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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFOR CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS - CCJ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CONSTITUCIONAL DA TRANSAÇÃO PENAL NOS CRIMES DE AÇÃO PRIVADA, À LUZ DA HERMENÊUTICA E DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS Teodoro Silva Santos Fortaleza - CE Novembro - 2007

DA TRANSAÇÃO PENAL NOS CRIMES DE AÇÃO PRIVADA, À LUZ DA ... · art. 76 da Lei 9.099/95, previu, expressamente, sua aplicação aos crimes de ação penal pública condicionada

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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFOR CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS - CCJ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

DA TRANSAÇÃO PENAL NOS CRIMES DE AÇÃO PRIVADA, À LUZ DA HERMENÊUTICA E DOS PRINCÍPIOS

CONSTITUCIONAIS

Teodoro Silva Santos

Fortaleza - CE Novembro - 2007

TEODORO SILVA SANTOS

DA TRANSAÇÃO PENAL NOS CRIMES DE AÇÃO PRIVADA À LUZ DA HERMENÊUTICA E DOS PRINCÍPIOS

CONSTITUCIONAIS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito Constitucional, sob a orientação de conteúdo da Professora Doutora Maria Lírida Calou de Araújo e orientação metodológica a Professora Núbia Maria Garcia Bastos.

Fortaleza - Ceará Novembro 2007

TEODORO SILVA SANTOS

DA TRANSAÇÃO PENAL NOS CRIMES DE AÇÃO PRIVADA À LUZ DA HERMENÊUTICA E DOS PRINCÍPIOS

CONSTITUCIONAIS

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________

Prof. ª Dr.ª Maria Lírida Calou de Araújo UNIFOR

___________________________________________________

Prof° Dr. José Júlio Ponte Neto UNIFOR

___________________________________________________

Prof° Dr. Márcio Augusto de Vasconcelos Diniz UFC

Dissertação aprovada em:

A minha querida mãe, ALAIDE SILVA SANTOS, guerreira imbatível, incentivadora imensurável de toda a minha busca ao sucesso profissional.

A meu pai, DEMÉZIO TEODORO (in memoriam), pelo estímulo e exemplo de vida.

A todos aqueles que, pacientemente, ajudaram-me no decorrer de anos de estudo, especialmente ao meu filho MATHEUS TEODORO e a minha namorada ANAMAYSA, pela compreensão de tanta e constante ausência e, por fim, a meu irmão RAIMUNDO NONATO SILVA SANTOS, eterno companheiro de lutas norteadas pelo sucesso, em idêntica trajetória profissional.

AGRADECIMENTO

Em primeiro lugar, a DEUS, por ter iluminado meu caminho e, ao longo de minha

jornada, designado pessoas especiais na condução de meu destino.

A minha orientadora, Professora Doutora Maria Lírida Calou Araújo, exemplo de

bondade, sabedoria e simplicidade, pelo apoio e auxílio em dar continuidade à orientação

deste trabalho, com dedicação, paciência e carinho.

Ao Professor Doutor José Filomeno de Morais Filho, profissional impecável e ser

humano admirável e compreensívo, que, tranquilo e tolerânte, soube me nortear com precisão

na rota daquilo que eu pretendia. Graças a ele consegui realizar a contento este trabalho.

Aos Professores Doutores José Julio da Ponte Neto e Marcio Augusto de Vasconcelos

Diniz, exemplares mestres, pela honra que me concederam em participar da banca

examinadora, enriquecendo o teor da presente Dissertação.

RESUMO

Este trabalho constitui dissertação acadêmica, exigência final, para conclusão do curso de Mestrado e obtenção do título de Mestre em Direito. O presente trabalho acadêmico busca aprofundar o estudo da transação penal em relação às infrações de menor potencial ofensivo de ação penal exclusivamente privada, com a interpretação do art. 76 da Lei nº 9.099/95 à luz da hermenêutica e dos princípios constitucionais. A abordagem se justifica tendo em vista que a lacunosa redação do texto legal em comento suscitou controvérsias quanto à admissibilidade ou não da aplicação do instituto despenalizador aos delitos apurados mediante ação penal de titularidade exclusiva do ofendido. O procedimento que dirige a investigação caracteriza-se por uma reflexão sobre os dados decorrentes de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial a fim de que possa ser apresentada uma sistematização de princípios e pesquisas existentes na área em que o problema se coloca. O estudo desenvolve-se progressivamente de forma didática em cinco capítulos. Tratamos no capítulo inicial sobre os princípios norteadores da ação penal pública e privada, a fim de melhor compreender se o instituto da transação penal guarda ou não compatibilidade com os princípios norteadores da ação penal exclusivamente privada. No segundo capítulo, fizemos uma abordagem crítica sobre a razão de ser do direito penal, à luz dos princípios da intervenção mínima e outros correlatos. No terceiro, abordamos as medidas despenalizadoras introduzidas pela Lei nº 9.099/95 como resposta mais adequada do Estado aos delitos de somenos importância. Estudamos no capítulo quatro os Juizados Especiais Criminais, discorrendo sobre os antecedentes históricos, competência e princípios que os norteiam. No último capítulo, procuramos dar ao art. 76 da Lei nº 9.099/95 interpretação conforme a hermenêutica e princípios constitucionais. À luz dos princípios da supremacia e da efetividade da Constituição, bem como dos princípios da isonomia, razoabilidade e dignidade da pessoa humana, concluímos pela admissibilidade da medida despenalizadora prevista no art. 98 da CF/88 aos crimes de ação penal privada. Ao final, propomos como sugestão a alteração do art. 76 de modo a eliminar a omissão existente e compatibilizá-lo com a Lei Fundamental.

Palavras-chave: Crimes de ação privada. Ação penal. Hermenêutica. Princípios constitucionais.

ABSTRACT

This work consists of an academic dissertation, a final demand, for conclusion of Master's degree course, to obtain a Master’s Title in law. The present academic work tries to make deeper the study of penal transaction, in relation to criminal procedures of minor potential offensive crimes in private law, with the interpretation of the article 76, Law number 9.099/95, through the hermeneutical vision and constitutional principles. The approach is justified having in mind that the composition has a gap in its legal text in comment, raising controversies wether it´s possible or not to apply the despenalizing institute in crimes verified under the criminal procedure done exclusively by the offended. The procedure that directs the investigation is characterized by a reflection on the current data of bibliographical and jurisprudencial research, so that can be presented a sistematization of principles and existent researches in the area of the problem in discussion. The study grows progressively in a didactic way in five chapters with phrasal topics. We deal, in the initial chapter, with the guided principles of public and private criminal procedure, in order to understand better if the institute of transaction penal leeps or not compatibility exclusively with guided principles of private criminal procedures. In the second chapter, we build a critical approach about the essencial reason of Penal Law, concerning on the principles of minimal intervention of other correlates. In the third chapter, we approached on despenalizing measures introduced by the Law number 9.099/95 as much as an answer of the State to crimes of minor importance. We study, in the fourth chapter the Special Criminal Justice, discussing on historical antecedents, competence and principles that guide them. In the last chapter, we tried to realize the article. 76 of Law number 9.099/95, according to the hermeneutical and constitutional principles. Using the perspective of supremacy principles and the effectiveness of the Constitution, as well as the principles of equal rights and reasonableress and human being dignity, we conclude that it´s possible to admit the despenalizing measure foreseen in the article 98 of Brazil Federal Constitution 1988, related to crimes in private criminal procedures. At last, we propose, as a suggestion to alter the article 76 in order to eliminate the existent omission and become it proper before Fundamental Law.

Key words: Transaction. Agreement. Criminal procedure. Hermeneutics. Constitucional principles.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 10

1 DA AÇÃO PENAL ............................................................................................................ 14

1.1 Ação penal pública .................................................................................................... 17

1.1.1 Ação penal pública incondicionada ............................................................... 19

1.1.2 Ação penal pública condicionada .................................................................. 21

1.1.3 Ação privada subsidiária da pública .............................................................. 24

1.2 Ação penal exclusivamente privada .......................................................................... 25

2 DA INTERVENÇÃO MÍNIMA DO DIREITO PENAL ................................................... 30

2.1 Funções e finalidades do Direito Penal ..................................................................... 31

2.2 Bem jurídico a ser tutelado pelo Direito Penal .......................................................... 33

2.3 Da intervenção mínima no Direito Penal .................................................................. 38

2.3.1 Princípio da dignidade humana ..................................................................... 39

2.3.2 Princípio da subsidiariedade .......................................................................... 40

2.3.3 Princípio da fragmentariedade ....................................................................... 41

2.3.4 Princípio da ofensividade ou lesividade ....................................................... 41

2.3.5 Princípio da insignificância .......................................................................... 42

2.4 Crítica ao excesso legislativo em matéria penal ........................................................ 44

3 MEDIDAS DESPENALIZADORAS ................................................................................ 48

3.1 Pena ........................................................................................................................... 49

3.1.1 Conceito de pena .......................................................................................... 50

3.1.2 Finalidade da pena ........................................................................................ 50

3.1.2.1 Teoria absoluta ou retributiva da pena ........................................... 51

8

3.1.2.2 Teoria preventiva ou relativa da pena............................................. 52

3.1.2.2.1 Prevenção geral .............................................................................. 53

3.1.2.2.2 Prevenção especial .......................................................................... 55

3.1.2.3 Teoria mista ou unificadora da pena............................................... 55

3.1.2.4 Teoria da prevenção geral positiva ................................................. 56

3.1.3 Evolução histórica e espécies ........................................................................ 57

3.1.3.1 Fase da vingança divina .................................................................. 58

3.1.3.2 Fases da vingança privada .............................................................. 58

3.1.3.3 Vingança pública ............................................................................ 60

3.3 Das medidas despenalizadoras .................................................................................. 63

3.3.1 Justificativa e fundamento teórico ................................................................ 63

3.3.2 Espécies de medidas despenalizadoras .......................................................... 64

3.3.2.1 Composição civil ............................................................................ 65

3.3.2.2 Transação penal .............................................................................. 66

3.3.2.3 Suspensão condicional do processo ................................................ 67

4 DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS ..................................................................... 70

4.1 Competência material dos juizados especiais criminais ............................................ 76

4.2 Princípios norteadores dos Juizados Especiais Criminais ......................................... 82

4.2.1 Princípio da oralidade .................................................................................... 82

4.2.2 Princípio da informalidade e simplicidade .................................................... 83

4.2.3 Princípio da economia processual ................................................................. 83

4.2.4 Princípio da celeridade .................................................................................. 84

4.2.5 Princípio da discricionariedade regrada ........................................................ 84

4.2.6 Princípio da autonomia da vontade ............................................................... 85

5 DA TRANSAÇÃO PENAL NOS CRIMES DE AÇÃO PRIVADA À LUZ DA HERMENÊUTICA E DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ........................... 87

5.1 Requisitos para concessão do benefício .................................................................... 91

5.2 Transação penal – Direito público subjetivo do autor do fato ................................... 96

9

5.3 Natureza híbrida do instituto ..................................................................................... 98

5.4 Transação penal nas ações privadas ........................................................................ 101

5.5 O art. 76 da Lei n. 9.099/95 conforme a Constituição e à luz dos métodos tradicionais de interpretação ............................................................................... 110

5.5.1 Interpretação literal ou gramatical ............................................................... 111

5.5.2 Interpretação teleológica ............................................................................. 113

5.5.3 Interpretação sistêmica ou sistemática ........................................................ 114

5.5.4 Interpretação histórica (Occasio Legis) ....................................................... 115

5.5.5 Interpretação extensiva e restritiva .............................................................. 116

5.5.6 Interpretação conforme a Constituição ........................................................ 117

5.6 O art. 76 da Lei n. 9.099/95, à luz dos princípios constitucionais ........................... 120

5.6.1 Princípio da isonomia .................................................................................. 121

5.6.2 Princípio da razoabilidade ........................................................................... 125

5.6.3 Princípio da dignidade da pessoa humana ................................................... 130

CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 135

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 141

INTRODUÇÃO

O art. 98, I, da CF, prenunciou a criação dos Juizados Especiais Cíveis e

Criminais, competentes para, na esfera criminal, promover conciliação, julgamento e

execução de infrações penais de menor potencial ofensivo. Para tais infrações, o

dispositivo constitucional em comento previu a possibilidade de transação penal, sem

distinção tácita ou expressa quanto à natureza da ação penal que as envolve.

Com a entrada em vigor da Lei n. 9.099/95, desenhou-se no horizonte jurídico

nacional uma nova via reativa ao delito de menor potencial ofensivo, como um dos mais

avançados programas de combate à violência em sua forma mais moderada, mas nem

por isso menos deletéria para a sociedade.

A Lei 9.099/95 disciplinou, em seus arts. 72, 76 e 89, relevantes institutos

despenalizadores tendentes a evitar o processo e possível pena, bem como proporcionar

benefícios em favor da vítima, a saber: a) composição civil dos danos; b) transação

penal, tema objeto deste trabalho acadêmico; c) suspensão condicional do processo.

O legislador infraconstitucional, no entanto, ao disciplinar a transação penal, no

art. 76 da Lei 9.099/95, previu, expressamente, sua aplicação aos crimes de ação penal

pública condicionada e incondicionada, omitindo-se quanto à possibilidade ou não da

aplicação do instituto despenalizador aos delitos de ação exclusivamente privada.

Ante a patente ausência de regulamentação expressa e manifesta omissão do

legislador, entendimentos dissidentes surgiram e, ainda perduram, mesmo depois de

uma década de vigência e aplicação da revolucionária lei, quanto à possibilidade ou não

da transação penal nos crimes de ação penal exclusivamente privada.

A temática em abordagem não se mostra relevante apenas para os operadores do

Direito, mas também para o cidadão laico, que, diante de um caso concreto, não saberá

entender o porquê do tratamento diferenciado destinado a casos que se mostram em

tudo assemelhados. Ademais, o ordenamento jurídico não pode conviver com

11

interpretações e aplicações conflitantes de uma mesma lei. O antagonismo na aplicação

do Direito retira o prestígio e a credibilidade de que as decisões judiciais

necessariamente devem gozar. Daí a inquestionável relevância do tema abordado. Eis a

razão de sua abordagem, com o fim de instigar o debate e aperfeiçoar a aplicação do

Direito.

Desse modo, o presente trabalho busca aprofundar o estudo da transação penal em

relação às infrações de menor potencial ofensivo de ação penal exclusivamente privada,

com a interpretação do art. 76 da Lei n. 9.099/95, à luz da hermenêutica e dos princípios

constitucionais.

Para a urdidura da presente dissertação, lançamos mão da pesquisa bibliográfica,

com ênfase na doutrina, jurisprudência e legislação aplicável à matéria, com o propósito

de melhor aprofundar, fundamentar, explicar e penetrar nas essencialidades do tema em

estudo.

Dividimos o trabalho em cinco capítulos. De início buscamos refletir, já no

primeiro capítulo, sobre os princípios penais e processuais penais que norteiam as ações

penais, entre os quais os da obrigatoriedade, indisponibilidade, indesistibilidade e

oficialidade, próprios das ações penais públicas, como também sobre os princípios da

oportunidade ou conveniência e disponibilidade, próprios das ações penais de iniciativa

exclusivamente privada. O correto entendimento da matéria enfocada nesse capítulo

abrirá espaço, ao longo do trabalho, para se compreender melhor se o instituto da

transação penal guarda ou não compatibilidade com os princípios norteadores da ação

penal exclusivamente privada. A abordagem guarda pertinência, pois, como se sabe, no

tradicional modelo de Direito Penal até então em vigor, a disponibilidade da ação penal

era característica das ações privadas, nunca das públicas.

O instituto da transação penal, carro chefe do novo modelo de justiça consensual,

não poderia ser bem entendido, sem que antes fizéssemos uma análise crítica do

tradicional modelo de Direito Penal, à época vigente, tido pela maioria dos juristas

como anacrônico, intervencionista e incapaz de atender aos anseios sociais. Daí porque,

no segundo capítulo, tratamos sobre o princípio da intervenção mínima do Direito

Penal. Segundo esse princípio, o Direito Penal só deve intervir se o fato for relevante,

isto é, portador de certa gravidade, não se justificando a atuação intervencionista do

12

Estado, tipificando condutas e estabelecendo penas, especialmente as privativas da

liberdade, quando outros ramos do Direito pudessem melhor solucionar as mazelas

sociais, apontando soluções mais efetivas para a criminalidade a ser combatida.

Ainda nesse segundo capítulo, questionamos as funções e finalidades do Direito

Penal e bens jurídicos que se pretende tutelar, para, à luz dos princípios da

subsidiariedade e fragmentariedade do Direito Penal, dignidade da pessoa humana e

princípio da insignificância, compreender a opção do legislador em adotar uma via

alternativa de solução consensual do litígio penal de menor potencialidade ofensiva.

Sob o enfoque das teorias até então disseminadas, procuramos estudar, no terceiro

capítulo, o conceito, evolução, finalidade e tipologia das penas, para, em seguida,

incursionarmos nas justificativas, fundamentos e espécies de medidas despenalizadoras

previstas na Lei n. 9.099795, dissertando sobre cada uma delas.

As razões que motivaram o legislador constituinte de 1988 a adotar no Brasil um

modelo próprio de justiça penal consensual, os fins por ele pretendidos e os modelos de

justiça negociada adotados nos Estados Unidos e países da Europa ocidental serão, com

mais ênfase, tratados no capítulo quatro, em que também mergulhamos nos

antecedentes históricos dos Juizados Especiais Criminais, na competência e princípios

que os norteiam.

Cada um dos assuntos tratados nos capítulos de 1 a 4 contribuirá,

significativamente, para a exata compreensão do tema objeto de nosso estudo. Todavia,

a alma deste trabalho acadêmico repousa no capítulo cinco, em que apresentamos a

resposta ao questionamento formulado inicialmente, a saber: admite-se transação penal

nas infrações de menor potencial ofensivo de ação exclusivamente privada? O art. 76 da

Lei n. 9.099/95, excluiu tal possibilidade em relação aos crimes de ação exclusiva do

ofendido?

Duas correntes doutrinárias, diametralmente opostas, lançam-se a responder a

indagação. Uma delas, alegando ausência de previsão legal e calcada na interpretação

literal e extensiva do dispositivo legal em comento, opina pela vedação da medida

despenalizadora nos crimes de ação privada; a outra corrente doutrinária, por não

vislumbrar vedação expressa no texto legal e, recorrendo à analogia, opina em sentido

contrário, pela possibilidade da transação na hipótese em estudo.

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Para permitir ao leitor uma visão panorâmica do assunto, elencamos, no capítulo

cinco, os doutrinadores que se manifestam contra e a favor, bem como os fundamentos

de sua opinião. Não só isso: mostramos, com a transcrição de enunciados

jurisprudenciais, que entendimento o Supremo Tribunal Federal tem firmado sobre a

matéria.

A nosso ver, a resposta correta às indagações formuladas somente poderia ser

apresentada, se ao art. 76, em debate, for dada interpretação conforme reza a

Constituição Federal.

Desse modo, o art. 76 será, no capítulo cinco, interpretado conforme a

hermenêutica e princípios constitucionais, a exemplo da isonomia, razoabilidade e

dignidade da pessoa humana e, à luz dos tradicionais métodos de interpretação da

norma, sobre os quais discorremos mais detalhadamente na parte final do trabalho.

Ousamos, ainda, lançar no trabalho nosso particular e despretensioso ponto de

vista acerca da temática em discussão, com o fim de promover o debate e permitir ao

leitor uma visão crítica e ampla sobre o tema, tratado aqui sob os mais diversos

enfoques, argumentações e fundamentos. Por nos parecer oportuno, apresentamos, na

fase conclusiva, sugestão para dirimir a controvérsia que a redação lacunosa, omissa e

tecnicamente imprópria do art. 76 tem provocado.

1 DA AÇÃO PENAL

Nas antigas civilizações, quando um indivíduo se sentia lesado porque havia tido seu

direito violado, surgia, então, o desejo de vingar-se com as próprias mãos. Era a vingança

privada de Talião, do “olho por olho dente por dente”. Cometesse um cidadão algum crime,

um ente de sua família fatalmente pagaria pelo crime que cometera.

No entanto, em um determinado momento da História, emerge a necessidade de regular

a vida em sociedade. Foi então que surgiu o Estado, que, ao organizar a sistemática jurídica,

cria o Direito e os direitos subjetivos e, conseqüentemente, o direito de ação, que pode ser

entendido como o direito do cidadão de invocar a atividade jurisdicional do Estado para

solucionar seus litígios e reconhecer seus direitos1.

Diversas são as questões discutidas a respeito da natureza jurídica da ação. Todavia,

resta importante discutir quando o Estado passou a ter o monopólio jurisdicional, em

específico a titularidade da ação penal.

Analisando as circunstâncias pelas quais surge o direito de ação para reclamar do outro

o respeito às regras de conduta em sociedade, César Bitencourt se reporta à transformação da

autodefesa em direito do Estado. Assim se expressa:

O Estado, sintetizando uma luta secular em que se resume a própria história da civilização, suprimiu a autodefesa e avocou a si o direito de dirimir os litígios existentes entre os indivíduos. Assumiu o dever de distribuir justiça criando, com essa finalidade, tribunais e juízos para tornar em efetiva a proteção dos direitos e interesses individuais garantidos pela ordem jurídica.2

Na mesma linha se posiciona Hélio Tornaghi, para quem esta passagem da vingança

privada para a monopolização da justiça nas mãos do Estado se estabelece de forma que:

Um dia o Estado disse: Não há mais esta ação, ela esta proibida, é ilícita, mas em lugar dela eu instituo outra, permitindo agir perante mim para exigir de mim que eu faça justiça, a ação se converteu num direito subjetivo do autor em face do Estado,

1 BITENCOURT, César Roberto. Tratado de direito penal. 8. ed. rev. ampl. São Paulo: Saraiva, 2003. p.691. 2 Ibid., 2003. p.691.

15

ou seja, num direito subjetivo público: o direito de exigir do Estado que faça justiça.3

As deficiências do ato de julgar pelos membros da própria sociedade, aliadas à

arbitrariedade do julgamento do ato privado e a outros fatores ligados à subjetividade do

agente, no propósito de vingança privada, bem como o processo de evolução das sociedades,

eclodiram na necessidade de um instrumento desvinculado das partes envolvidas no fato para

a realização do julgamento. São esses alguns dos fatores que contribuíram para a assunção do

Estado na nebulosa e árdua tarefa de julgar.

Sobre a formação do Estado/julgador, Frederico Marques se manifesta a respeito da

existência da ação e dos seus limites ao sujeito e ao Estado:

Se a limitação da autodefesa criou o direito de ação para os indivíduos, também a limitação da auto-executoriedade de certos atos estatais fez nascer para o Estado o direito de agir, a fim de que possa impetrar de seus juízes a aplicação da norma legal.4

O Estado toma para si a administração da justiça, fazendo-o por meio legal e civilizado,

o processo, deixando para trás a vingança privada e o sistema inquisitório, ante a dificuldade

que a sociedade tinha de reprimir e combater a criminalidade, razão pela qual não mais se

admite fazer justiça com as próprias mãos, sendo, então, o Estado, detentor do monopólio da

administração da justiça. Só haverá, então, aplicação da pena por meio de um devido processo

legal, em que o Estado é parte legítima para iniciar a ação, quando provocado pela parte

interessada ou mesmo quando noticiado quanto à ocorrência de algum crime.

O Estado, para poder administrar a justiça, coloca à disposição dos cidadãos órgãos

competentes para o efetivo funcionamento da máquina estatal na forma regulada em lei, com

o fim de garantir a formal distribuição da justiça. Considerando que desta detém o monopólio,

surge automaticamente o dever de garanti-la, e esta garantia é dada através do direito de

invocar o Estado, quando o indivíduo se sentir lesado (uma vez que, como já dissemos, não se

admite mais fazer justiça com as próprias mãos) e pedir providências, reclamando a aplicação

da sanção que compete ao Estado aplicar (desde que a conduta praticada pelo indivíduo esteja

descrita como ilícita e a ela cominada uma sanção) decorrente do direito de ação, que o

processualista Tourinho Filho a entende como o direito de se invocar a garantia jurisdicional5,

enquanto o manualista Hélio Tornaghi a define como direito de exigir do Estado que faça

3 TORNAGHI, Hélio. Instituições de processo penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959. v. II. p. 219. 4 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Kookseller, 1997. v. I. p. 285. 5 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 25ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. I. p. 291.

16

justiça.6 Para Afrânio Silva Jardim, ação é direito subjetivo público, autônomo e abstrato de

invocar a tutela jurisdicional do Estado, manifestando uma pretensão determinada, em juízo.7

O direito de ação encontra seu fundamento no fato de não mais se admitir a autodefesa.

Em nosso ordenamento jurídico é garantido pela Constituição, mais precisamente na norma

insculpida no inciso XXXV, art. 5º da Magna Carta, que consagra o princípio do acesso ao

judiciário, que: “A lei não excluirá da apreciação do poder judiciário lesão ou ameaça a

direito.”

A garantia da via judiciária, prevista no inciso XXXV, art. 5º da Magna Carta, consagra

o direito de acesso aos órgãos jurisdicionais e a conseqüente defesa de direitos. Para

Canotilho, o princípio da garantia de via judiciária reforça o princípio da efetividade dos

direitos fundamentais, proibindo a sua inexeqüibilidade ou eficácia por falta de meios

judiciais. 8

Na mesma esteira, Frederico Marques afirma que o Direito Constitucional moderno fez

da ação um direito individual, um direito público subjetivo do cidadão em face do Estado,

para a tutela da ordem jurídica. E com relação a esta garantia dada pela Constituição, cita:

[...] foi dado ao individuo, não só amparo jurisdicional mesmo contra a violação de seus direitos, praticada pelo poder público, como ainda a garantia de que lhe não pode ser subtraído, em nenhum caso, o direito de invocar o Judiciário, quando sentir atingidos os interesses que a lei lhe tutela.9

O acesso, portanto, ao judiciário, é uma garantia constitucional e nada poderá impedir

que o indivíduo busque do Estado a defesa de seus direitos individuais, que tem seu

fundamento na Constituição, já que o Estado tomou para si a tarefa de administrar a justiça, o

que lhe outorga a legitimidade para garantir a defesa dos direitos pessoais e coletivos. A

garantia do direito de ação é decorrente do pacto que o Estado celebrou com a sociedade.

Uma vez que não se permite a autodefesa, tem-se, desta forma, o dever de garantir a ordem

social, assegurando a todos o direito de ação.

6 Ibid., 1959. v.III. 7 JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p.93. 8 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993. 9 MARQUES, José Frederico, op. cit., 1997. p.268.

17

1.1 Ação penal pública

Ao Estado pertence o jus puniendi, motivo pelo qual coloca à disposição da sociedade

instrumentos legais e legítimos para combater e reprimir a criminalidade, através da

institucionalização e divisão de tarefas no que diz respeito à atividade jurisdicional.

Sendo o Estado detentor do direito de punir, toda vez que houver transgressão à norma

positivada, a ele pertence, observados os princípios constitucionais, o dever de promover a

persecução criminal e a possível punição. Tendo em vista que a punição não sobrevém

automaticamente, mas necessariamente de uma sentença condenatória resultante de um

devido processo legal, lastreado pelos princípios da ampla defesa e do contraditório, com

acento no texto constitucional, garantia fundamental de um Estado Democrático de Direito,

deve-se utilizar meios legais dispostos.

Diante da possibilidade do particular, ao sofrer alguma transgressão, não procurar a

tutela dos seus direitos, o que causaria a impunidade do criminoso, o Estado, como detentor

do poder-dever de punir, não deixou ao indivíduo exclusividade para o exercício da ação

penal, uma vez que nem sempre quem sofre as conseqüências de um ato criminoso tem a

condição de possibilidade para conduzir a instrumentalidade de um processo penal em busca

da punição.

Haverá, pois, casos em que sendo pública, a ação penal estará subordinada à

propositura da ação à manifestação de vontade do ofendido ou de seu representante legal.

Casos há em que será necessária a requisição do Ministro da Justiça. Em ambos, a lei se

expressará quanto à necessidade de representação do ofendido. Quanto à requisição do

Ministro da Justiça, então teremos a ação penal pública condicionada. Caso a lei silencie, a

ação penal é pública incondicionada. Pontuando o tema que envolve a ação penal, Tourinho

Filho justifica da seguinte forma a divisão da Ação Penal:

Nem se compreenderia pudesse o Estado conceber ao particular o exclusivo exercício da ação penal, mesmo porque (caso o fizesse), veria periclitar, com funestas conseqüências, a efetiva aplicação da lei penal. Bastaria a inatividade do particular, e impune ficaria o criminoso. 10

Assim é que o Estado, como detentor legítimo do poder-dever de punir e dada sua

condição abstratata de representação das garantias fundamentais da pessoa humana, institui o

10 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, op. cit., 2003. p. 319

18

Ministério Público e lhe dá a titularidade para promover a ação penal, que, via de regra, será

pública.

Nesse sentido, a titularidade não é absoluta, pois o Estado, diante do fato de a vítima ter

sofrido um trauma que atinge muitas vezes a esfera íntima de sua vida, deixa a critério da

vítima, em determinados casos, a oposição ou não quanto à propositura da ação por parte do

Ministério Publico. Mas isso não significa que a ação penal não seja pública; será sempre

pública, mas terá essa condição de procedibilidade.

Assim, caso a vítima se oponha à ação penal, o órgão instituído para propô-la não dará

início à ação, razão pela qual o Estado dividiu a ação penal pública em condicionada e

incondicionada, sendo ambas promovidas pelo Ministério Público, instituição que, na lição de

Afrânio Silva Jardim, deve atuar de modo impessoal, na busca da realização da justiça:

O Ministério Público modernamente não mais é visto como um adversário do réu, participante de um duelo passional entre dois argutos e hábeis contendores, numa visão privatística doa processo penal. Funciona como garantia do réu que o Ministério Público não seja movido por interesse ligado à pessoa do ofendido ou outro que não seja a realização da justiça. Em uma ordem jurídica que se deseja democrática, não há lugar para um processo penal derivado da persecução de interesses privados individuais, ainda que relevantes, pois o crime atinge primeiramente valores coletivos reinantes na sociedade com um todo. O interesse do Ministério Público é social e difuso, não personificado. 11

Diz-se pública a ação quando é promovida pelo próprio Estado, por intermédio do órgão

do Ministério Público, cuja titularidade é exercida de forma privativa, mediante denúncia,

consoante preceitua o art. 129, I da Constituição Federal.

Com efeito, bem ministra Tourinho Filho, que a ação penal pública rege-se pelos

princípios da oficialidade, indisponibilidade, legalidade ou obrigatoriedade, indivisibilidade e

intranscendência, por ele assim definidos12:

Oficialidade – Ao Estado, e só ao Estado, cumpre punir aquele que inobservou a norma

penal. O Estado é o titular do direito concreto de punir. Quando se comete uma infração

penal, já vimos, surge a pretensão punitiva, isto é, aquele direito abstrato que o Estado tem de

punir se transmuda em direito concreto de punir. Já agora, o Estado pode providenciar a

repressão.

Indisponibilidade – pertence a ação penal ao Estado(salvo as exceções), segue-se que aquele

a quem se atribui seu exercício, o Ministério Público, não pode dela dispor. Os órgãos do

11 JARDIM, Afrânio Silva, op. cit., 1997. p.324. 12 Fernando da Costa Tourinho Filho. Processo Penal, ob. Cit. p. 327 a 335)

19

Ministério Público não agem senão em nome da sociedade que eles representam. Eles têm o

exercício, mas não a disposição da ação penal.

Legalidade ou Obrigatoriedade – O princípio da legalidade é o que melhor atende aos

interesses do Estado. Dispondo o Ministério Público dos elementos mínimos para a

propositura da ação penal, deve promovê-la (sem se inspirar em critérios políticos e ou de

utilidade social). O contrário implicaria atribuir-lhe um desconchavado poder de indulto.

Indivisibilidade – A ação penal, seja pública e ou privada, é indivisível, no sentido de que

abrange todos aqueles que cometeram a infração. Isto, por uma razão muito simples: se a

propositura da ação penal constitui um dever, é claro que o promotor não pode escolher em

relação a quem deva ela ser proposta. Ela deve ser proposta em relação a todos aqueles que

cometeram a infração.

Intranscendência – Com tal expressão, queremos afirmar que a ação penal é proposta apenas

contra a pessoa ou as pessoas a quem se imputa a prática da infração.

1.1.1 Ação penal pública incondicionada

Uma vez que constatada a prática de um crime em que não se exija a representação do

ofendido ou seu representante legal, ou requisição do Ministro da Justiça ou ainda que não

seja de ação privada, casos em que a lei expressamente o faz, a regra é que seja de ação

pública incondicionada, podendo o Ministério Público dar inicio à ação penal, mesmo que

haja oposição da parte ofendida, e observadas as condições para o exercício da ação,

(possibilidade jurídica do pedido, interesse de agir, legitimação para agir), sob pena de

rejeição da denúncia pelo Juiz, caso falte uma das condições exigidas por lei para a

propositura da ação.

Tourinho Filho cita que, na ação incondicionada, o órgão do Ministério Público a

propõe, sem que haja manifestação da vontade de quem quer que seja. Desde que provado o

crime, quer a parte objecti, quer a parte subjecti, o órgão do Ministério Público deve

promover a ação penal, sendo até mesmo irrelevante, contrária à manifestação de vontade do

ofendido ou de quem quer que seja. 13 Para que se efetive o exercício do direito de ação pelo

Ministério Público, basta sejam preenchidas as condições que tornem possível a acusação

deste órgão como titular da ação, devendo, pois, promovê-la.

13 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, op. cit., 2003. p. 320

20

César Roberto Bitencourt, a respeito do assunto, escreve que o Ministério Público não

necessita de autorização ou manifestação da vontade de quem quer que seja para iniciá-la.

Basta constatar que está caracterizada a prática do crime para promover a ação penal. 14

José Frederico Marques ensina que, na ação incondicionada, basta a existência da

informatio delicti para que o Ministério Público ofereça a acusação15.

Segundo os princípios que regem a ação penal pública incondicionada, o Ministério

Público tem o exercício da ação penal, mas somente o Estado pode punir, e como não pode

fazê-lo diretamente, institui órgãos oficiais para fazê-lo. Este é o papel do Ministério Público,

que terá o dever, por iniciativa própria, de promovê-la de oficio; daí se falar em principio da

oficialidade.

