Universo

seja qual for a do

roupagem marginal por eles envergada no desempenho do papel cotidiano. Tencionamos estudar o marginal e a marginalidade em

The

Catcher in the Rye, rastreando no solo do texto as imagens simblicas que espocam a partir do mito e estrelam o cu da narrathe a

tiva. Posto que o mito ,como sustenta Mark SCHORER, "... dramatic representation of our deepest instinctual life, of primary awareness of man in the universe, capable of

many

configurations upon which all particular opinions and attitudes 13 depend" , sua anlise se nos afigura significativa e revelado-

ra; o mito apresentado na obra o mito do heri arqutipo que, atravs dos rituais relativos busca e iniciao, atinge a

transformao e a redeno. Na busca, o Heri, como salvador ou libertador, "... undertakes some long journey during which must perform impossible tasks, battle with monsters, he solve in

unanswerable riddles, and overcome insurmountable obstacles

order to save the kingdom and perhaps marry the princess" 14 ; na iniciao, o Heri "undergoes a series of excruciating ordeals

;

13

in passing from ignorance and immaturity to social and spiritual adulthood, that is, in achieving maturity and becoming a fledged member of his social group". 15 Ao mergulhar nos rituais de busca e iniciao, obviamente o heri de The Catcher in the Rye mergulha tambm numa riao do arqutipo da morte e do renascimento va-full-

o que, conse-

qentemente, remete a outro mito fundamental: o da imortalidade:

Immortality: another fundamental archetype, generally taking one of two basic narrative forms: a. Escape from Time: the "Return to Paradise", the state of perfect, timeless bliss enjoyed by man before his tragic fall into corruption and mortality. b. Mystical Submersion into Cyclical Time: the theme of endless death and regeneration man achieves s kind of immortality by submitting to the vast, mysterious rnythm of Nature's eternal cycle, particulary the cycle of the seasons.^

Holden passa pelas provas das travessias e batalhas pontilhadas de enormes dificuldades; tenta escapar do tempo, bus-

cando evitar a queda no abismo da corrupo, o que significaria a morte; submerge na mstica do eterno ciclo do tempo e da na-

tureza; atravessa os estgios de separao, transformao e retorno inerentes ao ritual de iniciao a questo, entretanto,

verificar se realmente se transforma ou se, ao contrrio, insiste na manuteno da marginalidade, a despeito das mudanas cclicas que teoricamente se operam nele. Naturalmente, seria difcil rastrearmos as imagens blicas e /explorar a dimenso mitolgica da obra, sem nos simuti-

lizarmos da perspectiva analtica que privilegia a interpretao psicolgica dos personagens, uma vez que esta perspectiva

"... can afford many profound clues toward solving a work's ' 17 thematic and;;symbolxc mysteries..." . Assim, em nosso acesso a. . ' - -

The Catcher .in the Rye, lanaremos mao, com relativa

ndistin-

ao,-das ferramentas que nos fornecem a abordagem psicolgica e a mitolgica e arquetpica, em funo da estreita e bvia relao existente entre estas duas possibilidades, como segue:

An obviously close connection exists between mythological criticism and the psychological approach ... : both are concerned with the motives underlying human behavior. The differences between the two approaches are those of degree and of affinities. Psychology tends to be experimental and diagnostic; it is closely related to biological science. Mythology tends to be speculative and philosophic; its affinities are with religion, anthropology, and cultural history.

Tentaremos, logicamente, verificar, paralelamente ao estudo do comportamento marginal do protagonista, as implicaes no apenas.'mitolgicas e psicolgicas, mas tambm biolgicas, culturais/ antropolgicas e filosficas que embasam, explicam e norteiam 'tal comportamento; no temos, entretanto, em nenhum momento, a -pretenso de conseguirmos abordar todas as implicaes ou de, esgotarmos o assunto. Temos plena conscincia de que mui.j . *

to j foijpescrito sobre J. D. Salinger e seu The Catcher in the Rye, ; desque mesmo estes estudos seguramente realizados por e in-

tericos j crticos notadamente mais maduros, experientes e competentes do que ns no conseguiram exaurir todas as

finitas pp^s sibil idade s interpretativas e simblicas da obra. Tambm nao. pretendemos, absolutamente, tecer nesta tese uma espcie de ;glcha de retalhos, utilizando-nos de fragmentos muits dos inmeros estudos crticos relativos ao livro, :vv' . acreditarmos, que, agindo desta forma, estaramos to de por _ somente

sendo repetitivos e acomodados

ainda que tal alternativa nos

oferecesse, certamente, menor risco de erro. No obstante, preferimos o desafio e a responsabilidade de tentarmos apresentar mais uma possibilidade de crtica a The Catcher in the Rye e

mais uma contribuio para a anlise do marginal e da marginalidade . Dividiremos a tese em quatro captulos, a saber: "Marginal na Marginalidade", "Marginal de Chapu e Luva", de Corpo e Alma" e "Marginal-Messias" , "Marginal

alm desta Introduo

e da Concluso. Resumindo, em linhas bem gerais, no primeiro captulo verificaremos a questo da construo e da profundidade e extenso do carter marginal do protagonista de The Catcher he-

in the Rye; no segundo captulo, examinaremos os smbolos

ricos de identificao e proteo que acompanham o personagem; no terceiro, analisaremos como a marginalidade de Holden se reflete, de vrias formas, em seu prprio corpo e no corpo da noum da

narrativa; finalmente, no captulo quarto, trabalharemos a o da momentnea inverso de papis do protagonista com

importante personagem secundrio, que se verifica ao final narrao. Fundamentados no fato de que tencionvamos elaborar tese de Mestrado em Literaturas de Lngua Inglesa num pas lngua portuguesa, decidimos escrever a tese em portugus,

uma de ao

invs de redigi-la em ingls. Objetivando alcanar maior harmonia no corpo do texto, utilizaremos a traduo brasileira 1Q The Catcher in the Rye O Apanhador no Campo de Centeio. de

Comparando a referida traduo com o original, reconhecemos naquela um nvel de qualidade e adequao que nos permite empreg-la em nosso estudo sem receio de comprometer-lhe a validade. Concluindo nossa Introduo, esclarecemos que temos pie-

16

na conscincia de que o calvario e a crucificaio do marginal, do inconformado, do diferente, tm sido testemunhados e tematizados atravs dos sculos, ao longo das dcadas: apesar de velha, entretanto, a estria no perde a atualidade. S parece,

inacreditavelmente, no ter muita ressonncia; estranhamente, a sociedade parece que no se d conta destas estrias em sua Histria posto que que continua, imperturbvel e implacvel, per-

feitamente aplicada em seu trabalho de massificar, despersonalizar, triturar, anular e aniquilar o ser que, imprudentemente, se mostra rebelde a seus preceitos. Talvez seja preciso testemunhar ainda mais, tematizar com mais freqncia, denunciar com

maior indignao; quem sabe haja ainda, agora e sempre, que gritar mais e muito mais alto pela voz do marginal de todos os tipos e de todos os tempos ... Ns, particularmente, genuinamente

acreditamos nesta necessidade. Por isto, neste trabalho, que se pretende uma tese de Mestrado, sem pretenses de ineditismo absoluto, tencionamos, estudar, conforme j anunciamos, algumas

facetas do marginal e da marginalidade, em algumas de suas nuances mais originais, ao nosso ver. Sustentamos a esperana idealista, de, com tal estudo, virmos a contribuir forma humilde, lacunar e mesmo precria ainda que de

para a perspectiva

de melhoria de condies da situao do diferente na sociedade. Temos a certeza de que muito da dor, da humilhao, do sofrimento e da tragdia inerentes ao cotidiano da existncia humana poderia ser sensivelmente minorado se houvesse real respeito pe-

las diferenas individuais, pelas limitaes, pelas medidas, pelos anseios e pelos desejos do ser humano em sua singularidade. A mscara, ento, poderia ser mais amena, menos atroz; e a vida conseguiria ser mais bem aquilatada, mais sonora e musical sua essncia. em

