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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-graduação em Letras Da Ásia à Bulgária: Um Caminho Impossível Douglas Ferreira Gonçalves Belo Horizonte 2008

Da Ásia à Bulgária · O que podemos ler, ao encarar os livros, são movimentos do personagem. Ele fala, sofre, busca a cura para o sofrimento, interpreta seu sofrimento de forma

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-graduação em Letras

Da Ásia à Bulgária: Um Caminho Impossível

Douglas Ferreira Gonçalves

Belo Horizonte 2008

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Douglas Ferreira Gonçalves

Da Ásia à Bulgária: Um Caminho Impossível

Dissertação a ser apresentada ao Curso de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como parte dos requisitos para obtenção do grau de Mestre em Letras – Literaturas de Línguas Portuguesa. Orientador: Prof. Dr. Audemaro Taranto Goulart.

Belo Horizonte 2008

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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Gonçalves, Douglas Ferreira G635d Da Ásia à Bulgária: um caminho impossível / Douglas Ferreira Gonçalves. Belo Horizonte, 2008. 130f. Orientador: Audemaro Taranto Goulart Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. 1. Ironia na literatura. 2. Humor - Literatura. 3. Expressionismo (Literatura). 4. Dadaísmo. 5. Surrealismo (Literatura). 6. Anarquismo e anarquistas. 7. Existencialismo. 8. Sujeito (Filosofia). 9. Inconsciente. 10. Mistério. 11. Agnosticismo. I. Goulart, Audemaro Taranto. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa e Pós-Graduação em Letras. III. Título.

CDU: 869.0(81).09

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Douglas Ferreira Gonçalves Da Ásia à Bulgária: Um Caminho Impossível Dissertação defendida publicamente no Programa de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2008.

________________________________________________ Prof. Dr. Audemaro Taranto Goulart

(Orientador – PUC Minas)

_________________________________________________ Profª. Drª.Letícia Malard

(UFMG)

_________________________________________________ Prof. Dr. Alexandre Veloso de Abreu

(PUC Minas)

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À Eliana Ferreira R. da Silva

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AGRADECIMENTOS

À CAPES, pela bolsa de estudos

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Resumo

Esta dissertação é o resultado de uma pesquisa empreendida sobre a Obra reunida de

Campos de Carvalho, tendo como objetivo, esperar que o próprio texto propusesse o

assunto a ser tratado, de acordo com a convicção de que a realidade possui sua própria

racionalidade e a apresenta ao observador atento. O método utilizado foi o anarquismo

metodológico de Paul Feyerabend. Como resultado, uma estrutura e um processo

comum aos quatro livros que compõem a Obra reunida, foram descobertas.

Palavras-chave: ironia, humor, humor negro, expressionismo, dadaísmo, surrealismo,

anarquia, existencialismo, sujeito, inconsciente, mistério, agnosticismo.

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Abstract

This dissertation derives from a research attempted on Campos de

Carvalho’s work named Obra reunida and its aim is the possibility the text

offers to focus by itself one’s attention on the matter that is treated,

according to a conviction: that of what reality has its own rationality,

presented to an attentive observer. The method made useful was the

anarchist methodology by Paul Feryerabend. The discovery of a common

structure and process in four narratives in Obra reunida was the result of

this work.

Key words: Brazilian narrative – Campos de Carvalho – irony – humour –

existencialism – subject – unconscious.

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LISTA DE ABREVIATURAS

Trad. – Tradução

Vol. – Volume

Obra – Obra reunida

Lua (primeiro livro) – A lua vem da Ásia

Sutil (segundo livro) – Vaca de nariz sutil

Chuva (terceiro livro) – A chuva imóvel

Púcaro (quarto livro ou último livro) – O púcaro búlgaro

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SUMÁRIO

CAPÍTULO 1: INTRODUÇÃO.................................................................................. 09

CAPÍTULO 2: AS SINGULARIDADES DE UM ESCRITOR VISCER AL ......... 15

2.1 Vida e pequena fortuna crítica ............................................................................. 15

2.2 A psicologia da composição .................................................................................. 20

CAPÍTULO 3: ESTRUTURA / PROCESSO NA OBRA REUNIDA ...................... 37

3.1 O trauma ................................................................................................................ 37

3.2 A busca ................................................................................................................... 56

3.3 O encontro .............................................................................................................. 71

3.4 A resposta ............................................................................................................... 95

CAPÍTULO 4: CONCLUSÃO.................................................................................. 105

REFERÊNCIAS.......................................................................................................... 107

APÊNDICE A: Estrutura/Processo ......................................................................... 112

APÊNDICE B: Organização dos livros [partes e capítulos] da Obra reunida ..... 113

APÊNDICE C: Quadro comparativo [entre os livros] ........................................... 116

APÊNDICE D: O termo e a Obra ............................................................................. 117

ANEXOS A: Livre associação de idéias e escrita automática ............................... 127

ANEXOS B: Sessão psicanalítica ............................................................................. 128

ANEXOS C: Karma [poema de Campos de Carvalho] ........................................ 130

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CAPÍTULO 1: INTRODUÇÃO

Fiquei surpreso ao ler, pela primeira vez, o romance A lua vem da Ásia, de

Campos de Carvalho. Em primeiro lugar, pelo estilo do autor. O livro, escrito em

primeira pessoa, narra a realidade de uma forma ímpar, descrevendo eventos absurdos

como se fossem a mais pura expressão da normalidade, num mundo totalmente

remodelado de acordo com a lógica heterodoxa do personagem, como se ele fosse o

único ser pensante e o restante do mundo uma mera interpretação delirante de fatos

bizarros. Tudo isso recheado de humor e ironia.

Em segundo lugar, fiquei intrigado pelo fato de um prosador como Campos de

Carvalho, que está entre os maiores da literatura brasileira, ser quase um desconhecido

do grande público. Ainda não sabia que o autor não havia recebido a devida atenção dos

estudiosos da literatura brasileira.

Ao ler O púcaro búlgaro, do mesmo autor, fiquei ainda mais surpreso. Se no

livro citado anteriormente a descrição absurda da realidade podia fazer algum sentido

pelo fato do protagonista ser um doente mental, nesse segundo livro não havia tal

recurso. Um estranho protagonista se encontra com pessoas totalmente excêntricas para

empreenderem uma viagem louca, absolutamente desprovida de sentido, como se

estivessem tratando de um assunto sério, de vital importância. E, mesmo assim, depois

de ler o livro, fiquei com a impressão de que, de fato, um assunto sério, de vital

importância, havia sido tratado. Só não sabia qual era ele, exatamente. Nesse momento

já estava decidido a estudar a obra do autor, mas ainda não sabia como.

Quando li Vaca de nariz sutil, do mesmo autor, tive outra surpresa. O humor e a

ironia estavam presentes, mas em menor grau. O mundo continuava sendo descrito de

forma ímpar, mas não mais absurda. Na realidade, a forma do personagem encarar sua

própria vida mostrava que esse mesmo mundo em que eu vivo é um absurdo. Não era

mais a exposição de uma realidade fantasiosa, mas uma nova chave de leitura da mesma

realidade em que vivemos, que transformava um mundo, antes seguro, num lugar sem

sentido, num “vale de lágrimas”. Pela primeira vez o estilo do livro me pareceu familiar.

Um Sartre melhorado. Uma espécie de Camus, só que com senso de humor. Se bem que

de um humor negro.

Ao procurar maiores informações sobre o autor e sua obra, quase nada encontrei.

Seu nome foi citado num livro, um de seus romances citado num segundo, e um

parágrafo foi dedicado ao autor e à sua obra, num terceiro. E só. Comecei a duvidar da

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minha capacidade de discernir um bom escritor de um escritor qualquer, de discernir um

grande livro de um livro de importância secundária.

Pesquisando na Internet, encontrei alguns comentários aos livros de Campos de

Carvalho. Nelson de Oliveira, da revista agulha, o reconhece como o maior prosador

brasileiro da segunda metade do século XX, juntamente com Guimarães Rosa e Clarice

Lispector. Aliás, os três escritores foram denominados pela alcunha de “santíssima

trindade de nossa [brasileira] prosa”. Descobri também que os livros do autor foram

fotocopiados durante décadas, para um número cada vez maior de admiradores, até que

foram reeditados juntos num único volume, denominado Obra reunida. O que me

trouxe certo alívio. Minha capacidade de discernimento não estava tão avariada. Mais

tarde encontraria um livro e uma dissertação de mestrado sobre o autor.

Quando pensei que nada mais me surpreenderia, li A chuva imóvel. O livro

começa com uma explosão de imagens surreais, aparentemente desconexas, que torna a

leitura difícil. De forma abrupta, passa a uma narrativa compreensível para, na última

parte, retornar às seqüências loucas de imagens surreais. Essas imagens começam a

apontar para um vago sentido e terminam com um violento discurso de recusa à

realidade, mas não àquilo que a sociedade convencionou chamar “a realidade”, mas sim

ao delírio surreal registrado no livro, e que me pareceu mais verdadeiro que a minha

própria visão de mundo. A leitura me rendeu dois pesadelos. Esses estão entre os

sonhos mais significativos que já tive.

Um autor de singular estilo, de fina ironia, exímio prosador, capaz de criar

imagens repletas de significado. E desprezado pelos estudos acadêmicos. Tudo isso já é

motivo suficiente para transformar a obra de Campos de Carvalho em objeto de estudo.

Mas como enfocar esse objeto? A partir de qual prisma encará-lo?

Duas características saltam aos olhos numa primeira leitura de Campos de

Carvalho. O humor e a narrativa subjetivista.

Os livros do autor estão repletos de ironia e de humor, principalmente de um

humor negro, que combina com sua ironia e com sua pessimista visão de mundo.

Já a segunda característica, a narrativa subjetivista, é mais marcante. Tanto que,

quando fui reler os livros já citados, eu não me lembrava da existência de diálogos, e

muito menos de nomes de personagens. A impressão que a primeira leitura causou foi a

de que os quatro livros que citei estavam escritos em forma de monólogo, do princípio

ao fim, sem o nome de nenhum personagem. Como se o que importasse fosse apenas o

testemunho do narrador, sua forma de interpretar o real ou suas experiências,

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independente do nome dado a elas. Quando li a Obra pela segunda vez, mais uma

surpresa! Havia diálogo nos livros, principalmente no texto O púcaro búlgaro! E havia,

sim, dezenas de personagens com nomes!

Foi essa segunda característica que mais me interessou. E surgiu na forma de

uma dúvida: quem é esse sujeito que absorve a realidade, a reinterpreta ou a inventa, e a

narra? Quem é esse sujeito que diz do seu sofrimento, reflete de forma pouco usual,

busca aquilo que não parece ser possível de ser alcançado, como a total individualidade,

ou pior, aquilo que não precisa ser buscado, como a Bulgária? Quem é esse sujeito que,

depois de percorrer um longo caminho, chega num ponto e retira a conclusão mais

inesperada de tudo que foi vivido, como: “não entendo esse sonho, logo, devo me

matar”?

O sujeito está na obra, na Obra reunida para ser mais exato, que é formada pelos

quatro livros mais importantes do autor. E é o sujeito presente nela, o objeto de estudo.

A primeira questão que surge nesse caso é essa: o que é o sujeito? O que é esse

sujeito?

Mas, independente da concepção de sujeito, uma vaga noção se apresentou à

minha consciência nos primórdios da pesquisa. Sujeito é algo que move. O movido, no

caso, é o personagem, o “eu”. Não os quatro personagens dos quatro romances, mas o

único personagem que se apresenta de quatro formas diferentes, pois uma das

características da Obra reunida é a unidade subjacente dos quatro diferentes livros.

O sujeito é diferente do “eu”. O personagem refere-se a ele mesmo [“eu”] o

tempo inteiro, mas há algo que está nele, mas não é ele. E é esse “em mim” que não é

“eu” que despertou meu interesse, pois é ele que parece ser o dono da história.

O que podemos ler, ao encarar os livros, são movimentos do personagem. Ele

fala, sofre, busca a cura para o sofrimento, interpreta seu sofrimento de forma pouco

usual, ou nada usual, relaciona-se com os demais personagens de forma peculiar,

apresenta reflexões, aparentemente, ou, de fato, absurdas, a respeito de si-mesmo e dos

outros, e, principalmente, toma decisões baseadas em suas vivências e reflexões.

Entender o que leva o personagem a se movimentar dessa forma, é o objetivo a ser

alcançado.

Mas como proceder? Usei o método conhecido como anarquismo teórico,

desenvolvido pelo filósofo Feyerabend, que rejeita a existência de regras metodológicas

universais e defende a idéia de que não há regras metodológicas que devam sempre ser

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usadas. De acordo com o filósofo, o método prescritivo limita as pesquisas e restringe

os resultados.

Cada objeto de pesquisa pede um método diferente. Não se analisa uma pedra

usando um divã. Assim, esperando que o próprio objeto me apresentasse o método,

idéia que aprendi com monsenhor Giussani, voltei a ler a Obra reunida com redobrada

atenção, e percebi uma estrutura comum aos quatro livros.

Dessa forma, a busca do sujeito resultou na descoberta da estrutura. A estrutura

[ou processo, como explico adiante] me foi apresentada pela própria realidade que é a

Obra reunida. É como se a Obra falasse através de mim.

Estrutura ou processo, tanto faz. Se olharmos a dinâmica das imagens, vemos

um processo. Se congelarmos o processo, prestando atenção em apenas um instante,

vemos uma estrutura.

A estrutura é formada por quatro elementos que denominei “trauma”, “busca”,

“encontro” e “resposta”.

O “trauma” é despertado por um acontecimento doloroso, que mostra ao

personagem o sofrimento inerente à vida. O personagem parte em “busca” de uma

solução, e o “encontro” com aquilo que é buscado revela que não há como ficar livre do

“trauma”. Diante dessa descoberta, o personagem apresenta uma “resposta”. Ele pode

tentar esquecer o assunto, mas o esquecimento é sempre parcial, e o “trauma” reaparece

através de um novo acontecimento doloroso. Explico essa dinâmica com maiores

detalhes mais à frente. Para uma maior compreensão do assunto, o leitor pode conferir o

Apêndice A, onde apresento esse tema de forma esquemática.

E creio até que o leitor deve consultar o anexo I, assim como o Apêndice C,

sempre que preciso, pois estes serão como guias na floresta sinuosa que o meu texto

acabou virando.

Depois de descobrir a já citada estrutura comum aos quatro livros, resolvi

colocá-la à prova. Recortei passagens de cada um dos quatro livros referentes ao

trauma, à busca, ao encontro e à resposta. Coloquei as passagens lado a lado e as

comparei. O resultado é apresentado no terceiro capítulo do trabalho.

No processo de comparação, surgiram novos temas importantes, que não tive

tempo de tratar. O mais importante deles é a dialética lembrança/esquecimento, que cito

durante o trabalho, mas não o desenvolvo de forma satisfatória.

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Durante essa atividade de comparação percebi que era esse processo/estrutura o

responsável pelos movimentos do personagem, do que o narrador chama de “eu”. Ou

seja, era o sujeito.

Depois de concluída essa parte do trabalho, busquei consultar as poucas e raras

fontes que consegui reunir que tratam do autor em questão e de sua obra. Nada

encontrei que me auxiliasse, apoiando ou contradizendo minhas idéias acerca do

assunto. O que aproveitei dessa investigação foram alguns dados biográficos

elucidativos, como a visão que o autor teve do demônio e a poesia que escreveu sobre

essa experiência [que se encontra no Anexo C], bem como o que vim a chamar de

“confissão central”, que revela que o autor está mais próximo do dadaísmo, e não do

surrealismo, como disseram alguns estudiosos ou comentadores de seus livros.

Daí a necessidade que senti de acrescentar a este trabalho alguns dados

biográficos, bem como considerações acerca do estilo do autor. Além disso, como

Campos de Carvalho ainda é um quase desconhecido, fiz alguns apontamentos sobre

cada um de seus livros.

O segundo capítulo trata dos assuntos descritos no parágrafo anterior.

O terceiro capítulo é o trabalho em si, mostrando o resultado da comparação dos

quatro romances nos pontos que dizem respeito ao processo/estrutura já citado. É

dividido em quatro partes: o trauma, a busca, o encontro e a resposta.

A tese de que existe uma estrutura/processo comum aos quatros livros, e a

organização e apresentação da mesma, na forma como foi feita, é de minha total

responsabilidade. Apesar da unidade temática dos quatro romances já ter sido percebida

por demais estudiosos.

Na conclusão, retomo alguns pontos do trabalho e remonto o caminho

percorrido. Uma das conclusões é a de que o sujeito que eu buscava é o próprio

processo/estrutura.

Como o trabalho inicial era sobre o sujeito, e apenas sobre esse conceito

aplicado à Obra, escrevi um texto sobre o assunto, apresentando o conceito do termo e

aplicando-o à Obra reunida. Como o trabalho tomou um rumo diferente, retirei este

escrito do corpo do texto, mas o aproveitei no Apêndice D, pois creio que há nele idéias

que podem ajudar na compreensão da dissertação. A primeira parte do Apêndice D pode

ser lida no início do trabalho. A segunda parte terá maior utilidade se lida depois da

leitura da dissertação.

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Disse acima que meu texto é como uma floresta sinuosa. Isso quer dizer que o

leitor encontrará neste trabalho: fuga do tema, repetições, comentários dispersos, volta

ao tema sem aviso prévio, dentre outras dificuldades. Isto ocorreu devido a dois

motivos.

O primeiro, devido ao próprio estilo do autor, que se recusa a seguir a lógica, e

transforma seus livros em verdadeiros “quadros de uma exposição”.

Em segundo, pela própria natureza do trabalho, que constituiu em colocar

diversos trechos dos quatro romances, lado a lado, e compará-los, além de espremê-los,

na tentativa de retirar dali um sentido subjacente.

Até mesmo o segundo capítulo do trabalho, que foi escrita depois do terceiro

capítulo, e que poderia ter sido apresentada de forma lógica, com princípio, meio e fim,

numa seqüência impecável, acabou contaminada pelo espírito anárquico, tanto de

Feyerabend, quanto de Campos de Carvalho. E talvez, quem sabe, meu.

No que diz respeito a este problema da “escrita anárquica”, faço minhas as

palavras de Wittgenstein, que escreveu no prefácio das Investigações filosóficas:

“Gostaria de ter escrito um bom livro. Não aconteceu assim e já passou o tempo

em que eu poderia melhorá-lo.”.

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CAPÍTULO 2: AS SINGULARIDADES DE UM ESCRITOR VISCER AL

2.1 Vida e pequena fortuna crítica

Walter Campos de Carvalho, filho de um comerciante e de uma dona de casa,

nasceu no dia 1º de novembro de 1916, em Uberaba, Minas Gerais, onde completou os

seus primeiros estudos.

Em 1933, ingressou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São

Paulo. Nesse período, aproxima-se do movimento anarquista e passa a colaborar com o

periódico A Plebe, assinando artigos com o primeiro nome [Walter].

Formou-se em Direito em 1938 e começou a trabalhar na Procuradoria Geral do

Estado de São Paulo.

Colaborou nesse período na agência do jornal O Estado de São Paulo, como

jornalista, “exercendo a escuta de rádios inglesas durante a Guerra.” (ARANTES, 2004,

p. 25).

Em 1941, publicou, às próprias custas, Banda forra, ensaios humorísticos,

encorajado por Monteiro Lobato. Relembrou Campos de Carvalho: “Me lembro que fui

apresentado, na época, ao único escritor que eu conhecia, o Monteiro Lobato. Então eu

levei para ele [o livro] e ele colocou uma tarja ao redor do livro na qual dizia que era

maravilhoso.” (ARANTES, 2004, p. 26).

“A edição foi feita em São Paulo, no Estabelecimento Gráfico Cruzeiro do Sul.”

(ARANTES, 2004, p. 26).

Em 1950, já casado com a pintora Lygia Rosa de Carvalho (BATELLA, 2004, p.

18), passou a trabalhar na sucursal da Procuradoria do Estado de São Paulo, localizada

no Rio de Janeiro, deixando, assim, a capital paulista.

“Entre o final dos anos 1940 e o início de 1950, produziu uma razoável

quantidade de escritos que, entretanto, nunca se empenhou em publicar.” (ARANTES,

2004, p. 27).

Em 1954, publicou o romance Tribo, redigido “entre os meses de janeiro e

fevereiro de 1952.” (ARANTES, 2004, p. 27).

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Em 1956 publica A lua vem da Ásia. “Em Uberaba, a mãe do escritor teria

ameaçado renegá-lo caso viesse a publicar novamente algo semelhante.” (ARANTES,

2004, p. 29).

Vaca de nariz sutil (1961), A chuva imóvel (1963), considerado por Jorge

Amado como o melhor texto do escritor e O púcaro búlgaro (1964), livro preferido de

Campos de Carvalho, completam, juntamente com a novela A lua vem da Ásia, os livros

mais importantes do autor, “considerados marcos da literatura brasileira [...]. Foram

traduzidos para o francês A chuva imóvel e A lua vem da Ásia.” (CARVALHO, 2002,

p.10).

Campos de Carvalho chegou a publicar, após O púcaro búlgaro, uma novela

intitulada Espantalho habitado de pássaros, em uma antologia da Editora Civilização

Brasileira, 1965. (ARANTES, 2004, p. 34).

Entre 1968 e 1978 colaborou com o jornal O Estado de São Paulo

(CARVALHO, 2006). Em 1974 começou a colaborar com o Pasquim. Assinava duas

colunas, uma intitulada As cartas do Campos de Carvalho e a outra, Os anais do

Campos de Carvalho.

Em 01 de março de 1969, aposenta-se da Procuradoria do Estado de São Paulo,

com 53 anos de idade.

Em 1971, “desfez-se dos pertences do casal e se dispôs a uma excursão sem

destino prévio pelos países da Europa.” (ARANTES, 2004, p. 35). A viagem ocorreu

por dois motivos. Por uma busca pessoal e, principalmente, devido a um alarmante

diagnóstico médico, que não se confirmaria, sobre a saúde de sua esposa. Na Europa,

redigiu algumas crônicas que viriam a ser publicadas, posteriormente, no Pasquim.

Ao retornar da Europa,

o casal residiu no bairro de Copacabana até o ano de 1974. Porém, instado pelo desconforto da vida urbana, refugiou-se em Petrópolis, de onde ele passou a enviar seus trabalhos para o Pasquim. Com o declínio do Pasquim, Campos de Carvalho voltou ao silêncio. (ARANTES, 2004, p. 35).

Depois desse período, o escritor se afastou da cena literária brasileira. “Em seus

últimos depoimentos revelou que empreendera várias tentativas malogradas de voltar à

literatura.” (ARANTES, 2004, p. 35).

Vinte anos depois, foi reencontrado por Carlos Felipe Moisés, do Jornal da

Tarde, em São Paulo, no bairro de Higienópolis.

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Carlos Felipe redigiu um artigo para o jornal que reacendeu o interesse pelo

autor. A Editora José Olympio propôs lançar em volume único a Obra Reunida do

escritor. Ele aceitou, desde que a Obra1 contasse apenas com seus quatro principais

romances – ou novelas, como o próprio escritor gostava de denominá-los. A primeira

edição saiu no ano de 1995, composta pelas obras A lua vem da Ásia (1956), Vaca de

nariz sutil (1961), A chuva imóvel (1963) e O púcaro búlgaro (1964).

Antes disso, em 1992, a obra A lua vem da Ásia é citada numa antologia

organizada por Braulio Tavares, intitulada Fantastic, Fantasy and Science Fiction

Literature Catalog e publicada pela Seção de Divulgação Internacional da Biblioteca

Nacional, com o comentário do organizador:

Novela absurdista narrada na primeira pessoa, por um louco. A primeira parte descreve sua vida no manicômio, e a segunda narra suas aventuras depois de escapar juntamente com outros dois internos. Um clássico da novela absurdista no Brasil, estabelecendo as características principais do estilo do autor: uma trama errática, fragmentada; imagens inesperadas e poderosas; numerosos trocadilhos e piadas de humor negro; mas atitude cética e sarcástica quanto ao destino da humanidade. (apud BATELLA, 2004, p. 49)

Walter Campos de Carvalho morreu em São Paulo, no dia 10 de abril de 1998.

As críticas à obra de campos de Carvalho podem ser situadas em três períodos

(ARANTES, 2004, p. 42).

No primeiro período, encontram-se as críticas que foram produzidas quando o

escritor estava em plena atividade, ou seja, entre 1956 e 1964. Nessa época

Campos de Carvalho fez sucesso, ou seja, foi por seus pares reconhecido e cultuado, ao mesmo tempo em que publicava – e vendia – por duas editoras já nascidas fundamentais dentro de nossa história editorial: José Olympio e Civilização Brasileira. (BATELLA, 2004, p. 34).

Mas, nessa primeira fase, foram “poucos os críticos de primeira grandeza que se

ocuparam da obra de Campos de Carvalho” (ARANTES, 2004, p. 43).

No segundo período, encontram-se as críticas que foram produzidas entre as

décadas de 70 e 80, “motivados por ocasião de reedições dos referidos títulos”

(ARANTES, 2004, p. 42).

1 Neste trabalho, uso os termos Obra ou Obra reunida, significando sempre a edição conjunta dos quatro principais livros do autor: CARVALHO, 2002.

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E, por fim, no terceiro período, encontram-se as críticas que foram realizadas a

partir dos anos 90, devido ao lançamento da Obra reunida.

Nestes dois últimos períodos, “suplementos culturais, crônicas jornalísticas,

anexos de diferentes edições das novelas do autor, e, mais recentemente, teses

acadêmicas testemunham um crescente interesse pela obra e pelo escritor.” (ARANTES,

2004, p. 43).

Arantes (2004) conclui, apesar de tudo, que “os comentadores cumpriram seu

papel em relação a Campos de Carvalho” (ARANTES, 2004, p. 43). Eu não sei

exatamente o que ele quer dizer com “cumpriram seu papel”, mas lendo a fortuna crítica

levantada em sua dissertação, que se encontra entre as páginas 41 a 66, percebi uma

crítica pobre, tanto em qualidade como em quantidade. Um escritor como Campos de

Carvalho merece estudos bem mais requintados do que os apresentados.

De acordo com Arantes, a retirada de Campos de Carvalho da cena literária foi

responsável pela criação de uma história de que tal afastamento ocorreu devido “a

depreciações vindas de críticos, corroborando a tese do escritor como alvo de uma

cultura oficial intolerante.” (ARANTES, 2004, p. 43).

Essa história não se sustenta. Não só carece “de documentação que o comprove”

(ARANTES, 2004, p. 36), como as análises existentes eram, com poucas exceções,

“mais de aprovação do que de repreensões.” (ARANTES, 2004, p. 43).

Mesmo assim, ainda hoje existe

uma linhagem de comentários que atribuem à crítica parte da responsabilidade pelo silêncio e retirada do escritor. Nesse aspecto, há registros que apontam para a existência de uma interminável contenda entre os analistas e a obra; dissensão, sempre segundo esses apontamentos, fomentada por uma constante má vontade da crítica em aceitar Campos de Carvalho. (ARANTES, 2004, p. 44).

O levantamento da fortuna crítica feito por Arantes (2004) é mais do que suficiente para derrubar esse mito.

De qualquer forma, o afastamento repentino foi, para o momento, uma atitude imprevista. Na ocasião de seu primeiro silêncio o autor vivia o apogeu da criação e tinha também o reconhecimento cada vez mais crescente do público leitor. (ARANTES, 2004, p. 38).

A invenção do mito da depreciação advinda de uma cultura oficial intolerante

parece ter sido criada como tentativa de explicar esse afastamento.

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Campos de Carvalho é citado em três histórias da literatura brasileira.

Em primeiro lugar, no livro de Alfredo Bosi (2006), História concisa da

literatura brasileira, na oitava parte intitulada “Tendências Contemporâneas”. No

capítulo que leva o nome de “Outros autores intimistas”, encontra-se o parágrafo:

À parte, tentando galgar a fronteira do supra-realismo, lembro Murilo (O Ex-Mágico, 1947), Campos de Carvalho (A Lua Vem da Ásia, 1956) e um veterano, de raízes modernistas, Aníbal Machado (1894-1964), que ensaiou um gênero difícil da prosa de intenções líricas em Cadernos de João (1957) e João Ternura (1965). (BOSI, 2006, p. 421, negrito meu).

Em segundo, no livro organizado por Afrânio Coutinho, A literatura no Brasil,

Antônio Olinto, na segunda parte do quinto volume, intitulada “Estilos de época: era

modernista”, na seção “O modernismo na ficção”, no capítulo de nome “Psicologismo e

Costumismo”, escreve:

[...] e a ficção experimental de Geraldo Ferraz, Patrícia Galvão, Clarice Lispector, Campos de Carvalho, C. Heitor Cony, Autran Dourado, Maria Alice Barroso, Nélida Piñon e Antonio Rocha situando-se em nível diferente do vanguardismo brasileiro de Guimarães Rosa. (COUTINHO, 1986, p. 441, negrito meu).

Em terceiro, na obra A história da literatura brasileira, de Massaud Moisés,

aparece um comentário mais longo, no volume dedicado ao modernismo.

A brisa surrealista que perpassa muito dos ficcionistas até aqui que examinados, notadamente os últimos, se adensaria na figura estranha de (Walter) CAMPOS DE CARVALHO (1916), mineiro de Uberaba. Além de Banda Forra, “ensaios humorísticos” (1941) e Tribo (1954), renegados pelo autor, publicou A lua vem da Ásia (1956), Vaca de Nariz Sutil (1961), A Chuva Imóvel (1963) e O Púcaro Búlgaro (1964). Iconoclasta, raivoso, bem-humorado, mas dum humor negro, o surrealismo de Campos de Carvalho é substancialmente revoltado: o desrespeito à verossimilhança euclidiana, o truncamento dos planos temporais e espaciais, a rejeição do sensato e do bem comportado resultam, na óptica do romancista, dum desejo palpável de violência, mas de violência edificante. Surrealismo agressivo, irônico, desmonta os ajustes convencionais da ordem para instalar o caos gerador dum mundo menos sufocante, menos espartilhado, onde a expansão do “eu”, por intermédio de múltiplas e livres associações, não se confundisse com a loucura: a aparência guarda seriedade, a seriedade inerente à sátira do tipo Elogio da Loucura. De onde o clima surreal, de náusea, à Sartre, ou de disponibilidade dos heróis gideanos, a irreverência causticante, tudo isso refletido na desconexão dos capítulos em favor de liames dramáticos obedientes a uma lógica do absurdo; na ausência ou diminuição da trama; no gosto dos paradoxos; e na linguagem sincopada, que não se contém ante o palavrão, numa época em que ainda não está em moda fazê-lo. (MOISÉS, 1996, p. 477).

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Assim temos alguns termos associados à obra de Campos de Carvalho: intimista,

supra-realismo, psicologismo, surrealista. Juva Batella (2004) acresce outros adjetivos:

anarquista, existencialista e niilista. Além disso, acrescenta: “A loucura, a morte, o amor

e o riso, além de temas caros a toda filosofia que se preze, são temas recorrentes em

toda OBRA REUNIDA” (BATELLA, 2004, p. 37).

Passo, dessa forma, ao estilo do escritor e às características da sua obra. A

maioria das características citadas podem ser encontradas em três movimentos literários:

o expressionismo, o dadaísmo e o surrealismo. Não que esses movimentos expliquem

por completo o estilo do autor, mas são um bom referencial para compreendê-lo.

2.2 A psicologia da composição

Para fazer uma análise do estilo do autor, parto de um princípio que chamo de

“confissão central”. Campos de Carvalho, citado por Batella (2004, p. 30), disse em sua

última entrevista que a

solução é o humor. Você pensa que pode construir alguma coisa. Não pode construir coisa alguma. Na entrevista com o Pedro Bial, ele me perguntou: ‘Você acha que pode construir alguma coisa?’. Eu disse que não. A coisa mais ‘Campos de Carvalho’ que eu conheci é aquela entrevista.

Alguém pode pensar que é um exagero agarrar-se a uma declaração dada pelo

autor em uma simples entrevista. Mas toda a Obra reunida possui elementos que

confirmam essa declaração. De fato, os livros que compõem a Obra apontam

repetidamente para a ilusão que é tentar construir algo. Toda tentativa de efetivar uma

mudança é fracassada. A liberdade é sempre limitada, não passando de liberdade de ver

como as coisas são e de se conformar, se revoltar, ou apenas rir, sem nada poder alterar

que não seja apenas a disposição interior. Ou, como diz um dos personagens, “liberdade

de pensar e de amar” (Lua, p.74)2.

E é por isso que levo essa “confissão” a sério e a coloco como ponto central

nesse tópico. Tendo isso em vista, começo a dissertar sobre o estilo do autor.

2 Nas citações, uso Lua como abreviação de A lua vem da Ásia. O número da página é o da Obra reunida, citada na bibliografia: CARVALHO, 2002.

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Campos de Carvalho se considerava “totalmente anarquista e surrealista”

(CARVALHO apud BATELLA, 2004, p. 30). Também demonstrava grande

consideração por Tristan Tzara, principal expoente do dadaísmo. Como tanto o

surrealismo [ou supra-realismo] como o dadaísmo surgem com grande influência do

expressionismo (TELES, 1997), vou me concentrar nesses três movimentos literários.

Não só por isso, mas como disse anteriormente, esses três movimentos formam um bom

referencial para compreender o estilo do autor.

O expressionismo é um movimento artístico modernista que surgiu em 1905 e

durou até 1933, quando é destruída pelo nazismo [ou nacional-socialismo] (TRINGALI,

1994). É um movimento que está mais interessado “na expressão da vida interior, das

imagens que vêm do fundo do ser" (TELES, 1997, p. 104). A obra de arte é uma

expressão da reflexão individual e subjetiva. Enquanto o “impressionismo capta uma

imagem que vem de fora, o expressionismo traduz o que se passa na alma. O

impressionismo, embora deforme, é um movimento realista, o expressionismo é anti-

realista.” (TRINGALI, 1994, p. 169).

O expressionismo concebe a arte como expressão, da consciência ou da

emotividade, expressão intensa, sincera, instintiva. “A emoção cria uma fantasia livre

que não hesita diante do fantasmagórico e do bizarro.” (TRINGALI, 1994, p. 170).

Valorizar a emoção no lugar da razão. Tem como preceito não imitar a realidade,

mas buscar a espontaneidade, a expressão da necessidade interior, ser anti-realista e

antinormativista.

Todas estas características se encontram em Campos de Carvalho. Há, porém,

algumas diferenças.

