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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, n o 34, p. 149-165, 2008 149 DA TOLERÂNCIA À NEGOCIAÇÃO: A QUESTÃO DO INDÍGENA NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO TOCANTINS Luiza Helena Oliveira da Silva Francisco Neto Pereira Pinto [...] sem de fato entender o diferente em sua complexidade, não conseguiremos criar provimentos para acomodá-lo, acolhê-lo, de forma respeitosa, na escola. Terezinha de Jesus Machado Maher RESUMO O presente trabalho corresponde a estudos prelimi- nares referentes ao Projeto Multiculturalismo e discurso: implicações sobre o ensino. Analisa a discursivização da igualdade e da diferença a partir do que é textualizado nos documentos institucionais da Universidade Fe- deral do Tocantins, no que diz respeito a políticas de acesso e à permanência de alunos índios na universi- dade. PALAVRAS-CHAVE: Diversidade Cultural; dife- rença cultural; identidade indígena. Introdução F alar de cultura é tematizar uma das grandes questões apresentadas à contemporaneidade. Entretanto, muito embora seja presença co- mum nos discursos atuais, relativos a políticas públicas, negocia- ções da esfera econômica e interesses de toda sorte, à medida que se inten- sificam as reflexões, complexifica-se a questão, sobretudo quando o que se tem em mente são as identidades culturais. De acordo com Hall, “estamos

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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 149-165, 2008 149

DA TOLERÂNCIA À NEGOCIAÇÃO: A QUESTÃODO INDÍGENA NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO

TOCANTINS

Luiza Helena Oliveira da Silva

Francisco Neto Pereira Pinto

[...] sem de fato entender o diferente em sua complexidade,não conseguiremos criar provimentos para acomodá-lo,acolhê-lo, de forma respeitosa, na escola.

Terezinha de Jesus Machado Maher

RESUMO

O presente trabalho corresponde a estudos prelimi-nares referentes ao Projeto Multiculturalismo e discurso:implicações sobre o ensino. Analisa a discursivização daigualdade e da diferença a partir do que é textualizadonos documentos institucionais da Universidade Fe-deral do Tocantins, no que diz respeito a políticas deacesso e à permanência de alunos índios na universi-dade.

PALAVRAS-CHAVE: Diversidade Cultural; dife-rença cultural; identidade indígena.

Introdução

Falar de cultura é tematizar uma das grandes questões apresentadas àcontemporaneidade. Entretanto, muito embora seja presença co-mum nos discursos atuais, relativos a políticas públicas, negocia-

ções da esfera econômica e interesses de toda sorte, à medida que se inten-sificam as reflexões, complexifica-se a questão, sobretudo quando o que setem em mente são as identidades culturais. De acordo com Hall, “estamos

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observando uma verdadeira explosão discursiva em torno do conceito deidentidade”1, o que nos põe de frente a diferentes e muitas vezes conflituosasperspectivas, desde aquelas que a tomam como algo substantivado, já dado,natural, àquelas que a compreendem como elaborações discursivas, cons-truções que se constituem nas relações históricas instituídas entre os sujei-tos e comunidades frente determinadas condições de poder.

Acresce-se a essa complexidade a perspectiva com que se toma apluralidade cultural no bojo dos questionamentos que envolvem as práti-cas interculturais que se configurariam diferentemente no que se entendecomo contexto contemporâneo e as especificidades de suas demandaspolíticas e sociais.

Assim, no âmbito dos discursos, a pluralidade cultural não se cons-titui como uma alguma novidade. O que podemos apontar como novo éo fato de estar recebendo atenção por parte de um leque de atores sociais,servindo de preocupação a estudiosos, instituições governamentais e laicas.Nessa direção, incluem-se as políticas educacionais e, entre elas, as diretri-zes traçadas pelo MEC com relação ao tema, criando a SECAD – Secreta-ria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, visando, comodeclara em sua homepage, “ao enfrentamento das injustiças existentes nossistemas de educação do País, valorizando a diversidade da população bra-sileira, trabalhando para garantir a formulação de políticas públicas e so-ciais como instrumento de cidadania”2.

Nesse sentido, a atenção para com o trato das diferentes culturasmerece atenção já na LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacio-nal3, de 1996, definindo a necessidade de conteúdos e metodologias apro-priados às necessidades e aos interesses dos alunos da zona rural (Artigo28); a utilização das línguas maternas para o ensino de alunos de comuni-

1 HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: LP&M, 2005. p.103.

2 SECRETARIA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, ALFABETIZAÇÃO E DIVERSI-DADE: Secad: redimensionando a educação. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/secad/index.php?option=content&task=view&id=102&Itemid=233. Acesso em: 23/10/2007.