Decorrente do direito de punir, que pertence ao Estado, somente este poderá dispor da

ação penal. O Ministério Público não poderá dispor, desistir, transigir, ou acordar, seja

condicionada ou incondicionada, não pode este órgão desistir da ação penal pública, pois ela

não lhe pertence, apenas tem o exercício da ação. Daí decorre o principio da

indisponibilidade.

A respeito da indisponibilidade da ação penal, Vicente de Paulo Vicente de Azevedo

salienta que o Ministério Público não é proprietário da ação penal e sim seu agente:

Promove-a (a ação penal) desde a peça inicial, que é a denuncia até os termos finais, em primeira e segunda instancias. Acompanha-a, está presente a todos os atos, fiscaliza a seqüência dos atos processuais; zela pela observância da lei até a decisão final. Dono, mas não proprietário, porque não pode dispor da ação, não pode desistir, não pode renunciar ao direito-dever de promovê-la em nome do Estado. 16

Uma vez que o criminoso não deve ficar impune, surge o dever de promover a ação. Ao

Ministério Publico não é dado o arbítrio de escolher se move ou não a ação. Uma vez colhida

a prova dos fatos – prova da materialidade - ou demonstrados indícios suficientes da autoria,

este órgão está obrigado a promover a ação penal, desde que não tenha ocorrido nenhuma das

circunstancias do art. 43, do Código de Processo Penal. Daí decorre o principio da

obrigatoriedade ao qual o Ministério Público está vinculado. Caso não promova a ação,

estando desimpedido para fazê-lo, estará este órgão prevaricando, pois a ele não é dado o 14 BITENCOURT, César Roberto, op. cit., 2003. p.693. 15 MARQUES, José Frederico, op. cit., 1997. p. 307. 16 AZEVEDO, Paulo Vicente de. Curso de direito judiciário penal. São Paulo: Saraiva, 1958. v. I. p.195. Ainda nessa perspectiva Frederico Marques amparado em Azevedo sustenta que com relação ao dominus litis do Ministério Publico na ação penal, e consequentemente a separação entre a acusação e jurisdição, em outras palavras o Estado é titular do dever - poder de punir e o Ministério Público o órgão legitimado para promover a acusação. MARQUES, José Frederico, op. cit., 1997. p.307.

21

poder de escolha, e sim da obrigatoriedade, cabendo somente ao poder judiciário, depois de

apresentada a denúncia por este órgão, o poder de decidir se a demanda deve ser aceita.

Em outras palavras, o Ministério Público é o dominus litis, mas não pode dispor da ação

penal e cabe a ele requerer ao juiz o arquivamento das informações ou inquéritos que não

possuam elementos suficientes para a instauração do processo.

Todavia, ao Poder Judiciário é dado o poder de arquivar, alterar, dar definição jurídica

diversa da que se funda a acusação. A esse respeito Jose Frederico Marques explana:

Na ação penal publica, o dominus litis é o Ministério Publico. O juiz pode dar definição jurídica diversa ao fato delituoso em que se funda a acusação (Código de Processo Penal, artigo 383), ou alterar in melius a configuração dos fatos (idem, artigo 384), sem ouvir o Ministério Público: é a aplicação do principio narra mihi factum, dabo tibi jus. Mas não é permitida a alteração in pejus da acusação, com a mutatio libeli, sem que o Ministério Público adite a denuncia (artigo 384, parágrafo único). O mesmo sucede, se o aditamento da acusação tiver por objeto a inclusão de novo réu. 17

Ainda sobre os princípios pertinentes à ação penal que vinculam o Ministério Público,

Frederico Marques argumenta sobre aquele de que o órgão deve promover a ação penal no

prazo da lei e, caso não o faça, o ofendido tomará seu lugar, onde teremos então a ação

subsidiária da pública, conforme art. 100 § 3º, do Código Penal.

1.1.2 Ação penal pública condicionada

Há casos em que a ação penal pública está condicionada a certas circunstâncias para que

se inicie a ação. Esta é sempre pública, porém, depende desta condição de procedibilidade,

exigida em lei, sem a qual o Ministério Público não poderá promover a acusação de

determinados crimes, pois não está investido de poderes para que possa manifestar

legitimamente o exercício da ação.

Falemos, então, da ação penal pública condicionada, que poderá ser condicionada à

representação do ofendido ou à requisição do Ministro da Justiça. Vale lembrar, novamente,

que esta condição não a torna uma ação privada; será sempre ação pública, quem a promove é

o Ministério Público e, uma vez iniciada a ação, não pode o órgão desistir de prossegui-la, o

que torna o poder de disposição do ofendido limitado, por outro lado restringindo a atividade

persecutória do Estado, uma vez que, terminado o prazo para representação, extingue-se a

punibilidade do autor do crime.

17 MARQUES, José Frederico, op. cit., 1997. p.307.

22

Assim, Frederico Marques cita que “a representação condiciona tão-só o direito do

Estado-Administração de deduzir em juízo a pretensão punitiva. O Ministério Público não

pode acusar, propondo, assim, a ação penal pública, sem que o ofendido formule a

representação.”18 Na mesma linha de raciocínio se coloca César Roberto Bitencourt, aduzindo

que:

Continua sendo iniciada pelo Ministério Publico, mas dependerá, para a sua propositura, da satisfação de uma condição de procedibilidade, sem a qual a ação penal não poderá ser instaurada: representação do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo, ou, ainda, de requisição do Ministro da Justiça. 19

Na ação penal pública condicionada, a decisão de iniciar a ação fica por conta do

ofendido, que poderá ou não, no prazo legal, provocar o órgão, legitimando-o a propor a ação

penal, já que, se não provocado no prazo legal, decai o direito de representação.

Quanto à ação penal pública condicionada à representação, José Frederico Marques

declara:

A ação penal pública condicionada pode depender de representação do ofendido, nos casos taxativamente previstos em lei. Embora o crime atinja a um bem jurídico, cuja tutela penal interessa precipuamente ao Estado, figuras delituosas existem em que a pretensão punitiva surge quando o sujeito privado, que desse bem jurídico é titular, também tenha interesse na punição do autor da infração penal, e isso por motivos vários, que vinculam a própria tutela penal ao poder dispositivo do sujeito passivo do crime. Quando mais acentuada essa subordinação, o Estado transfere ao titular do bem jurídico, atingido ou ameaçado, o direito de ação e o direito de acusar: são os casos de ação penal privada. Hipóteses existem, no entanto, em que o interesse público na punição do crime fica menos subordinado à vontade do ofendido, e por isso, lhe não transfere o Estado o direito de acusar, mas tão só condiciona a sua provocação o inicio da persecutio criminis: são as hipóteses de ação penal publica dependente de representação. 20

Ainda sobre o tema, César Bitencourt acrescenta com percuciência que:

Embora a ação continue pública, em determinados crimes, por considerar os efeitos mais gravosos aos interesses individuais, o Estado atribui ao ofendido o direito de avaliar a oportunidade e a conveniência de promover a ação penal, pois este poderá preferir suportar a lesão sofrida a expor-se nos tribunais. Na ação penal publica condicionada há uma relação complexa de interesses, do ofendido e do Estado. De um lado, o direito legítimo do ofendido de manter o crime ignorado: e do outro, o interesse público do Estado em puni-lo: assim, não se move sem a representação do ofendido, mas iniciada a ação publica pela denuncia, prossegue ate decisão final sob o comando do Ministério publico. 21

Quem decidirá, portanto, o momento da propositura da ação penal, será o ofendido, que

poderá se opor ou não a ela, através da manifestação de vontade de assim fazê-lo.

18 MARQUES, José Frederico, op. cit., 1997. p.317. 19 BITENCOURT, César Roberto, op. cit., 2003. p.693. 20 MARQUES, José Frederico, op. cit., 1997. p.316. 21 BITENCOURT, César Roberto, op. cit., 2003. p.693.

23

A respeito, Helio Tornaghi define representação como sendo a manifestação da vontade

do ofendido de não se opor ao procedimento, e não o consentimento do ofendido ou de quem

lhe supra a incapacidade.22

Para Frederico Marques, a representação é uma delatio criminis postulatória; quem a

formula, não só dá a noticia de um crime, como pede, também, que se instaure a persecução

penal.23

A titularidade dessa ação é do Ministério Publico, porém deve ser provocado pela parte

ofendida, para que se inicie a ação penal e, uma vez iniciada a ação, a representação é

irretratável. Há casos, também, em que para a propositura da ação, será necessária a

requisição do Ministro da Justiça, o que também é uma condição de procedibilidade sem a

qual a ação penal não pode ser iniciada. Jose Frederico Marques depõe:

A requisição é um ato administrativo discricionário e irrevogável, com que o Ministro da Justiça torna possível a promoção da ação penal. Ele se funda em motivos de ordem política, ligados a persecução penal. Trata-se de condição excepcional da persecutio criminis, motivada pelas razoes de ordem política que o legislador acolheu para, em certos casos, a ela subordinar a atividade acusatória do Ministério Público. 24

A requisição do Ministro da Justiça está restrita a determinados casos e, somente dará

inicio a ação penal caso esta seja efetivamente requisitada pelo Ministro. Essa requisição, no

entanto, não obriga o Ministério Público a promover a ação; apenas o autoriza a mover a

ação, podendo, se houver causa impeditiva de movê-la, pedir o arquivamento da requisição,

pois ainda continua (o Ministério Público) encarregado de dizer se realmente ocorrem tais

condições impeditivas.

Na versão de Helio Tornaghi, a condição para o pleno exercício da ação penal, nesses

casos de requisição do Ministro da Justiça, manifesta-se como condição de punibilidade do

fato criminoso, visto que “Há casos em que a lei só permite a ação pública após requisição do

Ministro da Justiça, verdadeira condição objetiva de punibilidade. 25

Pode-se dizer que, sem a requisição, o Ministério Público não está investido de poderes

para promover a ação penal, que depende desta condição para se iniciar, e que, como a ação

penal condicionada à representação, esta não se vincula ao Ministério Publico, que pode pedir

22 TORNAGHI, Helio, op. cit., 1959. 23 MARQUES, José Frederico, op. cit., 1997. p.316. 24 MARQUES, José Frederico, op. cit., 1997. p.316. 25 TORNAGHI, Helio, op. cit., 1959. p.353.

24

o arquivamento da requisição, caso ocorram as causas citadas no art. 43 do Código de

Processo Penal.

1.1.3 Ação privada subsidiária da pública

O Estado publicizou a ação penal com a institucionalização de um órgão munido de

poderes para promovê-la na maioria das infrações e dentro dos prazos legais, dado que sua

inércia torna possível a propositura da ação pelo ofendido, caso em que teremos ação privada

subsidiária da pública.

Haverá casos, então, que diante da inércia do Ministério Público em iniciar a ação

penal, no prazo legal, o ofendido poderá fazê-lo através da queixa. Essa substituição quanto à

propositura da ação não a torna privada, mantém-se ela pública e, uma vez promovida pelo

ofendido, rege-se pelos princípios da ação penal pública.

Lembra Hélio Tornaghi que “A ação privada como subsidiária da ação pública, é

absolutamente sustentável, pois o Estado, ao incumbir-se de movê-la, deve acautelar o

interesse do ofendido no caso em que o órgão dele, Estado, não a intenta.”26

A ação privada subsidiária da pública é uma forma de tornar possível a ação penal que

porventura o Ministério Público não promoveu, por qualquer circunstância, assegurando ao

ofendido a repressão do ato delituoso. A ação continua sendo pública, o Ministério Público

pode retomá-la como parte principal e reger-se, então, pelos princípios que norteiam a ação

penal pública. O que ocorre é que, diante da inércia do agente ministerial, o ofendido pode dar

início à ação penal através da queixa, mas não lhe é dada a disponibilidade do ius puniendi,

que continua sendo do Estado, em casos que este considerou públicos.

Nesse condão, “O Estado que privou o ofendido de promover ação prometendo fazê-lo,

deve restituir-lhe aquele direito, se, embora por convicção, não quer acionar em determinado

caso.”27

A ação privada subsidiária da pública compreende uma garantia do ofendido em propor

a ação penal diante do escoamento do prazo previsto em lei, devido à inércia do órgão

legitimado a fazê-lo, garantia esta prevista constitucionalmente no texto da Carta, no art. 5º,

26 TORNAGHI, Helio, op. cit., 1959. p.75. 27 TORNAGHI, Helio, op. cit., 1959. p.353.

25

LIX: “Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no

prazo legal”.

O dispositivo constitucional em comento estabeleceu mecanismo de controle da função

ministerial, ao assegurar à parte interessada a possibilidade de promover a ação penal ante a

desídia do órgão acusador oficial. Todavia, como leciona Eduardo Espínola Filho29,

apresentada a queixa, porque a denúncia não o foi, ao Ministério Público cumprirá intervir em

todos os termos do processo, podendo repudiar a queixa, oferecendo denúncia substitutiva, ou

aditá-la, fornecendo os elementos de prova, como se tratasse de processo começado com a

denúncia.

1.2 Ação penal exclusivamente privada

O art. 100, do Código Penal, dispõe que a “ação penal é pública, salvo quando a lei

expressamente a declara privativa do ofendido”.

O direito de agir na esfera penal, por manifesta opção do legislador pátrio, não ficou sob

o monopólio exclusivo do órgão estatal acusador. Assim, a ação penal, segundo a titularidade

do direito, divide-se em pública e privada, sendo a primeira a regra e a segunda a exceção. De

modo claro e didático, Frederico Marques conceituou a ação penal privada como sendo

Aquela em que o direito de acusar pertence, exclusiva ou subsidiariamente, ao ofendido ou a quem tenha qualidade para representá-lo. Ela se denomina ação privada, porque o direito seu titular é um particular, em contraposição à ação penal pública, em que o titular do jus actionis é um órgão estatal: - o Ministério Público. 30

Em essência, a ação penal pública e a privada possuem a mesma natureza publicista. A

única distinção entre elas reside, exclusivamente, na legitimidade de agir. Naquela, o membro

do Ministério Público é o titular da ação; nesta última, a titularidade da ação cabe ao ofendido

ou a quem legalmente o represente.

Nas hipóteses previstas na legislação penal (art. 163 do CP - crime de dano, por

exemplo), a ação penal somente terá inicio mediante oferecimento de queixa do ofendido ou

de quem tenha qualidade para representá-lo. Em tais casos, o órgão estatal acusador

(Ministério Público) atuará como fiscal da lei, podendo inclusive aditar a queixa em defesa

da indivisibilidade da ação penal.

30 MARQUES, José Frederico, op. cit., 1997. p. 321.

26

A atuação do ofendido como acusador não encontrou acolhida uniforme na doutrina.

Alguns críticos entedem que o particular, ao promover a ação penal, move-se por sentimento

de vingança ou por interesse particular. Para esses críticos, a vontade do particular deveria ser

irrelevante e que só ao Estado deve ser assegurado o direito de acusar e punir. Desse entender

comungam os doutrinadores Vélez Marccione, Sebastian Soler, Ricardo Levene, Maggiore,

Binding, Ferri, entre outros.

Ao citar os referidos doutrinadores, Tourinho Filho, rebatendo-os, entende que os

argumentos contrários à ação penal privada não resistem a uma análise mais detalhada, uma

vez que,

A despeito das críticas, inúmeras legislações, inclusive a nossa, admitem a ação privada não só em face da tenuidade do interesse público lesionado, e, conseqüentemente, predominância do interesse particular sobre o interesse social, como também porque o strepitus fori – o escândalo – poderá ser mais prejudicial à vítima que a impunidade do ofensor. 31

Mostra-se razoável que, em certos casos, a ação penal se curve à conveniência do

ofendido, pois, em determinadas situações concretas, a publicidade do delito, a peregrinação

do ofendido aos tribunais, a delonga do processo e o encontro com o ofensor em audiência,

reavivam a angústia da vítima e se mostram mais prejudiciais que a própria lesão sofrida.

Comungando dessa linha de pensamento e entendendo como acertadas as razões de

política criminal que transferiram para o ofendido o direito de ação em determinados delitos,

Rogério Greco32 ressalta que, embora o Estado sempre sofra com a prática de uma infração

penal, pois que seu cometimento abala a ordem jurídica e coloca em risco a paz social,

existem situações que interessam mais intimamente ao particular do que propriamente ao

Estado.

A predominância absoluta do direito estatal, relembra Frederico Marques, 33, nem

sempre condiz com os imperativos do bem comum que ditaram o preceito punitivo e a norma

incriminadora.

Na ação penal privada, ressalte-se, o Estado transfere ao particular apenas o direito de

acusar, permanecendo sob o domínio estatal exclusivo o direito de punir.

31 TOURINHO FILHO, Fernando Costa, op. cit., 2003. p. 433. 32 GRECO, Rogério. Curso de direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006. p. 747. 33 MARQUES, José Frederico, op. cit., 1997. p.324.

27

As ações de iniciativa privada, tradicionalmente, classificam-se em: a) privada

propriamente dita ou exclusivamente privada; b) privada personalíssima; c) privada

subsidiária da pública.

Ações exclusivamente privadas ou propriamente ditas são aquelas promovidas mediante

queixa do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo. Quando o ofendido for

menor de 18 anos, só pode ser proposta por seu representante legal. Ao completar 18 anos,

atingida a maioridade e a plena capacidade civil, somente ele terá legitimidade ativa para a

ação privada, cessando a figura do representante legal.

Em caso de morte do ofendido ou sendo ele declarado ausente por decisão judicial, o

direito de oferecer queixa ou de prosseguir na ação penal passa ao cônjuge, ascendente,

descendente ou irmão, conforme disposição contida no § 4º d art. 100 do Código Penal e do

art. 31 do Código de Processo Penal. Essa categoria de ação é denominada exclusiva, na lição

de Scarance Fernandes,34. porque se refere a crimes em que a persecução só pode ser por

iniciativa privada, não se admitindo acusação pública, como sucede na ação privada

subsidiária da pública.

Ação privada personalíssima é aquela cujo exercício compete, única e exclusivamente,

ao ofendido. Seu exercício fica vedado até mesmo ao representante legal do ofendido. Mesmo

em caso de morte do ofendido ou de ausência declarada por decisão judicial, o direito de

queixa ou de prosseguir na ação penal não se transfere para o cônjuge, ascendente,

descendente ou irmão, ocorrendo, nessa hipótese, a perda da ação penal e, por conseguinte, do

jus puniendi.

A ação de iniciativa privada rege-se pelos seguintes princípios: a) da oportunidade ou

conveniência; b) da disponibilidade; c) da indivisibilidade; d) da intranscendência.

Princípio da oportunidade ou da conveniência – Esse princípio realça o caráter

facultativo do exercício da ação penal pelo ofendido. Destaca Tourinho Filho que “[...] pelo

princípio da oportunidade, que vigora na ação penal privada, o seu titular, que é o ofendido ou

seu representante legal, promove a ação penal se quiser”. 35 Assim, na ação penal privada, ao

contrário da ação pública, em que predomina o dever de agir, tem o querelante a faculdade

não só de propor como também de deixar de propor a acusação.

34 FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p.179. 35 TOURINHO FILHO, Fernando Costa, op. cit., 2003. p.437/438.

28

Princípio da disponibilidade – Outra característica relevante da ação penal privada é

sua disponibilidade. Intentada a ação penal, o ofendido pode dela dispor, até o trânsito em

julgado da sentença penal condenatória. Ao ofendido é assegurado o direito de prosseguir ou

desistir da ação já intentada, ou mesmo perdoar o autor do delito. Sobre o direito de dispor da

ação, Frederico Marques assim se manifesta:

Na ação penal privada, tem o querelante a faculdade não só de propor ou deixar de propor a acusação, como ainda o direito de desistir do prosseguimento da instância ou de perdoar o autor do delito. O ofendido pode dispor da ação penal: a) deixando de propô-la, pura e simplesmente, dentro de seis meses contados da data em que teve conhecimento do crime, caso em que ocorrerá a decadência do jus accusationis; b) renunciando ao direito de queixa, tácita ou expressamente; c) perdoando ao querelado, depois de instaurado o processo criminal; d) deixando ocorrer a perempção da instância. 36

Princípio da indivisibilidade - O art. 48, do Código de Processo Penal, dispõe

expressamente que “A queixa contra qualquer dos autores do crime obrigará ao processo de

todos, e o Ministério Público velará pela sua indivisibilidade”. Esse princípio norteia tanto a

ação penal pública quanto a privada. Se o crime foi praticado por mais de uma pessoa, não se

pode facultar ao titular da ação penal, pública ou privada, o direito de escolher contra quem

pretende agir, incluindo um, ou uns e excluindo outro ou outros.

Faculta-se ao ofendido o direito de propor ou não a ação penal, conforme julgar

conveniente. O que não se mostra justo nem razoável seria deixar que o ofendido, a seu livre

arbítrio, escolha contra quem propor a ação penal, deixando um ou alguns culpados livres da

acusação. Conforme preleciona Rogério Greco, “A ação penal deve ser um instrumento de

justiça, e não de simples vingança.” 37 Assim, a renúncia ao direito de ação contra um dos

acusados a todos aproveita e o perdão oferecido a um dos acusados é extensivo aos demais.

Princípio da intranscendência – Comum a todas as ações penais, esse princípio dispõe

que a ação penal limita-se à pessoa ou pessoas responsáveis pelo delito, não se transmitindo a

terceiros (parentes, amigos e estranhos) a culpa, em sentido genérico, imputável somente ao(s)

agente(s).

No capítulo V deste trabalho, versando sobre a aplicabilidade ou não da transação penal

nos crimes de ação privada, e que também discorrerá sobre a natureza e requisitos desse

instituto, os princípios norteadores da ação penal, pública e privada, são estudados

comparativa e sistematicamente, através dos tradicionais métodos de interpretação, de modo a

36 MARQUES, José Frederico, op. cit., 1997. p.326-327. 37 GRECO, Rogério, op. cit., 2006. p.751.

29

se extrair do art. 76, da Lei n. 9.099/95, o sentido que melhor se harmonize com os ditames e

princípios constitucionais, especialmente o da isonomia, da razoabilidade e da dignidade da

pessoa humana.

2 DA INTERVENÇÃO MÍNIMA DO DIREITO PENAL

A crescente onda de violência urbana, a impunidade, a falência do sistema prisional, que

não recupera, antes favorece a reincidência, a desenfreada criação legislativa de tipos penais e

o recrudescimento das penas, apontam para o colapso da política criminal brasileira.

Ante esses graves problemas, a sociedade, alarmada e refém da criminalidade, reclama

do Estado a adoção de uma postura mais eficaz, ativa e intervencionista. Por outro lado, o

Estado tem enfrentado o problema em suas conseqüências, esquecendo-se ou omitindo-se de

enfrentar as causas primeiras. Na tentativa de controlar o crescimento da criminalidade, o

Estado, através do legislativo, direciona sua atuação para um único e simplista sentido: o da

multiplicação de leis em matéria criminal. Tem sido esta, pois, a resposta estatal diante do

incremento das práticas delituosas.

De há muito se vem discutindo sobre a crise do Direito Penal, não só no Brasil, mas

também no mundo inteiro. O foco da discussão, por sua vez, gira em torno de temas

fundamentais e de manifesta relevância, entre os quais podemos citar: função e finalidade do

Direito Penal, definição dos bens jurídicos que merecem ser tutelados pelo Direito Penal,

privação da liberdade como medida penalizante prioritária, hipertrofia irracional do Direito

Penal, necessidade de se estabelecer medidas e mecanismos despenalizadores ou

descriminalizantes, que passam pela intervenção mínima e pelos sistemas consensuais de

justiça penal.

A Constituição Federal de 1988, inauguradora de um novo modelo de Estado, o Estado Democrático de Direito, adotou, como fundamento, a dignidade da pessoa humana, e, como garantia fundamental, a liberdade do cidadão. A nova ordem constitucional inaugurada em 1988 traçou os princípios, limites e fronteiras que o legislador não pode ignorar, especialmente em matéria de Direito Penal. Na lição da Professora Maura Roberti, ‘a dimensão das liberdades do cidadão na Constituição Federal de 1988 não deixa margem a dúvidas de que não há mais espaço no Direito Penal moderno para uma Política criminal intervencionista’1 A intervenção mínima é uma tendência político-criminal moderna e contemporânea que orienta e limita o poder de intervenção do Estado. Como princípio, a intervenção mínima prega que o direito penal deve ser considerado a ultima ratio da política social e que somente deve interessar ao direito penal os casos de violação grave a bens e valores mais importantes para os indivíduos e para a sociedade, não protegidos e alcançados por outros ramos do direito.

1 ROBERTI, Maura. A intervenção mínima como princípio no direito penal brasileiro. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris editor, 2001. p.58.

31

Para melhor compreensão do tema tratado neste capítulo, abordaremos, não extensivamente, sobre outros temas igualmente relevantes e correlatos, a saber: função e finalidade do Direito Penal e bens a serem por ele tutelados; inflação legislativa em matéria penal e princípios que reforçam a necessidade de imposição de limites de intervenção do Direito Penal.

2.1 Funções e finalidades do Direito Penal

A criminalidade, como conseqüência da corrupção do gênero humano, é um fenômeno

social que sempre acompanhou, acompanha e acompanhará a História da humanidade.

Já nos capítulos iniciais do Livro de Gênesis, em que é narrada a origem criacionista do

universo, encontramos o registro do primeiro homicídio ocorrido no seio da primeira e então

única célula social existente: a família de Adão. Conforme registrado no capítulo 4 do

Gênesis2, Caim, movido por inveja e ciúmes, matou seu irmão Abel. A conduta de Caim foi

considerada ilícita e merecedora de um castigo divino, qual seja: banimento do convívio

familiar e social e o impedimento de obter da terra o seu fruto.

A história de Caim e Abel é emblemática. De sua reflexão podemos extrair algumas

conclusões lógicas, quais sejam: o Homem é um ser gregário; a vida em comunidade é

marcada por conflitos de interesses; direitos e interesses dos integrantes da sociedade devem

ser protegidos; a previsão de castigo e de um aplicador imparcial e legitimado se faz

necessária.

Assim, nenhuma sociedade está livre da ocorrência de delitos. O delito é um fenômeno

social inevitável, que resulta da conjugação de uma série de fatores e se reveste de um caráter

peculiar, pois seus efeitos são mais danosos à sociedade do que qualquer outro fato humano.

César Bitencourt3 , citando Durkheim, afirma que o delito não ocorre somente na maioria das

sociedades de uma ou de outra espécie, e sim em todas as sociedades constituídas pelo ser

humano.

Por não estarem imunes ao delito, é vital, para todas as comunidades, formular e

organizar um ramo dentro do ordenamento jurídico capaz de restabelecer e assegurar a paz

social, reprimindo e evitando ilícitos considerados graves.

2 BÍBLIA de Estudos Genebra. Traduzida por João Ferreira de Almeida. São Paulo: Cultura Cristã, 1999. p.16 - 17. 3 BITENCOURT, César Roberto, op. cit., 2003. p. 2.

32

O Direito Penal tem sido utilizado pelo Estado como instrumento para facilitar e

regulamentar a convivência do Homem em sociedade e, a pena, como mecanismo de proteção

de determinados bens jurídicos, conforme análise de César Bitencourt4

Para Zaffaroni, a expressão Direito Penal possui duplo significado: de um lado, significa

o conjunto de leis penais, isto é, a legislação penal; de outro, o sistema de interpretação

dessas mesmas leis, isto é, o saber do direito penal.5 Segundo o referido doutrinador, o

Direito Penal, enquanto legislação penal, significa o conjunto de leis que traduzem normas

que pretendem tutelar bens jurídicos, e que determinam o alcance de sua tutela, cuja violação

se chama “delito”, e aspira a que tenha como conseqüência uma coerção jurídica

particularmente grave. Prossegue afirmando que o Direito Penal, enquanto Saber, traduz-se

em sistema de interpretação da legislação penal.

Diversas são as definições de Direito Penal. Todas elas, no entanto, embora tragam

enfoques distintos, preservam, na essência, o significado e alcance original da expressão. Em

linhas gerais, conceitua-se o Direito Penal como o conjunto de normas jurídicas que definem

as infrações de natureza penal e as penas a elas cominadas, bem como regulam o poder

punitivo estatal.

O que nos interessa, neste momento, é traçar, em sucinta análise, a função e finalidade

do Direito Penal. Na lição de Heleno Cláudio Fragoso, “a função básica do Direito Penal é a

de defesa social.”6 Portanto, o direito penal visa a resguardar sob sua égide bens socialmente

relevantes, cumprindo seu papel de mantenedor da paz social.

Essa tese, que entende ser o Direito Penal como mantenedor da paz social e assegurador

da coexistência livre e pacífica dos cidadãos, deve ser compreendida com outros princípios e

conceitos correlatos, formulados ao longo dos anos.

A idéia de um Direito Penal assegurador da paz social é nova, se considerarmos a

História do Direito como um todo. Na doutrina penal, considera-se que a tarefa imediata do

Direito Penal resume-se à proteção coercitiva de bens jurídicos considerados fundamentais, a

exemplo da vida humana, do patrimônio, da liberdade individual, da dignidade da pessoa

humana. Dissertando sobre a finalidade do Direito Penal, Rogério Greco assim preleciona:

4 BITENCOURT, César Roberto, op. cit., 2003. p.80. 5 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral/. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. v. I. p. 77-78. 6 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p.4.

33

A finalidade do Direito Penal é proteger os bens mais importantes e necessários para a própria sobrevivência em sociedade, ou, nas precisas palavras de Luiz Régis Prado, ‘o pensamento jurídico moderno reconhece que o escopo imediato e primordial do Direito Penal radica na proteção de bens jurídicos – essenciais ao indivíduo e à comunidade’. 7

Ressalta Rogério Greco que essa teoria não é unânime entre os doutrinadores, pois:

[...] atualmente, parte da doutrina tem contestado esse raciocínio, a exemplo do Prof. Gunther Jakobs, que afirma que o Direito Penal não atende a essa finalidade de proteção de bens jurídicos, pois, quando é aplicado, o bem jurídico que teria de ser por ele protegido já foi efetivamente atacado. Para Jakobs, o que está em jogo não é a proteção de bens jurídicos, mas, sim, a garantia da vigência da norma, ou seja, o agente que praticou uma infração penal deverá ser puído para que se afirme que a norma penal por ele infringida está em vigor A finalidade do Direito Penal é proteger os bens mais importantes e necessários para a própria sobrevivência em sociedade, ou, nas precisas palavras de Luiz Régis Prado, ‘o pensamento jurídico moderno reconhece que o escopo imediato e primordial do Direito Penal radica na proteção de bens jurídicos – essenciais ao indivíduo e à comunidade’. 8

A posição do Prof. Gunther Jakobs é isolada, prevalecendo como corrente majoritária

entre os penalistas, que a finalidade protetiva de bens é atribuída ao Direito Penal.

A despeito das divergências doutrinárias, Zaffaroni defende que a finalidade primeira do

Direito Penal é a segurança jurídica, entendida como tutela de bens jurídicos, neles

englobados os valores éticos. Há de se questionar quais bens jurídicos merecem a tutela do

Direito Penal. Sobre esta indagação, vejamos o tópico seguinte. 9

2.2 Bem jurídico a ser tutelado pelo Direito Penal

A noção de bem jurídico se insere na concepção moderna de Direito Penal, servindo de

critério de delimitação à atividade estatal de legislação em matéria penal, pois através de uma

espécie de catalogação de interesses e valores representativos para o Homem, enquanto ser

integrado a uma sociedade, vitais para sua dignidade, segurança e promoção, nesse meio,

oferece-se matéria idônea para o trabalho legislativo.

Todavia, apesar dos esforços, a noção de bem jurídico, como reconhece Jorge de

Figueiredo Dias,10 não pôde, até o presente, ser determinada com exatidão, nitidez e

segurança, que permitam estabelecer conceito fechado e apto à subsunção, capaz de traçar,

para além de toda a dúvida possível, a fronteira entre o que legitimamente pode e não pode ser

criminalizado. O único aspecto consensual estabelecido sobre a matéria, no entanto, diz 7 GRECO, Rogério, op. cit., 2006. p.4. 8 GRECO, Rogério, op. cit., 2006. p.6. 9 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique, op. cit., 2006. p.89. 10 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 62.

34

respeito à representatividade de valor social que deve conter o bem jurídico, mesmo que a ele

estejam diretamente relacionados interesses de cunho individual.

Apesar de não possuir contornos conceituais perfeitamente delineados, e mesmo

inexistindo rol pronto e acabado, os bens jurídicos penais têm sido doutrinariamente

classificados em 3 (três) diferentes categorias, a saber: a) os bens jurídicos penais de natureza

individual; b) bens jurídicos penais de natureza coletiva; c) bens jurídicos penais de natureza

difusa.

Os bens jurídicos de natureza individual afetam diretamente as pessoas individualmente

consideradas, que podem deles dispor sem afetar os demais indivíduos. São, portanto, bens

jurídicos divisíveis em relação ao titular. Citamos, como exemplo, a vida, a integridade física,

a propriedade, a honra etc.

De natureza coletiva são bens jurídicos penais os que se referem e afetam todo o sistema

social, de forma que os indivíduos não têm disponibilidade sem que comprometam o interesse

dos demais titulares do bem jurídico. São, dessa forma, indivisíveis em relação aos titulares.

No Direito Penal, os bens de natureza coletiva estão compreendidos dentro do interesse

público. Podemos exemplificar arguindo a tutela da incolumidade pública, paz pública, saúde

pública, organização política etc.

Os bens jurídicos penais de natureza difusa também se referem à sociedade, como um

todo, de forma que os indivíduos não têm disponibilidade sem que afetem a coletividade. São,

igualmente, indivisíveis, em relação aos titulares. Os bens de natureza difusa trazem uma

conflituosidade social que se contrapõe aos diversos grupos dentro da sociedade, como se

constata na proteção ao meio ambiente, em que os interesses econômico-industriais e o

interesse na preservação ambiental se contrapõem, ou ainda na proteção das relações de

consumo, contrapostos os fornecedores e os consumidores, na proteção da saúde pública, no

que se refere à produção alimentícia e de remédios, na proteção da economia popular, da

infância, da juventude, dos idosos etc.