Em primeiro lugar, o comprometimento com a política, característica de alguns

grupos expressionistas, não encontra eco em Campos de Carvalho. O autor se filiou ao

movimento anarquista, quando jovem, mas depois abandonou a ligação com a política.

Os temas relacionados ao social e ao político que aparecem em sua obra são expressões

de questionamentos internos e da angústia existencial e não devem ser interpretados

como uma crítica à sociedade atual ou ao sistema de governo. A crítica à sociedade que

aparece em sua obra é uma crítica a toda e qualquer sociedade. Mas essa diferença não é

muito significativa, pois também houve grupos expressionistas que não se vincularam à

política.

Em segundo lugar, a expressão de Campos de Carvalho está relacionada mais

com a escrita automática do surrealismo do que com a tentativa de dar uma expressão à

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emoção. Mas a emoção também é expressa através da escrita automática. Dessa forma,

essa diferença também fica minimizada.

Por fim, o “expressionismo adota uma filosofia espiritualista e se indigna contra

os falsos valores de uma sociedade pretensiosa e falida que gesta em seu seio uma

guerra.” (TRINGALI, 1994, p. 169). Em Campos de Carvalho não há uma “filosofia

espiritualista”. Apesar de existir uma crítica à sociedade e à guerra. Mas não porque a

nossa sociedade é falida, mas porque qualquer sociedade é, necessariamente, falida.

Não faz a menor diferença trocar uma por outra, ou tentar criar uma nova. Creio ser essa

a diferença essencial.

Como podemos “considerar como herança do expressionismo: [...], o dadaísmo,

o surrealismo...” (TRINGALI, 1994, p. 170), cabe, agora, uma investigação sobre esses

dois movimentos literários. Não apenas por esse motivo, mas porque, como citado

acima por Alfredo Bosi e Massaud Moisés, Campos de Carvalho pode ser considerado

um escritor surrealista. E, além disso, pretendo mostrar que a identificação maior do

estilo do autor é com o dadaísmo e não com o surrealismo.

O dadaísmo “foi o mais radical movimento intelectual dos últimos tempos”

(TELES, 1997, p. 131): “niilista, anárquico, subversivo, iconoclasta, destrutivo.”

(TRINGALI, 1994, p. 202). Todos esses adjetivos podem ser usados para definir a obra

de Campos de Carvalho.

O movimento nasce em Zurique, na Suíça, e “se estende de 1916 a 1922”

(TRINGALI, 1994, p. 201). Um grupo de seis pessoas se reúne num bar chamado

“Cabaré Voltaire” e promovem uma série de eventos culturais de caráter inovador.

Entre eles está Tristan Tzara, que se tornará líder do movimento.

O nome do movimento vem da palavra “dadá”, escolhida a esmo, e que,

independente de seu significado, passa a designar o estado de espírito do grupo, que era

de revolta contra a sociedade (TELES, 1997, p. 129). O espírito de revolta contra o

social está presente em toda a Obra de Campos de Carvalho.

A obra dadaísta é caracterizada pela “improvisação, pela desordem, pela dúvida,

pelo predomínio da percepção, pelo agnosticismo e pela oposição a qualquer tipo de

equilíbrio, tanto na forma, quanto na homogeneidade de idéias e sentimentos.” (TELES,

1997, p. 132).

Os dadaístas caíram no irracionalismo e passaram a desenvolver recursos como

o automatismo psíquico e a livre associação de idéias e metáforas (TELES, 1997). Esses

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recursos serão desenvolvidos pelos surrealistas, e foram utilizados por Campos de

Carvalho na produção de sua obra.

Outro recurso de composição dos dadaístas é o uso do acaso, sem levar em

conta nenhuma participação ativa do artista, como, por exemplo, sortear palavras

escritas em papéis e depositadas num chapéu e escrevê-las na ordem do sorteio

(TRINGALI, 1994, p. 205). Ou jogar tintas de diversas cores numa tela, com os olhos

fechados (TRINGALI, 1994, p. 207). Este último recurso não é usado pelo autor

estudado. Passo agora para o surrealismo.

O surrealismo é um “movimento estético [que surge] no interior do Dadaísmo e

com ele se [confunde] numa série de aspectos” (MOISÉS, 1992, p. 485). Surge com

André Breton em 1924, data da redação do primeiro manifesto surrealista (TRINGALI,

1994, p. 209). Nesse mesmo ano é fundado um instituto de pesquisas surrealistas

(TRINGALI, 1994, p. 209). O nome “surrealismo” foi escolhido por A. Breton e Ph.

Soupault, como homenagem a Apollinaire (TRINGALI, 1994, p. 209), que “havia

qualificado o seu livro Les mammelles de Tirésias (1917) como um ‘drame surréaliste’.”

(TELES, 1997, p. 173).

O surrealismo desenvolve a escrita automática, já iniciada pelos dadaístas, e

começa a explorar o lado misterioso da natureza humana, através de praticas espíritas,

alquímicas, mágicas e do estudo do ocultismo (TELES, 1997, p. 170). Mas esse lado

misterioso, não se identifica com a transcendência, mas sim com algo desconhecido,

mas imanente, como o inconsciente.

Liga-se a dois ideais. Libertar o homem das repressões inconscientes e da

opressão do próprio homem. Por isso, relaciona-se com a psicanálise e o marxismo. Em

Campos de Carvalho, existe o ideal de libertar o homem de si mesmo e da opressão de

outro homem, mas esse ideal é apenas um anseio que se sabe impossível. O autor, como

mostrado na “confissão central”, não acredita que algo possa ser construído. O ideal de

libertação, que aparece em toda a Obra, é a expressão de um desejo de liberdade, e não

uma proposta de ação. Como no expressionismo, a realidade é modificada de acordo

com os desejos íntimos do escritor. Nesse ponto, Campos de Carvalho se distancia dos

surrealistas.

O surrealismo contrapõe-se ao dadaísmo por não deformar as palavras e a

sintaxe. Campos de Carvalho segue o surrealismo nesse ponto. Apesar de haver no autor

uma tendência para forçar os limites da linguagem, essa não é deformada, e a sintaxe é

respeitada.

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Temos, até aqui, várias características encontradas na Obra reunida.

Como no expressionismo, a Obra é uma expressão da reflexão individual e

subjetiva, “da vida interior, das imagens que vêm do fundo do ser" (TELES, 1997, p.

104), valoriza a fantasia livre, a emoção no lugar da razão, a espontaneidade, a

expressão da necessidade interior. A Obra é, nesse sentido, anti-realista, pois relata a

realidade de acordo com sua reinterpretação subjetiva. Campos de Carvalho também se

mostra indignado “contra os falsos valores de uma sociedade pretensiosa e falida que

gesta em seu seio uma guerra.” (TRINGALI, 1994, p. 169).

Como no dadaísmo, a Obra é marcada pelo niilismo e pelo anarquismo; é

subversiva, iconoclasta e destrutiva. (TRINGALI, 1994).

O niilismo é a ausência de um ideal que preencha a lacuna deixada pelo declínio

do ideal cristão e das crenças otimistas da modernidade, como a crença no progresso

indefinido e a crença na força da racionalidade. Pode significar também a aceitação de

contradições na estrutura da realidade, e até mesmo a dúvida em relação à existência de

uma estrutura estável da realidade. É totalmente relativista e negador de qualquer valor

absoluto ou verdade absoluta [“Vivo criando verdades a torto e a direito, cada dia é uma

verdade diferente, sem querer até que disse uma coisa que preste: cada dia uma verdade

diferente” (Sutil, p. 189)3].

A principal característica do niilismo é a descrença em qualquer tipo de ideal. E

essa descrença aparece na “confissão central” e na Obra:

Tudo é possível neste mundo de infinitas surpresas, e o que me resta, como a eles, é apenas aguardar que os acontecimentos se sucedam por si mesmos e que eu venha a revelar um dia, por bem ou por mal, meu terrível segredo, ou – o que será mais triste – minha desesperada inocência (Lua, p. 59).

Houve um chinês que disse, resumindo tudo numa frase de uma clareza meridiana e que no entanto desnorteia os ingênuos ledores de bússola e seus fiéis discípulos: O caminho que é um caminho não é o verdadeiro caminho. Eu, quando percebo que o meu caminho vem assinalado nos manuais de geografia ou nos tratados de filosofia de vinte shillings, trato logo de desviá-lo para a esquerda ou para a direita, quando não simplesmente para as nuvens, tão certa é a minha certeza de que o caminho aberto por outro não pode guiar meus passos de boêmio errante, como seria absurdo um leão (por espírito de comodidade) preferir uma picada aberta na selva pelo explorador, em vez da própria selva que para ele é um caminho permanente, sem riscos e sem mistérios. Nosso caminho tem que ser como nosso esquife, único e individual, a menos naturalmente que prefiramos desintegrar-nos no ar, numa explosão de misticismo barato e de grande efeito, às barbas de Deus inexistente. (Lua, p. 145).

3 Nas citações, uso Sutil como abreviação de Vaca de nariz sutil. O número da página é o da Obra reunida, citada na bibliografia: CARVALHO, 2002.

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Já a anarquia significa ausência de governo. Pode significar também, uma

sociedade que possui como fundamento um acordo social livre, firmado por pessoas

independentes, onde ninguém possa impor sua vontade e onde todos possam fazer o que

quiserem, desde que promova o bem-estar geral.

É inegável que ideais anarquistas aparecem na Obra reunida. O desprezo pelo

governo, pelas figuras que representam as autoridades, como prefeitos, militares, bispos

e educadores, o ideal de destruir a sociedade atual e construir uma nova tendo a

liberdade do indivíduo como característica central. Mas os ideais anarquistas que

aparecem na Obra são apresentados como ideais impossíveis, como “desvarios de um

espírito tresnoitado” (Lua, p. 147), como diz o lunático do primeiro livro, e continua:

“bastará que você calce os sapatos para que a realidade volte a funcionar sob seus pés, a

dura e feia realidade de todos os dias, inclusive feriados e dias santos.” (Lua, p. 147).

O agnosticismo [“às barbas de Deus inexistente.” (Lua, p. 145)] e o

irracionalismo [“Aos dezesseis anos matei meu professor de Lógica. Invocando a

legítima defesa - e qual defesa seria mais legítima? – logrei ser absolvido por 5 votos

contra 2, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris.”

(Lua, p. 36)], característicos do dadaísmo, também estão presente na Obra.

Por sua vez, o automatismo psíquico e a livre associação de idéias e metáforas

(TELES, 1997), recursos desenvolvidos pelos surrealistas, foram utilizados por Campos

de Carvalho na forma da técnica da “escrita automática”.

Como no surrealismo, a escrita automática é utilizada pelo autor, e, através dela,

ele busca explorar o lado misterioso da natureza humana (TELES, 1997, p. 170), não o

identificando com a transcendência.

Batella (2004, p. 52) acrescenta alguns adjetivos ao estilo de Campos de

Carvalho. Para ele, o autor pode ser considerado um “autor intimista e por isso faz um

romance psicológico, movido por uma prosa subjetivante.”.

Todos os livros estão escritos em primeira pessoa. O personagem tem como

“dinâmica [...] a interiorização do seu conflito e [...] sua inaptidão ao meio.”

(BATELLA, 2004, p. 54). Todos eles narram suas experiências, mostram o mundo

através de seus olhares particularizados, revelam seus conflitos, suas angústias, e as

amarram de tal forma com os fatos, que fica difícil, senão impossível, falar de

objetividade, ou de realismo. É difícil separar o delírio do sonho, do pensamento, do

fato vivido, da loucura, do mundo “de fora”. É como se o “objetivo” fosse apenas uma

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forma de descrição subjetiva. A descrição subjetiva que for aceita pela maioria receberá

o rótulo de realidade.

Com estas características, a prosa de Campos de Carvalho pode ser definida

como intimista, psicologista e subjetivista, como já foi citado.

O único adjetivo aplicado à Obra que ainda não foi explorado, é o

“existencialista”.

O existencialismo é um movimento filosófico com manifestação no campo

literário. Nesse caso, “o texto literário funciona como instrumento de pensar filosófico”

(MOISÉS, 1992, p. 218). Campos de Carvalho disse que “Stanislaw Ponte Preta o

considerava um autor filosófico” (BATELLA, 2004, p. 31), e acrescentou: “Aí, eu

percebi que era filósofo à minha maneira. Sempre escrevi assim, não era deliberado.”

(BATELLA, 2004, p. 31). Mas, por que se expressar pela literatura? Isso ocorre pela

identidade básica entre literatura e existencialismo, ambos centram sua atenção “no

desvendamento da existência.” (MOISÉS, 1992, p. 218). Além disso, a principal

característica do existencialismo é enfatizar sempre o indivíduo, o homem concreto

[“cada um fechado no seu pijama, na sua cicatriz.” (Sutil, p. 155)], que busca um

sentido para a vida. Assim, é impossível falar do indivíduo em termos universais. Daí a

impossibilidade de falar do ser humano concreto através do discurso científico ou

filosófico. Por isso, os existencialistas se concentram mais nas obras de arte do que nas

obras técnicas.

O indivíduo concreto é livre, de uma “liberdade tão plena que lhe dá a sensação

de vagar no reino do gratuito.” (MOISÉS, 1992, p. 218), o que gera “a angustia, o tédio

existencial, a náusea infinita [...] e por último, o vazio do nada [...] identificado com a

morte soberana e afinal vitoriosa.” (MOISÉS, 1992, p. 218).

Os temas caros ao existencialismo, de fato, aparecem em toda Obra de forma

explícita. A exceção é o romance O púcaro búlgaro, onde tais temas estão presentes de

forma implícita.

Todos os personagens vivem angustiados em busca de um sentido, com

consciência da liberdade que possuem, bem como da total individualidade que os

caracterizam.

No decorrer do trabalho, voltarei a esses pontos que caracterizam o estilo da

Obra. No momento, apresentarei a maior proximidade do estilo do autor com o

movimento dadaísta.

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Campos de Carvalho se afasta do dadaísmo por não levar em conta o acaso em

sua composição. Mas se utiliza da técnica de automatismo psíquico, ou seja, dar vazão à

livre associação de idéias, técnica essa que foi criada pelos dadaístas e desenvolvida

pelos surrealistas, através da escrita automática. Campos de Carvalho disse que “não

reescrevia nada” (BATELLA, 2004, p. 30). Dois exemplos de livre associação podem

ser encontrados no Anexo A.

O autor, por outro lado, se afasta do surrealismo no que esse possui de “essencial

[...]: a libertação do homem que se revela escravo de si mesmo e dos outros homens.”

(TRINGALI, 1994, p. 211). Como comentado acima, Campos de Carvalho não alimenta

esse ideal. Ao contrário, o considera uma ilusão, como visto na “confissão central”, e,

como ficará evidente no decorrer deste trabalho, na Obra reunida.

Por outro lado, o autor utiliza a arma de combate do dadaísmo: o riso. “Ri-se de

tudo, nada leva a sério, senão o próprio riso [...]. Ridiculariza tudo. Insulta, despreza.”

(TRINGALI, 1994, p. 202). Tringali parece estar falando da própria Obra reunida!

Aliás, a idéia da maior identidade do autor com o dadaísmo, surgiu quando eu lia

o próprio livro do Dante Tringali, quando ele escreve:

Em 1921, realiza-se um processo simulado contra o escritor M. Barrès (1862-1923), tido e havido como protótipo máximo dos falsos valores burgueses. A. Breton e T. Tzara se desentendem, pois o primeiro levava tudo a sério, enquanto o segundo se ria de tudo, inclusive do próprio processo. (TRINGALI, 1994, p. 209, negrito meu).

Lembrando-se da confissão central: “A solução é o humor” (BATELLA, 2004,

p. 30). E ainda, Campos de Carvalho disse “que andava lendo apenas seus próprios

livros e que ultimamente só fazia procurar aquilo que nunca precisou encontrar: o

humor” (BATELLA, 2004, p. 30).

Ao ler o Manifesto dadá 1918, deparei-me com a seguinte passagem: “Eu redijo

um manifesto e não quero nada, eu digo portanto certas coisas e sou por princípio contra

os manifestos, como sou também contra os princípios” (TELES, 1997, p. 137). Se

alguém me apresentasse essa frase e me dissesse se tratar de um escrito inédito de

Campos de Carvalho, eu acreditaria, tamanha a afinidade, que pode ser apreciada num

simples fragmento.

De qualquer forma, não há como reduzir o escritor a um movimento literário.

Mas acredito que ter em mente as características do dadaísmo e priorizá-las ao ler a

Obra reunida, se constitui numa excelente chave de leitura.

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No decorrer do trabalho volto a comentar em diversos pontos diferentes, as

características explicadas acima.

Como já foi dito, a Obra reunida de Campos de Carvalho é formada por quatro

livros, escritos sempre em primeira pessoa, que podem ser encarados como um só texto.

São quatro formas diferentes de falar de um mesmo assunto, sendo que uma esclarece e

aprofunda as demais. Nada mais natural, então, do que tratá-las como uma única obra,

um “grande projeto narrativo cujo dono é um só: o narrador-personagem. É ele o centro

da trama, e a trama é sua angústia.” (BATELLA, 2004, p. 36).

O primeiro livro da Obra, A lua vem da Ásia, está dividido em duas partes, a

primeira, intitulada “Vida sexual dos perus”, contém vinte capítulos, e a segunda,

intitulada “Cosmogonia”, quinze.

O livro apresenta, em sua primeira parte, como personagem, um doente mental

que está internado num hospital psiquiátrico, mas acredita estar de férias num hotel

internacional. O doente descobre a verdade sobre sua situação depois de uma sessão de

eletrochoque. Ele não se encontra num hotel internacional, mas é prisioneiro de um

campo de concentração! A partir desse momento, ele procura e consegue fugir de sua

prisão.

A segunda parte do livro narra as aventuras do lunático no mundo, fora do

hospital, em busca de um alívio para o seu sofrimento. Se na primeira parte o doente

busca se libertar do campo de concentração, na segunda ele busca se libertar da prisão

que é a própria estrutura social.

Os nomes das duas partes do livro são bem significativos. Na primeira parte, os

perus representam os seres humanos que vivem conformados com seu cativeiro,

correndo apenas atrás de alguns prazeres [daí, vida sexual], enquanto o abatedor, que

nem imaginam existir, não chega, mas que chegará inevitavelmente.

O termo “vida sexual” demonstra uma imagem de ser humano parecida com a

que podemos encontrar nos versos de Fernando Pessoa, “Sem a loucura que é o homem/

Mais que a besta sadia,/ Cadáver addiado que procria?” (PESSOA, 2003, p. 76). Os

perus são os homens sem loucura. O personagem é ele próprio um louco.

Já o termo “Cosmogonia”, que significa criação ou organização de um universo,

representa a tentativa do personagem de construir ou organizar seu próprio mundo, que

terá como categoria principal, a liberdade.

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A própria forma de nomear os capítulos é significativa, assim como ocorre nos

demais livros [o Apêndice B apresenta, de forma esquemática, a organização das partes

e capítulos de cada um dos livros].

Na primeira parte, os capítulos recebem nomes aleatórios, fazendo coro à própria

loucura do personagem. Já na segunda parte, recebem como nomes, de forma

organizada, as letras do alfabeto, representando a tentativa de organizar um cosmos.

O livro termina com o suicídio do personagem, dando a entender que a morte é a

única forma de libertação.

O segundo livro, Vaca de nariz sutil, o menor livro da Obra reunida, é formado

por treze capítulos numerados com algarismo arábicos.

O livro narra a vida de um neurótico de guerra numa pensão paga pelo Estado. O

acontecimento central do livro é a paixão do personagem por uma jovem menina,

portadora de um retardo mental, filha de um zelador de cemitério. A paixão domina o

personagem e o atormenta durante toda a história, até culminar no estupro da jovem,

que ocorre no cemitério, em cima de uma lápide. Depois de ser julgado e libertado, o

personagem viaja de trem para um lugar desconhecido.

Como o personagem do primeiro livro, o protagonista da nova história

apresenta-se como um lunático, um louco. Sua neurose de guerra está mais para uma

psicose.

A Chuva Imóvel, o terceiro e mais enigmático livro da Obra, dividido em três

partes intituladas “O centauro a cavalo”, “Girassol, Giralua” e “Zona de treva”, narra a

vida subjetiva de um suicida.

A primeira parte começa com uma seqüência de imagens mentais do

personagem. A narrativa será interrompida ainda na primeira parte para que o

personagem seja apresentado, e será retomada apenas na última parte. O protagonista é

um simples funcionário de um arquivo, com uma vida vazia, repleta apenas de tédio. O

tédio é tamanho que leva o personagem ao suicídio [lembremos-nos de que o tédio e a

libertação pela morte são temas caros para os autores existencialistas].

O nome da primeira parte está relacionado às alucinações do personagem, que

representam um ato de debruçar sobre si mesmo para descobrir sua própria essência.

Assim como o centauro já é um tipo de cavalo e por isso não precisa procurar o cavalo

que o carrega, pois não há nenhum, também o indivíduo que se debruça sobre si mesmo

em busca de quem ele realmente é nada encontrará. O título da primeira parte já

antecipa o fim da busca do personagem.

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A primeira parte termina com o personagem decidindo se se enforca ou não.

Tudo dependerá do resultado de sua busca, e ele busca a si mesmo.

A segunda parte é formada por reminiscências do personagem. Ele recorda sua

infância, de um conhecido que perturbava sua vida, que o ridicularizava, que lhe

aplicava algumas surras. Lembra-se do sentimento enigmático que sentia por uma

menina, filha da professora de piano de sua irmã, sentimento que depois foi transferido

para sua própria irmã gêmea e que se revelou como um desejo sexual, incestuoso nesse

segundo caso. Esse acontecimento explica o título dessa parte do livro [“Girassol,

Giralua”]. Ele e a irmã são como um só ser, ou duas partes de um só ser.

Recorda-se de seu contato com a morte. A morte da professora de piano e de sua

filha, a morte do avô, do pai, e principalmente do irmão. A morte do irmão é

extremamente significativa e modifica a vida do personagem.

Por fim, recorda-se de como começou a trabalhar no arquivo, depois de recordar

a morte do irmão, no velório do pai. Aqui termina a segunda parte.

A terceira parte é a única com capítulos nomeados, na forma de uma contagem

regressiva [que pode ser conferida no Apêndice B], indicando a proximidade da morte.

O delírio da primeira parte é retomado e prossegue até a morte do personagem. Esse

delírio possui como temas principais a indagação pela liberdade e pelo próprio ser do

personagem. Dependendo da resposta a estas perguntas, ele pode decidir continuar

vivendo ou decidir de vez pela morte.

Mas a descoberta não lhe agrada nem um pouco. Ele descobre que não possui

uma essência una, um eu, e que a liberdade é uma quimera, e ele é apenas uma espécie

de marionete. A revolta que surge diante dessa descoberta leva-o a decidir em definitivo

pela morte.

O livro O púcaro búlgaro é dividido em cinco partes, sendo a quarta parte a

mais importante, formada por um diário que narra os preparativos para uma expedição

que visa descobrir a Bulgária, que até então era considerada uma ficção, como o

continente perdido do Mu ou a Atlântida.

O livro começa com um acontecimento marcante, descrito na segunda parte, que

leva o personagem a organizar a já citada expedição. Os acontecimentos vão sendo

relatados durante todo o livro até o desfecho final, que ocorre na última parte, intitulada

“a partida”, que não passa de uma partida de cartas e não da partida rumo à Bulgária,

como era de se esperar.

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É um livro diferente dos demais pela presença de grande número de diálogos,

que estão quase que ausentes nos outros livros. Mesmo assim a narrativa ainda é em

primeira pessoa, e a história é mostrada apenas sob a perspectiva do personagem

principal.

Se os dois primeiros livros apresentam personagens loucos, O púcaro búlgaro é

ele mesmo uma peça literária totalmente louca, fugindo da lógica do mundo real. A

própria forma de enumerar os dias que formam o diário ilustra bem essa quebra da

lógica [conferir Apêndice B]. Já o personagem do livro A Chuva Imóvel é o único que

não se apresenta como um louco. Mas a seqüência de suas imagens mentais, que

formam mais da metade do livro, é tão surreal quanto os demais textos que compõem a

Obra reunida. A luta contra a lógica em favor do irracional, do Inconsciente, é uma

constante nos quatro livros.

Como já disse acima, outra característica comum aos quatro livros é que todos

são narrados em primeira pessoa, “uma pessoa sempre em guerra, uma primeira pessoa

a debater-se e a debater a si mesma diante de uma sociedade problemática e

massificante.” (BATELLA, 2004, p. 38).

Além disso, todos os textos possuem uma mesma estrutura, apresentam os

mesmos pontos centrais e um mesmo processo. Esta percepção da estrutura comum da

obra e do processo único que se repete nos quatro livros, como descreverei, é uma

descoberta minha. Não encontrei nada parecido em nenhuma das fontes pesquisadas.

Apresento os pontos centrais com os nomes de “trauma”, “busca”, “encontro” e

“resposta”. Esses são os pontos que se relacionam sempre da mesma forma constituindo

assim o mesmo processo. O trauma apresenta um problema e cria a necessidade de

buscar [busca] uma solução para o mesmo. Na busca da solução para o problema, o

personagem se depara com uma realidade [encontro] e, diante dessa, o personagem

reage [resposta] de uma forma específica.

O trauma está extrinsecamente ligado ao tema do esquecimento. Há um “objeto”

misterioso que provoca o trauma, e uma tentativa de ignorá-lo, de deixá-lo de fora da

vida, no esquecimento.

O trauma apresenta-se de várias formas. Uma primeira forma representa o

processo de educação de uma criança. A educação é vista como um processo violento

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em que a natureza do indivíduo, que é marcada pelo Desconhecido4, pelo Inconsciente,

é moldada e encarcerada com categorias da razão. Assim, há uma ruptura definitiva

entre a vida plena que é a manifestação da natureza Inconsciente, e a vida artificial

criada pela sociedade. E é por isso que essa última é comparada com a morte, uma

morte em vida.

Essa primeira forma do trauma apresenta um conflito entre duas forças, a natural

e a social. A fala do personagem é uma fala “contra a sociedade que o esmaga, as

instituições que o emparedam, a psicologia que o normaliza, a linguagem que o

ensurdece e cala.” (BATELLA, 2004, p. 39). Existem, assim, dois sujeitos em conflito,

um sujeito do inconsciente e outro sujeito da razão. São esses os dois nomes que uso

para identificar a(s) força(s) que advêm da natureza e a(s) força(s) que advêm da

formação social. As duas instâncias levam o indivíduo a se comportar de uma forma ou

outra, merecendo, por isso, o nome de sujeito, “um sujeito em crise que se revolta e

decide falar.” (BATELLA, 2004, p. 39).

A primeira forma do trauma pode ser vista também como um primeiro momento,

um primeiro trauma, que é seguido por um período de esquecimento. É como se o

indivíduo tentasse esquecer o conflito, evitá-lo, fingir que ele não existe.

É durante o período de esquecimento que pode ou não ocorrer um segundo

trauma, um evento que mostra a irreversibilidade do conflito entre a natureza e o social.

Esse conflito é identificado com o sofrimento típico da vida humana, podendo receber o

nome de angústia, ou de tédio. É um sofrimento que está sempre presente, apesar da

maioria das pessoas tentar não levá-lo em conta, fingindo que ele não existe. Todos os

personagens da Obra despertam para o sofrimento com o segundo trauma.

Outra forma de perceber esse processo é considerar o trauma como um objeto

sempre presente, que pode ser ignorado, escondido, mas que, mais cedo ou mais tarde, a

pessoa se depara com ele. O Apêndice A ajuda a visualizar essa idéia.

Existe, dessa forma, uma dialética trauma/esquecimento que se repete, enquanto

o personagem busca uma solução para essa dor.

No primeiro livro, o trauma é a sessão de eletrochoque sofrida pelo paciente.

Até então ele vivia iludido, pensando estar num hotel internacional. A partir desse

momento, ele mergulha no sofrimento e passa a ter certeza de que está num campo de

4 Quando uso os termos “Desconhecido”, “Inconsciente” e “Mistério”, com o sentido dado pelos dadaístas e pelos surrealistas, sempre uso a inicial maiúscula. Por se tratar de um termo técnico e porque o próprio autor assim o faz.

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concentração. O primeiro trauma aparece apenas sugerido em alguns momentos, quando

o lunático relembra sua vida.

A busca do prisioneiro passa a ser por liberdade. Depois de fugir do hospital-

prisão, ele tenta fugir da estrutura social que também aprisiona. Existe a possibilidade

de efetivar essa segunda fuga?

A resposta a essa pergunta constitui o encontro. A forma de se libertar da

própria estrutura social é subvertendo a própria ordem social. Num primeiro momento,

parece que o personagem não está disposto a efetivar a mudança. Logo após, a

impressão que o livro passa é de que o próprio personagem parece não acreditar que a

mudança é possível.

A resposta do personagem ao encontro, ou seja, a atitude dele diante da

impotência para mudar a sociedade e assim acabar com o conflito, com o sofrimento, e

assim instaurar a liberdade, é o suicídio. Com isso ele parece dizer que a única forma de

realmente se libertar é através da morte. O que não condiz com o ideal dos surrealistas,

como já foi visto.

Mas como o autor não cometeu suicídio, fica sugerido que uma outra forma de

alcançar a liberdade é através da arte, tese bastante cara ao surrealismo. Através da arte,

o Inconsciente se manifesta e rompe a muralha do racional construída pela sociedade,

produzindo, assim, um efeito libertador. Mas, mais ainda, “o riso e a arte” são

consideradas as “armas de combate” dos dadaístas, conforma Dante Tringali (1994, p.

202).

O sujeito nesse primeiro livro é duplo. O sujeito da razão, construído pela

sociedade através do processo de educação, e o sujeito do inconsciente. Ambos em

conflito. O sujeito pode ser também multifacetado, pois vários são os papéis sociais,

vários são os caminhos para se enquadrar. Vários também são os impulsos do

Inconsciente.

No segundo livro, o trauma é representado pela guerra e o processo de

educação é apontado como autor do trauma original e descrito como uma violência. A

guerra é a própria educação.

A busca, nesse segundo livro, é representada pela paixão do personagem pela

jovem filha do zelador de um cemitério. Essa personagem representa a pureza da

infância ainda não corrompida pela educação. Além disso, ela mora num cemitério, o

que ressalta uma relação dessa com a morte. E o seu nome, Valquíria, é o mesmo nome

das filhas do deus escandinavo Ódin, que levavam os guerreiros mortos em combate

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para o paraíso. E Valquíria ainda possui um retardo mental, ou seja, não está apta a

receber uma educação adequada, a ser adestrada pela lógica.

O que mais encanta o personagem é um brilho no olho de Valquíria, brilho que

lembra o olhar de uma vaca pintada num quadro intitulado “Vaca de nariz sutil”, do

pintor Dubuffet. Olhar que o personagem identifica com a sabedoria.

A busca é, dessa forma, pela inocência da infância, pela sabedoria existente no

período que antecede a educação.

O estupro de Valquíria sob uma lápide no cemitério representa o encontro. O

personagem tenta se unir com a inocência, com a infância, com a morte. O que não dá

certo. De forma rápida ele é preso e julgado, e novamente enquadrado no sistema social.

O próprio personagem confessa que em vão procurou a sabedoria da vaca de nariz sutil

entre os homens e nunca a encontrou. O que dá a entender que é impossível alcançar

essa sabedoria, voltar a ser inocente.

A resposta do personagem ao encontro é a adaptação à sociedade. Ele termina

sua história viajando, não se sabe para onde, dentro de um trem. O trem, transporte

preso em trilhos, é a própria imagem do ajustamento ao social. Diferente da bicicleta,

que no terceiro livro irá representar a liberdade do irmão morto.

O personagem está consciente de sua adaptação. E diz que apenas finge estar

adaptando-se, que a qualquer momento ele pode se libertar se assim o quiser. Discurso

pouco convincente. Parece que ele quer se enganar para conseguir continuar vivendo, ou

seja, dá-se um novo esquecimento, o trauma é novamente encoberto.

O sujeito, nesse segundo livro, é apenas o sujeito que deseja a liberdade total,

deseja ficar livre de qualquer amarra social. É apenas o sujeito do inconsciente,

brigando para não ser enquadrado. Briga em que sai perdendo. Pelo menos

temporariamente, já que a morte, um dia, vai chegar.

Já o livro A chuva imóvel, em sua segunda parte, mostra com clareza o efeito do

primeiro trauma que ocorre no processo de educação. Fica claro que o processo

educacional não está apenas relacionado à educação no sentido estrito, escolar, mas sim

ao processo de inserção do indivíduo na cultura.

Acontece uma seqüência de traumas. A morte da filha da pianista, a morte do

avô, a proibição de se relacionar com a irmã, a morte do irmão e a morte do pai. Cada

um desses acontecimentos está ligado aos demais. O trauma que provoca maior

sofrimento é a morte do irmão.

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A busca é pela identidade. Se o personagem descobrir o seu verdadeiro eu, o

verdadeiro sujeito de suas ações, descobrirá um ser uno, pacificado. Com isso o conflito

ou trauma, que gera sofrimento e angústia, acabaria.

O encontro acontece dentro do delírio do personagem, que está se enforcando,

cometendo suicídio.

O sujeito uno buscado não existe. Pior, não há dois sujeitos em conflito. O

sujeito da razão e o sujeito do inconsciente são um só. A sociedade apenas constrói

aquilo que o Desconhecido a ordena construir. O sofrimento é um capricho do

Desconhecido que usa o personagem como marionete e o faz andar, sofrer, entrar em

conflito, pensar. O conflito não é entre natureza e sociedade, sujeito da razão e sujeito

do inconsciente. O conflito é o trauma, um “objeto” que está sempre presente, que

aparece em alguns eventos da vida mas não se identifica com nenhum deles. A única

solução é mesmo a morte.

Diante desse encontro, a resposta do personagem é o nojo e o total desrespeito

ao Inconsciente. A liberdade é uma categoria chave para o autor. Diante da total falta de

liberdade, o personagem passa a ignorar o Desconhecido e se apegar a sua liberdade

fictícia, ao seu eu inexistente. É até triste ver o desespero do personagem no final do

livro, negando o fato e se apegando ao delírio enquanto morre.

Aqui, a ruptura com o surrealismo fica mais clara. O Desconhecido passa a ser

visto como algo ruim, maléfico, e a sociedade não é mais encarada como mania humana

de enquadrar o Desconhecido, como disse Breton em seu primeiro manifesto (TELES,

1997) mas como a própria expressão do Desconhecido.

O último livro da Obra é bem mais simbólico que os anteriores, e com isso

ajuda a lançar luzes para melhor compreender os três primeiros livros. Por sua vez, os

primeiros livros apresentam farto material para preencher o simbolismo presente na

última peça literária do escritor.