3 BRASIL, Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases daeducação nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm>. Acesso em: 23/10/2007.

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dades indígenas (Artigo 32); o desenvolvimento de programas de ensinoplanejados com audiência de comunidades indígenas, o fortalecimento desuas práticas sócio-culturais, sua língua materna e a elaboração de materi-al didático específico e diferenciado (Artigo 79).

Em obediência a essas orientações, a Universidade Federal doTocantins (UFT) instituiu, em 19 de fevereiro de 2004, uma ComissãoEspecial para a Promoção de Políticas de Igualdade Racial, com o fim de elaborarpropostas exeqüíveis para a comunidade acadêmica, tendo como pontosensível as reivindicações do movimento negro e indígena, levando emconta o pequeno percentual de negros e indígenas nas universidadesbrasileiras. Observe-se, nesse sentido que, conforme relatório da referi-da comissão, de 17 de fevereiro de 20064, “a sessão solene que institui aComissão foi uma audiência solicitada pelas lideranças indígenas dasnações Apinajé, Krahô, Karajá, Javaé e Xerente, com o objetivo de en-tregar ao Magnífico Reitor a Carta dos Povos Indígenas, contendo umapauta de reivindicações para garantir o acesso e permanência dos indí-genas na universidade”.

Assim, conforme o referido relatório, o objetivo geral dessa co-missão é, pois, “incorporar a temática racial à construção das políticaseducacionais a serem implantadas na UFT”. Nessa direção, o relatórioregistra o estabelecimento de uma política de cotas para estudantes in-dígenas a partir do vestibular de 2005, definindo ações específicas, ten-do em vista alguns encaminhamentos, em parte distintos do que se acha-ria proposto no documento apresentado ao reitor pelos representantesindígenas5:

- 5% de cotas para estudantes indígenas em todos os cursosoferecidos pela UFT;- prova universal;

4 UNIVERSIDADE FEDERAL DO TOCANTINS. “Relatório das atividades da co-missão especial para a promoção da igualdade racial na UFT”. Disponível em: <http://www.site.uft.edu.br/component/option,com_docman/Itemid,345/task,doc_details/gid,867/>. Acesso em: 30/07/2007.

5 Um exemplo disso se pode observar com relação à prova universal. Conforme o mesmorelatório, as lideranças indígenas solicitavam que a prova fosse específica, o que se justi-fica principalmente pelas dificuldades que os candidatos indígenas enfrentam frente àlíngua portuguesa.

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- avaliação a partir do exame do ENEM;- concorrência entre indígenas (comprovação emitida pelaFUNAI);- isenção da taxa de inscrição para os alunos indígenas;- permanência incentivada pelo NEAI através doacompanhamento pedagógico e da elaboração de projetosde bolsa de estudos específicos.

Um primeiro olhar sobre esse documento de 12 páginas nos revelaque a política proposta pela comissão é regida pela perspectiva da diversi-dade, reiterada expressamente ao longo do texto, fazendo eco a determi-nadas concepções que encontram aceitação no trato das questões relati-vas à pluralidade cultural. Nesse sentido, esclarecemos que a perspectivadiscursiva da diversidade cultural e suas implicações constituem aqui oobjeto de nossas reflexões. Como subsídios teóricos, valemo-nos das re-flexões do multiculturalismo crítico, dos estudos pós-coloniais e dasociossemiótica.

A perspectiva da diversidade

Conforme o relatório da Comissão Especial para a Promoção de Políticas deIgualdade Racial, o objetivo que orienta seus trabalhos consiste em “pensarmecanismos de acesso e permanência na universidade, sob a ótica da diver-sidade”. Dentre as recomendações a respeito de políticas afirmativas paraindígenas, o relatório propõe “oferecer cursos de especialização que trate(sic) da diversidade cultural”. No que toca ao currículo, recomenda a“reformulação do currículo, considerando a diversidade cultural em todosos cursos” e, ainda, o estabelecimento nos cursos de Especialização de “con-teúdo sobre a diversidade cultural para os graduados/egressos e professoresda rede pública municipal e estadual (educação continuada)”. O documen-to ainda define como propostas “incentivar as administrações da educaçãobásica a organizarem uma coordenação de atenção à diversidade cultural” e“oferecer aos professores da UFT cursos sobre a diversidade cultural”.

A partir dos elementos acima mencionados, parece-nos contributivorefletir sobre a perspectiva da diversidade assumida pela política de igual-dade racial dessa instituição de ensino superior.