Todavia, o grande desafio encontrado pelo legislador e pelos doutrinadores é a questão

apresentada diante da Teoria do Bem Jurídico, hoje desenvolvida por meio do Princípio da

Ofensividade ou da Intervenção Penal Mínima; é saber quais bens jurídicos, cuja importância

seja considerada vital para a manutenção da sociedade, merecem a tutela do Direito Penal e

quais critérios regem sua definição.

35

Inexistindo critério claro e seguro para a escolha dos bens jurídicos que mereçam a

tutela do Direito Penal e, não se inscrevendo o bem jurídico num conceito fechado e preciso,

capaz de ser prontamente empregado pelo legislador na tarefa de definir ou redefinir a ordem

jurídico-penal, urge que se busque um referencial que lhe sirva de norte.

A visão constitucional defendida, hoje, pela maioria dos doutrinadores, entre os quais

André Copetti, é no sentido de reconhecer a criação do conceito do bem jurídico penal a partir

das normas jurídicas hierarquicamente superiores às demais, quais sejam, aquelas decorrentes

da Constituição Federal. Assim, a primeira fonte orientadora do legislador penal deve ser,

necessária e obrigatoriamente, a Constituição Federal, conforme explicita André Copetti,

citado por Rogério Greco. Senão vejamos:

É nos meandros da Constituição Federal, documento onde estão plasmados os princípios fundamentais de nosso Estado, que deve transitar o legislador penal para definir legislativamente os delitos, se não quer violar a coerência de todo o sistema político-jurídico, pois é inconcebível compreender-se o direito penal, manifestação estatal mais violenta e repressora do Estado, distanciado dos pressupostos éticos, sociais, econômicos e políticos constituintes de nossa sociedade. 11

Nesse contexto, a Constituição Federal, em matéria penal, exerceria, como ressalta

Rogério Greco, dupla função, pois, ao tempo em que orienta o legislador, elegendo valores

considerados fundamentais para a segurança e bem-estar da sociedade e, particularmente dos

indivíduos que a integram, impede que esse mesmo legislador viole direito fundamental, a

exemplo da dignidade da pessoa humana e da liberdade, tipificando condutas incapazes de

ameaçar bens jurídicos relevantes.

Ao estabelecer critérios para a escolha de bens jurídicos a serem protegidos pelo Direito

Penal, determinando o conteúdo da norma penal, a Constituição Federal, na visão de Maura

Roberti,12 limita o poder do legislador. Para a Professora Maura Roberti13, o legislador penal

infraconstitucional não pode disciplinar outras condutas que não atinjam outros bens que não

aqueles essenciais à vida, à saúde e ao bem-estar do povo, pois somente esses são alçados à

categoria de relevantes.

A teoria da imposição constitucional da tutela penal, defendida por Nilo Batista,14

justifica-se, se levado em consideração que o Estado brasileiro, através de sua Carta Magna,

abarcou, como valores fundamentais, a liberdade e a dignidade, por pertencerem à natureza do

11 COPETTI, André apud GRECO, Rogério, op. cit. , 2006. p. 7 12 ROBERTI, Maura, op. cit., 2001. p. 61. 13 ROBERTI, Maura, op. cit., 2001. p. 77. 14 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan, 1996. p.90.

36

Homem. Liberdade e dignidade da pessoa humana são direitos fundamentais, postos no topo

da pirâmide de tutela dos bens jurídicos constitucionais, situados num grau valorativo superior

a outros bens.

Assim, como esposado no preâmbulo da Carta Magna, o legislador infraconstitucional

fica impedido de penalizar qualquer ato arbitrariamente. Ele é limitado pela orientação dos

direitos assegurados na Constituição, criminalizando aquelas condutas que atuem na

confrontação com os bens albergados pela norma maior. Assim, os bens protegidos pela

Constituição funcionam como um roteiro fundamentador para a interpretação de todo

ordenamento jurídico.

Com a hipertrofia atual do Direito Penal e a impossibilidade de catalogar os bens

jurídicos que possam ser suscetíveis de ofensa, para servir de escopo à atividade legiferante,

estatui-se que o legislador, para selecionar os bens jurídicos, deve proceder dentro dos limites

da Constituição. A ameaça penal somente é justificada quando o bem jurídico é

"constitucionalmente legítimo" e conta com "importância social." 15

Assim, a Constituição Federal, ao determinar o conteúdo da norma penal, além de impor

limites ao legislador ordinário na escolha dos bens jurídicos penais, impõe ao legislador penal

a obrigação de incriminar a ofensa de determinados bens jurídicos ou determinar a exclusão

de benefícios ou até mesmo a espécie de pena a ser aplicada em certos crimes.

A corrente doutrinária que defende a tutela penal apenas de bens protegidos

constitucionalmente encontra resistência entre os que entendem não ser possível existir no

ordenamento jurídico uma proibição ao legislador ordinário de incriminar condutas ofensivas

a valores que, sem serem contrários à Constituição, não tragam seu reconhecimento explícito

ou implícito. Para esses pensadores do Direito Penal, não há vinculação sobre o legislador no

que se refere aos bens constitucionalmente relevantes, não sendo função da Constituição

instituir um conjunto axiológico de bens a serem tutelados pelo Direito Penal.

A idéia central dos oposicionistas é a de que a Constituição realiza a função que

Canotilho denomina garantística dos direitos e liberdades inerentes ao indivíduo e

preexistentes ao Estado16, mas não se inclui entre as funções da Constituição o

estabelecimento de bens jurídicos penais, vinculando juridicamente os titulares do poder 15 GOMES, Luiz Flávio. Princípio da ofensividade no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 102. 16 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p.1272 - 1273.

37

estatal. Por esse pensar, o legislador penal, ante a ausência de vedação legal e não estando

limitado ao conteúdo axiológico-constitucional para o reconhecimento de bens jurídicos

penais, estaria livre para tutelar penalmente outros bens e valores não fundamentais que não

se mostrem contrários à Constituição.

Francisco Javier Alvarez Garcia, ao criticar a teoria restritiva do bem jurídico penal,

entende como inoportuno para o ordenamento jurídico limitar a tutela penal somente para os

bens considerados constitucionalmente relevantes, levando-se em conta que, frente à dinâmica

social, as constituições envelhecem, podendo surgir novas exigências de tutela que nem

sequer eram previsíveis quando da elaboração do texto constitucional17.

Posicionamo-nos ao lado dos que defendem que a Constituição Federal, ao determinar o

conteúdo da norma penal, limita o poder do legislador infraconstitucional, vedando o

disciplinamento de condutas que não atinjam bens alçados constitucionalmente à categoria de

fundamentais.

Os direitos e garantias fundamentais, previstos no art. 5º da Constitição Federal de

1988, não foram inseridos no texto constitucional por mera liberalidade do legislador

constituinte. Sua inserção na Carta Magna decorreu da incansável e secular luta social travada

intra e extrafronteira, nas ruas, praças, porões e nos parlamentos.

Da barbárie, do absolutismo, da ditadura, até o atual estágio de liberdade e democracia

desfrutado pelo Brasil, autonominado Estado Democrático de Direito, longa e penosa estrada

foi percorrida e muitas vidas se perderam no caminho. Os direitos e garantias fundamentais,

longe de mera liberalidade do legislador constituinte, foram comprados por demais alto e,

como bens preciosos, devem ser preservados e protegidos a todo custo, especialmente da ação

intervencionista do próprio Estado.

A Carta constitucional adotou como postulados consagrados e como valores

fundamentais, ao lado de outros direitos e garantias de reconhecida relevância, a liberdade e a

dignidade, por serem pertencentes e imanentes à natureza do Homem. Tais garantias e

direitos devem ser preservados pelo ordenamento jurídico penal, não podendo o Estado, ao

regular condutas, colocar em risco a liberdade e a dignidade humana, especialmente quando a

conduta disciplinada se mostra incapaz de ameaçar estes e outros bens jurídicos fundamentais.

17 ALVAREZ GARCIA, Francisco Javier. Bien jurídico e constitucion. Cuadernos de Política Criminal, Madri, n. 43, 1991, p. 33.

38

2.3 Da intervenção mínima no Direito Penal

A atuação interventiva e invasiva do Estado, embora indesejada, revela-se necessária,

especialmente quando voltada para a tutela de bens jurídicos relevantes e defesa social, como

bem pontifica Heleno Cláudio Fragoso.18

Ocorre que o poder transferido aos governantes para, em nome e benefício da própria

sociedade, intervir nas liberdades individuais com imposição de penas, não era e não poderia

ser ilimitado, daí a necessidade de também se regular o poder punitivo estatal, que em muitos

momentos da História, foi exercido ao gosto dos absolutistas, tiranos e déspotas de plantão a

serviço da repressão e da opressão.

Desde o século XVIII, o Direito Penal passou a ser analisado e estudado sob outro

enfoque, iniciando-se aí a busca pela limitação do poder punitivo do Estado. Para a nova

corrente filosófico-jurídica, oráculo do discurso garantista, o Estado não apenas deveria

observar o princípio da legalidade, segundo o qual crime e pena devem estar definidos e

previstos em lei, mas também se deixar dirigir por um outro princípio de não menos

importância que serviria como orientador e limitador do poder de criação de crimes, a saber: o

princípio da intervenção mínima.

Assim é que, desde a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, em

1789, o princípio da intervenção mínima despontou como tendência político-criminal voltada

para a modernização, humanização e racionalidade do Direito Penal, ao postular a redução ao

mínimo e, como último recurso, a utilização e intervenção desse ramo do Direito como

instrumento de solução dos conflitos sociais. A proposta central desse princípio é a mínima

intervenção do Estado, com a máxima garantia do direito de liberdade do cidadão.

O princípio da intervenção mínima tem sido abordado e conceituado pelos estudiosos da

matéria sob vários enfoques. Embora alguns realcem determinados traços distintivos do

instituto e apontem sub-princípios dele derivados, todos, no entanto, defendem o seu caráter

orientador e limitador do poder punitivo estatal. Contudo, quem melhor traçou os contornos

desse princípio foi César Bitencourt, para quem

O princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada

18 FRAGOSO, Heleno Cláudio, op. cit., 1994. p. 4.

39

e não recomendável. Se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penais. Por isso, o Direito Penal deve ser a ultima ratio, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do Direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade. 19

Conforme o conceito formulado por César Bitencourt, a intervenção do Estado na

liberdade individual somente se justifica quando efetivamente necessária, adequada e em

caráter subsidiário. Um ato estatal que limita um direito fundamental somente pode ser

considerado necessário, caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovido

com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito

fundamental atingido. Um meio somente poderá ser considerado adequado se for apto para

alcançar o resultado pretendido ou fomentar os objetivos visados. O caráter subsidiário do

Direito Penal, por sua vez, declara que a intervenção estatal somente se justifica quando

fracassarem todas as outras formas e meios de controle social e de proteção do bem jurídico.20

Como parte integrante de um sistema maior que se complementa, o princípio da

intervenção mínima se relaciona e se revigora com outros princípios, que igualmente servem

de norteadores do Direito Penal como ultima ratio. Vejamos, mais detidamente, alguns desses

princípios correlatos.

2.3.1 Princípio da dignidade humana

Conforme art. 1º, inc. III, da Constituição Federal/1988, a República Federativa do

Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, tendo na dignidade da pessoa humana

um de seus fundamentos. Em conformidade com a nova ordem constitucional, a dignidade da

pessoa humana funciona como princípio estruturante e arcabouço político fundamental

constitutivo do Estado, sobre o qual se assenta todo o ordenamento jurídico. Por isso, é

considerado como princípio maior na interpretação de todos os direitos e garantias conferidos

às pessoas no Texto Constitucional.

Isto se reflete no Direito Penal, que tem sua área de atuação diretamente relacionada

com o ius libertatis dos cidadãos. Desse modo, partindo da premissa da dignidade humana,

que tem íntima relação com o Direito Penal garantista, faz-se necessário entender que, num

estado Democrático de Direito, um fato punível deve ser encarado tendo em vista a finalidade

do Direito Penal, a proteção de bens jurídicos relevantes, que, em nosso caso, como acima

exposto, são aqueles e apenas aqueles de índole constitucional. 19 BITENCOURT, César Roberto, op. cit., 2003. p.11. 20BITENCOURT, César Roberto, op. cit., 2003. p.11.

40

Assim, sendo a dignidade humana o fundamento máximo do modelo de Estado

Democrático de Direito, parece não haver dúvida de que a sanção penal só deve incidir

quando há concreta lesão ou perigo para o bem jurídico considerado fundamental para a

segurança jurídica. Nesse passo, o princípio da dignidade da pessoa humana funcionaria

como norte para o legislador, elegendo valores considerados fundamentais, dignos de

proteção penal, bem como impedindo que esse mesmo legislador viole direito fundamental, a

exemplo da dignidade da pessoa humana e da liberdade, tipificando condutas incapazes de

ameaçar bens jurídicos relevantes.

2.3.2 Princípio da subsidiariedade

Não há duvida de que o Direito Penal é o meio de controle dos conflitos sociais mais

gravosos do ordenamento jurídico. O ritual que se adota para a aplicação da lei penal, através

do processo-penal, com todas as circunstâncias de emblemático formalismo, é, em si, um

gravame pesado para o réu. Já bem antes de se submeter à pena, o réu sofrerá,

inevitavelmente, os estigmas conferidos pelo processo. Não há dúvida, também, de que o

Direito Penal não é o remédio para todos os males sociais, havendo outros meios para o

controle dos desvios sociais, bem mais eficazes que o Direito Penal, ao qual se recorrerá

quando necessária a aplicação de pena, para garantir a ordem pública.

Desse modo, o caráter subsidiário do Direito Penal, por sua vez, recomenda que a

intervenção estatal somente se justifica quando fracassarem todas as outras formas e meios de

controle social e de proteção do bem jurídico. Antes do acionamento da intervenção penal,

deve-se buscar em outras medidas protetoras (constitucional, civil, administrativa, tributária

ou trabalhista) a solução para o conflito social. Roxim, citado por Rogério Greco, assim

leciona:

A proteção de bens jurídicos não se realiza só mediante o Direito Penal, senão que nessa missão cooperam todo o instrumental do ordenamento jurídico. O Direito Penal é, inclusive, a última dentre todas as medidas protetoras que devem ser consideradas, quer dizer que somente se pode intervir quando falhem outros meios de solução social do problema – como a ação civil, os regulamentos de polícia, as sanções não penais, etc. Por isso se denomina a pena como a última ratio da polícica social e se define sua missão como proteção subsidiária de bens jurídicos.21

21 ROXIM apud GRECO, Rogério, op. cit., 2006. p.54.

41

2.3.3 Princípio da fragmentariedade

Nem todos os bens jurídicos constituem-se objeto da proteção penal; nem todas as

condutas lesivas são perseguidas pelo Direito Penal. O Princípio da Fragmentariedade, a seu

turno, sustenta que apenas as ações ou omissões mais graves, endereçadas contra bens

valiosos, podem ser objeto de criminalização.

Conforme esse princípio, a intervenção do Direito Penal somente se justifica quando

houver ofensas a bens fundamentais para subsistência do corpo social. Daí conclui-se que o

Direito Penal não pode nem deve e não deve penalizar toda e qualquer conduta, mesmo

aquelas altamente reprováveis e capazes de impor o castigo máximo do perdimento da alma,

conforme o credo religioso que o indivíduo adote, mas não se constituem em ofensas

socialmente relevantes. É que a sanção deve ser aplicada em casos especiais, que realmente

comprometam a paz social.

Sobre esse princípio, César Bitencourt leciona afirmando que:

Nem todas as ações que lesionam bens jurídicos são proibidas pelo Direito Penal, como nem todos os bens jurídicos são por ele protegidos. O Direito Penal limita-se a castigar as ações mais graves praticadas contra os bens jurídicos mais importantes, decorrendo daí o seu caráter fragmentário, uma vez que se ocupa somente de uma parte dos bens jurídicos protegidos pela ordem jurídica. [...] significa que o Direito Penal não deve sancionar todas as condutas lesivas dos bens jurídicos, mas tão- somente aquelas condutas mais graves e mais perigosas praticadas contra bens mais relevantes. 22

2.3.4 Princípio da ofensividade ou lesividade

Pelo princípio da ofensividade, o Direito Penal somente poderá atuar diante de lesões ou

ameaças de lesões aos bens jurídicos penais. Algo não poderia ser ilícito, se não foi

concretamente ofensivo ou perigoso ao bem jurídico a ser protegido. Para Luiz Flávio Gomes,

o princípio da ofensividade

[...] constitui-se, ademais, um instrumento exegético ou hermenêutico que permite não só adotar o ilícito penal (o injusto penal) de um sentido material garantista, senão também eliminar do âmbito do punível condutas que só formalmente são típicas, porém sem a conseqüente ofensa ao bem tutelado [...].23

A legislação penal brasileira e os nossos legisladores não nos mostram a presença do

Princípio da Ofensividade em toda sua tipologia. Os crimes de mera conduta, os crimes

22 BITENCOURT, César Roberto, op. cit., 2003. p.12. 23 GOMES, Luiz Flávio, op. cit., 2002. p.70 - 72.

42

formais e os crimes de perigo, que têm em comum a presença de uma presunção de

ofensividade, são exemplos disso. Assim é que a quantidade de tipos penais de perigo, para os

novos bens jurídicos tutelados pela norma penal (criminalidade difusa), para antecipação do

momento consumativo de vários delitos (crimes de mera conduta), constitui-se prova

inequívoca de que os princípios da ofensividade ou da lesividade – irrenunciáveis num Estado

Democrático de Direito – não vêm merecendo a devida atenção.

2.3.5 Princípio da insignificância

Para merecer a tutela penal, o bem jurídico há de se enquadrar na definição de relevante,

fundamental, significante. Do contrário, não se justificaria a imposição de pena quando o bem

jurídico supostamente violado não possui qualquer relevância social que recomende o

acionamento da máquina estatal.

Conforme entendimento doutrinário e jurisprudencial, as condutas que não chegam a

gerar dano aos bens jurídicos ou ainda se mostrem desprovidas de gravidade capaz de

produzir pouca ou insignificante lesividade material, afastam a aplicabilidade da lei penal,

ante a atipicidade penal em seu aspecto material. Como sustentado por Eugênio Raul

Zaffaroni e José Henrique José Henrique Pierangeli,

A insignificância da afetação exclui a tipicidade, mas só pode ser estabelecida através da consideração conglobada da norma: toda a ordem normativa persegue uma finalidade, tem um sentido, que é a garantia jurídica para possibilitar uma coexistência que evite a guerra civil (a guerra de todos contra todos). A insignificância só pode surgir à luz da finalidade geral que dá sentido à ordem normativa, e, portanto, à norma em particular, e que nos indica que essas hipóteses estão excluídas de seu âmbito de proibição, o que não pode ser estabelecido à simples luz de sua consideração isolada. 24

Seguindo essa mesma linha de pensamento, o Supremo Tribunal Federal, em sede de

Habeas Corpus, vem reconhecendo a atipicidade penal decorrente da insignificância e

inexpressividade da lesão jurídica provocada. Vejamos o enunciado que se segue:

E M E N T A: PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL - CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL - DELITO DE FURTO - "RES FURTIVA" (UM SIMPLES BONÉ) NO VALOR DE R$ 10,00 - DOUTRINA - CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - MERA EXISTÊNCIA DE INQUÉRITOS OU DE PROCESSOS PENAIS AINDA EM CURSO - AUSÊNCIA DE CONDENAÇÃO PENAL IRRECORRÍVEL - PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA NÃO-CULPABILIDADE (CF, ART. 5º, LVII) - PEDIDO DEFERIDO. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

24 ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique, op. cit., 2006. p. 483.

43

QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL. - O princípio da insignificância - que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado - que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: "DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR". - O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado cujo desvalor - por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social [...] HC 84687 / MS - MATO GROSSO DO SULHABEAS CORPUS. Relator(a): Min. CELSO DE MELLOJulgamento: 26/10/2004 Órgão Julgador: Segunda Turma Publicação DJ 27-10-2006 PP-00063EMENT VOL-02253-02 PP-00279 - Parte(s) PACTE.(S): CÉSAR DA SILVA IMPTE.(S): DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.25

Assim é que o princípio da insignificância serve de balizamento ao legislador, que

somente deve criminalizar condutas que tragam relevantes prejuízos sociais, ao tempo em que

orienta o intérprete e aplicador da norma penal a fazer excluir do âmbito de incidência da lei

penal as condutas que se mostrem desprovidas de gravidade, capazes de produzir pouca ou

insignificante lesividade social.

O Direito Penal, especialmente num Estado Democrático de Direito, que se rege por

postulados constitucionais, elegerá somente aqueles valores mais representativos para a

manutenção da conformação social ao estado de pax publica. Para tanto, deve imiscuir-se em

determinadas zonas nas quais inexiste o consenso ético-social a exigir sua intervenção, sob

pena de criar paradigmas de comportamento que desprezam, ao menos em nível ontológico, a

esfera de desenvolvimento da pessoa humana, já para não falar, em nível das concepções do

Estado de direito material, de um inegável conflito com os princípios fundamentais da

igualdade, dignidade, liberdade e da universalidade, que regem os direitos e liberdades

individuais.

25 Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/nova/pesquisa.asp >. Acesso em: 27 nov. 2006.

44

O princípio da intervenção mínima, e os demais que com ele se relacionam e se

harmonizam, pregam a modernização, humanização e racionalidade do Direito Penal, ao

postular a redução ao mínimo e, como último recurso, a utilização e intervenção desse ramo

do direito como instrumento de solução aos conflitos sociais. A proposta central desse

princípio é a mínima intervenção do Estado, com a máxima garantia do direito de liberdade

do cidadão, como dito alhures.

Todavia, os princípios ora abordados têm sido desprezados pelo legislador nacional,

que, em sua maioria, movidos por interesses político-eleitoreiros, incursionam pródiga e

demasiadamente na seara penal, promovendo a hipertrofia penal, criminalizando condutas que

carecem de relevância e que o ordenamento jurídico poderia enfrentar com outras sanções e

medidas extrapenais.

Como ilustração, poderíamos citar a Lei Ambiental (Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de

1998) que, em seu art. 29, inc. III, prescreve pena de detenção de 06 (seis) meses a 01 (um)

ano para quem, por exemplo, adquire espécime da fauna silvestre sem a devida autorização

da autoridade competente.

Outro exemplo, poderiamos extrair da Lei dos Crimes Contra a Ordem Tributária (Lei

n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990), que, em seu art. 7º, inc. II, tipifica a conduta de quem,

por exemplo, vende ou expõe a venda mercadoria cuja embalagem esteja em desacordo com

as prescrições legais ou que não corresponda à respectiva classificação oficial, prevendo pena

de detenção de 02 (dois) a 05 (cinco) anos ou multa. O limíte mínimo de pena para esse

crime equivale àquele da lesão cormporal gravíssima, previsto no art. 129, §2º, do Código

Penal.

Essas medidas são extremadas porque se resolveriam nas searas administrativas, ou seja, o

grau de lesão ao ordenamento jurídico não chega ao ponto de por seriamente em risco

qualquer um dos postulados constitucionais considerados relevantes, por isso poderiam ser

resolvidos apenas como ilícitos administrativos.

2.4 Crítica ao excesso legislativo em matéria penal

Como ressaltado nos capítulos precedentes, a intervenção mínima é um princípio

político-criminal moderna e contemporânea, que orienta e limita o poder de intervenção do

Estado. Nesse prumo, a nova ordem jurídica constitucional e o Estado Democrático de

45

Direito, por ela inaugurados no Brasil, pregam que o Direito Penal deve ser considerado a

ultima ratio da política social.

Contrariamente, todavia, do que esperavam os estudiosos da matéria, sendo oportuno

ratificar, o legislador infraconstitucional tem incursionado desenfreada e demasiadamente na

seara penal, instigado pelos reclamos da sociedade por penas mais elevadas e, de um modo

geral, por uma atuação mais intervencionista do sistema punitivo como um todo,

criminalizando condutas que carecem de relevância e que o ordenamento jurídico poderia

enfrentar com outras sanções, caracterizando, claramente, a hipertrofia do Direito Penal.

Ao contrário da falsa crença, o Direito Penal não é a solução para todos os problemas

sociais. O delito, como afirmado por Toledo, é “fenômeno social complexo que não se deixa

vencer totalmente por armas exclusivamente jurídico-penal.” 26

Não é, portanto, por meio da definição de novos tipos penais, do agravamento das

penas, da supressão de garantias do réu durante o processo, da acentuação da severidade da

execução das sanções ou aumentando significativamente o contingente policial nas ruas, que

se resolve o problema da criminalidade, que, como dito anteriormente, resulta de uma série de

fatores sociais que não têm sido atacados de frente pelas autoridades públicas e pela sociedade

civil organizada.

Como sabemos, não são poucas, evidentemente, as causas que concorrem para o

descontrole dos índices de criminalidade, que só fazem crescer. As estatísticas revelam o

aumento quantitativo da população, o baixo aproveitamento em todos os graus de ensino, a

ausência de capacitação profissional da maioria, os índices de desemprego. A Educação é

falha e os estímulos para uma boa formação moral são quase inexistentes, restam pequenos e

raros oásis.

A má formação das crianças e adolescentes, a desesperança, o mau exemplo da

impunidade, a ausência de punição severa em relação aos crimes graves, os domínios do

crime organizado, do crime globalizado e do narcotráfico, os incontáveis problemas sociais,

são só alguns fatores que, aliados ao descaso para com a Justiça, contribuem, de forma

decisiva, para a elevação dos índices de criminalidade. Essas causas, por óbvio, não

desaparecem como num passe de mágica, apenas com a edição de leis penais.

26 TOLEDO, Francisco Assis de. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p.5.

46

Partindo de uma concepção equivocada, os legisladores acreditam, como a maioria dos

cidadãos, que o Direito Penal deva atuar em diversas situações como se fosse a única

salvação, o melhor remédio, a solução para todos os males sociais, em especial a violência

criminal. Há de se reconhecer que a maior razão da propalada crise de efetividade da

jurisdição e, da pena, no Direito Penal brasileiro, decorre da ausência de uma adequada visão

do problema e da ausência de uma política criminal acompanhada da legislação

correspondente.

Ocorre, porém, que, na contra-mão da lógica e da razão, o Direito Penal brasileiro

insiste em atacar o problema enfocando as conseqüências, negligenciando ou mesmo

omitindo-se a atacar as causas.

Nesse particular, a realidade brasileira é sintomática, pois o legislador se prodigaliza na

criação de leis e mais leis penais, para que não sejam cumpridas. Leis confusas, pessimamente

elaboradas, que só fazem tumultuar as lides penais e as instâncias recursais, difundindo

insegurança e incerteza junto à população e aos profissionais compromissados com a

distribuição da justiça.

Notoriamente, o número das normas penais incriminadoras cresceu desmedidamente,

nas últimas décadas. Incontáveis condutas foram tipificadas (crimes contra a relação de

consumo, previstos na Lei n. 8.078, de 11 de novembro de 1990, crimes contra o meio

ambiente, previstos na Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, por exemplo). Outras tantas

condutas foram modificadas, outras tiveram suas penas agravadas (Estatuto do Desarmamento

– Lei n. 10.826, de 22 de dezembro de 2003, Lei de Repressão às Drogas, n. 11.343, de 23 de

agosto de 2006).

Em 1990, foi sancionada a Lei n. 8.072, dispondo sobre os crimes hediondos. A nova lei

endureceu sobremodo o tratamento legal a determinado número de delitos. Todavia, essas

medidas não foram o bastante para barrar o crescimento da criminalidade. Ao contrário, a

violência aumentou drasticamente, em especial os crimes de homicídio, tráfico ilícito de

entorpecentes, latrocínio e outros, incluídos no rol dos hediondos. E as coisas não param por

aí; o sistema prisional entrou em colapso, sucumbindo às incontáveis rebeliões que, tudo leva

a crer, tiveram como uma das causas o desespero e a desesperança dos condenados impedidos

de progredirem no regime prisional.

47

Apesar da edição de incontáveis normas penais, inclusive criminalizando-se condutas

que carecem de relevância, os índices de violência no Brasil cresceram e vêm crescendo

assustadoramente, o que nos faz concluir que a solução do problema da criminalidade ou sua

minoração demanda esforço conjunto, dos mais variados ramos do Estado e, da sociedade

civil organizada, no enfrentamento das causas originárias do delito e na adoção de políticas

criminais mais responsáveis e conseqüentes.

No enfrentamento do problema da criminalidade, há de se dar maior enfoque às

políticas de prevenção social. A Educação e a Socialização, o fortalecimento da família, o

bem-estar social e a qualidade de vida, são dimensões essenciais para uma prevenção

primária, que opera sempre a longo e médio prazo e se dirige a todos os cidadãos.

Não se pode subestimar o fato de que o Direito Penal atue como um instrumento

preventivo, mas não se deve supervalorizar sua aptidão nesta área. Como dito, o Direito Penal

não é a solução para todos os males sociais. A criminalidade se incrementa apesar de todas as

penas anteriores, sendo a cota de reincidência muito alta, o que demonstra a relativa ineficácia

da pena. Assim, a criminalidade sempre existirá em todas as sociedades, mas pode ser

amenizada, por meio de um bom combate, principalmente no tocante à miséria econômica e à

desestruturação familiar.

Há casos em que é imprescindível a atuação do Direito Penal. Todavia, somente quando

superados todos os outros recursos e quando os outros ramos do Direito se mostrarem

insuficientes, o Direito Penal deve intervir, como ultima ratio, e não como único instrumento

e em mão única.

As políticas sociais devem preceder às políticas criminais, e não o contrário, como

atualmente se vê. Portanto, urge que se adote o direito penal de intervenção mínima para o

modelo brasileiro, por imperativo absoluto de respeito aos primados constitucionais.

3 MEDIDAS DESPENALIZADORAS

Crime e pena são faces opostas de uma mesma moeda. Ambos estão umbilicalmente

ligados. Não há crime sem pena, nem pena sem crime. O crime, como conseqüência da

corrupção do gênero humano, é um fenômeno social que sempre acompanhou, acompanha e

acompanhará a História da humanidade. O delito está sempre presente, nunca foi extirpado

completamente da vida social de todos os povos e em todas as épocas.

O Direito Penal, por sua vez, tem sido o instrumento preferencialmente utilizado pelo

Estado brasileiro para enfrentar esse fenômeno social e global indesejado, mas ainda assim

real e inquietante. Por meio de normas de proteção social, o Direito Penal visa, assim, a

resguardar sob a sua égide bens socialmente relevantes, cumprindo seu papel de mantença da

paz social e de garantir a segurança jurídica.

Todavia, diferentemente dos demais ramos do Direito, que também pretendem à

pacificação, ao controle social e mantença da segurança jurídica, o Direito Penal executa seus

preceitos por meio da coerção, que tem na privação da liberdade e, em alguns sistemas, na

privação da própria vida, sua vertente mais grave.

Por meio da pena, notadamente da pena privativa de liberdade, eleita pelo direito penal

como coerção preferencial, não se tem comprovado a prevenção do delito, tornando-se ela

puramente retributiva, quando, na maioria dos casos, aplicada na medida injusta.

O modelo de Direito Penal em vigor, intervencionista e invasivo, tem sido alvo de

abalizadas críticas. A visão constitucional defendida, hoje, por inúmeros doutrinadores, em

todo o mundo, é plasmada no sentido de reconhecer que, embora um mal necessário, o Direito

Penal somente deve intervir com a sanção jurídico-penal em caráter subsidiário, quando não

existam outros remédios jurídicos, sendo a pena, especialmente a privativa da liberdade, a

ultima ratio do sistema.

A corrente político-criminal mais renovada e contemporânea defende e aponta a adoção

do princípio da intervenção mínima e a utilização de medidas despenalizadoras, como

49

alternativas para se alcançar um modelo penal mais moderno e compatível com a nova ordem

jurídica constitucional em vigor e o Estado Democrático de Direito por ela inaugurado no

Brasil.

Sobre o princípio da intervenção mínima, tratamo-lo mais detidamente no capítulo

antecedente. Neste, dissertaramos sobre medidas despenalizadoras: conceito, justificação e

espécies. Preliminarmente, para facilitar a compreensão do tema, necessário se faz discorrer,

não exaustivamente, sobre pena: conceito, finalidade, evolução histórica.

3.1 Pena

O Direito Penal é instrumento utilizado pelo Estado para enfrentar a criminalidade. A

pena, por sua vez, é o meio para atingir a segurança jurídica que almeja o Direito Penal,

embora alcance valores que somente podem ser protegidos pela coerção penal.

A pena é um mal inevitável. Assim como o crime, a pena sempre existiu.

Os primeiros relatos bíblicos apontam para a correlação crime (pecado) e pena (castigo),

senão vejamos o que registra o terceiro e quarto capítulos do Gênesis1:

O Criador estabeleceu uma norma no paraíso a ser seguida pelo casal Adão e Eva, qual

seja a de não comer do fruto da árvore do bem e do mal. Conhecemos o que ocorreu. Adão e

Eva desobedeceram à norma (pecaram), comendo do fruto proibido e, como pena (castigo),

foram expulsos do jardim do Éden. Essa foi a primeira tragédia narrada na bíblia.

A segunda tragédia, decorrente da primeira, igualmente registrada no livro de Gênesis,

capítulo quarto2, foi o assassinato de Abel pelo próprio irmão, Caim. Ao crime (pecado)

cometido por Caim, seguiu-se uma pena (castigo): degredação.

A auto-preservação é uma característica comum a todos os povos e grupos sociais. Por

mais rudimentar, primitivo ou incivilizado seja o grupo social, haverá normas de

comportamento, nem sempre escritas, tendentes a assegurar um mínimo de organização e

segurança ao grupo, as quais todos os membros devem observância. A violação das normas

(crime, pecado) reclama a aplicação de uma pena (castigo).

1 BÍBLIA de Estudos Genebra, op. cit., 1999. p.14. 2 BÍBLIA de Estudos Genebra, op. cit., 1999. p.15.

50

3.1.1 Conceito de pena

O conceito doutrinário de pena varia conforme o enfoque que se dá a aspectos

relacionados à sua finalidade. Para os filiados à doutrina tradicional, adeptos das teorias

absolutistas de Kant e Hegel, a definição de pena contempla seu caráter retributivo, sendo a

sanção penal considerada um fim em si mesma. Para outros, corrente majoritária, destaca-se

o caráter preventivo e pedagógico da sanção penal, como se verá adiante.