O trauma é a visão de um púcaro búlgaro no museu da Filadélfia. Esse evento

se torna traumático porque, de acordo com o personagem, todos sabem que a Bulgária

não existe.

A busca, então, é pela Bulgária. A Bulgária simboliza a liberdade, a ausência de

sofrimento, o sujeito uno e sem conflito, o paraíso, a infância, a inocência, o brilho do

olhar de Valquíria, o olhar cheio de sabedoria da vaca de nariz sutil.

O encontro se dá quando o personagem descobre que um dos membros da

expedição que partirá em busca da Bulgária é búlgaro. Mas ele mesmo nunca conheceu

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a Bulgária, pois veio para o Brasil, de forma mais específica, para Quixeramobim,

Ceará, quando ainda era criança. Assim, não fica comprovada a existência da Bulgária.

Aliás, até a existência do Ceará é posta em dúvida.

A resposta, ou seja, a reação do personagem ao encontro, é a partida. Mas não a

partida rumo à Bulgária, como era de se esperar, mas uma partida de cartas. Essa

resposta é mais positiva do que a do livro anterior. É uma espécie de fuga, como no

livro Vaca de nariz sutil. É como se o personagem dissesse: vamos jogar cartas, viver,

seguir as regras reclamando, discutindo, conversando, bem distraídos.

O sujeito nesse caso é completamente ignorado. Podemos interpretar isso como

sendo o mais perfeito surrealismo. O Desconhecido não aparece. Aparece apenas a

Bulgária. E se alguém disser que ela é símbolo do Desconhecido, esse alguém está

cometendo um erro grave, que é tentar moldar aquilo que escapa a todas as categorias, o

Mistério, o Inconsciente. O sujeito não aparece. O que aparece é o púcaro búlgaro e a

Bulgária. E só. E mesmo assim é bem provável que essa não exista.

Uma segunda forma de interpretar o texto é levando em consideração o final do

livro A chuva imóvel. O Desconhecido merece desprezo. Por isso não há o menor

vestígio dele. Ou ainda, ele é desprezado ou ignorado pela impossibilidade de ser

colocado em palavras.

Pretendo agora, refazer o processo trauma, busca, encontro e resposta,

mostrando como tais pontos aparecem em cada um dos livros. Depois disso terei

apresentado um material que possibilitará uma visão mais clara sobre a concepção de

sujeito na Obra reunida.

Seria interessante, nesse momento, o leitor consultar o Apêndice C, que

apresenta um quadro comparativo dos quatro livros, tendo como critério o

processo/estrutura comum a eles.

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CAPÍTULO 3: ESTRUTURA / PROCESSO NA OBRA REUNIDA

3.1 O trauma

Como já comentei, o trauma é o começo do processo encontrado em toda Obra

reunida. É aquilo que faz com que o personagem se mova, ou fugindo de algo, ou

buscando algo. É a prisão da qual ele procura escapar, é o sofrimento provocado pela

guerra para o qual ele procura alívio, é o tédio de uma vida vazia que procura ser

preenchida. É a inocência da infância que busca ser recuperada, a tranqüilidade da

morte que é almejada, ou uma unidade sem conflitos à qual se almeja.

O trauma está sempre presente, apesar do esforço do personagem para não vê-

lo, apesar do esforço para esquecê-lo. É um “objeto” sempre à vista, embora encoberto

por uma “neblina” que dificulta sua visão.

Vejamos como o autor expressa essa etapa do Mistério5 através das palavras.

No livro O púcaro búlgaro, o trauma é representado pela visão de um púcaro.

No verão de 1958 o autor visitava tranqüilamente o Museu Histórico e Geográfico de Filadélfia quando, ao voltar-se um pouco para a direita, avistou de repente um púcaro búlgaro. A impressão causada pelo estranho acontecimento foi tamanha que no dia seguinte ele embarcava de volta no primeiro avião, deixando a mulher no hotel sem dinheiro ao menos para pagar as despesas. [...]. Isso veio decidir, de uma vez por todas, sobre o destino do autor. (Púcaro, p. 311)6.

O “púcaro búlgaro” é o símbolo do trauma sofrido pelo personagem.

O púcaro pode ser um símbolo sexual, já que é um pequeno vaso, e esse se

relaciona, na simbologia universal, ao órgão sexual feminino (Cirlot, 1984, p.592).

Muitos vasos possuem a forma de um útero. Assim também a terra (“Geografia”) é um

símbolo do feminino. Além disso, museu Histó[é]rico Geográfico. A palavra histeria

vem do grego e significa útero. Um pouco mais adiante vou voltar a ressaltar essa

comparação, quando o autor usar a palavra “útero” em contexto parecido. Púcaro –

búlgaro – útero.

5 Ver nota 4 do capítulo anterior. 6 Nas citações, uso Púcaro como abreviação de O púcaro búlgaro. O número da página é o da Obra reunida, citada na bibliografia: CARVALHO, 2002.

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O púcaro simboliza o desejo de voltar ao útero. O útero, por sua vez, simboliza

um período de tranqüilidade. Assim temos um paraíso perdido [púcaro búlgaro] e um

paraíso almejado, a volta ao útero [Bulgár ia, búlgaro].

O museu em que está o púcaro, que relembra o paraíso perdido, fica na

Filadélfia. A palavra “filadelfo” significa amigo do irmão ou da irmã. E é no museu da

Filadélfia que ocorre o trauma.

“O tema do irmão morto é um dos motivos mais presentes na obra de Campos de

Carvalho, especialmente na Chuva Imóvel, onde se constitui como tema de rara

pungência e forte lirismo.” (ARANTES, 2004, p. 22). O irmão aparece geralmente

como um alter-ego, um outro “eu” desconhecido, podendo significar o Inconsciente, a

própria interioridade do personagem, ou o próprio Mistério. Vou deixar os comentários

sobre o irmão de lado, por enquanto, e o retomo quando começar a comentar o trauma

na novela A chuva imóvel. Mas quero ressaltar aqui que o irmão é visto como um

amigo.

A visão positiva do Inconsciente e do Mistério, identificados com a liberdade, a

unidade sem conflitos, a tranqüilidade da morte, é uma constante. Apenas na obra A

chuva imóvel é que o Mistério será chamada de “o Inimigo” (Chuva, p. 295)7, e na obra

O púcaro búlgaro, será desprezado.

A palavra Filadélfia também me lembra o oráculo da cidade de Delfos (fila-

delfo), de onde provieram os “funestos vaticínios do oráculo de Apolo” (SÓFOCLES,

2003, p. 24) a respeito de Édipo. Esse “mataria o pai e se casaria com a mãe.”

(SÓFOCLES, 2003, p. 24). Por isso foi condenado à morte, ainda criança.

A morte do pai e a relação incestuosa com a irmã também aparecerão no livro A

chuva imóvel. A morte da inocência, da criança condenada pela sociedade, aparece nos

três primeiros livros da Obra Reunida, “matam-nos a infância e ainda nos chamam de

menino” (Chuva, p. 268).

A relação incestuosa com a irmã gêmea parece indicar um desejo de completude.

A impossibilidade de efetivar essa relação provoca sofrimento no personagem.

Vou me concentrar um pouco nos “funestos vaticínios do oráculo de Apolo”, ou

seja, a morte do pai e a relação incestuosa com a mãe.

7 Nas citações, uso Chuva como abreviação de A chuva imóvel. O número da página é o da Obra reunida, citada na bibliografia: CARVALHO, 2002.

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A relação com a mãe, a vontade de entrar na mãe, é a mesma coisa que a

vontade de entrar no útero, de voltar à vida intra-uterina. A mãe é identificada com uma

vida sem sofrimentos.

Se a mãe se relaciona com a ausência de sofrimento, o pai, em geral, simboliza a

lei, a obrigação, a sociedade. O pai arranca o menino dos braços da mãe e o insere na

vida social, que é cheia de conflitos. Nada mais natural, para quem não quer sofrer,

eliminar a fonte de sofrimento, nesse caso, o pai. Além disso, o pai retira a criança da

mãe e impede a relação incestuosa, ou seja, a volta ao útero.

Voltando à citação, o trauma é visto como um “estranho acontecimento” que

provoca uma “impressão tamanha” a ponto de afetar “de uma vez por todas”, a vida do

personagem que “visitava tranqüilamente” o museu. Reparem bem na mudança interior

registrada pelas palavras “tranqüilamente”, antes do trauma, e “impressão tamanha”,

depois da visão. Além disso, a crise provocada pelo trauma, capaz de acabar com a

tranqüilidade do personagem, não é momentânea. Ela dá início a uma nova e

irreversível etapa na vida do personagem. A mudança é “para sempre”, “de uma vez por

todas”, pois o trauma está sempre presente.

O trauma é então simbolizado por um púcaro no museu geográfico da

Filadélfia. Agora vou rechear essa simbologia buscando conteúdo nas demais obras.

No livro A lua vem da Ásia, o trauma aparece depois de uma sessão de

eletrochoque pela qual passa o paciente do hospital psiquiátrico.

Razão tinha eu de suspeitar. Dissipou-se afinal a cortina de fumaça que encobria em parte o mistério deste hotel internacional em que me jogaram há mais de vinte anos. Não estamos num hotel, e sim num tenebroso campo de concentração, com tortura e tudo, a julgar pela que me infligiram ontem (Lua, p. 57).

“Dissipou-se afinal a cortina de fumaça”. A cortina é de fumaça, pois não

encobre por completo o trauma, mas apenas o disfarça, encobre “em parte o mistério”.

Uma cortina de ferro tamparia por completo o trauma e com isso o esquecimento seria

perfeito.

Além disso, o personagem “tinha razão de suspeitar”. Só tem razão de suspeitar

alguém que encontra indícios de alguma coisa digna de suspeição. Uma cortina de ferro

obstruiria a visão por completo e impediria qualquer suspeita. Mas uma cortina de

fumaça permite o vislumbre de algo. Um esquecimento completo não propiciaria

suspeitas.

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Mas por que fumaça e não um fino véu? A fumaça é inconstante. Às vezes, se

intensifica a ponto de impedir a visão, em outros casos, tênue, permite a visão do objeto.

O que não ocorreria com um véu fino, que sempre permitiria a visão, e nem uma cortina

de pano grosso, que nunca permitiria a visão.

O trauma é representado pela “tortura e tudo”. É interessante reparar na palavra

“tudo”. Não é só a tortura que revela o trauma, “tudo” mais o revela. É como se o

trauma fosse onipresente. Ou melhor, é onipresente. O personagem apenas finge que

não o vê, apesar das suspeitas.

O “hotel internacional”, nome dado ao mundo dos que vivem enganados pela

cortina de fumaça, transforma-se “num tenebroso campo de concentração”. O trauma

está ligado a um sofrimento profundo. O mundo que era visto como um hotel

internacional [o que, além de realçar o caráter onipresente do trauma, um “tudo”, e da

universalidade da experiência, ainda revela a grandiosidade do delírio, pois um hotel

internacional costuma ser um hotel de alto nível, um hotel cinco estrelas], um lugar de

descanso, de prazer e diversão, passa a ser encarado como um lugar de sofrimento, uma

prisão.

Inicia-se uma nova fase, uma fase sem volta, “para sempre”, “de uma vez por

todas”. Na verdade, estando o trauma sempre presente, quando não há esquecimento,

quando a cortina de fumaça não é suficiente, ele sempre está à vista.

Se o trauma está relacionado com um tipo de sofrimento, a mudança por ele

provocada está relacionada com a aquisição de um conhecimento, da consciência do

sofrimento presente no mundo.

No livro Vaca de nariz sutil, o trauma é apresentado logo no início do livro.

A princípio, diziam, era a amnésia, depois a esquizofrenia – tantas palavras belas para camuflar este vazio, esta cratera de suas bombas que se abriu dentro de minha consciência: um buraco, eis o nome. (Sutil, p. 157).

O trauma é representado pelas seqüelas produzidas pela guerra, [“suas

bombas”], “amnésia” ou “esquizofrenia”.

“Amnésia” e “esquizofrenia” não passam de algumas dentre tantas palavras para

enquadrar o trauma. Algumas teorias podem tentar explicá-lo como sendo fruto de um

esquecimento [“amnésia”], de uma unidade perdida, de um verdadeiro eu que é preciso

ser encontrado. Outras podem dizer que a psique humana é plural, possui várias forças

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em conflito, é fragmentada [“esquizofrenia”], e por isso não há uma unidade, mas

apenas uma espécie de sistema formado por várias forças contrastantes.

Nenhuma dessas teorias convence o personagem. De forma irônica, ele as chama

de “palavras belas”. São apenas belas, nada explicam. É, como dizem os surrealistas, a

mania incurável de os homens de reduzirem o desconhecido ao conhecido, de

classificar, dar nomes, organizar.

As “palavras belas” servem apenas para camuflar o vazio. Assim como fazia a

“cortina de fumaça”.

Um “buraco, eis o nome.” Eis o nome do trauma. A expressão me lembra o

famoso Ecce Homo, usado por Pilatos para significar a verdadeira natureza humana na

figura de Jesus Cristo, flagelado, coroado com espinhos, com um manto púrpuro e um

caniço na mão, sinais de deboche para com sua suposta realeza (Jo 19, 5-6).

Assim, a expressão “buraco, eis o nome” aponta para a verdadeira essência do

trauma, um buraco, ou seja, um nada, um vazio, uma inexistência, uma falta. E o que

falta? A unidade perdida, a infância, a inocência, a outra metade [a irmã gêmea do livro

A chuva imóvel], a Bulgária. E é para encontrar o que falta que o personagem começará

sua busca. Reparem que o trauma é o nada, o vazio, temas caros aos existêncialistas. A

Vaca de nariz sutil é o romance do autor que mais se aproxima do existencialismo.

Perguntar como surge o trauma é o mesmo que perguntar como surge esse

buraco. A “cratera” surge através da educação violenta, “suas bombas”, que a sociedade

impõe ao indivíduo. Vejam que as bombas são “suas”, são de outrem, que as impõe ao

personagem. E quando um aluno é reprovado na escola, é comum dizer que ele “tomou

bomba”.

Mas o nome não interessa, pois são apenas “palavras belas para camuflar este

vazio.”. O trauma é visto como uma “cratera”, um “vazio”, um “buraco”. Seja qual for

o nome, ele passa uma idéia de falta, de vazio, de inexistência.

A palavra inexistência pode parecer estranha, mas o que caracteriza um “buraco”

ou uma “cratera” é o nada que existe cercado pela terra. Em outra parte o autor usará a

metáfora do eixo ao redor do qual gira um peão.

Até que veio a hemoptise, a primeira, a segunda, até à última. Ninguém suspeitava que um estafeta pudesse ter tanto sangue, e o sangue da família o que era o pior, todo um semestre a lavar lenços e lençóis: coisa de ver-se! Com o meu começo de bigode impressionei-me profundamente, nem era para menos, aquilo vinha na hora mesmo dos vestibulares, como sempre o primeiro da turma: passei a desequilibrar-me por qualquer motivo, sem

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motivo, um risco a mais com que não contava, e Andréa noivando ainda por cima, um perfeito idiota ao que se dizia, doutor em línguas ou coisa parecida, doutor em cunilíngua como vim a descobrir depois: e o irmão morrendo como um passarinho, como um pássaro, um albatroz, seis meses de morte, o sangue vermelho e quente, às golfadas – sem um só gemido. Nunca ninguém morreu tanto por tão pouco. (Chuva, p. 265).

O personagem do livro A chuva imóvel é marcado por quatro mortes. Nessa

passagem são narradas três delas.

A primeira é a morte da infância – “Com o meu começo de bigode

impressionei-me profundamente”. É a mesma palavra que foi usada para descrever a

visão do púcaro búlgaro: “A impressão causada pelo estranho acontecimento foi

tamanha [...].”. E ainda – “passei a desequilibrar-me por qualquer motivo, sem motivo,

um risco a mais com que não contava”.

A infância perdida é a infância do período anterior à educação. O paraíso

perdido, por assim dizer. “Infância cada um tem a sua, a questão está em saber guardá-

la, uma chance única para todos” (Chuva, p. 260). Reparem que a perda da infância vem

associada ao início dos vestibulares. Mais uma vez o trauma é associado à educação.

O desequilíbrio parece ser uma referência ao estranhamento natural que o

adolescente sente com as mudanças em seu corpo. Mas é também o desconforto causado

pelo novo período que começa, a etapa da consciência desperta, a mudança provocada

pelo trauma. A frase é curiosa: “como sempre o primeiro da turma: passei a

desequilibrar-me por qualquer motivo, sem motivo”. Parece que o desequilíbrio está

relacionado a ser o primeiro da turma. Mais uma referência à educação como sendo

traumática.

A outra morte refere-se ao noivado da irmã, por quem o personagem nutre um

amor incestuoso – “e Andréa noivando ainda por cima”. A dor [ódio] provocada pelo

noivado fica clara quando o noivo é considerado “um perfeito idiota”.

A irmã gêmea, como já sugeri, é a outra metade que completaria o personagem e

lhe daria de volta a unidade ambicionada.

Essas mortes representam o fim da infância. É a “corrupção de maiores” (Sutil,

p. 176), o fim da inocência, “que rima com inconsciência” (Lua, p. 111), o começo de

uma nova etapa.

A terceira morte é a do irmão. É também a mais sentida, pois reveladora. Uma

morte lenta – “seis meses de morte”; intensa – “tanto sangue”, “o sangue vermelho e

quente, às golfadas”; e silenciosa – “sem um só gemido”. Foi o irmão que morreu “sem

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um só gemido”, mas creio que tal expressão pode ser aplicada à dor que o personagem

sente.

Nessa passagem um novo aspecto é revelado. A morte é encarada como uma

libertação. “O irmão morrendo como um passarinho, como um pássaro, um albatroz”.

Passarinho, pássaro e albatroz. Vôo baixo, médio e alto, rumo ao céu. Daí a aparente

indiferença do narrador diante da morte do irmão. Depois de dizer que ele está

morrendo acrescenta: “Com o meu começo de bigode impressionei-me profundamente”.

Como se não estivesse profundamente impressionado com a morte do irmão. A morte é

uma libertação para o irmão, é motivo de alegria. E uma dor para o personagem, que

continua vivo nesse “campo de concentração”, é motivo de tristeza.

A morte também acaba com os conflitos, com o sofrimento. É uma solução para

o trauma.

Aqui é interessante recordar o nome do museu onde ocorre o trauma no último

livro8 da Obra: Museu Histórico e Geográfico de Filadélfia. Como já comentei,

“filadelfo” significa amigo do irmão.

Diante do sofrimento da vida, a morte é uma bênção.

Até que morreu mesmo, e o levaram entre discretas lágrimas, inclusive minhas, num caixão que não pesava quase nada, espantoso!, como se o hábito da bicicleta lhe dera o dom do vôo, ou sempre fora assim e não se sabia, nem ele mesmo. Uma semana depois eu tinha a minha primeira cólica de fígado. (Chuva, p. 266).

O personagem sofre com a morte do irmão. Mas ao dizer “entre discretas

lágrimas, inclusive minhas”, ele relativiza seu sofrimento. A morte é encarada como

uma libertação, como um acontecimento de suave leveza – “num caixão que não pesava

quase nada, espantoso!”. Espantoso como a morte é leve – “como se o hábito da

bicicleta lhe dera o dom do vôo”, a liberdade do “albatroz”. A bicicleta pode ser

conduzida para qualquer lado, ao contrário do trem, meio de transporte citado em outra

parte do livro e que se relaciona com a adaptação à sociedade, que anda sempre nos

mesmos trilhos. A bicicleta se torna um símbolo de liberdade. Por isso ela dá “o dom do

vôo”. Além disso, é necessário equilíbrio para andar de bicicleta. Equilibrar tensões,

8 Uso a expressão: primeiro (segundo, terceiro, quarto) livro (romance), levando em conta a ordem cronológica dos livros e a ordem de apresentação dos mesmos na Obra reunida: A lua vem da Ásia (primeiro), Vaca de nariz sutil (segundo), A chuva imóvel (terceiro) e O púcaro búlgaro (quarto ou último).

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saber lidar com elas pode ser uma lição para lidar com os conflitos advindos da vida. E

o personagem disse anteriormente sofrer com o desequilíbrio

Ao dizer “ou sempre fora assim [leve] e não se sabia, nem ele mesmo.”, ressalta

a inocência/inconsciência do irmão, que morreu sem adquirir a maldição da consciência,

ganhou a verdadeira liberdade que só a morte pode proporcionar, e não a falsa liberdade

que a pessoa com consciência, não mais inocente, deverá lutar para alcançar. Ou ainda,

foi sempre leve por ter aprendido a arte de se equilibrar.

A dor do trauma, da aquisição da consciência, aparece simbolizada pela “cólica

de fígado”.

O fígado pôs-me de quatro: este menino sempre teve um fígado enorme, em lugar da alma um fígado, e essa irritação constante! esse olhar de abutre! – só agora se davam conta. Por trás do bigode eu me fazia de desentendido, matam-nos a infância e ainda nos chamam de menino (Chuva, p. 268).

A “cólica de fígado” marca uma nova etapa da qual não há mais retorno. O

personagem, por “trás do bigode”, se faz de “desentendido”. Como dissera

inicialmente: “Com o meu começo de bigode impressionei-me profundamente”. O

bigode simboliza o trauma, assim como o púcaro búlgaro, assim como a morte do

irmão. O trauma não é algo externo, mas inerente à pessoa, daí relacionar a perda da

infância com o “começo de bigode”. É algo no mundo [morte do irmão] que nos lembra

de algo em nós [infância perdida, desequilíbrio, começo de bigode] que nos faz sofrer

[cólica no fígado].

E comparem as frases: “Com o meu começo de bigode impressionei-me

profundamente” e “[...] o autor visitava tranqüilamente o Museu Histórico e

Geográfico de Filadélfia quando, ao voltar-se um pouco para a direita, avistou de

repente um púcaro búlgaro. A impressão causada pelo estranho acontecimento foi

tamanha [...]”. “Impressionei-me profundamente” e “impressão tamanha”. A mesma

palavra usada em dois diferentes livros para designar o mesmo fenômeno.

Em comparação ao irmão morto, livre como um “albatroz”, ave capaz de alçar

vôos a grande altitude, ele é como um “abutre”, ave que vive no solo se alimentando de

carniça. E ainda “de quatro”, como um animal. Uma definição de vida humana, viver no

solo como um animal, comendo carniça. Ele ainda está preso à terra. O que mais uma

vez me lembra o museu geográfico. Terra, nesse caso, é em contraposição a céu,

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sofrimento contra o “equilíbrio” do paraíso. No primeiro caso associei terra à mãe, em

contraposição ao pai, associado ao céu.

Mas um abutre também pode voar, ou seja, também pode morrer. A busca bela

liberdade se tornará a busca pela morte.

A família [o social, o coletivo] também aparece como sendo responsável pelo

trauma – “matam-nos a infância e ainda nos chamam de menino”. Assim como “suas

bombas”. Um outro é responsável pelo trauma. Ora é a sociedade, ora a família, ora a

escola. Mas sempre o processo de socialização. E sempre “algo” externo, que produz

esse evento do qual o personagem buscará a cura, um “algo” que movimenta o

personagem, ou seja, o sujeito.

O “fígado enorme” aparece “em lugar da alma”. A “alma” é o que movimenta o

corpo, ou seja, o sujeito. Mas o fígado aparece em lugar da alma. O sujeito, nesse caso,

está associado a algo material, terrestre [geográfico]. Não é algo espiritual. O que move

o ser é a dor, a cólica do fígado. É a visão de um Mistério como algo imanente, e não

transcendente, como ocorre no dadaísmo e no surrealismo, ao contrário do que ocorre

no simbolismo e no expressionismo. O surrealismo é definido por A. Breton como “a

investigação de uma ‘realidade superior’ dentro da realidade comum. [Mas não se trata]

de uma realidade sobrenatural, transcendente.” (TRINGALI, 1994, p. 212).

A “cólica de fígado”, símbolo da crise [nova consciência, nova etapa] provocada

pelo trauma, começa depois da morte do irmão. Assim, poder-se-ia pensar que a

consciência da morte é o trauma [o púcaro búlgaro, a tortura e tudo, a morte do irmão].

O que não é verdade. A morte é encarada como uma libertação. Ela será almejada. O

que provoca dor são as mortes simbólicas, as mortes que sofremos em vida, “já que a

morte do espírito é mil vezes mais trágica do que a morte do corpo” (Lua, p. 74).

E o fígado está ligado à bílis, que se liga ao amargo, à irritação, “essa irritação

constante!”.

A quarta morte que marca o personagem é a morte do pai.

Quando depois do latim o morto foi dado por morto, a casa voltou a ser povoada de fantasmas, o avô coronel, o irmão com a sua bicicleta, até um gato de que já ninguém se lembrava, e eu mesmo que já estava morto havia muito tempo e não via mais motivo para continuar disfarçando: – morto como Medeiros, que era o que interessava no caso. [...] Um mês depois, sem mais aquela, eu entrava para o arquivo (Chuva, p. 274).

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Aqui aparece um recurso usado pelo autor para trabalhar a ironia. Usar

expressões em latim ou apenas citar essa língua, que empresta um ar de solenidade à

cena. Assim ressalta-se uma suposta importância e algo que, na verdade, é totalmente,

ou quase totalmente, desprovido de importância. Nesse caso, a irrelevância do

cerimonial religioso, mas principalmente da morte de alguém que já estava “morto” em

vida.

Depois da morte da infância [“inocência”, “inconsciência”], o personagem “já

estava morto havia muito tempo”, “morto como Medeiros”. Morto como família

[Medeiros é o sobrenome da família], como membro de uma coletividade. A

consciência não é apenas consciência do sofrimento, mas da individualidade.

O pai também já estava morto, “depois do latim o morto foi dado por morto”,

estava morto em vida. Como já comentei, a educação é vista como um processo

violento em que a natureza do indivíduo é moldada e encarcerada com categorias da

razão. Assim há uma ruptura entre a vida plena que é a manifestação da natureza

Inconsciente, e a vida artificial criada pela sociedade. E é por isso que essa última é

comparada como uma morte em vida. Esta era a situação do pai e é a situação do

personagem.

O que provoca o trauma é a morte do pai e a falta de sentido da vida do

personagem que essa morte evoca. Além do valor simbólico da morte do pai, desejo

nutrido por aqueles que querem se livrar do sofrimento imposto ao ser retirado da mãe

[segurança] e ser lançado na vida, como foi visto acima.

Com a morte do pai, o personagem “não via mais motivo para continuar

disfarçando”. Não há mais como culpar o pai pelo sofrimento. Não há mais como

permanecer na inconsciência. A etapa inaugurada pelo trauma é sem retorno. Começa

agora a busca pela individualidade, a procura de quem se é realmente por detrás das

aparências, a busca pela unidade, pela tranqüilidade, pelo equilíbrio, pela Bulgária.

Começa “esta batalha cruenta de um homem contra todas as forças do mal que andam

soltas pelo mundo” (Lua, p. 66).

Neste ponto ocorre a mudança, a nova consciência é assumida. “Um mês depois,

sem mais aquela, eu entrava para o arquivo.”. O trabalho no arquivo representa a busca

do personagem. Busca para a cura da dor.

Arquivo é um lugar aonde se guardam documentos. Uma espécie de memória

material. O arquivo pode ser a própria memória, as lembranças, as vivências, um

mergulho na vida interior. “Não importa se o arquivo é uma biblioteca ou se a biblioteca

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foi que virou arquivo” (Chuva, p. 255). A comparação entre arquivo e biblioteca realça

mais ainda a associação com a memória, mas também com a pesquisa, o estudo. Nesse

caso, estudo de si mesmo. Seria bem diferente ir trabalhar numa lanchonete!

Voltemos ao livro O púcaro búlgaro para falar do esquecimento.

Sei que se trata de algo extraordinário, tão extraordinário que me escapa, e por isso e para isso exatamente aqui estou, vertendo a lama do meu pensamento até que me escorra o petróleo da sabedoria. A imagem pode não parecer muito boa, e na verdade nem poderia ser, que esta justamente é a fase da sondagem e o que procuro e ainda há de vir é o insondável. (Púcaro, p. 320).

Apesar da mudança provocada ser “para sempre”, o esquecimento temporário ou

a tentativa fracassada de recusar o evento traumático também é uma constante em toda a

Obra. O personagem não se lembra do ocorrido, não se lembra da visita ao museu. O

que resta é uma vaga impressão de “algo extraordinário, tão extraordinário que me

escapa” (Púcaro, p. 320). O insondável é o Mistério, o Desconhecido sobre o qual os

surrealistas falam e que identificam com o conceito de Inconsciente de Freud. Vejam

que aqui há a possibilidade de sondar o insondável, “a fase da sondagem e o que

procuro e ainda há de vir é o insondável.”. Ou seja, o insondável não é sobrenatural,

transcendente.

A relação com a psicanálise, característica do surrealismo, aparece no livro de

forma explícita, pois apenas depois de uma sessão de análise é que o personagem se

lembra do que o incomoda.

A sessão de psicanálise é bem sugestiva, pois ela se realiza de forma totalmente

ilógica e revela o que está trazendo incomodo ao personagem. O que se liga

perfeitamente com a noção surrealista de que a verdade sobre o Desconhecido não é

revelada pelas categorias da razão, mas apenas através da arte, dos sonhos, da

associação livre. No Anexo B reproduzi toda a sessão de analise que demonstra de

forma bem mais apropriada, apenas pela sua leitura, o que acabei de explicar.

A técnica de escrita automática, típica do surrealismo (TRINGALI, 1994, p.

213-214) registrando tudo que ocorre à mente, encontra-se em outros trechos da Obra

reunida. Como já comentei, reproduzo alguns desses trechos no Anexo A.

Volto agora ao tema do esquecimento. O trauma é um “estranho

acontecimento” que provoca uma “impressão tamanha” a ponto de afetar a vida “de

uma vez por todas”, o personagem fica profundamente marcado pelo acontecimento, a

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ponto de fazer todo um esforço para verter “a lama do meu pensamento até que me

escorra o petróleo da sabedoria”. O que demonstra a existência de um esforço pessoal

para promover uma mudança, aparentemente para melhor, de “lama” para “petróleo”,

quando então o “pensamento” se transmutará em “sabedoria”.

A “lama” é vertida [“vertendo”], derramada. É uma atividade. Já o “petróleo”

escorre [“me escorra”], de forma passiva. A busca que se iniciará é um empreendimento

do personagem, mas já o resultado dessa busca não depende apenas de seu esforço. É

necessária uma espera. Ele busca [verte], mas só encontra se alguém [Mistério] revelar

[deixar escorrer]. Escorrer também lembra algo demorado, não é o mesmo que

derramar.

A lama está para o petróleo assim como o pensamento está para a sabedoria. O

pensamento racional, lama, precisa ser vertido em petróleo, ou seja, o curso livre da

imaginação que deixa o Inconsciente aflorar. Aí sim, temos a sabedoria. Mais uma vez

há uma predominância do Inconsciente, “algo” [o sujeito] que move o “eu”.

Quem busca se esquecer do evento traumático, ou recusa-se a enxergá-lo, não

poderá jamais encontrar o “petróleo da sabedoria”, jamais poderá caminhar em direção

ao “insondável”.

No livro A lua vem da Ásia, o personagem se irrita com a inconsciência

[esquecimento] dos demais.

Já me vai aborrecendo a inconsciência com que essa gente se alimenta e se espairece ao sol, como se estivesse apenas numa estação de veraneio e a mil milhas de qualquer perigo iminente. Todos se mostram corados, e o mais das vezes sorridentes e loquazes (Lua, p.75).

Os que ainda não adquiriram a consciência do trauma continuam se divertindo

no “hotel internacional”, na “estação de veraneio”, todos “corados” e “sorridentes”,

comendo, conversando, descansando sem perceberem que o mundo onde vivem é

“tenebroso”, perigoso. São os perus aos quais o título da primeira parte faz referência.

Como o trauma está sempre presente, encoberto apenas por uma “cortina de

fumaça”, o perigo iminente só aparenta estar a mil milhas. As pessoas, assim como o

personagem, devem ter “razões para suspeitar”. Por isso estão corados, de vergonha,

não por causa do sol. Mais adiante dirá o personagem de tais pessoas: “os que tiverem

uma alma se sentirão envergonhados de terem vividos sem ela” (Lua, p. 147, negrito

meu). A alegria [“sorridentes”] e o falatório [“loquazes”] encobrem o trauma. As

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palavras encobrem o trauma, de forma frágil, como “a cortina de fumaça”. Mas o

perigo sempre é iminente, por isso as pessoas são quase iguais ao personagem, quase

loucas, lo[uco]quazes.

Ou se nasce inocente ou não se nasce, e a inocência, que rima com inconsciência, é a chave de todo o segredo do santo como do otimista, e nem toda a riqueza do mundo é capaz de pagar o seu preço. Se não consigo ser otimista é porque igualmente não consigo ser menos calvo do que sou, ou menos baixo de estatura, ou ainda menos feio do que pareço diante do espelho. (Lua, p. 111).

A irreversibilidade do estado de consciência provocado pelo trauma aparece

mais uma vez.

A “inocência” – “que rima com inconsciência” – é apontada como “chave de

todo o segredo” daquela “gente [que] se alimenta e se espairece ao sol”, conversando,

comendo, rindo, como se o mundo fosse um maravilhoso “hotel internacional”.

Não há como comprar a inocência, nem com “toda a riqueza do mundo”, o que

sugere que ela é boa e valorosa.

A inocência é uma “chave”. A chave pode ser uma peça que serve para dar

corda a algum brinquedo, alguma caixa de música, enfim, algum mecanismo.

Acionando a chave, o brinquedo começa a funcionar, a música começa a tocar, a “lama

do pensamento” começa a caminhar em direção ao “petróleo da sabedoria”. Não mexer

na chave impede o desenrolar dos acontecimentos. É o que faz o “santo” e o “otimista”.

Pode ser também uma chave de fenda, uma peça que aperta ou solta um

parafuso. Junta ou separa peças. A busca interior consiste em separar os diversos

conteúdos do Inconsciente, em fazer uma análise, ou seja, separação. E para se tornar

um indivíduo também é necessário se separar do todo. Para não se separar da massa,

para permanecer na inconsciência, na inocência, é melhor não usar a chave de fenda.