De acordo com Tomaz Tadeu da Silva, a noção de diversidade sefilia a uma corrente do multiculturalismo que se apóia “em um vago e

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benevolente apelo à tolerância e ao respeito para com a diversidade e adiferença”6. Sob essa orientação, limitar-se-ia a “proclamar a existência dadiversidade”, excluindo o caráter político da identidade e da diferença.

Conforme Silva, sob a ótica da diversidade, a diferença e a identida-de aparecem como naturalizadas, cristalizadas, tornadas inquestionáveis edefinitivas, uma vez que se apresentam como “fatos da vida social”, “es-sências”. Diante dessa configuração, o que se recomenda é, pois, uma po-lítica de tolerância para com o outro. Se assim for, essa direção parececomprometer os objetivos almejados pela proposta de igualdade na uni-versidade. As ações afirmativas desenvolvidas correriam o risco de apenasconseguir informar à comunidade discente e docente (da UFT e da redemunicipal e estadual) a respeito da diversidade cultural constitutiva dasociedade e, nesse caso, o índio continuaria a ser visto sob o viés da estra-nheza e do exotismo, reduzido a encontrar lugar apenas em apresentaçõesde “peças de teatro, música e artesanato”, como também propõe o relató-rio ora analisado.

Nesse caso, o caráter político envolvendo uma construção identitáriaé desprezado, ou melhor, a identidade deixa de ser compreendida comoum processo, como verbo, como movimento, para se estabilizar em suanatureza de fato, natural, apontando para um viés essencialista. SegundoKathrym Woodword, “o essencialismo pode [...] ser biológico e natural,ou histórico e cultural. De qualquer modo, o que eles têm em comum éuma concepção unificada de identidade”7. O outro, o diferente, é assimconcebido como uma totalidade, naturalizando-se por força do discursoa certeza da existência elementos empiricamente verificáveis queedificariam a natureza da diferença. Na mesma direção crítica deWoodword, encontram-se as reflexões de Bhabha, sobre as implicaçõesdessa concepção:

diversidade cultural é um objeto epistemológico – a culturacomo conhecimento empírico –,...uma categoria da ética,

6 SILVA, T. T. A produção social da identidade e da diferença. In: ______. Identidade ediferença: a perspectiva dos estudos culturais. Trad. de Tomas Tadeu da Silva. 5. ed.Petrópolis: Vozes, 2000. p.13

7 WOODWORD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In:SILVA, T. T. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 5. ed. Petrópolis:Vozes, 2000. p. 37.

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da estética ou etnologia comparativas... é o reconhecimentode conteúdos e costumes culturais pré-dados; mantida emum enquadramento temporal relativista, ela dá origem ànoções liberais de multiculturalismo, de intercâmbio culturalou da cultura da humanidade. A diversidade cultural étambém a representação de uma retórica radical de separaçãode culturas totalizadas que existem intocadas pelaintertextualidade de seus locais históricos, protegidas na utopiade uma memória mítica de uma identidade coletiva única.8

Para Bhabha, a perspectiva da diversidade cultural é um objetoepistemológico, de conhecimento, segundo o qual o olhar sobre cultura éempírico. Nela, a diversidade aparece por meio de constatações compara-tivas entre uma cultura e outras e os conteúdos e costumes culturais sãotidos como pré-dados; a diversidade cultural apenas os “reconhece”. Nes-sa perspectiva, de acordo Bhabha, cultura se apresenta de forma totalizada,protegida do contato com as demais culturas, intocadas no regaço de “umamemória mítica de uma identidade coletiva única”.

Desse modo, compreendemos que, uma vez postulada uma políticade igualdade sob a ótica da diversidade, a universidade apenas atua nosentido de propagar e difundir a diversidade cultural, performatizando aimagem do índio genérico, ou seja, àquela que Maher descreve como sen-do a “figura do índio no imaginário nacional” nos seguintes termos:

a nossa concepção do que vem a ser índio oscila – naimprensa, nos livros didáticos, na literatura – entre umavisão satanizada e uma visão idílica de indianidade. Emmomentos, o índio é descrito como um ser destituído dequalquer racionalidade e bom senso: um ser regidoexclusivamente por instintos animalescos e, portanto, umser agressivo, manhoso, não confiável, traiçoeiro. No outroextremo, a imagem do índio é aquela na qual ele é vistocomo o bom selvagem, aquele que sempre protege asflorestas, aquele que é incapaz de qualquer maldade, umser ingênuo, puro9.

8 BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte, MG: UPMG, 2005. p. 63.9 MAHER, T. M. A criança indígena: do falar materno ao falar emprestado. In: FARIA, A.

L. G. de; MELLO, S. A. (Org.). O mundo da escrita no universo da pequena infância. Campinas,SP: Autores Associados, 2005.