17

Julgamos, ainda, necessrio esclarecer que gostaramos, imensamente, de que esta tese pudesse ter sido concebida e concretizada integralmente fora dos cnones e das normas que regem a estruturao dos trabalhos de tese tanto por acreditarmos e

que tais limitaes formais podem prejudicar a inventividade a criatividade que, eventualmente, podem acompanhar e

enrique-

cer um estudo acadmico (na medida em que amarram a mo do pesquisador e cerceiam a liberdade de sua mente), quanto para que

obtivssemos, metalingisticamente, um efeito pleno de integrao entre forma e contedo. No soaria quase absurdo, mesmo,

que um trabalho sobre marginais se apresentasse tranqilamente integrado s convenes e normas? Soa assim como uma heresia,

um desrespeito ... marginais, entretanto, j esto habituados aos desrespeitos, o que nos acalma um pouco as convulses da

conscincia; talvez mesmo, num exagero de apaixonados, para escrever com genuna coerncia sobre marginais e marginalidade, devssemos ignorar a glria do espao central das folhas de papel e utilizarmos to somente as margens ... Mas, tudo isso fi-

impossvel delrio, reconhecemos; ainda que a coisa toda

que meio desconexa, este trabalho, que se pretende uma tese para a obteno de um grau de Mestre, tem, forosamente, que apresentar de acordo com a norma. Tem, ao menos, que tentar. se E

tentar, tentaremos. Tomamos, porm, a liberdade de ousar solicitar aos eventuais leitores desta dissertao, compreenso e, se possvel, complacncia para com os momentos em que no formos

exatamente felizes em nossa tentativa: afinal, em ltima anlise, trata-se tambm de uma tese de marginal.

.NOTS

ELLISON, Ralph. 1972 'PLATH, Sylvia. 1986. KENNEDY, William. 1984.4

Invisible Man.

New York: Vintage Books,

The Bell Jar.

London: Faber and Faber,

Ironweed. p .

New York: Penguin Books,

FOWLES, John.

The Cllector. . New York: Dell, 1963. The Catcher in the Rye. Harmondsworth:

SALINGER, J.D. Penguin Books, 1984.6

5

PLATH, p. 254.

'AIRD, Eileen. Sylvrila Plath: her life & work. New York: Harper & Row, 1973. Sylvia Plath nasceu em outubro de 1932 e mor5 reu em fevereiro de 1963. ? ^ 8 FOWLES, p. KENNEDY, p. 227. 10 ELLISON, p. 437-438. A enfase e nossa.

HARPER JR., Howard M. Desperate Faith: a study of Bellow,'Salinger, Mailer, Baldwin and Updike, Chapel Hill: University of North Caroling Press,;C9.74. p. 69. 12 ' '~ - HASSAN, Ihab. Radical Innocence: studies in the contemporary American novels Princeton, Princeton University Press, 1961. p. 272. ' '13GUERIN, Wilfred L. ;et a l A Handbook of Critical Approaches to Literature.14 ; 15

New York: Harper & Row, 1966,

p. 117

GUERIN et al., p. 121..

GUERIN et al., p. 121.

1916

GUERIN et al.f p. 121. GUERIN et al., p.

17

1Q GUERIN t al., p. 116. 19 SALINGER, J.D. O Apanhador no Campo de Centeio. Trad. Alvaro de Alencar et al. 8.ed. Rio de Janeiro : Ed.utor, 1965. Todas as citaes relativas a esta obra, presentes neste trabalho, sero retiradas desta edio; daqui por diante," sero indicadas por ACC, seguido do nmero da pgina.

CAPTULO I

MARGINAL NA MARGINALIDADEPara personagem principal de seu O apanhador no campo de centeio, Jerome D. Salinger construiu um garoto adolescente dezesseis anos de idade, a quem batizou com o nome de de

Holden

Caulfield. Para bero de seu rebento, concebeu um ninho esplndido: criou para ele um lugar numa famlia classe mdia alta da exuberante e controvertida cidade norte-americana de Nova que; deu-lhe como companheiros pai e me, um irmo adulto," tro irmo morto e uma irm criana. Designou-lhe um Iorou-

endereo conse-

elegante, prximo o Central Park; forjou-lhe um passado fortvel, sarapintado de colgios caros e dinheiro farto;.,

meou-lhe, no campo da casta em que o plantou, um futuro promissor e, fazendo com que florescesse nas pginas de um prsente

de crise, fez dele um personagem iluminado e imortal. A obra tem um enfoque retrospectivo e narrada em meira pessoa, pelo prprio Holden. a estria de Holden, melhor, a parte que interessa da estria de Holden da atravs dos olhos adolescentes deste mesmo Holden.;

priou

filtraQuando

inicia o relato, a personagem est se recuperando de um esgotamento fsico e mental, num lugar que no especifica provavelre-

mente um hospital para doentes nervosos, ou uma clnica de pouso; inaugura a narrative bruscamente, situando seu presente o leitor: o tempo da enunciao

momento

e interpelando diretamente

21

Se querem mesmo ouvir o que aconteceu, a primeira coisa que vio querer saber e onde eu nasci, como passei a porcaria da minha infncia, o que meus pais faziam antes que eu nascesse, e toda essa lenga-lenga tipo David Copperfield, mas, para dizer a verdade, no estou com vontade de falar sobre isso. Em primeiro .'lugar, esse negcio me chateia e, alem disso, meus pais teriam um troo,se eu contasse qualquer coisa ntima sobre eles. ... E, afinal de contas, nao vou contar toda a droga da minha autobiografia nem nada. So vou contar esse negcio de doido que me aconteceu no ltimo Natal, pouco antes de sofrer um esgotamento e de me mandarem para aqui, onde estou me recuperando. ... Vou comear a contar do dia em que sa do Internato Percey. (ACC, 07)

Significativo estranhamento assola o leitor que inaugura a leitura. J nas primeiras palavras, ele vtima de namento direto questio-

como se fosse intimado a refletir sobre a auinicia ou

tenticidade de seus propsitos em relao leitura que

ao mesmo tempo em que tem frustradas suas expectativas

as expectativas que o narrador imagina que sustenta. "Sacudido" desde primeira linha, o leitor decodifica um "aviso" do gnero

"o que vai ser narrado no exatamente algo com que voc esteja habituado, portanto pense bem se quer mesmo iniciar a leitura ..." H uma cobrana de postura, nesse momento primeiro, parte do narrador para o leitor; exige o contador da da

estria

que seu receptor seja autntico, crtico e distante o suficiente para decidir-se sobre a questo da leitura. Ao definir exa-

tamente o que pretende narrar, Holden est sendo honesto e objetivo, fornecendo ao leitor a chance de "bater em retirada". Recusada a chance, entretanto, e prosseguida a leitura, o leitor

percebe que arrastado sem maiores cerimnias para o mundo particular e peculiar do narrador que passa imediatamente a re-

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latar o que lhe aconteceu ao ser reprovado e abandonar a tuio educacional classe mdia alta em que estudava, o

instiInter-

nato Pencey. 0 leitor submerge no mundo do tempo do enunciado, ento e apenas na ltima pgina do livro que tornar a

emergir, no momento em que ir recuperar, juntamente com o narrador, a barca do distanciamento crtico emprestada pelo da enunciao; tempo

Isso tudo que eu vou contar. Podia contar tambm o que fiz quando voltei para casa, e como fiquei doente e tudo, e o colgio para onde vou no prximo outono, depois que sair daqui mas nao tenho a mnima vontade, No duro mesmo. Esse negcio todo nao me interessa muito agora. (ACC, p. 180)