A chave pode ser também uma peça que fecha e abre uma porta, um baú, uma

caixa. Lembra-me a caixa de Pandora. Aberta, liberta todos os males que afligem a

humanidade. É uma referência ao pecado original, quando Adão e Eva deixam a

inconsciência do Éden e passam a viver no sofrimento do mundo. A caixa de Pandora

pode simbolizar o “inconsciente, ainda que particularizado em suas possibilidades

inesperadas, excessivas, destruidoras.” (CIRLOT, 1984, p. 134). O caminho que o

personagem percorre é repleto de surpresas e, no fim, destruidor, visto que o leva ao

suicídio.

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A própria Pandora é “símbolo da tentação perversa a que estão expostos os seres

humanos. [...] Pode ser também a imaginação em seu aspecto irracional e

desencadeante.” (CIRLOT, 1984, p. 443). Aspecto irracional e desencadeante da

imaginação. Nada melhor para definir o estilo surrealista, estilo ao qual se filia o autor.

“O surrealismo endeusa a fantasia, a fantasia livre” (TRINGALI, 1994, p. 216). E

novamente aparece a tentação, a relação com o pecado, com a perda da inocência

primeira. Não mexer nessa chave é “todo o segredo do santo como do otimista”. A

pergunta seria, há como não mexer nessa chave? Sim. É só encobrir sua presença com a

frágil cortina das palavras e permanecer, com isso, quase louco.

A inocência é como uma “cortina de fumaça” que impede o indivíduo de ver o

mundo tal como ele é, ou seja, uma “MERDA” (Lua, p. 111) – “palavra suprema” (Lua,

p. 109) escrita num muro por “um filósofo” (Lua, p. 109).

MERDA é tudo que não seja a morte, que talvez também o seja, e disso sempre tiveram consciência os homens menos mentecaptos em seus momentos de maior lucidez, e que são poucos. MERDA é a própria vida (Lua, p. 111).

Quem possui um pouco de lucidez, de consciência, sabe que a vida é uma

“MERDA”, que “tudo que não seja a morte” é uma “MERDA”, e que talvez até a morte

seja uma “MERDA”. Talvez, porque a morte pode ser encarada como uma libertação, a

libertação do sofrimento trazido pela vida. Mas é de fato uma libertação? Talvez.

Aqui já está claro o poder libertador da morte. Tema presente nos escritos

existencialistas.

O dia mais feliz da minha vida foi o dia em que escrevi minha primeira palavra feia no muro alto do colégio – exatamente essa bela palavra MERDA que agora me fita do outro lado da rua, como um desafio. (Lua, p. 111).

Escrever a palavra “MERDA” foi uma experiência libertadora o suficiente para

transformar um dia comum no “dia mais feliz da minha vida”. O valor dado a essa

verdade, a do poder libertador da morte, pode ser medida pelo “conselho de sabedoria”

dado pelo personagem: “[...] para por minha vez dar-lhe um conselho de sabedoria, com

a vantagem de ser como eu inteiramente gratuito: MERDA! MERDA! MERDA!

MERDA! MERDA! MERDA! MERDA!” (Sutil, p. 164).

“MERDA!” é repetido sete vezes. O sete “é símbolo da totalidade” (CIRLOT,

1984, p.572), o número da perfeição; “é o número somativo do céu e da terra”

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(CIRLOT, 1984, p.571) sendo o três “o número do céu” (CIRLOT, 1984, p.571) e

“quatro o [número] da terra” (CIRLOT, 1984, p.571). O “conselho de sabedoria” é

perfeito e abrange a totalidade do que deve ser feito: a vida é sofrimento, por isso é

melhor morrer.

A inocência, minhas senhoras meus senhores, ou morre-se com ela ou então é que ela nunca existiu; isso de corrupção de menores é tão crime quanto a corrupção de maiores, e não se faz outra coisa desde que o mundo é mundo. Acredito mais na inocência de uma avó do que na de mil netos – só que a avó não me interessa. (Sutil, p. 176).

O trauma é uma “corrupção de maiores”, que retira o ser humano do estado de

inocência, “que rima com inconsciência”. A criação da consciência é um “crime”, “e

não se faz outra coisa desde que o mundo é mundo”. Mais uma vez a educação, vista

como processo de inserção do indivíduo na cultura, é vista como um crime. A própria

cultura é uma construção criminosa.

Mais uma vez a voz de A. Breton encontra seu eco nas páginas do autor. Para

Breton, “não basta libertar o indivíduo de si mesmo” (TRINGALI, 1994, p. 211), o

homem deve deixar de ser escravo de outros homens “realizando a revolução social para

poder sonhar.” (TRINGALI, 1994, p. 212). Mas, como já disse antes, essa libertação é

mais um desejo do que uma proposta. E esse desejo de libertação remodela a realidade

descrita pelo narrador, o que me lembra o expressionismo, como citado no capítulo

anterior.

No primeiro livro da Obra reunida, o personagem se envolve numa revolução

socialista. Mas há uma diferença, nesse ponto, entre Campos de Carvalho e o

surrealismo. O que é central na obra do autor é a defesa da liberdade do indivíduo,

liberdade ligada não tanto ao social e nem ao político, mas à sua própria condição

existencial. Apesar do surrealismo também defender a liberdade, esta é encarada como

liberdade em relação à repressão e ao social, e a arma usada para a libertação é a livre

manifestação do Inconsciente, através da escrita automática ou da psicanálise, e a luta

social.

Já em Campos de Carvalho, existe o reconhecimento de que a luta social não

leva a lugar algum. A técnica da escrita automática é mantida, mas a arma central é o

humor, visto de forma pura. Nesse caso há uma identificação maior com o dadaísmo

[como já foi dito]: “Ri-se de tudo, nada leva a sério, senão o próprio riso. Não poupa

nada à galhofa, nem a si mesmo. Ridiculariza tudo.” (TRINGALI, 1994, p. 202).

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Pretendo agora ressaltar um outro aspecto do trauma, que é a percepção da total

singularidade do indivíduo e com isso a solidão ontológica da pessoa humana. O que

aproxima o autor, mais uma vez, do existencialismo.

São duas camas, poderiam ser duzentas; como naquele hospital em que estive na guerra – exatamente como no cemitério, lado a lado mas todos antípodas, cada um fechado no seu pijama, na sua cicatriz. O pasmo dos outros não me interessa, só o meu; e nem a mim me interessa pasmar: sou apenas vítima. Tudo tão fosco! (Sutil, p. 155).

A solidão é decorrente da individualidade irredutível. “São duas camas,

poderiam ser duzentas”, não interessa quantas pessoas o cerquem, todas são

completamente diferentes dele. São “todos antípodas, cada um fechado no seu pijama,

na sua cicatriz.”.

Antípodas quer dizer em lugares opostos da terra. Um está no norte, outro no sul.

A distância entre as duas ou duzentas subjetividades é gigantesca. Na verdade, não é

nem possível o contato, visto que cada um se encontra “fechado”.

Pijama é a roupa que a pessoa usa para ir para cama dormir, e como cama, nessa

passagem, é associada ao cemitério, o pijama pode ser associado ao caixão [e o dormir

com o morrer]. Estar lado a lado na cama de um hospital é “exatamente como no

cemitério, lado a lado mas todos antípodas”.

Por isso, cada um está “fechado no seu pijama”, como o morto em seu caixão.

A “cicatriz” é a marca que não se apaga do indivíduo, é o sinal que mostra que o

trauma é “para sempre”, que a individualidade é uma marca única na pessoa.

Desde então fiquei sozinho para sempre, com a nova consciência que me pregaram a martelo no peito, este fundo abismo sem fundo, frio frio frio, como um ressuscitado em verdade mais morto do que nunca, sem passado, sem futuro, enxergando as coisas por um binóculo, tão distante tudo, todos. (Sutil, p. 158).

A solidão, “a nova consciência”, aparece, mais uma vez, “para sempre”, pregada

“no peito”. E o que é o peito? É um “fundo abismo sem fundo”, ou seja, o nada, o vazio,

a “cratera”, o “buraco”. E é um vazio “sem fundo”, nada é capaz de preenchê-lo, e dele

não há escapatória, pois está cravado para sempre no peito do personagem. Um vazio

que “pregaram a martelo”. Lembra-me a paixão de Cristo, pregado sem esperanças

numa cruz. Ecce Homo.

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E o vazio é “frio frio frio”. Como um morto, “mais morto do que nunca”, como

um coração solitário que não encontra o calor humano.

A nova fase inaugurada pelo trauma é comparada a “um ressuscitado em

verdade mais morto do que nunca, sem passado, sem futuro”. Com a nova consciência,

o personagem está como um morto, a nova consciência parece uma farsa, ou melhor, ela

inflige uma dor que leva o indivíduo a buscar algo que não existe, ou seja, a construir

uma vida que não passa de uma ilusão.

[...] e é esta consciência que trago de eu ser apenas e cada vez mais uma propriedade minha, exclusiva, indivisível, una, prima inter pares, nec plus ultra, e mais citações latinas que se façam necessárias e convenham como fecho a um capítulo tão importante como este, sem dúvida o mais importante que já escrevi e escreverei em toda a minha vida de cavaleiro andante. (Lua, p. 56).

Mais uma vez aparece uma citação em latim como recurso para trabalhar a

ironia, para dar um aspecto de grande importância a algo sem importância nenhuma.

Mas a percepção da individualidade ímpar e o conhecimento sobre o trauma não são

importantes? Talvez para um surrealista, para um dadaísta, não, pois esse “nada leva a

sério, senão o próprio riso. Não poupa nada à galhofa, nem a si mesmo.” (TRINGALI,

1994, p. 202).

Aqui é ressaltada a individualidade “exclusiva”, que só pertence ao personagem

e a ninguém mais. Como o “cavaleiro andante” está ainda no começo de sua jornada,

rumo à Bulgária, ele ainda não destaca o aspecto fragmentado de seu eu, o que será

chamado mais tarde de “homo multiplex” (Lua, p. 136). Os adjetivos “indivisível” e

“una” devem ser entendidos em relação à individualidade, à consciência, não ao “eu” ou

ao “sujeito”.

Sob a máscara unicápita que reflete o meu espelho e jazem os milhões de rostos que formam o meu homo multiplex, e é em vão que o que tento iludir-me a mim mesmo quando me faço a barba, como se fora um ser único e cotidiano. (Lua, p. 136-137).

O personagem não se vê como um ser único, apesar de tentar se iludir [“em

vão”] com essa idéia. Possui “milhões de rostos” sob uma mascara de unidade. O que

aparece no mundo, o que “reflete o meu espelho”, é uma ilusão. Por baixo dessa

aparência jaz o sujeito fragmentado. Fragmentado e “múltiplo, múltiplo, múltiplo.”

(Chuva, p. 234), possuidor de “mil consciências em vez de nenhuma, que não cabe num

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só espelho nem em todos os espelhos do universo, porque pluriverso” (Sutil, p. 163-

164). Mais uma vez o ternário aparece.

Um dos personagens principais do livro Vaca de nariz sutil é a filha do zelador

do cemitério, Valquíria. Ela representa ao mesmo tempo o trauma e o que é buscado.

Seu o nome e é mesmo Valquíria? Era. Aquilo me dava uma idéia de cavalgada; cavalguei. A filha de um zelador de cemitério, e ainda achava jeito de ser bela a seu modo, os dentes lúcidos. (E os olhos, sobretudo esquerdo!) Quinze anos, vinte, difícil descobrir naquele fim de tarde, a alameda escura; depois ali era o limiar da eternidade, a pergunta não fazia sentido. (Sutil, p. 170).

As valquírias são

as imortais virgens filhas de Ódin [Wotan], donzelas belíssimas e indomáveis que, cavalgando em seus corcéis brancos, tomavam parte na guerra e recolhiam, do campo de batalha, os heróis que caíam no combate para conduzi-los ao Valhala [Walhalla] onde receberiam o prêmio pelo seu valor das mãos do pai de todos os deuses. (VASTAG, 1996, p.53, tradução minha).9

Daí a frase do personagem: “Aquilo me dava uma idéia de cavalgada;

cavalguei.”.

E o personagem é um ex-combatente de guerra, alguém que caiu no combate. A

relação do cemitério com o Valhala [paraíso] é sugerida, “ali era o limiar da

eternidade”. Mais uma vez a idéia de morte como solução para o problema que é a vida.

Valquíria hipnotiza o personagem. Ele não mais conseguirá deixar de pensar

nela. “Faz uma semana desde que a vi, e é como se a tivesse visto sempre.” (Sutil, p.

184).

A importância dessa personagem exige comentários mais pormenorizados, o que

será feito mais adiante. No momento quero ressaltar mais um nome que o personagem

dá para o trauma, o “buraco”. “Valquíria, isto é a angústia.” (Sutil, p. 184). Angústia.

Termo muito caro aos existêncialistas. Pode-se dizer até que é uma das categorias

centrais de tal escola filosófica, assim como também é um dos temas centrais na Obra

reunida, principalmente na Vaca de nariz sutil.

9 [las valquirias], las inmortales vírgenes hijas de Wotan, doncellas bellísimas e indomables que, cabalgando em sus corceles blancos, tomaban parte em la guerra y recogían del campo de batalla a los héroes que caían combatiendo para trasladarlos al Walhalla, donde recibían el premio a su valor de manos del padre de los dioses.

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O trauma é algo sempre presente que provoca algum tipo de sofrimento.

Sofrimento não é sinônimo de dor, mas consciência da dor. Um animal não sofre,

apenas sente dor. Já o ser humano possui a maldição da consciência. Por isso a

inconsciência, simbolizada pela infância e pela inocência, é elogiada. E a perda da

inconsciência é considerada um crime. E como a consciência é adquirida pelo processo

de educação, esse é também criminalizado.

O trauma, na verdade, é próprio da condição humana. Não existiria ser humano

sem o trauma. Por isso, a luta pela libertação do homem, libertação de si mesmo, de

suas repressões, e libertação da opressão dos outros homens, ideal do surrealismo como

já foi visto, aparece na Obra reunida mais com um sentido simbólico do que como um

projeto. Daí a semelhança maior com o dadaísmo, pois o homem não pode libertar-se,

nem dele mesmo, nem do próximo, sem deixar de ser humano.

O trauma é o próprio estar vivo, por isso a única solução parece ser a morte. Ou

haverá uma outra alternativa? Sim, o riso, o humor. Mas essa última alternativa é

apontada pelo autor do livro, não pelos seus personagens, com exceção de Hilário, o

expedicionário da peça literária O púcaro búlgaro.

Movido pelo trauma, o ser humano [o personagem] inicia a sua busca. Busca vã

para eliminar o trauma sem ter de morrer. Busca pela cessação do sofrimento.

Até aqui podemos considerar o sujeito [da razão] como o ser humano consciente

de seu estado de ser que sofre [trauma] e que caminha para a morte. Sendo a morte

uma benção. E as construções humanas, sociais e principalmente psíquicas [a

personalidade], são frutos da busca por uma alternativa à morte para aplacar o

sofrimento. Além disso há um sujeito escondido por tais ficções, o sujeito do

inconsciente, que entra em conflito com o sujeito da razão, e que vai buscar justamente

sua livre expressão, ou seja, a morte do sujeito da razão.

Aqui começa a busca.

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3.2 A busca

No diário do expedicionário Hilário, personagem do quarto livro da Obra, está

registrado:

“Novembro, 17

Acabo de pôr o anúncio no jornal. EXPEDIÇÃO À BULGÁRIA. PROCURAM-SE

VOLUNTÁRIOS.” (Púcaro, p. 329).

O personagem deseja partir em busca da Bulgária.

A Bulgária, símbolo vazio, pode ser preenchida com o material colhido nos três

livros anteriores. É a liberdade, a inôcencia da infância antes da educação, o eu

verdadeiro, a unidade perdida ou almejada. É também Valquíria. Bulgária – Valquíria .

Se o sujeito é aquilo que move o ser humano, existe um sujeito inicial, causa do

movimento, e um sujeito ideal, objetivo a ser alcançado pelo movimento. A Bulgária é o

sujeito ideal, assim como Valquíria. Ao contrário do eletrochoque e da guerra, que são

causas da busca nos dois primeiros livros.

É vã a busca pela Bulgária. Uma evidência disso é o fato do anúncio ter sido

publicado “na página necrológica que é a mais lida devido aos amigos que temos”

(Púcaro, p. 330). E aqui aparece mais uma semelhança com Valquíria, pois essa era a

filha do zelador do cemitério. Mais uma vez a morte aparece como tema, como solução

para o conflito.

Já sabendo de antemão que o sujeito não existe, que a busca é vã, creio não ser

de todo errado interpretar a frase dessa forma: EXPEDIÇÃO À BULGÁRIA.

PROCURAM-SE VOLUNTÁRIOS . Correr atrás do ideal que cure o trauma é uma

perda de tempo. Melhor é fugir com a namorada ou jogar uma partida de cartas, o que

ocorrerá no decorrer e no final do livro

E quem são os otários que formam a expedição?

Hilário, o personagem principal. E se para o autor “a solução é o humor”

(BATELLA, 2004, p. 30), nada melhor do que ter por personagem principal alguém

com esse nome, indicando a própria tendência do autor de acreditar que a única solução

para continuar vivo nesse mundo de “MERDA”, é vivendo com humor.

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Pernacchio, “que morou muitos anos ao lado da Torre de Pisa e, como era

natural, acabou ficando neurótico com a idéia de que aquilo lhe pudesse desabar sobre a

cabeça.” (Púcaro, p. 331). Hilário comenta que Pernacchio lhe pareceu “um pouco

inclinado para a esquerda” (Púcaro, p. 331), o que não causou nenhum problema por

causa da inexistência de preconceitos políticos. Aqui, o narrador da dois sentidos ao

“um pouco inclinado para a esquerda”. O primeiro, como tendências políticas de

esquerda, o segundo, levemente tombado para o lado esquerdo, por ter morado tanto

tempo ao lado da torre de Pisa. É significativo o personagem citar a inexistência de

preconceitos políticos, o que reforça o que chamei de “confissão central”.

O terceiro expedicionário, ou otário, é o “tal Ivo que viu a uva” (Púcaro, p. 331),

e que pela idade já deve ter “visto toda espécie de uva que há no mundo e só lhe reste

agora conhecer as famosas uvas búlgaras.” (Púcaro, p. 331). Ivo que viu a uva é

descendente do hindu que inventou o zero, e portanto possui “um royalty sobre todos os

zeros usados no mundo até o fim dos tempos.” (Púcaro, p. 331).

O quarto expedicionário é o Expedito, aceito por causa do nome.

Ainda completa o grupo, a Rosa, amante e empregada de Hilário, e o professor

de bulgarologia Radamés Stepanovicinsky, “natural de Quixeramobim, no Ceará,

[...]dono de uma cultura realmente fabulosa.” (Púcaro, p. 331).

O expedicionário Expedito e o Ivo que viu a uva são exemplos do jogo de

palavras de T. Tzara, que consiste em associar palavras “de modo formal e automático

pela força do som” (TRINGALI, 1994, p.205). Uma fala do personagem justifica essa

associação: “Expedito não sei do quê, que pelo nome foi imediatamente incorporado à

expedição” (Púcaro, p. 332, negrito meu). Outro exemplo do jogo de Tzara é o próprio

nome do livro, Púcaro bulgáro.

Vejamos então, os três significados da Bulgária conforme aparecem nos

primeiros livros, antes de encará-la como sujeito.

Em primeiro lugar, a Bulgária é a liberdade.

Já tenho fugido muito na minha vida, desde o dia em que ainda criança fugi do ventre materno – mas esta é a primeira vez que a idéia de fuga me apavora e me deixa perplexo diante de mim mesmo, como se de antemão nossa tentativa já fosse frustrada e devêssemos pagar com a cabeça a nossa insopitável ânsia de liberdade. (Lua, p. 93).

Antes de mais nada, gostaria de lembrar nesse momento, a relação já citada entre

o púcaro e o útero. Púcaro – búlgaro – útero. “Já tenho fugido muito na minha vida,

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desde o dia em que ainda criança fugi do ventre materno”. Como foi colocado antes, o

púcaro simboliza o desejo de voltar ao útero, voltar a um período de tranqüilidade.

Como disse, um paraíso perdido [púcaro búlgaro] e um paraíso almejado, a volta ao

útero [Bulgária].

Mas por que agora temos a palavra “ventre” e não mais útero?

Como explicado anteriormante, ao falar do oráculo de Delfos, a vontade

incestuosa de entrar na mãe é a mesma coisa que a vontade de entrar no útero, pois a

vida intra-uterina está relacionada a uma vida sem sofrimentos. Daí o “v[entre]

ma[e]terno”, o desejo de entrar novamente no eterno paraíso perdido.

A fuga “apavora” pois está relacionada com a perda do paraíso. Ou seja, a fuga

está fazendo, neste caso, o papel do pai, que retira a criança da mãe e a insere na vida

social. Como já salientei, nesse caso é natural o desejo de eliminar a fonte de

sofrimento, ou seja, matar o pai. Como a sociedade, a vida social, é encarada como a

vida ordeira e cheia de leis em que o pai insere a criança, há o desejo de “matar” a

sociedade, de destruí-la.

Volto agora à citação.

O doente mental, que descobriu que não está num “hotel internacional”, mas

num “campo de concentração”, decide fugir. Ele fugiu a vida inteira, mas essa é a

primeira vez que a idéia de fuga o “apavora” e o “deixa perplexo”.

Existe no personagem uma “insopitável ânsia de liberdade”. Um irreprimível

desejo de buscar a liberdade, de fugir do “campo de concentração”, de fugir da própria

existência. Mas será possível fugir da própria existência? Não. Daí a percepção de que

“de antemão nossa tentativa já fosse frustrada e devêssemos pagar com a cabeça”.

E é por isso, por perceber que a busca pela liberdade já está “de antemão [...]

frustrada”, que o personagem se sente “apavorado” e “perplexo”.

A busca da liberdade é encarada como “o passo decisivo para toda minha vida

futura, e mesmo para a salvação da minha alma depois da minha morte” (Lua, p. 93),

pois o fugitivo jamais se “perdoaria morrer no cativeiro como um rato qualquer, sem a

coragem ao menos de enfrentar de peito aberto a horda de bárbaros que aqui nos retém

por motivos certamente idiotas mas com toda certeza desumanos.” (Lua, p. 93).

Existe aqui a concepção de que a sociedade repressora, “horda de bárbaros”,

impede a liberdade, que seria a livre manifestação do Inconsciente. É interessante notar

que “horda” é um grupo desorganizado, e que “bárbaros” são pessoas não civilizadas, e

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esse é o termo usado justamente para descrever os civilizados organizados que mantêm

a ordem social. Há uma inversão da lógica comum.

A horda de bárbaros é um grupo de pessoas que não percebem que a vida é

sofrimento e cria mecanismos para que essa verdade não apareça. E fazem de tudo para

impedir que essa verdade venha à tona, inclusive aprisionar quem a ameace “por

motivos certamente idiotas mas com toda certeza desumanos”.

Os motivos são desumanos, pois nada mais desumano do que negar a angústia e

o sofrimento. E são idiotas, pois nada mais idiota do que se iludir, imaginando que a

vida é como férias num “hotel internacional” e não uma prisão num “campo de

concentração”.

É preciso furar as “idiotas” construções sociais que iludem, mas para isso é

preciso enfrentar os próprios “bárbaros” que as mantêm.

Como já comentei antes, a primeira parte do livro A lua vem da Ásia, recebe o

sugestivo nome de “VIDA SEXUAL DOS PERUS” (Lua, p. 35). Essa é a vida no

“campo de morte”. Os seres humanos [perus] acreditam que estão se divertindo [vida

sexual] num “hotel internacional”, mas na verdade estão para morrer [ser abatido] num

“campo de concentração”.

A primeira parte termina com a fuga do hospício. Já a segunda parte, chamada

“COSMOGONIA” (Lua, p. 99), já começa enunciando o que é a busca: “Rua da

liberdade. Este, pelo menos, o nome que estava na placa da esquina, em letras bem

visíveis, para quem quisesse ler.” (Lua, p. 100). Para quem quiser ler, a busca é pela

liberdade, sinônimo de Bulgária.

Mas existe a liberdade? O nome “COSMOGONIA” é sugestivo. Criação ou

organização de um mundo. Talvez a liberdade seja uma criação humana.

Nesse ponto a obra se revela em afinidade com o ideal do movimento surrealista:

Esse o objetivo essencial do surrealismo: a libertação do homem que se revela escravo de si mesmo e dos outros homens. Propõe-se a dupla revolução, uma, no plano individual, para libertar a imaginação do homem do recalque interior; outra, no plano social, para libertar o homem da opressão externa. (TRINGALI, 1994, p. 211).

A revolução individual se dá com a fuga do hospício, ou seja, o louco

manifestará sua loucura no próprio mundo, com sua imaginação. É o fim da repressão.

Essa é a primeira parte do livro.

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A revolução social é a modificação da própria sociedade através da imaginação,

da loucura. Essa segunda revolução aparecerá mais adiante. Mas se revela como uma

construção, uma cosmogonia.

Assim, já sabemos o que é a liberdade. É usar a imaginação desregrada, daí a

necessidade de matar a lógica ou invertê-la (horda de bárbaros = grupo de civilizados).

A primeira frase do livro é essa:

Aos dezesseis anos matei meu professor de Lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa seria mais legítima? – logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris. (Lua, p. 36).

Usar a livre imaginação para construir um mundo livre. A Bulgária é uma

construção e ao mesmo tempo um estado de liberdade interior, que possibilita a

construção.

[...] já que a morte do espírito é mil vezes mais trágica do que a morte do corpo, e que o homem privado da sua liberdade de pensar e de amar vale menos do que a sua sombra no muro – a menos que se trate naturalmente de um muro junto ao qual ele está sendo fuzilado, com os olhos bem abertos e a cabeça erguida. (Lua, p. 74).

Outro motivo para empreender a busca. Um “homem privado da sua liberdade

de pensar e de amar vale menos do que a sua sombra no muro”. Esse é o valor dos

“bárbaros”. Não valem nada. Mas liberdade de pensar e de amar não é a mesma coisa

que liberdade para livrar-se das repressões e modificar o mundo. Ou seja, não podemos

construir nada, a solução é o humor. Nesse momento é possível perceber a maior

proximidade com o dadaísmo do que com o surrealismo. Mas ambos os movimentos se

fazem presentes na valorização da liberdade.

O muro, como já foi dito, também é o lugar aonde apareceu a “palavra suprema”

(Lua, p. 109), escrita por “um filósofo” (Lua, p. 109): “MERDA” (Lua, p. 111). E

“MERDA é tudo que não seja a morte, que talvez também o seja, e disso sempre

tiveram consciência os homens [...] em seus momentos de maior lucidez [...]. MERDA

é a própria vida” (Lua, p. 111, negrito e sublinhado meu).

Mais uma vez aparece o tema da morte. Morte – Muro – Merda. O muro está

relacionado com a merda que é a vida (“tudo que não seja a morte”) e também com a

morte (“que também talvez o seja”), com o ser fuzilado. Se a vida é uma merda, melhor

morrer. A solução é a morte. E o personagem, de fato, comete suicídio.

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Voltando ao texto, mais uma vez o personagem mostra que a angústia não é

causada pelo medo da morte, pois “a morte do espírito é mil vezes mais trágica do que a

morte do corpo”. E “a morte do corpo” é encarada como uma verdadeira libertação, pois

o muro só é valorizado se for “muro junto ao qual ele está sendo fuzilado”. E aqui

aparece algo novo, a morte só é uma saída legítima se for encarada com dignidade e

consciência, de “olhos bem abertos e a cabeça erguida”. Aprender a morrer. Parece que

esse é o objetivo da busca. Criar uma ficção que leve o ser humano a abraçar a morte de

forma consciente [“olhos bem abertos”] e digna [“cabeça erguida”]. Só assim a morte

será uma solução de fato.

Para isso é necessário ter coragem – “jamais eu me perdoaria morrer no cativeiro

como um rato qualquer, sem a coragem ao menos de enfrentar de peito aberto a horda

de bárbaros”. Morrer sem consciência e sem dignidade, é morrer “como um rato

qualquer”, como um “peru”. A isso o personagem prefere “morrer lutando e, se preciso

mesmo, com as minhas próprias mãos, numa auto-eutanásia que nada tem a ver com o

suicídio comum”.

A coragem é essencial para se empreender a busca, “[...] não é imitando um

avestruz corajoso que darei meu testemunho de homem, [...] eu tenho que ser André. Ou

então me enforco.” (Chuva, p. 255).

É interessante a expressão “avestruz corajoso”. Geralmente o avestruz é

representado como uma ave que, em situação de risco, enfia a cabeça dentro de um

buraco e se esconde. Imitar um avestruz é o mesmo que se esconder. O avestruz é a

terceira ave que aparece no livro A chuva imóvel. O primeiro é o albatroz, que simboliza

a liberdade, o céu, a morte. O segundo é o abutre, com o qual o personagem se

identifica. O abutre é capaz de voar, mas não tão alto como o albatroz. Além disso,

sendo o abutre um carniceiro, vive preso à terra, e se alimentando da “morte”, ou seja,

de animais mortos. Talvez se alimente da esperança de morrer.

Já o avestruz não apenas não voa como usa a terra para esconder a própria

cabeça. Lembrando a relação já salientada entre terra e mãe, o avestruz se torna símbolo

de imaturidade, da volta impossível ao útero. O abutre, ainda preso à mãe, pode se

libertar.

É necessário ter coragem. Caso contrário é preferível o suicídio. Ou talvez, é

necessário ter coragem de cometer suicídio, não o suicídio “tocado de medo e

desespero”, mas uma espécie de “auto-eutanásia”, um suicídio corajoso. E qual a

diferença entre os dois tipos de suicídios?

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O primeiro tipo é o suicídio dos farsantes, dos que têm medo de encarar a

realidade do sofrimento, da “gente [que] se alimenta e se espairece ao sol, como se

estivesse apenas numa estação de veraneio e a mil milhas de qualquer perigo iminente”

(Lua, p.75), das “donzelas casadouras e [das] mulheres grávidas” (Sutil p. 198).

O segundo tipo é o suicídio dos que possuem a coragem de tentar dar um

“testemunho de homem”, tentando ser ele próprio, um indivíduo [“eu tenho que ser

André”]. Encontrar o próprio eu, construir o próprio caminho, ter coragem de ser um

indivíduo; esse é um outro objetivo para empreender a busca.

A questão central, nesse caso, é a individualidade. O ser humano, sendo

totalmente único, ímpar, não pode ser descrito em categorias gerais. O que caracteriza

um indivíduo é uma peculiaridade que o distingue de todos os demais seres humanos e,

por isso, não pode ser colocado em palavras. Por isso os escritores existencialistas

preferem se expressar através da literatura, e não de uma filosofia técnica.

Por causa da total singularidade, há a impossibilidade de ter consciência de

quem realmente se é. E por isso, por causa da não identificação com qualquer outra

pessoa, a solidão é constitutiva do humano. A busca pode ser uma caminhada que visa

evitar a solidão, ou que visa dar nomes [ter consciência] à própria individualidade. É

uma fuga do trauma, do sofrimento. Uma busca por completude.

O ser humano anda inquieto, sempre em busca de alguma coisa que o preencha,

que preencha “este vazio, esta cratera de suas bombas que se abriu dentro de minha

consciência: um buraco, eis o nome” (Sutil, p. 157). Busca “bastar-se a si mesmo”

(Sutil, p. 169). E que objeto é esse, representado pela Bulgária, capaz de fazer o sujeito

“bastar-se a si mesmo”?

(...) a menos naturalmente que ele seja um artista de uma importância excepcional, que em falta da verdade busque ou já tenha encontrado uma fórmula que permita ao homem bastar-se a si mesmo sem ajuda de ninguém e de nenhum Deus. Como um surdo-mudo por exemplo, mas de verdade, e longe de quaisquer verdades. (Sutil, p. 169).

Aristides é o surdo-mudo companheiro de quarto do neurótico de guerra. É dele

que o personagem está falando. Talvez ele seja “um artista de uma importância

excepcional”, ou talvez não seja “mudo nada, e apenas leva o seu ceticismo até as

últimas conseqüências” (Sutil p. 168).

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Um alternativa é levar “o [...] ceticismo até as últimas conseqüências”. Ou seja,

ficar “mudo”, sem buscar nada. Nem verdades e nem bulgárias. Muito menos auto-

suficiência [“bastar-se a si mesmo”]. Não é esse o caminho tomado pelo personagem.

O artista é alguém que cria. Será a Bulgária uma criação humana ao contrário de

uma realidade? Uma “fórmula” inventada, construída, na “falta da verdade”? Se o

artista deve ficar “longe de quaisquer verdades”, tudo indica que sim.

O que é buscado deve satisfazer o sujeito por completo, ele deve ficar até mesmo

sem necessidade de “nenhum Deus”, muito menos de alguma criatura.

A imagem do “surdo-mudo”, isolado do mundo das palavras, exprime bem essa

idéia de auto-suficiência, de total contentamento consigo mesmo, meta do personagem.

Não depender do mundo das palavras é o mesmo que não depender da sociedade, da

lógica, da razão consciente.

O surdo-mudo torna-se uma metáfora da vida no Mistério, sem o enquadramento

da educação e da sociedade. Quem consegue tal proeza é um verdadeiro artista.

“Sim, o homem se torna insolente, pois acha-se auto-suficiente. Com certeza,

para teu Senhor será o retorno.” (Alcorão, 96: 6-8).

Ao contrário do que diz o Alcorão, o personagem não se acha auto-suficiente,

mas busca sê-lo. E não acredita em nenhum retorno em direção ao “Senhor”, mas

acredita num retorno à infância, à inocência. O que é o mesmo que se tornar surdo-

mudo.

[...], vou voltar a ter a infância de novo, a que me haviam roubado os que vivem de defender a inocência à custa de baionetas e de hinos – os porcos. [...]: aqui estou em carne e osso, e em alma o que é mais importante, tal como me lembro de ter sido muito antes da tragédia (Sutil, p. 208).

A infância foi roubada através do processo de educação. Uma era de

“inocência”, de pureza. Uma espécie de paraíso perdido. E o personagem diz que vai

“voltar a ter a infância”, outra forma de definir a busca, livrar-se do enquadramento

social que impede a manifestação do Mistério.

A “tragédia” a que se refere o personagem é a guerra pela qual passou [“a que

estavam comemorando”] e não o desfile militar [“esta que estão fazendo”]. Aqui

existem duas tragédias. A primeira é o trauma da guerra, que representa a dor da própria

vida, o trauma.

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A segunda refere-se ao desfile militar que comemora a guerra. Ou seja,

comemora a própria existência. Festejar a vida, comemorar a existência, isso é

considerado uma tragédia pelo personagem. Nó estamos vivos, não é culpa nossa, “não

tenho culpa de que seja assim, de que eu seja assim.” (Sutil, p. 207). Mas pra que

comemorar essa “MERDA”?