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Essa imagem de “índio genérico” narrada pelos meios de comuni-cação e literatura é dada como uma “realidade dada e pré-construída”10

que, ora se presta para caracterizar o índio como bom selvagem, repre-sentante de um estágio da humanidade anterior à decadência do proces-so civilizatório, representante de um passado mítico em que o homemse encontraria em conjunção e comunhão com a natureza, ora como oinculto e bárbaro, devendo oferecer-se ao esforço da domesticação e àincorporação das culturas civilizadas. Tanto uma como outra represen-tação de “índio” se elabora como imagem fiel ao referente existente noplano da realidade, sendo esta “tida como a essência ou origem quedetermina a forma pela qual é representada”11. Sob esta perspectiva, oapelo é para o respeito, a tolerância, tendo em vista a necessidade deuma coexistência pacífica para com esse “índio” concebido medianteuma figurativização estável, homogênea, definitiva e, por isso mesmo,a-histórica.

Para Silva, “por mais edificantes e desejáveis que possam parecer,esses nobres sentimentos impedem que vejamos a identidade e a diferen-ça como processo de produção social, como processos que envolvemrelações de poder”12. Nesse caso, impede-se de considerar que nessas es-tabilizações esteja pressuposto um sujeito destinador13 que seleciona erelaciona as figuras que deverão caracterizar a diferença, que haja aí umprocesso de dominação em que um determina o que deve ser lido comoapreensão da realidade, e, nesse sentido, como figurativizações do ou-tro. Deixa-se de conceber que tanto a diferença quanto a igualdade nãosão dados, mas produções históricas e sociais, produzidas por sujeitoshistoricamente e ideologicamente constituídos.

10 MENEZES de SOUZA, L. M. T. Re-membrando o corpo desmembrado: a representa-ção do sujeito pós-colonial na teoria. Itinerários, Araraquara, n. 9, p. 61-71, 1996. p. 66.

11 Idem.12 SILVA, op. cit., p. 96.13 Para a teoria semiótica, pressupondo-se que as relações entre os sujeitos configurem

uma narrativa, o destinador seria o actante narrativo que determina os valores em jogo,fazendo com que sejam adotados pelo sujeito destinatário que empreende uma dadaperformance submissa ou não ao fazer do destinador. A narrativa, nessa perspectiva,remete à história do homem no mundo, em busca de determinados valores e de sentido,bem como aos contratos e conflitos que caracterizam os relacionamentos humanos. Cf.BARROS, Diana L. P. de. Teoria semiótica do texto. 2. ed. São Paulo: Ática, 1994.

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Para compreender a identidade do ponto de vista das elaboraçõesdo plano do discurso, analisemos um poema modernista, de Mário deAndrade, no qual se verifica a adesão do poeta à enunciação de uma iden-tidade nacional.

No poema “Descobrimento”, Mário de Andrade projeta no textoum enunciador subitamente arrebatado por uma espécie de insight, que osurpreende em meio a divagações: Abancado à escrivaninha em São Paulo / Naminha casa da rua Lopes Chaves/ De sopetão senti um friúme por dentro / Fiquei trêmu-lo, muito comovido / Com o livro palerma olhando para mim. A descoberta capaz deproduzir tal estado passional diz respeito à constatação de que, emboracom hábitos culturais tão diferentes de outros habitantes do país, há algoque a todos reúne numa mesma certeza de identidade, de pertencimentoa uma mesma nação: Não vê que me lembrei que lá no norte, meu Deus! muito longede mim / Na escuridão ativa da noite que caiu / Um homem pálido magro de cabeloescorrendo nos olhos,/ Depois de fazer uma pele com a borracha do dia, /Faz pouco sedeitou, está dormindo / Esse homem é brasileiro que nem eu.

Nos versos, o poeta registra inicialmente uma série de elementosque constroem a diferença e a distância, tendo em vista o afastamentocultural que se acentua por aspectos da própria geografia (norte x sul).Um primeiro sujeito volta-se para atividades intelectuais, abancado numaescrivaninha em São Paulo, já no início do século uma grande cidade coma industrialização em processo de consolidação. O segundo sujeito está“longe” do primeiro, dedicando-se à extração da borracha, tendo, portan-to, um modo de vida bem distinto do primeiro. O poeta vai, assim, enun-ciando as diferenças, confirmando ao longo do poema a heterogeneidade.Objetivando reproduzir o espanto de que é tomado o enunciador, guardapara o último verso a descoberta da unidade (Esse homem é brasileiro que nemeu) sem arrolar, agora, o que o leva a essa constatação. Se os versos anteri-ores corroboravam a certeza da diferença, esse último, fechando o poe-ma, surge como uma declaração irrefutável, uma certeza que vai relegartudo o que vinha sendo dito a um segundo plano.