A narrativa finda no mesmo ritmo brusco, direto e tempestuoso em que inicia: objetiva, sem rebuscamento de qualquer ordem. Se no princpio, antes de mergulhar na estria, o leitor final vez. que re-

sofre um estranhamento que o prepara para o mergulho, no sofre espcie de "acordar": novamente "sacudido", dessa para que retorne completamente tona da enunciao. Quase inesperadamente, Holden suspende a corrente do enunciado e

torna ao momento da enunciao, "pescando" o leitor e perturbar.do-o novamente na medida em que esclarece, como vemos na ciainda continuando o

ta-o, que no mais contar coisa alguma e

que no tem qualquer opinio sobre o que relatou ou sobre

que relatar, e mesmo que se ressente de ter contado o que contou. Ao teorizar sobre a questo da temtica, B. TOMACHEVSKI afirma que:

23

A escolha do tema depende estreitamente da aceitao que encontra junto ao leitor. A palavra "leitor" designa em geral um crculo bastante mal definido de pessoas, do qual muitas vezes, o prprio escritor nao tem um conhecimento preciso. A figura do leitor est sempre presente na conscincia do escritor, embora abstrata, exigindo o esforo deste para ser o leitor de sua obra. ... Esta preocupao com um leitor abstrato traduz-se na noo de "interesse". A obra deve ser interessante. A noo de interesse guia o autor j na escolha do tema. Mas o interesse pode tomar formas bastante variadas. As preocupaes de ofcio so familiares ao escritor, aos leitores mais prximos, e pertencem aos mveis mais fortes do desenvolvimento literrio. A aspirao a uma novidade profissional, a uma obra-prima, foi sempre o trao distintivo das maneiras e escolas literrias mais progressistas. A experincia literria, a tradio qual se refere o escritor, revelam-se-lhe como uma tarefa legada por seus antecessores, tarefa cuja realizao exige toda sua ateno. Por outro lado, o interesse do leitor neutro, estranho aos problemas do ofcio, pode tomar formas diversas, partindo da exigncia de uma qualidade puramente recreativa (satisfeita pela literatura de "passatempo" de nat Pinkerton a Tarzan) combinao de interesses literrios com questes de interesse geral.1

Nas partes relativas ao incio e ao final de O apanhador no cempo de centeio percebe-se claramente, como j vimos, a

acentuada preocupao com o leitor. Posicionando-se como escritor, Holden, consciente de que no tem conhecimento preciso das expectativas daqueles que eventualmente lero a estria que dispe a narrar, mostra-se empenhado em fornecer-lhes se

informa

es sobre o carter essencial da temtica que desenvolver

a fim de que seus leitores possam se certificar se esta lhes ser ou no interessante. At aqui, nada h de conflitante com a

norma, portanto; tradicionalmente, entretanto, a preocupao do escritor com o interesse do leitor traduz-se numa efetiva tentativa de aliciamento, ou seja: o narrador vai procurar, direta

\

24

ou indiretamente, cativar o.leitor, prendi-lo, conquistar interesse, convenci-lo a prosseguir a leitura numa

seu

atitude

diversa daquela do narrador de O apanhador no campo de centeio. B. TOMACHEVSKI, ao discorrer sobre a figura do leitor

em relao ao escritor, cita uma estrofe de Eugnio Oneguin para demonstrar a imagem do leitor sendo formulada num endereo

clssico; esta estrofe ilustra nitidamente a postura aliciadora e cordial do emissor para com o receptor:

Esta imagen; do leitor pode ser formulada num endereo clssico;, como aquele que encontramos numa das ltimas estrofes de Eugnio Oneguin: Seja quem for, meu leitor, Amigo ou inimigo, eu quero de voc Despedir-me afetuosamente. Adeus. Seja o que for que procura em mim, Nestas estrofes indolentes: A recordao de uma emoo, Um refrigerio aps o trabalho, Quadros vivos, palavras de esprito Ou erros de gramtica, Cuide Deus para que neste livro, ; Para o divertimento, para o sonho, Para o corao, para a polmica dos jornalistas Voc encontre nem que seja uma migalha; E agora separemo-nos, adeus.^

Inicialmente, o protagonista utiliza-se do possessivo "meu" antes da palavra "leitor", estabelecendo, assim, um clima intimista, acolhedor: "meu leitor", aninha, acaricia, aproxima. seqncia, quando explicita que, seja l qual for o leitor amigo ou inimigo a despedida ser afetuosa, o clima de Na core

dialidade reforado; medida que a estrofe se desenvolve

chega ao seu trmino, esse reforo progressivamente enfatizado. 0 ltimo verso, "E agora, separemo-nos, adeus", ao destacar, entre vrgulas, o vocbulo "separemo-nos" e, ao utilizar-se dos

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vocbulos "agora" no incio e "adeus" no final, confere um colorido de dor, sofrimento e tragdia separao, ccmo se im-

plicasse que urge separar-se, ainda que dilacerando a vontade. 0 narrador de O apanhador no campo de centeio, entretanto, encharca de originalidade a sua tradicional preocupao com receptor: Holden no se dirige ao leitor, no incio da o obra,

para alici-lo e faz-lo cmplice, mas, como j foi dito, para exigir dele o posicionamento crtico e a disposio que,julga necessrios leitura do que vai ser exposto. disso, a voz que fala ao leitor no cordial nem afvel; sincera Alm ,

ao contrrio, agressiva. No h verniz ou polimento no discurso, no h subterfgios que procurem amaciar a dureza e a jetividade da mensagem que est sendo veiculada. Holden obno

acaricia e no aninha seu leitor, no faz nada para seduzi-lo apresenta-lhe claramente, com exarcebada autenticidade, o

perfil do que vai ser narrado, numa atitude coerente com a averso que nutre pela falsidade e hipocrisia; prosseguir ou no a leitura dever ser deciso de um sujeito consciente, devidamente alertado sobre as futuras pginas. A mesma originalidade verifica no derradeiro captulo, como j vimos: no momento hora ltima, Holden narrador preocupa-se em dar adeus leitor ao se da seu

mas as letras deste adeus no tm brilho mido de lfazem

grimas ou cor de tragdia; objetividade e autenticidade

as tintas daquelas letras de ltima pgina. Como no princpio, novamente o narrador frustra as provveis expectativas do lei-

tor: naquela ocasio, anunciando, numa aluso obra de Charles Dickens,que a estria que vai contar no seguir a trilha brusca nada por-

de David Copperfield; desta feita, ao final, declarando e peremptoriamente que no vai narrar mais absolutamente ainda que provavelmente pudesse faz-lo simplesmente

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que no deseja e porque no sente, no momento em questo, interesse algum pelo que poderia ser tematizadc na continuidade narrativa. Na citada tiino do estrofe de Eugnio Oneguin, o da

trse-

poema, como j foi comentado, com a conseqente

parao entre narrador e leitor, tratado como situao que precisa acontecer, ainda que no de todo desejvel: o adeus ao difino

leitor explcito, cordial, e tem tonalidade de dor, de

culdade inevitvel, que urge ser transposta; em O apanhador

campo de centeio,o momento da separao deliberadamente determinado pelo narrador e por um narrador que faz questo de de no narOne-

deixai bem claro a sua determinao, como j dissemos,

prosseguir contando coisa alguma, e que ainda lamenta ter rado o que j narrou. 0 protagonista guin na estrofe ' de

discorre sobre sua preocupao no sentido de que o leitor consiga encontrar em seu livro ao menos uma

afvel ou no

partcula do que for que procure. A opinio do leitor, portanto, bem como seus interesses, tm ali enfoque primordial; j com da

Holden, o enfoque primordial do discurso recai no no exame opinio ou posio do leitor face ao que foi narrado

mas sim

no exame daquilo que o prprio narrador pensa sobre a narrativa:

... D.B. me perguntou o que que eu penso sobre esse troo todo que acabei de contar. Eu nao soube o que dizer . Para ser franco, nao sei o que eu acho disso tudo. Tenho pena de ter contado o negcio a tanta gente. S sei mesmo e que sinto uma espcie de saudade de todo mundo que entra na estria. ... A gente nunca devia contar nada a ningum. Mal acaba de contar, a gente comea a sentir saudade de todo mundo. (ACC, p. 180)

Despojada e sinceramente, Holden, como pode ser comprova-

i

destacada,

27

do na passagem

admite que no sabe como julgar lei-

a prpria narrativa. Como discorrer sobre o pensamento do

tor a respeito do que lhe foi relatado, ento, se o prprio relator no consegue expor seu pensamento acerca do mesmo assuno

to? Holden afirma tambm que se ressente de ter contado tudo

que contou, e que experimenta a sensao de perda e de saudades das personagens envolvidas na estria. Ao contrrio do que tradicionalmente ocorre, em finais de narrativas cujos dirigem-se aos receptores, o narrador em O apanhador narradores no campo

de centeio manifesta ao leitor seu pesar ao ter que deixar, encerrando a narrativa, no o leitor mas os personagens da f-

bula, mesmo os negativamente caracterizados. um narrador, ento, cuja prioridade tende a ser a honestidade e a autenticidade ainda que para isso seja necessrio renunciar a tratar o na

leitor com afabilidade e comprometer a prpria auto-imageni,

medida em que se reconhece incapaz de avaliar e julgar uma narrativa que integralmente sua; um narrador que, antes de .tudo, tenta preservar a essncia de sua estria sonagens. No h como deixar de observar, entretanto, que as ltimas linhas de O apanhador no campo de centeio revelam uma certa ligao afetiva da parte do narrador para con: o tambm leios fatos e os per-

tor; ao sustentar que no se deveria nunca contar nada a pessoa alguma, Holden est no apenas aludindo sua vocao de escri3

tor

como coloca Howard M. HARPER Jr.

, mas ainda eviden-

ciando relativo carinho para com o leitor, na medida em que est quase que o aconselhando a no lhe seguir os passos, se desejar encontrar dor e sofrimento. A anlise das passagens enfocadas leva-nos a constatar salvo

que o que: acontece nos discursos de abertura e de fechamento em

:

:

28

O apanhador no campo de centeio uma subverso do que pode ser considerada como uma atitude relativamente tradicional nos procedimentos narrativos, ou seja:; Holden narrador, marginal, submete-se s normas, dirigind-se:ao leitor com a preocupao r de

contextualiz-lo face obra "s mas o faz de forma no conven. cinal ou previsvel. Vale afirmar, ento, que se trata padro quebrando o padro: Holden, como marginal, no de um

deveria pr-

submeter-se norma; ele o faz," no entanto, utiliza-se da

pria norma para inovar, diversificar e romper com o tradicional. marginal na marginalidade. Holden um adolescente .sensvel, delicado e inocente. na sua a seus como de dos

Portador de uma honestidade compulsiva, refletida at mesmo fiao do tecido do texto. No compartilha dos valores de

comunidade, no suporta superficialidade e falsidade que, seu ver, embasam e norteiam a vasta maioria dos atos semelhantes. 0 cotidiano apresenta-se para Holden assim uma espcie de campe de batalha insuportvel, desprovido sentido e incoerente. Crtico, consciente da relatividade conceitos, da diferena entre aparncia e essncia, Holden de

sempre a nota dissonante, a cor.que no combina, a presena que incomoda. marginal, como j foi colocado. Nada h de excepcional, :(entretanto, num adolescente marginal; a sociedade, sempre competente e criteriosa quando trata de defender seus interesses, suas instituies, es e tradies, prev em seu -cauteloso organograma um ntido e bem definido para a figura tradicionalmente se

convenespao marginal

do adolescente. Como Daniel BECKER bem explicita,

- Do ponto de vista do mundo adulto, isto e, o: sistema ideolgico dominante, o adolescente e um |er em desenvolvimento e em conflito. Atravessa uma crise que se origina basica-

29 mente em mudanas corporais, outros fatores pessoais e conflitos familiares. E, finalmente, considerado "maduro" ou "adulto" quando bem adaptado estrutura da sociedade, ou seja, quando ele se torna mais uma "engrenagem da mquina".^

Ha uma grande expectativa, portanto, em relao h m a r g i nalidade dessas criaturas em fase de transio, que sustentam

ainda um p na infncia q u a n d o . j tm uma ponta do outro r o a n do o solo "firme e seguro" da vida adulta. 0 comportamento nor-

mal, esperado e mesmo cobrado do adolescente justamente o comportamento marginal, entre outros fatores porque, como BECKER, sustenta

0 novo, o questionamento e o conflito que muitas vezes explodem no adolescente sao muito perigosos ... ento, nada melhor que enclausurar todas essas ameaas em um perodo da vida do indivduo, aplicar-lhes um rtulo de "crise normal" e definir a adaptao s regras^vigentes ccmo "cura" ou "resoluo" da crise. "

Enclausurar o diferente, n u m espao fsico,

ideolgico do

ou temporal, pode ajudar significativamente na preservao

sistema vigente. Encerrar a m a r g i n a l i d a d e natural do a d o l e s c e n te num perodo pr-determinado no mui Co diferente de a p r i s i o nar a loucura em m a n i c m i o s o u c l n i c a s de repouso o que se

faz imperioso, ento, principalmente pelo que aponta Joo F R A Y ZE-PEREIRA citando Marcuse, n u m estudo sobre o carter da cura: lou-

Com diz Marcuse, pensador contemporneo da chamada Escola de Frankfurt, "a fuga para a inferioridade e a insistncia numa esfera privada podem bem servir como baluarte contra uma sociedade que administra todas as dimenses da existncia humana". Nesse sentido, .se

30

a loucura uma experincia que selvagemente afirma a subjetividade, a imaginao, a fantasia, o louco aquele que emerge da rede de relaes de troce e dos valores de troca, retira-se da realidade da sociedade burguesa e faz sua entrada em outra dimenso da existncia. Isto , deslocando o indivduo para fora do dominie do princpio da eficcia e da obteno do lucro para a esfera dos recursos ntimos do homem, a loucura,pode ser considerada uma fora poderosa na - invalidao dos mais caros valores burgueses.

A marginalidade do louco e do adolescente convenientemente trabalhada pelo sistema. O primeiro no representar rigo iminente, se adequadamente rotulado como demente e pe-

encar-

cerado em espaos fsicos ou na indiferena e descrdito dos indivduos ditos normais; o segundo tambm no, uma vez que est

devidamente enquadrado numa moldura de crise passageira, previsvel e saudvel que representa o perodo de transio que

se faz ponte para o terreno da completa aceitao e assimilao da maioria dos valores que questiona. Holden enquadra-se com perfeio nos motivos dessas duas telas: a da adolescncia e a da demncia ou a de algum es-

tado muito prximo da demncia. Em seu momento;presente, o narrador revela a prpria histria do fundo de sua adolescncia,

encarcerado numa clnica de tratamento psiquitrico; se, na sua introduo, a obra no esclarece completamente; o espao onde se encontra situado o narrador, na medida m que fsico Holden

no menciona explicitamente a natureza do local, mas apenas insinua, o final da narrativa definitivamente informa de um local para tratamento de pessoas psiquicamente das . Holden, portanto, uma pessoa duplamente marginal um tratar-se perturba-

adolescente psicologicamente debilitado e duplamente marginali-

31

zado: est isolado e enclausurado na moldura do perodo da adolescncia e nos muros de uma clnica de repouso. Entretanto,

apesar de duplamente rendido, enredado por dois poderosos mecanismos de preservao do sistema vigente, Holden encontra meio eficaz de efetiva libertao: o contar sua estria, o cimento do texto, a narrativa, a escritura. A concritude palavras que materializam a narrativa pode ser encarada um tedas como

reflexo da vitria do marginal ao conseguir efetivamente burlar o sistema que o oprime e, neste exato momento, Holden in-

gressa numa terceira dimenso de marginalidade, que

corrobora o

para seu estado de marginal na marginalidade: via de regra,

sistema vitorioso, o deficiente sufocado, a singularidade e a interioridade so vigorosamente estilhaadas pelas gens da sociedade que as transformam em milhares de engrenacaqui-

nhos minsculos, jamais desprovidos de seu brilho insistente de cristal colorido, mas definitivamente destitudos da fora lhes conferia o todo reunido. Desta forma, sem dvida, que

quando

os cacos so vitoriosos, quando o marginal rechaa seu opressor, sobrepondo-se a ele de alguma maneira realmente efetiva, marginal se diferenciar significativamente dos demais tos que comungam com ele a marginalidade este elemenna

e ser marginal

marginalidade, como o o personagem de Holden em O no campo de centeio.