A tragédia é o processo de inserção na cultura. A infância [ou a Bulgária] é um

estado de auto-suficiência, ou seja, de independência em relação às palavras

[civilização], um estado anterior ao trauma, à aquisição da consciência. Esse estado de

ser é caracterizado pela inocência “que rima com inconsciência” (Lua, p. 111).

A “inocência” foi roubada pela sociedade, “os porcos”, “os que vivem de

defender a inocência à custa de baionetas e de hinos”. A consciência provém da

sociedade, que é vista como uma construção humana criminosa. “A inocência, [...], ou

morre-se com ela ou então é que ela nunca existiu; isso de corrupção de menores é tão

crime contra quanto a corrupção de maiores, e não se faz outra coisa desde que o

mundo é mundo.” (Sutil, p. 176, negrito meu).

Mas por que, então, a sociedade é construída? Os motivos são sempre nobres.

Para defender “a inocência”. Mas há nobreza apenas nos ideais, pois a inocência é

defendida “à custa de baionetas e de hinos”.

A sociedade, “os porcos”, construtora da consciência, que não passa de uma

“corrupção de maiores”, vem cometendo esse crime “desde que o mundo é mundo”, e

“não se faz outra coisa” além disso. Parece existir aqui o pressuposto de que a

consciência da dor, que acarreta o sofrimento, só existe devido à construção lingüístico-

social.

O personagem quer “voltar a ter a infância”, “tal como me lembro de ter sido

muito antes da tragédia”. Ou seja, voltar ao período pré-trauma. Essa busca é viável?

Será ela possível?

[...] e esse lustre enorme para disfarçar o pânico. É verdade que se reúnem por qualquer pretexto, um aniversário, um livro que sai, um filho que sai, até um defunto poderia haver no meio da sala que na não me causaria surpresa (Chuva, p. 247).

O desfile militar é “esse lustre enorme para disfarçar o pânico”. São as festas

sociais, as reuniões que ocorrem “por qualquer pretexto”. Para “disfarçar o pânico”.

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Que pânico? A angústia provocada pela consciência de se estar vivo num “campo de

concentração” e não num “hotel internacional”.

Ou querem que eu brinque de guerra todo o ano para distrair as donzelas casadouras e as mulheres grávidas, para que amanhã não se assustem quando seus filhos tiverem que fazer a mesma coisa, e os filhos dos seus filhos, enquanto houver útero e houver guerra? (Sutil, p. 198).

Na sociedade, “desde que o mundo é mundo”, “não se faz outra coisa” além da

“corrupção de maiores”. A corrupção vem através da construção do próprio mundo

social, do “lustre enorme para disfarçar o pânico”, ou seja, mecanismos para que

ninguém perceba que a vida é uma “MERDA”, um “campo de concentração”, bem

como de mecanismos para “distrair as donzelas casadouras e as mulheres grávidas”. E

tal mecanismo continua funcionando, “quando seus filhos tiverem que fazer a mesma

coisa, e os filhos dos seus filhos, enquanto houver útero e houver guerra”. A relação

entre útero e guerra é bastante sugestiva. Reforça mais uma vez que a guerra está

simbolizando a própria vida.

A concepção de sociedade é das piores possíveis. A sociedade é opressora, poda

a liberdade do ser humano, o ilude, o engana com festas, distrações e hinos, para que

estes não percebam a opressão e fiquem conformados, cria falsos objetivos para que

estes fiquem encorajados a lutarem em guerras e com isso manter viva a própria

estrutura opressora.

Aqui há uma crítica à sociedade, à opressão do homem pelo homem, denúncia

que está de acordo com os ideais do surrealismo. Mas há bem mais do que isso. Há

também um exemplo da escola expressionista.

Como já foi dito, o artista expressionista está interessado em captar a realidade,

em apreendê-la, refletir sobre ela e projetar na obra de arte sua própria subjetividade. A

realidade pouco importa. O importante é a expressão da alma (TRINGALI, 1994).

Dessa forma, o que está em jogo não é uma crítica à sociedade, embora esta

possa existir em segundo plano, mas uma expressão da própria subjetividade do autor.

O personagem busca a liberdade mas não a encontra. Percebe que algo o

oprime, o impede de ser livre, que o machuca. O sofrimento subjetivo vira trauma de

guerra, a busca pela cessação do sofrimento vira busca por liberdade, o fracasso em se

livrar do sofrimento se transforma em opressão, a ausência de um caminho que leve ao

não sofrimento se transforma em conformismo, em ilusão.

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A busca do personagem é pela ausência de sofrimento.

Assim como está é que não é possível, ou me aceito ou não me aceito como sou, este saco de gatos nesta cova de serpentes, cada hora um e o seu oposto, tremendo de medo e brandindo a espada ao mesmo tempo, cheio de náusea e de piedade, por mim e por todos. (Chuva, p. 253).

A busca da individualidade ou a busca de autenticidade parece envolver um tipo

de auto-conhecimento e de auto-aceitação [“ou me aceito ou não me aceito como sou”].

E quem é o personagem? Alguém cheio de conflitos [“cada hora um e o seu oposto”],

corajoso e medroso [“tremendo de medo e brandindo a espada ao mesmo tempo”],

brigando consigo mesmo [“saco de gatos nesta cova de serpentes”], “cheio de náusea e

de piedade”. Um “homo multiplex” (Lua. P.136).

Náusea é um termo usado pelos existencialistas, geralmente como sinônimo de

angústia ou de tédio.

O sujeito, o que move o personagem, é a busca pela solução dos conflitos.

Esta aflição e esta angústia é que não formam nenhum sentido, noite após noite, fezes após fezes, como se o inimigo se comprazesse em baralhar as cartas do jogo a cada instante, jogo de paciência diz ele, mas de paciência sobre-humana digo eu, espécie de puzzle a que falta sempre uma peça para completar, ou ela não existe ou sou eu que sou mesmo míope de nascença, e até cego quando tiro os óculos para me enxergar. De qualquer forma teria que tomar uma decisão e tomei-a, comprando esta corda e dependurando-a do teto da casa, do teto do mundo (Chuva, p. 254, negrito meu).

O destaque [angústia e falta de sentido] se deve ao meu intento de mostrar, mais

uma vez, a afinidade do autor com o existencialismo, que possui a angústia como uma

das suas categorias centrais, assim também como se importa grandemente com a

questão do sentido da vida. Além disso, a falta de sentido, se permanecer, e vai

permanecer, faz referência ao niilismo.

O “homo multiplex” é um ser que vive angustiado, “noite após noite, fezes após

fezes” e não vê “nenhum sentido” nessa angústia. É alguém que possui um “buraco” no

peito, um desejo insaciável, um “puzzle a que falta sempre uma peça para completar”,

alguém que não é auto-suficiente, que não consegue “bastar-se a si mesmo”.

O tema do vazio e da incompletude reaparecem.

E qual é a peça que falta? A Bulgária, a inocência da infância, a auto-suficiência,

a liberdade, a individualidade, aceitar-se como se é realmente. “Penso que me

prepararam para o Paraíso e não para este mundo – e a farsa, pelo visto, continua.”

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(Chuva, p. 241). Essa peça “ou ela não existe ou sou eu que sou mesmo míope de

nascença”. Mais uma vez aparece a idéia de que a Bulgária [“Paraíso”] não existe. Mas

ainda resta a esperança de que não seja ela que não exista, mas sim o personagem que

não consegue encontrá-la [“sou mesmo míope de nascença”], ou mesmo incapaz de

construí-la.

Mesmo quando o personagem tira “os óculos para me enxergar”, ou seja, desfaz-

se das construções sociais que iludem [“óculos”], ele continua sem ver [“cego”], sem

encontrar nada. O que mostra, como disse acima, que o problema não está tanto na

opressão social, mas no sofrimento subjetivo.

A paciência necessária, a espera de encontrar a própria individualidade, de

construir o próprio caminho, já se esgotou. É necessária uma “paciência sobre-humana”,

pois “não disponho de vossa eternidade [das “donzelas casadouras e [das] mulheres

grávidas”, dos que continuam fingindo viver num “hotel internacional”] para viver”

(Sutil, p. 219). Daí a necessidade de “tomar uma decisão”. E a decisão foi tomada,

“comprando esta corda e dependurando-a do teto da casa, do teto do mundo”,

preparando o caminho para a morte, para a auto-eutanásia. Mais uma vez, a morte como

solução.

Comparar o “teto da casa” com o “teto do mundo” indica que não se trata de um

simples suicídio, o suicídio de quem está “tocado de medo e desespero”, mas o suicídio

de quem está disposto a “morrer lutando e, se preciso mesmo, com as minhas próprias

mãos, numa auto-eutanásia que nada tem a ver com o suicídio comum”. O teto do

mundo é o céu, relacionado à liberdade, quando da morte do irmão, sugerida também

pela figura do albatroz.

Mas o que é essa “auto-eutanásia” que nada tem a ver com o suicídio comum?

“O certo mesmo seria chamar a este meu suicídio de homicídio, já que em mim eu mato

o homem que não me agrada e não o meu eu verdadeiro, que é até simpático.” (Lua, p.

150). Quem deve morrer é “o homem que não me agrada”, a construção social imposta

ao indivíduo, que o impede de encontrar o “eu verdadeiro” [“Bulgária”, “Paraíso”].

Mas o personagem não disse que mesmo “quando tiro os óculos [a construção

social, “o homem que não me agrada”] para me enxergar” continua “cego”? Sendo

“mesmo míope de nascença”? Sim. Mas ele diz também ser um “homo multiplex”, um

“saco de gatos nesta cova de serpentes”, um ser cheio de contradições [“cada hora um e

o seu oposto”] que “ao mesmo tempo” treme “de medo” e brande “a espada” . Ele

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insiste na busca, mesmo prevendo que “de antemão nossa tentativa já fosse frustrada e

devêssemos pagar com a cabeça” (Lua, p. 93).

[...]: decidi ser imortal até que sobrevenha a morte, e com a alma e tudo, talvez até um deus eu descubra nas minhas fezes, há quem o engula aos domingos eu bem posso evacuá-lo numa segunda-feira, cada um dá o que pode: farei a minha força. (Chuva, p. 255).

O “saco de gatos nesta cova de serpentes” decide “ser imortal até que

sobrevenha a morte”, decide continuar lutando [“farei a minha força”], buscando, “noite

após noite, fezes após fezes” [“imortal”] até que venha a morte.

Parece que ele possui a “paciência sobre-humana” para esperar. Quem sabe ele

não encontra a “Bulgária” [“um deus”] nesta “MERDA” de vida [“nas minhas fezes”]?

Os iludidos, as “donzelas casadouras” e as “mulheres grávidas”, aceitam a ilusão

proposta pela sociedade, o deus “aos domingos”. Já o “homo multiplex” irá procurá-lo

“numa segunda-feira”, num não-lugar construído socialmente, construído pela “horda

de bárbaros”.

Buscar a Bulgária é o mesmo que se unir à Valquíria.

Valquíria, personagem chave da Vaca de nariz sutil, simboliza aquilo que o

personagem está buscando. Assim como existe um trauma que, para ser superado, leva à

busca, existe um ideal que é procurado, pois o personagem acredita que esse ideal,

quando encontrado, resolverá o trauma, trará a cura para o sofrimento.

O trauma funciona como causa inicial, enquanto o ideal, como causa final. Um

“empurra”, o outro “puxa”.

Dessa forma, sendo o sujeito aquilo que move o ser humano, tanto o trauma

quanto o ideal são aspectos do sujeito.

Tanto a Bulgária quanto Valquíria, representam o ideal a ser buscado.

Também não consigo fugir da lembrança de Valquíria: inútil fingir que não sei disto, que sou dono da minha alma como sou dono do meu estômago, [...], Valquíria é um nome apenas mas aqui é o único que eu consigo ouvir nitidamente, está dentro de mim e é inútil querer abafá-lo [...], não consigo nem lembrar o meu nome e me lembro do seu como se e o trouxesse marcado a fogo dentro do cérebro: o meu cérebro, agora dela. (Sutil, p. 191).

O ideal aprisiona o personagem, está gravado a fogo no cérebro que nem mais

pertence a ele, mas ao ideal. E é inútil fugir. Esse é um outro aspecto da busca. Assim

como o trauma é para sempre, a busca é inevitável, “é inútil querer abafá-la”.

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O ideal é a construção fictícia do personagem, e esse crê que o ideal é a resposta

ao trauma, a cura. A busca é pelo ideal, pela Valquíria, pela sabedoria da Vaca de nariz

sutil, pela Bulgária. Ou pela liberdade, pela inocência [inconsciência], pela superação da

repressão que possibilitará a livre manifestação do Inconsciente.

E o que o personagem encontra? Qual é o resultado da busca? É o que chamei

de encontro. E o encontro destrói o ideal, mostra que esse não cura, não resolve o

problema, não cura o trauma. O encontro é o próximo passo do processo.

Posso, também, interpretar a busca de uma segunda forma.

Com a consciência acerca das ilusórias construções sociais que servem para

distrair e afastar o olhar da realidade do sofrimento e adiar até quando possível o

encontro com esta, e com a consciência da existência e inevitabilidade do sofrimento, o

personagem parte em sua busca. A busca é uma fuga das construções [convenções]

sociais para melhor enxergar a realidade, bem como uma busca de resposta para o

problema da vida.

A busca é um movimento em direção a um ideal que recebe vários nomes:

Bulgária, Paraíso, infância perdida, liberdade, eu mesmo, auto-suficiência,

individualidade, auto-aceitação. Poderíamos acrescentar a busca pelo sujeito, pela

identidade, pela própria existência.

Na primeira interpretação, a busca é uma espécie de fuga do próprio sofrimento,

e busca daquilo que eliminará o sofrimento. E o autor sabe que nada eliminará esse

sofrimento, o ideal será frustrado. Nesse caso, ele se identifica com o niilismo. E o que

fazer nesse caso? O humor é a resposta. Aqui, mai uma vez, há a aproximação com o

dadaísmo.

No segundo caso, a busca é fuga das ilusões sociais e busca da liberdade, da

livre manifestação do Inconsciente. Nesse segundo caso o autor se aproxima mais dos

surrealistas.

E nesse segundo caso, o sujeito é visto como um ser humano consciente de seu

estado de ser que sofre e que caminha para a morte. As convenções sociais são ilusões

que corrompem e por isso devem ser deixadas em segundo plano. A busca é o

movimento que o sujeito faz para se encontrar [ou se construir] e se tornar auto-

suficiente de forma a não mais sofrer. Ou pelo menos construir uma personalidade

capaz de aceitar o mundo tal qual é e esperar a morte com dignidade, sem se confundir

com os papéis sociais que são impostos aos seres humanos e que atrapalham mais do

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que ajudam. Nesse ponto há uma aproximação com o existencialismo de E. Becker

(BECKER, 1973).

E nessa busca, o que o sujeito encontra?

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3.3 O encontro

Deparando-se com a angústia, com o trauma, e percebendo que não há como

evitá-la, o personagem foge das construções sociais, da rotina do dia a dia, que distraem

e afastam o ser humano das questões acerca da existência e do sofrimento. Tenta evitar

o esquecimento, a “cortina de fumaça”, e parte em busca de uma solução para o trauma.

Ao mesmo tempo, possui um ideal que o atrai, um objeto que, quando possuído,

o livrará da angústia. O ideal é a Bulgária, é Valquíria, a sabedoria da vaca de nariz

sutil, a inocência e inconsciência da infância.

Mas em sua busca ele encontra algo que não é o que procurava, algo que não só

destrói o seu ideal, como mostra a impossibilidade de acabar com o trauma, com a

angústia. Algo que se apresenta como o criador do trauma, o inventor do ideal, o

motivador da busca; ou seja, o próprio sujeito. Que sujeito é esse?

E, um minuto depois, como se estivesse apenas esperando a vez atrás da porta, o professor Radamés com o gato chega e solta a revelação estarrecedora: SOU UM BÚLGARO. OU MELHOR, SOMOS UNS BÚLGAROS, EU E MEU GATO. (Púcaro, p. 376).

Como “se estivesse apenas esperando a vez atrás da porta”, para pregar uma

peça ou fazer uma surpresa. A Bulgária não é encontrada, mas um [ou dois] búlgaro se

apresenta. Apresenta-se quando quer. O búlgaro não é descoberto, ele se apresenta, a

iniciativa é dele.

O acontecimento provoca uma reação de extrema admiração. Mais tarde o

personagem irá dizer “que a Bulgária acabara vindo até a mim uma vez que eu não

pudera ir até ela.” (Púcaro, p. 377). Mas não é bem a Bulgária que se apresenta, mas um

representante dela. Não seria como encontrar um sacerdote e acreditar que Deus existe e

acabou se apresentando através de um sacerdote? A existência de um búlgaro é

suficiente para concluir que a Bulgária existe? É uma revelação [a Bulgária existe] ou o

búlgaro está apenas pregando uma peça “como se estivesse apenas esperando a vez atrás

da porta”?

A figura do gato parece apontar para a segunda alternativa, pois durante todo o

livro se tem a nítida impressão de que o gato não é real, é apenas a mão do professor

Radamés disfarçada.

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Mas a figura do gato pode sugerir que, assim como o professor manipula sua

mão, chamando-a de gato, a Bulgária manipula algo que lhe pertence, chamando-o de

búlgaro.

E como nem um gato e nem uma mão é imagem e semelhança de um homem,

assim também um búlgaro não é imagem e semelhança daquilo que o manipula, mas do

qual faz parte.

O gato é a mão que pertence a um homem, e está disfarçada. Quem manda na

mão disfarçada de gato, é o homem, o senhor das ações, o sujeito dessas ações. O

búlgaro é uma “coisa” que pertence a “algo”. O búlgaro é um disfarce. Quem manda na

“coisa” disfarçada de búlgaro é “algo”. Esse “algo” é o senhor das ações, é o sujeito. É

chamado de Bulgária por associação com o búlgaro. Assim como poderíamos chamar o

homem de “gatolândia” por associação com o gato. Mas o homem não é uma

gatolândia, assim como o “algo” não é a Bulgária. A Bulgária não existe. Podemos

descartar esse nome.

Da mesma forma, que “coisa” é essa que chamamos de búlgaro? Talvez o

próprio indivíduo que recebe o nome de ser humano, e que é movido pelo sujeito

[“algo”].

O sujeito é um Mistério que desconhecemos e com quem só tomamos contato

através dos nomes [gato – ser humano] aplicados a uma parte desse mistério (mão –

indivíduo).

A reação do personagem à revelação é significativa.

– Vossa Excelência, um búlgaro! Disse Vossa Excelência como poderia ter dito Vossa Alteza ou Vossa Santidade: sem querer. Afinal de contas não é todos os dias que se está diante de um búlgaro autêntico, e com um gato búlgaro nos braços ainda por cima. (Púcaro, p. 376).

“Disse Vossa Excelência como poderia ter dito Vossa Alteza ou Vossa

Santidade”. “Vossa Excelência” é um pronome de tratamento para presidentes,

governadores, prefeitos. Ou seja, para representantes de países, estados e cidades. Assim

como o pronome “Vossa Alteza” é usado para príncipes, representantes de impérios ou

nações. E “Vossa Santidade” designa o Papa “[...] Vigário [representante] de Jesus

Cristo na terra” (SÃO PIO X, 2005, p. 74). Mas o presidente não é o país, o príncipe

não é o império e o Papa não é Jesus Cristo. Da mesma forma, o professor búlgaro,

mesmo sendo “um búlgaro autêntico”, não é a Bulgária.

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Quando, enfim, no lusco-fusco que já ia tomando conta da sala, as coisas se tornaram perfeitamente claras e já não havia dúvida de que a Bulgária acabara vindo até a mim uma vez que eu não pudera ir até ela, pedi com o maior respeito que o professor e seu gato se acomodassem na melhor poltrona e, uma vez todos acomodados, aguardei que, no melhor estilo quinhentista, ambos ou o professor me pusessem ou me pusesse a par de tudo que se relacionasse com a Bulgária em todos os tempos e em todos os espaços. (Púcaro, p. 377).

Aqui, enfim, acontecerá o encontro. A Bulgária veio até o personagem. Agora

ele ficará “a par de tudo” que se relacione com o sentido da vida, com a cessação do

sofrimento, com o sujeito uno e indiviso que, por ser assim, não deseja, não busca mais,

se torna auto-suficiente. Tudo a respeito do Mistério, que é o próprio sujeito.

Mas pode uma mão disfarçada de gato dizer tudo a respeito de um ser humano?

Poderá um búlgaro dizer algo a respeito do Mistério que o manipula? Não é à-toa que

as coisas começam a ficar “perfeitamente claras” no “lusco-fusco” da sala.

Mas, para espanto meu e presumo que também do gato, Radamés Stepanovicinsky, ex-natural de Quixeramobim no Ceará, rei dos búlgaros ou pelo menos rei dos gastrônomos búlgaros, limitou-se a dizer o seguinte: – Eu queria comer a Rosa, que conhecia de vista desde muito tempo, e por isso inventei aquela história toda. Uma vez que não a comi, que não a pude comer, que outro a comeu que não eu, e acredito tenha sido um dos poucos que não a comeram – não havia mais razão nenhuma para continuar fingindo que não era búlgaro, quando é muito mais fácil fingir que se é búlgaro, coisa que até hoje ninguém conseguiu provar se é ou se não é, se foi ou se não foi, se será ou se não será. E, mudando de assunto, onde é mesmo que vamos jantar hoje? (Púcaro, p. 377).

E a resposta esperada não aparece. O que o professor queria era ter relações

sexuais com a mulher que trabalhava na casa [“comer a Rosa”]. E só. Fora o sexo, só a

comida, “onde é mesmo que vamos jantar hoje?”. E é só isso que parece motivar o

professor, sexo e comida. Parece que é só isso que o ser humano pode dizer daquilo que

o move. Mas da mesma forma como um ser humano não conhece o Mistério que o

move, um búlgaro não conhece a Bulgária que o manipula.

Confessa o professor: “Eu sempre desejei conhecer a Bulgária.” (Púcaro, p.

382). Diante dessa frase inusitada, os demais personagens exclamam: “Mas o sr. não é

búlgaro?!” (Púcaro, p. 382), e a resposta: “Saí de lá muito criança, meses apenas [...].

[Um] cearense conseguiu convencer meu pai de que o Ceará existia mesmo, e meu pai

organizou a primeira expedição búlgara para descobrir o Ceará.” (Púcaro, p. 382).

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Existe nessa passagem mais uma referência à primeira infância, à inconsciência.

O personagem saiu muito cedo da Bulgária, não se lembrando de lá, da mesma forma

como a criança sai do útero [púcaro] materno e só irá adquirir consciência, e, portanto,

memória, bem mais tarde.

A Bulgária exite apenas como ideal.

Campos de Carvalho, quando perguntado em entrevista a Antônio Prata e Sérgio

Cohn sobre se a Bulgária existia ou não, respondeu: “[...] não existe nada comprovado.

As preocupações da ciência são outras, pensa-se em ir a Marte, que, aliás, não existe.”

(apud BATELLA, 2004, p. 221).

Mas, deixando o ideal de lado, Bulgária pode ser uma forma de nomear o

Mistério.

Agora é dia claro, embora tudo continue escuro como dantes, apesar de meus novos pensamentos que me fazem fosforescente e ígneo. Quanto mais claro eu me torno por dentro, mais obscuro se torna o mundo e o dia dentro dele – descubro-o agora. É por isso que os moribundos se tornam quase translúcidos em sua onividência, minutos antes de morrerem: eles são um foco de luz dentro do mundo opaco. E eu sou moribundo cada vez mais convicto da sua morte, queira-o ou não. (Lua, p. 148, negrito e sublinhado meus).

As verdades socialmente estabelecidas, “o dia dentro dele [mundo]”, são

consideradas sem sentido, obscuras, diante dos “novos pensamentos” (Lua, p.146). As

convenções sociais, que deveriam iluminar, não iluminam. A luz vem do interior do

personagem, de sua “liberdade”, de seu “eu verdadeiro”. Mas esse “eu verdadeiro” é

como o “moribundo”. A morte é encarada como forma de iluminação. Quanto mais

próximo da morte, mais claros se tornam os pensamentos.

Os “novos pensamentos” a respeito da condição humana são tão esclarecedores

que fazem o personagem ficar “fosforescente e ígneo”. As convenções sociais são como

que o oposto da verdade. Quanto mais se aproxima do encontro, mais se percebe o

quanto o “lustre” (Chuva, p. 247) social é enganador, serve apenas para “disfarçar o

pânico” (Chuva, p. 247).

As verdades acerca do sujeito são tão opostas ao social, que são comparadas

com a morte. Os “moribundos se tornam quase translúcidos em sua onividência”, pois já

estão saindo do “mundo opaco”, do que é conhecido por mundo.

O fugitivo se considera um “moribundo cada vez mais convicto da sua morte”,

alguém cada vez mais afastado do social, do “lustre” que cobre o “campo de

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concentração” e o deixa com uma aparência de um “hotel internacional”, para “disfarçar

o pânico”.

Existe nessa passagem um jogo de palavras e de opostos. Eu/morte/moribundo x

mundo/dia claro, luz/translúcido/fosforescente/ígneo x escuro/obscuro/opaco. Dentro

do mundo, o dia está claro, dentro do dia claro, está o eu. Quanto mais o eu se aproxima

da morte, mais claro ele fica. Quanto mais claro fica o eu, mais obscuro fica o mundo.

Podemos fazer o caminho inverso: dentro do mundo, a noite está escura, dentro da noite

escura, está o eu. Quanto mais vivo está o eu, mais escuro ele fica. Quanto mais escuro

fica o eu, mais claro fica o mundo.

Esse jogo de opostos revela a importância dada à subjetividade. O mundo

oprime a subjetividade. E quanto maior é a opressão do mundo, maior o descaso do

indivíduo com ele mesmo. Por outro lado, quanto mais o indivíduo se concentra em sua

busca, mais ele se aproxima da verdade sobre o sujeito, que é a verdade sobre a

libertação através da morte. Como dirá o personagem: “O mundo se divide em duas

partes bem definidas: eu e o resto do mundo” (Lua, p. 147). E a mais importante é o eu.

Há um conto de Machado de Assis (2003), O espelho, que elucida esse jogo de

opostos.

O conto narra uma conversa entre cinco pessoas. Uma delas toma a palavra e

começa seu discurso da seguinte forma: “Em primeiro lugar não há uma só alma, há

duas...” (ASSIS, 2003, p. 44). E continua: “Cada criatura humana traz duas almas

consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro...”

(ASSIS, 2003, p. 44).

E a partir daí, o personagem começa a narrar uma experiência ocorrida com ele.

Foi “nomeado alferes da Guarda Nacional.” (ASSIS, 2003, p. 45), e se tornou

respeitadíssimo por seus parentes e concidadãos. A bajulação foi tamanha que o “alferes

eliminou o homem.” (ASSIS, 2003, p. 47).

Aconteceu então que a alma exterior, [...] passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. (ASSIS, 2003, p. 47).

Um dia o alferes se hospedou na casa de uma tia, mas essa, junto com o

cunhado, teve que sair em viajem devido a uma emergência. O alferes ficou em

completa solidão, tomando conta da casa. Sem ninguém para bajulá-lo, ele ficou

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desnorteado, “como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico.”

(ASSIS, 2003, p. 49).

Foi quando se olhou no espelho e viu uma figura “vaga, esfumada, difusa,

sombra de sombra.” (ASSIS, 2003, p. 50). Esse estranho fenômeno, que amedrontou o

personagem, só teve fim quando ele lembrou-se de “vestir a farda de alferes.” (ASSIS,

2003, p. 51). Feito isso, “o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de

menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma

exterior.” (ASSIS, 2003, p. 51).

A alma exterior são as convenções sociais, o “dia” ou o “mundo”, na linguagem

de Campos de Carvalho. Quando alguém se prende aos papeis sociais, sua alma exterior

ganha vida em detrimento da alma interior. Mas ao se desprender dos papéis sociais,

como o personagem do livro A lua vem da Ásia, o mundo, a alma exterior, fica escuro.

Já a alma interior, na sua completa solidão, brilha. Aconteceu com o personagem de

Campos de carvalho, o oposto do ocorrido com o personagem de Machado de Assis.

Esse jogo de opostos revela a importância dada à subjetividade. O mundo

oprime a subjetividade. E quanto maior é a opressão do mundo, da alma externa, maior

o descaso do indivíduo com ele mesmo, com a alma interna. Por outro lado, quanto

mais o indivíduo se concentra em sua busca, mais ele se aproxima da verdade sobre o

sujeito, que parece ser, em Campos de Carvalho, não em Machado de Assis, a verdade

sobre a libertação através da morte. Como dirá o personagem: “O mundo se divide em

duas partes bem definidas: eu e o resto do mundo” (Lua, p. 147). E a mais importante é

o eu.

A verdade sobre a libertação pela morte, é chamada pelo personagem de “meus

novos pensamentos”.

Meus novos pensamentos, que são de virar o mundo pelo avesso, [...], eu não os revelarei aqui [...]. Vamos deixar que o baile ainda continue por algum tempo, o baile dos que só sabem dançar ao som de músicas alheias e devidamente censuradas pela prefeitura; no momento azado eu subo numa cadeira e, de batuta à mão, ponho os músicos todos malucos com a partitura que arrancarei do bolso, ainda quente do calor do meu corpo. Os pares que se danem, que virem ímpares, se quiserem continuar dançando, ou que se enforquem numa das mil cordas que porei à sua disposição pelos cantos do salão, com direito a confessor e tudo. Ao som da minha Cacofonia sem dó – [...] – os que tiverem uma alma se sentirão envergonhados de terem vivido sem ela até então, e recuperarão a infância num abrir e fechar de olhos: a infância de antes das primeiras letras, evidentemente. A nova sarabanda, dançada mais ao som de atabaques do que de violinos, acabará por ser chamada Dança Macabra, como lhe convém [...]. Dança e motivo musical farão um quadro dissonante único, [...], e sob a égide da minha Cacofonia

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Anti-Sinfônica os miasmas da estupidez tenderão a desaparecer a pouco e pouco da face da terra, substituídos pelo cheiro do absinto e do esperma, que darão o tom da nova primavera. (Lua, p. 146-147).

Em primeiro lugar, os novos pensamentos são capazes “de virar o mundo pelo

avesso”, pois são o avesso mesmo do mundo. “Quanto mais claro eu me torno por

dentro, mais obscuro se torna o mundo e o dia dentro dele”. E eles não serão revelados

de imediato. O neo-iluminado, “fosforescente e ígneo”, prefere deixar que “o baile

ainda continue por algum tempo”, o baile para “distrair as donzelas casadouras e as

mulheres grávidas” (Sutil, p. 198). As “donzelas” sabem apenas viver conforme as

convenções sociais, acreditam apenas nas verdades estabelecidas. Dançam apenas “ao

som de músicas alheias e devidamente censuradas pela prefeitura”. Dançar conforme a

música é uma expressão conhecida e que é o mesmo que adaptar-se ao meio.

Mas “no momento azado”, “como se estivesse apenas esperando a vez atrás da

porta”, as verdades serão reveladas. E quais são essas verdades? Quais as características

da “Bulgária”? Pelos efeitos que produzirão, podemos descobrir mais sobre elas.

“Os pares que se danem, que virem ímpares”. As verdades transformam

“donzelas casadouras”, que “só sabem dançar ao som de músicas alheias”, em

indivíduos, em seres únicos, ímpares. O que equivale a morrer para o mundo, “numa

das mil cordas que porei à sua disposição pelos cantos do salão”.

Em relação ao social, ao coletivo, a verdade sobre o indivíduo é uma “Cacofonia

sem dó”, uma “Cacofonia Anti-Sinfônica”, “um quadro dissonante único”. Entre o

indivíduo e o social existe uma dissonância, uma forte oposição.

Contra a organização social, a sinfonia, que é conjunção de sons, o personagem

propõe uma desordem, um som em cacos [cacofonia], acentuando a diferença [anti-

sinfônico]. O que provoca dor [sem dó], ou seja, aponta para o trauma.

As “donzelas casadouras” se sentirão envergonhadas diante da revelação,

perceberão que estiveram o tempo todo encenando uma farsa, por puro medo, para

“disfarçar o pânico”. Encenar uma farsa ao invés de ter uma vida autêntica, é o mesmo

que viver sem alma. A busca é pela alma, pela vida autêntica, por ser quem se é de fato,

um indivíduo.

A “infância de antes das primeiras letras”, de antes da educação, será

recuperada. Mais uma vez a idéia de que a educação corrompe, a formação da

consciência é um crime, a manifestação do Inconsciente é necessária. A educação

deseduca, compromete a inocência. “Aos mil professores que tentaram deseducar-me

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respondo-lhes com um piparote no cocuruto”. (Lua, p. 148). Mais uma vez fica realçada

a relação com o surrealismo.

A relação dessas verdades com a sexualidade e com a sensualidade – “Eu queria

comer a Rosa, [...], onde é mesmo que vamos jantar hoje?” – é explicita no “cheiro do

absinto e do esperma, que darão o tom da nova primavera.”. Um novo começo

[“primavera”], inocência da “infância de antes das primeiras letras” recuperada,

“CAFARNAUM: zero hora do dia zero do Ano Zero.” (Chuva, p. 255). A sensualidade

também está presente no tipo de música que será tocada, não com “violinos”, mas com

“atabaques”. O resultado é a “Dança Macabra”, com o cheiro “do absinto e do

esperma”.

A “Cacofonia Anti-Sinfônica” é o discurso sobre as verdades acerca do

indivíduo, do sujeito, da vida [que é uma “MERDA”]. Esse discurso é o oposto ao

“blablablá” (Chuva, p. 255) social, é o oposto da “ciência oficial e cheirando a

naftalina” (Lua, p. 148), ou seja, velha e “devidamente censuradas”. Já o “eu” oferece

“a onisciência do meu instinto indomável e sem máscara, mesmo porque não existe (que

eu saiba) nenhuma máscara de mil faces.”. (Lua, p. 148). Mil faces, uma pra cada

verdade. Aqui se revela o relativismo típico do niilismo.

Sendo o indivíduo “cada hora um e o seu oposto” (Chuva, p. 253), um “saco de

gatos nesta cova de serpentes” (Chuva, p. 253), é também “múltiplo, múltiplo,

múltiplo”. “Cada fio do meu cabelo é uma verdade diferente, e todos me pertencem”

(Chuva, p. 234). Não há a verdade única sobre o indivíduo para ser apresentada como

uma “ciência oficial”, que usa uma máscara de apenas uma face.