Heleno Cláudio Fragoso, por exemplo, bem destaca o caráter retributivo da pena, ao

conceituá-la como a perda de bens jurídicos, impostos pelo órgão da justiça a quem comete

crimes.3

Para a Escola Clássica, a pena é um mal imposto ao indivíduo merecedor de castigo, em

vista de uma falta considerada crime, que voluntária e conscientemente cometeu4.

A grande maioria dos autores defende e realça o caráter preventivo e pedagógico da

pena, embora não negue, e até mesmo reconheça, que a pena é um castigo, uma retribuição ao

mal cometido. Nessa linha de pensar, destaca-se César Bitencourt5, para quem “[...]

conceitualmente, a pena é um castigo. Porém, admitir isso não implica, como conseqüência

inevitável, que a função, isto é, o fim essencial da pena seja a retribuição [...]”.

Complementando essa definição, Ferreira acrescenta que a pena é uma punição imposta ao

infrator da lei penal, objetivando, todavia, exemplá-lo e evitar a prática de novas infrações.6

Da síntese das definições apresentadas, poder-se-ia conceituar pena, ou sanção penal,

como sendo uma reprimenda aflitiva prevista em lei e imposta pelo Estado, em processo

judicial alicerçado no contraditório, a quem pratica conduta previamente definida como

infração penal.

3.1.2 Finalidade da pena

O sentido, função e finalidade das penas têm sido analisados conforme a concepção

teórica adotada. Várias são as teorias existentes sobre a função e a finalidade da pena. Entre

3 FRAGOSO, Heleno Cláudio, op. cit., 2003. p. 348. 4 ARAGÃO, Antonio Moniz Sodré de. As três escolas penais. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1938. p.263. 5 BITENCOURT, César Roberto, op. cit., 2003. p.66 6 FERREIRA, Octávio Dias de Souza. Carandiru, violência e crise no sistema penal. IBCCRIM, São Paulo, Revista dos Tribunais, n.126, ano 11, p.14 -15, maio 2003.

51

elas, destacam-se, conforme doutrina tradicional: a teoria absoluta ou retributiva, a teoria

preventiva e a teoria mista ou unificadora da pena. Além dessas, uma nova e moderna teoria

tem se revelado, qual seja: teoria da prevenção geral positiva, que se subdivide em limitadora

e fundamentadora.

Analisemos, pois, cada uma dessas teorias penais e passemos a conhecer seus principais

defensores.

3.1.2.1 Teoria absoluta ou retributiva da pena

Pela concepção retributiva, a pena é o combate do mal com o mal. É a retaliação, o

castigo e a expiação, uma exigência absoluta de justiça, com fins aflitivos e retributivos,

opondo-se a qualquer finalidade utilitária, já que entendida como um fim em si mesma. Prega-

se que o infrator deve expiar suas faltas pelo sofrimento de um mal equivalente àquele que

causou a terceiro. Analisando a teoria, César Roberto Bitencourt preleciona:

Segundo o esquema retribucionista, é atribuída à pena, exclusivamente, a difícil incumbência de realizar a Justiça. A pena tem como fim fazer Justiça, nada mais. A culpa do autor deve ser compensada com a imposição de um mal, que é a pena, e o fundamento da sanção estatal está no questionável livre arbítrio, entendido como a capacidade de decisão do homem para distinguir entre o justo e o injusto.7

As chamadas teorias absolutas apóiam-se na filosofia do idealismo alemão,

especialmente em Kant e Hegel, para quem a pena encontra seu fundamento somente em sua

referência ao delito; segundo sua gravidade determina-se sua quantia como que se satisfazem

as exigências do ordenamento jurídico e a Justiça. Assim, como a boa ação merece

reconhecimento, a má ação requer reprovação e compensação.

No entendimento de Kant, o réu deve ser castigado tão somente pelo fato de ter

cometido o delito. Com isso, negava-se qualquer consideração sobre a utilidade da pena para

ele ou para a sociedade, retirando toda e qualquer função preventiva - especial ou geral - da

pena. "A aplicação da pena decorre da simples infringência da lei penal, isto é, da simples

prática do delito", verbera César Roberto Bitencourt 8.

Ao negar qualquer caráter utilitário ou preventivo da pena, Kant propunha que o

Homem não poderia, em respeito à honra e à sua liberdade, ser tratado como um animal,

como um meio para alcançar um fim, porque jamais um Homem poderia ser tomado como

7 BITENCOURT, César Roberto, op. cit., 2003. p.68. 8 BITENCOURT, César Roberto, op. cit., 2003. p.72.

52

instrumento dos desígnios de outro. Para Kant, o Homem não é instrumento para consecução

de qualquer fim, de modo que castigar o delinqüente com alguma base de utilidade social não

é eticamente permitido.

A pena jurídica, nessa concepção, não pode nunca ser aplicada como um simples meio

de procurar outro bem, nem em benefício do culpado e ou da sociedade, devendo ser contra o

culpado pela simples razão de haver ele delinqüido.

Em síntese, a pena, entendida pela ótica retribucionista, esgota seu sentido no mal que

se faz sofrer ao delinqüente, como compensação ou expiação do mal do crime, revelando-se

estranha e inimiga de qualquer tentativa de socialização do delinqüente e de restauração da

paz jurídica da comunidade afetada pelo crime.

Em suma, inimiga de qualquer atuação preventiva e, assim, da pretensão de controle e

domínio do fenômeno da criminalidade, essa idéia de pena, como realização implacável da

Justiça e expiação da culpa, desconhece por completo o fato de que a pena pode, em certas

circunstâncias, ser uma expiação desnecessária, inútil, para o agente que, por outros meios

mais eficazes, já reparou ou remediou as conseqüências danosas do crime. Além disso, pode

significar um ônus dispensável para a sociedade.

A teoria retributiva da pena prevaleceu por longo tempo e foi defendida, segundo

Bitencourt, por vários doutrinadores, entre os quais Carrara, Petrocelli, Maggiore e Bettiol, na

Itália; Binding, Maurach, Welzel e Mezger, na Alemanha, mas, principalmente, respaldada

por Kant e Hegel9.

Na atualidade, a teoria retributiva da pena não encontra defensores entre os

doutrinadores modernos.

3.1.2.2 Teoria preventiva ou relativa da pena

As teorias relativas atribuíram à pena a função dissuasória e disciplinadora, tendente a

prevenir a prática do delito, intimidando-se os destinatários da norma jurídica e todos os

membros da comunidade pela ameaça da pena. A pena, embora considerada um mal

necessário, encontra sua razão de existir pela necessidade de prevenir que ocorram novos

9 BITENCOURT, César Roberto. Falência da pena de prisão – causas e alternativas. São Paulo: Saraiva, 2001. p.116.

53

delitos. A pena, assim, justificar-se-ia por sua utilidade, qual seja: a de impedir o

cometimento do crime, emendar e intimidar o infrator, sob o escopo de proteger a

coletividade.

A teoria da prevenção baseia-se no efeito psicológico que a ameaça da coação penal

produz, primeiramente no delinqüente e, na coletividade, em segundo plano. Fueurbach foi

quem formulou a teoria da coação psicológica, expressão jurídico-científica da prevenção

geral. A ameaça (coação psicológica) agiria como um meio profilático, dissuasório e

intimidador, agindo como inibidor do crime, restabelecendo, por um lado, o princípio da

autoridade, mitigado pelo ato criminoso, representando, por outro, contramotivo aos

possíveis violadores da norma penal. Foi também Fueurbach quem subdividiu a função

preventiva da pena em geral e especial.10

A pena não pode ser justificada olhando-se para o passado, como se ela fosse um fim

em si mesma ou um valor, como preferem os adeptos da teoria retributiva vingativa, e sim

enquanto meio, para fins que dizem respeito ao futuro. Nessa linha de pensamento, Hobbes,

citado por Ferrajoli, afirma:

[...] não é necessário preocupar-se com o mal enfim passado, mas sim com o bem futuro, ou seja, não é lícito infligir penas senão com o objetivo de corrigir o pecador ou de melhorar os outros valendo-se da advertência da pena imposta... A vingança, em não se referindo ao futuro e sendo fruto de glória vã, é um ato contrário à razão.11

Destacam-se, entre os defensores da teoria da prevenção geral da pena, Beccaria,

Bentham, Feuerbach, Filangieri e Schopenhauer.

Como instrumento de prevenção, a pena deve produzir efeitos inibidores e pedagógicos

sobre a coletividade, protegendo-a da ação do infrator, a quem se pretende corrigir. Daí a

subdivisão da teoria preventiva em prevenção geral e prevenção especial.

3.1.2.2.1 Prevenção geral

O caráter de prevenção geral baseia-se na idéia da intimidação e da ameaça psicológica

que a pena produz ou deveria produzir, em todos os membros da comunidade e, nos efeitos

10 BITENCOURT, César Roberto, op. cit., 2003. p.76. 11 HOBBES apud FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão – teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p.241 - 242.

54

dissuasórios e pedagógicos da ameaça, qual seja, solução ou pelo menos redução do problema

da criminalidade. A ameaça da pena produz ou deveria produzir no indivíduo e,

conseqüentemente, na coletividade, impulso e motivação contrários ao cometimento do crime.

A lógica da teoria é a seguinte: o Homem é um ser racional e pragmático, capaz de

calcular e ponderar as vantagens e desvantagens que sua conduta poderia produzir. No

exercício do livre arbítrio, pode escolher entre o certo e o errado, entre o bem e o mal, entre o

permitido e o ilegal. Pressupõe-se que, para esse indivíduo racional e lógico, não será

razoável nem vantajosa a prática do delito, ante a imposição da pena que lhe poderia sobrevir.

Mais vantajoso será para ele controlar seus impulsos, instintos e desejos que o levassem a

adotar uma visão a favor do delito.

A teoria da prevenção geral estaria, assim, fundada em duas idéias básicas: a)

intimidação, medo e coação psicológica que a ameaça ou aplicação da pena produzem no

homem racional; b) capacidade de ponderação e racionalidade do Homem. Leciona

Bitencourt que

O pressuposto antropológico supõe um indivíduo que a todo momento pode comparar, calculadamente, vantagens e desvantagens da realização do delito e da imposição da pena. A pena, conclui-se, apóia a razão do sujeito na luta contra os impulsos ou motivos que o pressionam a favor do delito e exerce uma coerção psicológica ante os motivos contrários ao ditame do Direito. 12

O destinatário principal da mensagem ameaçadora da norma penal, segundo a teoria da

prevenção geral, não seria o delinqüente, individualmente considerado, mas a coletividade,

com a intimidação indireta de todos os seus membros.

As idéias centrais dessa teoria têm sido amplamente admitidas pelos países que adotam

a pena de morte como instrumento de combate à criminalidade, a exemplo dos Estados

Unidos. O legislador brasileiro, por sua vez, fundado nessas mesmas idéias, tem buscado no

recrudescimento desproporcional das penas o objetivo de alcançarmos a tão almejada solução

do problema da criminalidade em nosso país.

Sabe-se, todavia, que nem a pena de morte nem o recrudescimento desproporcional das

penas mostraram-se, até hoje, capazes de reduzir, nem sequer a patamares razoáveis, o índice

de criminalidade que cresce na medida em que o Estado se distancia do seu fim social,

deixando aumentar, significativamente, o fosso social entre as classes sociais. Sabe-se,

12 BITENCOURT, César Roberto, op. cit., 2003. p.77.

55

também, que a ameaça da pena não produz o efeito pretendido entre criminosos contumazes.

Tanto é assim, que os presidios e cadeias públicas estão cada vez mais abarrotados de presos,

muitos deles reincidentes.

3.1.2.2.2 Prevenção especial

Ao passo que a prevenção geral focaliza a coletividade, com a intimidação de todos os

membros do grupo social, a prevenção especial, baseada no postulado da moderna política

criminal, cuida da prevenção do delito por atuação sobre o autor, dirigindo-se exclusivamente

ao delinqüente, para que este não volte a delinqüir. Não busca a intimidação generalizada

nem a retribuição do fato praticado, visando apenas àquele indivíduo que já delinqüiu, para

fazer com que não volte a transgredir as normas jurídico-penais.

Pretende o Estado que a aplicação dessa teoria realize o objetivo de evitar crimes

futuros, mediante a ação positiva e negativa. A ação positiva consistiria na correção do autor

através da execução da pena, no curso da qual o apenado aprenderia a se conduzir no futuro,

com responsabilidade social e sem reincidir. A ação negativa consistiria na neutralização do

autor do delito através da prisão, onde estaria, em tese, impedido de praticar novos fatos

puníveis contra a coletividade social. Nessas duas ações (positiva e negativa) seriam

alcançados três fins da pena: intimidação, ressocialização e asseguramento.

A despeito das críticas, a teoria da prevenção especial tem qualidades e méritos,

especialmente por conta de seu caráter humanista, pois põe acento no indivíduo, considerando

suas particularidades, permitindo uma melhor individualização do remédio penal, bem como

sua atuação específica, o que possibilita o aperfeiçoamento do trabalho de reinserção social do

apenado.

3.1.2.3 Teoria mista ou unificadora da pena

Resultante da crítica às teorias absolutas e relativas da pena, a teoria mista ou

unificadora, sem desprezar os principais aspectos das anteriores e delas extraindo o que de

melhor oferecem, busca reunir em um conceito único os fins da pena. A doutrina unificadora

defende que a retribuição e a prevenção, geral e especial, são distintos aspectos de um mesmo

fenômeno: a pena.

56

Inicialmente, a teoria mista mostrou-se apenas como produto, justaposição das teorias

anteriores, reproduzindo as falhas de seu fracasso. Num segundo momento, a teoria mista,

atenta às novas concepções do Direito Penal, buscou estabelecer fins preventivos, de acordo

com os diversos estágios da norma penal (cominação, aplicação e execução).

Essa nova concepção da teoria unificadora ou mista é a que tem mais alcance na

atualidade, sendo adotada pelo Código Penal Brasileiro.

3.1.2.4 Teoria da prevenção geral positiva

Como as demais, a teoria unificadora ou mista da pena não logrou alcançar o sucesso

pretendido, tornando-se alvo de não poucas críticas.

Os doutrinadores têm se lançado no estudo e pesquisa da problemática, em busca de

alcançar se não a perfeita, pelo menos a melhor e mais compatível teoria sobre os fins da pena

que se ajuste e se compatibilize com o atual estágio do Direito Penal e com a complexidade

dos problemas enfrentados por esse ramo específico do Direito.

Dessa incessante busca de aperfeiçoamento doutrinário surge a teoria da prevenção

geral positiva, que se apresenta com duas subdivisões: prevenção geral positiva

fundamentadora e prevenção geral positiva limitadora. A primeira não visa à intimidação ou

à proteção de bens jurídicos. Busca, apenas, a afirmação de vigência da norma perante a

sociedade. Para a segunda, a prevenção geral deve expressar-se com sentido limitador do

poder punitivo do Estado.

Para Miguel Reale Júnior, a prevenção geral fundamentadora, denominada como uma

idéia de reafirmação do ordenamento, cria para o Direito Penal uma função ético-social de

garantia de valores e, para a pena, a função de reafirmar a ordem violada, reforçando, junto

aos membros da coletividade, a validade das normas. Conforme aponta o autor, esta

concepção aproxima-se da teoria hegeliana, para a qual a pena é negação da negação do

direito.13

A prevenção geral positiva limitadora, adotada por César Bitencourt, preconiza que a

pena deve ser imposta com a finalidade de prevenção geral, porém, dentro dos limites do

13 REALE JÚNIOR, Miguel, op. cit., 2003. p.55.

57

Direito Penal do fato e da proporcionalidade, observados o procedimento legal e as garantias

jurídico-constitucionais.14

Nenhuma das teorias que pretendem justificar a finalidade da pena está imune à crítica.

Esta, por sua vez, tem motivado os estudiosos do assunto a buscarem a teoria que se mostre

factível e compatível com o Direito Penal Contemporâneo e melhor equacione os problemas

de sua aplicação.

3.1.3 Evolução histórica e espécies

Havíamos afirmado, no tópico 3.1 deste capítulo, que a pena é um mal inevitável e

necessário. Ela foi, desde os tempos primitivos, e será, por toda a existência humana, aplicada

às condutas consideradas violadoras de normas de caráter penal e lesivas à paz e à segurança

jurídica e social.

Como punir na justa medida e quais espécies de pena se mostram mais compatíveis

com o atual estágio da evolução social, política, cultural, jurídica, tecnológica e econômica da

sociedade moderna, foram e serão uma equação difícil de solucionar.

Neste tópico, fazemos breve incursão nos vários períodos da História da pena e do

Direito Penal, para obtermos uma panorâmica e comparativa visão sobre como e quais

espécies de penas foram e são aplicadas, prevaleceram e prevalecem, nas civilizações

passadas e na moderna sociedade globalizada.

A doutrina tradicional tem apontado diversas fases na evolução da pena, tais como a da

vingança divina, da vingança privada e da vingança pública. Todavia, não se pode estabelecer

entre as diversas fases da pena marco temporal divisório, isso porque, embora havendo

predomínio de uma sobre a outra, em determinados momentos da História, essas fases não se

sucederam às outras e até mesmo conviveram em justaposição, por largo período. Até mesmo

nos dias atuais, não se pode descartar que, em determinados países, especialmente na África,

onde o Estado é disforme, o ordenamento jurídico é precário e os grupos sociais se vêem

envoltos em constantes guerras tribais, as penas não assumem feições de vingança privada.

Assim, a divisão cronológica é meramente didática e sem rigor de natureza espacial e ou

temporal.

14 BITENCOURT, César Roberto, op. cit., 2003. p.88.

58

3.1.3.1 Fase da vingança divina

Na lição de César Bitencourt, a pena com feição de vingança divina remonta às

civilizações primitivas, evoluindo, posteriormente, para a vingança privada.15

Àquela época, a religião e as crenças místicas tinham influência decisiva na vida dos

povos antigos. A repressão ao delinqüente, nessa fase, tinha por objetivo aplacar a “ira” da

divindade ofendida pelo crime, bem como castigar o infrator. A pena era aplicada como meio

de agradar e satisfazer os deuses. A administração da sanção penal ficava a cargo dos

sacerdotes que, como mandatários dos deuses, encarregavam-se da justiça. Aplicavam-se

penas cruéis, severas, desumanas.

Conforme ensinamentos de Henny Goulart, a transgressão era considerada como ato de

grave afronta à divindade, que, por seus oráculos, reclamava sanções igualmente graves, entre

elas a eliminação ou expulsão do transgressor, sacrifício que se oferecia aos deuses ”.16

No Antigo Oriente, a religião confundia-se com o Direito e, assim, os preceitos de

cunho meramente religioso ou moral tornavam-se leis em vigor. Legislação típica dessa fase é

o Código de Manu, mas esses princípios foram também adotados na Babilônia, no Egito

(Cinco Livros), na China (Livro das Cinco Penas), na Pérsia (Avesta). A nação de Israel, por

exemplo, ainda na atualidade, faz-se reger por normas rígidas de cunho divino (leis mosaicas),

que remontam ao grande líder Moisés e aos patriarcas: Abraão, Isaque e Jacó.

Assim é que, nas culturas milenares distanciadas no tempo, a exemplo da China e da

Índia, conheceu-se a pena de morte, a de desterro, o açoitamento, o espancamento e a tortura,

espécies de pena impostas como manifestação da vingança divina.

3.1.3.2 Fases da vingança privada

A idéia da pena nasceu do sentimento de vingança, inicialmente na forma privada e,

posteriormente, foi alçada à categoria de direito. Os grupos sociais primitivos não dispunham

de ordenamento jurídico organizado como se tem hoje. Não existiam normas prevendo os

crimes e as penas a eles cominadas, e a repressão, reação ao crime e sua punição, era feita

pelo próprio ofendido, parentes ou grupo a que pertencia a vítima. Na fase da vingança

15 BITENCOURT, César Roberto, op. cit., 2003. 16 GOULART, Henny. Penologia. São Paulo: Brasileira de Direito, 1975. p.27.

59

privada, punia-se o crime com outro crime de igual ou maior gravidade, atingindo não só o

ofensor, como todo o seu grupo.

Nas civilizações antigas, quando um indivíduo se sentia lesado porque tivera seu direito

violado, surgia então o desejo de vingança, vingar com as próprias mãos, a vingança privada,

olho por olho dente por dente, máxima direcionada ou ao cidadão que cometesse algum

crime, ou a um ente de sua família, que pagaria pelo crime que ele cometera.

Em resposta ao crime praticado, o revide ocorria sem limites, inexistindo

proporcionalidade entre a agressão e o revide. A vingança de sangue, que refletia a

organização social primitiva, foi um dos períodos em que a vingança privada se constituiu na

mais freqüente forma de punição adotada pelos povos primitivos. A vingança privada

constituía uma reação natural e instintiva, por isso foi considerada apenas uma realidade

sociológica, não uma instituição jurídica.

A vingança de sangue consistia num direito/dever assegurado a um membro de

determinada família, de um clã ou de uma tribo, de matar o ofensor ou um membro de sua

família ou grupo, como pena pelo crime originariamente cometido.

As leis mosaicas, conforme relato registrado no capítulo 35 do livro dos Números, da

Bíblia,17 previam a separação de cidades refúgio para abrigar o homicida que matasse alguém

involuntariamente. Refugiado nessas cidades, o homicida involuntário não poderia ser

alcançado e ferido pelo vingador do sangue. O homicida doloso, por sua vez, estaria à mercê

do vingador do sangue, não podendo ser protegido pelas regras então vigentes.

A vingança privada, com o evoluir dos tempos, produziu duas grandes regulamentações

moderadoras da pena, tendentes a abrandar o furor da vingança e estabelecer um mínimo de

proporcionalidade entre o crime e seu revide: o talião e a composição.

Assevera César Bitencourt que a lei de talião foi o maior exemplo de tratamento

igualitário entre infrator e vítima, representando, de certa forma, a primeira tentativa de

humanização da sanção criminal. O Direito talional, por imperativo social, evoluiu para a

17 BÍBLIA de Estudos Genebra, op. cit., 1999. p.197.

60

composição, sistema através do qual o infrator comprava sua liberdade com dinheiro, gado,

trabalho, armas etc., livrando-se do castigo.18

Os castigos físicos passavam então a ser substituídos por outras modalidades de pena,

menos cruéis e desumanas. A vingança privada perdurou até ser substituída pelas penas

públicas.

3.1.3.3 Vingança pública

As deficiências no ato de julgar, evidenciadas pelos membros da própria sociedade,

aliadas à arbitrariedade do julgamento do ato privado e outros fatores ligados à subjetividade

do agente no propósito de vingança privada, bem como o processo de evolução das

sociedades, eclodiram da necessidade de um instrumento desvinculado das partes envolvidas

no fato, para realização do julgamento. Esses são alguns dos fatores que contribuíram para a

assunção do Estado, na nebulosa tarefa de julgar.

O Estado suprimiu a autodefesa e avocou a si o direito de dirimir os litígios existentes

entre os indivíduos. A passagem da vingança privada para a monopolização da justiça nas

mãos do Estado, segundo Hélio Tornaghi, é estabelecida de forma que,

[...] Um dia o Estado disse: Não há mais esta ação, ela esta proibida, é ilícita, mas em lugar dela eu instituo outra, permitindo agir perante mim para exigir de mim que eu faça justiça, a ação se converteu num direito subjetivo do autor em face do Estado, ou seja, num direito subjetivo publico: o direito de exigir do Estado que faça justiça. 19

Todavia, o Estado seguinte à vingança privada não foi o Estado com a feição

humanitária, democrática e constitucional, que hoje conhecemos, mas um Estado totalitário,

não menos arbitrário e cruel que os algozes privados.

De fato, houve uma maior organização social, especialmente com o desenvolvimento do

poder político, surgindo, no seio das comunidades, a figura do chefe ou da assembléia. A pena

transforma-se em um sanção imposta em nome de uma autoridade pública, representativa dos

interesses da comunidade. Não era mais o ofendido ou mesmo os sacerdotes os agentes

responsáveis pela punição, e sim as autoridades constituídas (soberano, rei, príncipe e/ou

regente).

18 BITENCOURT, César Roberto, op. cit., 2003. p.22. 19 TORNAGHI, Hélio, op. cit., 1959. p.219.

61

A pena de morte continuou sendo a sanção mais largamente difundida e aplicada, por

motivos injustos e inaceitáveis. Outras penas bárbaras continuaram a ser aplicadas, como a

mutilação do condenado, confisco de seus bens, entre outras não menos cruéis. As sanções

abusivas e indignas passaram a ser praticadas pelo Estado, não mais por terceiros. Em nome

da lei, o barbarismo campeou disfarçado. Esse foi um tempo de desespero, uma era de trevas

para a humanidade, Idade Média do Direito Penal.

Da vingança privada para a vingança pública, patrocinada pelo Estado, mudou apenas o

carrasco.

Os ideais e práticas absolutistas foram, implacável e incansavelmente, criticados e

combatidos por pensadores que defendiam urgente modificação no sistema penal, adoção dos

princípios humanistas na aplicação da pena e conseqüente extinção das sanções corporais

destinadas a causar o máximo de dor e suplício.

O período humanitário transcorreu durante o lapso de tempo compreendido entre 1750 e

1850, caracterizando-se como uma reação à arbitrariedade da administração da justiça penal e

contra o caráter atroz das penas. Os ideais dos iluministas e os postulados da Revolução

Francesa contribuíram, decisivamente, para firmar novas concepções no campo penal e, com

elas, as doutrinas acerca do fundamento do direito de punir.

Os escritos de Montesquieu, Voltaire, Rousseau e D’Alembert, prepararam o advento

do humanismo e o início da radical transformação liberal e humanista do Direito Penal.

Dentre os ícones do movimento reformador do Direito Penal, destaca-se a figura de Cesare

Bonessana, Marquês de Beccaria, seguidor das idéias de Rousseau e Montesquieu, autor do

famoso livro Dos delitos e das penas (1764), a quem se tem atribuído a criação da idéia

utilitarista e o movimento de renovação do Direito Penal da época, que deu origem à Escola

Clássica, de que fizeram parte Carmignani, Carrara, Feuerbach, Filangieri, Pessina,

Romagnosi, entre outros.

Após decorrido um longo período da História, em que prevalecia a pena de morte e as

penas aflitivas e corporais, a pena privativa de liberdade desponta como a rainha das penas do

moderno Direito Penal, propondo-se, inclusive, a fins preventivos da criminalidade e

regeneração do condenado. Embora se possa encontrar registros de encarceramento desde a

antigüidade, a prisão somente surgiu, como pena, em meados do século XVIII. Até então, a

62

privação da liberdade era adotada com um sentido custodial. Bitencourt20 relembra que até o

fim do século XVIII, a prisão serviu somente aos objetivos de contenção e guarda do réu, para

preservá-los, fisicamente, até o momento de ser ele julgado ou executado.

A pena de morte, todavia, não foi banida em todos os continentes. Os Estados Unidos e

a China, por exemplo, apesar dos protestos das organizações internacionais de direitos

humanos, ainda adotam a pena de morte como espécie de pena prevista em seu ordenamento

jurídico.

A Constituição da República Federativa do Brasil, por sua vez, veda expressamente, em

seu art. 5º, inc. XLVII: a) pena de morte, salvo em caso de guerra; b) de caráter perpétuo; c)

de trabalhos forçados; d) de banimento; e) penas cruéis. O texto constitucional prevê, no inc.

XLVI do mesmo artigo, as seguintes espécies de pena: privação ou restrição da liberdade;

perda de bens, multa, prestação social alternativa e suspensão ou interdição de direitos.

Todavia, a falsa idéia de que se pode combater a criminalidade apenas com leis mais

severas e penas privativas de liberdade mais longas tem levado o legislador

infraconstitucional à chamada hipertrofia do Direito Penal, com a tipificação de condutas que

carecem de relevância e escolha da prisão como espécie de pena principal.

Ocorre, no entanto, que as penas privativas de liberdade não se mostraram capazes de

alcançar os fins pretendidos por seus idealizadores. Os fins preventivos não foram alcançados,

uma vez que os índices de criminalidade se encontram em franca ascensão. O sistema

prisional, por seu lado, não reforma, nem ressocializa, muito menos reeduca o condenado; a

reincidência também tem se mostrado elevada.

Sobre o efeito estigmatizador e marginalizador da pena de prisão, Barbero Santos,

citado por Raúl Cervini, assim verbera:

[...] a prisão é aterrorizadoramente opressora e seus muros separam o interno da sociedade e a sociedade do interno. Esse não apenas perde o direito à liberdade de deslocar-se, mas praticamente todos os seus direitos: de expressão, reunião, associação, sindicalização, escolher trabalho, receber um salário semelhante ao do trabalhador livre, assistência social etc., e até de desenvolver normalmente sua sexualidade. 21

20 BITENCOURT, César Roberto, op. cit., 2003. p.24. 21 SANTOS Barbero apud CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. 2. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p.46.

63

De fácil constatação é a falência da pena de prisão, especialmente nas penas de curta

duração. Sabe-se, igualmente, que nossas prisões, superlotadas e em condições desumanas,

são “universidades do crime”.

Diante desse quadro, qual caminho seguir? Suprimir a pena de prisão ou abrandar seus

furos, destinando-a apenas aos delitos graves e aos criminosos de manifesta periculosidade?

A pena de prisão é um mal necessário e, cogitar-se sua abolição é lamentável engano e

inegável utopia dos abolicionistas que pregam o fim do Direito Penal.

Há de se buscar alternativas ao confinamento por delitos de pequena e média

potencialidade ofensiva. A lei n. 9.714/98 inaugurou significativa transformação no Direito

Penal, ao estabelecer medidas alternativas à privativa de liberdade.

A verdadeira revolução, na seara penal, ocorreu com o advento da Lei n. 9.099/95, que,

em seu texto, inaugurou as chamadas medidas despenalizadoras, sobre as quais discorreremos

com maior abrangência, no tópico seguinte deste capítulo.

3.3 Das medidas despenalizadoras

Na lição de Raúl Cervini, despenalização significa diminuir a pena de um delito sem

descriminalizá-lo, quer dizer, sem tirar do fato o caráter de ilícito penal. Na despenalização, o

fato não perde seu caráter delituoso, mas se procura evitar, ou restringir, ou dificultar, a

aplicação e a execução das penas, especialmente as privativas de liberdade.22

Nesse conceito estaria envolvida não só a possibilidade de diminuir a pena, mas

também outras forma de atenuá-la ou mesmo substituí-la por medidas de cunho alternativo,

como por exemplo: prisão de fim de semana, prestação gratuita de serviços de utilidade

pública, multa reparatória, indenização à vítima, entre outras que poderiam ser aplicadas,

inclusive em substituição não só da pena, mas do próprio processo penal, como previsto na

Lei n. 9.099/95.

3.3.1 Justificativa e fundamento teórico

Como dito alhures, é entendimento corrente que as penas privativas de liberdade, ao

contrário do que se imaginou, não trouxeram nem trarão os resultados pretendidos, quer na

22 Ibid., 2002. p.85.

64

prevenção e contenção do avanço da criminalidade, quer na ressocialização ou recuperação

dos delinqüentes; não bastasse, o custo da sua execução: altíssimo, para o erário.

O Judiciário vê-se cada vez mais sobrecarregado. Processos e procedimentos se

arrastam lentos, com uma possibilidade recursal extremamente generosa. O número de

processos, nesse rumo, é assustador, sendo difícil antever-lhes o fim. As pautas de audiências,

estranguladas, sendo disputadas por processos que envolvem delitos graves e de média

gravidade. Não há nelas espaço, para o desenvolvimento da instrução criminal no prazo

devido; muitos criminosos de elevada periculosidade são postos em liberdade por excesso de

prazo na formação da culpa, o que faz aumentar a sensação de impunidade.

O sistema penal e prisional então em vigor mostrou-se falido, ineficaz, ineficiente e

extremamente oneroso. Daí, a real e urgente necessidade de se buscar novas alternativas às

penas privativas de liberdade.

Sintonizando-se com o movimento da novíssima defesa social, que combate o uso

indiscriminado das penas privativas de liberdade e, atendendo ao mandamento constitucional

(CF , artigo 98, I ), o legislador ordinário, dando uma reviravolta na clássica e burocrática

política criminal em voga, instituiu no cenário jurídico nacional a Lei n. 9.099, de 27/09/95,

inaugurando uma nova e moderna via reativa ao delito de menor potencial ofensivo, ao

colocar em prática um dos mais avançados programas de despenalização do mundo.

Com a edição da Lei n. 9.099/95 e a conseqüente vigência, entre nós, de seus modernos

institutos despenalizadores, nosso ordenamento jurídico sofreu profunda inovação, ao investir

contra a couraça da concepção clássica tradicional, apoiada, exclusivamente, na aplicação da

pena como instrumento para a efetivação do direito, tendo a prisão como um dos seus

alicerces fundamentais, rompendo-a e apontando as vantagens jurídicas da nova concepção.

3.3.2 Espécies de medidas despenalizadoras

A Lei n. 9.099/95 não retirou o caráter ilícito de nenhuma infração penal, não podendo

ser tratada, pois, como norma descriminalizadora. Ao contrário, instituiu e disciplinou

medidas despenalizadoras tendentes a substituir a pena e o próprio processo criminal, quais

sejam: composição civil, transação penal e suspensão condicional do processo, sobre as quais

tratamos a seguir.

65

3.3.2.1 Composição civil

O Direito Penal brasileiro, tradicionalmente, mostrou-se avesso a qualquer discussão,

dentro do processo penal, sobre a reparação do dano que o delito tenha causado à vítima, a

quem a jurisdição penal sempre reservou um papel secundário.

A Lei n. 9.099/95 também, nesse particular, revelou-se instrumento inovador e

revolucionário, ao permitir que nos procedimentos criminais da competência dos Juizados

Criminais a vítima pudesse nele interagir, como sujeito de direito, pleiteando a reparação do

dano produzido pelo autor do delito. Antes, a vítima via-se obrigada a aguardar o trânsito em

julgado da sentença penal condenatória para promover-lhe a execução, objetivando à

reparação dos danos (art. 63 do CPP). Com a nova lei, buscou-se modernizar e dar efetividade

ao processo, valorizando o papel da vítima.

