1
7 Pensar A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 12 DE SETEMBRO DE 2015 6 Pensar A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 12 DE SETEMBRO DE 2015 UM PANORAMA SOBRE OS CURTAS-METRAGENS QUE CONCORRERÃO NA MOSTRA DO FESTIVAL DE VITÓRIA audiovisual por ERLY VIEIRA JR. A FORÇA RADIOATIVA DAS IMAGENS A quela mulher, alta madru- gada, em meio às luzes co- loridas de um videokê, a voz profunda entoando Guilherme Arantes, rasgan- do lentamente alguma es- perança guardada para logo mais... Ela olha nos olhos da gente, provocante e melancólica, como se entendesse os tantos sentimentos contraditórios que acabamos de presenciar à medida que somos con- duzidos, em “A Outra Margem”, pelos descampados de uma cidade do Cen- tro-Oeste brasileiro, vista de recorte pela janela do carro, ao som de Tracy Chapman e Chrystian & Ralf. Já em “A Festa e os Cães”, um rapaz parece olhar para dentro de si, à medida que rememora, emocionado, num quarto em Fortaleza, as sensações que descreve ao adolescente ressabiado à sua frente, que reativam seu corpo e mente toda vez que escuta os seis minutos e meio daquela música eletrônica. E a gente acredita que conseguirá imaginar esses afetos todos, à medida que esses sons e texturas ganham corpo, transformando-se “numa paisagem prestes a ser atravessada pelo trem”. Enquanto isso, nos fundos de uma piscina seca, suja, vazia, entre a praia e rodovia, em alguma aldeia de pescadores FOTOS: DIVULGAÇÃO “Sem Coração”, de Nara Normande e Tião Entre mais de 600 títulos enviados para seleção do Festival de Vitória, a curadoria traçou cenário para mostrar alguns dos mais fascinantes caminhos do cinema brasileiro de curta-metragem em Pernambuco, uma menina “Sem Co- ração” que nunca olha nos olhos dos garotos que se servem do seu corpo, desperta no peito de um deles, justo o que está de passagem pelas férias de verão, aquela que talvez lhe seja a primeira emoção verdadeira. E se o destino for realmente como nos é apresentado em“ Evo”: uma hospedagem sem possibilidade de saída, num quarto de poucos móveis, e vista pro mar, enquanto se aguarda em silêncio a chegada do hóspede que irá partilhar a cama ao lado? O que aproxima essas imagens tão dis- tintas entre si, extraídas respectivamente, dos curtas-metragens de Nathália Tereza, Leonardo Mouramateus, Nara Normande e Tião e Rubiane Maia e Renata Ferraz, a não ser sua capacidade de causarem, ao mesmo tempo, fascínio e estranhamento, reve- lando-se tão pregnantes a ponto de re- tornarem à mente tão frequente e ob- sessivamente, mesmo passados tantos dias (e tantos filmes nesse meio tempo) desde o primeiro contato com elas? Talvez a resposta esteja mesmo na cren- ça de que um pequeno e cruel feitiço de pernas de boneca possa espantar o Cu- rupira e todo o mal que se intui na presença daquele forasteiro aparentemente bem-in- tencionado (“Tarântula”, de Aly Muritiba e Marja Calafange). Ou quem sabe realmente exista, em Contagem, Minas Gerais, um buraco negro no quintal dos fundos, no qual possa se entrar com a mesma na- turalidade com que se frequenta a aca- demia da esquina (“Quintal”, de André Novais Oliveira). E se o que tanto se espera não chegar com o caminhão vermelho há tanto tempo aguardado, talvez valha a pena reassumir a direção da imaginação (“Eu não digo adeus, digo até logo”, de Giuliana Monteiro). Pode-se também perambular pelas lem- branças e revivê-las em sua intensidade, seja de uma noite americana que irrompe em meio à escapada sorrateira de um carnaval em casa de veraneio, tão fugaz e irres- ponsável quanto necessária (“Biquíni Pa- raíso”, de Samuel Brasileiro), seja ao narrar com fartura de detalhes e verborragia, o estranhamento provocado pelo excesso de cortesia e