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Da redução jesuítica à sagrada aldeia de pedra mbyá-guarani: uma reflexão sobre as políticas patrimoniais no Brasil a partir do caso do sítio arqueológico de São Miguel Arcanjo DAVID WILLIAM APARECIDO RIBEIRO Compreender as práticas empreendidas nos primeiros anos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) permite entender as matrizes da política patrimonial do Brasil, as perspectivas hegemônicas da história da arquitetura nacional e, ainda, as bases culturais sobre as quais se construiu o Brasil com o qual nos defrontamos hoje. Entretanto, não se podem entender as ações desta instituição e as suas permanências sem que nos detenhamos em seus agentes, seus meios de ação e de legitimação, considerando especialmente o quadro das práticas políticas (e culturais, que não são menos políticas) do governo ditatorial de Getúlio Vargas, o político nascido e criado em um dos Sete Povos das Missões, habitadas em tempos passados por diversos grupos indígenas e por jesuítas castelhanos às margens do rio Uruguai. Se a presença de mineiros e paulistas ao redor de Rodrigo Melo Franco de Andrade, o primeiro diretor do Serviço, pode ser considerada um fator importante no olhar destinado ao patrimônio ligado às histórias paulista e mineira (do chamado ciclo do ouro), por que não pensarmos num dado que se destaca desta aparente regra de que entre primeiros bens tombados pelo SPHAN e, sobretudo, de que entre os primeiros museus criados pelo Serviço, há um exemplar de um outro canto do país e que é da região do próprio presidente da República? Para pensarmos sobre esta questão, é necessário lançar luz sobre o processo que culminou no tombamento/proteção oficial dado às ruínas da Missão de São Miguel Arcanjo, no então município gaúcho de Santo Ângelo, bem como na “missão” do arquiteto, urbanista e agente do patrimônio Lúcio Costa, que para aquela região se dirigiu no intuito de “diagnosticar” o que deveria ser feito e, além disso, criar o primeiro museu de iniciativa do SPHAN, que reuniria e abrigaria as peças do “barroco missioneiro”, de traços também guarani, espalhados por aquelas terras. Trata-se aqui, portanto, de falar não só do processo de patrimonialização das ruínas de São Miguel, hoje no centro do pequeno município homônimo, como ainda de destacar a construção do Museu das Missões projetado por Lúcio Costa e de compreender o seu papel no quadro das ações relacionadas ao patrimônio. PPG História Social da Universidade de São Paulo, mestre e doutorando, orientado pela Prof.ª Dr.ª Maria Cristina Cortez Wissenbach; Prefeitura do Município de São Paulo, professor. E-mail: [email protected]

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Da redução jesuítica à sagrada aldeia de pedra mbyá-guarani: uma reflexão sobre as políticas

patrimoniais no Brasil a partir do caso do sítio arqueológico de São Miguel Arcanjo

DAVID WILLIAM APARECIDO RIBEIRO

Compreender as práticas empreendidas nos primeiros anos do Serviço do Patrimônio Histórico

e Artístico Nacional (SPHAN) permite entender as matrizes da política patrimonial do Brasil,

as perspectivas hegemônicas da história da arquitetura nacional e, ainda, as bases culturais sobre

as quais se construiu o Brasil com o qual nos defrontamos hoje. Entretanto, não se podem

entender as ações desta instituição e as suas permanências sem que nos detenhamos em seus

agentes, seus meios de ação e de legitimação, considerando especialmente o quadro das práticas

políticas (e culturais, que não são menos políticas) do governo ditatorial de Getúlio Vargas, o

político nascido e criado em um dos Sete Povos das Missões, habitadas em tempos passados

por diversos grupos indígenas e por jesuítas castelhanos às margens do rio Uruguai.

Se a presença de mineiros e paulistas ao redor de Rodrigo Melo Franco de Andrade, o

primeiro diretor do Serviço, pode ser considerada um fator importante no olhar destinado ao

patrimônio ligado às histórias paulista e mineira (do chamado ciclo do ouro), por que não

pensarmos num dado que se destaca desta aparente regra – de que entre primeiros bens

tombados pelo SPHAN e, sobretudo, de que entre os primeiros museus criados pelo Serviço,

há um exemplar de um outro canto do país – e que é da região do próprio presidente da

República?

Para pensarmos sobre esta questão, é necessário lançar luz sobre o processo que

culminou no tombamento/proteção oficial dado às ruínas da Missão de São Miguel Arcanjo, no

então município gaúcho de Santo Ângelo, bem como na “missão” do arquiteto, urbanista e

agente do patrimônio Lúcio Costa, que para aquela região se dirigiu no intuito de “diagnosticar”

o que deveria ser feito e, além disso, criar o primeiro museu de iniciativa do SPHAN, que

reuniria e abrigaria as peças do “barroco missioneiro”, de traços também guarani, espalhados

por aquelas terras. Trata-se aqui, portanto, de falar não só do processo de patrimonialização das

ruínas de São Miguel, hoje no centro do pequeno município homônimo, como ainda de destacar

a construção do Museu das Missões – projetado por Lúcio Costa – e de compreender o seu

papel no quadro das ações relacionadas ao patrimônio.

PPG História Social da Universidade de São Paulo, mestre e doutorando, orientado pela Prof.ª Dr.ª Maria Cristina

Cortez Wissenbach; Prefeitura do Município de São Paulo, professor. E-mail: [email protected]

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O Museu das Missões foi criado por ato oficial, por meio do Decreto-Lei 2.077, de 8 de

março de 1940, assinado pelo presidente Getúlio Vargas. No texto da lei, define-se como sua

finalidade a reunião e conservação das “obras de arte ou de valor histórico relacionadas com os

Sete Povos das Missões Orientais, fundados pela Companhia de Jesus naquela região do País”,

delegando-se então a responsabilidade de constitui-lo ao SPHAN. O decreto, entretanto, é uma

chancela das atividades que já vinham sendo desenvolvidas pelo Estado neste caso,

especialmente por meio de seu agente, Lúcio Costa. Em 1937, o arquiteto foi enviado à região

das Missões por Rodrigo Melo Franco de Andrade para averiguar o estado das ruínas e propor

ações para a sua conservação. Costa não somente projetou um “museu-abrigo” como também,

por meio do relatório que enviou ao SPHAN, deu as diretrizes de preservação do que viria a ser

o Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo e também atuou na “organização e gestão” dos

remanescentes (BAUER, 2006: 22).

O trabalho de Letícia Bauer chama a atenção para os agentes do patrimônio em ação no

caso de São Miguel: Lúcio Costa e o zelador João Hugo Machado, este último responsável por

dar sequência às orientações do SPHAN e por reunir esculturas missioneiras nos arredores,

muitas delas em funções de culto.1 No trabalho em questão, a autora busca aproximar as

operações historiográficas ao patrimônio cultural, entendendo como os agentes constroem uma

forma particular de interpretação dos remanescentes missioneiros. Destaca-se, além disso, a

intenção de Bauer em superar o distanciamento entre a disciplina História e a área do

patrimônio, de seu ponto de vista ainda preferencial de arquitetos e antropólogos.