A composição civil dos danos, prevista no art. 74, da Lei n. 9.099/95, é marca clara da

justiça consensual que se pretende inaugurar no Brasil. Através da composição civil, vítima e

autor do fato, consensualmente, negociam valores e formas de reparação do dano decorrente

do delito, buscando, juntos, uma saída amistosa para a lide penal, com efeito na esfera cível.

Através da composição dos danos civis e, havendo acordo de vontades, o autor-vítima estará,

uma vez homologada por sentença a composição, que forma título executivo, renunciando

tacitamente ao direito de queixa ou representação, dando margem a uma nova causa de

extinção da punibilidade a ser acrescida ao rol do artigo 107 do CP, quando se tratar de crime

de iniciativa privada ou pública condicionada à representação.

A composição civil dos danos é admissível nos crimes de Ação Pública Condicionada à

Representação e nos de Iniciativa Privada, desde que se trate de infrações de menor potencial

ofensivo.

Em não havendo êxito na tentativa da composição, abrem-se as seguintes

possibilidades: tratando-se de ação de iniciativa privada, poderá o ofendido apresentar queixa-

crime na própria audiência preliminar, por escrito ou verbalmente, ou apresentá-la no prazo

decadencial previsto na lei penal; tratando-se de ação pública condicionada à representação,

poderá o ofendido apresentá-la, se já não o houver feito; havendo representação ou tratando-

se de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério

Público poderá propor a transação penal, medida despenalizadora sobre a qual falamos a

seguir.

66

3.3.2.2 Transação penal

Estabelece o art. 75, da Lei n. 9.099/95, que não obtida a composição dos danos civis,

será dada imediata oportunidade para o ofendido exercer o direito de representação. Oferecida

a representação ou tratando-se de crime de ação pública incondicionada, abre-se espaço para a

transação penal, medida despenalizadora prevista no art. 76 da Lei 9.099/95.

A transação penal é um novo e moderno instituto despenalizador, pelo qual, obedecidas

certas condições e requisitos, o Ministério Público, antes de oferecer denúncia, e em

substituição ao processo, propõe ao autor do fato a aplicação imediata de penas restritivas de

diretos ou multa, cujo cumprimento implicará extinção da punibilidade. A transação penal

consiste na aplicação de uma espécie de "pena consentida", em que o infrator, por livre e

espontânea vontade, devidamente assistido por causídico, obriga-se a se submeter às

condições acordadas.

Os requisitos para a proposta de transação penal estão previstos no art. 76 da lei em

menção. São eles: a) Existência de uma infração de menor potencial ofensivo, ou seja, cuja

pena máxima abstratamente cominada, incluídas majorantes e minorantes, seja igual ou

inferior a 2( dois) anos, pela nova definição dos Juizados Especiais Federais; b) Ausência de

condenações anteriores, por crime, à pena de prisão; c) Não ter se beneficiado do instituto

nos últimos 5 anos; d) Prognose favorável da necessidade e suficiência, aferível segundo os

critérios do art. 72, inc II do CP, obviamente com exclusão da culpabilidade.

Em se tratando de crime de ação pública condicionada ou incondicionada, a proposta de

transação deve ser formulada pelo Ministério Público e aceita por parte do autor da infração e

seu defensor, sendo este acordo submetido à homologação do Juiz, por sentença. Por sua vez,

a sentença que homologa o acordo não implica reincidência, sendo registrada apenas para fins

da não concessão de benefício nos próximos cinco anos, não produzindo título executivo

judicial cível, por razões óbvias: inexistência de processo ou ação penal e inexistência de

condenação.

O Autor do fato que reúne as condições exigidas pela Lei faz jus ao benefício da

transação penal, já que detentor de um direito público subjetivo. Embora o texto da lei

(caput do art. 76) diga que o Ministério Público “poderá” formular a proposta, evidente que

não se trata de mera faculdade. Na verdade, o MP tem o poder/dever de apresentar a proposta,

uma vez satisfeitas as condições objetivas e subjetivas para que se faça a transação. Nessas

67

condições, o “poderá” converter-se-á em “deverá”, surgindo para o autor um direito a ser

necessariamente satisfeito.

O autor do fato não está obrigado a aceitar a proposta de transação ofertada pelo MP.

Nesse caso, não havendo a transação penal, o titular da ação penal oferecerá a peça acusatória

oral, de imediato, ao Juiz, se não houver necessidade de diligências imprescindíveis.

Oferecida a denúncia, poderá o MP, observados os requisitos exigidos por lei, propor a

suspensão condicional do processo.

Ante a omissão do art. 76, da Lei n. 9.099/95, entendimentos dissidentes surgiram

quanto à aplicação ou não da transação penal aos crimes de ação penal privada.

Deliberadamente, deixamos de abordar, neste tópico, a possibilidade ou não da aplicação do

benefício em delitos tais, posto tratar-se do tema principal deste trabalho científico e, como

tal, será abordado em momento oportuno e específico, no capítulo 5.2, com a necessária

profundidade.

3.3.2.3 Suspensão condicional do processo

O sistema penal e prisional então em vigor mostrou-se falido, ineficaz, ineficiente e

extremamente oneroso. Daí, a real e urgente necessidade de se buscar novas alternativas às

penas privativas de liberdade.

Superadas as demais fases do procedimento e oferecida a denúncia, que pode ser oral,

abre-se a possibilidade de aplicação da suspensão condicional do processo. Não somente as

ações públicas, condicionadas ou não, como é demonstrado no capítulo V deste trabalho,

admitem a medida suspensiva. As ações privadas também comportam a suspensão

condicional do processo.

Nos termos do art. 89, da Lei n. 9.099/95, a suspensão condicional do processo poderá

ser proposta às infrações cuja pena mínima cominada seja igual ou inferior a um ano, sejam

ou não da competência do Juizado Especial, consistindo na suspensão, paralisação do

processo pelo período de prova, qual seja, de dois a quatro anos, mediante a imposição de

algumas condições a serem observadas pelo autor do fato que voluntariamente aceitar o

benefício.

68

Para a sua concessão, o benefício exige o preenchimento dos seguintes requisitos: a)

Que tenha sido recebida a denúncia e não seja caso de perdão judicial; b) Que se trate de

crime cuja pena máxima abstratamente cominada seja igual ou inferior a um ano, levando-se

em conta as causas de aumento e diminuição de pena; c) Que o acusado não esteja sendo

processado ou não tenha sido condenado por outro crime, afastando-se os casos de pena de

multa; d) Não reincidência em crime doloso; e) Que os antecedentes, a conduta social e

personalidade do agente, bem como os motivos e circunstâncias, autorizem o benefício.

Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor e, homologada pelo juiz, será aquele

submetido a período de prova, de dois a quatro anos, durante o qual se interrompe a contagem

do prazo prescricional, sob a condição de reparação do dano, salvo a impossibilidade de fazê-

lo, proibição de freqüência a determinados lugares e comparecimento pessoal e obrigatório

em juízo, mensalmente, para prestar informações ou outras condições reputadas como

necessárias.

A exemplo do que ocorre com a transação penal, o acusado que reúne as condições

exigidas pela lei faz jus ao benefício da suspensão do processo, já que detentor de um direito

público subjetivo. O texto do art. 89, da lei em comento, embora disponha que o Ministério

Público “poderá” formular a proposta, evidente que também não se trata de mera faculdade.

Também, nesse caso, tem o MP o poder/dever de apresentar a proposta, uma vez satisfeitas as

condições objetivas e subjetivas para a concessão do benefício. Nessas condições, o “poderá”

converter-se-á em “deverá”, surgindo para o autor um direito a ser necessariamente satisfeito.

Uma vez preenchidos os requisitos legais, nem mesmo o Ministério Público pode

recusar a formulação da proposta de suspensão, tão pouco o juiz pode deixar de concedê-la. O

acusado não está obrigado a aceitar a proposta de suspensão do processo ofertada pelo MP.

Nesse caso, o processo prosseguirá em seus ulteriores termos, ou seja, será assegurado ao réu

o direito de apresentar defesa preliminar, após o que o juiz receberá ou não a denúncia ou

queixa, seguindo-se a instrução, caso haja o recebimento da peça acusatória.

A proposta de suspensão condicional do processo deverá ser apresentada pelo titular da

ação penal, a saber: tratando-se de ação de natureza pública, condicionada ou incondicionada,

o titular da ação penal e conseqüente legitimado para apresentação da proposta é o Ministério

Público; tratando-se de ação de iniciativa privada, da qual o ofendido é o titular, a proposta

deverá ser apresentada pelo querelante, atuando o MP como fiscal da lei.

69

A suspensão revogar-se-á, obrigatoriamente, em caso de novo processo por crime ou

não reparação injustificada do dano e, facultativamente, em caso de processo por

contravenção ou descumprimento das condições. Havendo isso, o processo correrá

normalmente, a partir do recebimento da denúncia ou queixa, como se não tivesse ocorrido a

suspensão. Todavia, expirado o prazo de prova, sem revogação, o juiz declarará extinta a

punibilidade, sem registros de antecedentes criminais do processo em questão, sem gerar

reincidência e ou produzir efeitos civis.

Assim, as medidas despenalizadoras e todo o microssistema penal inaugurado pela Lei

n. 9.099/95 representam, indubitavelmente, instrumentos jurídicos modernos, assaz valiosos

para a desburocratização e simplificação da Justiça Penal, solução rápida da lide, supressão

da degradante cerimônia do processo e neutralização dos efeitos deletérios das penas

privativas de liberdade, quando a infração penal é de menor potencial ofensivo.

4 DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS

O tradicional modelo de direito penal adotado pelo Brasil, por se mostrar

flagrantemente anacrônico, ineficiente e incapaz de atender aos anseios da sociedade

moderna, quer na prevenção da criminalidade, quer na ressocialização do infrator, tornou-se

alvo de abalizadas críticas que exigiam urgente reforma, que viesse a tornar o sistema mais

moderno e compatível com o novo modelo de Estado Democrático de Direito, inaugurado

com a Constituição Federal de 1988.

A falta de efetividade do processo penal, a crescente onda de criminalização de

condutas e recrudescimento das penas, a ausência de vias alternativas para a solução dos

litígios de natureza penal, entre outros fatores, contribuíram, decisivamente, para a

inoperância do sistema penal tradicional e descrédito das instâncias judiciais.

A problemática enfrentada pelo Brasil, em matéria de sistema penal e criminalidade

também era sentida em outras partes do mundo. Os Estados Unidos e vários países europeus,

a exemplo da Alemanha, Itália, Espanha e Portugal, buscaram, especialmente a partir da

década de 1970, soluções que se mostravam mais compatíveis com sua realidade, conforme

narrativa dos doutrinadores adiante citados. Em comum, esses países adotaram um novo

modelo de direito penal, voltado para a justiça consensual, despenalização e solução

negociada do conflito, por meio de processos menos formais, mais céleres, simples e

democráticos, ou por outras vias que permitiam não só encurtar o processo, mas também

evitá-lo.

Para melhor compreender como a justiça consensual foi implantada no ordenamento

jurídico nacional, vejamos, de modo panorâmico e sintético, seu desenvolvimento no direito

71

comparado, conforme narrativa de Marcos Paulo Dutra Santos,1 Ada Pellegrini Grinover2 e

João Francisco de Assis3.

.Nos Estados Unidos, dois institutos de larga e antiga aplicação se destacam na seara do

Direito Penal. São eles: o plea bargaining e o charge bargaining. Pelo primeiro, a

negociação gira em torno da pena. O acusado admite a culpabilidade, aceitando sem oposição

a acusação, em troca de uma pena mais branda ou de alguma concessão do Estado. Pelo

segundo, a negociação gira em torno da imputação. Ao se declarar culpado, o infrator obterá

da promotoria a retirada de uma ou mais acusações ou a limitação da acusação a um delito de

menor gravidade.

No Direito Penal norte americano, o Ministério Público é detentor de ampla liberdade

para, discricionariamente, dispor do objeto do processo, podendo renunciar e até mesmo

desistir da ação penal, sem qualquer controle do órgão jurisdicional, que também não pode

intervir na negociação que se desenvolve exclusivamente entre o promotor e a defesa.

Todavia, a negociação firmada entre acusação e defesa somente terá validade se o órgão

jurisdicional aceitar a declaração de culpa, que deve observar os seguintes requisitos: a

confissão de culpa deve ser voluntária, livre de qualquer coação ou ameaça; o infrator deverá

ter pleno entendimento e conhecimento da acusação, de seus direitos constitucionais e das

conseqüências de sua manifestação de vontade; existência de elementos fáticos que apontem

para a materialidade e autoria do delito que se atribui ao confessado.

O modelo de justiça consensual negociada do Direito americano, apesar das críticas que

lhe são dirigidas, serviu de inspiração para a reforma da legislação de vários outros países,

especialmente levando-se em conta as vantagens que seus institutos oferecem. Sobre essas

vantagens, Sílvia Barona Vilar, citada por J. Francisco de Assis, destaca:

[...] a) o consenso traz benefícios para todas as partes que intervém no processo. Para o imputado, constitui uma redução dos riscos do julgamento oral, com a vantagem de ver-se condenado a uma pena mais leve do que aquela que poderia decorrer do julgamento normal. Para o Promotor de Justiça, a solução consensuada do processo permite controlar o trabalho, dificilmente administrável se todos os acusados fossem submetidos a julgamento pelo Júri. Para o Defensor, a perspectiva de ganhar tempo e a antecipação dos seus honorários leva-no a convencer o cliente a que se declare culpado. Para o Juiz, representa extraordinário ganho de tempo para

1 SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Transação penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 33, 54, 67, 91. 2 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Juizados Especiais Criminais – comentários à Lei nº 9.099/95, de 26.09.1995. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 37. 3 ASSIS, João Francisco de. Juizados Especiais criminais. Curitiba: Juruá, 2006, p. 21, 25, 30, 39.

72

cuidar de outros processos; b) economia processual em face da supressão do julgamento oral e de outros trâmites processuais.4

A legislação alemã, gradualmente, foi concedendo ao Ministério Público maior

discricionariedade para dispor da ação penal e decidir pela conveniência ou não do processo,

mitigando, desse modo, o princípio da obrigatoriedade da ação nos delitos em que são

insignificantes as conseqüências do fato e naqueles em que não houver interesse público na

persecução.

Em conformidade com dispositivos da StPO alemão (Ordenança Processual Penal –

Código de Processo Penal), poderá o Ministério Público, nos delitos de menor gravidade,

requerer ao juiz a aplicação de penalidades leves ao infrator (reparação dos danos, pena

pecuniária em favor de instituição filantrópica, prestação de serviço de utilidade pública), sem

denúncia, caso seja aceita a proposta ofertada pelo órgão acusador. Com a aceitação da

proposta, suspendem-se a prescrição e o exercício da ação penal.

Portugal promoveu, em 1987, significativas inovações, visando a modernizar seu

ordenamento jurídico e a renovar os institutos processuais penais. Entre essas inovações,

destacam-se: arquivamento do processo com declaração de culpa e dispensa da pena, quando

o crime for punível com pena não superior a seis meses ou somente multa não superior a 120

dias, se a ilicitude do fato e a culpa do agente forem diminutas, o dano tiver sido reparado e as

razões de prevenção recomendarem: suspensão provisória do processo sob condição, como

por exemplo a indenização ao lesado; não exercer determinadas profissões, não freqüentar

certos meios ou lugares; processo abreviado, quando houver provas simples e evidente da

materialidade e autoria do delito, reduzindo-se e concentrando-se os atos processuais

instrutórios ao mínimo indispensável e em uma só audiência; processo sumaríssimo, para os

delitos que o MP entender deva ser concretamente aplicada pena ou medida de segurança não

privativa de liberdade, caso não haja oposição por parte do acusado.

A Lei n. 689/1981 promoveu consideráveis modificações no sistema penal italiano,

introduzindo, entre outras alterações, a ampliação do âmbito da despenalização das infrações

de pequena gravidade ou de pouca relevância social, bem como a adoção de institutos

voltados para a justiça consensual e solução negociada do litígio penal, à semelhança do plea

bargaining americano. O modelo italiano, a partir dessa lei, admitiu a aplicação da pena a

4 VILAR, Sílvia Barona apud ASSIS, João Francisco de. Juizados Especiais criminais. Curitiba: Juruá, 2006. p. 24.

73

pedido das partes, resultante da negociação entre o Ministério Público e o acusado. Na Itália,

ao contrário do que ocorre no plea bargaining, o juiz não é mero espectador, mas exerce

ativamente o controle da negociação, com liberdade, inclusive, para denegar a pretensão das

partes, proferindo sentença absolutória ou de arquivamento.

O sistema criminal espanhol adotou, em 1988, quando da reforma processual penal, o

instituto da conformidade, pelo qual os que se declaram culpados das acusações que lhes são

imputadas pelo órgão acusador recebem pena mais branda e favorável, em relação ao que

receberiam ao final do processo.

Na legislação penal holandesa, como ressaltado por Tourinho Filho,5 a transação penal é

possível até mesmo entre a Polícia e o infrator. Ressalta o mesmo autor, ao citar Alcalá-

Zamorra, que, entre os nossos vizinhos, o Código peruano de 1939 já falava em transação em

matéria penal.

Atento às reformas penais e processuais penais ocorridas no cenário internacional, com

forte tendência para a despenalização, mitigação da obrigatoriedade da ação penal, introdução

da justiça de consenso e vias alternativas de solução do litígio penal e, também antenado à

crítica dos juristas nacionais, o legislador constituinte inovou o sistema penal brasileiro, ao

prevê a criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Conforme disposição

constitucional,

Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.

O comando constitucional, entretante, não poderia ter vida e efetividade sem lei federal

que definisse, em matéria penal, infrações de menor potencial ofensivo, estabelecendo normas

sobre o procedimento sumaríssimo, a ser seguido uniformemente pelo microssistema dos

Juizados Especiais.

Decorridos mais de seis anos da vigência da Constituição Federal/1988, o Congresso

Nacional ainda não havia disciplinado a matéria, dando margem a inquietações e ponderações

sobre a possibilidade de os Estados, no uso de sua competência constitucional, criem os

5 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Comentários à lei dos Juizados Especiais Criminais. São Paulo: Saraiva, 2003. p.3.

74

Juizados Especiais. Como tão bem ponderou Tourinho Filho, de que adiantaria os Estados

estabelecerem o procedimento, se não podiam definir as infrações de menor potencial

ofensivo? 6

Salienta o mencionado doutrinador que o Estado do Mato Grosso do Sul, em 1990,

através da Lei Estadual n. 1.071, de 11 de julho, e o Estado da Paraíba, em 1991, através da

Lei n. 5.466/91, criaram e instalaram seus próprios Juizados Especiais, definindo: as

infrações de menor potencial ofensivo os crimes dolosos punidos com reclusão de até um ano

ou detenção até dois anos, os crimes culposos e as contravenções.

A constitucionalidade das leis estaduais em comento foi questionada, até que, em 1994,

o Supremo Tribunal Federal, nos autos do HC 71713-PB, decidiu que a criação dos Juizados

Criminais pelos Estados dependia de lei federal, sendo inconstitucional a norma estadual que

outorgara competência penal a Juizados Especiais. Esse entendimento foi pelo Supremo

Tribunal Federal reiterado, no julgamento do HC 72.582-1-PB (DJU 20.10.95, p. 35.258).

Conforme narrativa de Ada Pellegrini, uma das redatoras do anteprojeto de lei que deu

origem à Lei n. 9.099/95, a citada norma federal foi assim concebida7:

Ainda no curso dos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, juízes de São Paulo

apresentaram à Associação Paulista de Magistrados minuta de Anteprojeto de lei federal

disciplinando o que viriam a ser os Juizados Especiais Criminais. O Anteprojeto foi

examinado, após promulgada a Constituição Federal, por um grupo de trabalho constituído

pelo Presidente do Tribunal de Alçada de São Paulo. Convidada a participar do grupo, a

professora Ada Pellegrini ficou encarregada de apresentar estudos sobre o Anteprojeto.

Após submetido a ampla discussão e enriquecido com sugestões de aprimoramento, o

Anteprojeto foi então apresentado ao Deputado Michel Temer, que, acolhendo na íntegra a

proposta apresentada, transformou-a no Projeto de Lei 1.480/89.

Em separado, tramitava na Câmara dos Deputados Projeto de Lei do Deputado Nelson

Jobim, tratando dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, entre outros projetos atrelados ao

mesmo tema.

6 Ibid., 2003. p.3. 7 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Juizados Especiais Criminais – comentários à Lei nº 9.099/95, de 26.09.1995. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p.39 - 40.

75

Todas as propostas que tramitavam na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara

Federal sobre Juizados Especiais Cíveis e Criminais foram submetidas à relatoria do

Deputado Ibrahim Abi-Ackel, que selecionou, entre todas, o projeto do Deputado Michel

Temer, na área penal, e o projeto do Deputado Nelson Jobim, na área cível.

Os dois projetos foram unificados através de substitutivo que, após tramitação na

Câmara e no Senado e, apesar da tentativa de modificação, foi aprovado, em definitivo,

culminando na Lei n. 9.099/95. Com a edição da Lei n. 9.099/95, de 26 de setembro de 1995,

e a conseqüente vigência entre nós de seus modernos institutos despenalizadores, nosso

ordenamento jurídico sofreu profunda inovação.

Ressalte-se, por oportuno, que apesar da acurada análise do direito comparado e dos

institutos de direito processual penal em voga, especialmente nos países da europa ocidental,

de onde se expandiu a idéia de justiça de consenso e despenalização, o legislador nacional,

com a edição da Lei n. 9.099/95, preferiu adotar modelo próprio e sui generis de legislação

processual penal, mais adequado à realidade brasileira.

Diferentemente dos demais países citados neste capítulo, que adotam o princípio da

oportunidade da ação penal, a lei especial em comento preservou, embora mitigados, os

princípios da obrigatoriedade e indisponibilidade da ação penal pública, que, em matéria de

infração de menor potencial ofensivo cedeu espaço ao princípio da discricionariedade regrada

ou controlada.

A Lei n. 9.099/95 causou significativo impacto e inovação no sistema processual penal

brasileiro, revelando-se, em razão dos princípios por ela consagrados e resultados práticos

alcançados, verdadeira revolução no Direito brasileiro. Na ótica do magistrado Marco

Antônio Marques, longe de ser apenas um novo estatuto, a lei que criou os juizados especiais

criminais representa uma mudança de postura e mentalidade no campo jurídico.8

Se, no entanto, por um lado, os Juizados Especiais estaduais despontavam no cenário

nacional como uma das mais acertadas inovações legislativas, por outro se fez sentir a

necessidade de ampliar o espaço da justiça consensual e expandir para a esfera da justiça

federal a aplicação da Lei n. 9.099/95. Ante a ausência de obstáculo jurídico e a

compatibilidade da norma com outras esferas da justiça, a jurisprudência, com acerto, passou

a aceitar a aplicação da lei reportada à Justiça Federal. 8 SILVA, Marcos Antônio Marques da. Juizados Especiais Criminais. São Paulo: Saraiva, 1997. p.102.

76

A Constituição Federal não fazia previsão dos Juizados Especiais Federais, mas sua

criação se fazia necessária e inadiável. Daí que, com a Emenda Constitucional 22/99, a

criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais Federais passou a ser prevista,

expressamente, no texto constitucional. Com a emenda, o art. 98 da CF/88 foi acrescido do

parágrafo único, que tem a seguinte redação: “Parágrafo único. Lei federal disporá sobre a

criação de juizados especiais no âmbito da Justiça Federal.”

Sem muita demora, observando o comando da lei maior, o legislador

infraconstitucional, a partir do Projeto de Lei 3.999/2001, editou, em 12 de julho de 2001, a

Lei n. 10.259/2001, que criou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais na esfera da Justiça

Federal.

Na parte criminal, a lei nova alterou a definição de infração de menor potencial ofensivo

e incluiu no rol dos delitos submetidos ao microssistema aqueles para os quais se previa

procedimento especial, permanecendo inalterados os demais institutos e procedimentos da Lei

n. 9.099/95, que tem ampla incidência nos Juizados Especiais Federais.

4.1 Competência material dos juizados especiais criminais

A Constituição Federal/1988 expressamente previu a competência material dos Juizados

Especiais Cíveis e Criminais. Nos termos do art. 98 da lei máxima,

Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.

A redação do art. 60, da Lei n. 9.099/95, é praticamente a reprodução fiel do dispositivo

constitucional acima transcrito, no que se refere à competência material dos Juizados

Especiais Criminais.

Assim, compete aos juizados especiais criminais a conciliação, o julgamento e a

execução das infrações penais de menor potencial ofensivo. Todavia, a norma constitucional

não cuidou de trazer a definição do que seria infração de menor potencial ofensivo. Essa

tarefa foi delegada ao legislador infraconstitucional, que, por sua vez, através do art. 61 da

Lei n. 9099/95, trouxe a seguinte definição: “Consideram-se infrações penais de menor

potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei

77

comine pena máxima não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja

procedimento especial”.

Desse modo, nos termos do dispositivo legal acima transcrito, a competência material

dos Juizados Especiais Criminais refere-se, pois, à natureza do delito:

a) contravenção;

b) crime com pena não superior a um ano, exceto os submetidos a procedimento

especial.

Conforme o texto legal em comento, a definição legal contemplaria as contravenções

tipificadas na Lei de Contravenções Penais (Decreto Lei n. 3.688, de 3 de outubro de 1941),

os crimes com pena máxima não superior a um ano, previstos no Código Penal (Decreto Lei

n..2.848, de 7 de dezembro de 1940) e outros previstos em lei especial. Dentro da exceção à

regra de competência material, estariam os crimes submetidos a procedimento especial,

mesmo que a pena máxima cominada não fosse superior a um ano. Nesse rol exemplificam-

se: a) os crimes falimentares; b) crimes praticados por funcionários públicos contra a

administração, em geral; c) crimes de difamação e injúria, da competência do juiz singular; d)

crimes contra a propriedade imaterial; e) crimes contra a economia popular, infrações

eleitorais; f) crimes de abuso de autoridade; g) crimes de imprensa; h) crimes de

responsabilidade de prefeitos e vereadores e crimes relativos a substâncias entorpecentes.

Com o advento da Lei n. 10.259/2001, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e

Criminais da Justiça Federal, o conceito de infração de menor potencial ofensivo foi

ampliado, passando a englobar os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois

anos, independentemente do procedimento para eles previsto. Senão vejamos:

Art. 2º Compete ao Juizado Especial Federal Criminal processar e julgar os feitos de competência da Justiça Federal relativos às infrações de menor potencial ofensivo. Parágrafo único. Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa.

Até então, a definição de infração de menor potencial ofensivo era única. Com a lei dos

Juizados Federais, o ordenamento jurídico passou a contar com duas definições distintas,

especialmente em relação ao quantitativo da pena e ao procedimento aplicável.

Surgiram, então, as seguintes dúvidas: em razão do artigo 2º da Lei n. 10.259/2001, que

define as infrações de menor potencial ofensivo, no âmbito dos Juizados Especiais Federais,

78

fazendo incluir em sua órbita de competência os crimes a que a lei comine pena máxima não

superior a “dois anos”, estar-se-ia implicitamente revogando o artigo 61, da Lei n. 9.099/95?

O conceito ampliado se aplica, também, aos Juizados Especiais estaduais ou somente aos

Juizados Federais? A competência dos Juizados Especiais Criminais estaduais passaria a

alcançar os crimes submetidos a procedimento especial?

A polêmica foi dirimida com a interpretação sistêmica das leis em conflito, à luz do art.

129, I, e 98, I, da CF/88, e do princípio constitucional da isonomia. O entendimento

doutrinário e jurisprudencial pacificado considerou revogado o art. 61, da Lei n. 9.099/95, em

face do artigo 2º da Lei n. 10.259/2001, sendo aplicável aos Juizados Especiais estaduais o

conceito ampliado de infração de menor potencial ofensivo, previsto na lei mais benéfica.

Para Ada Pellegrini,

[...] como as mesmas infrações podem ser, na grande maioria das vezes, de competência das Justiças Estadual e Federal, firmando-se a competência por outros critérios, não poderia o legislador ordinário, em face do disposto no art. 98, I, da CF, considerar a mesma infração como de menor ofensivo para a Justiça Federal e não atribuir-lhe a mesma qualidade para a Justiça Estadual. Por isso, apesar da vedação, sustentamos a aplicação da Lei nº 10.259 à Justiça Estadual. 9

Cometeria erro inominável, ressalta Tourinho Filho, admitir a existência de duas

espécies de infração de menor potencial ofensivo: uma na esfera federal e outra na estadual.

Como reforço de argumento, exemplifica: “[...] Um desacato praticado por Procurador de

Justiça ensejaria a perda de sua primariedade. Mas, se cometido por Procurador da República,

a justiça se contentaria com simples transação”. 10

A destinação de tratamento desigual entre iguais caracteriza flagrante violação ao

princípio constitucional da igualdade. Em homenagem a esse princípio, torna-se inevitável e

obrigatória a revogação do artigo 61 da Lei n. 9.099/95, restando apenas a definição de

infração de menor potencial ofensivo, previsto no artigo 2º da Lei n. 10.259/2001, que se

aplica em toda sua extensão aos Juizados Especiais Criminais, quer em âmbito estadual, quer

federal, inclusive em relação aos delitos submetidos a procedimento especial.

Com a revogação implicita do art. 61 da Lei n. 9.099/95 e conseqüente aplicação da Lei

n. 10.259/2001, a limitação anteriormente prevista, quanto aos delitos submetidos a

procedimento especial, não mais subsiste. De modo que, tanto os crimes com pena não

superior a dois anos, quanto as contravenções, ainda que submetidos a procedimentos 9 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., 2005. p. 76. 10 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, op. cit., 2003. p.26.

79

especiais, são, por força do art. artigo 2º da Lei n. 10.259/2001, infrações de menor potencial

ofensivo, alcançadas pela competência material dos Juizados Especiais estaduais.

Como via de regra ocorre, toda vez que o ordenamento jurídico é inovado, muitas

dúvidas surgiram, inicialmente, quanto à correta interpretação e aplicação da Lei n. 9.099/95 e

os institutos por ela implementados. Entre as principais dúvidas surgidas em relação ao objeto

da competência material da nova lei, podem se destacar as seguintes: A competência dos

juizados especiais é privativa? Todas as contravenções são da competência dos juizados

especiais criminais, independentemente da pena e do procedimento? A competência dos

Juizados Especiais Criminais abrange todas as infrações cuja pena seja inferior a um ano,

agora dois anos? É cabível, em alguma hipótese, o procedimento dos juizados especiais às

infrações de médio e grave potencial ofensivo?

Os doze anos que se seguiram à edição da Lei n. 9.099/95 e à edição de leis especiais

que lhe sobrevieram contribuíram, significativamente, para que doutrina e jurisprudência se

consolidassem e apontassem respostas e soluções mais coerentes em torno dos temas e

questões que, inicialmente, mostravam-se controversos, contraditórios e de interpretação

equivocada. Claro que nenhuma norma comporta interpretação estanque e que a lei dos

Juizados Especiais ainda comporta questionamentos. Todavia, as dúvidas acima elencadas

encontraram respostas razoáveis, coerentes e compatíveis com o sistema inovador que o

microssistema dos juizados especiais pretendeu sacramentar.

O disposto no art. 98, I, da CF/88 e art. 60, da Lei n. 9.099/95 não estabelece a

competência privativa aos Juizados Especiais Criminais, sobre as infrações de menor

potencial ofensivo, de modo a afastar a aplicação do procedimento sumaríssimo na seara do

juízo comum. Assim, nem todas as infrações de menor potencial ofensivo, obrigatória e

necessariamente, serão processadas e julgadas pelos Juizados Especiais Criminais. Nesse

sentido, vejamos as seguintes hipóteses.

Nem todas as comarcas brasileiras, especialmente as interioranas, foram contempladas

com a instalação de unidades de Juizados Especiais estaduais, muito menos federais. Caso a

competência dos Juizados Especiais fosse privativa, aquele que cometesse infração de menor

potencial ofensivo, numa comarca desprovida de Juizado Especial, receberia tratamento

diferente e menos benéfico do que aquele que praticou infração idêntica numa comarca sede

80

de Juizado Especial. Nessa hipótese, havendo tratamento desigual entre iguais, estar-se-ía

violando, flagrantemente, o princípio constitucional da isonomia.

Aplica-se, também, o mesmo princípio, em relação aos delitos de menor potencial

ofensivo de competência originária dos tribunais, onde igualmente se aplica o procedimento

sumaríssimo dos Juizados Especiais Criminais, posto que não se pode dar tratamento

diferenciado e mais grave ao infrator que tem foro privilegiado, em relação ao que não tem,

quando ambos, por exemplo, tiverem cometido uma contravenção.

Nas hipóteses previstas nos art. 66, parágrafo primeiro, e 77, §§ 2º e 3º, da Lei 9.099/95,

a saber, quando o infrator não for encontrado para ser citado ou quando a complexidade ou as

circunstâncias do caso não permitem o imediato oferecimento da peça delatória, o juiz

encaminhará as peças existentes ao juízo comum, onde a ação será julgada., afastando, desse

modo, a competência dos Juizados Especiais Criminais.

Quanto à controvérsia sobre as contravenções penais, Ada Pellegrine afirma,

categoricamente, que todas elas são de competência do Juizado. No seu entender, as restrições

relativas ao quantitativo máximo da pena e ao procedimento especial atingem somente os

crimes, não se aplicando às contravenções, que por sua natureza, hão de ser sempre

consideradas de menor potencial ofensivo. Nessa mesma linha de pensar segue Tourinho

Filho, para quem “[...] o Juizado Especial Criminal tem competência para julgar toda e

qualquer contravenção, sendo de somenos importância o critério quantitativo ou qualitativo,

vale dizer, pouco importa a pena cominada ou o procedimento estabelecido”.11

A própria Lei 9.099/95 estabelece hipóteses que afastam a competência material dos

Juizados Especiais Criminais, mesmo quando se trata de infração de menor potencial

ofensivo. Uma dessas hipóteses está prevista nos art. 66, parágrafo primeiro, e 77, §§ 2º e 3º,

da Lei 9.099/95, a saber: quando o infrator não for encontrado para ser citado ou quando a

complexidade ou as circunstâncias do caso não permitem o imediato oferecimento da

denúncia.