O que os versos do modernista declaram é a existência de umaidentidade brasileira, algo que está acima das distâncias geográficas eparticularidades culturais, sociais e econômicas. Essa identidade queparece se impor como essência ou ainda a diferença quando percebidacomo natural só podem ser concebidas diante de um esforço individual

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ou coletivo de fazer aproximar, reunir, ou fazer distinguir, afastar. ParaLandowski, todo processo de construção da diferença (e de semelhan-ça) pressupõe uma “instância semiótica” capaz de “efetuar operações deseleção e investimento semântico correspondentes” à produção do mes-mo ou do diferente:

O que separa o grupo de referência dos grupos que ele defineem relação a si mesmo com estrangeiros, como outros oucomo transviados não é, “pura e simplesmente”, nem umadiferença de substância produzida por disfunções sociais,nem mesmo alguma heterogeneidade preestabelecida emnatureza [...] e que, impondo-se como dados de fato,bastariam para demarcar as fronteiras entre identidadesdistintas. Na realidade, as diferença pertinentes, aquelas sobrecuja base se cristalizam os verdadeiros sentimentosidentitários, nunca são inteiramente traçadas porantecipação: elas só existem na medida em que os sujeitos aconstroem e sob a forma que eles lhes dão14.

Desse modo, podemos pensar numa instância semiótica que, aomesmo tempo em que se constrói “o índio” como o diferente, não igual a“nós”, empreende um esforço semiótico no sentido de subsumir nessanomeação genérica toda a diversidade cultural, inerente à existência dasvárias etnias e línguas. “Nós” e “eles”, os índios, somos assim absolutizados,essencializados e, portanto, não permeáveis à interação, ao diálogo efeti-vo que pressuporiam deslocamentos, um outro vir a ser que toda relaçãode troca efetiva acaba por provocar.

Ainda considerada a perspectiva semiótica, Landowski concebe quea identidade só pode ser constituída pela relação com a alteridade. Desseponto de vista teórico, o sentido surge pela diferença e, nesse caso, o eu sópode se organizar mediante o reconhecimento daquilo que não é, do queremete à instância do outro:

Com efeito, o que dá forma à minha própria identidade nãoé só a maneira pela qual, reflexivamente, eu me defino (outento me definir) em relação à imagem que outrem me enviade mim mesmo; é também a maneira pela qual,

14 LANDOWSKI, Eric. Presenças do outro. São Paulo: Perspectiva, 2002. p.12.

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transitivamente, objetivo a alteridade do outro, atribuindoum conteúdo específico à diferença que me separa dele. [...]a emergência do sentimento de “identidade” parece passarnecessariamente pela intermediação de uma alteridade a serconstruída15.

Como explicita o semioticista, a identidade remete a um processo,a uma construção, como o é também a alteridade. Desse modo, tanto oeu quanto o outro não são dados da natureza, mas elaborações, “cons-truções”, produtos das relações e dos sentidos que os sujeitos empres-tam ao mundo e a si mesmos. Ao mesmo tempo, porém, em que aidentidade surge pela negação, pelo confronto, pelo exercício de preci-sar contornos para o mesmo e o diferente, é preciso considerar queesses processos identitários não se limitam à estabilidade. ParaLandowski, é preciso introduzir nesse campo a perspectiva do movi-mento, quando identidade / alteridade resultam de um processo emconstante reelaboração, negociação:

Eu sou o que você não é, sem dúvida, mas não sou somenteisso; sou também algo mais, que me é próprio – ou quetalvez nos seja comum”. [...] Acabam as certezas de um Nóspleno, imóvel, transparente e satisfeito consigo mesmo ecomeça, em compensação, o questionamento de Nósinquieto, em construção, em busca de si mesmo em suarelação com o Outro16.

Contrapondo-se a uma noção essencialista de cultura, Landowskipara a noção de construções discursivas da identidade e da diferença, comoainda para possibilidade de elaborações que surjam pelo diálogo efetivono qual a diferença não é razão de afastamento, mas caminho para novasconstruções, um outro vir a ser.

O que nos propomos a defender a partir dessas reflexões é que apolítica da diversidade reforça a noção de identidade sob a ótica da estabi-lidade, uma vez que as diferenças aí se absolutizam, estanques, servindo,desse modo, à naturalização das dinâmicas sociais, não havendo, portan-

15 Ibidem, p. 4.16 Ibidem, p. 27.

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to, transformação nem das práticas, nem dos sujeitos. Silencia-se a possi-bilidade de compreender que identidade e diferença são elaborações dodiscurso, enunciações, absolutizando-as como natureza:

O problema central, aqui, é que essa abordagemsimplesmente deixa de questionar as relações de poder e osprocessos de diferenciação que, antes de tudo, produzemidentidades e a diferença. Em geral, o resultado é a produçãode novas dicotomias, como a do dominante tolerante e dodominado tolerado ou a da identidade subalterna, mas“respeitada”17.