apanhador

Como j colocamos anteriormente, o adolescente

tradi-

cionalmente marginal, contrrio norma vigente, averso ao sistema. H uma srie de caractersticas comuns aos que nos permite reuni-los num todo relativamente adolescentes previsvel. massa de

No se trata, evidentemente, de aglutin-los todos numa

uniforme, simplificando suas diferenas individuais a ponto

32

afirmar que so iguais. Na sociedade em que estamos inseridos, a adolescncia esta se tornando um perodo progressivamente a do por-

mais longo e mais complexo, e mesmo a definio do que vem significar ser um adulto est bem mais obscura e confusa que era h alguns anos atrs. ponto lgico e pacfico,

tanto, que, num contexto em que influem variados fatores individuais, psicolgicos, familiares, culturais, regionais, nmicos, polticos e sociais, a juventude tenda a eco-

envergar poscla-

idias, posturas e comportamentos os mais diversificados sveis. Alguns adolescentes contestam, rejeitam valores,

mam por mudanas, lutam por novo e maior espao; outros h que desejam reproduzir os valores do ncleo familiar e comunitrio, de modo que as mudanas por que passam restringem-se mais esfera das transformaes fsicas do que propriamente

emocio-

nais; alguns outros, ainda, sobrevivem adolescncia integralmente dissociados de qualquer tipo de crise mais intensa e significativa, atingindo a chamada idade adulta sem maiores transtornos; outros h que passam por profundas modificaes emocionais e psicolgicas antes mesmo que o fsico comece a espelhar as alteraes prprias da puberdade e, por a fora, as e dimais que mo-

ferenas e especificidades de cada caso se fazem mais

notrias e comprovadas. H muitos ritmos e diversos sons acompanham as danas do adolescer mas h uma nota e vim

vimento coreogrfico comum a todas elas: ainda que diversificados e distintos, os danarinos da adolescncia esto sempre todos unidos entre si pelas diferenas que apresentam em relao ao mundo que os rodeia, sejam estas diferenas da ordem que

forem. Em outras palavras, os adolescentes esto sempre "jogando noutro time" mas, ainda assim, jogando e, mesmo que en-

33

capsulados em algum tipo de solido interior, num time. Holden, entretanto, um adolescente relativamente descontextualizado e bastante peculiar, que, entre outras excepcionalidades, despretenciosa e imperturbavelmente se autoqualifica covarde de briga; que se revela bem entrosado com os irmos palmente com Phoebe, com quem se identifica e ruim

princi-

significativamente ati-

e que se preocupa com a possibilidade eventual de suas

tudes virem a desgostar seus pais. Desta forma, somos

inclinano

dos a afianar que o narrador protagonista de O apanhador campo de centeio baila sua adolescncia num ritmo

extremamente

inovador, particular e isolado, como tentaremos demonstrar. Retomando a metfora do jogo como representao da vida, podemos afirmar que Holden no joga, efetivamente, praticamente 8 jogo nenhum, em time algum ~

o que no quer dizer que nao es-

t vivendo, mas sim que vive margem daquilo que pode ser considerado, metaforicamente, como o jogo da vida. Vejamos o se-

guinte trecho, que ilustra parte da conversa entre o adolescente e um seu professor de Histria, bem como a reflexo de den sobre o assunto: Hol-

E o que foi que ele disse a voce? Ah ... esse negcio de que a Vida i um jogo e tudo mais. E que a gente precisa jogar de acordo com as regras. ... S ficou falando que a Vida um jogo e tudo. 0 senhor sabe. E a vida i um jogo, meu filho. A vida i um jogo que se tem de disputar de acordo com as regras. S i m , senhor, sei que . Eu sei. Jogo uma ova. Bom jogo esse. Se a gente esta do lado dos bacanas, a sim, um jogo concordo plenamente. Mas se a gente est do outro lado, onde nao tem nenhum cobrao, ento que jogo e esse? Qual jogo, qual nada. (ACC, p. 13).

34

Nesse fragmento de dilogo e na rpida reflexo de den sobre o tema em discusso, est claro que o garoto no

Holse

encaixa nas "regras do jogo". Note-se ainda, que a primeira vez no livro que o narrador utiliza a palavra "vida" se d oportunidade, quando relata ao professor de Histria o que disse o diretor do Internato Pencey . den reporta ao professor No discurso que portanto, nesta lhe Hol, ele o

na voz de Holden,

quando o vocbulo "vida" inaugura sua apario no livro, est grafado com a letra inicial maiscula: "Vida". Quando professor pronuncia a palavra "vida", ela j aparece com letra inicial minscula

grafada

e assim pelo resto da narrati-

va, seja ela mencionada por Holden ou por o.utro personagem qualquer. Naturalmente, podemos entender que "vida" inicialmente ao da

aparece com letra minscula, porque Holden estava a relatar professor uma conversa na qual o falante define o processo vida como sendo jogo portanto, "vida" teria letra

inicial prprio sus-

maiscula nica e exclusivamente por tratar-se do nome

de um jogo. No obstante, podemos, por outro lado, tambm

tentar que "vida" leva letra inicial maiscula ao aparecer pela primeira vez no livro, pronunciada por Holden, para implicar

que o significado que o narrador atribui ao significante "vida" difere substancialmente daquele atribudo pela maioria dos divduos. Holden marginal mesmo um adolescente in-

marginal mal

como j dissemos, que no se adapta ao sistema, suporta

o cotidiano, no concorda com as normas e, ao seu ver (como teremos oportunidade de comprovar e analisar detalhadamente tarde neste trabalho), as demais pessoas encaram a vida mais funda-

mentadas em valores superficiais inconsistentesou mesmo falsos. 0 personagem tem plena conscincia da prpria marginalidade, sa-

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be que no se encaixa nos parmetros do jogo

assim como acrem

dita firmemente que boa parte do universo que o circunda

e falsa; ainda no foi corrompido por esse universo, e luta arduamente por no se deixar corromper. Na sua concepo de valores, portanto, o seu universo particular, interior e marginal, subdos faz e

est infinitamente acima do universo exterior em que est merso o que o torna um ser s e incompreendido alm

limites da mera crise de adolescncia ,

mas que tambm o

senhor de um espao privilegiado, de onde consegue observar criticar tudo e ao mesmo tempo conservar-se imune a um de coisas que no aprova. A inadequao de Holden em relao a tudo e a todos patente do princpio ao trmino da narrativa; desde o

estado

incio

ele encontra-se "fora do jogo", literal e simbolicamente. J no momento inaugural do tempo do enunciado, seu deslocamento explicitamente tematizado:

. . . era o sbado do jogo de futebol com o Saxon Hall, considerado um grande acontecimento no Pencey. ltimo jogo do ano, era caso para suicdio ou coisa parecida se o Pencey nao vencesse. Lembro-me que eram umas tres horas da tarde, e eu, em p, l em cima do morro, bem ao lado de um canhao maluco da Guerra da Independncia. Dali podia ver o campo todo, os dois times se massacrando por toda a parte. Nao dava para ver direito as arquibancadas, mas dava para se ouvir os gritos da torcida, fortes e terrveis do lado do Pencey, porque o colgio em peso estava l menos eu e dbeis e desanimados do pessoal do Saxon Hall, porque o time visitante quase nunca trazia muita gente. (ACC, p. 08. Os grifos sao nossos).