dedicação de quem nos recebe em uma viagem pelo Extremo Oriente (“Até a China”, de Marcelo Marão), ou ainda pelas memórias afetivas de episódios vividos na videolocadora do posto perto de casa, com subterfúgios para locar pornô-homoeróticos no final da infância viada (“Virgindade”, de Chico Lacerda). Talvez reativar a memória possa fornecer alguma chave para suportar a perda, ainda que a ternura do idílio na traseira de uma caminhonete (“Antes Dessa Guerra”, de Lucas Camargo de Barros e Nicolas Thomé Zetune) ou o conforto de uma conversa transoceânica, na impossibilidade da última despedida (“Dorsal”, de Carlos Segundo e Cristiano Barbosa), acabem por reforçar o peso que se abate sobre aqueles que ficam. Cruzar os oceanos pode também trazer a leve surpresa de um tão aguardado encontro (“Verão Polonês”, de André Miel- nik). Quiçá enfim confrontar, numa cla- reira da mata à beira da estrada, o peso de tantos desejos reprimidos e guardados pra si (“Planície”, de Gabriel Perrone), ou escancarar com farta ironia, as contra- dições por trás de uma grande celebração turística e midática (“A Copa do Mundo no Recife”, de Kleber Mendonça Filho). Há ainda espaço para o humor que escancara as peças do jogo político, numa sinfonia de primeiros plano de rostos maquiados e fantasiados (“À Festa. À Guerra”, de Hum- berto Carrão Sinoti), e para os confrontos com os desejos de um verdadeiro cor- po-bomba, a um passo de entrar em combustão (“Eu queria ser arrebatada, amordaçada e, nas minhas costas, ta- tuada”, de Andy Malafaia). E, em meio a tantas alteridades, há sempre possibilidades de rasura: seja ce- gando o espectador num momento crucial no que até então se apresentara como um aparente relato da leveza cotidiana, per- mitindo-lhe apenas vislumbrar os riscos sonoros trespassando a tela escura (“Pon- tos de vista”, de Fábio Yamaji); seja apro- priando-se de uma banda sonora alheia para ampliar os significados possíveis, através do mashup, daquilo que nossos olhos estão vendo (“Rufião”, de Arthur Dalla Bernadina); ou ainda explicitando os dilemas do cineasta, entre o filme ima- ginado e a concretude que resulta do encontro com seu objeto, na contundência irônica dos achados potencializados pela montagem, que nos fazem ver com outros olhos os diversos rituais de preparação para um jogo de futebol americano (“Al- guns tritões”, de André Ehrlich Lucas). É dessa pulsão das imagens, dessa capacidade de emitirem uma certa ra- diação, que entranha em nossos corpos e persiste por longos períodos, reinventan- do-se incessantemente na memória dos dias seguintes, ativando platôs interiores que usualmente não percorrermos, que se faz a matéria primeira dos filmes que carregamos após sair de uma sala de cinema. E, após experimentar, um a um, os mais de 600 títulos submetidos à seleção do Festival de Vitória este ano, é das arestas das imagens tão preciosas desses vinte títulos acima citados que nós, curadores, pudemos elaborar um mapa possível para o espectador se aventurar em alguns dos mais fascinantes caminhos que o cinema brasileiro de curta-metragem tem per- corrido nos dias de hoje. E que este mapa seja um ponto de partida para que cada um de nós carregue consigo outras ima- gens e intensidades que essas obras possam porventura irradiar. Bon Voyage! > Talvez a resposta esteja mesmo na crença de que um pequeno e cruel feitiço de pernas de boneca possa espantar o Curupira e todo o mal que se intui na presença daquele forasteiro aparentemente bem-intencionado e inofensivo” Erly Vieira Jr é cineasta, escritor e professor de Comunicação Social da Ufes. “A Festa e os Cães”, de Leonardo Mouramateus “Eu Não Digo Adeus, Digo Até Logo”, de Giuliana Monteiro “A Outra Margem”, de Nathália Tereza >