Feitas essas considerações, comungamos com Luiz dos Santos, quan-do diz que não podemos discutir sobre identidade cultural ignorando asrelações de poder que a perpassam18. Importa, nesse sentido, conceberquem enuncia, de que lugar se fala.

A noção da diferença

Distanciando-se da perspectiva da diversidade, Bhabha preconiza anecessidade de se trabalhar no campo da diferença cultural, considerandoesta noção bem mais produtiva, uma vez que esta “prevê a releitura dadiferença cultural numa ressignificação do conceito de cultura”19. Nas pala-vras de Bhabha,

[...] a diferença cultural é o processo da enunciação da culturacomo “conhecível”, legítima, adequada à construção desistemas de identificação cultural [...] é um processo designificação através do qual afirmações da cultura ou sobrea cultura diferenciam, discriminam e autorizam aprodução de campos de força, referência, aplicabilidade ecapacidade20.

17 SILVA, op. cit., p. 98.18 SANTOS, J. L. O que é cultura. 16. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 80.19 MENEZES de SOUZA, L. M. T. Hibridismo e tradução cultural em Bhabha. In:

ABDALA JÚNIOR, B. (Org.). Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo e outras mis-turas. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 126.

20 BHABHA, H. K. O compromisso com a teoria. In: ARANTES, A. A. (Org.). O espaçoda diferença. Campinas, SP: Papirus, 2000. p. 24.

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Se no campo teórico da diversidade cultural a cultura é vista como“algo estático, substantivo e essencialista”21, agora, no campo da diferen-ça, a noção de cultura é problematizada sob outras concepções. A culturapassa a ser vista como sendo “enunciada”. Nesse processo de enunciaçãoda cultura é que se faz afirmação da cultura (do enunciador) e sobre acultura (do outro), construindo-se sistemas de identidade cultural quediscriminam, autorizam a composição de forças, referência, aplicabilidadee capacidade dos discursos produzidos em torno desses sistemas de iden-tificação.

Cultura, nesse sentido, vai ser entendida como discurso22. Essa pro-dução histórica, e discursiva da cultura pressupõe ser enunciada por umaautoridade que detém a ordem do discurso. Assim, é o discurso dominan-te que produz a cultura do Eu e do Outro23.

Desse modo, na relação não-índio/índio, é o não-índio, na condi-ção de autoridade cultural dominante, quem diz o que é ser não-índiobem como o que é ser índio e suas respectivas “identidades culturais”.

No campo da noção de diferença cultural percebem-se cultura e iden-tidade cultural como construtos histórico-sociais. Nesse campo teórico, anoção homogeneizante e essencialista tanto de cultura como identidadecultural são expostas como visando aos interesses da dominação e da per-petuação de uma dada ordem das coisas. Said fala da gravidade e da neces-sidade de se combater essa invenção de identidades coletivas de pessoas,de sujeitos, “sob rubricas falsamente unificadoras”24.

Maher25 também reitera que, ao se falar de identidade não se podemais insistir na idéia de alguma essência. Nesse caso, a UFT, ao pensar ossentidos que empresta ao “ser índio” parece ainda reportar a um grupo de

21 MENEZES de SOUZA, op. cit. 2004. p. 127.22 HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: LP&M, 2005. p. 50.23 BHABHA, op. cit., p. 111.24 SAID, Edward W. O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,

2007, p. 27.25 MAHER, Terezinha de Jesus M. Sendo índio em português. In: SIGNORINI, I. (Org.).

Língua(gem) e identidade: elementos para uma discussão no campo aplicado. Campinas, SP:Mercado das Letras, 1998. p. 116.

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indivíduos que, cromossomicamente, exibiriam sinais indeléveis de suanatureza essencial, portadores exclusivos e perenes de crenças, costumes,línguas e ornamentos que tornam definitivas suas identidades.

Afastando dessa noção identitária, Maher defende que o “ser índio,remete, isto sim, a uma construção permanentemente (re)feita a dependerda natureza das relações sociais que se estabelecem, ao longo do tempo,entre índios e outros sujeitos sociais e étnicos”26.

Ainda de acordo com a autora, a construção da identidade indígenavisa a dois objetivos específicos, quais sejam, o de “determinarespecificidades que estabeleçam fronteiras identificatórias entre ele e umoutro e/ou obter o reconhecimento dos demais membros do grupo aoqual pertencem, da legitimidade de sua pertinência a ele”27.