Aps explicar o lugar onde se encontrava na hora do jogo que descreve, Holden interrompe-se no pargrafo seguinte para

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caracterizar uma colega de escola, a quem admirava; aps mas linhas, interrompe a caracterizao da garota para car, nos dois prximos pargrafos, as razes pelas quais se encontrava no jogo. Vejamos a primeira delas:

alguexplino

Eu estava ali no alto do morro, e nao no campo, porque tinha acabado de chegar de Nova York com a equipe de esgrima. Eu era a droga do capitao da equipe. Grande merda. Tnhamos ido a Nova York, de manha, para uma competio com o colgio Mc-Burney. So que nao houve competio nenhuma. Esqueci os floretes, o equipamento e a porcaria toda no metr. Tambm, a culpa nao foi s minha. Tinha que ficar me levantando o tempo todo para olhar o mapa e saber onde a gente tinha que saltar. Por isso voltamos para o Pencey l pelas duas e meia, em vez de chegar na hora do jantar. Na viagem de volta o time me deu o maior gelo. At que foi engraado. (ACC, p. 08. Os grifos sao nossos).

Analisemos agora, pormenorizadamente, o pargrafo transcrito. No incio do tempo do enunciado, Holden encontra-se alto de uma colina, contemplando o jogo de futebol que cia embaixo, no campo que se descortinava do morro no

acontenuma ati-

tude de observador que remete viso narrativa qualificada por9

Boris USPENSKY

como "Bird's

Eye View". Exposto, desagasalhaco-

do no cume de uma colina gelada, numa tarde de inverno que

mea a declinar, parado ao lado de um canho que havia sido utilizado durante a Revoluo. De seu posto junto ao canho, den tem a seus ps o panorama do campo todo e pode assistir jogo que l se desenrola, violento, com os dois times a Holao

massaos

crarem-se; pode, igualmente, divisar a arquibancada e ouvir

gritos "profundos e terrveis" da platia que acompanha o jogo, torcendo pelo time da casa, exaltando-o a esmagar o time visi-

tante. Segundo Holden, praticamente a escola toda ali se encon-

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trava

menos ele. Se observarmos cautelosamente a

estruturaversim-

o ,do pargrafo, a seqncia de idias, a pontuao e os bos escolhidos, percebemos que ali h muito mais do que a ples descrio de um jogo de futebol; os olhos do

observador

que descreve o cenrio do jogo, emprestam ao campo um significado de arena romana, onde platias delirantes acompanhavam fre-

nticas a luta estpida de homens debilitados contra lees monstruosos e famintos, protagonizando um espetculo brbaro e surdo donde saem derrotadas, sobretudo, a decncia e a abdig-

nidade do ser humano de todos os tempos. 0 evento

esportivo, s

que entusiasma e eletrifica a juventude da arquibancada,

consegue inspirar no jovem observador postado ao alto da colina sentimentos de ironia, repulsa ou melancolia; nenhum nenhuma expresso de arrebataraento com o desenrolar frenesi, do jogo. no em

Apenas e to somente um desprezo irnico, melanclico, que beira indiferena porque, pelo tom dominante no pargrafo

questo, est sarapintado de dor. No uma dor explcita, teorizada, explicada; uma dor, sim, que emana das palavras das para a descrio do que os olhos acompanham e da escolhiideologia

que escorre dos significados dos significantes selecionados ; uma dor implcita, que diz "no" e que se faz revoluo por no concordar com o espetculo que presencia; uma dor cujo portador postado ao lado de um canho, resto palpvel e concreto de outra guerra que se qualificou revolucionria teria, uma

prova-

velmente, se quisesse, armas para exterminar-lhe a causa. 0 canho e Holden, lado a lado, esto unidos pelo mesmo estopim de

potencial de fora; ambos, entretanto, esto mudos e imobilizados. Um pea de museu, relquia de um tempo antigo e enterrado, fssil inerte; outro soldado desgarrado, impotente na sua

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solido declarada, desagasalhado no meio do inverno, no alto da colina. 0 jovem no pode ativar o canho, para com ele car a realidade que lhe desagradvel; a fora modifi-

revolucionria entre-

evocada pela figura macia e concreta do canho calado,

tanto, mistura-se com a imagem fragilizada do jovem, a descoberto no alto da colina, emprestando-lhe fora e presena. E bos, foras latentes, expostos, observam. Alheios ao am-

combate, do

descrentes da batalha, ausentes do jogo, deslocados no meio sbado. Quando passa a explicar as razes pelas quais no va participando das atividades relativas ao jogo, o

esta-

narrador

utiliza-se, no original 1 ^, da expresso "... I was standing way up on Thomsen Hill, instead of down at the game ..." quando introduz a primeira das razes; ao explicitar a segunda, novamente inicia o pargrafo enfatizando "... I wasn't down at the game ...". 0 narrador, ento, sem teorizar sobre sua concepo de vida ou sobre a questo de seus valores individuais, revela sua ideologia: ele est no alto te baixa "up on the hill" e no na par-

"down at the game". O jogo e seus protagonistas esalm

to num patamar inferior ao de Holden, de modo que este, de observ-los, o faz do alto. A superioridade do narrador

enfatizada no contraste dos vocbulos "up" e "down", insistentemente repetidos e aproximados. Holden, no alto da colina, tem

um significado bastante especial, portanto. Juan-Eduardo CIRLOT afirma que:

A diferena de significaes atribudas ao simbolismo da montanha deriva, mais que da multiplicidade de sentido, do valor dos componentes essenciais da idia de montanha: altura, verticalidade, massa, forma. Do

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primeiro derivam interpretaes como a de Teillard que assimila a montanha elevaao interna ou transposio espiritual da idia de ascender. ... 0 sentido mstico do cimo provm tambm de que o ponto de unio do cu e da terra, centro pelo qual passa o eixo do mundo, ligando os trs nveis

0 marginal plantado ao lado de um canho no alto da

co-

lina, isolado, contemplando a pequena multido que se agita aos seus ps, adquire conotaes msticas de ser superior, elevado, ascendente e privilegiado. A multido l embaixo do inconsciente no resolvido no "poro"

tambm significativa enquandesse

to extenso dos pesadelos, dos conflitos inconscientes mesmo ser marginal. Citando CIRLOT,

A multido supera j o conceito de multiplicidade e d lugar nova entidade do numeroso como totalidade, como unidade fracionada e decomposta. Por isso tem muito tino a interpretao de Jung a multido, especialmente se se move e agita, traduz um movimento anlogo do inconsciente ...l^