Em outubro de 1937 foram liberadas as verbas para a execução das obras em São

Miguel. Na ocasião, Rodrigo Melo Franco de Andrade demonstrou a intenção de confiar a

Lúcio Costa a direção das obras no local. Meyer foi então incumbido de encontrar um

profissional para executar as obras, bem como em contratar um fotógrafo para registrar a

viagem do arquiteto. Pouco tempo depois, Meyer foi convidado pelo Governo para trabalhar na

Capital Federal, tornando-se então o primeiro presidente e organizador do Instituto Nacional

do Livro. David Carneiro, industrial e historiador curitibano, ficou então à frente das ações do

SPHAN no Rio Grande do Sul.

1 A autora também destaca o papel de Augusto Meyer, intelectual dirigente do SPHAN na região Sul, cujas

atividades elencaram os referenciais históricos e arquitetônicos no Rio Grande do Sul que antecederam as ações

de Lúcio Costa. Da sua correspondência com Rodrigo Melo Franco de Andrade, destaca-se o interesse deste por

edificações semelhantes às ruínas de São Miguel no estado.

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Bauer indica também como são recorrentes, nas falas dos agentes em questão, as ideias

de “missão” em favor do patrimônio e de “cruzada” contra o “tempo destruidor”, em trabalhos

“não remunerados” (BAUER, 2006: 62-63). A análise feita pela autora desta rede de

intelectuais/agentes do Estado permite vislumbrar os poderes investidos nesses “missionários”

a serviço da Nação e de seus “bens”. Tal aura em torno do “serviço público”, aparentemente

pródigo em retornos financeiros, mas pleno em outros capitais, representados, por exemplo, na

ação de definir e decidir o que merece e o que não merece atenção do poder público, foi

largamente discutido por Sergio Miceli (2001).2

Entretanto, o fato de serem agentes a serviço do Estado e legitimados por este ente que

representaria o “bem comum”, não seria suficiente para consolidar as ações dos diversos

agentes do patrimônio, levando em consideração especialmente a complexidade das forças em

relação e as disputas em torno do discurso oficial. Seria uma simplificação resumir a

participação de intelectuais em torno do SPHAN e do Ministério da Educação e Saúde à

categoria “modernistas”, ignorando por exemplo as contradições no interior das diversas

vertentes deste “grupo”. Nesse sentido, cabe aqui destacar, para a melhor compreensão das

ações de Lúcio Costa a respeito do Museu das Missões e das ruínas de São Miguel Arcanjo,

alguns aspectos deste “modernismo” que orientou as ações patrimoniais no âmbito do SPHAN.

Um dos instrumentos de legitimação e de consolidação de uma interpretação

hegemônica e oficial sobre o patrimônio e também sobre a história da arquitetura brasileira foi

a Revista do SPHAN, que teve o seu primeiro número lançado logo em 1937. De acordo com

Márcia Chuva, os autores em torno da Revista “constituíram uma rede de alianças e uma

reciprocidade nas trocas em que seus discursos legitimavam a ação institucional, mas eram

também legitimados por um veículo oficial”. Além disso, as páginas da audaciosa publicação

difundiram “uma ideologia institucional e também uma noção de cultura brasileira” (CHUVA,

2009: 246). Neste sentido, para além de observar as práticas do órgão, um olhar para as edições

da Revista do Patrimônio (nome pelo qual hoje é chamada) permite identificar não somente o

processo de eleição de uma arquitetura, de um “belo”, de um “histórico”, como também – e este

é o objetivo aqui – os percursos de Lúcio Costa (e do SPHAN) em relação à arquitetura colonial

e o lugar das ruínas de São Miguel na coleção de bens tombados do Brasil.

2 É pertinente também, neste sentido, a referência que faz Dominique Poulot às primeiras práticas oficiais relativas

ao patrimônio na França, como a investidura de poder feita pelo Estado em “pessoas idôneas”, responsáveis por

dirigir o “trabalho de memória” (POULOT, 2009: 178).

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Ainda de acordo com Márcia Chuva, a Revista do SPHAN foi fundamental no processo

de “invenção” do barroco brasileiro. Conforme a sua análise, a maioria dos artigos se dedica à

arte e à arquitetura coloniais. O barroco funciona, de seu ponto de vista, como uma metáfora de

uma identidade colonial híbrida. Sua função, no interior das ações do SPHAN e, mais

amplamente, do Estado Novo, seria a de unificar o passado colonial, servindo de argamassa a

consolidar um passado mítico a partir do qual a Nação poderia se constituir (CHUVA, 2009:

259; 266; 274).3

Quase concomitantemente ao processo de consolidação das ruínas e de construção e

inauguração do Museu das Missões e, de certa forma, consequência das atividades de Lúcio

Costa na região missioneira, um artigo – extenso e fartamente documentado, com fotografias e

desenhos – do arquiteto compôs um número dedicado às heranças deixadas no Brasil pelos

padres da Companhia de Jesus, a matriz europeia da arte “nacional”. O quinto número, de 1941,

contava ainda com textos de Sérgio Buarque de Holanda, Gastão Cruls, Mário de Andrade,

Hannah Levy, entre outros. No número, o texto de Lúcio Costa ocupa quase cem páginas, sob

o título de “A arquitetura jesuítica no Brasil” e já se inicia remetendo à associação quase

automática que se faz entre “barroco” e “arte jesuítica”, que representam – além das

qualificações artísticas que seguem destacadas – “o que temos de mais antigo no Brasil”.

Entretanto, o que Costa busca destacar ao falar em “estilo jesuítico” diz respeito às

“composições mais renascentistas, mais moderadas, regulares e frias, ainda imbuídas do

espírito severo da Contrarreforma” (COSTA, 1941: 10-11).

Entre as inúmeras descrições e análises de aspectos de construções jesuíticas, em

diversos cantos do país, que parecem se esforçar em capturar uma “alma” da arquitetura de

origem religiosa-católica (a privilegiada pelo IPHAN), nota-se também a compreensão do

espaço em que se edificaram estas igrejas e outros imóveis. Além do tamanho das igrejas,

destinadas a abrigar um número sempre crescente de convertidos, Lúcio Costa menciona a sua

posição sempre em frente a um espaço aberto, um terreiro, “onde o povo se pudesse reunir e

andar livremente, não se prevendo, o mais das vezes, a construção de casas em volta dessa

praça”. O arquiteto-urbanista-agente do patrimônio diferencia, então, as “missões do Sul” dos

colégios espalhados pelo Brasil: enquanto estes faziam parte de organizações urbanas distintas,

3 As viagens exploratórias a Minas Gerais, feitas por Mário de Andrade e seu grupo, por exemplo, antecedentes à

criação do SPHAN, são bastante marcantes neste sentido, como expedições em busca de uma “brasilidade”

(FONSECA, 2005: 92).

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que dividiam o espaço, por vezes, com outras ordens religiosas, os primeiros constituíam por si

um “povo”, isto é, “a cidade”, de acordo com a sua leitura. Diferiam-se, assim, os produtos do

programa jesuítico brasileiro daquelas da “Província Jesuítica do Paraguai”, de “traçados

urbanísticos integrais”, que de trinta “povos”, nos ficaram os sete situados na margem oriental

do Uruguai (COSTA, 1941: 13).