Nesses casos, o juiz encaminhará as peças existentes ao juízo comum, onde a ação será

julgada. A Lei n. 9.839/99 acrescentou à Lei n. 9.099/95 o art. 90A, que estabelece uma nova

hipótese de exceção à regra geral de competência dos Juizados Especiais Criminais, qual seja

11 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, op. cit., 2003. p. 26.

81

quando se tratar de crime militar, próprio ou impróprio. O dispositivo legal assim estabelece:

“Art. 90A – As disposições desta Lei não se aplicam no âmbito da Justiça Militar.”

A constitucionalidade da norma foi confirmada quando do julgamento do HC n. 15.573-

RS, que teve como relator o Min. José Arnaldo da Fonseca, do Superior Tribunal de Justiça.

A decisão foi publicada no DJU 20.08.2001, p. 504, j. 07.06.2001.

Por questão de política criminal e atendendo a interesse público relevante, lei especial

também pode afastar a competência dos Juizados Especiais Criminais, mesmo nos crimes de

menor potencial ofensivo. É o caso, por exemplo, da Lei n. 11.340/2006, que dispõe sobre a

criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher (Lei Maria da

Penha), que, em seu art. 41, afasta a aplicação da Lei n. 9.099/95, quanto aos crimes

praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena.

Veja-se a integra do mencionado dispositivo legal: “Art. 41. Aos crimes praticados com

violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se

aplica a Lei n. 9.099/95, de 26 de setembro de 1995.

Também por questão de política criminal, lei especial pode prevê a incidência do

procedimento sumaríssimo da Lei n. 9.099/95 em relação a delitos com pena superior a dois

anos, não superior a quatro, praticados contra idoso. É o caso do Estatuto do Idoso (Lei n.

10.741/2003), que, em seu art. 94, dispõe:

Art. 94. Aos crimes previstos nesta Lei, cuja pena máxima privativa de liberdade não ultrapasse 4 (quatro) anos, aplica-se o procedimento previsto na Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, e, subsidiariamente, no que couber, as disposições do Código Penal e do Código de Processo Penal.

Ressalte-se, por oportuno, que o Estatuto do Idoso não trouxe nova definição de

infração de menor potencial ofensivo, muito menos ampliou o quantitativo de pena desses

delitos, até mesmo por se mostrar incompatível com o tratamento rigoroso que a nova lei

pretendeu impor aos que praticam crimes contra idosos, aqueles que, por natureza, são mais

vulneráveis. A intenção do legislador foi, muito claramente, dar mais celeridade aos processos

instaurados por crime contra o idoso, submetendo-o ao procedimento sumaríssimo dos

Juizados Especiais Criminais.

82

4.2 Princípios norteadores dos Juizados Especiais Criminais

O art. 62, da Lei n. 9.099, elenca, expressamente, princípios (embora o texto designe-os

de critérios) orientadores do sistema dos Juizados Especiais Criminais, sendo eles: oralidade,

informalidade, economia processual e celeridade.

A redação desse artigo é quase uma réplica literal do art. 2º, da mesma lei, que acresceu

ao seu rol o princípio da simplicidade. O rol do art. 62 não é exaustivo, posto que da própria

essência da lei se pode extrair outros princípios implícitos.

Sem qualquer pretensão de exaurir o tema, posto tratar-se de assunto apenas

coadjuvante ao tema principal, objeto deste trabalho acadêmico, comentaremos, não

extensivamente, sobre os princípios explícitos e implícitos que norteiam o juizado especial

criminal e os objetivos pretendidos pela lei que o instituiu.

4.2.1 Princípio da oralidade

O legislador priorizou o critério da oralidade, conduzindo-se no sentido contrário à

tradição processual penal brasileira, com o manifesto propósito de tornar o procedimento que

tramita no sistema especial mais simples e célere.

Esse critério da oralidade manifesta-se, por exemplo, nas seguintes hipóteses: a)

substituição do Inquérito pelo termo circunstanciado; b) os registros escritos estão reduzidos

aos atos considerados essenciais, podendo os atos realizados em audiências ser gravados em

fita magnética ou equivalente; c) na fase preliminar predomina a tentativa de conciliação,

marcadamente verbal; d) a acusação e a defesa podem ser apresentadas oralmente; e) as

provas, debates e sentença, igualmente podem ser veiculadas oralmente, registrando-se no

termo um breve relato dos fatos ocorridos em audiência.

Ressalte-se, outrossim, que o legislador não pretendeu abolir por completo os registros

escritos. Isso porque alguns atos considerados essenciais, como a sentença de homologação da

transação penal e a representação da vítima, por exemplo, devem ser reduzidos a termo. O que

se buscou foi desburocratizar o procedimento, com a escrituração desnecessária de alguns

atos.

83

4.2.2 Princípio da informalidade e simplicidade

A reflexão que se faz, na atualidade, é no sentido de que o processo é um meio, um

instrumento para se alcançar um fim maior: a concretização da justiça.

Assim é que a lei 9.099 deixou claro não estar preocupada com a forma como um fim

em si mesma, mas com a realização da justiça de modo simples, objetivo e célere. Sua

preocupação é com a concretização do direito reclamado, com maior eficácia, efetividade e

objetividade que razoavelmente se pode esperar.

Os princípios da informalidade e da simplicidade (este decorrente da interpretação do

art. 77, § 2º, da Lei 9.099, que afasta de sua competência as causas complexas) mostram-se

evidentes nas seguintes hipóteses: dispensa de relatório da sentença; nulidade de atos somente

com a demonstração de prejuízos, se o ato atingiu o fim visado, sem prejuízo para a parte, não

importando que a forma prescrita não tenha sido rigorosamente observada; somente os atos

essenciais devem ser registrados por escrito; dispensa de exame de corpo de delito para

oferecimento da denúncia, que pode ser lastreada em boletim médico ou equivalente;

informalidade da representação, podendo ser verbal, embora reduzida a escrito.

Não se prega, todavia, a ausência absoluta de formalidade, sob pena de afronta a

princípios constitucionais maiores, a exemplo do devido processo legal.

4.2.3 Princípio da economia processual

A otimização do processo (obtenção do máximo de resultado com o mínimo de atos

processuais) resulta em considerável economia de tempo e recursos (materiais e humanos). A

opção do legislador em tornar o procedimento sumaríssimo dos Juizados Especiais Criminais

o mais simples e informal possível, trouxe reflexos significativos em termos de economia

processual e na celeridade do processo.

O princípio da economia processual mostra-se mais evidente nas seguintes

circunstâncias: substituição do inquérito policial pelo termo circunstanciado, mais simples,

informal e célere; imediato encaminhamento das partes ao Juizado Especial, tão logo lavrado

o termo circunstanciado, economizando a expedição de mandados de intimação e diligências

pelo meirinho; com a composição civil dos danos ou transação extingue-se o processo,

evitando-se a tramitação do feito, prática de atos e emprego de pessoal (Juiz, Promotor,

84

defensor, oficial de justiça, serventuários da unidade judicante, enfim); concentração dos atos

processuais em uma única audiência (apresentação de defesa, recebimento da denúncia ou

queixa, oitiva da vítima e testemunhas, interrogatório do réu, debates e sentença).

4.2.4 Princípio da celeridade

O princípio da celeridade refere-se à rapidez com que as lides submetidas ao

microssistema dos Juizados Especiais Criminais são, ou deveriam ser, solucionadas, quer

através da conciliação ou transação, quer através da sentença de mérito.

Os princípios anteriormente abordados cooperam para dar celeridade ao processo.

Aplicados com fidelidade pelo magistrado, e não concorrendo qualquer fato externo, inclusive

de ordem estrutural, uma lide penal submetida ao procedimento sumaríssimo dos Juizados

Especiais Criminais não levaria mais de 45 (quarenta e cinco) dias para ser resolvida, como

pretendeu o legislador.

A oralidade, a imediação, a concentração, a irrecorribilidade das decisões

interlocutórias, entre outras medidas previstas na Lei 9.099/95, acarretam, inexoravelmente,

maior celeridade ao processo e mais rapidez na solução do conflito de natureza penal.

4.2.5 Princípio da discricionariedade regrada

Ao apresentar o Projeto de Lei n. 1.480/89, que deu origem à Lei n. 9.099/95, o

Deputado Michel Temer, em sua justificação, reconheceu pertenceram à tradição do Direito

Penal brasileiro os princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal pública,

razão pela qual preferiu descartar os modelos estrangeiros que adotam o princípio da

oportunidade da ação penal, a exemplo do norte-americano, francês e alemão.

Segundo o parlamentar aludido, as legislações mais modernas, que adotam o princípio

da discricionariedade controlada com relação aos delitos de menor gravidade, oferecem

melhores parâmetros para o novo sistema de justiça penal que seu projeto pretendia implantar.

Assim é que a Lei n. 9.099/95 mostrou-se inovadora e ousada, ao quebrar a rigidez do

sistema tradicional, que tinha na obrigatoriedade da indisponibilidade da ação penal pública

sua linha mestra.

85

Com o novo modelo inaugurado, esses princípios foram mitigados, dando lugar ao

princípio da disponibilidade regrada, pelo qual o Ministério Público passou a ter poderes para

“dispor” da ação penal pública nos crimes da competência material dos Juizados Especiais

Criminais.

O Ministério Público passa a ter o poder discricionário de dispor da Ação Penal Pública,

mas apenas nas hipóteses previstas na Lei, fazendo uso dos institutos da transação penal e da

suspensão condicional do processo.

Diz-se regrada porque a discricionariedade está condicionada ao controle judicial e

somente pode ser exercida dentro dos limites e parâmetros estabelecidos pela aludida lei

especial. A transação penal e a suspensão condicional do processo são exemplos claros da

quebra dos princípios tradicionais.

Com a transação penal, o Ministério Público está impedido de iniciar a ação penal; com

a suspensão condicional do processo, o MP está impedido de continuar a ação penal, porque

dela dispôs.

Os princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade não foram banidos do sistema

penal brasileiro. Ao contrário, continuam como regra. Todavia, a nova lei (9.099/95)

excepcionou a regra, admitindo, nas hipóteses por ela previstas, a incidência do princípio da

discricionariedade regrada ou controlada.

4.2.6 Princípio da autonomia da vontade

As alterações e transformações ocorridas no cenário internacional, nas últimas décadas,

confirmaram a tendência moderna de se adotar um novo modelo de justiça penal, em

substituição ao anacrônico sistema tradicional, voltado para a justiça consensual, baseada na

busca da solução do litígio penal através da solução negociada.

O legislador nacional, com a edição da Lei n. 9.099/95, preferiu adotar modelo próprio

de justiça consensual, mais adequado à realidade brasileira. Em comum com os demais

modelos, o novo sistema brasileiro também está baseado na solução negociada do conflito

penal, calcada na autonomia da vontade das partes em litígio.

Nenhum dos institutos previstos na Lei 9.099/95 terá aplicação sem que as partes, livre

e conscientemente, demonstrem interesse em aceitar. Sem a aceitação do acusado, nenhuma

86

solução conciliatória para o conflito penal será possível. O autor do fato não está obrigado a

aceitar a composição civil dos danos, nem aceitar proposta de transação penal, muito menos a

aceitar as condições de suspensão condicional do processo. No entanto, mostrando aceitação e

preenchendo os requisitos legais, poderá beneficiar-se destes institutos. O autor do fato pode,

embora não reconhecendo culpa, aceitar medida alternativa ao processo.

Assim, a participação e livre manifestação do infrator são de extrema importância

indispensáveis para a solução negociada do conflito penal submetido à competência do

Juizado Especial Criminal. Sua manifestação, porém, somente tem validade legal se for

voluntária, sem coação ou ameaça, e se contar com a anuência de seu advogado.

Ressalte-se, outrossim, que todo e qualquer ordenamento jurídico deve ter por fim a

promoção da justiça e que a observância dos princípios norteadores do Juizado Especial

Criminal não pode confrontar, sob pena de inconstitucionalidade, o princípio constitucional

do devido processo legal, do qual são corolários o contraditório e a ampla defesa.

5 DA TRANSAÇÃO PENAL NOS CRIMES DE AÇÃO PRIVADA À LUZ DA HERMENÊUTICA E DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

A Constituição Federal de 1988 foi pródiga em romper, ao menos em relação aos delitos

de menor potencial ofensivo, com o tradicional modelo de justiça penal em vigor,

manifestamente burocrática, formal, sem a eficiência e efetividade que dele se esperava.

Seguindo a tendência mundial, o constituinte originário fez clara opção pelo novo modelo de

justiça penal consensual, já implantado com sucesso em vários países da Europa ocidental e

nos Estados Unidos.

Atenta à dinâmica social, realidade e necessidade brasileiras e às transformações

ocorridas no cenário internacional, a Constituição da República Federativa do Brasil,

adotando modelo próprio de justiça consensual, previu, em seu artigo 98, I, a criação dos

Juizados Especiais, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas

cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante o

procedimento oral e sumaríssimo.

Os Juizados Especiais tornaram-se realidade, criaram vida, assumiram forma, com a

entrada, em vigor, da Lei n. 9.099/95, que, na acurada visão de Ada Pellegrini Grinover,1

representa, por suas inovações e em sua aparente simplicidade, verdadeira revolução no

sistema processual-penal brasileiro, tanto pela adoção do rito sumaríssimo, pela manifesta

preocupação com a vítima, quanto, em especial, pelo modelo consensual introduzido e suas

medidas despenalizadoras.

A Lei n. 9.099/95 instituiu e disciplinou medidas despenalizadoras tendentes a substituir

o processo criminal e, por via reflexa, a própria pena, quais sejam: composição civil,

transação penal e suspensão condicional do processo, sobre as quais tratamos no tópico 3.3.4

deste trabalho acadêmico. Sob outro enfoque, abordamos, neste capítulo, alguns aspectos

relevantes da transação penal, como se segue adiante.

1 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., 2005. p.41- 42.

88

A expressão transação encontra-se expressamente prevista no texto constitucional, que

não estabeleceu sua definição legal, contornos, alcance e extensão, tarefa delegada ao

legislador infraconstitucional. Senão vejamos:

Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau. (Grifamos)

Transação, conforme o dicionário jurídico2, significa: ato jurídico em que duas ou mais

pessoas mediante concessões recíprocas, ajustam certas cláusulas e condições para prevenir

possíveis litígios ou para resolver os já existentes. E,em sendo acordo, é indispensável que

haja consenso, concessões recíprocas, liberdade, para as partes apresentarem propostas e

contra-propostas, estabelecendo o objeto do negócio, enfim.

O art. 76, da Lei n. 9.099/95, cujo teor segue abaixo transcrito, não contempla

expressamente, em seu texto, o termo transação. Todavia, o negócio jurídico que o titular da

ação penal está autorizado legalmente a firmar com o autor do fato, consiste no oferecimento

de proposta de aplicação de pena imediata em substituição ao processo, encerrando

perfeitamente a definição de transação, com objeto definido e calcado, essencial e

necessariamente, no consenso.

Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direito ou multa, a ser especificada na proposta.

Para Mário Antônio Lobato de Paiva, a transação penal

[...] possui natureza de negócio jurídico civil, firmado entre o Ministério Público e o autor do fato, e que as ‘penas’ de multa e restritivas de direitos, estabelecidas por força desse negócio jurídico nada mais são do que as prestações assumidas pelo autor do fato. Quanto à sentença estabelecida pelo parágrafo 4o do artigo 76 da Lei no 9.099/95, não é condenatória, não impõe pena, mas somente homologa o acordo firmado entre as partes e forma o título executivo judicial da obrigação assumida pelo autor do fato, tendo por conseqüência a exclusão do processo-crime e a declaração da extinção da punibilidade, pela decadência do direito de propor a ação penal. 3

Sérgio Turra Sobrane, por sua vez, conceitua transação como sendo 2 COSTA, Wagner Veneziani; AUGUSTO, Valter Roberto; AQUAROLI, Marcelo. Dicionário Jurídico. São Paulo: WVC, 2000. v. Único. p. 275. 3 PAIVA, Mario Antonio Lobato de. A Lei dos Juizados Especiais Criminais. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 49.

89

o ato jurídico através do qual o Ministério Público e o autor do fato, atendidos os requisitos legais, e na presença do magistrado, acordam em concessões recíprocas para prevenir ou extinguir o conflito instaurado pela prática de fato típico, mediante o cumprimento de uma pena consensualmente ajustada.4

A hipótese prevista no art. 76, em comento, caracteriza, pois, negócio jurídico

(transação, acordo de vontades, pacto, convenção) entre o titular da ação penal e o suposto

autor do fato, pelo qual o primeiro se absteria de intentar a ação penal e conseqüentemente dar

início ao processo criminal, caso o segundo aceite submeter-se a uma pena imediata não

privativa de liberdade. Através de concessões reciprocas, os interessados (titular da ação

penal e autor do fato) terminam o litígio penal.

Assim, o que o art. 76 descreve, mas não conceitua, outra coisa não é que uma

transação, que o Código Civil conceitua, em seu art. 840, como sendo o negócio jurídico

destinado a prevenir ou terminar o litígio mediante concessões recíprocas. O que a lei 9.099

fez foi permitir, na esfera penal, esse negócio jurídico já comum no Direito Civil.

Desse modo, o art. 98, I, da Constituição Federal de 1988, previu, expressamente, o

instituto da transação penal para os delitos de menor potencial ofensivo, ao passo que o art.

76, da Lei n. 9.099/95 estabeleceu seus contornos e requisitos de admissibilidade, sobre os

quais nos debruçaremos logo adiante.

O instituto da transação penal, moderno, inovador, revolucionário e sem precedentes na

legislação penal e processual-penal brasileira, suscitou controvérsias quanto à

constitucionalidade ou inconstitucionalidade de sua aplicação. O atropelo à técnica e

dubiedade da redação do art. 76, da Lei n. 9.099/95, também contribuiu para inflamar os

questionamentos em torno do instituto.

À luz da tradicional e clássica concepção do Direito Penal, não se poderia admitir

aplicação imediata de “pena” restritiva de direito ou multa, com possível conversão em pena

privativa de liberdade, sem processo. Tecnicamente, pena pressupõe, em direito penal:

acusação formal, ação penal, processo, culpa, sentença penal condenatória, trânsito em

julgado, reincidência, inscrição no rol dos culpados. A “pena” imediata, prevista no

dispositivo legal em comento, afasta qualquer desses elementos e de longe se enquadraria na

concepção de pena resultante de processo regular.

4 SOBRANE, Sérgio Turra. Transação penal. São Paulo: Saraiva, 2001. p.75

90

Daí que, sob o fundamento de violação ao devido processo legal (art. 5ª, LIV, CF/88) e

ao princípio da presunção de inocência (art. 5ª, LVII, CF/88), a constitucionalidade do

instituto da transação penal continua sendo incisivamente questionada.

Salvante raros dissidentes, a exemplo de Miguel Reale Jr., o entendimento

majoritariamente defendido pela doutrina e jurisprudência é no sentido de reconhecer que os

institutos despenalizadores, introduzidos pela Lei n. 9.099/95, especialmente a transação

penal, guardam consonância com a Constituição Federal, inexistindo inconstitucionalidade a

se reconhecer.

A constitucionalidade da transação é defendida sob os seguintes fundamentos: a própria

Constituição Federal previu expressamente e autorizou a transação penal, inexistindo, dessa

forma, normas constitucionais originárias inconstitucionais; a “pena” aplicada em sede de

transação penal não gera reincidência nem qualquer dos efeitos próprios da pena decorrente

de processo regular; não há por que se falar em violação ao princípio da inocência, posto que

a aplicação do instituto decorre da livre manifestação do acusado, que não está obrigado a

aceitá-la; impossibilidade da conversão da pena restritiva de direito ou multa aplicada em

pena privativa de liberdade.

Sem apego ao preciosismo terminológico, entendemos que a expressão “pena”, prevista

na redação do art. 76, da Lei n. 9.099/95, foi impropriamente utilizada pelo legislador. Os

pressupostos da pena decorrente de processo regular não se aplicam à “pena” aplicada em

sede de transação penal. Daí as controvérsias surgidas.

Os institutos penais possuem delimitação e natureza jurídica próprias e inconfundíveis.

Decadência e prescrição, por exemplo, são institutos diversos, que produzem efeitos diversos.

Mas, o legislador, por vezes emprega, erroneamente, um instituto por outro, suscitando

divergências e exigindo do intérprete da norma atenção redobrada em sua aplicação.

O legislador do ECA (Lei n. 8.069/90) operou com mais técnica ao prevê a aplicação

de medidas socioeducativas (e não pena) aos menores de 18 anos envolvidos com a prática de

ato infracional. Seria técnica legislativa imprópria a previsão de pena para menores infratores,

penalmente inimputáveis, à luz do art. 104 da própria lei em alusão. Sem responsabilidade

penal não há que se falar em pena. Estabelecendo um paralelo com o instituto da transação

penal, poder-se-ia dizer que, sem processo não há porque falar em pena.

91

Como bem leciona José Frederico Marques, se não existe crime sem prévia cominação

legal, também não há pena sem sentença condenatória. O nullum crimen sine lege e o nulla

poena sine judicio são princípios que se completam nos Estados em que impera o Direito.

Seguindo essa linha de pensar, entendemos que a expressão “pena” impropriamente

empregada pelo legislador, no art. 76 da Lei n. 9.099/95, poderia ser perfeitamente substituída

pela expressão “medida alternativa ao processo” ou “medida substitutiva ao processo”, e a

maioria das controvérsias suscitadas, senão todas, desapareceria, mantendo-se inalterados os

contornos e fins do instituto da transação penal.5

5.1 Requisitos para concessão do benefício

A admissibilidade da proposta de transação penal está condicionada a determinadas

condições, previstas implícita e explicitamente no art. 76 da Lei n. 9.099/95.

A condição primeira e indispensável à formulação da proposta é a existência de uma

infração de menor potencial ofensivo, assim considerados as contravenções penais e os crimes

a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.

A redação originária do art., 61 da Lei n. 9.099/95, conceituava como infração de menor

potencial ofensivo as contravenções penais e os crimes com pena máxima não superior a 1

(um) ano, não sujeitos a procedimento especial. Com a entrada em vigor da Lei n.

10.259/2001, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça

Federal, o art. 61, supracitado, foi derrogado pelo art. 2º, parágrafo único, da nova lei, que

aumentou o alcance da definição a todos os crimes com pena máxima não superior a 2 (dois)

anos, independentemente de estarem submetidos ou não a ritos especiais.

Com a nova lei, nasceram novas controvérsias. Alguns entendiam que a nova definição

de infração de menor potencial ofensivo somente se aplicava na seara dos Juizados Especiais

Federais; outros defendiam a coexistência dos art. 2º, parágrafo único, da Lei n. 10.259/01, e

art. 61 da Lei n. 9.099/95.

A discussão sobre o tema perdeu qualquer importância com a nova redação dada ao art.

61 da Lei n. 9.099/95, pela Lei n. 11.313, de 28 de junho de 2006, cujo teor segue adiante

transcrito: “Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os

5 MARQUES, José Frederico, op. cit., 1997. v. I. p.26.

92

efeitos desta lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não

superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa”

Desse modo, admite-se a transação penal nas contravenções e crimes apenados até 2

(dois) anos. Questiona-se, todavia, se a transação penal restaria inviabilizada se o limite

máximo da pena fosse ultrapassado, em decorrência de alguma causa de aumento de pena.

Tourinho Filho entende que as circunstâncias agravantes e atenuantes, bem como a

majorante resultante de concurso formal ou continuidade delitiva, não são causas impeditivas

da transação, não podendo ser invocadas com esse fim.6

Ada Pellegrini defende que, no tocante aos crimes continuados e concurso formal, não

se deve considerar o acréscimo, mas somente o tempo de pena previsto para cada infração

penal, isoladamente, aplicando-se, por analogia, na falta de disposição expressa, o art. 119 do

Código Penal. 7

Marcos Paulo Dutra Santos, discordando dos autores acima reportados, assevera que os

acréscimos decorrentes de causas especiais de aumento ou diminuição da pena e os resultantes

das qualificadoras ou atenuantes especiais, por incidir na sanção in abstrato, devem ser

considerados para fins de admissibilidade ou não da transação penal. Para ele, a majoração

decorrente do concurso de crimes ou crime continuado inviabiliza a transação penal.

Ressalta, todavia, que as circunstâncias judiciais, as agravantes e as atenuantes, por

repercutirem na pena aplicada e não na cominada, não podem ser consideradas.8

O entendimento de Marcos Paulo é o mesmo a prevalece no Superior Tribunal de

Justiça, que, reiteradamente, vem decidindo no sentido de que, no caso de concurso de

crimes, a pena considerada para fins de fixação de competência e formulação da transação

penal será o resultado da soma, no caso de concurso material, ou a exasperação, na hipótese

de concurso formal ou crime continuado, das penas máximas cominadas aos delitos. Superado

o limite de 2 (dois) anos, resta afastada, de plano, a competência dos Juizados Especiais, não

fazendo jus o autor do fato ao benefício da transação penal. Nesse sentido, vejamos a ementa

adiante transcrita:

6 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, op. cit., 2003. p.31-34. 7 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., 2005. p. 79. 8 SANTOS, Marcos Paulo Dutra, op. cit. 2006. p. 104.

93

Ementa: AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSO PENAL. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. Segundo precedentes, a transação penal não tem aplicação em relação aos crimes cometidos em concurso formal ou material e aos chamados crimes continuados, se a soma das penas mínimas cominadas a cada crime, computado o aumento respectivo, ultrapassar o limite de um ano. Agravo desprovido. AgRg no Ag 450322 / MG ; AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 2002/0054971-2. Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA (1106. Órgão Julgador T5 - QUINTA TURMA. Data do Julgamento. 01/10/2002. Data da Publicação/Fonte DJ 04.11.2002 p. 259.9

Mantendo essa mesma linha de pensamento, a Segunda Turma do STF, nos autos do

HC 85427/SP – SÃO PAULO, relatado pela Ministra Ellen Gracie, decidiu, por unanimidade,

que do concurso formal de crimes é causa bastante para inviabilizar a transação penal. Eis o

teor da ementa do julgado:

Ementa: PROCESSO PENAL. CONDENAÇÃO. CONCURSO FORMAL. ARTS. 302 E 303 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO (LEI 9.503/97). TRANSAÇÃO PENAL. INAPLICABILIDADE. 1. Condenado o paciente, em concurso formal, pela prática dos crimes de homicídio culposo e lesões corporais culposas no trânsito, inviável a aplicação da transação penal ao caso. Precedente. 2. Ordem indeferida. Indeferiu-se a ordem, decisão unânime. HC 85427 / SP - SÃO PAULO - HABEAS CORPUS. Relator(a): Min. ELLEN GRACIE. Julgamento: 29/03/2005. Órgão Julgador: Segunda Turma. Publicação DJ 15-04-2005 PP-00038. EMENT VOL-02187-03 PP-00594. LEXSTF v. 27, n. 322, 2005, p. 464-469.10

As demais condições indispensáveis à formulação da proposta de transação penal são

dadas a conhecer nos termos do § 2º, do art. 76 da Lei n. 9.099/95:

a) Ausência de condenação anterior, por sentença definitiva, pela prática de crime à

pena privativa de liberdade;

b) Não ter se beneficiado do instituto nos últimos 5 anos;

c) Os antecedentes, conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e

as circunstâncias que recomendarem a necessidade e suficiência da medida.

Da simples leitura do inc. I, do §2º, do art. 76, em comento, poder-se-ia afirmar que

condenações anteriores pela prática de contravenção não obstariam a transação penal, já que

crime e contravenção definem-se diversamente e a vedação refere-se, especificamente, à

condenação pela prática de crime, e não de contravenção; igualmente não obstaria a transação

penal, se o autor da infração houver sido condenado anteriormente, mesmo que pela prática de 9 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http:/www.stf.gov.br/consulta/jurisprudencia>. Acesso em: 12 set. 2007. 10 Id., Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http:/www.stj.gov.br/consulta/juririsprudencia>. Acesso em: 12 set. 2007.

94

crime, se a pena aplicada for restritiva de direito ou multa, já que a vedação refere-se à pena

privativa de liberdade; também não obstaria a transação se a condenação anterior imposta ao

autor da infração, não houver transitado em julgado ou se o autor do fato estiver respondendo

a processo, já que a vedação refere-se à condenação por sentença definitiva.

A simples leitura do dispositivo legal acima reportado não solucionaria o seguinte

questionamento: Decorridos mais de cinco anos entre a data da extinção da punibilidade

relativa à condenação por crime anterior e o cometimento de nova infração, esta de menor

potencial ofensivo inviabilizaria a transação penal?

Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho entende que o lapso temporal, previsto

no inc. II, do § 2º, do art 76, em comento, não se aplica ao inciso anterior. Segundo ele, a

regra do art. 64, I,11 do Código Penal, foi acolhida pelo inciso II, mas não o foi pelo inciso I,

por opção do legislador, não podendo se estender, por analogia, a possibilidade, pois o juizado

é primordialmente destinado àqueles que não são criminosos contumazes.12

Entendimento diametralmente oposto é adotado por Marcos Paulo Dutra Santos. Para

ele, contraria a tradição da ordem jurídica pátria, desprestigia o princípio constitucional da

dignidade da pessoa humana, fere a razoabilidade, emprestar à condenação criminal efeitos

penais eternos. Após discorrer sobre a ratio da limitação temporal e benefícios assegurados ao

condenado não reincidente (sursis da pena – art. 77, I, CP) e até mesmo ao reincidente (pena

alternativa – art. 93, CP), arremata afirmando que a omissão inserta no art. 76, §2º, I, foi

involuntária, consubstanciando uma lacuna a ser suprida pela analogia.13

A nosso ver, as razões de Marcos Paulo melhor se harmonizam com os princípios

instituidores das medidas despenalizadoras. Não se pode, por presunção, restringir o alcance

da transação penal, especialmente nas hipóteses em que a lei não estabeleceu expressamente a

impossibilidade de sua aplicação. Em matéria penal, não se pode dar interpretação ampliativa

às regras restritivas de direito. As regras concessivas de direito, por sua vez, devem ser

interpretadas ampliativamente.

11 A regra do art. 64, I, do Código Penal determina que não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos. 12 CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de. Lei dos Juizados Especiais Criminais. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p.100. 13 SANTOS, Marcos Paulo Dutra, op. cit. 2006. p. 132.

95

Em recente julgado (11/04/2006), e adotando entendimento contrário ao defendido por

Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, a Primeira Turma do Supremo Tribunal

Federal, nos autos do Habeas Corpus 86646/SP – SÃO PAULO, relatado pelo Ministro Cezar

Peluso, decidiu, por unanimidade, que o limite temporal de cinco anos, previsto no art. 64, I,

do Código Penal, aplica-se aos requisitos da transação penal e da suspensão condicional do

processo. Desse modo, entende a corte máxima que o lapso temporal previsto no inc. II, do §

2º, do art. 76 da Lei n. 9.099/95, aplica-se ao inciso anterior, sendo a regra do art. 64, I, do

Código Penal acolhida pelo inciso, por analogia. Eis a síntese do julgado:

Ementa: PROCESSO CRIMINAL. Suspensão condicional. Transação penal. Admissibilidade. Maus antecedentes. Descaracterização. Reincidência. Condenação anterior. Pena cumprida há mais de 5 (cinco) anos. Impedimento inexistente. HC deferido. Inteligência dos arts. 76, § 2º, III, e 89 da Lei nº 9.099/95. Aplicação analógica do art. 64, I, do CP. O limite temporal de cinco anos, previsto no art. 64, I, do Código Penal, aplica-se, por analogia, aos requisitos da transação penal e da suspensão condicional do processo. HC 86646 / SP - SÃO PAULO- HABEAS CORPUS - Relator(a): Min. CEZAR PELUSO Julgamento: 11/04/2006.Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação DJ 09-06-2006 PP-0001. EMENT VOL-02236-02 PP-00217.14

A causa impeditiva da transação penal prevista no inciso II, do § 2º, é de fácil

compreensão. A redação do inciso em alusão é clara, objetiva e de fácil interpretação,

inexistindo controvérsia que recomende uma análise mais detida. Assim, transcorrido lapso

temporal superior a 5 (cinco) anos entre a homologação da transação anterior e a data do

cometimento de nova infração de menor potencial ofensivo, a formulação de nova proposta se

mostra juridicamente possível. As circunstâncias judiciais condicionantes para a concessão de

sursis (art. 77, II, do CP) repetem-se literalmente no inciso III, como requisito para

formulação de proposta de transação penal.

De natureza subjetiva, as causas impeditivas do mencionado inciso referem-se a todos

os fatos da vida passada do autor do fato que tenham relevância jurídica, seu comportamento

em sociedade, no ambiente de trabalho e no seio da familia, sua personalidade e motivos.

Assim, o benefício não se mostra recomendável ao autor do fato que tenha reiteradas

passagens pela polícia, responda a vários inquéritos ou processos, cultive difícil

relacionamento com parentes, vizinhos, colegas, demonstre temperamento beligerante, tenha

cometido a infração por torpeza, vingança etc.

14 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http:www.sfj.gov.br/consulta/juririsprudencia>. Acesso em: 12 set. 2007.

96

Ressalta Marcos Paulo Dutra que os requisitos subjetivos do inc. III somente devem ser

considerados para a negativa do benefício despenalizador, quando se mostrarem manifesta e

extraordinariamente negativos.15

5.2 Transação penal – Direito público subjetivo do autor do fato

A expressão “poderá”, inserta no art. 76 da Lei n. 9.099795 dá margem ao seguinte

questionamento: afastada a hipótese de arquivamento do Termo Circunstanciado de

Ocorrência e estando satisfeitas as condições elencadas no § 2º do mesmo dispositivo legal, a

formulação da proposta de transação penal constitui-se direito público subjetivo do autor do

fato ou representa mera faculdade do Ministério Público?