0 ser que se encontra no alto da colina padece

de

proe

fundo conflito interior, de questionamentos que o martirizam

penitenciam; a pequena turba a que ele se sobrepe, formada por jogadores e torcedores que se agitam e movimentam ao som de gritos, a extenso e o reflexo do inferno interior do nista, bem como a representao simblica do tambm inverno exterior que o rodeia protagoinfernal in-

e do qual ele no parte

tegrante, mas sim nota .dissonante, em todos os sentidos. Como primeira razo para no ter estado inserido no meio da agitao do jogo, Holden apresenta, como vimos, o fato de de

ter, na ocasio, acabado de chegar de Nova Iorque com o time

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esgrima, do qual afirma, desdenhosamente, ser o capito. 0 time chegara ao Internato mais cedo do que o esperado, porque Holden preocupado com o local onde o time deveria saltar do metr,

com a finalidade de encontrar-se com o time de McBurney School, para um jogo simplesmente esquecera no trem o equipamento, de

modo que no houvera possibilidade de acontecer jogo algum; desta forma, o grupo retornara cedo, chegando em meio ao jogo futebol. Tradio, conveno e marginalidade novamente apesar de no se enquadrar no sistema nhum "jogo" de

juntos;

ou em praticamente neintegrado

e de ser na realidade um elemento no

com as outras pessoas tanto

e no componente de "time" algum, poruma ainda na do

Holden peculiariza sua prpria condio marginal,

vez que, no caso, submete-se temporariamente s normas, que apenas para contest-las: o capito de um time que, verdade, no integra. 0 curso do trem lhe mais atraente que a iminncia da competio

e ele, ento, impede o aconteOs cadires-

cimento da partida, esquecendo o equipamento todo no metr. demais componentes do time, ento, hostilizam-no durante o minho de volta atitude que Holden considera engraada,

vertida. Alm de no se encaixar no "jogo", sua pessoa ponsvel por impedir a participao dos que nele perfeitamente; como se no bastasse, ao invs de com a hostilidade dos colegas se

encaixam

aborrecer-se

atitude esperada de um adoles

cente rejeitado pelo prprio grupo, que, via de regra, lhe referencial de apoio, identificao e segurana ,

divert-se imdos

com ela, provavelmente frustrando os companheiros. Holden, previsvel, incomoda, perturba, atrapalha o fluxo normal acontecimentos, desorienta com sua aparente incoerncia. Como segunda razo para explicar sua ausncia da

agita-

.

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o do jogo de futebol, o narrador apresenta o fato de que tava a caminho da casa de seu professor de Histria; Sr.

esSpense

cer, para dele despedir-se. Atente-se para o detalhe de que13

trata do professor de Historia

e que este, segundo Holden, samo-

bia que o aluno no mais regressaria ao Internato Pencey tivo pelo qual enviara ao discpulo um bilhete

solicitando-lhe que, a as

que o visitasse antes de ir para casa. com esta pessoa um pouco mais tarde, Holden vai entabular a conversa sobre questo da vida ser um jogo que se deve jogar de acordo com

regras, a que j nos referimos anteriormente. Holden no se submete s regras, portanto no h, praticamente, jogo possvel para ele, no universo dos jogos j estabelecidos. no pargrafo

imediatamente posterior ao pargrafo em que alude pela primeira vez ao professor, que o narrador informa ao leitor sido expulso do Internato Pencey: que havia

... eu tinha sido chutado do colgio. Nao ia mesmo voltar depois das frias de ^Natal porque tinha sido reprovado em quatro matrias e nao estava estudando nada. Eles tinham me avisado mais de uma vez que eu devia me dedicar aos estudos ... mas nem liguei. E a fui reprovado. (ACC, p. 09)

Ser expulso de um estabelecimento de ensino tradicional e conceituado no exatamente fato de pouca monta. O narrador, no entanto, no sugere a idia de que se preocupa grandemente

com o que lhe sucedeu, ao contrrio: narra o episdio em termos que sugerem displicncia, descaso mesmo, no tom de quem lembra, muito por acaso, de algo no muito significativo mas que

ainda assim merece ser relatado, a ttulo de mera informao, no tom de quem expe o bvio, o elementar: como no respeitava as

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regras

muito menos o jogo ,

nada h que surpreender-se com foi se

o ser expulso. Implicitamente, Holden est dizendo que no simplesmente colocado para fora do colgio, mas sim como

houvesse sido, simbolicamente, chutado para fora do jogo da vida; ao implicar sua eliminao do cenrio da partida, juntamente com o que anteriormente narra sobre o jogo de futebol time de esgrima, o narrador antecipa para o leitor a e o

reflexo quans

que far durante a conversa com o professor de Histria do afirmar que s h condio de "jogo" para quem se curva exigncias do sistema e de suas convenes.

Ao final do pargrafo em que informa ter sido expulso do Internato Pencey por ter sido reprovado, Holden refere-se fato de que o colgio tem alto nvel de ensino "Eles ao reproalto

vam um bocado de gente no Pencey, porque o colgio tem um nvel de ensino. Tem mesmo, no duro". (ACC, p. 09)

o que mo-

tiva muitas reprovaes. Em primeira instncia, temos nesse momento a reflexo sincera e autntica do indivduo que reconhece a prpria limitao, e que aceita com tranqilidade a punio

advinda da Instituio que lhe notoriamente superior; u neste caso, o marginal adquire suficiente distanciamento crtico para analisar com frieza sua relao com o sistema, optando por dossar a excelncia deste ltimo. Em segunda instncia, tanto, numa leitura ligeiramente mais atenta, podemos uma breve tonalidade de ironia mal camuflada nas duas afirmaes que encerram o pargrafo em questo en-

entreperceber . ltimas

principalmenpelo ao

te se levarmos em conta a assero peremptria formulada narrador um pouco antes, no incio do captulo, com relao colgio :

A3

... O Pencey aquele colegio em Angerstown, Pennsylvania. J devem ter ouvido falar nele, ou pelo menos visto os anncios. Eles fazem propaganda em mais de mil : revistas, mostrando sempre um sujeito bacana, a cavalo, saltando uma cerca. Parece ate que l no Pencey a gente passava o tempo todo jogando polo. Pois nunca vi um cavalo por l, nem mesmo para amostra. E, embaixo do sujeito a cavalo, vem sempre escrito: "Desde 1888 transformamos meninos em rapazes esplendidos e atilados". Pura conversa fiada. Nao transformam ningum mais do que qualquer outro colgio. E nao vi ningum por l que fosse esplendido e atilado. Talvez dois sujeitos, se tanto. E esses, com certeza, j chegaram l assim. (ACC, p. 07-08)

A crtica feroz e severa tradio incontestada, vulgao transfigurada da realidade, ao pedantismo de uma

diIns-

tituio que se diz responsvel por maravilhas que nunca na verdade realizou, se faz clara e revelada no texto que acabamos de citar. evidente o deboche e o desprezo do narrador em relao estratgia mascarada que faz a imagem de idoneidade e respeitabilidade do colgio que est deixando para trs. Retornando

s passagens que h pouco analisvams, ento, relativas ao alto nvel de ensino do Internato Pencey, podemos afirmar que o

narrador presenteia com um comentrio hipcrita uma Instituio que se lhe afigura hipcrita; neste caso, o marginal reconhece, inconscientemente talvez, a prpria superioridade em relao ao colgio, que estaria num nvel inferior ao seu no seriam os en-

reprovados que no acompanhariam o alto nvel do colgio,

to, mas sim o colgio que, medocre, no estaria altura desses elementos e que sem condies de assimil-los, os joga-

ria para fora de seus domnios. Ao afirmar ironicamente a excelncia da Instituio, dessa forma, Holden est . na realidade

desnudando-lhe a fragilidade, a ineficincia e a superficialida-

AA

de. Ainda cora referencia ao julgamento do narrador sobre Internato Pencey, vale a pena discorrer um pouco sobre -o o teor que quando diretor sabia

da reflexo que o mesmo faz sobre Seiraa Thurmer, a colega descreve superficialmente na rpida divagao que faz discorre sobre o jogo de futebol. Selma era filha do

do Internato e Holden a admirava porque entendia que ela da falsidade do pai:

... A tal Selma Thurmer que era filha do diretor ... no era exatamente um tipo que deixasse a gente com gua na boca. Mas era muito boazinha. ... Simpatizei com ela. Tinha um nariz enorme, as unhas eram todas rodas e avermelhadas, usava um desses seis postios que apontam para todo lado, mas no fim a gente sentia um pouco de pena dela. 0 que eu gostava nela i que nao vinha com aquela conversa de que o pai era um grande sujeito. Com certeza sabia o cretinao que ele era. (ACC, p. 08)