Ao ressaltar a “sobriedade” como traço marcante – a alma do barroco brasileiro – ao

longo de seu texto, Costa elege a característica que legitimaria as suas concepções

artísticas/arquitetônicas, que era também a de alguns de seus mais próximos, incluindo agentes

do próprio SPHAN. O tom que se nota é de um indireto autoelogio – às características que

seriam buscadas pelos modernistas próximos a ele – e de uma crítica velada a outras vertentes

da arquitetura. Em outras palavras, o texto parece, em diversos momentos, sintetizar o bom/belo

e o ruim/feio em matéria de arte e arquitetura.

Para finalizar o artigo, Lúcio Costa se dedica a escrever sobre os Sete Povos das Missões

destacando que, apesar de pertencer à experiência histórica da Província Jesuítica do Paraguai,

esta “ficou definitivamente encravada em território nacional”. Tal característica faz da região e

de seus bens um “setor autônomo no conjunto dos monumentos coloniais brasileiros, verdadeira

‘minoria’”, senão a única, uma vez que outros povos que por aqui estiveram no período colonial,

como os holandeses, “pouco ou quase nada deixaram”, em troca do “muito que destruíram ou

impediram se concluísse” (COSTA, 1941: 91). Mais uma vez, Costa – com a chancela de

autoridade que lhe dá a presença nesta Revista – define quem fez e quem “impediu” ou

“destruiu” monumentos coloniais no Brasil, qualificando quais experiências históricas

mereceriam continuar para as gerações futuras.

O arquiteto-agente ainda se vale da publicação para descrever, quase minuciosamente,

quais tinham sido as ações empreendidas no caso de São Miguel, como o desmonte, “peça por

peça”, da “obra singular criada pelo gênio colonizador e sob a tutela dos padres” e a posterior

estabilização e recomposição, com a reconstrução da torre, por exemplo. Em seguida,

recolheram-se as peças (fragmentos, imagens de santos etc.) que “sobrevivendo à catástrofe”,

deram à praia – Lúcio Costa se referia à cena que encontrou quando de sua chegada de naufrágio

– em um pequeno museu local (COSTA, 1941: 92).

Buscando talvez documentar este processo – e o seu legado, sem, no entanto, mencionar

o fato de ter desenhado o “abrigo” que seria o museu – Costa ainda transcreve um relatório feito

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em 1937 sob determinação do SPHAN, quando visitou seis dos sete povos. No relatório, os

jesuítas são, novamente, destacados por seu talento “urbanístico”, uma característica que faz

Lúcio Costa aproximá-los do “espírito de organização” dos “romanos nos confins do império”.

Além disso, o arquiteto compara características e diferencia os legados de uma de outra margem

do Uruguai, especialmente no que diz respeito às influências indígenas nas imagens: se do lado

de cá do rio há algumas “proporções ‘diferentes’”, ou uma “expressão orientalizada”, nas quais,

“por detrás do convencionalismo europeu” pode se sentir “o guarani”, dá-se a entender que, do

lado de lá, estes vestígios da influência indígena seriam mais presentes (COSTA, 1941: 95-97).

Deste modo, parece que o autor busca diferenciar o que seria “brasileiro” do que não seria,

transferindo para o passado as fronteiras do Brasil de hoje, identificando ainda quais traços

seriam mais ou menos nossos.

Este texto de Lúcio Costa foi republicado vigésimo-sexto número da Revista do

Patrimônio, edição comemorativa dos 60 anos do IPHAN em 1997, junto de outros textos

selecionados e comentados. Lauro Cavalcanti foi o comentador do texto da década de 1940,

lembrando que a primeira “tarefa de vulto” do consultor técnico Lúcio Costa foi a viagem às

Missões e a consequente obra de restauro da igreja de São Miguel e a construção de um museu.

Cavalcanti menciona que, no início da carreira, Costa “era o mais promissor arquiteto da

corrente neocolonial”, olhar que seria depois transformado pelo contato com Le Corbusier4,

quando o seu olhar para o passado construtivo brasileiro buscaria “encontrar a coerência e

parentesco no espírito e partido construtivo das diversas épocas” (CAVALCANTI, 1997: 170-

171).

Como pertinentemente destacou Sergio Miceli, na passagem dos 50 anos do IPHAN,

em 1987, o órgão é “um capítulo da história intelectual e institucional da geração modernista”,

geração esta que desfrutou de um espaço de poder bastante privilegiado dentro de um regime

autoritário cujo empenho foi grande em construir uma “identidade nacional” e que, para tanto,

interveio fortemente no campo da cultura. Uma das expressões da ausência de democracia nas

políticas e práticas do patrimônio está na ausência – amnésia – da experiência de populações

de fora das classes dirigentes, ainda que o anteprojeto de Mário de Andrade fizesse menção a

outros grupos da população, como negros e índios, por exemplo (1987: 44). Neste sentido, os

4 O arquiteto franco-suíço Le Corbusier visitou o Brasil em 1936 a convite de Gustavo Capanema. Segundo o seu

compatriota Yves Bruand – embora este se refira a Corbusier como suíço –, a principal consequência da visita do

arquiteto foi a “conversão” de Lúcio Costa, que traria marcas profundas à arquitetura brasileira (BRUAND, 1981).

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embates, as definições, as ponderações, as análises, os relatórios, revestem-se mais do que da

já relevante autoridade estatal: são ações referendadas por um regime autoritário, qualificadas

como oficiais e em nome de uma “identidade nacional” verticalmente definida. Tal é o peso das

práticas do período em questão, peso este que pouco diminuiu com o passar das décadas.5

Para continuarmos a observar ações que antecedem as práticas do SPHAN, no intuito

de melhor entender a elas e às práticas patrimoniais ainda hoje, é relevante também notar o

lugar do primeiro órgão federal responsável por restauro e conservação de bens patrimoniais, a

Inspetoria de Monumentos Nacionais, criada em 1934 e subordinada ao Museu Histórico

Nacional (MHN), à época dirigido por Gustavo Barroso (MAGALHÃES, 2010). Trago esta

informação aqui porque há um lugar destinado aos museus antes, durante e depois do

(ante)projeto inicial do SPHAN: se na primeira experiência de política patrimonial brasileira os

museus – e, mais especificamente, o MHN – funcionou inclusive como um repositório das peças

recolhidas em sítios patrimonializados, do ponto de vista da proposta de Mário de Andrade,

museus fariam a vez de instrumentos de ação educativa. Inicialmente, o intelectual paulista

preconizou a construção de quatro museus nacionais, em correspondência com os quatro Livros

de Tombo do SPHAN. Seriam instituições eminentemente pedagógicas, destinadas a promover

a compreensão da história do Brasil a partir de seus ciclos econômicos. De acordo com Fonseca,

tal projeto foi realizado parcialmente pelo SPHAN por meio da criação de museus regionais,

ainda na primeira década de funcionamento do Serviço, destacando nesse sentido a proposta de

Lúcio Costa de construir um imóvel para abrigar os bens colhidos na região das Missões (2005:

100-101).6

Seguindo por este caminho, e retomando o trabalho de Letícia Bauer, o objetivo de

Lúcio Costa na construção do Museu das Missões, situado em um dos cantos da praça do sítio

histórico de São Miguel Arcanjo, foi o de ressignificar as peças,

arranjando, entre o novo e o antigo, as antigas esculturas e fragmentos

com a igreja e os remanescentes das estruturas contíguas. Além disso,

o arquiteto propõe a rearticulação das ruínas com os fragmentos

decorativos que a compunham, bem como com imagens sacras que, em

5 Joana Mello, por sua vez, destaca ainda o papel do movimento neocolonial, bem como daquele desempenhado

pelo português Ricardo Severo, que tempos antes da criação do SPHAN defendera um retorno às bases

arquitetônicas coloniais, mais afeitas ao meio do que os ecletismos da virada do século (MELLO, 2006: 92-93). 6 Ainda de acordo com Fonseca, para Mário de Andrade, os museus seriam instrumentos disciplinares que, “ao

lado de outras instâncias reconhecidas de atribuição de valor (concursos, publicações, avaliação por especialistas

etc.), todas restritas a círculos intelectuais”, formariam os canais para constituição do patrimônio (2005: 102).