Entende o Prof. Júlio Fabbrini Mirabete que a transação penal seria uma faculdade do

Ministério Público, orientada pelo princípio da discricionariedade limitada. O entendimento

doutrinário predominante, todavia, ruma em sentido oposto.16

Para Ada Pellegrini, o “poderá”, inserto no caput do art. 76, não representa mera

faculdade, mas um poder-dever, a ser exercido pelo acusador em todas as hipóteses em que as

causas impeditivas da transação não se façam presentes. Para ela, admitir o contrário

resultaria em discriminação odiosa e violadora do princípio da isonomia, além de consagrar o

princípio da oportunidade pura, que a lei não acolheu.17

Destaca Tourinho Filho que o princípio da oportunidade não foi adotado pelo legislador

nacional e que, uma vez satisfeitas as condições objetivas e subjetivas previstas no art. 76, o

“poderá” converte-se em “deverá”, nascendo, para o autor do fato, um direito a ser

necessariamente satisfeito, ao tempo em que surge para o promotor a obrigação, e não mera

faculdade, de formular a proposta de transação penal. 18

O pensamento doutrinário dominante sobre o tema é sintetizado com maestria e

propriedade por Marcos Paulo Dutra, para quem

A partir do momento em que a lei prevê a transação penal ao autor de uma infração de menor potencial ofensivo, e enumera os requisitos necessários para sua concessão, não se pode dizer que sua outorga é uma simples faculdade do Parquet.

15 SANTOS, Marcos Paulo Dutra, op. cit. 2006. p.134. 16 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Juizados Especiais Criminais. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p.131-132. 17 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., 2005. p. 153. 18 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, op. cit., 2003. p. 124.

97

Isso porque, satisfeitos os requisitos legais, o autuado fará jus à transação, cumprindo ao Ministério Público propô-la. 19

Arremata verberando que:

[...] a transação penal é mais do que uma simples faculdade ministerial. É um dever-poder do Ministério Público. Dever porque, uma vez preenchidos os requisitos legais, o oferecimento da transação ao autuado é premente. Poder porque é dele a iniciativa da transação penal. Pretender diversamente seria consagrar o princípio da oportunidade pura, que, aplicada ao caso concreto, seguramente resultaria em sucessivas e odiosas discriminações [...].

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça do Distrito

Federal, por sua vez, tem se perfilado aos doutrinadores que interpretam o “poderá” do art. 76

como “deverá”, ratificando o entendimento de que a transação penal constitui-se direito

público subjetivo do autor do fato que preencher os requisitos previstos em lei, e a formulação

da proposta representa um poder-dever do titular da ação penal. Senão vejamos:

[...] Ementa - HABEAS CORPUS. REVISÃO CRIMINAL. FASE DE EXECUÇÃO DA PENA. TRANSAÇÃO PENAL. JUSTIFICATIVA DO ÓRGÃO DE ACUSAÇÃO. INEXISTÊNCIA DE QUALQUER CONTESTAÇÃO DA DEFESA. MATÉRIA VENCIDA PELO TEMPO. Apesar de ser direito subjetivo do acusado, a transação penal deve obedecer aos limites do tempo e à discussão no processo, de forma a evitar-se seja sedimentada a decisão indeferitória pelo transcurso do tempo. [...] Processo HC 37888 / SP. HABEAS CORPUS 2004/0121234-9. Relator(a) Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA (1106). Órgão Julgador. T5 - QUINTA TURMA. Data do Julgamento. 07/10/2004. Data da Publicação/Fonte DJ 08.11.2004 p. 267’ 20 CONTRAVENÇÃO PENAL. PROCESSO PENAL. CERTIDÃO CONTRADITÓRIA. ESCLARECIMENTO. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS DOS BENEFÍCIOS DA LEI 9.099/95. DIREITO SUBJETIVO DO RÉU. NULIDADE. SENTENÇA CASSADA. OFERECIMENTO DE PROPOSTA DE TRANSAÇÃO PENAL. SENTENÇA CASSADA. (20010110904803APJ, Relator BENITO TIEZZI, Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do D.F., julgado em 19/06/2002, DJ 08/08/2002 p. 61)21 [...].

O legislador é recorrente em utilizar a expressão “poderá”, nos dispositivos legais que

prevêem a concessão de benefícios ao réu, observados os requisitos e condições estabelecidos

na lei. Para a concessão da suspensão condicional da pena, o legislador previu requisitos que,

integralmente preenchidos pelo condenado, “poderão” assegurar-lhe o direito a ter a pena

suspensa. Eis a íntegra do art. 77, do Código Penal: “[...] Art. 77 - A execução da pena

privativa de liberdade, não superior a 2 (dois) anos, poderá ser suspensa, por 2 (dois) a 4

(quatro) anos, desde que: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)”.

19 SANTOS, Marcos Paulo Dutra, op. cit., 2006. p. 140-141. 20 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http:/www.stj.gov.br//SCON/jurisprudência>. Acesso em: 25 set.2007. 21 Id., Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Disponível em: <http:/www.tjdf.gov.br>. Acesso em: 25 set. 2007.

98

Já a redação do art. 83, do mesmo diploma legal, prevê que o juiz “poderá” conceder

livramento condicional, desde que o condenado preencha os requisitos exigidos para a

concessão do benefício. Eis a transcrição do teor do artigo em comento. “[...] Art. 88 – O juiz

poderá conceder livramento condicional ao condenado à pena privativa de liberdade igual ou

superior a 2 (dois) anos, desde que: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).”

Nas três hipóteses legais de concessão de benefício penal ora tratadas (transação penal,

suspensão condicional da pena e livramento condicional), cumpridas as exigências que lhes

são próprias, a expressão “poderá” há de ser, e assim tem sido, interpretada como “deverá”,

imperativo dirigido ao juiz ou ao titular da ação penal, conforme o caso. Não poderia o autor

do fato, réu ou condenado, contra quem não pese qualquer causa impeditiva do benefício

penal pretendido, estar à mercê do humor ou arbítrio do juiz ou do Ministério Público.

Admitir o contrário seria o mesmo que adicionar aos requisitos legais para a concessão do

benefício penal o elemento sorte, o que seria inadmissível e inaceitável.

Desse modo, a negativa do oferecimento da proposta da transação penal somente

poderia ser admitida, quando fundamentadamente demonstrado pelo titular da ação penal, que

o autor do fato não preenche os requisitos taxativamente previstos nos incisos do §2º, do art.

76, da Lei n. 9.099/95. Assim têm-se firmado a doutrina e a jurisprudência. Assim nos

posicionamos.

5.3 Natureza híbrida do instituto

É entendimento sedimentado na doutrina nacional que as medidas despenalizadoras,

previstas no art. 76 da Lei n. 9.099/95, entre elas a transação penal, possuem natureza híbrida,

constituindo-se matéria do direito substancial, como também do direito processual.

Compreender a natureza jurídica dos institutos é de fundamental importância para sua correta

aplicação.

Nessa linha de pensar, e após dissertar sobre as medidas despenalizadoras previstas na

Lei n. 9.099/95, Ada Pellegrini Grinover assim leciona:

[...] O reconhecimento da natureza híbrida das quatro medidas despenalizadoras acima enfocadas é extraordinariamente relevantes para a boa aplicação da Lex nova. Três delas são de natureza processual e penal ao mesmo tempo. São elas: a transação penal do art. 76, a representação do art. 88 e a suspensão condicional do processo do art. 89. São institutos que, em primeiro lugar, produzem efeitos imediatos dentro da fase preliminar ou do processo (nisso reside o aspecto processual). De outro lado,

99

todos contam com reflexos diretos na pretensão punitiva estatal (aqui está a face pena) [...].22

Perfilando-se com a doutrinadora supracitada, Marcos Paulo Dutra destaca que a

transação penal é instituto misto, pois produz repercussão na seara processual ao obstar o

processo criminal de cunho condenatório e impedir o exercício da ação penal, como também,

e principalmente, na órbita penal, porquanto preserva o estado de inocência do autuado,

conservando-lhe a primariedade e os bons antecedentes, ao tempo em que lhe resguarda o

status libertatis, quando evita que o autuado seja julgado e, em conseqüência, inviabiliza a

aplicação de pena privativa de liberdade.23

Constituem-se, pois, normas de direito penal material todas aquelas que versam sobre as

atribuições do Estado em seu poder de punir ou as que modificam esse poder punitivo.

Vinculadas ao poder punitivo estatal estão as normas incriminadoras, descriminadoras, as que

preceituam circunstâncias agravantes e atenuantes, qualificadoras. Também constituem-se

normas de direito penal as que conferem ao Estado ou ao cidadão ofendido o poder de dispor

da pretensão punitiva e que regulam o direito de ação.

Por sua vez, são eminentemente de natureza processual penal as normas que regulam,

de forma ampla e genérica, o início, o desenvolvimento e a cessação do processo penal,

prescrevendo a forma com que devem ser aplicadas as normas de direito penal material e as

que conferem ao Estado ou ao cidadão ofendido o poder de dispor das meras formas

processuais.

Assim é que as normas sobre a ação penal, que atribuem ao Estado ou ao ofendido o

poder de dispor da pretensão punitiva, pertencem efetivamente ao direito material, ao tempo

em que as normas relativas ao exercício da ação penal pertencem ao direito formal ou

processual.

A distinção da natureza jurídica dos institutos (se de direito penal ou de direito

processual, ou se de direito penal e processual ao mesmo tempo) é de manifesta relevância e

de considerável efeito prático. Isso porque somente as normas de processo penal comportam a

aplicação analógica in malam partem (art. 3º. do CPP), as quais entram em vigor

imediatamente, sem prejuízo da validade do realizado na vigência da lei anterior (art. 2o. do

22 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., 2005. p.51. 23 SANTOS, Marcos Paulo Dutra, op. cit., 2006. p.7-8.

100

CPP). Em contrapartida, as normas de direito penal material somente comportam aplicação

analógica in bonam partem (em benefício do réu).

A analogia é o meio de auto-integração da lei, baseado no pressuposto de que onde a

mesma razão de ser (ratio legis), há a mesma razão de decidir, que, por sua vez, tem fulcro no

princípio da igualdade jurídica, o qual exige que as espécies semelhantes sejam reguladas por

normas semelhantes.

Rogério Greco define analogia como sendo uma forma de auto-integração da norma,

consistente em aplicar a uma hipótese não prevista em lei a disposição legal relativa a um

caso semelhante, atendendo-se, assim, ao brocardo ubi eadem ratio, ubi eadem legis

dispositio. Arremata dizendo que tudo aquilo que não for expressamente proibido é permitido

em Direito Penal.24

Assim, são pressupostos para a aplicação da analogia:

- a não-previsão legal do caso concreto;

- a semelhança pela ratio legis.

O art. 76, da Lei n. 9.099/95, é omisso em relação à possibilidade ou não da transação

penal nos delitos de ação privada, prevista expressamente quando se tratar de crime de ação

pública, condicionada ou incondicionada. Não há expressa previsão legal vedando ou

admitindo a transação penal nos crime de ação privada. Em contrapartida, o dispositivo legal

em comento faz expressa menção à possibilidade de formulação de proposta de transação

penal nas infrações de ação pública, condicionada ou incondicionada.

Tratando-se, como de fato se trata, de instituto de natureza penal e mais benéfica ao

autuado, o entendimento doutrinário e jurisprudencial firmado sobre a matéria é no sentido de

admitir a transação penal nos crimes de ação privada, por analogia ao que dispõe o art. 76, em

relação aos delitos de ação penal pública.

Ao defender essa tese, Ada Pellegrini Grinover25 assevera: “[...] Dentro dessa postura, é

possível ao juiz aplicar, por analogia, o disposto na primeira parte do art. 76, para que também

24 GRECO, Rogério, op. cit., 2006. p.48. 25 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., 2005. p.150.

101

incida nos casos de queixa, valendo lembrar que se trata de norma prevalentemente penal e

mais benéfica [...]”.

A integração analógica, em matéria de direito penal e em favor do réu (IN BONAM

PARTEM), justifica-se quando se trata de evitar decisões iníquas, não condizentes com as

finalidades de uma justiça não meramente formal, mas efetiva e substancial. Daí que aplicar-

se a transação penal aos crimes de ação privada, por analogia, é medida que condiz com o

princípio da isonomia e faz ressaltar o modelo de justiça eminentemente consensual e

despenalizadora, que o mandamento constitucional (art. 98, CF/88) pretendeu inaugurar no

Brasil.

5.4 Transação penal nas ações privadas

O art. 76, da Lei n. 9.099/95, prevê expressamente o cabimento da transação penal

quando, não sendo caso de arquivamento, tratar-se de crime de ação penal pública

incondicionada ou condicionada, nesta última hipótese se houver representação.

O dispositivo legal em comento é omisso, silente quanto à possibilidade ou não de

transação penal nos crimes de ação penal privada. Há manifesta ausência de disposição legal

admitindo ou vedando expressamente a concessão do benefício aos autores de infração penal

de menor potencial ofensivo, cuja ação penal seja de iniciativa privada.

Ante à patente ausência de regulamentação e da expressa e manifesta omissão do art. 76

da Lei n. 9.099/95, entendimentos dissidentes surgiram e ainda perduram, mesmo depois de

uma década de vigência e aplicação da revolucionária lei, quanto à aplicação ou não da

transação penal aos crimes de ação penal privada. A controvérsia e a polêmica sobre a matéria

ainda persistem.

A pergunta que insiste em se renovar e que já motivou acalorados debates acadêmicos,

em artigos em revistas especializadas e outros tantos ensaios jurídicos, é: O art. 76 da Lei n.

9.099/95 excluiu a possibilidade de transação penal em relação às infrações de menor

potencial?

Para melhor compreensão da matéria e visando à obtenção de uma visão panorâmica

sobre o tema, necessário, ao nosso ver, escutar os doutrinadores que se aventuraram a

esquadrinhar o art. 76, objetivando dele extrair o precioso tesouro do conhecimento jurídico, a

saber: a interpretação mais sistemática da norma. Daí o porquê de transcrevermos, a seguir, as

102

opiniões e fundamentos de alguns doutrinadores contrários e favoráveis à aplicação da

transação penal aos delitos de menor potencial ofensivo, cuja ação penal seja da titularidade

do ofendido. Com o mesmo propósito e também objetivando a cotejar qual corrente

doutrinária tem sido acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal,

transcrevemos alguns enunciados jurisprudenciais desses tribunais.

Iniciamos pelos doutrinadores contrários à transação penal nos crimes de ação

privada. Júlio Fabbrini Mirabete, por exemplo, entende não ser possível a transação penal nos

crimes de ação privada. Segundo ele,

[...] Não prevê a lei a possibilidade de transação na ação penal de iniciativa privada. Isto porque, na espécie, o ofendido não é representante do titular do jus puniendi, mas somente do jus persequendi in juditio. Não se entendeu possível que propusesse, assim, a aplicação de pena na hipótese de infração penal de menor potencial ofensivo, permitindo à vítima transacionar sobre uma sanção penal. Ademais, numa visão tradicional, o interesse da vítima é o de ver reparados os danos causados pelo crime, o que lhe é possibilitado no instituto da composição, ou com a execução da sentença condenatória penal. Na ação penal de iniciativa privada, prevalecem os princípios da oportunidade e disponibilidade e, no caso afeto aos Juizados, a composição pelos danos sofridos pela vítima, tornando desnecessária e desaconselhável a previsão de oferecimento de proposta para a transação [...].26

Alegando absoluta falta de previsão legal e refutando que tenha havido “cochilo” do

legislador, César Roberto Bitencourt assevera, categoricamente, que nos crimes de ação

exclusivamente privada, independentemente do limite da pena mínima cominada, é

inadmissível tanto a suspensão condicional do processo quanto a transação penal. 27

Eugênio Pacelli também integra as fileiras dos que entendem ser inadmissível a

transação penal e a suspensão condicional do processo nos crimes sujeitos à ação penal

privada. Para ele, há flagrante incompatibilidade entre o sistema de composição civil do art.

74 da Lei dos Juizados Especiais a ação penal privada.28 Perseu Gentil, apegando-se à

literalidade da lei, leciona :

[...] Em uma interpretação literal do art. 76, caput, da Lei 9099/95, verifica-se que não é possível a transação penal nos crimes de ação penal privada. De fato, no aludido preceito o legislador utilizou as expressões: ‘havendo representação’ (crime de ação pública condicionada); ‘ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada’; ‘o Ministério Público poderá’. Assim, tudo leva a crer ser impossível a transação penal [...].29

26 MIRABETE, Júlio Fabbrini, op. cit., 2003. p.129. 27 BITENCOURT, César Roberto, op. cit., 2003. p.605. 28 PACELLI, Eugênio de Oliveira. Curso de processo penal. 2. ed. rev. atual. ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p.633. 29 NEGRÃO, Perseu Gentil. Juizados Especiais Criminais. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001. p.33.

103

Sérgio Sobrane, por sua vez, entende que o texto legal (art. 76, caput) é claro e, não dá

margem a outra interpretação, que não a do sentido de afastar a transação penal na hipótese de

infração de menor potencial ofensivo de ação privada. Para ele, ação penal privada e

transação penal não guardam coerência. Em sua interpretação,

[...] Na ação de iniciativa privada, não se pode vislumbrar com coerência a aplicação da transação penal, e, muito menos, que a proposta seja deduzida pelo próprio querelante. A clareza do texto legal (art. 76, caput) é tanta que fica inviabilizado qualquer exercício interpretativo com fito de atribuir ao querelante - ou mesmo ao Ministério Público depois de apresentada a queixa-crime - a formulação de proposta de transação. [...].30

Percebe-se, sem muito esforço, que o fundamento comum aos que se posicionam contra

a possibilidade de transação penal em relação aos crimes de ação exclusivamente privada é a

ausência de previsão legal. Além desse fundamento, argumenta-se que falta ao ofendido,

detentor da titularidade da ação penal, o jus puniendi, de titularidade do Estado, razão pela

qual não pode, na qualidade de substituto processual, transacionar direito pertencente ao

substituído.

Do outro lado, compreendendo que seria possível a transação, situam-se, dentre outros,

os seguinte nomes de não menos peso na doutrina processualista penal brasileira: Ismar

Estulano Garcia, Luis Gustavo Grandineti Castanho de carvalho, Fernando da Costa Tourinho

Filho, João Francisco de Assis e Ada Pellegrini Grinover. Vejamos, pois, o que pensam esses

doutrinadores.

Ismar Estulano Garcia, lamentando a omissão do legislador em não fazer expressa

referência sobre o procedimento a ser adotado no caso de infração de menor potencial

ofensivo, cuja ação seja de titularidade exclusiva do ofendido, assim leciona:

[...] Respeitando os entendimentos contrários, mas deles discordando, entendemos ser perfeitamente cabível a transação na ação penal privada. […].Na omissão, o melhor entendimento, a nosso ver, é que caberá ao particular fazer proposta de pena, na condição de titular da ação penal. Não seria lógico que o ofendido tivesse apenas a opção de promover a queixa ou renunciar ao direito de promovê-la. A proposta de pena não privativa de liberdade é uma alternativa intermediária entre as duas opções [...].31

Os argumentos que reforçam a tese contrária foram contestados por L.G. Grandinetti,

para quem nem a falta de dispositivo específico nem a qualidade de substituto processual são

30 SOBRANE, Sérgio Turra, op. cit., 2001. p. 94. 31 GARCIA, Ismar Estulano. Juizados Especiais Criminais – Prática processual penal. 2. ed. Goiânia: AB, 1996. p.168-169.

104

obstáculos juridicamente válidos para inviabilizar a transação penal nos crimes de ação

privada. Para ele,

[...] Quando a lei confere ao particular a legitimidade para o exercício da ação penal, o faz na condição de substituto processual do Estado, que é o titular da pretensão punitiva. Como se sabe, na legitimação extraordinária o substituto não tem poderes para transacionar com os direitos do substituído. Portanto, o querelante só poderia oferecer transação penal quando houvesse autorização legal. A Lei nº 9099/95 não lhe dá tal autorização. Ocorre que é princípio geral de interpretação que quem pode o mais, pode o menos. Ou seja, quem pode deduzir em juízo uma pretensão condenatória pode também transacionar a pretensão, reduzindo o seu alcance, ainda mais consensualmente. Além disso, e mais importante, o querelante pode até perdoar e ocasionar a extinção da punibilidade, conforme autorizam os artigos 51 do Código de Processo Penal e 105 do Código Penal. Desse modo, a autorização para que o querelante transacione a pretensão punitiva está assentada nos sistemas processual penal e penal que devem ser aplicados à Lei nº 9099/95, à falta de dispositivo específico. 32

Tourinho Filho entende que, estando presentes os requisitos exigidos em lei, possível é

a transação nos delitos de ação privada33. João Francisco de Assis também defende a

possibilidade de aplicação da transação penal na hipótese discutida neste tópico. Para ele,

deve-se permitir a incidência da transação penal também para os crimes de ação penal

privada, por tratar-se de norma penal mais benéfica.34

Destaque especial há de se dar à opinião de Ada Pellegrini Grinover, ao menos por uma

relevante razão, qual seja porque a destacada doutrinadora compôs o grupo de trabalho

constituído para examinar e redigir a minuta de Anteprojeto de lei federal que viria a ser os

Juizados Especiais Criminais. Contrapondo-se aos reticentes, defende a aplicação analógica

da primeira parte do art. 76 aos delitos de iniciativa privada, por inexistirem razões

juridicamente sustentáveis que recomendem a exclusão da vítima, e do autuado, por

conseqüência, da via conciliatória transacional de cunho penal mais benéfico. Eis sua opinião:

[...] No entanto, a evolução dos estudos sobre a vítima faz com que por parte de muitos se reconheça o interesse desta não apenas à reparação civil, mas também à punição penal. De outro lado, não existem razões ponderáveis para deixar à vítima somente duas alternativas: buscar a punição plena ou a ela renunciar. É certo que no processo penal tradicional essas sãos as duas únicas opções que se abrem ao ofendido. Mas é igualmente certo que a introdução da transação penal em nosso ordenamento obriga a repensar diversos assuntos. A vítima, que viu frustrado o acordo civil do art. 74, quase certamente oferecerá a queixa, se nenhuma outra alternativa lhe for oferecida. Mas, se pode o mais, por que não poderia o menos? Talvez sua satisfação, no âmbito penal se reduza à imposição imediata de uma pena restritiva de direitos ou multa, e não se vêem razões válidas para obstar-se-lhe a via

32 CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de, op. cit., 2006. p.97. 33 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, op. cit., 2003. p. 110. 34 ASSIS, João Francisco de. Juizados Especiais criminais. Curitiba: Juruá, 2006. p. 79.

105

da transação que, se aceita pela autuado, será mais benéfica também para este. […] Dentro dessa postura, é possível ao Juiz aplicar por analogia o disposto na primeira parte do art. 76, para que também incida nos casos de queixa, valendo lembrar que se trata de norma prevalentemente penal e mais benéfica [...].35

O Superior Tribunal de Justiça e tribunais estaduais, a exemplo do Distrito Federal,

confirmam a tendência doutrinária predominantemente favorável à transação penal nas

infrações de menor potencial ofensivo que se processa mediante queixa do ofendido. Os

enunciados jurisprudenciais que se seguem bem demonstram que a matéria já se encontra

sedimentada naqueles tribunais.

[...] Ementa - HABEAS CORPUS. CRIME DE INJÚRIA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ARGÜIÇÃO DE ATIPICIDADE DA CONDUTA. AFERIÇÃO. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. VIA INADEQUADA. CRIME CONTRA A HONRA. APLICAÇÃO DA LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS. TRANSAÇÃO PENAL. POSSIBILIDADE. [...] A Terceira Seção desta Egrégia Corte firmou o entendimento no sentido de que, preenchidos os requisitos autorizadores, a Lei dos Juizados Especiais Criminais aplica-se aos crimes sujeitos a ritos especiais, inclusive àqueles apurados mediante ação penal exclusivamente privada. Ressalte-se que tal aplicação se estende, até mesmo, aos institutos da transação penal e da suspensão do processo 5. Ordem parcialmente concedida para anular a decisão que recebeu a queixa-crime a fim de que, antes, seja observado o procedimento previsto no art. 76, da Lei n.º 9.099/95. Processo HC 34085 / SP. HABEAS CORPUS 2004/0028170-2. Relator(a) Ministra LAURITA VAZ (1120). Órgão Julgador T5 - QUINTA TURMA. Data do Julgamento: 08/06/2004. Data da Publicação/Fonte DJ 02.08.2004 p. 45736 [...]. [...] PENAL. PROCESSO PENAL. INFRAÇÃO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO. CRIME CONTRA A HONRA. AÇÃO PENAL PRIVADA. TRANSAÇÃO PENAL. POSSIBILIDADE. RESSALVA DE VOTOS. CONCURSO DE CRIMES. SOMATÓRIO DAS PENAS. INCOMPETÊNCIA DOS JUIZADOS. APELAÇÃO PROVIDA. UNÂNIME. 1 - Não havendo vedação legal na lei 9.099/95, é de se admitir, por critério de isonomia, a transação penal nos crimes de ação penal privada. 2 - Tratando-se de concurso de crimes, se o somatório das penas extrapolar o limite legal de 2 anos (art. 2º, parágrafo único, da Lei 10259/2001), refoge a competência dos Juizados Especiais Criminais, atraindo a do juízo criminal comum.(20020150088790APR, Relator SÉRGIO ROCHA, 1ª Turma Criminal, julgado em 22/05/2003, DJ 30/10/2003 p. 24)37 [...].

O XIX Encontro do Fórum Permanente de Coordenadores de Juizados Especiais do

Brasil (FONAJE), realizado em 2006, na cidade de Aracaju-SE, consolidou, através do

enunciado n. 90, o entendimento, há vários anos reiterado, no sentido de admitir o cabimento

da transação penal e suspensão na ação de iniciativa privada. Eis o teor do enunciado em

comento: “[...] Enunciado 90 (novo – Substitui o Enunciado 49) - Na ação penal de iniciativa

35 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., 2005. p.150. 36BRASIL. Superior Tribunal de Justiça <http:/www.stj.gov.br//SCON/jurisprudência>. Acesso em: 25 set. 2007. 37 DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Disponível em: <http:/tjdf.gov.br>. Acesso em: 25 set. 2007.

106

privada, cabem a transação penal e a suspensão condicional do processo” (Aprovado no XXI

Encontro - Vitória/ES).

A nosso ver, a fundamentação jurídica que sustenta a tese contrária à admissibilidade da

transação penal, nos crimes de ação exclusivamente privada, não merece prosperar. E não sem

razão essa corrente doutrinária foi rejeitada pelo Superior Tribunal de Justila e Supremo

Tribunal Federal.

A tese doutrinária em comento deriva, essencialmente, da interpretação literal do art. 76

que, como já dito, é lacunoso e de redação dúbia38. Por esse método de interpretação,

presume-se uma vedação que a lei não previu expressamente. Seguindo-se cegamente esse

método literal de interpretação, poder-se-ia chegar a outra conclusão ou presunção, não

menos equivocada, qual seja a de que o art. 76 excluiu a possibilidade de transação penal nos

casos de contravenção. Conforme o dispositivo legal em comento, o Ministério Público

somente poderá apresentar a proposta de transação quando se tratar de CRIME de ação penal

pública condicionada (daí a expressão havendo representação) ou CRIME de ação penal

publica incondicionada. Crime e contravenção, como se sabe, não se confundem.

Tecnicamente, são institutos diferentes. Não há, seguindo a linha de pensar dos doutrinadores

reticentes, previsão legal para transação na hipótese de CONTRAVENÇÃO.

Como se vê, a interpretação literal do dispositivo legal, dissociada do restante do

ordenamento jurídico, pode resultar em manifesto equívoco. Contrário ao apego exagerado à

literalidade da lei, leciona Marcos Paulo Dutra:

[...] Como é cediço, nenhum dispositivo legal existe isoladamente. O Direito é um sistema de normas, logo, quando se interpreta uma regra, é fundamental analisá-la à luz de todo o ordenamento jurídico, a começar pela Constituição, que encerra o fundamento de validade de todas as demais leis [...].39

Por outro lado, é por demais evidente que o legislador constituinte de 1988 pretendeu

inaugurar, no Brasil, um novo e revolucionário modelo de justiça penal consensual, com forte

inclinação para a despenalização, mitigação da obrigatoriedade da ação penal e solução

negociada do litígio penal.

38 Segundo Marcos Paulo Dutra Santos, muito das discussões que envolvem a transação penal decorre da originalidade do instituto e da infeliz redação, dúbia e sem apreço à técnica, dada ao art. 76, fato lamentavelmente comum em nossa legislação processual, seja civil ou penal, especialmente nas leis mais recentes). SANTOS, Marcos Paulo Dutra, op. cit., 2006. p.4-5. 39SANTOS, Marcos Paulo Dutra, op. cit., 2006. p. 12.

107

Ao traçar as primeiras linhas desse novo modelo de justiça penal, o constituinte

originário deixou inquestionavelmente demonstrado quais os delitos que por ele seriam

alcançados, procedimento a ser seguido e medida despenalizadora aplicável. Assim, o

principal e único parâmetro estabelecido pelo comando constitucional para esse novo

microssistema de justiça consensual seria o grau de ofensividade da infração, a saber:

infração de menor potencial ofensivo. O constituinte não fez qualquer distinção quanto à

natureza da ação penal, tampouco deu margem à interpretação restritiva que justificasse a

aplicação das medidas despenalizadoras apenas aos crimes de ação pública, condicionada ou

incondicionada.

O comando constitucional, por razões de política criminal, previu a transação penal

como medida despenalizadora a ser aplicada às infrações de menor potencial ofensivo. É certo

que o mesmo dispositivo legal delegou ao legislador infraconstitucional a tarefa de

estabelecer e explicitar as hipóteses legais concessivas do benefício despenalizador. O poder

discricionário de explicitar e estabelecer as “hipóteses previstas em lei” é limitado, não

podendo o legislador infraconstitucional criar vedações, restringir o alcance da norma

constitucional, excluir ou limitar os benefícios que decorrem da própria Constituição Federal.

A expressão “nas hipóteses previstas em lei” não assegura poderes de criação, mas apenas de

esclarecimento dos princípios e normas criados pelo constituinte. A atuação do legislador

infraconstitucional é regulamentadora, não podendo ir além do que lhe foi proposto pelo

comando maior, sob o risco de usurpação. E, nesse papel regulamentador, o legislador

ordinário deve estar vinculado ao conteúdo deôntico da norma suprema e os limites por ela

impostos.

Assim, é inadmissível que uma lei ordinária, em seu papel regulamentador, possa

limitar o alcance do comando constitucional. Daí porque a Lei n. 9.099/95 não poderia

estabelecer distinção entre os destinatários do benefício legal, quando a própria Constituição

não fez qualquer distinção, deixando claro que estes seriam os autores de infração de menor

potencial ofensivo. Assim, ao aclarar a norma constitucional, não poderia a lei ordinária

inviabilizar a concessão do benefício penal (transação) aos autores de crime de ação privada.

O apego do legislador infraconstitucional ao já envelhecido e ultrapassado modelo de

direito penal não pode limitar o alcance dos institutos despenalizadores consagrados pelo

novo modelo de justiça consensual que o legislador constitucional, em sua visão futurista e

moderna, ousou inaugurar no Brasil.

108

O art. 76, da Lei n. 9.099/95, não veda expressamente a aplicação da transação penal

nos crimes de iniciativa privada. Os doutrinadores que defendem a vedação do benefício aos

delitos de ação privada baseiam-se na presunção de que a lei, embora omissa, fez essa opção.

Todavia, a interpretação sistemática do dispositivo legal em comento, especialmente sob o

enfoque constitucional, dá sustentação sólida aos que defendem a possibilidade da transação

penal às infrações de menor potencial ofensivo, independentemente da natureza da ação a que

estejam submetidas.

Também não se pode dar guarida à alegação de que a transação penal não se aplica aos

crimes de ação privada, por faltar ao ofendido, na qualidade de substituto processual, poderes

para dispor do jus puniendi, exclusivo do Estado.

Como destacado no capítulo inicial deste trabalho acadêmico, a ação de iniciativa

privada rege-se por vários princípios, entre os quais o da oportunidade ou conveniência e o da

disponibilidade. Pelo primeiro, destaca-se o caráter facultativo do exercício da ação penal

pelo ofendido, de modo que o seu titular, que é o ofendido, ou seu representante legal,

promove a ação penal se quiser, por ter o querelante a faculdade não só de propor como

também de deixar de propor a acusação. Pelo segundo princípio, intentada a ação penal, o

ofendido pode dela dispor, até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Ao

ofendido é assegurado o direito de prosseguir ou desistir da ação já intentada ou mesmo

perdoar o autor do delito.

De há muito o querelante detinha o poder de dispor da ação penal, conforme assentado

no tradicional sistema penal e processual penal. Como lhe é facultado, pode o querelante

dispor da ação penal de vários modos, entre os quais: propor ou deixar de propor a ação penal,

deixar de dar prosseguimento à ação penal já intentada, perdoar o autor do delito, incidir na

decadência ou perempção. Todas essas condutas refletem sobre o jus puniendi estatal, na

medida em que produzem, como conseqüência final, a extinção da punibilidade. Seguindo

esse raciocínio, Tourinho Filho faz o seguinte questionamento:

[...] Se o ofendido, titular da ação penal como substituto processual, dispõe de poderes para promover, ou não, a ação penal, e, em uma vez intentada, dela desistir, seja pelo perdão, seja pela perempção, mais ainda os terá para formular a proposta, pois poderá pretender, em vez do processo, uma simples multa ou pena restritiva de direito. Quem pode o mais, pode o menos [...].40

40 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, op. cit., 2003. p.109.

109

Grandinetti defende que quem pode o mais pode o menos. Para ele, quem pode deduzir

em juízo uma pretensão condenatória ou dela desistir, já intentada a ação, pode também

transacionar a pretensão, reduzindo o seu alcance de maneira consensual. 41

Por outro lado, a transação penal, a exemplo da própria composição civil dos danos,

prevista no art. 74 da Lei n. 9.099/95, nada mais é que um acordo firmado entre as partes

interessadas (titular da ação penal e autor do fato), com o fim de pôr termo a um litígio de

natureza penal. Pela composição civil dos danos, o titular da ação penal renuncia ao direito de

queixa, desde que o autor do fato assuma uma prestação, de natureza civil, qual seja, a

reparação do dano. Na transação penal ocorre algo muito semelhante. Nela, o titular da ação

penal também renuncia ao direito de intentar a ação penal, desde que o autor do fato se

submeta a uma medida penal (prestação), qual seja: multa ou “pena” restritiva de direito.

Tanto a composição civil dos danos como a transação penal trazem reflexos na pretensão

punitiva estatal, posto conduzirem à extinção da punibilidade.