Depreendemos do acima exposto que o índio essencializado, em abs-trato não existe. O que existe são especificidades que estabelecem frontei-ras identificatórias entre um e outro grupo étnico, bem como entre estese outros atores sócias e ainda, do sentimento de pertencimento de umsujeito “índio” a um determinado grupo étnico. Dessa forma, ao ser falarem índio, não se sustenta tomá-lo metonimicamente, pois no Brasil existe“220 etnias diferentes, com línguas diferentes, crenças diferentes, modosdiferentes de estar no mundo” cada uma “com as suas especifidades”28.

Obviamente, falar de “fronteiras identificatórias” e “pertencimentoa determinado grupo” não implica advogar um identidade substantivada.Como afirma Bhabha, citado por Menezes de Souza, “qualquer cultura éhíbrida”, o que implica vê-la como verbo e, portanto, dinâmica, constituí-da pela diferença e por alteridades, heterogênea em suas origens29. Embo-ra não seja a cultura que determina o ser índio30, visto ser ela “um produtoe não um pressuposto”31, o seu caráter híbrido mostra que os sujeitos

26 Idem.27 Ibidem.28 Ibidem.29 BHABHA, apud MENEZES de SOUZA L. M. T., op. cit., 2004. p. 126- 128.30 Nem tampouco o é o critério racial determinante do que seja ser índio, pois, de acordo

Maher (op. cit, 1998, p. 116), esse critério “foi de há muito abandonado pela Antropo-logia [...]dada sua inoperância”.

31 Idem.

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162Silva, Luiza Helena Oliveira da; Pinto, Francisco Neto Pereira.

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(produtores da cultura em que estão inseridos) e suas identidades são elesmesmo, híbridos. Por isso mesmo vivendo “em uma zona de instabilida-de”32 de fronteiras movediças. Essa instabilidade seria potencializada pelasforças que entram em ação na contemporaneidade, como a intensificaçãodos fluxos culturais e econômicos que incidem sobre o sujeito, fazendocom que vivencie a experiência da fragmentação e do deslocamento. Osujeito não é sempre o mesmo o tempo todo, uma vez que a própriasociedade na qual se insere configura-se pelo espectro de uma constantemobilidade, que a ele impõe diferentes papéis, alguns, inclusive, contradi-tórios. Longe da centralidade da individualidade preconizada pelosIluministas, esse sujeito passa a ser constituído como signo damultiplicidade, ocupando diferentes posições, falando de distintos luga-res, permanentemente e incessantemente múltiplo33. As identificações res-pondem, assim, a processos históricos, marcadas pela instabilidade eimpermanência, como elaborações transitórias para as quais concorremas relações de força e poder. Para Bhabha, essa multiplicidade pode sercompreendida sob a dimensão do hibridismo que caracteriza a própriaenunciação. O lócus da enunciação, para o teórico, é sempre híbrido,heterogêneo, tendo em vista seu atravessamento por uma gama contradi-tória de elementos lingüísticos, valores culturais, ideologias34.

A identidade como “manifestação de posicionamentos do eu (cren-ças, valores e interesses) diante do mundo social”35 é, assim, um “construtosócio-histórico por natureza e, por isso mesmo, um fenômeno essencial-mente político, ideológico e em constante mutação”36.

A política da UFT

Retomando o relatório da Comissão Especial para a Promoção dePolíticas de Igualdade Racial da UFT, constatamos na leitura do texto

32 BHABHA, op. cit., 2005. p. 64.33 SILVA, L. H. O. da. Configurações identitárias na arte contemporânea: a Bienal de São Paulo, de

1998. 2006. Tese (Doutorado em Estudos Lingüísticos) – Instituto de Letras, Universi-dade Federal Fluminense, 2006.

34 Cf. MENEZES de SOUZA L. M. T., op. cit., 2004.35 ALMEIDA, P. R. Hibridismo cultural e lingüístico no universo escolar: confronto e conflito de

vozes na construção de identidades. Campinas, SP: 2005. p. 13. Mimeo.36 MAHER, op. cit., p. 117.

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que, na sessão solene que instituiu a referida comissão, estavam presen-tes lideranças de cinco etnias indígenas: Apinayé, Krahô, Karajá, Javaée Xerente. Entretanto, na lista de composição da comissão aparece re-presentada apenas uma etnia, a Karajá. A comissão, inicialmente com-posta por 11 membros, alcança depois de dezesseis reuniões, o total de24, mantendo-se, porém, inalterado o número de 2 representantes indí-genas, Koralue Karajá, representante do DCE, e Wacy Maluá Karajá,representante dos estudantes indígenas da UFT. Segundo o relatório de2006, tal composição acrescida de novos membros ao longo dos doisanos confirmaria a adesão de um maior número de pessoas às causas dapolítica de igualdade: “tende a ser mais por interesse de docentes e dis-centes, que são sensibilizados com a questão do que pela própria repre-sentação formal”.