Desta forma, os intelectuais seriam os mediadores entre os “interesses populares” e o Estado.

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tese, fizeram parte de seu interior. Não é para menos que Lúcio

identifica as ruínas da igreja de forma quase orgânica, um corpo, então

prestes a se rearticular (BAUER, 2006: 73).

De acordo com a leitura da autora, e como pode se notar das escolhas que orientaram o

trabalho realizado nas ruínas de São Miguel, não parece ter havido intenção de recompor ou

recriar a igreja e o espaço tal como tivera sido. A intenção de Lúcio Costa seria então a de

reaproximar tempos distintos. Conviveriam, na mesma praça, os remanescentes do edifício

jesuítico espanhol, construído por indígenas, e o projeto do arquiteto, uma “construção

moderna”, nas palavras da autora, edificada com materiais novos e antigos, com um alpendrado

que lembraria construções coloniais. Neste caso, apareceria então um exemplo da capacidade

de Lúcio Costa de atualizar e de capturar o espírito da arquitetura colonial, conforme cita a

autora, recorrendo a Yves Bruand (BAUER, 2006: 74; 93-94).

Atualmente, o Museu das Missões faz parte do conjunto de museus gerido pelo Instituto

Brasileiro de Museus (IBRAM), autarquia criada pelo Governo Federal em 2009. Em 2015, o

quarto volume da Coleção Museus do IBRAM foi dedicado ao Museu das Missões, apresentado

pelos profissionais que nele atuam. Nas primeiras páginas da publicação, as palavras do

presidente do IBRAM e do diretor do Museu das Missões dão conta da dimensão do sítio

histórico de São Miguel, um dos bens brasileiros inscritos na lista da UNESCO de “Patrimônios

da Humanidade” (1983). Além disso, Ariston Correia Filho, então diretor do museu, destaca o

fato deste ser um dos primeiros museus construídos por iniciativa do SPHAN, inaugurado em

agosto de 1941, antes dos mineiros Museu da Inconfidência (1944) e do Museu do Ouro (1946).

O texto insere o museu e o sítio histórico no conjunto mais amplo das Missões, que abrangem

uma grande região que se estende do noroeste gaúcho, passando pela província argentina de

Misiones até o Paraguai, às margens do rio Paraná.

A publicação retoma o que foi mencionado por Fonseca a respeito do projeto inicial de

construir quatro grandes museus nacionais, previstos na capital, o Rio de Janeiro. O relatório

de Lúcio Costa, entretanto, quando de sua visita ao sítio missioneiro, adicionaria ao plano

original os museus regionais. Antes da criação do museu, a obra de consolidação das ruínas é

mencionada como “uma das primeiras restaurações de grande porte feitas pelo então recém-

criado Serviço”. Contígua ao museu, foi construída a casa do zelador, onde moraria o João

Hugo Machado, responsável por recolher, muitas vezes de forma traumática, as imagens

missioneiras espalhadas em casas e em capelas comunitárias da região. Conforme destaca o

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texto, o desenho do “museu-abrigo” não agredia ao desenho da antiga redução: o projeto previa

um grande alpendrado como principal espaço expositivo, que hoje leva o nome de “Pavilhão

Lúcio Costa” (BOTELHO et al., 2015: 33-38).

O “primeiro museu do IPHAN” foi capa da 19ª edição da Revista do Patrimônio,

publicada em 1984, na qual se lê, em destaque São Miguel das Missões, Monumento Mundial.

Trata-se de um relançamento da revista depois de quatro anos de interrupção e que sai no ano

seguinte à declaração das ruínas de São Miguel como Patrimônio da Humanidade pela

UNESCO. O único texto que é trazido no número da revista é do arquiteto Fernando Machado

Leal, que coordenava, desde 1982, o projeto de estabilização e conservação das ruínas. O texto

é eminentemente técnico e trata de todas as intervenções realizadas nas ruínas ao longo do

século XX, apresentando estudos e recomendações para a conservação do bem.

A última aparição das Missões na Revista do Patrimônio não se trata, exatamente, de

um texto inédito. No número comemorativo de 60 anos do IPHAN, em 1997, já mencionado

aqui, outro texto selecionado foi o de Alberto Lamego, intitulado Os Sete Povos das Missões,

originalmente publicado na quarta edição da revista, em 1940. Apesar de não versar

especificamente sobre São Miguel, mas sobre São Francisco de Borja, atual São Borja, o texto

é bastante significativo e suscita questões sobre a relação entre o olhar do SPHAN – logo nos

primeiros tempos de atuação, e com cuidado bastante especial pela região – e a cidade de origem

do presidente do regime autoritário então em vigor. Logo na abertura do texto, Lamego faz

questão de lembrar que a cidade missioneira banhada pelo rio Uruguai foi “onde viu a luz do

sol o Sr. Getúlio Vargas”, e continua, para justificar a presença de seus escritos (sobre um

documento de 1760 em honra do rei Carlos II da Espanha), destacando a ação do “grande

estadista” que na ocasião fazia “reviver das cinzas do passado os dias gloriosos dos ‘Sete Povos

das Missões’” a partir das ações e do decreto que considerava monumentos históricos as igrejas

em ruínas, promovia a sua restauração e que orientava a construção de um museu (LAMEGO,

1940: 55-56).

Lamego se debruça especialmente sobre os episódios finais das reduções missionais na

margem oriental do Uruguai, sem deixar de se referir às obras dos padres da Companhia como

ações que trouxeram os “selvagens” à “civilização”. Traz, ao fim, um mapa inédito dos

deslocamentos das tropas luso-brasileiras contra as reduções, na sequência da assinatura do

Tratado de Madri (1750), que passou os assentamentos jesuíticos para o domínio português em

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troca da Colônia do Sacramento, a despeito da fixação de grandes contingentes indígenas,

sobretudo Guarani. Na republicação de 1997, Jayme Zettel comenta que a intenção de Lamego

era a de homenagear Vargas, pela ação em favor da preservação das ruínas missioneiras (1997,

p. 87). Partindo deste comentário, à luz das considerações que já vimos aqui, nota-se o papel da

Revista do Patrimônio em servir de instrumento a dar legitimidade intelectual às ações do

governo autoritário.

A Revista do Patrimônio destinada a celebrar os 60 anos de história do IPHAN parece

corroborar a crítica de Sergio Miceli dez anos antes, ao menos é o tom que se percebe da

aparente defesa que faz do passado do órgão o então ministro da Cultura, Francisco Weffort. O

IPHAN, na ocasião, parece “tombar” a própria história, demonstrando, por meio dos textos

selecionados, o quanto “naqueles tempos de transporte difícil e comunicação precária, o IPHAN

percorria o país do Oiapoque ao Chuí, das fortificações da Amazônia aos Sete Povos das

Missões”. A narrativa, portanto, é heroica, além de tentar se libertar da acusação, mencionada

como injusta, de ser “monumentalista” e “sacralizador” do patrimônio.