Da radioatividade das imagens - Erly Vieira Jr

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Texto sobre a Mostra Competitiva de Curtas, do 22 Festival de CInema de Vitória (2015). Publicado no caderno Pensar, de A Gazeta em setembro de 2015, bem como no catálogo do Festival.

Citation preview

Page 1: Da radioatividade das imagens - Erly Vieira Jr

7PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

12 DE SETEMBRODE 2015

6PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,12 DE SETEMBRODE 2015

UM PANORAMA SOBRE OS CURTAS-METRAGENS QUECONCORRERÃO NA MOSTRA DO FESTIVAL DE VITÓRIA

audiovisualpor ERLY VIEIRA JR.

A FORÇARADIOATIVADAS IMAGENS

Aquela mulher, alta madru-gada, em meio às luzes co-loridas de um videokê, avoz profunda entoandoGuilherme Arantes, rasgan-do lentamente alguma es-

perança guardada para logo mais... Elaolha nos olhos da gente, provocante emelancólica, como se entendesse os tantossentimentos contraditórios que acabamosde presenciar à medida que somos con-duzidos, em “A Outra Margem”, pelosdescampados de uma cidade do Cen-tro-Oeste brasileiro, vista de recorte pelajanela do carro, ao som de Tracy Chapmane Chrystian & Ralf.

Já em “A Festa e os Cães”, um rapazparece olhar para dentro de si, à medidaque rememora, emocionado, num quartoemFortaleza, as sensações que descreve aoadolescente ressabiado à sua frente, quereativam seu corpo e mente toda vez queescuta os seis minutos e meio daquelamúsica eletrônica. E a gente acredita queconseguirá imaginar esses afetos todos, àmedida que esses sons e texturas ganhamcorpo, transformando-se “numa paisagemprestes a ser atravessada pelo trem”.

Enquanto isso, nos fundos de umapiscina seca, suja, vazia, entre a praia erodovia, em alguma aldeia de pescadores

FOTOS: DIVULGAÇÃO

“Sem Coração”, de Nara Normande e Tião

Entre mais de 600 títulos enviados para seleção do Festival de Vitória, a curadoria traçou cenário para mostrar alguns dos mais fascinantes caminhos do cinema brasileiro de curta-metragem

em Pernambuco, uma menina “Sem Co-ração” que nunca olha nos olhos dosgarotos que se servem do seu corpo,desperta no peito de um deles, justo o queestá de passagem pelas férias de verão,aquela que talvez lhe seja a primeiraemoção verdadeira.

E se o destino for realmente como nos éapresentado em“ Evo”: uma hospedagemsem possibilidade de saída, num quarto depoucosmóveis, evistapromar,enquantoseaguarda em silêncio a chegada do hóspedeque irá partilhar a cama ao lado?

O que aproxima essas imagens tão dis-tintas entre si, extraídas respectivamente,dos curtas-metragens de Nathália Tereza,Leonardo Mouramateus, NaraNormandeeTião e Rubiane Maia e Renata Ferraz, a nãoser sua capacidade de causarem, ao mesmotempo, fascínio e estranhamento, reve-lando-se tão pregnantes a ponto de re-tornarem à mente tão frequente e ob-sessivamente, mesmo passados tantos dias(e tantos filmes nesse meio tempo) desde oprimeiro contato com elas?

Talvez a resposta esteja mesmo na cren-ça de que um pequeno e cruel feitiço depernas de boneca possa espantar o Cu-rupirae todoomalquese intuinapresençadaquele forasteiro aparentemente bem-in-tencionado (“Tarântula”, de Aly Muritiba e

MarjaCalafange).Ouquemsaberealmenteexista, em Contagem, Minas Gerais, umburaco negro no quintal dos fundos, noqual possa se entrar com a mesma na-turalidade com que se frequenta a aca-demia da esquina (“Quintal”, de AndréNovais Oliveira). E se o que tanto se esperanão chegar com o caminhão vermelho hátanto tempo aguardado, talvez valha apena reassumir a direção da imaginação(“Eu não digo adeus, digo até logo”, deGiuliana Monteiro).