A ausência dos representantes das outras etnias leva-nos a analisarque o grupo compreendeu que bastava apenas uma etnia para que as de-mais se sentissem representadas e contempladas, de certo modo confirmandoa perspectiva que iguala todos os índios sob uma mesma categoria genérica.O índio aqui parece tomado como ser transcendental, a presença de ummarca a presença de todos. Nesse caso, as especificidades de cada grupo sãoapagadas, silenciadas, compreendendo que as necessidades, interesses e rei-vindicações de um grupo correspondem a de todos os outros.

O efeito dessa medida aponta para a visão homogeneizante de cultu-ra e, desse modo, acreditamos que uma política que realmente tenha cará-ter de garantir o acesso e a permanência dos índios na universidade devareconsiderar as noções de cultura, sob pena de mais uma vez ver repetidasas velhas estratégias de dominação, assimilação e silenciamento.

Acreditamos ser necessário aqui a “intervenção do terceiro espaçoda enunciação”, ou seja, aquele espaço que

embora em si irrepresentável, constitui as condiçõesdiscursivas da enunciação que garantem que o significado eos símbolos da cultura não tenham unidade ou fixidezprimordial e que até os mesmos signos possam ser apropriados,traduzidos, re-historizados e lidos de outro modo37.

37 BHABHA, op. cit., p. 68.

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164Silva, Luiza Helena Oliveira da; Pinto, Francisco Neto Pereira.

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38 MAHER, op. cit., p. 81.39 Idem.40 Ibidem.41 Isso pode ser verificado no item “Recomendações – políticas afirmativas”, do relatório

da Comissão Especial para a Promoção de Políticas de Igualdade Racial na UFT de 2006.42 Ibidem, p. 98.

Como já destacado, a imagem do que seja ser índio, circulante nosmeios de comunicações, nos livros e literatura corresponde a um imagi-nário de unidade e homogeneidade. Necessário se faz resgatar o terceiroespaço da enunciação, concebido como um lócus heterogêneo do ponto devista da ideologia e das representações, que constitui o discurso constitutivodo índio metonímico.

Não é difícil perceber, deslocando-se do enunciado ao lócus daenunciação, que, ao abarcar todos os povos indígenas na “categoria... deíndios”38, cumpre objetivos claros, qual seja, o de “procurar diluir asidentidades indígenas com o intuito de torná-los menos visíveis aos olhosda nação brasileira”39. Para Maher, essa tática serve para “desindentificaros povos indígenas: uma estratégia eficaz quando se quer dominar al-guém é destituí-lo de qualquer singularidade, é emprestar-lheinvisibilidade”40.

Ao não tornar possível que novas vozes sejam somadas ao diálogo, aointerpretar a cultura nos limites do folclore e das manifestações do exotismo41,que materializariam a diferença “natural”, a UFT pode se fechar à negocia-ção efetiva, embora cumprindo o papel politicamente correto do respeito.Ao enunciar o respeito e a tolerância, enuncia também a resistência: o ou-tro tem lugar nos limites de seu exotismo, colado às representações que oenunciador/destinador elabora ao falar o lugar da cultura dominante. Noespaço da diferença, está previsto o conflito, a tensão, a assimetria, que nãose calam sob o manto do politicamente dizível como correto.

Feitas essas considerações, acreditamos ser necessário levar em con-ta as especificidades e demandas de cada grupo étnico, tendo em vista queas diferenças precisam ser negociadas no sentido que Bhabha empresta aotermo. É preciso “fazer dialogar comportamentos e conhecimentosconstruídos sob bases culturais distintas, e frequentemente conflitantes.”42.

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Do contrário, corre-se o risco de perpetuar a política excludente eassimilacionista, pois, ao acolher, negam-se outras representaçõesidentitárias referentes às enunciações dos sujeitos com quem importa es-tabelecer o diálogo. Do contrário, assim como ora é estabelecido, ou oíndio se torna um de nós, ou não tem, ainda, lugar entre nós.

ABSTRACT

In this paper we show preliminary investigationabout the Multiculturalism and discourse project: implicationsfor teaching. We analyze the discoursivization of theequality and the difference in the institutionaldocuments about the politics of indigenous students’access to and permanence in the Federal Universityof Tocantins.

KEY-WORDS: Cultural Diversity; culturaldifference; indigenous identity.