No que diz respeito ao patrimônio imaterial, o Brasil antecedeu a definição da

UNESCO, legislando a respeito em 2000. Apesar disso, Paulo Marins aponta para as

permanências nas ações do IPHAN ao preferir, ainda, as mesmas matrizes. Mesmo nos

tombamentos e registros que se refiram à mestiçagem, é quase inexistente um olhar que supere

a hegemonia portuguesa/europeia nessa relação, ou, quando existe, restringe estas expressões a

regiões e grupos bastante específicos (2016: 20). Entretanto, o autor sugere uma tendência de

transformação das políticas de patrimônio, a partir do repensar das práticas federais e da

preocupação em trazer à discussão os diversos agentes envolvidos, como preconiza a própria

Constituição de 1988 (2016: 26).

A patrimonialização de bens materiais e imateriais envolve o reconhecimento de

experiências históricas e estéticas como dignas de reconhecimento e proteção oficiais, visando

à sua continuidade. Dando continuidade à valorização de uma perspectiva única de formação

“nacional”, baseada na herança europeia/portuguesa – e que não lhe é exclusiva –, o IPHAN só

passou a rever suas práticas e começou a reconhecer relações não-hegemônicas com o

patrimônio após a instituição das políticas de patrimônio imaterial. O caso das ruínas da redução

jesuítico-guarani de São Miguel Arcanjo é relevante também neste aspecto, levando-se em

conta que recentemente o sítio foi registrado como patrimônio imaterial do Brasil.

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O local, de certo modo “partilhado” por diferentes grupos, indígenas e não indígenas,

brasileiros e não brasileiros, pode nos conduzir a uma reflexão que contempla os propósitos

inscritos na Carta Magna brasileira. Além disso, a vasta região das Missões constitui um

conjunto de bens e de referenciais que compreendem o noroeste do estado do Rio Grande do

Sul, a província argentina de Misiones e o sul do Paraguai, no território cortado pelos rios

Uruguai e Paraná, bem com terras baixas da Bolívia. Estes marcos são patrimônios históricos e

artísticos de Paraguai, Argentina e Brasil, da “Humanidade” 7 e, recentemente, “Lugar” –

conforme a nomenclatura adotada pelo IPHAN para o patrimônio imaterial – de referência,

neste caso, a Tava, aldeia de pedra que são as ruínas da redução de São Miguel Arcanjo.

Colocar questões sobre as políticas de patrimônio brasileiras pode nos abrir perspectivas

para identificar e compreender as tensões entre a lógica do “Estado ocidental”, lógica esta que

informa as práticas de patrimonialização – suas fronteiras, sua história oficial, seus referenciais

estéticos – e os diversos sistemas de conhecimento do mundo ameríndio e a forma como estes

olham para o que se denomina “patrimônio”. Para construir esta reflexão, cabe aqui explorar,

para além da já discutida relação entre o IPHAN e as ruínas de São Miguel Arcanjo, analisar as

motivações e as consequências do registro da Tava como Lugar dos Mbyá-Guarani, por meio

do instrumento do Inventário Nacional de Referência Cultural (INRC). Esse “duplo registro”,

que pode inclusive parecer se referir a dois lugares/monumentos/dimensões distintos, instiga a

análise e sugere caminhos que permitem a emersão de narrativas históricas que superem as

“coloniais”. Como já apresentado aqui, apesar dos remanescentes das reduções também serem

parte da história guarani, pouca ou nenhuma menção foi feita a estes pelo IPHAN ao longo de

sua atuação, sobrando reconhecimentos à iniciativa jesuítica: é como se somente uma das

dimensões do monumento fosse tombada/protegida. Este dado corrobora a crítica,

anteriormente citada, feita por Miceli ao Instituto em 1987.

Mais do que lançar um olhar sobre essas recentes transformações da política patrimonial

oficial do Estado brasileiro, trata-se aqui de observar os traços dessa mudança, considerando o

quanto conhecimentos indígenas informaram as novas práticas de salvaguarda do patrimônio.

Nesse sentido, são bastante relevantes à discussão textos que compõem a coletânea Políticas

Culturais e Povos Indígenas, organizada por Manuela Carneiro da Cunha e Pedro de Niemeyer

7 No ano de 1983, as ruínas de cinco Missões Jesuíticas Guarani, na Argentina e no Brasil, foram declaradas pela

UNESCO como Patrimônio da Humanidade, em conjunto.

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Cesarino. Na introdução deste debate, a antropóloga aponta para as diferenças entre políticas

culturais feitas pelos índios daquelas feitas para os índios, além daquelas que se valem dos

índios: o interesse principal da discussão, de seu ponto de vista, é o de compreender como estas

três formas de políticas se conjugam para produzir efeitos.

Das políticas empreendidas para os índios, a autora destaca a escolarização multicultural

e a patrimonialização de elementos culturais tradicionais, lembrando que tais políticas são

decorrentes da Constituição brasileira de 1988, resultado de diversos movimentos das décadas

anteriores que, além de outras demandas, tiveram também como intuito a superação da linha

oficial adotada pelo Estado de uma suposta “integração”, que era um outro nome para a

assimilação cultural e o apagamento das diferenças. No que diz respeito à memória, tanto pelos

conteúdos que ela evoca e mobiliza quanto por suas funções identitárias, Manuela Carneiro da

Cunha lembra que esta é uma preocupação tanto nas políticas formadas por índios quanto para

índios. A autora e organizadora da coletânea lembra também a necessidade deste aspecto levar

à compreensão da historicidade das culturas indígenas, rompendo com o recorrente olhar que

as vê como estáticas (CUNHA, 2014: 9-12).

A formulação de tais políticas, quando feitas externamente, também precisa levar em

conta os modos de conhecer indígenas e as suas características. Além de reconhecer o seu

caráter corpóreo, é fundamental também não separar o conhecimento dos seus conhecedores,

ou seja, dos detentores. Da mesma forma, não se pode deixar de lado o entendimento dos

processos que transmitem e que colocam em circulação esses conhecimentos. Ainda neste

sentido, a autora afirma, em relação ao patrimônio imaterial, que o que importa “não é apenas

preservar os conhecimentos tradicionais, e sim se engajar em conservar vivos e dinâmicos esses

sistemas ‘outros’ de conhecimento”. É a partir desse reconhecimento das diferenças, da

multiplicidade de modos de conhecer, que se podem “vislumbrar alternativas ao nosso modo

habitual, enraizado de pensar”. Foi a valorização de outros sistemas de conhecimento, por

exemplo, que se abriram novas possibilidades nas discussões a respeito da conservação

ambiental – lembrando inclusive que, em 2010, o IPHAN reconheceu como patrimônio

imaterial o sistema agrícola do Rio Negro (CUNHA, 2014: 15-16; 18-19). O passo adiante

dessas políticas passa, necessariamente, pela relação de diálogo e incorporação

verdadeiramente efetivas, especialmente dos conhecimentos indígenas pelos não indígenas.