O diretor personifica e a escola concretiza, na

concepali por mdeum

o de Holden, a hipocrisia que embasa as atitudes que so tomadas; o diretor reitera a falsidade da Instituio, que sua vez realimenta a cretinice do diretor num efeito de

tuo amparo. A escola e o diretor so a mesma coisa, um o calque do outro; quando o diretor diz a Holden que a vida

jogo que tem que ser jogado de acordo com as regras, est verbalizando a tradio e as convenes que fundamentam a Institui-

o, que privilegia o lugar comum e massacra o diferente, o elemento rebelde aos seus dogmas e s suas prescries enquanto por por

que uma escola moderna, de real qualidade, deveria primar respeitar e incentivar as diferenas individuais. Selma,

outro lado, representaria a parte pura do diretor, a sua exten-

45

so ainda no corrompida, a gota de autenticidade no rio de falsidade que o pai. Holden identifica-se coro Selma, na mdida en-

em que ambos, inadequados, cada qual sua maneira se opem figura de Dr. Thurmer e Instituio; nela, o adolescente contra apoio para sua contestao

ainda que um apoio no exgarota Dr.

plcito, e ainda que ela no fosse exatamente o tipo de que o entusiasmaria. Selma e Holden, colocados ao lado do Thurmer e do Internato Pencey, oferecem ao leitor um

contraste aquilo que

que intensifica o abismo de diferenas existentes entre que se anuncia e se garante sobre a Instituio e aquilo ela realmente e representa. Aps descrever Selma, como j anteriormente

colocamos, at the

Holden explica as razes que o impediam de estar "down

game", informa o leitor sobre sua expulso da escola e tece consideraes tambm j aqui comentadas sobre o nvel acad-

mico do Internato Pencey. Em seguida, em tom de quem interrompe abruptamente uma divagao que se faz longa e incmoda, o rador retoma o ponto da narrativa em que descrevia sua de observador no alto da colina e engrena a marcha nar-

posio de seu

relatar, dando a impresso de que vai avanar no curso narrativo, passando a contar o que teria acontecido em seguida ao mento em que estava na colina; ao invs disso, entretanto, volta sua opinio negativa sobre a escola, torna a remeter sua condio de superioridade em relao ao jogo e,ento, moele

sur-

preende o leitor com uma revelao desconcertante: na verdade, est experimentando um certo sentimento de melancolia, de tristeza ou de saudade antecipada por estar deixando o Internato:

46

>

So estava zanzando por ali para ver se conseguia sentir uma espcie qualquer de despedida, porque jl deixei uma poro de colgios e lugares sem ao menos saber que estava indo embora. Odeio isso. No importa que seja uma despedida ruim ou triste, mas quando saio de um lugar, gosto de saber que estou dando o fora. Se a gente nao sabe, se sente pior ainda. (ACC, p. 09)

Para que

consiga criar para si mesmo

uma

atmosfera de estar

propcia para compreender saindo do colgio no se ambienta

efetivamente sua situao

e a necessidade de sair de um lugar ao qual Holden necessita evocar a lembrana especfi-

ca de uma experincia significativamente negativa ali vivenciada. Numa atitude tpica de quem esqueceu ou mesmo perdoou as re-

agruras do passado, o protagonista precisa esforar-se para

cordar a dor e reavivar a sensao de sofrimento por ela causada. Esta mesma colorao melanclica e triste que tinge a quando o narrador relata o episdio de sua sada do narrativa Internato

Pencey, reaparece no momento em que este narrador est prestes a deixar a prpria narrativa; no ltimo pargrafo de O apanhador Holden

no canqpo de centeio, j citado no incio deste captulo, afirma

sentir saudades de todos os personagens da estria

e o fato deste sentimento estender-se inclusive a personagens

que tiveram atuao perversa em relao sua pessoa, acusa, se14

gundo Howard M. HARPER, Jr.

, que Holden esta obviamente falan-

do sobre perdo. Paradoxalmente, o narrador mostra-se relativamente afeto s instituies e s pessoas que o rechaam e mem, posto que lhes perdoa a todos o que no deixa de opriser,

tambm, uma demonstrao de superioridade espiritual; em sua marginalidade, mais uma vez, Holden compreende e o sistema tirano e carrasco.

marginal absolve

47

NOTASTOMACHEVSKI, B. Temtica. in: TOLEDO, Dionisio O. (org.) Teoria da Literatura : formalistas russos. Trad. Ana Mariza Ribeiro et al. Porto Alegre : Globo, 1978. p. 169-1702

T0MACHEVSKI, p. 170.

3 HARPER JR., Howard M. Desperate Faith : a study of Bellow, Salinger, Mailer, Baldwin and Updike. Chapel Hill : University of North Carolina Press, 1974. p. 70-71. Harper diz que as duas ultimas sentenas de O Apanhador no Campo de Centeio podem referir-se tambm vocao de escritor do narrador protagonista: "He has a reputation among his classmates as a writer, he has a critical interest in D.B.'s writing and in the movies and drama, and Mr. Antolini has apparently recognized his literary talents and interests. The last two sentences of The Catcher, then, may refer to Holden's vocation as well as to his qualified acceptance of soceity. As Joyce had shown in A Portrait of the Artist as a Young Man, one who enters .the priest-hood of art never fully enters society again. Although he ministers to society, he also passes judgement upon it and uses it as his raw material: he is always to some extent an outsider ... Holde1 s acceptance of society is an acceptance of the fact that he will always be deeply estranged from its dominant social values and, in a sense, a stranger to its people as well." , . BECKER, Daniel. O Que E Adolescencia. lo : Brasiliense, 1987. p.9.5

4

5.ed.

Sao Pau-

BECKER, p. 9. So Paulo :

FRAYZE-PEREIRA, Joo. O Que Loucura. Abril Cultural : Brasiliense, 1985. p. 101.7

6

FRAYZE-PEREIRA, p. 102.~ ~

8

Naturalmente no estamos olvidando a questo de que o narrador refere-se ao fato de que joga xadrez, tnis, golfe e esgrima. Observe-se, entretanto, que no so jogos populares, larga e indiscriminadamente praticados; so esportes que pressupem grande esforo de concentrao, raciocnio e delicada habilidade; praticamente independem da fora fsica do desportista. Alm disto, alguns deles podem ser jogados por um nico elemento, e outros aos pares, ou seja: no dependem necessariamente da formao de um time. Estas caractersticas especficas, entendemos, aproximam a natureza dos referidos jogos da natureza

48

peculiar do personagem em questo, explicando o fato de serem por ele praticados. 9 USPENSKY, Boris. A Poetics of Composition. Berkeley : University of California Press, 1973. p. 63-64. Uspensky diz que quando "there is a need for an all-embracing description of a particular scene, we often find neither the sequential survey nor the moving narrator, but an encompassing view of the scene from some single, very general point of view. Because such a spatial position usually presupposes very horizons, we may call it the bird's-eye point of view. In order to assume a point of view of such a wide scope, overseeing the whole scene, the observer must take up a position at a point far above the action ..." A posio do narrador de O Apanhador no Campo de Centeio, no momento em que observa o jogo de futebol, do alto do morro, exatamente a posio definida por Uspensky. SALINGER, J.D. The Catcher in the Rye. Harmondsworth : Penguin Books, 1984. Nesta ocasio especfica, estamos excepcionalmente utilizando a verso original da obra, para ilustrar o que afirmamos, por julgarmos que s assim conseguiremos explicar adequadamente a anlise que no presente momento est sendo efetuada . CIRLOT, J.E. Dicionrio de Smbolos. Trad. Rubens E. F. Frias. So Paulo : Moraes, 1984. p. 385-386.12 11 10

CIRLOT, p. 394-395.

13 Consideramos significativo o fato de se tratar do professor da disciplina de Histria, uma vez que esta matria estuda os aco