Já a “Dança Macabra” é o resultado do discurso. Macabra em relação à “ciência

oficial e cheirando a naftalina”, que tudo fazia para “disfarçar o pânico”. O resultado é a

recuperação da “inocência”, da vida autêntica, com “alma”.

Então existe um discurso de mil faces sobre o indivíduo, capaz de recuperar “a

infância de antes das primeiras letras”! Ou seja, a “Bulgária” foi descoberta! Uma “vaca

de nariz sutil” foi encontrada! Só não há como colocá-lo [o discurso] em palavras

[“ciência oficial”] pois não existe uma “máscara de mil faces”!

Nesse caso, o indivíduo auto-suficiente, a “Bulgária”, a “vaca de nariz sutil”,

existem. Apenas são inefáveis.

Porém:

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Mas tudo isto são desvarios de um espírito tresnoitado, dirão talvez meus inimigos eternos, que vivem dentro e fora de mim – e bastará que você calce os sapatos para que a realidade volte a funcionar sob seus pés, a dura e feia realidade de todos os dias, inclusive feriados e dias santos. É bem possível que assim seja, respondo calado, e por isso mesmo tratarei de não pôr sapatos tão cedo, e se preciso não os porei nunca mais, a fim de pousar sobre os meus próprios alicerces e ter os sonhos que quiser ter, e que para mim serão certezas. (Lua, p. 147).

Os “inimigos eternos” dirão que isso não passa de uma ilusão, de um devaneio.

Que só é possível viver assim na fantasia, nos sonhos. Mas na vida real, na “dura e feia

realidade de todos”, esse discurso de “mil faces” não passa de “desvarios de um espírito

tresnoitado”. E qual a defesa do personagem? Ele responde “calado”, como que

consentindo: “É bem possível que assim seja”. Não é só “possível”. Ao acrescentar “e

por isso mesmo tratarei de não pôr sapatos tão cedo”, ele reconhece que a possibilidade

é maior do que deixou transparecer.

Os inimigos que vivem “dentro e fora” do personagem podem ser relacionados à

dupla opressão da qual os surrealistas desejam se ver livres. A opressão psíquica,

quando o homem oprime a si-mesmo, e a opressão social, quando o homem oprime

outro homem. (TRINGALI, 1994, p. 211-212).

Mas pode também ser um sinal de uma pequena discordância com o surrealismo,

já que em sua “confissão central” o autor declara que nada pode ser construído. Assim,

a sociedade é só um reflexo dos inimigos que habitam a alma humana. O que está mais

de acordo com a Obra reunida em seu conjunto. “Se não posso mudar o mundo, tão

pouco permitirei que o mundo me mude a mim” (Lua, p. 147).

Os “sapatos” são os papéis sociais que um indivíduo deve representar no seu dia

a dia, “todos os dias”. São as máscaras, cada uma com uma só face, dependendo do

papel que está sendo representado [professor, cientista, médico, estudante, etc.]. É o

“nome” (Chuva, p. 255), “este nome é que me faz voltar a cabeça quando me chamam”

(Chuva, p. 255).

O personagem reconhece que seus “novos pensamentos”, capazes “de virar o

mundo pelo avesso”, de trazer de volta “a infância de antes das primeiras letras”, de dar

“o tom da nova primavera”, são apenas ilusões, “sonhos”, “desvarios”. Mas prefere ficar

sonhando, pisando em seus “próprios alicerces”, em suas próprias bases, construídas

com suas fantasias, que não são tão ilusórias quanto as mentiras contadas para “distrair

as donzelas casadouras e as mulheres grávidas”, mas que para ele “serão certezas”, pois

o sonho é uma realidade profunda.

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Diz Dante Tringali (1994, p. 212) ao caracterizar o surrealismo: “Acima de tudo,

o homem é um sonhador, um ‘sonhador definitivo’.”. E principalmente: “O sonho não é

uma fuga da realidade, mas uma realidade profunda.” (TRINGALI, 1994, p. 212). O

personagem dirá que “a [sua] defesa está justamente nos meus sonhos, ou desvarios

como queiram, em cujas asas vôo às alturas que vocês nunca atingirão de foguete” (Lua,

p. 147).

Assim, o indivíduo auto-suficiente, a “Bulgária”, a “vaca de nariz sutil” ou a

individualidade, são ficções, “desvarios de um espírito tresnoitado”. “É bem possível

que assim seja”.

Mas o que é o sujeito, nesse caso? Um “câncer de mistérios e heresias que é toda

minha riqueza e que faz com que minha voz não seja apenas o grunhido de um porco,

nem meu olhar apenas o olhar de um peixe dentro do aquário.” (Lua, p. 147-148).

O Mistério é um mistério. O que não é muito esclarecedor. Mas é ele que faz o

ser humano ser mais do que um animal.

Mas é possível viver assim, alçando vôos “às alturas” com as asas dadas pelos

“meus sonhos, ou desvarios” e ao mesmo tempo calçando “os sapatos” da “dura e feia

realidade de todos os dias”? Parece que não, pois os “inimigos eternos, que vivem

dentro e fora de mim” dizem que “tudo isto são desvarios de um espírito tresnoitado”. E

é “bem possível que assim seja”. E é esse o encontro: o trauma não tem cura e o ideal é

um sonho. Daí, o apelo à morte.

O Mistério também é comparado ao olhar da vaca de nariz sutil.

Lembra-me um quadro que vi certa vez numa revista, do pintor Dubuffet se não me engano, onde todo o espaço era ocupado por uma vaca em todo igual às outras vacas, mas com um focinho e um olhar que não deixavam dúvida sobre a sua segunda sabedoria, e mesmo a terceira e a quarta [...]. Vaca de nariz sutil, assim se chamava o quadro, e em vão tenho procurado uma vaca assim entre as vacas e sobretudo entre os homens (Sutil, p. 218).

O indivíduo auto-suficiente, a “Bulgária”, a “vaca de nariz sutil”, não existem.

Ou pelo menos ainda não foram encontrados [“em vão tenho procurado”].

Mas: “e uma única vez lobriguei um olhar semelhante [ao olhar da vaca de nariz

sutil], no olhar de Valquíria, [...], quando lhe dei a rosa para se olhar.” (Sutil, p. 218).

O personagem se apaixonou por Valquíria, por que vislumbrou a sabedoria em

um de seus olhos. Valquíria vive no cemitério, “solta entre os mortos [e suas] raízes já

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cresceram entre eles e o seu sonho é povoado dos seus sonhos: um belo dia ela se

enterra a si mesma, cova aberta é o que não falta” (Sutil, p. 204).

Ela não foi educada devido a um retardo mental, vivendo sozinha. Ela “não

suporta a multidão, e quem suporta?” (Sutil, p. 204). É o símbolo mesmo do

Inconsciente. Além da comparação com as valquírias, como já foi frisado, amazonas

que buscam os guerreiros caídos no campo de combate e os levam para o paraíso, para o

reino dos mortos. E o personagem é um neurótico de guerra, alguém que caiu em

combate, pois foi na guerra que ocorreu o trauma.

Valquíria representa o ideal buscado pelo personagem. Mas esse ideal é, aos

poucos, quebrado. Ele percebe que em Valquíria existem “duas criaturas que respondem

diferente ao apelo da minha angústia, a uma eu a mataria sem piedade e me faria mil

vezes matar pela outra: a verdadeira: a única.” (Sutil, p. 203), ela pode ser “um ardil sem

nome, [...] arrastando-me à minha perdição” (Sutil, p. 203).

E é a união com Valquíria que simboliza o encontro. “Reclino-a sobre o túmulo,

ela se de deixa deitar, seu corpo está mais quente do que o mármore, deito-me sobre

Valquíria e sobre o morto, o dia faz-se noite, o mundo já não existe, nenhum mundo.”

(Sutil, p. 205).

Mais uma vez os opostos, dia x noite. O mundo, o social, deixa de existir. O

personagem está sobre Valquíria, que está sobre a lápide, que está sobre o morto. O

guerreiro sendo levado pela valquíria para o reino dos mortos.

E o personagem percebe que o impulso para a morte está dentro dele, “esse olhar

brilhando no seu rosto e no meu, e [...] o vejo agora dentro de mim, na altura da testa,

como um diamante no seu escrínio – inviolável como a alma, como a inocência.” (Sutil,

p. 218).

O encontro revela que o ideal buscado não é capaz de trazer a tranqüilidade

almejada e nem de curar o trauma. Mais uma vez a morte parece ser a única solução.

O livro que revela de forma mais clara a natureza do encontro é A chuva imóvel.

O que o personagem busca, o seu ideal, é a própria identidade, “tenho que buscar

o espelho para encontrar o momento exato e, nele, a minha face” (Chuva, p. 232), diz o

personagem. Duas figuras são importantes e reveladoras. O demônio e o espelho.

A metáfora do espelho possui muita força nos estudos e reflexões da nossa

cultura atual.

Wittgenstein (1889-1951), filósofo austríaco radicado na Inglaterra, redigiu seu

Tratado lógico-filosófico durante a primeira guerra mundial. O filósofo diz que “as

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verdades dos pensamentos [contidas no livro] parecem intocáveis e definitivas. [Assim],

essencialmente, [encontrei] a solução final dos problemas [filosóficos].”

(WITTGENSTEIN, 2002, p. 28). Em outras palavras, o pensador austríaco acreditava

ter resolvido todos os problemas essencias da filosofia!

Em sua segunda obra, Investigações filosóficas, ele reconhece os erros

cometidos em seu primeiro livro e os atribui a um aprisionamento por uma imagem.

(WITTGENSTEIN, 2002, p. 28).

O que são imagens que aprisionam? O filósofo norte-americano Richard Rorty

esclarece esse ponto dizendo que as imagens [metáforas] mais que as proposições

[afirmações] determinam as teses da filosofia. E que a imagem mais forte é a imagem

do espelho. A imagem de que a mente humana é como um espelho que reflete a

imagem da natureza e com isso torna possível o conhecimento (RORTY, 1994).

A imagem que aprisionou Wittgenstein foi, em grande parte, a imagem do

espelho. A mente reflete a realidade e a proposição reflete a mente. Assim podemos

conhecer. Essa é a única forma possível de adquirir conhecimento.

Mas ambos os filósofos se libertaram da imagem do espelho como uma peça que

reflete a realidade. Wittgenstein, como já disse, reconheceu seu erro.

De acordo com Cirlot (1984, p. 239-240) o espelho possui um “complexo

simbolismo”: imaginação, consciência, pensamento; mas principalmente, para o meu

objetivo, é símbolo da memória inconsciente, da auto-contemplação e da

multiplicidade da alma (CIRLOT 1984, p. 239-240).

Liga-se ao mito de Narciso (CIRLOT 1984, p. 239). “Aparece, às vezes, nos

mitos, como porta pela qual a alma pode dissociar-se e ‘passar’ para o outro lado, tema

este tratado por Lewis Carroll em Alice.” (CIRLOT 1984, p. 240). “Aparece com

freqüência em lendas e contos folclóricos dotado de caráter mágico” (CIRLOT 1984, p.

239).

O espelho possui, portanto, uma gama de significados, tornando-se um símbolo

rico. Campos de Carvalho usará o espelho não como uma peça que reflete a realidade,

mas que promove uma experiência que levará o personagem para além das aparências,

no caso, identificadas com as convenções sociais e as representações mentais que o

indivíduo possui de si mesmo. Nesse caso o espelho está relacionado com o

inconsciente, com a auto-contemplação, com o “outro lado”. Ou até mesmo com um

objeto capaz de refletir a verdadeira realidade, e não as aparências. No caso da obra em

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questão, as aparências formam o ideal a ser buscado, enquanto a verdadeira realidade

será revelada no encontro. E o encontro quebrará, como sempre, o ideal.

Antes de voltar para a Obra reunida, gostaria de explorar um pouco mais o

conto já citado de Machado de Assis, e também um outro conto da literatura brasileira,

de Guimarães Rosa. O segundo conto também evoca o simbolismo do espelho. E

também se intitula O espelho.

No conto de Guimarães Rosa, narrado em primeira pessoa, o personagem, ao se

deparar com um espelho, enxerga “uma figura, perfil humano, desagradável ao

derradeiro grau, repulsivo, hediondo.” (ROSA, 2008, p. 79). A figura causa no

personagem “náusea [...], ódio e susto, eriçamento e espavor.” (ROSA, 2008, p. 79). E o

que era essa figura? “E era – logo descobri... era eu mesmo!” (ROSA, 2008, p. 79). Esse

é, usando minha nomenclatura, o trauma.

A busca vem logo em seguida. “Desde aí, comecei a procurar-me – ao eu por

detrás de mim – à tona dos espelhos” (ROSA, 2008, p. 79). A busca é a mesma do

personagem do livro A chuva imóvel, o “eu por detrás de mim”, o verdadeiro eu.

O personagem do conto começa a fazer várias experiências, observando-se no

espelho e abstraindo uma série de traços do seu rosto. Em primeiro lugar, o “elemento

animal” (ROSA, 2008, p. 80), depois “o elemento hereditário” (ROSA, 2008, p. 82), até

o que se deve “ao contágio das paixões, [às] desordenadas pressões psicológicas, [...]

sugestões de outrem; e os efêmeros interesses” (ROSA, 2008, p. 82).

O esquecimento também aparece sob a forma de dores de cabeça, e a

investigação é abandonada, para ser reiniciada posteriormente. Até que um dia dá-se o

encontro. E no lugar do “eu por detrás de mim”, que é o ideal buscado, o personagem

não vê nada. “Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi. Não vi

nada.” (ROSA, 2008, p. 82). O personagem até cria um nome sugestivo e poético para

si-mesmo: “o transparente contemplador” (ROSA, 2008, p. 83).

Uma objeção é colocada: é um “despropósito de pretender que o psiquismo ou a

alma se retratassem em espelhos...” (ROSA, 2008, p. 83). Mas o personagem começa a

vislumbrar uma “luzinha [...] que de mim se emitia” (ROSA, 2008, p. 84). O

personagem de Campos de Carvalho também vislumbra uma luz, que é identificada com

o olhar do demônio, que é a mesma luz vislumbrada no olhar de Valquíria e no olhar da

vaca de nariz sutil.

Voltarei ao conto de Guimarães rosa mais tarde, ao falar sobre a resposta.

E retomo aqui o conto de Machado de Assis, citado mais acima.

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O alferes, despido de seus papéis sociais, ou as peças escolhidas pela alma

externa, “a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me

falava do homem.” (ASSIS, 2003, p. 47), também encara o espelho e não se vê,

vislumbra somente uma figura “vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra.” (ASSIS,

2003, p. 50).

Também retomarei esse conto, mas quando falar da resposta.

Retornando à Obra, o personagem começa a delirar enquanto morre. Seu delírio

é formado por visões que representam uma busca, e dependendo do resultado da busca

ele pode desistir do suicídio ou levá-lo adiante.

Na visão ele trilha um longo caminho, se desfazendo de todos os vínculos com

o mundo externo, se afastando de todas as pessoas, até encontrar um navio e, dentro do

navio, um espelho. O navio é o próprio ser humano, que caminha na superfície desse

mundo misterioso, sem conhecer seu Mistério, sua profundidade, assim como um navio

desliza sobre o mar sem conseguir ver o que há por sob a imensidão do oceano. A sala

dentro do navio é o lugar onde o ser se encontra consigo mesmo. O espelho é fruto de

sua busca, de sua reflexão.

... Esse espelho repentinamente ao fundo, junto a essa escada: do tamanho de um homem, capaz de conter um homem – tão insólito quanto eu mesmo nesta posição de sentido, nessa posição de sentido, refletindo sem refletir toda esta milenar angústia: assim calmamente, limpidamente – ainda que perplexo. (Chuva, p. 287).

O olhar espera “nesta posição de sentido, nessa posição de sentido”. Posição de

quem espera encontrar um “sentido”, um sentido para a vida, para “esta milenar

angústia”.

Estou diante do espelho: A SALA DENTRO DO ESPELHO. – A sala, o navio: NÃO EU, não o que deveria ser eu: – a sala e a sua penumbra. A menos que... ... Mas não e NÃO! – recuso-me a ser apenas isso: RECUSO-ME!... Mesmo que tudo não passe de uma farsa, ou de um..., ou seja do que seja, e ainda mesmo que seja apenas a verdade... RECUSO-ME! ... A ignomínia das ignomínias! (Chuva, p. 287).

A reação do personagem é forte. O uso de letras em maiúscula, o abuso das

exclamações e reticências servem para denotar um desespero, um grande espanto.

O ideal [“o que deveria ser eu”] é, como sempre, quando se dá o encontro,

quebrado. O encontro desconstrói o sonho de se acabar com a “milenar angústia”.

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O que aparece refletido no espelho? “A sala, o navio”, “a sala e a sua

penumbra”. E o personagem esperando, “calmamente, [...] ainda que perplexo”, ver sua

própria imagem. “A SALA DENTRO DO ESPELHO.”. As letras maiúsculas já

começam a indicar o desespero. O “eu” não aparece. “A sala, o navio: NÃO-EU, não o

que deveria ser eu”. E o motivo do desespero é, mais uma vez, indicado pelas

maiúsculas: “NÃO-EU”. E qual a conclusão do personagem? Ele diz: “A menos que...”.

E não conclui. A conclusão fica implícita: a menos que ele não exista, por isso não está

sendo refletido. Ou, como no conto de Guimarães Rosa, “o transparente

contemplador” (ROSA, 2008, p. 83, negrito meu).

A conclusão, a não existência do eu, é bem parecida com o pensamento budista.

Não há nada de permanente, que é o significado de Anatman. Atman é o ego. Anatman é a negação do ego. Não existe ego. Não existe um ego permanente e não há identidade. Não se pode dizer meu ou dizer minha. Não somente as coisas todas não pertencem a você, como o seu corpo também não pertence a você. (TOKUDA, 2002, p. 4).

É interessante que, para o budismo, perceber a não existência do eu é o princípio

da libertação do sofrimento. Recusar-se a aceitar a não existência do eu é impedir que o

sofrimento acabe, pois o apego [“meu...minha”], que é a causa do sofrimento,

continuará a existir. E qual é a reação do personagem a esta que é considerada uma das

“teorias fundamentais” (TOKUDA, 2002, p. 3) do budismo?

Ele recusa-se a aceitar a não existência do eu. Ele recusa-se a “a ser apenas

isso”. E de forma enfática diz: “RECUSO-ME! [...], mesmo que seja apenas a verdade...

RECUSO-ME!”. “A ignomínia das ignomínias!”.

A comparação com o budismo não deve servir como uma chave de

interpretação, pois há uma especificidade no olhar do personagem em direção ao

espelho que o leva além da simples constatação da não existência do eu. Da mesma

forma que no conto de Guimarães Rosa, depois de não se ver no espelho, vislumbra

nessa “luzinha [...] que de mim se emitia” (ROSA, 2008, p. 84), também o personagem

de Campos de Carvalho percebe algo mais no espelho, também uma luz. Mas antes de

falar dessa luz, volto à reação do personagem diante do espelho.

Ser um vazio, um nada, é ultrajante. A experiência diante do espelho recebe o

nome de “isso”, “recuso-me a ser apenas isso”.

“[...] com dois pés e sem rabo após toda uma evolução multimilenária, toda uma

espantada e espantosa evolução: para chegar apenas a isto – a Isso.” (Chuva, p. 292).

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“ Isso” é o nome dado à “ignomínia das ignomínias”. O ser humano, “com dois pés e

sem rabo após toda uma evolução multimilenária”, é apenas “Isso”, uma “Coisa –

recuso-me a chamá-la de Eu” (Chuva, p. 288). “[...], o meu silêncio, não preciso de que

me atirem pelo rosto nenhum outro silêncio, nem tenho um rosto para que me atirem,

nem tenho um rosto, apenas este silêncio no lugar do rosto.” (Chuva, p. 290). No lugar

do rosto, do eu, um vazio, um silêncio.

Esta Coisa – recuso-me a chamá-la de Eu, [...]: essa Coisa fora de mim. Carrego esse inimigo, ou ele é que me carrega: o dono da corda – o responsável por estes passos que não dou e por estas mãos que não tenho sabendo que tenho – e agora por esta angústia que, bem, por esta angústia, esta maldita falta de serenidade que me... É como se eu estivesse num escafandro e de repente descobrisse que o meu maior inimigo é justamente, não o que está lá fora, mas justamente este inimigo que me protege sem me proteger, esta falsa roupa que assim me deixa mais nu do que se eu estivesse nu (Chuva, p. 288, negrito meu).

A “Coisa” é o “inimigo”. E é o inimigo que manda no personagem. “Sento-me

quando ele quer que eu me sente” (Chuva, p. 288). O inimigo é o próprio sujeito.

O sujeito é a Coisa. A Coisa o controla, o prende, o faz pensar. Mesmo com a

recusa, mesmo sem permissão – “fazendo-me pensar o que não quero, o que eu não

quero, O QUE EU NÃO QUERO” (Chuva, p. 290).

A recusa em aceitar o vazio, a não existência do eu, da “Bulgária”, da “vaca de

nariz sutil”; a recusa em aceitar a animalidade pura, “com dois pés e sem rabo”, um

“ Isso”, leva o personagem a se apegar ao

pensamento enquanto ele ainda é meu, enquanto ele ainda é meu, o último baluarte que me resta do que eu já fui, do que ainda estou sendo, nesta partícula ínfima mas ainda eu – EU e não essa Coisa, [...]. Este é meu último reduto, e só cairá quando eu cair, só cairá quando eu cair. (Chuva, p. 290).

Descartes, o filósofo que é considerado o fundador do pensamento moderno,

também se apega ao pensamento como sendo “o último baluarte”, para não cair no

completo ceticismo e niilismo. “Sou uma coisa que pensa” (DESCARTES, 1996, p.

277). “Estou certo de que sou uma coisa pensante” (DESCARTES, 1996, p. 278). E

“estou [...] certo de que essas maneiras de pensar, que chamo sentimentos e imaginações

somente na medida em que são maneiras de pensar, residem e se encontram certamente

em mim.” (DESCARTES, 1996, p. 278). Estas são as frases com as quais se inaugura o

que será conhecido como “sujeito moderno”.

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O sujeito moderno é considerado uma substância que pensa, em contraposição à

substância extensa, que é a matéria que forma o mundo. Assim, o sujeito moderno é um

todo, um ser uno, completo e racional.

E é este, o pensamento como sendo eu, o “último baluarte” e “último reduto” do

personagem. Caso ele se mantenha preso a esse “último baluarte”, ficará preso à

concepção de sujeito da modernidade. Mas isso não ocorre.

“Suporei, pois, que há [...] certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador

do que poderoso, que empregou toda a sua indústria em enganar-me.” (DESCARTES,

1996, p. 262). Está aí uma boa descrição da “Coisa”. A diferença é que Descartes usa o

“gênio maligno” como um artifício fictício para desenvolver o raciocínio. Já para o

personagem, a “Coisa” é real.

A função do “gênio maligno” é levar o pensador a duvidar de tudo até alcançar

uma certeza. E a primeira certeza é que o eu existe, e que esse se identifica com o

pensamento. Por enquanto, o personagem de Campos de Carvalho quer se identificar

com o pensamento, pois o vê como o “último reduto”.

A Coisa esconde “as minhas mãos e os meus pés”, “como já me fez com o

rosto”.

Escreve Descartes: “Considerar-me-ei a mim mesmo absolutamente desprovido

de mãos, de olhos, de carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado

da falsa crença de ter todas essas coisas.” (DESCARTES, 1996, p. 262, negrito meu).

Mesmo sem mãos, sem pés, sem rosto, ainda sobra a “falsa crença”, o

pensamento, o “último baluarte” e “último reduto”. O pensamento, mesmo sendo uma

falsa crença, ainda assim existe. Mesmo sendo algo iludido pelo “gênio maligno”, pela

“Coisa”, ainda assim existe, existe como uma ficção iludida, mas existe. Mesmo sem

mãos, pés, ou seja, sem o corpo, sem a matéria, sem a substância extensa, o pensamento

existe como substância pensante. Essa idéia levou à dicotomia corpo/alma, tão comum

no mundo moderno.

Daí a importância de proteger o pensamento. Sem ele, o eu morre. “Tenho que

tomar cuidado com o meu pensamento enquanto ele ainda é meu”. Para não ser apenas

um “animal com dois pés e sem rabo após toda uma evolução multimilenária, toda uma

espantada e espantosa evolução”, apenas um “Isso”, uma “Coisa”, o próprio inimigo tão

odiado.

Assim como o “gênio maligno” é “não menos ardiloso e enganador” capaz de

empregar “toda a sua indústria em enganar-me”, a “Coisa” também é capaz de plantar

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“um embuste ou uma armadilha, talvez uma mina” (Chuva, p. 290), é capaz de colocar

pedras no caminho do personagem. Mas as pedras são embustes ou somente pedras?

Será que o personagem está começando “a desvairar”? Não faz diferença. Desvairar

também é pensar. “Ou talvez fosse mesmo apenas uma pedra, e eu esteja começando a

desvairar, eu e o meu pensamento, eu o Pensamento.” (Chuva, p. 290-291, negrito

meu).

A total identificação com o pensamento, “último refúgio”, aproxima o

personagem ao pensamento cartesiano, mas tal aproximação é apenas temporária, pois a

“Coisa” é o fundamento do “eu” – “aqui agora nesta esquina, plantado com uma árvore,

finalmente plantado: as raízes de um outro.” (Chuva, p. 293). O que fundamenta o “eu”,

ou o que lhe dá existência, é um outro. E que outro é esse? É a “Coisa”. E o que é a

“Coisa”? É um não-eu – “recuso-me a chamá-la de Eu”, “o inimigo”. E o que é o

inimigo? São “os porcos”, a “horda de bárbaros”. Só há, então, a construção social e

sem ela o “Eu” é um nada? Parece que sim. Mas sociedade não como conjunto de

indivíduos, mas como o fundamento [“raízes de um outro”] dos próprios indivíduos, do

indivíduo, do sujeito, da “árvore”.

A concepção de sujeito fica bem clara nesse ponto. Ele é um solo, uma raiz, que

nutre os indivíduos e com isso a própria sociedade. A idéia surrealista de que o homem

deve se libertar do homem já não faz mais sentido, pois a opressão social é fruto do

próprio sujeito [aqui não mais o sujeito moderno, mas o “sujeito raiz”]. E o homem

pode libertar-se de si-mesmo? Parece que não, pois o ser individual é um nada, um

vazio.

[...], o meu inimigo ou simplesmente o Inimigo, movimentando todos esses cordéis ou não os movimentando, todas essas cordas [...]. – É ele o dono de tudo e o dono de nada, tão nocivo quanto Deus se não for o próprio Deus, o álibi de que se serve Deus para lavar as mãos sempre sujas, como se serve também do homem, ou da fera, ou de qualquer dos seus elementos desencadeados. Ele, qualquer que seja o nome: mas o Inimigo. (Chuva, p. 295-296).

Não resta dúvida de que a “Coisa” existe, é real, e de que é “o Inimigo”.

Comanda a vida e o agir do personagem [“movimentando todos esses cordéis”, “todas

essas cordas”] a tal ponto que é comparada com “Deus se não for o próprio Deus”.

Impede o movimento em direção a libertação.

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A “Coisa”, o “Inimigo”, usa os humanos [“álibi”] para criar o próprio

sofrimento. Por isso possui as “mãos sempre sujas”. Sujas dos crimes de guerra, da

loucura, da tortura, do desejo que não é atendido. Mas quem é a “Coisa”?

Como escrevi antes, existem duas figuras importantes para falar do encontro

nesse livro, o espelho e o demônio. Passo agora a falar do demônio, pois ele é a

“Coisa”. Como dito acima, o personagem do conto de Guimarães Rosa vislumbra uma

“luzinha [...] que de mim se emitia” (ROSA, 2008, p. 84), assim como o personagem de

Campos de Carvalho, que também vislumbra uma luz no olhar do demônio.

O arquivista tem uma visão “no pré-albor de um domingo” (Chuva, p. 226).

Acordo e vejo-O nitidamente à minha frente, junto à parede, de pé, fitando-me, fitando-me: reconheci-o como se reconhece alguém diante de um espelho, sem um segundo de hesitação: nenhum medo, nenhuma surpresa. Era, e é, todo negro, um verdadeiro príncipe etíope, só os olhos em brasa para identificá-LO, sem pálpebras, e sem sequer supercílios: e FITANDO-ME, agora com um quase sorriso. Durou talvez um minuto a visão, nem isso: mas ainda hoje me ofusca, me enlouquece, tira-me da minha órbita ou de qualquer órbita, como só Lázaro talvez depois que lhe arrombaram o sepulcro: dia após dia a mesma Noite sempre. [...]. Uns olhos assim têm que ter sua razão de ser, minha mãe nunca me olhou assim, nem meu pior inimigo, nem e muito menos um moribundo – meu pai por exemplo; – um gato talvez, talvez um tigre, em certa hora única, um combate aéreo no escuro, ou simples fogos de artifício, as pupilas acuadas e apocalípticas, as presas de repente enormes – e, de repente, o salto. (Chuva, p. 226, negrito meu).

Essa visão corresponde à uma realidade vivida pelo autor do texto, que disse, em

entrevista “que já viu o diabo” (BATELLA, 2004, p. 32). Eis as palavras do próprio

Campos de Carvalho:

há coisa de nove anos, aqui no Rio mesmo, dentro do meu quarto, à quatro horas da manhã. Não foi sonho nem aucinação, foi visão mesmo (...). Êle se limitou a fitar-me por alguns instantes, tôdo de preto, os olhos que eram uma maravilha: encostado à parede, perfeitamente visível na escuridão. Meu coração bateu um pouco mais forte e foi só. (apud BATELLA, 2004, p. 32).

No Anexo C, apresento um texto ainda não publicado do autor em que ele

escreve sobre esse tema. Retorno à Obra.

Quais são as características do demônio?

Em primeiro lugar, é uma realidade [“palpável e intocável como deveriam ser

todas as verdades.”].

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Em segundo, está sempre alerta, sempre acordado [“sem pálpebras, e sem sequer

supercílios”] sempre vigiando [“FITANDO-ME”, “olhos em brasa”].

Em terceiro, é algo bem conhecido do personagem, que o reconhece sem

hesitação, sem surpresa, sem medo. Mais intimo que os próprios pais.

Além disso, é “Negro”, um “príncipe etíope”. Negro em contraste com o

personagem, que é branco. Negro como a escuridão onde se esconde o tigre, como o

Desconhecido, o perigo, o Mistério, o Inconsciente. E é príncipe. Alguém que comanda,

que é soberano, o filho do rei, o filho do Mistério. Uma representação [filho] do sujeito

[rei, Mistério], o princíp i[e]o [“raízes”] do eu, do personagem [“árvore”].

A “Coisa” também é comparada a “um tigre, em certa hora única”. Como “se

estivesse apenas esperando a vez atrás da porta” (Púcaro, p. 376), ou esperando o

“momento azado” (Lua, p. 146) para deixar “os músicos todos malucos” (Lua, p. 147).

O tema da morte e do morto vivo reaparece. O personagem se sente como um

eterno morto vivo, um “Lázaro” “depois que lhe arrombaram o sepulcro”. O que lembra

a formação da consciência. Das trevas da inconsciência [“inocência”] a consciência é

arrancada assim como “Lázaro” de seu túmulo. E para onde vem o ser consciente? Para

essa vida de sofrimento que é uma “MERDA”, “dia após dia a mesma Noite sempre”. A

“Noite” neste caso é sinônimo do mundo, do sofrimento, e não de inconsciência. É o

paradoxo dia x noite já citado acima.

A “Coisa”, o “Inimigo” que o personagem encontra dentro do navio, é o mesmo

ser da visão “no pré-albor de um domingo”.

Mas este é ELE [...]: os mesmos olhos em brasa, sem cílios e sem supercílios, viajando comigo por este buraco na parede: [...], apenas Ele e eu nesta escuridão, [...]: estamos sós e não estamos. Como não O reconheci logo se ele me reconheceu? – embora não me fitasse me fitando, os olhos postos em frente – sem pálpebras! – nesse vazio, o tempo todo e toda uma eternidade. Estes alamares de príncipe, esta serena postura ou impostura, os traços quase femininos, e os cabelos sobretudo eles, tudo isto me deixou confuso e eu já estava mesmo confuso, nem ao meu próprio pai eu reconheceria, e nem a mim mesmo assim nesta bruma, a música em surdina e aquele espanto caindo dos lustres: um andrógino fora de qualquer dúvida, de mil faces e de nenhuma (Chuva, p. 251-252).

Mais uma vez, o demônio é íntimo do personagem, mais do que o próprio pai,

mais do que o próprio personagem é íntimo de si-mesmo. E está sempre presente.

Posso recolher novas características do demônio nessa passagem.

Em primeiro lugar, “os traços quase femininos”, “os cabelos” e principalmente,

“um andrógino”. Assim como André queria se unir à Andréa, e o neurótico à Valquíria,

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o demônio já trás com ele uma unidade. Por isso “esta serena postura”. É essa unidade

que simboliza a volta ao útero, ou a união incestuosa com a mãe.

Andr ógino = André + Andr éa.

O demônio é sereno, pois completo. Diferente do arquivista ou dos personagens

dos demais romances. Esses estão intranqüilos, pois lhes falta algo que irão buscar

[liberdade, Valquíria, Andréa, Bulgária].

Em segundo, a “Coisa” é fragmentada e una, “de mil faces e de nenhuma”. É

impessoal e pessoal. É uma metáfora do Mistério. Mas relembrando que aqui o Mistério

é retratado da mesma forma que o fazem os surrealistas, ou seja, ele não é uma

“realidade sobrenatural, transcendente.” (TRINGALI, 1994, p. 212).

[...] – Ele, o mesmo que me visitava e que só agora descubro ser o mesmo, Ele, que assim já se anunciava e eu tinha na conta de um amigo, [...]: o mesmo, sem cílios e sem supercílios, sem pálpebras, todo de negro, fitando-me invisível dentro do espelho: essa Coisa parada assim à minha frente, ou comigo parada, impedido-me de caminhar. Perplexo ele, não eu, aqueles olhos em brasa que jamais esquecerei, não vejo mas vejo, o meu inimigo ou simplesmente o Inimigo, movimentando todos esses cordéis ou não os movimentando, todas essas cordas (Chuva, p. 295).

A “Coisa” é o reflexo no espelho, visível e invisível. É o sujeito, aquilo que

movimenta o ser humano: “Quando deixarei de andar? – quando ele deixará de andar? –

essa Coisa” (Chuva, p. 289), “movimentando todos esses cordéis ou não os

movimentando.”. O demônio é visto como inimigo.