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Outros aspectos da patrimonialização podem também ser observados a partir de textos

de pesquisadoras e pesquisadores que atuaram junto de alguns dos processos de inventário e

registro do patrimônio imaterial. Vale destacar que cerca de um quinto dos registros está

relacionada aos povos indígenas nos quatro livros do Patrimônio Imaterial do IPHAN, a saber:

Lugares, Formas de Expressão, Celebrações e Saberes. Alguns textos, que se referem a esses

processos, ajudam a compreender não somente a forma como o Estado está buscando tratar a

questão, mas também de que modo emergem conhecimentos indígenas e se estabelecem

relações entre os dois sistemas em operação.

É importante também observar as diferenças que existem entre a ideia de proteção, que

embora surja em diversos momentos, diz mais respeito à propriedade intelectual/industrial, que

restringe circulação e direitos de uso/reprodução, em uma lógica individualizante, de domínio

restrito. Por outro lado, ao se utilizar o termo salvaguarda, se compreendem as lógicas

utilizadas no campo da cultura, por instituições como a UNESCO e o IPHAN, inclusive (LIMA

et al., 2014: 227, nota). Esta ressalva traz à tona os ruídos entre noções distintas de propriedade

(ou mesmo de patrimônio), de uso, de difusão, de restrições.

Partindo do que Dominique Gallois (2005) apresenta, podemos apreender onde

residiriam as reais condições para que as iniciativas de “proteção” do que nós chamamos

patrimônio imaterial tenham eficácia e aconteçam de fato: trata-se, conforme as demandas

apresentadas por grupos como os Wajãpi, de oferecer as condições para a sua existência – a

terra demarcada, o acesso aos meios de subsistência e manutenção das diversas atividades

sociais – condição sem a qual não poderia haver qualquer manifestação ou produção cultural,

nos termos com os não indígenas e as suas instituições operam. Cabe pensar também de que

modo a compreensão desta lógica de construção e organização pode oferecer possibilidades às

práticas patrimoniais em relação a outros grupos.

O texto de Gallois, considerando especialmente o contexto editorial em que circula, – a

Revista do Patrimônio – é verdadeiramente uma exortação aos agentes do patrimônio, estejam

eles em museus, na academia, no IPHAN ou em outras instâncias da atividade intelectual

investida de poder pelo Estado. A autora aponta para os efeitos das pressões exercidas sobre

pesquisadores indígenas, que à medida que atuam, podem exigir finalizações vazias e

simplificadas, sem os “sentimentos” que os Wajãpi, no caso acompanhado por ela, desejam

aprender a expressar. Sugere, ainda, quais seriam as possíveis contribuições de acadêmicos,

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como a “discussão de procedimentos de identificação de categorias e classificação nativas”,

bem como a de profissionais de museus, que poderiam criar “formas de armazenamento

adequadas à imensa variabilidade de formas de enunciação de saberes orais”. Além disso, é

preciso “incluir na pauta de possíveis exposições não mais os ‘objetos’ da cultura, mas os

conceitos que estão por trás e especialmente todas as classificações cosmológicas subjacentes

que fazem desses objetos elementos particulares de uma cultura”. Para a autora, é fundamental

que um programa que se diz de valorização cultural seja assumido como da ordem do projeto

político.

Ao observarmos documentos do IPHAN, mais especificamente do Inventário Nacional

de Referências Culturais (INRC) Guarani-Mbyá, podemos identificar e discutir alguns dos

aspectos e processos que vêm sendo discutidos aqui. Além disso, podemos perceber o quanto o

trabalho iniciado no sítio de São Miguel, entre 2004 e 2008 se ampliou, segundo informam,

para “contemplar a rede étnica configurada pelas estreitas relações mantidas entre as aldeias do

Rio Grande do Sul”. Na ocasião da preparação do inventário no Rio Grande do Sul, a

comunidade guarani envolvida na atividade já tinha apontado para a “necessidade de

considerar, para identificação do patrimônio cultural do povo Guarani, uma territorialidade

abrangente configurada pelas ações de parentelas e trânsito entre aldeias”, que extrapolam as

fronteiras definidas pelos Estados nacionais na América do Sul. A necessidade de compreender

este conceito de territorialidade, como veremos mais adiante, é um dos aspectos mais

complexos deste e de outros casos em que há divergências, por assim dizer, entre ideias de

território (e, sobretudo, de fronteiras). No caso guarani, isso demanda também ações de

Argentina, Paraguai e Bolívia, razão pela qual se definiu um Programa Multinacional de

Valorização do Mundo Cultural Guarani, cujo trabalho brasileiro teve início em 2009 (IPHAN,

s.d.).

Dez anos depois do início do trabalho em São Miguel, o Conselho Consultivo do IPHAN

emitiu o parecer positivo sobre o Registro da Tava São Miguel Arcanjo, Lugar de Referência

Cultural para os Guarani, assinado pela gaúcha Carla Maria Casara. Chama a atenção o fato da

parecerista ser do mesmo estado do Lugar ora registrado, especialmente porque, conforme ela

mesma indica, a informação que lhe ficou é a de que as missões tinham sido uma realização

dos jesuítas e somente deles. Por meio da documentação por ela então analisada, a conselheira

diz ter podido se dar conta dos significados do sítio de São Miguel para as populações guarani,

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lugar este que inclusive lhes permite grande visibilidade, o que é fundamental na desconstrução

de estigmas (IPHAN, 2014: 1).

Ao retomar o parecer técnico da Superintendência do IPHAN do Rio Grande do Sul, a

conselheira destaca trechos em que se demonstra o sentido do requerimento do “direito [dos

Guarani] de contar sua história e afirmar a profunda ligação” entre a aldeia de pedra e o seu

modo de estar no mundo. A solicitação foi encaminhada sete anos antes, em 2007, por parte de

doze lideranças mbyá de seis estados (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo,

Rio de Janeiro e Espírito Santo), bem como de uma liderança do Paraguai, que participaram do

Encontro Internacional Valorização do Mundo Cultural Guarani (IPHAN, 2014: 2).

Conforme o parecer sugere, as disputas em torno do local da Tava são diversas, e

recorrem a leituras do passado que separam os indígenas habitantes das missões daqueles não

reduzidos, o que eliminaria as relações ancestrais entre os Mbyá-Guarani de hoje e os dos

tempos das missões. O documento apresentado reconhece, baseado nas fontes coligidas, a

manutenção da circulação tradicional, contrapondo-se à historiografia tradicional local que

frequentemente se refere à região como “espaço vazio”, como se após as Guerras Guaraníticas

(ação ibérica de expulsão dos povos das missões após o Tratado de Madri, de 1750,

acompanhada de forte resistência indígena), os Guarani tivessem desaparecido dali para sempre

e por completo.8 Do mesmo modo, a conselheira também aponta para as críticas que se

apresentam sobre a forma como o IPHAN comunica os remanescentes missioneiros aos seus

visitantes (IPHAN, 2014: 3-4). Como poderemos observar a seguir, resguardava-se um

protagonismo jesuítico, eurocêntrico e focado na patrimonialização de bens católicos, herança

dos antigos parâmetros oficiais do Instituto.