Pode-se também perambular pelas lem-brançase revivê-lasemsua intensidade, sejade uma noite americana que irrompe emmeio à escapada sorrateira de um carnavalem casa de veraneio, tão fugaz e irres-ponsável quanto necessária (“Biquíni Pa-raíso”, de Samuel Brasileiro), seja ao narrarcom fartura de detalhes e verborragia, oestranhamento provocado pelo excesso decortesiaededicaçãodequemnos recebeemuma viagem pelo Extremo Oriente (“Até aChina”, de Marcelo Marão), ou ainda pelasmemórias afetivas de episódios vividos navideolocadora do posto perto de casa, comsubterfúgios para locar pornô-homoeróticosno final da infância viada (“Virgindade”, deChico Lacerda).

Talvez reativar a memória possafornecer alguma chave para suportar a

perda, ainda que a ternura do idílio natraseira de uma caminhonete (“AntesDessa Guerra”, de Lucas Camargo de

Barros e Nicolas Thomé Zetune) ou oconforto de uma conversa transoceânica,na impossibilidade da última despedida(“Dorsal”, de Carlos Segundo e CristianoBarbosa), acabem por reforçar o peso quese abate sobre aqueles que ficam.

Cruzar os oceanos pode também trazera leve surpresa de um tão aguardadoencontro (“Verão Polonês”, de André Miel-nik). Quiçá enfim confrontar, numa cla-reira da mata à beira da estrada, o peso detantos desejos reprimidos e guardados prasi (“Planície”, de Gabriel Perrone), ouescancarar com farta ironia, as contra-dições por trás de uma grande celebraçãoturística e midática (“A Copa do Mundo noRecife”, de Kleber Mendonça Filho). Háainda espaço para o humor que escancaraas peças do jogo político, numa sinfonia deprimeiros plano de rostos maquiados efantasiados (“À Festa. À Guerra”, de Hum-berto Carrão Sinoti), e para os confrontoscom os desejos de um verdadeiro cor-po-bomba, a um passo de entrar emcombustão (“Eu queria ser arrebatada,amordaçada e, nas minhas costas, ta-tuada”, de Andy Malafaia).

E, em meio a tantas alteridades, há

sempre possibilidades de rasura: seja ce-gando o espectador num momento crucialno que até então se apresentara como umaparente relato da leveza cotidiana, per-mitindo-lhe apenas vislumbrar os riscossonoros trespassando a tela escura (“Pon-tos de vista”, de Fábio Yamaji); seja apro-priando-se de uma banda sonora alheiapara ampliar os significados possíveis,

através do mashup, daquilo que nossosolhos estão vendo (“Rufião”, de ArthurDalla Bernadina); ou ainda explicitando osdilemas do cineasta, entre o filme ima-ginado e a concretude que resulta doencontro com seu objeto, na contundênciairônica dos achados potencializados pelamontagem, que nos fazem ver com outrosolhos os diversos rituais de preparação

para um jogo de futebol americano (“Al-guns tritões”, de André Ehrlich Lucas).

É dessa pulsão das imagens, dessacapacidade de emitirem uma certa ra-diação, que entranha em nossos corpos epersiste por longos períodos, reinventan-do-se incessantemente na memória dosdias seguintes, ativando platôs interioresque usualmente não percorrermos, que sefaz a matéria primeira dos filmes quecarregamos após sair de uma sala decinema. E, após experimentar, um a um, osmais de 600 títulos submetidos à seleçãodoFestivaldeVitóriaesteano,édasarestasdas imagens tão preciosas desses vintetítulos acima citados que nós, curadores,pudemos elaborar um mapa possível parao espectador se aventurar em alguns dosmais fascinantes caminhos que o cinemabrasileiro de curta-metragem tem per-corrido nos dias de hoje. E que este mapaseja um ponto de partida para que cadaum de nós carregue consigo outras ima-gens e intensidades que essas obraspossam porventura irradiar. BonVoyage!

>Talvez a respostaesteja mesmo nacrença de que umpequeno e cruelfeitiço de pernasde boneca possaespantar oCurupira e todo omal que se intui napresença daqueleforasteiroaparentementebem-intencionadoe inofensivo” Erly Vieira Jr

é cineasta, escritor eprofessor de ComunicaçãoSocial da Ufes.

“A Festa e os Cães”, de Leonardo Mouramateus “Eu Não Digo Adeus, Digo Até Logo”, de Giuliana Monteiro

“A Outra Margem”, de Nathália Tereza

>