Há aqui uma forma de caracterizar o Inconsciente que não aparece nos

movimentos dadaísta e surrealista. Ele é visto como um inimigo. O homem já não

precisa libertar-se de si próprio ou se libertar da opressão do outro homem. O inimigo é

a própria raiz do ser humano. Sendo assim, o que pode ser feito? Nada.

Quando o indivíduo é valorizado, o “Inimigo” é projetado na sociedade. Assim,

a sociedade é vista como uma prisão, um “campo de concentração”, e a verdade, a luz, a

liberdade está associada aos que vivem fora da sociedade, é associada aos mortos.

Quando a sociedade é valorizada, ela passa a ser a mãe do indivíduo, é ela que

dá a luz, a liberdade, a vida. Neste caso, a verdade está associada aos nascituros e não

mais aos mortos. O “Inimigo” é projetado na subjetividade que se crê autônoma, no eu

egoísta.

Mas o “Inimigo” não está nem no mundo subjetivo [personalidade], nem no

mundo objetivo [sociedade], mas é a fonte dos dois.

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Depois de valorizar o indivíduo e crer que a luz está na morte, ou seja, fora do

socialmente estabelecido, o personagem inverte o pensamento e passa a valorizar o

social, passando a ver a luz no nascituro.

“Recuso-me a ser um rato, recuso-me, sou um homem e não um rato, [...], estou

no arquivo mas sou um homem, UM HOMEM, com um nome e um sobrenome, e até

com uma carteira de identidade: não sou um rato.” (Chuva, p. 302, grifos meus). A

carteira de identidade ganha valor, o papel social ganha valor, sem ela, o individuo não

passa de um animal qualquer, ligado à morte e à sexualidade. E nada mais que isso. Sem

liberdade, coragem, criatividade, dignidade, Bulgária, etc. Simples “caricaturas de

Deus” (Chuva, p. 296).

Na obra de Campos de Carvalho o valor do social muito pouco aparece. Ela é

predominantemente subjetivista, valorizando o indivíduo quase sempre, e vendo o

socialmente estabelecido como uma prisão, na grande maioria das vezes. Mas, pelas

poucas vezes que o social aparece sendo valorizado, é possível perceber que a sociedade

é tratada como um símbolo. E aqui entra mais uma vez o expressionismo, ou seja,

receber o real e rearanjá-lo de acordo com o subjetivo. A sociedade, o mundo externo, é

absorvido pelo autor e expresso como símbolo da opressão do Inimigo, e não como

sendo a sociedade mesma. Em outras palavras, o escritor não é um representante do

realismo literário e nem do impressionismo. No primeiro caso, retrataria a sociedade

como ela é, no segundo, como ele a percebe. Volto à Obra.

E quem fica sendo, então, o personagem? Duas metáforas são usadas, a do pião e

a do caleidoscópio.

Meu raciocínio lhes pertence mas não a minha consciência, podem me fazer girar como um pião mas é em torno de mim que eu giro, não em torno deles, este o meu sistema solar e desafio-os a arrancar-me o sol como podem fazer com o seu, eles que se julgam os donos de tudo e são os donos de nada, e se apavoram com o Nada de que vieram e a que estão sempre voltando. (Chuva, p. 296-297, negrito meu).

O “pião” é símbolo dos “deuses”, da “Coisa”, mas para o pião funcionar ele

deve girar ao redor de um eixo, imaginário quando não está girando, real quando

começa a girar. O eixo é o “eu”, a “consciência”.

O “eu” é um nada, um vazio. O “pião” é construído e o seu movimento é

iniciado por outrem. Mas quando ele é colocado em movimento cria-se,

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necessariamente, um eixo ao redor do qual ele gira; e esse eixo é um nada, um vazio.

Logo quando o “pião” pára de rodar, o eixo desaparece.

E quem é o construtor do “pião”? Isso não vem ao caso. Quem o coloca em

movimento? É o “Mistério”, o Desconhecido, o Inconsciente, as forças de natureza, os

“deuses”, a “Coisa”, o “Inimigo”, tanto faz. “Ele, qualquer que seja o nome: mas o

Inimigo.”. (Chuva, p. 296). O importante é que aquilo que movimenta o pião é o

Inimigo. É esse “algo” que movimenta que estou chamando de sujeito.

O “eu”, centro ao redor do qual tudo gira, é comparado com o “sol”, ou seja, a

“consciência”. O personagem desafia o “Inimigo” “a arrancar-me o sol”. A idéia é clara.

O “pião” só existe como pião se estiver girando. Sem um eixo, ele não pode funcionar.

Da mesma forma, sem o “eu”, que é um nada, o “sistema solar” do “Inimigo” não

funciona. Por isso os “deuses” “se julgam os donos de tudo e são os donos de nada”.

Quando morre um ser humano, um “eu”, morre também o “sistema solar” que gira ao

seu redor. E o que acontece com os “deuses”? Voltam para o “Nada de que vieram e a

que estão sempre voltando”. Com a morte do “eu”, a “Coisa” também morre. O que

deixa claro que a “Coisa”, o sujeito, movimenta as forças naturais, como querem os

surrealistas e o autor que não aceitam a transcendência. O criador das forças pode ser

Deus ou a natureza. Para Campos de Carvalho, ateu confesso, e pelas características de

sua obra, é a natureza. Passo para a segunda metáfora.

Podem me virar do avesso que não me viro, sou eu mesmo do avesso como do direito, e mesmo que me esquartejem e espalhem os pedaços continuarei sendo eu mesmo, como um caleidoscópio é um caleidoscópio e não um simples jogo de espelho, um caleidoscópio até que o matem por ter sido mais que um simples joguete, mais capaz de beleza do que quem o fez ou desfez. (Chuva, p. 296, negritos meu).

A metáfora do caleidoscópio é semelhante à do pião. A “Coisa” é o tubo, os

espelhos, os grãos, e o giro do produto final, mas a imagem que aparece é uma

combinação particular dos reflexos dos grãos dentro do brinquedo.

Assim, também o “eu” é o produto final de uma combinação de elementos

refletidos. Sem os elementos não existe o “eu”, mas sem o eu [imagens refletidas] não

existe o caleidoscópio.

Por isso o “caleidoscópio [...] não [é] um simples jogo de espelho”, ou mesmo

“um simples joguete”, pois sua beleza está justamente na combinação, e isso a “Coisa”

não é capaz de produzir.

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Sem o “eu” o “Inimigo” perde a existência, e além disso, precisa do eu para ter

beleza.

Nessa parte lembro-me do conto já citado de Guimarães Rosa, quando seu

personagem pergunta: “Será este nosso desengonço e mundo o plano – intersecçao de

planos – onde se completam de fazer as almas?”.

Dessa forma, Campos de Carvalho se afasta em definitivo de Descartes. O

sujeito não é o pensamento, não é uma substância una e racional. Se bem que o termo

“sujeito” não é usado por Descartes, mas o “eu” cartesiano se transformará no “sujeito

do iluminismo”.

O “eu”, ao contrário do pensamento cartesiano, é um nada e não uma substância.

É um nada ao redor do qual giram os elementos que o constituem provisoriamente.

Visão bem próxima à concepção budista de “eu”.

O Buda ensinou que todos os fenômenos são “vazios”, significando que nenhum deles apresenta um único aspecto permanente ou absoluto. Uma forma de compreender o vazio é considerar que todas as coisas são causadas ou sustentadas por outras. (YÜN, 2005, p. 10).

O sujeito é o movimento e as diversas combinações dos constituintes que vão

formar o eu de forma provisória. Um não existe sem o outro.

Se compreendermos que tudo é assim – todas as coisas são interconectadas e interdependentes –, estaremos aptos a entender que nenhuma tem existência intrínseca ou autônoma. Cada uma delas é vazia. Relacionando o conceito de vazio ao princípio de causa e efeito dessa maneira, veremos que vazio não significa “nada” ou “não-existência”. Significa que a análise profunda de qualquer fenômeno ou coisa revela ausência de essência estável e apenas a existência de uma corrente infinita de causas e condições. (YÜN, 2005, p. 10).

E o que são os elementos que constituem o eu de acordo com o movimento do

sujeito? Isso não aparece na Obra. Mas podemos dizer que é a natureza, não a natureza

empírica, mas a natureza como um Mistério que exclui a transcendência. Nesse ponto, a

Obra se afasta não somente de Descartes, mas também do budismo, da filosofia clássica

e do pensamento tradicional.

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3.4 A resposta

A resposta é a reação do personagem ao encontro. Depois do trauma, o

personagem parte em busca de um ideal, ideal que é quebrado quando ele encontra a

verdade sobre sua própria vida. A reação a esse encontro e a perda do ideal constituem a

resposta.

Quando a viagem para a Bulgária já está preparada, logo depois do

expedicionário descobrir que o professor de bulgarologia é um búlgaro, ocorre a partida.

Mas não a partida rumo à Bulgária, mas uma partida de cartas. Depois do encontro com

a verdade acerca do sujeito, do encontro com a “Coisa”, a busca é interrompida, há uma

mudança de assunto, uma volta ao cotidiano. “A partida” (Púcaro, p. 379) é o nome da

última parte do livro O púcaro búlgaro.

Partida também significa quebrada. Aqui pode haver uma referência tanto à

quebra da história, a mudança brusca do enredo, como à divisão do sujeito, do “homo

multiplex” (Lua, p. 136).

Enquanto os personagens jogam, conversam entre si. A conversa é reveladora

em alguns pontos, mas de forma geral, é uma quebra do enredo de fato.

RADAMÉS – Eu sempre desejei conhecer a Bulgária. PERNACCHIO, EU – Mas o sr. não é búlgaro?! RADAMÉS – Saí de lá muito criança, meses apenas. [...]. O tal cearense conseguiu convencer meu pai de que o Ceará existia mesmo, e meu pai organizou a primeira expedição búlgara para descobrir o Ceará. EU – [...]. E descobriu? RADAMÉS – Se descobriu, não sei. O fato incontestável é que moramos em Quixeramobim e em Quixadá durante quarenta anos. O que não deixa de ser uma prova de peso. (Púcaro, p. 382, negritos e sublinhados meus).

Radamés saiu da Bulgária muito criança. Como ele é búlgaro, a Bulgária é sua

pátria. Assim como a consciência começa a surgir ou ser construída na infância, assim

também o professor deixa a Bulgária, a inconsciência, ainda criança, antes da educação.

A palavra “saí”, que sublinhei, refere-se à Bulgária, mas pode se referir ao próprio

útero, de onde saímos “muito criança”. “Saí de lá muito criança, meses apenas.”.

O Ceará pode ser visto como o ideal a ser buscado e a expedição ao Ceará como

sendo a própria busca. “Expedição”, expedir, mandar para fora, já que não há

possibilidade de voltar ao útero, de se unir novamente à mãe. E é o pai que organiza a

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expedição, ou seja, o pai que retira a criança da mãe e a manda para fora, para o mundo

social.

E o Ceará? É [des]coberto? Ou seja, aquilo que o cobre, que o esconde, é

retirado? Não se sabe. O Mistério não é revelado por inteiro. Mas o professor mora

quarenta anos em Quixeramobim e em Quixadá, que ficam no Ceará. O que pode

significar que o Mistério é vislumbrado no encontro, mas não elucidado. O que mostra

também que o ideal possui algo do que é procurado, apesar de não se identificar

totalmente com o que é encontrado.

É como o Inconsciente. Sabemos que existe, mas não o conhecemos,

vislumbramos apenas aspectos dele através de pequenos sinais, como o sonho, atos

falhos e sintomas.

Mas por que o personagem diz “se descobriu, não sei”? Bem, eu, e muitos

outros, também não temos certeza da existência de um Inconsciente. Pode existir

alguma outra explicação para os fenômenos que relacionamos como sendo prova da

existência de um Inconsciente.

PERNACCHIO – [...]. Então quer dizer que o Ceará também existe? RADAMÉS – [...] – Que diabo, se nem o Ceará nem a Bulgária existem, então eu fico mesmo num mato sem cachorro. Bato mesa. Mas como dizem que quem não tem cão caça com gato, eu pelo menos tenho o meu gato para caçar um jeito de sair dessa enrascada. EU – [...]. O diabo é que o seu gato não é de nada, professor. E ele, pelo menos – nasceu em algum lugar? RADAMÉS – Presumo que no cu da gata, para não dizer pior. Quanto a não ser de nada, só por causa do seu ar ausente, digo que Deus é o rei dos ausentes e nem por isso você é capaz de dizer que ele não exista. EU – Existe tanto quanto o Ceará ou a sua Bulgária. PERNACCHIO – O que não quer dizer absolutamente nada. Bato. (Púcaro, p. 382).

E como é possível existir um búlgaro sem existir uma Bulgária?

Da mesma forma que existem religiosos mesmo sendo “Deus [...] o rei dos

ausentes”.

A Bulgária significa o paraíso perdido para o professor, mas o ideal a ser

buscado pelos demais personagens. Para o professor, o ideal é o Ceará, para muitas

pessoas, Deus. O ser humano tenta alcançar um ideal, é a sua busca. Ao tentar alcançar

esse ideal, ele se comporta, constrói a sociedade, a própria vida. Mas o ideal não deixa

de ser uma meta fictícia, daí dizer que ele é ausente, que não existe. E o que existe

então? Uma ausência. O eixo ao redor do qual gira o pião. A combinação de elementos

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refletidos num jogo de espelhos, como no caleidoscópio. Mas de onde vem o ideal? Do

Mistério.

E o que tudo isso significa? Nada, “absolutamente nada. Bato.”. “Bato” é o

mesmo que encerrar de vez o assunto. Chega-se num ponto que a conversa entra num

circulo vicioso, cheio de repetições e incerteza. É hora de encerrar o assunto.

A resposta, no último livro da Obra reunida é essa. Depois do encontro,

encerrar o assunto, não mais conversar sobre ele. Em dois livros, a resposta será

diferente, será o suicídio. No segundo livro da obra, a resposta é semelhante à do

Púcaro búlgaro. Começo por ela.

Depois de julgado e absolvido pelo estupro de Valquíria, o personagem parte

numa viagem de trem rumo ao desconhecido.

... Quem resistiu a tantas guerras há de resistir a mais esta, e a outras tantas: para isto embrenho-me no desconhecido, monto de novo minha infância e nela me monto, vou nu sobre o seu dorso e apenas me lembro das coisas: meu mundo acaba onde eu acabo, se me viro para a direita a esquerda já não existe, esse passageiro efêmero à minha frente está em verdade nos antípodas: é só soprá-lo. (Sutil, p. 218).

Pode parecer que o personagem continua sua busca. Mas não, “meu mundo

acaba onde eu acabo, se me viro para a direita a esquerda já não existe”. Ele quer

ignorar aquilo que não está na sua frente, na sua consciência. Quer ignorar o Mistério, o

Inconsciente. Em certa medida, é a mesma reação do arquivista do romance A chuva

imóvel.

O que passou foi uma guerra. Outras virão. Por enquanto ele descansa, “monto

de novo minha infância e nela me monto”, reconstrói sua inconsciência e nela irá

permanecer, assim como “as donzelas casadouras e as mulheres grávidas” (Sutil, p.

198), assim como “essa gente [que] se alimenta e se espairece ao sol, como se estivesse

apenas numa estação de veraneio e a mil milhas de qualquer perigo iminente.” (Lua,

p.75), todas elas “se mostram corados, e o mais das vezes sorridentes e loquazes” (Lua,

p.75).

“Aproveito para entrar no meu desrumo: deixo-vos os trilhos, vou ver se ainda

me alcanço: não disponho de vossa eternidade para viver, muito menos para pensar. É

agora ou nunca.” (Sutil, p. 219).

Chega de “pensar”. Está na hora de agir, de viver. De viver como “se estivesse

apenas numa estação de veraneio”.

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O que é deixado para trás são os trilhos. Não há liberdade para o trem, ao

contrário da bicicleta que pode ir para qualquer parte. O personagem finge entrar num

“desrumo”. Finge, pois ainda está dentro do trem.

O trem apitando na curva: [...], a locomotiva sou eu com todos estes vagões dentro: os trilhos são para fazer de conta, na primeira oportunidade eu os despeço: vão para as estações que quiserem! Nem sequer trouxe a bagagem, desta vez seria ridículo, se pudesse teria entrado sem o corpo: foi o que fiz: Fugir não fugindo, não interessa, não se foge de si mesmo para parte alguma, antes deitar-se no cemitério e dizer amen, em latim como fazem o velho e seus mortos: o fogo-fátuo é para se fingirem de vivos. (Sutil, p. 212).

O neurótico passa a viver o cotidiano, a rotina fixa, como o arquivista que volta

para sua sala com seus “calhamaços e [...] alfarrábios” (Chuva, p. 302). Ele finge que

numa próxima oportunidade, numa próxima guerra, ele se livrará dos trilhos. Por

enquanto ele não quer lutar, “muito menos [...] pensar”. Ele foge. Apesar de saber que

foge sem fugir, pois “não se foge de si mesmo para parte alguma”. A fuga é um

descanso, um esquecimento, enquanto a morte não chega, enquanto não chega o

“amen”.

Surge aqui uma nova visão do trauma. O trauma está sempre presente, pois é o

próprio fato de se estar vivo. O trauma é o “si mesmo” do qual não se foge.

O neurótico de guerra, depois do encontro, se adapta ao mundo. Esse é o sentido

dos trilhos. Ele finge que não está adaptado, finge que pode se livrar dos trilhos a

qualquer momento. Tal fingimento é apenas uma idéia que ameniza o personagem

diante da falta de opção. É a morte ou a adaptação ao social, ao mundo. No livro A

chuva imóvel a opção é a morte, daí a diferença entre os dois livros.

A diferença da resposta do neurótico à resposta encontrada no Púcaro búlgaro,

é que no segundo caso, o expedicionário já não liga para o assunto, não quer nem saber

se está ou não se adaptando, se há ou não saída. Apenas se diverte jogando cartas e

conversando. No primeiro caso, o personagem se adapta ao mesmo tempo em que tenta

se iludir, se justificar.

Já o lunático da novela A lua vem da Ásia comete suicídio.

Escrevo-lhe esta em prantos, não para comunicar a morte de um ente querido, mas a minha própria morte. Como tudo que parece estranho, isto que acabo de anunciar tem na realidade uma explicação muito simples: é que resolvi suicidar-me e o senhor foi (a falta de um parente ou amigo, que não tenho) a única pessoa a quem me ocorreu dar, de antemão, a dolorosa notícia. (Lua, p. 149).

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O personagem escreve uma carta aberta ao “Times” (Lua, p. 149). “Com vista ao

redator da Seção Necrológica” (Lua, p. 149). Ao dizer que faz isso “a falta de um

parente ou amigo, que não tenho”, revela sua profunda solidão.

A morte é a libertação. O personagem se liberta em definitivo.

[...] a antipatia que me inspiram os outros, e vice-versa, é algo que nasceu comigo e será hoje comigo assassinado, e que só pode ter explicação na perfeita dessemelhança existente entre mim e os meus semelhantes, em que o meu EU e o que se convencionou chamar o homem comum. (Lua, p. 151).

Novamente, aparecem temas centrais ao existencialismo: solidão, liberdade,

libertação pela morte.

Devido a desadaptação completa entre o “EU” e o “homem comum”, o

personagem prefere morrer. Parece não haver meio termo. Ou o personagem se adapta,

passa a andar nos “trilhos”, tornando-se assim um “homem comum”, ou morre. O “EU”,

a total individualidade, a “Bulgária”, a “vaca de nariz sutil”, não existem. São ideais

para tampar uma ruptura, uma coisa “partida”, mas que não o faz de forma adequada. E

isso é revelado no encontro.

“O certo mesmo seria chamar a este meu suicídio de homicídio, já que em mim

eu mato o homem que não me agrada e não o meu eu verdadeiro, que é até simpático.”

(Lua, p. 150). Mas “o homem que não me agrada” é o homem formado pelos rótulos

advindos da sociedade. Os elementos sociais podem ser formados por alguns espelhos,

ou os grãos que formam o caleidoscópio, ou alguma parte do pião prestes a girar. O “eu

verdadeiro, que é até simpático”, é a combinação dos reflexos dos grãos no espelho do

caleidoscópio, é a “intersecção de planos” aonde são feitas as almas, é o eixo ao redor

do qual gira o pião. Ou seja, a total individualidade. Mas um não existe sem o outro. E o

“homem comum”, a rotina da vida, inspira “antipatia”. Vendo de forma mais ampla, o

Inimigo inspira antipatia. E desprezo.

Há uma “perfeita dessemelhança existente entre mim e os meus semelhantes”,

uma profunda diferença entre a vida do personagem, quem ele é, e a vida dos demais

que, como ele, é uma combinação ímpar de elementos parecidos. Mas é nesse mundo

que ele vive.

Existe um jogo de opostos no que se refere ao social, ao demônio e ao eu.

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Se o personagem projeta o Inimigo na sociedade, o “eu” é priorizado juntamente

com a liberdade. Mas se o Inimigo é interiorizado [“até o meu pensamento prendendo,

fazendo-me pensar o que não quero, o que não quero, O QUE NÃO QUERO – como já

me faz com o rosto e com minha tranqüilidade.” (Chuva, p. 290)], e relacionado aos

pensamentos do personagem, a sociedade, a adaptação e os papéis sociais se tornam

salvadores. O social é um dos elementos que formam o indivíduo. Juntamente com o

biológico, os elementos psíquicos e elementos que não conhecemos, pois o Inimigo é o

Mistério.

O social como salvação aparece pouco na Obra. A ênfase maior é no indivíduo.

O que não significa que a adaptação é sempre vista como algo ruim.

Insisto em continuar batendo este ofício, Senhor diretor, Atenciosas saudações, sine qua non, Nec Plus Ultra, o meu guarda-chuva no porta-chapéus, estou bêbado mas sou um homem, um funcionário mequetrefe mas um homem [...]: deixem-me morrer como um homem. (Chuva, p. 302).

O arquivista do terceiro livro, depois do encontro, resolve voltar para o seu

cotidiano. Continua batendo seu ofício e usando as mesmas palavras de sempre;

“Senhor diretor, Atenciosas saudações, sine qua non, Nec Plus Ultra”. Ele insiste em

continuar com sua rotina, para continuar sendo um homem, “um funcionário mequetrefe

mas um homem”. “UM HOMEM, com um nome e um sobrenome, e até com uma

carteira de identidade” (Chuva, p. 302, negritos meus). Os papéis sociais ficam

evidenciados no nome, sobrenome e documentos. A rotina é redentora. Outro exemplo:

Agora estou andando de bicicleta e não quero ser perturbado, façam-me parecer com o que querem mas deixem-me andar na minha bicicleta, na minha e não na do irmão: esta eu construí agora mesmo e é dotada até de asas como de resto a do meu irmão também era – mas esta é realmente minha. (Chuva, p. 303).

Mais uma vez, a fuga. Depois do encontro o personagem não quer ser pertubado

pelo Inimigo, não quer mais pensar, “até o meu pensamento prendendo, fazendo-me

pensar o que não quero”.

Toda a reflexão que levou o personagem ao encontro, ou seja, o que chamei de

busca, foi obra do Inimigo. E agora que o encontro aconteceu, o personagem quer

esquecê-lo, quer apenas viver sua individualidade [“bicicleta”] e não quer “ser

perturbado”. O arquivista está novamente “batendo este ofício”, em sua sala com seus

“calhamaços e [...] alfarrábios”. Bicicleta, no lugar do trem. Liberdade no lugar da

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rotina. Mas a “liberdade” não é uma ficção? O personagem “não [quer] ser perturbado”.

Faz até uma súplica, “façam-me parecer com o que querem mas deixem-me andar na

minha bicicleta”, que é “dotada até de asas”, o que lembra a imaginação, o devaneio.

Ele diz: deixem-me em paz! E diz isso a quem? À “Coisa”, ao “Inimigo”. Não quer

parar nem ao “menos para pensar”, apenas voar, assim como o irmão que já morreu, que

já voou. A imaginação, a arte, como resposta, como ideal.

“A mim não me interessa saber se tenho ou vinte ou cinqüenta anos – mesmo

que me ponha a vagir aceitarei meu vagido, e darei meu testemunho com ele.” (Chuva,

p. 234). O personagem já não quer mais saber quem de fato ele é. Não quer saber nem

mesmo sua idade. Quer esquecer o encontro, a vida interna, e ficar sossegado na vida

social, assim como “as donzelas casadouras e as mulheres grávidas” (Sutil, p. 198),

como “essa gente [que] se alimenta e se espairece ao sol, como se estivesse apenas

numa estação de veraneio e a mil milhas de qualquer perigo iminente.” (Lua, p.75),

todas elas “se mostram corados, e o mais das vezes sorridentes e loquazes” (Lua, p.75).

O jogo eu e social, é o mesmo paradoxo do morto e do vivo, do dia e da noite.

Se o “eu” brilha, o social escurece, o “eu” se aproxima do dia, o social, da noite. A

sociedade morre, o “eu” vive. Mas se o social brilha, o “eu” escurece, é um morto-vivo,

a sociedade se torna salvadora, clara, e a vida interior é abandonada.

O “eu” pode ter dois sentidos que não podem ser confundidos. Em um caso,

quando se opõe ao social, é sinônimo de vida interior, de subjetividade. Num segundo

caso, quando se opõe à multidão, é sinônimo de singularidade, de arranjo único dos

reflexos dos grãos do caleidoscópio.

Essa dualidade em constante equilíbrio lembra muito o yin/yang, pares de

opostos do taoísmo, escola filosófica chinesa, ao qual o autor demonstra conhecer, na

única citação comentada de um livro no corpo do texto da Obra: “Houve um chinês que

disse, resumindo tudo numa frase de uma clareza meridiana e que desnorteia os

ingênuos ledores de bússola e seus fiéis discípulos: O caminho que é um caminho não é

o verdadeiro caminho.” (Lua, p. 145).

O chinês ao qual o autor se refere é Lao Tsu [ou Lao Tse], e a frase citada é a

frase de abertura do clássico chinês [e mundial] Tao te king [clássico do caminho e da

virtude]. A influência do taoísmo no surgimento do Zen budismo chinês é um fato. E a

concepção de “eu” na Obra demonstra afinidade com o pensamento Zen budista.

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O par de opostos yin/yang foi compreendido pelo psiquiatra suíço C. G. Jung

como sendo uma descrição da própria psique humana, correspondendo ao

consciente/inconsciente, ao externo/interno, e demais pares de opostos.

O que Campos de Carvalho quis ressaltar com essa frase é a total solidão do

indivíduo, que percorre sempre o seu caminho, e nunca o caminho de outrem.

Mas voltemos à resposta. Se o social inspira antipatia, o Inimigo inspira

desprezo.

Não lhes tenho ódio mas desprezo, como nunca tivesse ódio à polícia ou aos donos da polícia, nem a todas as polícias do mundo reunidas, que apenas procuravam, e mal, imitar o exemplo vindo de cima, com as suas providências copiadas da Divina Providência, punindo os inocentes e sobretudo os culpados, os culpados de serem inocentes, como se punissem o canceroso e o animal de duas cabeças. (Chuva, p. 297, negrito e sublinhado meu).

Aqui fica claro que o problema não é com a opressão do social, pois a sociedade

é só um reflexo do Mistério, do Inimigo. O indivíduo só existe devido à combinação dos

elementos, da “intersecção de planos”. Não há como se libertar dessa combinação, pois

isso seria a própria morte do indivíduo. Daí a comparação com o natural, com o

“canceroso” e com o “animal de duas cabeças”. Uma referência à “doença” que é a

vida, outra, à duplicidade ou multiplicidade do sujeito, nesse caso, do conflito, do

sofrimento.

O conflito produz sofrimento. Os seres, “culpados” ou “inocentes”, ou ainda

“culpados de serem inocentes”, são punidos, sofrem. Mas não há motivos para puni-los,

o conflito é inerente à vida. Por que, então, o sofrimento? Por que o sofrimento

incomoda?

“Penso que me prepararam para o Paraíso e não para este mundo” (Chuva, p.

241, sublinhado meu).

Essa parece ser uma das frases centrais da Obra reunida. O ser humano foi

preparado pra o paraíso e vive nesse “vale de lágrimas”. O que está de acordo com o

pensamento cristão. Mas o personagem não dá mostras de acreditar no paraíso, mas

percebe a existência do sofrimento, da angústia, do trauma. Esse é o cerne do trauma. O

sofrimento existe e ele não é desejável. Aí o pensamento já se aproxima mais do

budismo, que só constata a existência do sofrimento e busca sua cessação, sem se

preocupar com assuntos metafísicos.

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O agir humano é considerado natural, o Inimigo guia os passos do indivíduo e da

sociedade que imita “o exemplo vindo de cima”. Até os culpados são “culpados de

serem inocentes”. Ao mesmo tempo existe uma defesa acirrada da liberdade em todos

os livros. Como conciliar o determinismo insinuado pelo poder do Inimigo, a “Divina

Providência”, com a liberdade? A liberdade é interior, é a liberdade de ser um arranjo

único na “intersecção de planos”, e de ter consciência dessa total particularidade, daí, a

solidão.

Devido ao sofrimento, o Mistério inspira desprezo. E como lidar com essa

realidade que está no comando e que nos constitui apenas junto ao sofrimento? No

primeiro livro, a resposta foi o suicídio. No segundo, a adaptação. O último, o total

desprezo. Depois do encontro muda-se radicalmente de assunto e os personagens vão

jogar cartas. A existencia da Bulgária vira apenas uma conversa entre amigos e motivo

de piada. No terceiro livro, A chuva imóvel, aparecem a adaptação, o desprezo e por fim

o suicídio. Todas as três alternativas aparecem juntas.

... Estou suspenso desta corda, e este nó na garganta: – então é apenas isto um nó na garganta, APENAS ISTO, e não o que eu sentia antes de sentir tudo isso: – [...], aquela angústia de saber que iria morrer um dia e depois a angústia de não morrer, [...] – então tudo isso nada tem a ver com ISTO, esta sufocação e este sangue represado dentro de mim, este rumor surdo dentro das minhas têmporas, este rumor de silêncio. (Chuva, p. 305-306).

O arquivista comete suicídio, ele se enforca. O “nó na garganta” não é mais um

sinal de angústia, ou o desejo de se libertar, de buscar a individualidade, mas apenas um

nó na garganta. Aqui, no sentido literal, o nó da corda da forca apertando a garganta,

“APENAS ISTO”. Não é “aquela angústia de saber que iria morrer um dia e depois a

angústia de não morrer”. A vida interior é abandonada, o externo, o social, passa a ser

valorizado. A angústia vira só um nó na garganta.

O personagem reinterpreta sua experiência. O trauma provocado pelo contato

com o sofrimento do mundo, possibilitado pelo despertar da consciência; a busca pela

libertação do sofrimento da vida, pelo auto-conhecimento sem as ilusões que a

sociedade nos impõem; o encontro com o nada que nos constitui, a constatação de que o

eu é constituído por um outro. Todas essas experiências são resignificadas, “então tudo

isso nada tem a ver com ISTO”. O que ocorre de fato, depois da resignificação, é o nó

da corda que aperta a garganta, “APENAS ISTO”. O aperto provocado pela corda

provoca “esta sufocação e este sangue represado dentro de mim, este rumor surdo

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dentro das minhas têmporas, este rumor de silêncio.”. O personagem abandona a vida

interior, se apega ao social, comete suicídio e manifesta seu desprezo pelo Inimigo na

última frase do livro, quando envia seu cuspe de desprezo em diração aos deuses:

“Mesmo morto continuarei dando meu testemunho de morto. Esta chuva imóvel serei eu

que estarei cuspindo.” (Chuva, p. 306). A chuva imóvel é o cuspe eterno de desprezo

dirigido ao Mistério por esse ser responsável pelo sofrimento inerente à vida.

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CAPÍTULO 4: CONCLUSÃO

Comecei esse trabalho com a intenção de identificar o sujeito presente na Obra

reunida de Campos de Carvalho. Mas, também, com a mente aberta para receber o que

a própria Obra tinha a me revelar, tomando o devido cuidado para não projetar nos

livros aspectos da minha subjetividade, o que seria o mesmo que silenciá-los.

E a Obra me revelou que o sujeito, aquilo que move o personagem, é o processo

que se inicia no trauma e continua na busca. A busca é motivada por um ideal, que é

quebrado no encontro. Diante da destruição do ideal, o personagem apresenta sua

resposta: a adaptação ou o suicídio. Deixar o trauma de lado ou repudiar [desprezar] a

existência, e continuar vivendo, é uma forma de se adaptar. O autor sugere outra

resposta, o humor.

A estrutura e o processo, faces da mesma moeda, é o sujeito.

O personagem, o “eu”, é desprovido de substância. Existe apenas como a

combinação de elementos que lhe são oferecidos por um outro. A liberdade não passa

da liberdade de sonhar, imaginar, criar.

Como procurei deixar a Obra falar, a descoberta do processo/estrutura ganhou

um formato inesperado: fragmentado, sinuoso. Para usar uma expressão do personagem,

texto “multiplex”. Percebi que o sujeito era a estrutura/processo, apenas quando a

segunda parte já estava redigida. Tive que reescrevê-la para inserir nela essa percepção.

A concepção de sujeito que surgiu foi outra conseqüência do método utilizado [o

anarquismo metodológico]. Ao invés de enquadrar a Obra reunida ao discurso

produzido sobre o sujeito por nossa cultura, tive que enquadrar o decurso sobre o sujeito

à Obra reunida!

Ao ser apresentado ao processo/estrutura pela Obra, pude perceber que a

realidade que nela aparece, a realidade remodelada conforme os movimentos internos

do autor, de sua subjetividade. Assim, a luta do homem pela liberdade, a busca de

autoconhecimento, o desprezo pelo social e por seus representantes, estão mais

próximos da metáfora do que de um ideal. Dessa forma, parti em busca de chaves de

interpretação para esclarecer meus pensamentos. E as encontrei em três movimentos

literários e uma escola filosófica: o expressionismo, o dadaísmo, o surrealismo e o

existencialismo.

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A Obra reunida apresenta características desses quatro movimentos. É a

expressão da subjetividade de um indivíduo concreto, que usa os elementos da realidade

para formar metáforas, que usa os próprios conflitos e desejos subjetivos como

remodelador da realidade, como construtor de símbolos. Símbolos para falar da

impossibilidade de realizar qualquer mudança no mundo, para dizer de um

determinismo que só não aprisiona a imaginação [e, com isso, não aprisiona a arte], para

mostrar que o humor é a única saída, o único bem que alguém pode conquistar enquanto

espera a morte, a libertação final e verdadeira.