Em síntese, o documento oficial do IPHAN indica a maneira como o órgão (e seus

agentes) apreenderam o registro da Tava:

A proposta de Registro da Tava em São Miguel Arcanjo como lugar de

referência para os Guarani implica em reconhecê-los como narradores

privilegiados de um evento marcante em suas vidas. Esse evento não se

resume a um projeto missioneiro colonizador, no qual os Mbyá

8 Segundo José Otávio Catafesto de Souza, a tradição oral mbyá e as pesquisas etnoarqueológicas desmentem a

ideia de que os atuais Mbyá não guardam qualquer relação com os antigos Guarani das reduções - argumento

lançado quando se busca afastá-los do patrimônio tombado. Tal interpretação cria duas categorias de Guarani: as

dos totalmente convertidos (das Missões, que deixaram para trás suas práticas e tradições) e a dos arredios, que se

mantiveram nas áreas de floresta e mantiveram suas tradições. Hoje é possível saber que não houve, jamais, uma

“conversão total”, nem mesmo um afastamento total das florestas, mesmo dos “reduzidos” das missões (2009: 10).

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aparecem em uma posição secundária com relação aos jesuítas e à

sociedade dos não-indígenas, mas, sim o da construção de uma “casa

de pedra” singular, voltada para a superação da condição humana. Os

Nhande Ru Miri a fizeram perecível [devendo, portanto, manterem-se

como ruínas], com o objetivo de mostrar aos juruá, os não-indígenas, a

importância da presença do povo Guarani no mundo (IPHAN, 2014:

11).

Depois de observar como o IPHAN e os agentes do patrimônio apreenderam o aspecto

da história das missões que foi escamoteado neste que foi um dos primeiros bens materiais

tombados como patrimônio nacional, e onde também se erigiu o primeiro museu pelo próprio

órgão, vejamos os aspectos que então se apresentam, e que podem ser entendidos enquanto

consequências diretas da iniciativa mbyá guarani de solicitar o registro da Tava Miri, a sagrada

aldeia de pedra, como Lugar de Referência.

Carlos Eduardo Neves de Moraes foi um dos integrantes da equipe, formada por

indígenas e não indígenas, que realizou o trabalho de inventário da Tava, entre 2004 e 2009.

Uma das primeiras ações da equipe, liderada pelo professor José Otávio Catafesto de Souza e

pelo cacique Cirilo Morinico, foi a de buscar informações sobre a presença mbyá na região de

São Miguel. A referência mais antiga data de 1950, levando em conta os processos de

desterritorialização e reterritorialização posteriores à Guerra da Tríplice Aliança ou do Paraguai

e que afetou diretamente o mundo guarani (MORAES, 2010: 3-5).

Foi na década de 1990 que os Mbyá Guarani se estabeleceram permanentemente em São

Miguel, junto às ruínas, pouco tempo após à emancipação deste município. É nesse período

também que, segundo o autor, líderes políticos da região expulsavam indígenas de “suas”

cidades e os mandavam para São Miguel, dizendo que lá era “lugar de índio”. A presença deles

junto às ruínas da redução de São Miguel Arcanjo lhes deu maior visibilidade. Ainda que, de

uma parte, sofressem com o preconceito por parte de visitantes e também de moradores, que

lhes negavam a legitimidade enquanto descendentes dos “Guarani das missões”, por outra parte,

passaram a utilizar os serviços da localidade e também a contar com o apoio de não indígenas

em suas demandas. Um dos primeiros resultados de suas lutas foi a criação da Reserva Indígena

Inhacapetum em 2001 (MORAES, 2010: 6-7).9

Ao longo do trabalho, comenta Moraes, os propósitos do INRC foram expandidos, de

modo a perceber de forma ampla o Mbyá reko – o modo de vida mbyá. Assim sendo, o

9 A Tekoa Koenju (Alvorecer) está cerca de 30 km das ruínas de São Miguel.

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instrumento não se limitaria a tratar única e exclusivamente “de bens culturais identificados

isoladamente”, e tomaria “como referência aspectos mais gerais, anteriores e fundamentais ao

pleno exercício do Mbyá reko, no que diz respeito a suas condicionantes naturais, sociais e

cosmológicas”. Três conceitos, advindos do sistema de conhecimento e de vida mbyá seriam

então basilares para a formulação de qualquer ideia, política, prática: a cosmo-ecologia, a

dimensão do mistério e a natureza e territorialidade livres. A partir destes conceitos, pretendia-

se, por exemplo, superar o problema posto pelas fronteiras dos Estados nacionais à circulação

mbyá guarani. Como agravante, as fronteiras definidas se utilizam dos rios, entendidos pela

cosmo-ecologia mbyá guarani como elementos de integração. Mas não foi somente isto a

colocar problemas à noção de territorialidade mbyá: havia (e há) também a necessidade do

acesso a elementos específicos da natureza, que muitas vezes se encontram dentro de

propriedades privadas. Conforme indica o autor, há pelo menos um caso em que um proprietário

permitiu o acesso ao cipó guembe, ao mel nativo e à taquara dentro de “seus domínios”, o que

pode sugerir caminhos para um entendimento entre lógicas fundiárias bastante diversas

(MORAES, 2010: 8-9).

No meio tempo em que a equipe realizava o inventário, dois encontros foram realizados,

em 2006 e em 2007, para que os Mbyá conversassem sobre a sua situação atual. Os eventos se

chamavam Nhemboaty – Povos indígenas e o patrimônio – e eram realizados na Tava Miri. Foi

desses encontros que se fez o pedido formal, junto ao Ministério da Cultura, para que se

registrasse a Tava Miri como um lugar de importância cultural para os Mbyá, processo este que

exigiu a elaboração de um dossiê. Foi neste momento, segundo Moraes, que os Mbyá decidiram

revelar elementos sagrados e secretos de sua tradição: os sentidos da Tava Miri (MORAES,

2010: 9).

Deste momento em diante, a mesma equipe foi incumbida, junto do Instituto de Estudos

Culturais e Ambientais, de realizar o trabalho de campo. Listaram, então, possíveis narradores,

seus locais de moradias, e elaboraram um cronograma. Foram selecionadas também as Tekoa

Anhetengua, a Yryapu, a Koenju, a aldeia da Varzinha e os karai de cada uma delas, espalhadas

pelo estado do Rio Grande do Sul. Nessa etapa, os narradores falaram sobre os significados das

ruínas de São Miguel para os Mbyá, notando-se a evocação de orientações espaço-temporais

distintas das de outros grupos que atualmente vivem no espaço missioneiro. Conforme várias

das narrativas, a Tava Miri já estava sendo construída quando os jesuítas chegaram, sob

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orientação dos deuses. Os Guarani do período das missões são “exemplos a serem seguidos

pelos atuais Mbyá” e, além disso, “a força espiritual dos nhanderu miri permanece nas pedras

das ruínas e nas estátuas (hoje expostas no Museu das Missões)”, e voltará à vida, conforme

entende a escatologia mbyá, no fim dos tempos. As ruínas também são um dos marcos –

dispositivos de memória – a orientar os deslocamentos dos Mbyá Guarani de hoje, seguindo os

caminhos do espaço-tempo por onde passaram os antepassados, e é dessa forma sob a qual se

realiza a sua territorialidade (MORAES, 2010: 10-12).

José Otávio Catafesto de Souza lembra que os Mbyá Guarani, ao circularem entre

diferentes países sul-americanos, recebem um tratamento diferente em cada um deles. No

Brasil, por exemplo, são tachados frequentemente como “estrangeiros” e “nômades”, o que os

afastaria de qualquer política específica. Além disso, o autor situa a fundação dos trinta

povoados jesuítico-guarani no contexto dos contatos com o colonizador ibérico, fazendo frente

às investidas escravistas de encomenderos e bandeirantes.10 Entre as derrotas impostas pelas

Guerras Guaraníticas, entre os anos de 1753 e 1756, e a posterior “conquista” portuguesa da

região das missões (1801), muitos Guarani foram mortos ou tornados mão de obra camponesa

(SOUZA, 2009: 2-3). Desse modo, o autor põe em relação à história do Brasil e dos Estados

platinos a história guarani.

O autor destaca a demanda dos Mbyá Guarani ao Ministério da Cultura, como condição

para a “preservação” de sua cultura: a salvaguarda da natureza livre, isto é, na leitura de

Catafesto de Souza, o entendimento de uma cosmo-ecologia, sem subordinação aos princípios

econômicos. Este entendimento se confronta com as “políticas culturais” do Ministério da

Cultura, obrigando-o a práticas que demandam a aliança com outros órgãos e ministérios, de

diferentes entes da federação (2009: 13). Desta forma, o Mbyá reko pode interferir nas políticas

públicas indígenas e não indígenas, introduzindo uma perspectiva integral de “proteção”.

Do lado dos Mbyá-Guarani, os efeitos do INRC também foram diversos, como

apresenta Vânia Gondim. De acordo com a autora, as ruínas adquiriram tangibilidade para os

Mbyá, que também a perceberam como instrumento essencial na reivindicação de seus direitos

territoriais, que são a condição primeira de sua continuidade enquanto povo. Gondim aponta as

demandas apresentadas pelos Mbyá Guarani ao término do processo de registro, elencadas nos

10 Conforme apresenta Catafesto de Souza, os jesuítas levaram Guarani do atual oeste de São Paulo para o território

que hoje pertence a Argentina e Paraguai para que assim pudessem escapar dos bandeirantes. Desta região, se

estabeleceram no atual Rio Grande do Sul, na segunda metade do século XVII (2009: 6).

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itens produção e reprodução cultural; mobilização social; gestão participativa e

sustentabilidade; difusão e valorização. Neste último item são registrados os pedidos da

formação de cineastas, mediadores para recepcionar turistas, elaboração de material educativo,

formação de pesquisadores e a constituição de acervo para um Museu Guarani (GONDIM,

2015: 117-118)

A perspectiva que foi desconstruída ao longo do processo de INRC, e que está registrada

também no parecer emitido pelo Conselho do IPHAN, é discutida por Jean Baptista e Tony

Boita. Trata-se de outro reconhecimento: o do protagonismo indígena na história das missões.

Conforme lembram os autores, parte dos intelectuais que se debruçaram sobre a história das

missões focaram no papel dos jesuítas e nos conhecimentos ocidentais transmitidos às

sociedades indígenas. Diversos autores, seguindo esta tendência, consideraram os indígenas

meros executores, ou ainda aculturados. As diversas classificações conferidas à região

expressam essa exclusão: “missões jesuíticas”, “acervo jesuítico”, “barroco jesuítico” – a

história indígena das missões é, portanto, invisível – e as escolhas da memória histórica se veem

também nas peças e espaços do museu e do sítio arqueológico, onde se privilegiam os

referenciais coloniais-ocidentais (BAPTISTA; BOITA, 2011: 264-266).

Os autores, que atuam na área da museologia, chamam a atenção para o fato de que os

museus brasileiros, desde as primeiras iniciativas, viram os indígenas como entraves ao

desenvolvimento e à construção de uma história nacional. Nas primeiras décadas do século XX,

a difusão dos museus brasileiros configurou uma nova fase da memória nacional: segundo os

autores, a criação de novas instituições atendia, principalmente, os interesses políticos elitistas

e nacionalistas, o autoritarismo e a centralização das instituições do Estado. No contexto do

Estado Novo, a criação do Museu das Missões, fruto das ações de Lúcio Costa e do SPHAN,

estava mais interessada em proteger a estatuária missioneira do que em reconhecer a presença

indígena em qualquer canto que fosse da região (BAPTISTA; BOITA, 2011: 267).

Muito tempo depois, no âmbito do projeto de requalificação do Museu das Missões,

iniciado em 2006, foi realizada uma pesquisa “interessada em identificar a participação

indígena na geração dos espaços do sítio e das peças do museu”. Uma leitura dos documentos

históricos reunidos foi feita, em busca da identificação dos significados imateriais constituídos

pela agência indígena ao confeccionar o “patrimônio material”. Ao longo da pesquisa, foi

possível identificar diversos elementos da composição escultórica e pictórica da região e do

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período missioneiros. Tal pesquisa e projeto de requalificação, realizados concomitantemente

ao INRC, demonstraram-se bastante frutíferos. Segundo os autores, os Mbyá passaram a

fornecer à equipe incumbida de fazer o inventário “informações que levantaram a possibilidade

de construção de outra história das missões”. Por outro lado, os autores chamam a atenção para

que estes esforços de transformação não se atenham unicamente ao passado indígena, mas ao

seu presente e à sua relação com o sítio histórico de São Miguel, entre outras coisas

(BAPTISTA; BOITA, 2011: 269-274).11

O texto, que foi publicado em uma coletânea do Museu Histórico Nacional, conclui

propondo duas orientações fundamentais para se pensar a respeito da inclusão do protagonismo

e de uma perspectiva indígena em museus: a primeira sugere o reconhecimento, em fontes

documentais, de “interpretações, significações, autorias e dados múltiplos, que revelam a

participação de populações indígenas nos processos que resultaram em produções hoje

expostas”; a segunda sugere que a consulta a fontes do passado seja acompanhada de uma

“leitura indígena contemporânea nestes mesmos dados” (BAPTISTA; BOITA, 2011: 278).

Transformar as políticas culturais e as práticas patrimoniais, portanto, extrapola o

atendimento das demandas dos diversos grupos que compõem a sociedade multicultural à qual

se refere a Constituição Federal. O conjunto de interações e a mútua influência exercida entre

as ações oficiais e aquelas promovidas pelos múltiplos grupos sociais permite uma ampliação

da compreensão de patrimônio, de bem cultural, de referência, de condições de “proteção” e de

salvaguarda e concorre para o aperfeiçoamento das políticas culturais do próprio Estado

brasileiro, visando à superação de uma tradição pautada pela exclusão de grandes contingentes

populacionais, sobretudo os não identificados à matriz hegemônica europeia/portuguesa. A

concepção integral de patrimônio, como no caso dos Guarani-Mbyá, não exclui – ao contrário,

pressupõe –, por exemplo, a questão fundiária, fundamental reivindicação por uma sociedade

igualitária. São estes sujeitos que nos demonstram a interdependência entre as políticas

culturais, as econômicas, as sociais.

Referências bibliográficas

11 Uma dessas questões do presente dizem respeito à venda de artesanato no alpendre do Museu das Missões,

quando, para além da visibilidade que têm, aparecem também as críticas duras, os preconceitos, as essencializações

e os estereótipos, que podem ser vistos, por exemplo, no vídeo produzido por três realizadores guarani-mbyá,

Mokoi Tekoa Petei Jeguatá – Duas aldeias, uma caminhada (2008), no contexto do projeto Vídeo nas Aldeias.

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Fontes

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