Depois de percorrido esse caminho, percebo que o trauma é a própria vida. E

que viver é sofrer, de acordo com a primeira nobre verdade do budismo. Mas, diferente

do budismo, não há, na Obra, a terceira nobre verdade sobre a cessação do sofrimento.

Como o trauma é a própria vida, é impossível se livrar dele sem se livrar da

vida. E esse é o ideal que é buscado e destruído com o encontro.

O personagem busca uma forma de acabar com o seu sofrimento, com a sua

angústia, e ainda permanecer vivo. Quando fica claro que isso é impossível, ou ele se

revolta contra a existência, ou se mata. Essas são as duas respostas possíveis, de acordo

com o texto.

Termino este trabalho citando um trecho do Eclesiastes, que me parece

adequado ao “espírito” que anima a Obra reunida: “E considerei os mortos, por já terem

falecido, mais felizes que os vivos, porque estes ainda têm que levar a vida; porém, mais

feliz que ambos é aquele que não chegou a nascer, porque não viu a maldade que se

comete debaixo do sol.” (Ecl. 4, 2s).

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REFERÊNCIAS

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APÊNDICE A

Estrutura

Trauma

Busca Resposta

Encontro

______________________________________________________________________

Processo

Véu do esquecimento

Trauma

Morte

Busca Resposta Busca Resposta Busca Resposta

Encontro Encontro Encontro

Resposta: Adaptação, fuga, desprezo, suicídio, humor.

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APÊNDICE B

A lua vem da Ásia

Partes Primeira Parte

Vida Sexual dos Perus

Segunda Parte

Cosmogonia

Capítulo Primeiro A

Capítulo 18º B

Capítulo Doze C

(Sem Capítulo) D

Capítulo sem Sexo E

Capítulo 99 F

Capítulo Vinte G

Capítulo I (Novamente) H

Capítulo I

Capítulo CLXXXIV J

Capítulo XXVI K

Dois Capítulos Num Só L

Capítulo 333 M

Capítulo 334 N

Cap. 71

Capítulo Não-Eclesiástico

Capítulo 103

Capítulo Negro

Capítulo 42

Capítulos

Capítulo LIV

O.P.Q.R.S.T.U.V.X.Y.Z.

[Continua na próxima página]

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Vaca de nariz sutil

Capítulos 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13

A chuva imóvel

Partes PRIMEIRA PARTE O CENTAURO A CAVALO

SEGUNDA PARTE GIRASSOL, GIRALUA

Capítulos ...nove! ...oito! ...sete! ...seis!

...cinco! ...quatro!

...três ...dois!

TERCEIRA PARTE ZONA DE TREVA

...um!

[Continua na próxima página]

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O púcaro búlgaro

Partes

Explicação Necessária

Os Prolegômenos

Explicação Desnecessária

Capítulos (Diário)

Outubro, 31 Novembro, 28/2 Século

Outubro, 32 30 de novembro Século

4 de novembro Dezembro, 2 Século

7 de novembro 4 de dezembro Século

Novembro, 10 Dezembro, 7 Século

Novembro, 11 Outubro - ?______

Novembro, 14 Outubro Outubro, 27

Novembro, 17 Outubro ?

Novembro, 18 Outubro

Novembro, 19 Outubro

Novembro, 20 Outubro

Novembro, 22 (Outubro)

Novembro, 24 Século XX

Novembro, 25 Século XX (?)

Novembro, 26 Século XX

Livro de Horas e Desoras

OU

DIÁRIO DA FAMOSA EXPEDIÇÃO ‘TOHU-

BOHU’

AO FABULOSO REINO DA

Bulgária

(MCMLXI - ... )

COM O QUE SE PASSOU OU NÃO SE

PASSOU

DE IMPORTANTE NESSE, COM PERDÃO DA

PALAVRA,

INTERREGNO

Novembro, 28 Século

Outubro, 27

(ainda)

A Partida

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APÊNDICE C

Quadro comparativo

Lua Sutil Chuva Púcaro Trauma Eletrochoque;

Tortura. Guerra; Bombas.

Morte do irmão; Casamento da irmã.

Púcaro búlgaro.

Busca Liberdade. Valquíria; Sabedoria; Vaca de nariz sutil.

Unidade; Andréa; Eu verdadeiro.

Búlgaria.

Encontro A liberdade é um sonho, uma nobre fantasia.

A busca foi em vão, a sabedoria não foi encontrada.

Andrógino; Inimigo; A Coisa; O Isso; O eu é um nada.

Um professor búlgaro que não se lembra da Bulgária, pois saiu de lá muito criança e foi criado no Ceará.

Resposta Suicídio Viagem de trem Adaptação Fuga Esquecimento

Tentativa de adaptaçao; Desprezo; Suicídio.

Partida de cartas; Desprezo ou adaptação; Esquecimento.

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APÊNDICE D

O termo e a Obra

1. O significado do termo “sujeito”

O termo “sujeito” deriva do vocábulo latino subjectum, que por sua vez traduz o

termo grego hipokeimenon [hipo, sob, e keimai, estar deitado] (SANTOS, 2007, p. 278),

que significa “subjacente, suposto, que serve de base, de tema, de matéria” (Logos,

1992, p. 1337). Aparece pela primeira vez em Platão e é definido por Aristóteles em sua

Metafísica (ABBAGNANO, 2007, p. 1096).

Esse termo possui dois significados fundamentais. O primeiro, como “aquilo de

que se fala ou a que se atribui qualidades ou determinações” (ABBAGNANO, 2007, p.

1096). O segundo, como “princípio determinante do mundo do conhecimento ou da

ação, ou ao menos como capacidade de iniciativa em tal mundo.” (ABBAGNANO,

2007, p. 1096).

O primeiro significado surge com Platão, como já foi dito, e pertence à tradição

da filosofia clássica, que possui como categorial central o “Ser”, também traduzido por

“Existência”, e é identificada pela maioria dos filósofos religiosos, cristãos, judeus ou

muçulmanos, com Deus. A categoria “sujeito” fica em segundo plano, e atualmente, em

alguns livros, é traduzida como “substrato”.

Aristóteles define o sujeito [ou o substrato] como “aquilo de que são predicadas

todas as outras coisas, enquanto [...] não é predicado de nenhuma outra.”

(ARISTÓTELES, 2002, p. 291). Nesse sentido, a alma humana, na tradição clássica, é

entendida como sujeito “à qual inerem determinados caracteres ou do qual emanam

determinadas atividades.” (ABBAGNANO, 2007, p. 1096).

O sujeito é o fundamento uno e inalterável do pensar e agir humano.

Na Obra reunida, o sujeito não aparece com as características citadas. Apesar de

responsável pelo agir [“Sento-me quando ele quer que eu me sente” (Chuva, p. 288)] e

pelo pensar [“fazendo-me pensar o que não quero, o que eu não quero, O QUE EU

NÃO QUERO” (Chuva, p. 290)], ele não é uno e inalterável [“um andrógino fora de

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qualquer dúvida, de mil faces e de nenhuma” (Chuva, p. 251-252)] e nem é uma

categoria subordinada a uma outra, ao Ser, no caso. Há, pelo contrário, a possibilidade

do sujeito ser o próprio Deus [“tão nocivo quanto Deus se não for o próprio Deus”

(Chuva, p. 296, negrito meu)]. Enfim, o sujeito não é identificado com o “eu”.

A categoria de Ser, central na filosofia antiga, quase não aparece na Obra.

Quando aparece, é identificada com Deus [“ao próprio Deus caso ele existisse” (Lua, p.

140)] e possui um papel totalmente secundário, e não central, como na filosofia clássica.

E dificilmente seria diferente, já que os livros estudados se situam não mais numa

sociedade tradicional, mas numa sociedade moderna [ou pós-moderna].

Outros conceitos fundamentais numa cultura tradicional são os de imanência e

transcendência.

Imanente e transcendente são abstrações de uma mesma realidade, sendo que a

transcendência envolve e sustenta a imanência sem anulá-la, e ambas formam um

mesmo todo.

Na Obra reunida não aparece a categoria de transcendência como uma realidade

que engloba e sustenta o mundo natural. Aparece sim, o mundo natural, que não se

identifica com o material, pois existe lugar para o Mistério e o Inconsciente, mas esses

são vistos como naturais, como também ocorre entre os dadaístas e surrealistas.

Volto ao termo sujeito.

O segundo significado desse termo já pertence à filosofia moderna. O sujeito,

nesse caso, aparece como categoria central, pois está diretamente relacionado ao

conhecimento, preocupação maior dos filósofos do inicio da modernidade.

Em Descartes, o sujeito, ou melhor, o eu, é ainda uma substância pensante. É

também racional e responsável pelo agir. E esse é o pilar de sua filosofia, a primeira

verdade indubitável sobre a qual o primeiro filósofo moderno irá erguer todo o seu

sistema filosófico (ABBAGNANO, 2007, p. 1097). Na Obra reunida o eu também

aparece como sujeito do conhecimento [“Meus novos pensamento, que são de virar o

mundo” (Lua, p. 146, negrito meu)] e da ação [“no momento azado eu subo numa

cadeira e, de batuta a mão, ponho os músicos todos malucos” (Lua, p. 146-147, negrito

meu)]. Mas se o eu é de fato agente e conhecedor, isso é posto em dúvida [“Mas tudo

isto são desvarios de um espírito tresnoitado, dirão talvez meus inimigos eternos, que

vivem dentro e fora de mim” (Lua, p. 147, negrito meu)]. Os “inimigos eternos” é o

verdadeiro sujeito que coloca em dúvida a primazia da ação e do conhecimento do eu. O

sujeito aparece fragmentado e o eu um ser iludido [“inútil fingir que não sei disto, que

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sou dono da minha alma como sou dono do meu estômago” (Sutil, p. 191)] que pertence

a outrem [“o meu cérebro, agora dela [de Valquíria].” (Sutil, p. 191)].

Além de não ser nem sujeito da ação, nem sujeito do pensamento, muito menos

um ser racional [“Aos 16 anos matei meu professor de lógica.” (Lua, p. 36)], o eu nem

existe como substância, mas como um vazio ao redor do qual giram os elementos que o

compõe [“podem me fazer girar como um pião mas é em torno de mim que eu giro”

(Chuva, p. 296-297)].

A única semelhança com o pensamento de Descartes é a identificação do eu com

o pensamento [“[...], e eu esteja começando a desvairar, eu e o meu pensamento, eu o

Pensamento.” (Chuva, p. 291, negrito meu)]. Mas a identificação do eu com o

pensamento é apenas um grito de desespero do personagem:

Tenho que tomar cuidado com o meu pensamento enquanto ele ainda é meu, enquanto ele ainda é meu, o último baluarte que me resta do que eu já fui, do que ainda estou sendo, nesta partícula ínfima mas ainda eu – EU e não essa Coisa, [...]. Este é meu último reduto, e só cairá quando eu cair, só cairá quando eu cair. (Chuva, p. 290, negrito meu).

O personagem se recusa em ser um nada: “Estou diante do espelho: A SALA

DENTRO DO ESPELHO. – A sala, o navio: NÃO EU, não o que deveria ser eu: – a

sala e a sua penumbra. A menos que...” (Chuva, p. 287). A menos que eu não exista,

seria a conclusão. O espelho reflete tudo, a sala, o navio, a penumbra, menos o

personagem. E esse se recusa em ser um nada:

... Mas não e NÃO! – recuso-me a ser apenas isso: RECUSO-ME!... Mesmo que tudo não passe de uma farsa, ou de um..., ou seja do que seja, e ainda mesmo que seja apenas a verdade... RECUSO-ME! ... A ignomínia das ignomínias! (Chuva, p. 287, negrito meu).

E apenas como uma recusa de ser um nada [“o vazio no vazio, a ignomínia na

ignomínia, este caos dentro desse caos, [...] – quintessência do nada.” (Chuva, p. 293-

294)] é que o personagem se identifica com o pensamento. Em outras palavras, a

identificação do eu com o pensamento é uma ficção que serve como negação de uma

realidade desagradável, ou como um grito de protesto, e não como uma realidade, como

é em Descartes.

Voltando à história do termo, a palavra “sujeito” é usada pela primeira vez, na

filosofia moderna, por Leibniz (FREITAS, 1992, p.1339), mas ainda assim com o

significado de “ser espiritual ou pensante, que é o homem.” (FREITAS, 1992, p.1339).

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Na Obra, o homem não é visto como um ser espiritual, no sentido religioso,

como em Leibniz, mas como um animal que sonha, que é ou quer ser livre, que constrói

uma cultura, que ri. Ou seja, possui uma alma [“os que tiverem uma alma se sentirão

envergonhados de terem vivido sem ela até então” (Lua, p. 147)], mas essa é

identificada com uma capacidade natural.

Aqui aparece mais uma semelhança entre a Obra reunida e o pensamento

moderno. A categoria de transcendência, no sentido de sobrenatural e imutável, comum

nas sociedades tradicionais, não aparece. Pelo contrário, o que surge na Obra é o

relativismo característico da filosofia pós nietzcheana [filosofia contemporânea]:

Vivo criando verdades a torto e a direito, cada dia é uma verdade diferente, sem querer até que disse uma coisa que preste: cada dia uma verdade diferente, não é bem o que queria dizer mas foi o que eu disse, menos mal como dizia o outro, há sempre um outro para dizer as coisas antes de nós. (Sutil, p. 189).

Em lugar da cosmovisão tradicional fica apenas o mundo natural, ainda que não

necessariamente material. O pensamento moderno e pós-moderno, assim como o

pensamento apresentado na Obra, são caracterizados pela negação da existência de uma

transcendência como uma realidade superior à imanência. Essa mudança de perspectiva

tem seu início na filosofia kantiana.

Em Kant, o sujeito ganha um novo significado. Aparece significando “o eu, a

consciência ou a capacidade de iniciativa em geral” (ABBAGNANO, 2007, p. 1097).

Além disso, o sujeito é transcendental, só pode ser conhecido através dos pensamentos,

pois ele é condição de possibilidade dos próprios pensamentos. Se os pensamentos

existem é porque eles podem existir. Se podem existir, é porque há algo que possibilita

sua existência. Esse algo que possibilita a existência é chamado de transcendental.

O sujeito transcendente, é imutável, está além da imanência, do natural [da

física]. Nesse caso o sujeito seria metafísico, espiritual. Para Kant, é impossível saber

qualquer coisa a respeito do transcendente ou de um sujeito transcendente.

Já o sujeito transcendental pode ser conhecido, de forma indireta. Ele é como um

molde vazio, como uma garrafa transparente vazia que só apresenta sua forma quando

preenchida com um líquido colorido.

Esse novo conceito de sujeito é inovador, o que não significa que seja

necessariamente verdadeiro. O eu [sujeito transcendental] realiza uma função sintética

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entre o sujeito [gramatical] e seus predicados no juízo. O sujeito transcendental ganha

assim, um novo significado. E é com esse novo significado, mas ainda sendo designado

por “eu”, que o sujeito será explorado pelos filósofos pós-kantianos (ABBAGNANO,

2007, p. 1097).

Mas essa segunda forma de significar o sujeito não é necessariamente contrária à

“acepção ontológica e substancialista de tradição aristotélico-escolástica.” (LOGOS,

1992, p. 1339-1340), pois o sujeito transcendental pode se apoiar em um fundamento

imutável, “numa substancia, num ser capaz de actuar ou exercer.” (LOGOS, 1992, p.

1340). Ou seja, o sujeito kantiano também não se identifica com o sujeito da Obra

reunida.

A idéia do sujeito como princípio do conhecimento e da ação do mundo sofre

uma mudança apenas na modernidade tardia. O “[sujeito] como eu (ou o eu como

[sujeito]) simplesmente desaparece de algumas filosofias contemporâneas porque

desaparece a função diretiva e construtiva que ele deveria exercer.” (ABBAGNANO,

2007, p. 1098).

Para Husserl o eu [sujeito] é uma função, não uma substância; para Heidegger,

influenciado por Husserl, o sujeito é a relação do Dasein [ser-aí] com o mundo

(ABBAGNANO, 2007, p. 1098).

Aparentemente, o sujeito como função está de acordo com o sujeito da Obra. É

só retomar a metáfora do caleidoscópio. Os espelhos e os grãos são os elementos, o eu é

a configuração dos elementos, ou seja, é uma função dos elementos em dado momento.

Mas a semelhança para por aí. Na Obra, o “eu” é uma função, o sujeito não. O eu não é

senhor de seus pensamentos e nem de suas ações. O sujeito não é o eu. Tanto em

Husserl quanto em Heidegger, o eu [eu no primeiro, Dasein no segundo] ainda possui

um princípio de ação e conhecimento. E, mais uma vez, o sujeito como relação ou como

função, também podem se apoiar em um fundamento imutável, “numa substancia, num

ser capaz de actuar ou exercer.” (LOGOS, 1992, p. 1340).

No pensamento contemporâneo, o sujeito como princípio e fundamento do

“conhecimento e da ação (...) sofreu uma ‘derrocada’” (ABBAGNANO, 2007, p. 1098).

Em Marx, por exemplo, o que move a história é o conflito entre as classes e as

relações de produção, e a consciência é fruto desse processo. O indivíduo como agente

histórico que possui uma essência singular e universal [o sujeito] é descartado. Marx

desloca “qualquer noção de agência individual [...], ao colocar as relações sociais

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(modos de produção, exploração de força de trabalho, os circuitos do capital) e não uma

noção abstrata de homem no centro de seu sistema teórico” (HALL, 2005, p. 35).

Dessa forma o sujeito não é uma substancia pensante, racional, coesa, mas uma

construção social que reflete as relações sociais.

Nietzsche, por sua vez, sustenta a idéia de que todo o discurso, não apenas o

moderno, mas qualquer discurso, é apenas um sistema de metáforas úteis, sendo que

deve ser considerado útil àquilo que valoriza e fortalece a vida. O que muitas vezes não

acontece. O discurso moderno, bem como a concepção moderna de sujeito, são

metáforas tomadas erroneamente como verdades, e são sustentadas como sendo

verdadeiras por sua utilidade para determinada classe social ou por sua utilidade em

relação a determinados mecanismos psicológicos doentios. Nietzsche considera o

sujeito “e a consciência como ‘máscaras’ da vontade de poder” (ABBAGNANO, 2007,

p. 1098). Mas para Nietzsche, esse pensamento é, provavelmente, mais uma metáfora.

Freud acreditou ter demonstrado que nossa aparente racionalidade não passa de

uma “camuflagem”, uma racionalização de

processos psíquico e simbólicos do inconsciente, que funciona de acordo com a uma ‘lógica’ muito diferente daquela da Razão, [desta forma] arrasa com [o] conceito do sujeito cognoscente e racional provido de uma identidade fixa e unificada (HALL, 2005, p. 36).

O sujeito passa a ser “o conjunto dos desejos inconscientes que o dominam e

dele se assenhoreiam” (ABBAGNANO, 2007, p. 1098).

O conceito de inconsciente varia de um teórico para outro. Se para Freud o

inconsciente era causa de determinados sintomas, para Adler era a causa final desses

sintomas. Para Jung, os dois conceitos de inconsciente, o causal e o teleológico, são

complementares.

De qualquer forma, na psicanálise, o termo sujeito foi introduzido por Lacan

como “sujeito do inconsciente”, que é a própria pulsação dos desejos inconscientes que

“se abre e se fecha assim que é apreendido pela consciência.” (PORGE, 1996, p. 502).

Aqui a aproximação com o sujeito da Obra reunida começa a acontecer. O eu

não é o princípio do conhecimento e da ação, mas uma “mascara” de alguma outra coisa

que é o verdadeiro sujeito, "o Inimigo, movimentando todos esses cordéis ou não os

movimentando, todas essas cordas [...]. – É ele o dono de tudo e o dono de nada”

(Chuva, p. 295-296).

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Já em meados do século XX, sob forte influência de Nietzsche e de Heidegger,

várias tendências identificaram a concepção de sujeito moderno como uma ficção que

prefigurou o “homem tecnocrático e violento do século XX.” (ABBAGNANO, 2007, p.

1098), daí a forte tendência de contestar a centralidade da concepção de sujeito e a

proposta de pensar além dessa categoria.

Na Obra reunida o sujeito é visto não apenas como prefiguração do “homem

tecnocrático e violento do século XX”, mas como o responsável por toda violência,

tão nocivo quanto Deus se não for o próprio Deus, o álibi de que serve Deus para lavar as mãos sempre sujas, como se serve também do homem, ou da fera, ou de qualquer dos seus elementos desencadeados.” (Chuva, p. 295-296).

Não lhes tenho ódio mas desprezo, como nunca tivesse ódio à polícia ou aos donos da polícia, nem a todas as polícias do mundo reunidas, que apenas procuravam, e mal, imitar o exemplo vindo de cima, com as suas providências copiadas da Divina Providência, punindo os inocentes e sobretudo os culpados, os culpados de serem inocentes, como se punissem o canceroso e o animal de duas cabeças. (Chuva, p. 297).

E a idéia de pensar além do sujeito parece descabida. Sendo ele o “dono de

tudo”, escapar do sujeito resulta impossível. As alternativas já são conhecidas: o

suicídio, o desprezo, o esquecimento e o humor.

Completada essa etapa histórica, posso agora refletir melhor e definir de vez o

sujeito apresentado pela Obra.

2. O “sujeito” e a Obra Reunida

Como visto acima, o sujeito é o agente do agir e do pensar humano. Não faz

sentido, dessa forma, dizer que o sujeito não existe. Quando alguém nega a existência

do sujeito, nega na verdade uma determinada significação do mesmo.

O sujeito pode ou não ser identificado com o eu. Pode ou não ser uma

substância. Se não for uma substância, pode ser uma função, uma relação, ou algo

desconhecido, um inconsciente, por exemplo, formado por desejos, vontade de poder,

etc. Pode ainda ser uno ou múltiplo. Pode ser transcendente ou imanente, eterno ou

transitório, dado ou construído.

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Na Obra reunida, o sujeito e o “eu” são distintos.

O “eu” é uma função, formado pela relação temporária dos elementos sociais e

naturais. O responsável pelo movimento constante dos diversos elementos que formam

o “eu”, é o sujeito. Baste lembrar a metáfora do caleidoscópio. Os espelhos e os grãos

são os elementos. A configuração especifica em cada momento é o “eu”.

É nesse sentido que o “eu” é um nada. É totalmente dependente das relações de

terceiros, e do movimento de um outro. É como o eixo ao redor do qual o pião gira. Para

girar, é necessária a existência de um eixo, mas o eixo não existe como uma substância,

mas como um lugar provisório. E o “eu” não existe como uma substância, mas como

uma configuração provisória.

O eu é formado pela configuração de vários elementos. Os elementos naturais

aparecem em toda Obra, principalmente os relacionados à alimentação e ao sexo. Os

elementos psíquicos, como as fantasias e os pensamentos, aparecem como sendo

impostos ao “eu” pelo sujeito. Os elementos sociais também aparecem. Ora como

construção humana, ora como algo imposto aos homens. O social seria a reprodução em

escala maior, do que é imposto pelo “sujeito” aos indivíduos. O que leva a crer que o

sujeito de cada indivíduo é semelhante. O que não traz nenhum problema, pois podemos

imaginar uma centena de caleidoscópios, sem por isso dizer que eles possuem o mesmo

“sujeito”. Ainda existem assuntos interessante relacionados ao “eu”, como a liberdade,

por exemplo. Mas o trabalho é sobre o “sujeito”, e vou me concentrar nesse conceito.

O verdadeiro responsável pelo movimento, pela ação, é o “sujeito”, e não o “eu”.

E como o sujeito é sempre sujeito de um eu, ele é transitório, pois desaparece quando o

eu morre. Por isso mesmo o sujeito é imanente, múltiplo e construído.

Imanente, porque é transitório e a transcendência é eterna.

Múltiplo, pois a unidade é atributo do que é eterno. A unidade que pode existir

no transitório é a unidade de um sistema. Mas um sistema é, por definição, uma

multiplicidade [complexidade] organizada.

E construído, pois não sendo eterno, teve necessariamente um começo.

E sendo assim, o sujeito não é uma substância, pois essa é transcendente.

Os diferentes personagens da Obra reunida percorrem um mesmo caminho, há

um mesmo padrão por detrás de suas ações. Esse padrão comum que rege as ações dos

quatro personagens é o sujeito da Obra.

Já descrevi o processo e os termos que formam esse padrão comum. Chegou a

hora de, com o material já apresentado, chegar a uma conclusão.

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O trauma pode ser visto de duas formas. Em primeiro lugar, como um

acontecimento qualquer que provoca um forte mal-estar. O eletrochoque, a guerra, a

morte do irmão, a visão de um púcaro búlgaro.

Mas se duas pessoas participam de uma guerra, uma pode se tornar uma

neurótica e a outra não. Por que? Porque o acontecimento que provoca o mal-estar serve

apenas como uma fachada que leva ao verdadeiro trauma. E esse é a segunda forma de

ver o trauma, como um “objeto” que está sempre presente, mas encoberto por uma

névoa de esquecimento e que é despertado por um acontecimento específico. Este

segundo trauma pode ser identificado com a angústia existencial, o tédio, a náusea, o

sofrimento humano; sempre presentes na vida humana.

Já a busca é a tentativa de acabar com a angústia. Como esse empreendimento é

impossível, a busca é vã, como já foi dito inúmeras vezes. Essa tentativa se apresenta de

duas formas básicas: como esquecimento ou como construção de um ideal a ser

alcançado e que trará, supostamente, o fim da angústia.

Os ideais são a liberdade, Valquíria, a sabedoria da vaca de nariz sutil, o

autoconhecimento e a Bulgária. São uma forma de se auto iludir temporariamente,

acreditando ser possível superar a angústia. O ideal é um tipo mais sofisticado de

esquecimento.

Mas como é impossível se desfazer do tédio que marca a vida humana, o trauma,

na segunda acepção do termo, ou seja, como angústia e não como um acontecimento

específico, reaparece, quando o ideal se mostra uma fantasia, um sonho. Esse é o

momento que chamei de encontro. É a angústia e a impossibilidade de não sofrer é que

são encontrados.

E qual a diferença entre o esquecimento e a desilusão do encontro? Creio que o

repertório de desculpas e a ansiedade, fatores que estão relacionados. Quem não busca

fica frustrado por causa de um tênue sentimento de que algo poderia ser feito, e fica

ansioso por ter que criar mecanismos de esquecimento constantemente. Quem busca e

se desilude pode ficar mais conformado, pois a ansiedade de procurar uma forma para

não mais sofrer desaparece, e a necessidade de criar mecanismos para esconder o

trauma não mais existe, pelo menos não de forma tão intensa.

Ficar conformado é uma das respostas para o encontro, o segundo encontro com

o trauma. As outras respostas encontradas na Obra são o suicídio e o desprezo.

O suicídio aparece no primeiro e no terceiro livros, o desprezo aparece nos dois

últimos. No segundo livro, o neurótico de guerra fica conformado, ou finge acreditar

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que está adaptado à sociedade apenas temporariamente, que quando quiser ele se liberta.

De certa forma, ele está se iludindo.

De qualquer forma, a concepção da vida humana presente na Obra reunida é

pessimista. Ou o personagem se ilude, ou vive sentindo desprezo pela vida, ou comete

suicídio.

Tendo em vista o que foi dito, é possível perceber que o motor que ativa o

processo é a angústia. E a não aceitação da angústia, juntamente com a capacidade de

sonhar, ou seja, desejar uma vida melhor, organizam o processo da forma como ele se

dá. O sofrimento e a capacidade de sonhar são os responsáveis pelo ciclo trauma/busca/

encontro/resposta. E tanto a angústia como a capacidade de sonhar surgem de uma

mesma fonte, o Mistério, ao qual o “eu” está subordinado.

O Mistério é o sujeito.

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ANEXO A

Livre associação de idéias e escrita automática

Exemplo 1:

“[...] esta cor corada é a da saúde, estou vendendo saúde, decidi continuar respirando

com os vocês até a nova ordem, até a Nova Ordem, um-dois!, um-dois!, diga 33: pois

TRINTA E TRÊS, [...]. Terei que fazer antes um curso de blablablá, como aprendi a

fazer a barba todo dia desfazendo-a, a caminhar para a frente sem sair do lugar, a

descobri-me sem nunca ser descoberto, e mais os 12 signos do zodíaco, e os 12 meses

do ano, os 12 apóstolos e os 12 césares: olha à direita!, estou olhando: é proibido falar

com motorista, e se for eu o motorista? – ver Nápoles depois morrer, o Danúbio azul,

pede-se não pisar na grama, o seio de Abraão, a terra é redonda e o papa infalível, eppur

si nuove!, os sete pecados capitais são, todos somos iguais perante a lei, Liberdade

Igualdade Fraternidade, Ivo viu a uva, clave de fá, de sol e de dó: Átomos para a paz.”

(Chuva, p. 254-255).

Exemplo 2:

“O homem foi até a janela e cerrou calmamente as cortinas.

- Agora vai dizer em voz alta, e sem pensar, tudo que lhe vier à cabeça. Relaxe-

se o mais possível e nada de escrúpulo.

- Escrúpulo. Cabeça. O oceano é azul. Que calor está fazendo. A morte de

Danton. As metamorfoses de Ovídio. O senhor é uma besta. Com quantos paus se faz

uma canoa? Vinte e um, vinte e dois, vinte e três, vinte e quatro. As laranjas da

Califórnia são deliciosas. Umbigo. Rapadura. Otorrinolaringologista. É a tua, mulher

nua, vou pra Lua, jumento, pára-vento, dez por cento, Catão, catatau, catapulta que o

pariu, catástrofe, caralho, os medos, os vegas, as vegaminas, as sulfas e as para-sulfas,

diametilaminatetrassulfonatosótico, porra de merda, argentino, argentário, argentículo,

testículo, laparotomia, Boris Karloff, Irmãos Karamazov, Irmãos Marx, Marx, Engels,

Lenin, Lenita, onomatopéia, onomatopaico, onanista, ovos de Páscoa, jerimum,

malacacheta, salsaparilha, Rzhwpstkj, Celeste Império, semicúpio, Salazar, sai azar, seis

e vinte da manhã, Dadá, Dedé, Dodô, Dudu, holofote, oliveira, olá Olavo, Alá, ali, alô

sua besta já não basta?...

- Basta.” (Púcaro, p. 328).

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ANEXO B

13 de novembro

Fui ao psicanalista e ele me fez deitar num divã, sem o paletó, a gravata e os

sapatos.

- Está se sentindo confortável?

- Muito. E o senhor?

- Desaperte o cinto.

- Quer dizer que já subimos?

- Limite-se a responder. Feche os olhos, procure concentrar-se.

Fazia um calor dos diabos, e de repente me veio uma vontade louca de urinar.

- Já pensou alguma vem em matar seu pai?

- Muitas. Mas, se o sr. me permite, eu gostaria de urinar.

- Tem irmãos ou irmãs?

- Que eu saiba, não. Assim de momento é meio difícil...

- Gatos? Cachorros?

- Se o sr. não me deixar ir urinar, não respondo, nem respondo pelas

conseqüências.

E depois que eu voltei do banheiro:

- Quantos dedos o sr. tem nas mãos? Não, não pode abrir os olhos.

- Dez, até chegar aqui pelo menos.

- Responda depressa: se ponho vinte e duas melancias nas suas mãos e depois

tiro cinco e acrescento três, com quantos dedos o senhor fica?

- Vinte. Contando os dos pés, naturalmente.

- Em que ano estamos?

- Mil novecentos e sessenta e três.

- Século?

- Vinte.

- Antes de Cristo ou depois de Cristo?

- Que Cristo?

- Não faça perguntas, já disse. O mar é vermelho ou é amarelo?

- Depende. No mapa lá de casa, tanto o mar Vermelho quanto o Amarelo são

azuis. Da minha janela às vezes ele é cor de abóbora.

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- Qual o oceano que dá para a sua janela?

- O Atlântico, isto é pacífico.

- O Atlântico ou o Pacífico?

- Assim o sr. me confunde. Nem eu vim aqui para me submeter a prova de

geografia.

O homem foi até a janela e cerrou calmamente as cortinas.

- Agora vai dizer em voz alta, e sem pensar, tudo que lhe vier à cabeça.

Relaxe-se o mais possível e nada de escrúpulo.

- Escrúpulo. Cabeça. O oceano é azul. Que calor está fazendo. A morte de

Danton. As metamorfoses de Ovídio. O senhor é uma besta. Com quantos paus se faz

uma canoa? Vinte e um, vinte e dois, vinte e três, vinte e quatro. As laranjas da

Califórnia são deliciosas. Umbigo. Rapadura. Otorrinolaringologista. É a tua, mulher

nua, vou pra Lua, jumento, pára-vento, dez por cento, Catão, catatau, catapulta que o

pariu, catástrofe, caralho, os medos, os vegas, as vegaminas, as sulfas e as para-sulfas,

diametilaminatetrassulfonatosótico, porra de merda, argentino, argentário, argentículo,

testículo, laparotomia, Boris Karloff, Irmãos Karamazov, Irmãos Marx, Marx, Engels,

Lenin, Lenita, onomatopéia, onomatopaico, onanista, ovos de Páscoa, jerimum,

malacacheta, salsaparilha, Rzhwpstkj, Celeste Império, semicúpio, Salazar, sai azar, seis

e vinte da manhã, Dadá, Dedé, Dodô, Dudu, holofote, oliveira, olá Olavo, Alá, ali, alô

sua besta já não basta?...

- Basta.

O sábio agora me olhava atentamente, o lápis suspenso no ar, o bloco de papel

com rascunhos sobre o joelho. Sua máscara traia uma grande inquietação, como se

temesse alguma coisa ou já começasse a pôr em dúvida a minha sanidade. Até que,

simulando uma calma absoluta, arriscou com o ar mais natural deste mundo:

- O senhor já foi à Bulgária?

Novembro, 14

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ANEXO C

KARMA

“O espírito dos mortos vela”. Gauguin

Quando em plena noite acordo,

vejo-o sentado em minha cama, imóvel.

Seu negro olhar profundo,

eterno e meigo olhar de quem não é do mundo

e traz ainda a visão de esferas inefáveis,

pousa tranqüilo em mim, como um frio epitáfio numa lousa.

Dir-se-ia o olhar de um irmão ou de uma esposa

que assim me espreita e me protege, em meio ao sono,

dos sortilégios do demônio ou de algum gnomo

surgido, há séculos, da estranha fantasia

de um antepassado cabalista.

(...)

É bem possível que esse estranho ser

não seja para mim um ser estranho, e sim

a imagem dos que viveram minha vida antes de mim.

Autor: Campos de Carvalho

Fonte: http://www.revista.agulha.nom.br/ag54carvalho.htm