Assim como ocorre com a composição civil dos danos, na transação penal o que se

negocia não é a pretensão punitiva estatal, e sim o direito de ação, cuja titularidade é do

Ministério Público (nas ações públicas) e do ofendido (nas ações privadas).

Como defendido no tópico 5.1, a expressão “pena” foi impropriamente empregada pelo

legislador na redação do art. 76, da Lei n. 9.099/95. Para Marcos Paulo Dutra42, o legislador

não foi feliz na terminologia, que, interpretada de modo literal, levaria à inconstitucionalidade

do dispositivo, sendo impossível tratar a “reprimenda” decorrente da transação penal como

uma pena propriamente dita.

Essa reflexão se faz necessária para que se compreenda que a transação penal, prevista

no art. 76, não tem por finalidade negociar pena, e sim evitar o processo mediante concessões

recíprocas entre o titular da ação penal (que renuncia ao direito de ação) e o autor do fato (que

se submete a uma medida substitutiva ao processo).

Desse modo, e conforme entendimento doutrinário já consolidado e diante da

jurisprudência firmada pelo Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, a

aplicação da transação penal nos crimes de ação penal privada é juridicamente possível.

41 CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de, op. cit., 2006. p.97. 42 SANTOS, Marcos Paulo Dutra, op. cit., 2006. p.115.

110

Como verberado por Ada Pellegrini43, não existem razões ponderáveis para inviabilizar

a transação penal nas ações privadas, deixando à vítima somente duas alternativas: buscar a

punição plena ou a ela renunciar.

Por outro lado, o autor de infração de menor potencial ofensivo que venha a preencher

os requisitos legais faz jus ao benefício despenalizador, previsto no art. 76, por ser detentor de

um direito público subjetivo. Entendimento contrário resultaria em flagrante violação ao

princípio constitucional da isonomia e outros de semelhante envergadura.

5.5 O art. 76 da Lei n. 9.099/95 conforme a Constituição e à luz dos métodos tradicionais de interpretação

O art. 76 da Lei Federal n. 9.099/95 estabeleceu os contornos, hipóteses e requisitos

para a aplicação da transação penal. O dispositivo legal em comento prevê a possibilidade de

aplicação da transação penal nos CRIMES DE AÇÃO PÚBLICA, condicionada ou

incondicionada, sendo omisso e lacunoso quanto à possibilidade ou não da oferta do benefício

penal nos crimes de ação privada e nas contravenções.

Estabelecida a controvérsia, duas correntes doutrinárias se enfileiraram em contra-

posição, defendendo entendimentos diametralmente opostos. Uma, estribando-se na

interpretação literal do texto legal, posta-se contrária à possibilidade da transação penal nas

infrações de ação privada; outra, invocando a analogia in bonan partem, levanta-se altiva na

defesa da concessão do benefício penal na hipótese em discussão.

Resta saber, então, qual a vontade contida no art. 98 da Constituição Federal e qual a

interpretação que melhor se aproxima do ideal pretendido pelo legislador constituinte. Daí a

necessidade de se interpretar o art. 76 à luz da hermenêutica constitucional e dos meios

tradicionais de interpretação.

Descobrir a vontade na norma é operação intelectual das mais difíceis, a que muitos se

arriscam, mas nem todos conseguem fazê-lo com precisão. Paulo Bonavides44 define a

interpretação como operação lógica, de caráter técnico, mediante a qual se investiga o

significado exato de uma norma jurídica, nem sempre clara ou precisa. Arremata afirmando

que a interpretação busca estabelecer o sentido objetivamente válido de uma regra de direito,

inexistindo norma jurídica que dispense interpretação.

43 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., 2005. p.150. 44 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 19. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 437.

111

Rogério Greco, por sua vez, aponta, entre as várias técnicas envolvidas no processo

exegético, alguns dos mais tradicionais meios de interpretação, sobre os quais discorremos a

seguir, quais sejam: interpretação literal ou gramatical, teleológica, sistêmica ou sistemática e

histórica.45

Acrescentem-se a esses, por merecer realce neste tópico, duas outras técnicas de

perquirição exegética que o referido constitucionalista nominou de interpretação extensiva e

restritiva.

5.5.1 Interpretação literal ou gramatical

A fase inicial do processo exegético se dá através da interpretação literal ou gramatical,

pela qual se busca, em primeiro plano, extrair o literal significado das palavras e seu efetivo

alcance, inicialmente a principal tarefa do exegeta, segundo Rogério Greco46 .

A interpretação literal é a fase em que o significado literal, denotativo das palavras, é

examinado, quer isoladamente, quer no contexto em que se insere, especialmente levando-se

em conta as regras e técnicas gramaticais, como também se valendo do emprego da

Etimologia.

Ressalta Paulo Bonavides que, pelo método de interpretação gramatical, embora sem

desprezar o sentido técnico das palavras, deve-se dar destacada importância à acepção

corrente e usual dos vocábulos, haja vista que a norma jurídica não se destina a seleto grupo

de iniciantes ou especialistas, mas, principalmente à coletividade, que nem sempre está apta a

compreender textos demasiadamente técnicos.47

A interpretação literal ou gramatical é apenas o início do processo interpretativo, não

podendo o intérprete, por mais claro que seja o texto legal, apegar-se cegamente à literalidade

da lei, sem deixar fluir a interpretação lógica, teleológica e sistemática da lei, aliada à

essencial interpretação segundo a Constituição. As palavras, conforme o pensamento de quem

as interpreta, podem conduzir tanto ao erro como à verdade.

45 GRECO, Rogério, op. cit., 2006. p.42. 46 GRECO, Rogério, op. cit., 2006. p.42. 47 BONAVIDES, Paulo, op. cit., 2006. p.440.

112

Daí porque deve o intérprete da norma jurídica evoluir no processo interpretativo,

evitando a “servidão absoluta à letra da lei”, pois, conforme adverte Paulo Bonavides48, toda

indagação circunscrita unicamente à letra da lei é atividade que não pode dar resultado algum.

Tecendo ácidas críticas aos intérpretes da lei que se apegam cegamente à literalidade da

norma para restringir o alcance e aplicação da transação penal, Marcos Paulo Dutra,

defendendo a interpretação sistemática da lei, leciona:

[...] entre as técnicas de hermenêutica, a interpretação literal é a mais pobre de todas, porquanto não demanda qualquer conhecimento jurídico do intérprete. Basta que saiba ler. Nada mais. Por conseguinte, é, também, a mais traiçoeira, pois dá uma visão recortada, parcial da realidade jurídica em estudo. O intérprete obtém tão somente um fragmento da verdade jurídica que persegue. Assim, é imprescindível interpretar sistematicamente determinado dispositivo, cotejando-o com o ordenamento jurídico, e, em especial, com a mens do diploma legal onde está inserido.49

Os que defendem a inaplicabilidade da Transação Penal nos crimes de ação privada

fundamentam a vedação com base na interpretação eminentemente literal e restritiva do art.

76, da Lei n. 9.099/95. Para eles, a ausência de previsão legal de aplicação do benefício

despenalizador, na hipótese em estudo, significa vedação tácita. Manifesto engano, a nosso

ver, pois, como se sabe, em matéria de Direito Penal, especialmente quando se trata de

concessão de benefício, tal lógica não se aplica.

A interpretação literal do art. 76 poderia conduzir - é o que nos parece- às seguintes

conclusões:

Primeira conclusão: Não sendo caso de arquivamento e em se tratando de crime de

ação pública, o Ministério Público poderá propor transação penal. – Nada mais óbvio, já que o

Ministério Público é o titular da ação penal.

Segunda conclusão: Às contravenções penais (que tecnicamente não se confundem

com crime) não se poderia propor transação penal. Tal conclusão, embora extraída da

interpretação literal da lei, reveste-se de manifesta incongruência. Como admitir a legalidade

e legitimidade de uma norma que exclui a possibilidade de transação, quando se tratar de

contravenção, ao mesmo tempo em que admite sua aplicação nos casos de crime, sendo este

de maior gravidade que aquela?

48 BONAVIDES, Paulo, op. cit., 2006. p.441. 49 SANTOS, Marcos Paulo Dutra, op. cit., 2006. p.131-132.

113

Terceira conclusão: O art. 76 é inteiramente omisso quanto à possibilidade ou não de

aplicação da transação penal nos crimes de ação privada. Tal omissão não pode, em absoluto,

ser interpretada como proibição. Ir além dessa conclusão seria mergulhar nas turvas águas da

presunção, ilação, especulação.

A interpretação literal do art. 76 tem provocado manifestos equívocos, entre eles o de

pretender vedar a transação penal nos crimes de ação privada.

5.5.2 Interpretação teleológica

A interpretação literal não basta para se extrair a verdadeira compreensão da norma, daí

a necessidade de se aprofundar na pesquisa para alcançar a real finalidade do texto legal.

Buscar os fins propostos pela lei seria, na lição de Rogério Greco50, o objetivo da

interpretação teleológica.

Ressalta Paulo Bonavides que, pela interpretação teleológica ou lógica, busca-se

reconstruir o pensamento ou intenção do legislador, determinar a ratio ou mens de quem

legislou, de modo a obter a precisa vontade da lei.51

Compreender com precisão a vontade da lei não é tarefa simples. Ao contrário, exige

profunda reflexão sobre os antecedentes da norma e da conjuntura sociopolítica que

impulsionaram sua edição. Nessa empreitada, deve o intérprete, na lição de Alexandre

Joppert52, valer-se de vários elementos, tais como a análise sistêmica da norma, seu aspecto

histórico, sua abordagem frente ao direito comparado, seu aspecto social e político.

A interpretação teleológica do art. 76 da Lei n. 9.099/95, não dá sustentação aos

argumentos dos que defendem a vedação da transação nos crimes de ação privada. Ao

contrário, ao interpretar teleologicamente a norma em questão e ao perscrutar a intenção do

legislador e a finalidade da lei, a outra conclusão não se pode chegar sen,ão a que aponta para

a admissibilidade do benefício penal na hipótese em discussão.

Como dito em tópicos anteriores, o constituinte de 1988, rompendo com o anacrônico

modelo de direito penal até então em vigor, que tinha na pena privativa de liberdade sua

principal sanção, fez clara e manifesta opção por implantar, no Brasil, um inovador, moderno

50 GRECO, Rogério, op. cit., 2006. p.43. 51 BONAVIDES, Paulo, op. cit., 2006. p.441. 52 JOPPERT, Alexandre Couto. Fundamentos de direito penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p.31.

114

e revolucionário modelo de justiça penal consensual, voltado para as infrações de menor

potencial ofensivo.

Embora inspirado no direito comparado, o constituinte brasileiro adotou modelo próprio

de justiça penal consensual, mostrando-se este revolucionário, por ter, entre outras medidas,

mitigado o princípio da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal, de modo a

possibilitar, mesmo nas ações penais públicas, o acordo entre as partes (titular da ação penal e

o autor do fato).

A finalidade da lei maior e a manifesta intenção do legislador constituinte estão voltadas

para a despenalização. Daí o porquê, por interpretação lógica ou teleológica do art. 76,

desprezada pelos que se apegam à literalidade do texto legal, de se admitir a transação penal

nos crimes de ação privada.

5.5.3 Interpretação sistêmica ou sistemática

Partindo-se do pressuposto de que o ordenamento jurídico, a despeito de sua

complexidade, constitui-se um todo ordenado e que nenhum comando normativo existe

isoladamente, urge concluir que para se extrair o real significado e alcance do texto legal,

necessário se faz analisá-lo à luz de todo o sistema jurídico, especialmente das regras de

direito que lhe são particularmente pertinentes. Na dicção de Norberto Bobbio, chama-se

interpretação sistemática

[...] aquela forma de interpretação que tira seus argumentos do pressuposto de que as normas de um ordenamento, ou, mais exatamente, de uma parte do ordenamento (como o Direito privado, o Direito penal) constituam uma totalidade ordenada (mesmo que depois se deixe um pouco no vazio o que se deva entender com essa expressão), e, portanto, seja lícito esclarecer uma norma obscura ou diretamente integrar uma norma deficiente recorrendo ao chamado ‘espírito do sistema’, mesmo indo contra aquilo que resultaria de uma interpretação meramente literal [...].53

A interpretação literal da norma, sem contextualizá-la e sem a devida análise

integrativa, poderá conduzir o intérprete a manifesto equívoco. Daí a categórica afirmação de

Paulo Bonavides, de que impossível se obter o verdadeiro sentido da norma, se considerada

isoladamente, como uma ilha, fora do contexto das leis e das conexões lógicas do sistema. 54

53 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10. ed. Tradução de Maria Celeste C. J. Santos. Brasília: UnB, 1997. p.76. 54 BONAVIDES, Paulo, op. cit., 2006. p.445.

115

Assim é que imperioso se faz interpretar o art. 76, da Lei n. 9.099795, não

isoladamente, mas à luz de todo o ordenamento jurídico, a começar pelo comando

constitucional contido no art. 98 da CF/88.

O texto constitucional em comento previu a possibilidade de oferta de transação penal

nas infrações de menor ofensivo, sem estabelecer qualquer distinção, especialmente quanto à

natureza da ação penal a que estejam submetidas. Por outro lado, o modelo de justiça penal

consensual, criado pelo mencionado dispositivo constitucional, deu especial relevo às

medidas despenalizadoras a serem adotadas pelos Juizados Especiais Criminais.

O dispositivo constitucional dá clara mostra de que, por ser medida de política criminal

tendente a desburocratizar o judiciário, racionalizar o sistema prisional, substituir as penas

privativas de liberdade em delitos de menor significância, a transação penal, instituto benéfico

ao autor do fato, deve ser aplicada às infrações de menor potencial ofensivo, sem qualquer

distinção desarrazoada. A interpretação sistemática do art. 76 deve levar em conta a vontade

do comando constitucional.

5.5.4 Interpretação histórica (Occasio Legis)

A análise dos antecedentes históricos da norma interpretada é de significativa

relevância, para auxiliar sua correta compreensão. Conforme Rogério Greco,

[...] Por meio da interpretação histórica o intérprete volta ao passado, ao tempo em que foi editado o diploma que se quer interpretar, buscando os fundamentos de sua criação, o momento pelo qual atravessava a sociedade, etc., com vistas a entender o motivo pelo qual houve a necessidade de modificação do ordenamento jurídico, facilitando, anda, a interpretação de expressões contidas na lei [...].55

No tópico 4.1, deste trabalho, abordamos, com mais detalhamento, os antecedentes

históricos do comando constitucional que previu a criação dos Juizados Especiais Criminais e

seus institutos despenalizadores. Para relembrar alguns dos fatores que moveram o legislador

constituinte, destaque-se: 1- no plano nacional: crise do tradicional modelo de direito penal e

do sistema penal; superlotação dos presídios e cadeias públicas; desejo social por reforma que

tornasse o sistema mais moderno e compatível com a nova realidade brasileira; falta de

efetividade do processo penal; excesso legislativo em matéria penal; ausência de vias

alternativas de solução dos litígios de natureza penal, entre outros. No plano internacional:

aperfeiçoamento do sistema penal nos Estados Unidos e vários países da Europa ocidental,

55 GRECO, Rogério, op. cit., 2006. p.44.

116

especialmente a partir da década de 1970, com a adoção de soluções que se mostravam mais

compatíveis à sua realidade. Em comum, esses países adotaram um novo modelo de direito

penal, voltado para a justiça consensual.

O Brasil adotou seu próprio modelo, embora inspirado no direito comparado. A

exemplo dos países citados, o Brasil optou pela despenalização e solução negociada do

conflito, por meio de processos menos formais, mais céleres, simples e democráticos. As

medidas despenalizadoras, previstas pelo legislador pátrio, permitem não só encurtar o

processo, mas também evitá-lo.

Inviabilizar a transação penal ou a suspensão do processo produz como conseqüência,

via de regra, a instauração da ação penal, que o legislador constituinte se esforçou por evitar.

5.5.5 Interpretação extensiva e restritiva

Por vezes, e normalmente por ausência de técnica legislativa mais apurada, o texto da

lei se mostra falho, por não refletir a vontade do legislador. Não é incomum a lei pecar por

excesso, quando diz mais do que pretendeu o legislador ou por ser demasiadamente restrita,

quando, ao contrário, diz menos do que queria seu autor.

Ao intérprete cabe dar o real e necessário alcance da norma, dando a exata

correspondência entre o que está escrito e o que se pretendeu escrever, entre a literalidade da

lei e seu espírito.

Interpreta-se restritivamente a norma para restringir sua aparente extensão. Ao revés,

deve o intérprete ampliar o alcance ou o sentido da norma, interpretando-a extensivamente.

O art. 76, em discussão, padece de manifesta omissão. Não regulamenta o instituto da

transação penal nos crimes de ação penal privada. A hipótese não é expressamente vedada,

tampouco admitida. O mesmo dispositivo legal, por sua vez, admite expressamente a

concessão do benefício despenalizador nos crimes de ação penal pública.

Em tais circunstâncias, a melhor interpretação do texto legal em comento deve ser no

sentido de alargar seu alcance, admitindo-se a transação penal na hipótese questionada,

especialmente para compatibilizá-lo com o princípio constitucional da isonomia, que restaria

indelevelmente violado caso prevalecesse a interpretação literal e restritiva da norma.

117

As regras limitativas de direito devem ser interpretadas restritivamente; as concessivas,

extensivamente, especialmente quando se tratar de benefício de natureza penal, como é o da

transação. Essa é uma máxima que bem se aplica ao caso sob análise. Nesse sentido, assim

leciona Marcos Paulo Dutra:

[...] é inconcebível interpretar restritivamente uma norma que ampliou o conceito de infração de menor potencial ofensivo, beneficiando o acusado, haja vista que regras penais concessivas de direitos devem ser interpretadas de maneira a ampla, e não restrita [...].56

Arremata seu entendimento afirmando:

[...] Ora, se o intuito da Lei nº 9.099/95 é despenalizador, há de se privilegiar a interpretação que amplie as hipóteses de transação penal, e não a que as restringe. Não se pode esquecer que as normas restritivas de direitos devem ser interpretadas da maneira mais restrita possível, mormente em Direito Penal, onde o que está em jogo, em última análise, é o status libertatis do sujeito [...].57

5.5.6 Interpretação conforme a Constituição

Para se extrair da norma jurídica sua essência, significado e sentido, não basta apenas

submetê-la aos tradicionais métodos literais, teleológicos, sistemáticos e históricos de

interpretação. Em especial, quando se tratar de norma infraconstitucional, deverá o intérprete

submetê-la ao crivo de compatibilidade com a Constituição, interpretá-la à luz dos princípios

de interpretação constitucional.

A interpretação de lei ordinária, conforme a Constituição, é, segundo Rogério Greco,

método de interpretação mediante o qual o intérprete, de acordo com uma concepção penal

garantista, procura aferir a validade das normas58 mediante seu confronto com a Constituição.

A tendência que predominava há não muito tempo, para não dizer que ainda persiste,

era no sentido de se dar à norma interpretação sob a ótica privatista do intérprete, que, no

curso do processo exegético, primeiramente recorria aos códigos e demais leis ordinárias e,

por último, à Constituição. O método especial de interpretação à luz da Constituição segue

sentido oposto. Primeiramente, com primazia, analisa-se o direito sob a ótica constitucional,

depois em confronto com as normas infraconstitucionais. Nesse particular, eloqüente a lição

de Jorge de Miranda, quando afirma que interpretar segundo a Constituição significa:

56 SANTOS, Marcos Paulo Dutra, op. cit., 2006. p.17-18. 57 SANTOS, Marcos Paulo Dutra, op. cit., 2006. p.132. 58 GRECO, Rogério, op. cit., 2006. p.47.

118

[...] conceder todo o relevo, dentro do elemento sistemático da interpretação, à referência à Constituição. Com efeito, cada norma legal não tem somente de ser captada no conjunto das normas da mesma lei e no conjunto da ordem legislativa, tem outrossim de se considerar no contexto da ordem constitucional; e isso tanto mais quanto mais se tem dilatado, no século XX, a esfera de acção desta como centro de energias dinamizadoras das demais normas da ordem jurídica positiva [...].59

Entre as principais técnicas, que alguns preferem chamar de princípios, de interpretação

constitucional, aplicáveis também para se extrair da norma infraconstitucional o significado

que mais se compatibilize com a lei maior, destacamos: o da supremacia da Constituição e o

da máxima efetividade das normas constitucionais.

Como norma de hierarquia superior e absoluta, a Constituição Federal encontra-se

entronizada no ápice da pirâmide jurídica e dela deriva e nela se encerra todo o fundamento

de validade da norma jurídica. Da supremacia constitucional decorrem os limites impostos aos

entes e demais poderes da federação, que devem se pautar dentro das normas da lei

fundamental.

Daí concluir-se que toda norma, decorrente do poder constituinte derivado ou do

legislador infraconstitucional, deve ser interpretada considerando a superioridade da lei maior

que lhe dá sustentação. Nesse sentido, o princípio da supremacia constitucional destaca-se

como elemento de apoio à hermenêutica adequada ao conteúdo normativo constitucional e

infraconstitucional. Nesse sentido, eloqüente é a lição de Luiz Roberto Barroso, para quem

[...] Toda interpretação constitucional se assenta no pressuposto da superioridade jurídica da Constituição sobre os demais atos normativos no âmbito do Estado. Por força da supremacia constitucional nenhum ato jurídico, nenhuma manifestação de vontade pode subsistir validamente se for incompatível com a Lei Fundamental [...].60

A vinculação do legislador à Constituição é, na lição de Canotilho61, uma das relevantes

conseqüências decorridas do princípio da supremacia constitucional. Daí poder-se afirmar que

o legislador infraconstitucional, na tarefa delegada de regulamentar dispositivo constitucional,

não poderá extrapolar os limites da delegação nem restringir o alcance da norma outorgante,

que lhe é de hierarquia superior.

Ao interpretar a norma constitucional, deve o intérprete buscar o sentido que lhe dê

maior efetividade, que lhe dê força operativa no mundo dos fatos, por força do princípio da 59 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p.454. 60 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. Fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 1996. p.150. 61 CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., 1999. p.242.

119

máxima efetividade da norma constitucional. Sobre esse princípio de hermenêutica

constitucional, assim discorre Willis Santiago Guerra Filho:

[...] Princípio da máxima efetividade, também denominado princípio da eficiência ou da interpretação efetiva, por determinar que, na interpretação de norma constitucional, se atribua a ela o sentido que a confira maior eficácia, sendo de se observar que, atualmente, não mais se admite haver na Constituição normas que sejam meras exortações morais ou declarações de princípios e promessas a serem atendidos futuramente [...].62

O enunciado acima bem se harmoniza com o pensamento de Marcio Augusto de

Vasconcelos Diniz, que no texto de introdução ao livro Controle de Constitucionalidade e

Teoria da Recepção adverte que o Judiciário não pode adotar postura contemplativa, senão

dinâmica, no processo de concretização das regras e princípios constitucionais, por considerar

que através da interpretação da Constituição se alcança a solução dos problemas relevantes

da comunidade.63

Da análise acurada dos princípios de interpretação constitucional, Paulo Bonavides

extrai as seguintes lições: a) uma norma constitucional não deve ser interpretada

isoladamente; b) do conteúdo da Constituição procedem princípios e decisões fundamentais

que não podem ficar ignorados e que devem ser levados na devida conta, quando do processo

exegético; c) mais que um todo ou uma unidade, a Constituição representa um sistema de

valor. Destaca ainda o aludido constitucionalista que o intérprete não se afaste do princípio

estabelecido pelo Tribunal Constitucional da Áustria, segundo o qual “[...] a uma lei, em caso

de dúvida, nunca se lhe dê uma interpretação que possa fazê-la parecer inconstitucional

[...]”.64

Estabelecidas, pois, as linhas de interpretação à luz da hermenêutica constitucional,

mostra-se oportuno, mais uma vez, confrontar e analisar, sob essa mesma ótica, o comando do

art. 98, da CF/88, com o controverso art. 76 da Lei n. 9.099/95.

Em capítulos e tópicos anteriores, dissertamos sobre o que nos parecia ser a vontade e

finalidade do legislador constituinte ao prever, no art. 98, da CF/88, a criação dos Juizados

Especiais, com competência para processar, julgar e executar as infrações de menor potencial

62 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: RCS, 2007. p. 73. 63 DINIZ, Marcio Augusto de Vasconcelos. Controle de constitucionalidade e teoria da recepção. São Paulo: Mlheiros Editores, 1995. p. 12. 64 BONAVIDES, Paulo, op. cit., 2006. p.519.

120

ofensivo, bem como ao optar pela justiça penal consensual, com índole eminentemente

despenalizadora, daí a previsão da transação penal.

Admitir que o legislador infraconstitucional, na função delegada de regulamentar o

texto constitucional, tenha, expressa ou implicitamente, estabelecido no art. 76 tratamento

diferenciado para os autores de infração penal de menor potencial ofensivo, com base apenas

na natureza da ação penal (distinção não prevista no comando constitucional), afrontaria, a

nosso ver, os princípios da soberania constitucional, ao mesmo tempo em que violaria o

princípio da máxima efetividade da lei fundamental, pois estaria a lei infraconstitucional indo

além da delegação (quebrando o vínculo de subordinação do legislador), como também

restringindo o alcance das medidas despenalizadoras, que se constituem a materialização e

efetividade da justiça consensual.

Duas interpretações diametralmente opostas têm se dado ao art. 76, em comento: uma

no sentido de não admitir a transação penal nos crimes de ação privada, fundada na

interpretação literal e restritiva da norma. Tal interpretação restringe o alcance da norma

constitucional, confere à lei infraconstitucional poderes não outorgados pela norma

constitucional e ainda estabelece tratamento desigual a acusados que se encontram em

idêntica situação fático-jurídica; outra, admitindo, por analogia, a concessão do benefício

penal em tal hipótese.

Se é correto afirmar que a uma lei, em caso de dúvida, não se pode dar uma

interpretação que possa fazê-la parecer inconstitucional, conforme defendido por Paulo

Bonavides, correto também seria concluir que a segunda corrente interpretativa confere ao art.

76 a indispensável feição de constitucionalidade. 65

5.6 O art. 76 da Lei n. 9.099/95, à luz dos princípios constitucionais

A Constituição, na concepção de Canotilho66, é formada por regras e princípios de

diferente grau de concretização, que se constituem fonte primária da produção e validade da

norma jurídica e importante fundamento para a interpretação, integração, conhecimento e

aplicação do direito positivo. Na ótica de Luiz Roberto Barroso, os princípios constitucionais

[...] são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins. Dito de forma sumária, os princípios constitucionais

65 BONAVIDES, Paulo, op. cit., 2006. p.519. 66 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, op. cit., 1993. p.180.

121

são as normas eleitas pelo constituinte como fundamento ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui. 67

Os princípios constitucionais funcionam, assim, como a base de sustentação de todo o

ordenamento jurídico, sendo certo afirmar que, nesse contexto, nenhuma lei, nenhum ato

jurídico, nenhuma manifestação da vontade pode subsistir validamente, se for incompatível

com a Lei Fundamental e os princípios por ela consagrados.

Neste tópico, pretendemos analisar o art. 76 da Lei n. 9.099795, à luz dos princípios

constitucionais da isonomia, razoabilidade e dignidade da pessoa humana, de modo a extrair

do texto analisado a interpretação que lhe dê máxima concretude, efetividade e

compatibilidade com os ditames fundamentais.

5.6.1 Princípio da isonomia

O legislador constituinte, já de início, deixou positivado e consagrado, por sua extrema

relevância, o princípio da isonomia ou igualdade, ao dispor, no art. 5º, caput, da Constituição

Federal de 1988, que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. O

princípio da isonomia volta a ser destacado, explicita ou implicitamente, em outros

preceptivos da Constituição. Todavia, a regra geral de isonomia, estabelecida no art. 5º em

comento, é bastante e suficiente para eliminar qualquer dúvida quanto ao alcance, extensão e

importância da igualdade substancial que o texto constitucional pretendeu garantir.

A igualdade constitucional que se cuida, significa, na dicção de Ignácio Burgoa,

mencionada por Rogério Laura Tucci,

[...] Juridicamente la igualdad se traduce em que varias personas, em número indeterminado, que se encontram em determinada situación, tengan la possibilidad y capacidad de ser titulares cualitativamente de los mismos derechos y de contraer las mismas obligaciones que emanam de dicho estado. Em otras palabras, la igualdad, desde un ponto de vista jurídico, se manifesta en la posibilidad y capacidad de que varias personas, numéricamente indeterminadas, adquieran los derechos y contraigan las obligaciones derivados de una cierta y determinada situación en que se encuentrem. 68

Kelsen traduziu o princípio da isonomia numa fórmula quase matemática. Para ele, o

princípio fundamental, plenamente formulado, diz: “quando os indivíduos são iguais – mais

rigorosamente: quando os indivíduos e as circunstâncias externas são iguais – devem ser

67 BARROSO, Luís Roberto, op. cit., 1996. p.141. 68 TUCCI, Rogérigo Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1993. p.158.

122

tratados igualmente; quando os indivíduos e as circunstâncias externas são desiguais, devem

ser tratados desigualmente.” 69

Tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual, na exata medida de

suas desigualdades, representa a essência do princípio da isonomia, refletindo o caráter geral

de todas as normas de justiça. A equivalência ou paridade de situação constitui-se, pois, o

fundamento da aplicação do princípio sob análise. Nesse sentido segue o pensamento de

Tucci, que assim leciona: “[...] Com efeito, em paridade de situações, ninguém deve ser

tratado excepcionalmente. Todavia, evidenciada a desigualdade entre as pessoas [...] deverão

ser consideradas as situações desiguais, para que possa haver igualdade”. 70

A igualdade que se cuida, oportuno é ressaltar, dá-se na seara jurídica, perante a lei,

conforme o próprio texto constitucional consagrador do princípio. O legislador constituinte

não quis e nem poderia, por razões mais que óbvias, eliminar, por lei, mesmo que de status

constitucional, as desigualdades que naturalmente existem entre os homens, tornando-os

absolutamente iguais. As desigualdades são reais e não podem ser desprezadas. Conforme

Kelsen71, não é possível deixar de lado todas as desigualdades em toda e qualquer Espécie de

tratamento. Certas desigualdades têm de ser levadas em consideração. O problema, na sua

concepção, é apenas de saber quais desigualdades devem ser desprezadas e quais indivíduos

que, portanto, podem ser considerados como iguais. Nesse contexto, o princípio da isonomia

serve para afastar normas que estabeleçam discriminações injustificadas, arbitrárias,

dezarrazoadas e injustas.

O princípio da isonomia, entretanto, não é de simples interpretação e fácil aplicação, em

face das complexidades que lhe são intrínsecas, especialmente por envolver elementos

jurídicos e metajurídicos que devem ser analisados com prudência, bom senso e acurada visão

constitucional. Todavia, dúvida não há quanto à sua função limitativa, dirigida ao legislador e

ao intérprete das normas.

No exercício da atividade legiferante, não pode o legislador se afastar do princípio da

igualdade, sob pena de incorrer em manifesta e flagrante inconstitucionalidade. O legislador

pode prevê tratamento jurídico diferenciado a determinadas pessoas ou grupo de pessoas,

69 KELSEN, Hans. O problema da justiça. Tradução de João Baptista Machado. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.54. 70 TUCCI, Rogérigo Lauria, op. cit., 1993. p.159. 71 KELSEN, Hans, op. cit., 2003. p.53.

123

verificada a excepcionalidade e especialidade da situação. Quando há justificativa racional,

razoável e relevante, observados os valores sociais que a Constituição Federal pretendeu

resguardar, a norma que veicule tratamento jurídico diferenciado, à vista do traço

desigualador, compatibiliza-se com o princípio constitucional, na medida em que prestigia a

regra que reclama tratamento desigual aos desiguais.

Para se verificar a constitucionalidade da norma veiculadora de tratamento jurídico

desigual, entre outras questões, conforme Celso Antonio Bandeira de Mello,

[...] tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente, impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente é, in concreto, afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional72

O que o princípio da igualdade impede é que o legislador promova no ordenamento

jurídico desequiparações arbitrárias, desarrazoadas, aleatórias ou mal inspiradas.

Por outro lado, na lição de Celso Antonio Bandeira de Melo, o respeito ao princípio da

igualdade reclama do exegeta vigilante cautela. Não pode o intérprete recepcionar qualquer lei

ou ato normativo que veicule tratamento jurídico desigual, entre pessoas ou grupos de pessoas

que se encontrem em equivalência ou paridade de situações. 73

O controle de constitucionalidade das leis e atos normativos cabe ao poder judiciário,

que, ao interpretar o princípio da isonomia, deve considerar os critérios da justiça social e

levar em conta que a igualdade constitucional deve ser avaliada sob seu aspecto substancial e

ou material, não podendo se limitar ou se ater à enunciação de um postulado formal e abstrato

de isonomia jurídica.

Não havendo, pois, razão substancialmente plausível para o tratamento desigual, deve a

lei ou ato normativo ser considerado inconstitucional, por violação ao princípio da isonomia.

Feitas essas considerações sobre o princípio da isonomia, parece-nos, especialmente

agora, mais fácil responder se cabe ou não transação penal nos crimes de ação privada.

72 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p.21-22. 73 Ibid., 2004. p.46.

124

Relembramos, aqui, que o art., 76 da Lei n. 9.099/95, é omisso, lacunoso, quanto à

possibilidade ou não da transação penal na hipótese em questão. Por outro lado, a corrente

doutrinária que defende a vedação da transação penal nos crimes de ação privada baseia-se na

presunção de que, se o legislador não admitiu, expressamente, a possibilidade, é porque a

vedou tacitamente.

Recorremos a um exemplo hipotético, para, em seguida, após análise, manifestar nossa

opinião sobre o questionamento reiteradamente formulado neste trabalho.

Ao estacionar seu carro próximo a um barzinho, JOÃO, sem querer, derrubou uma moto

que ali se encontrava. Para sua infelicidade, a moto, que não sofreu qualquer dano, pertencia a

PEDRO, seu antigo desafeto. PEDRO, todavia, investiu contra JOÃO, desferindo-lhe socos e

ponta pés, produzindo em JOÃO lesões corporais leves (arranhões, hematomas etc.). Contido

por apaziguadores, PEDRO passou a ameaçar JOÃO de morte, dizendo que o mataria na

próxima vez que o encontrasse. Com a chegada da polícia, MARIA, namorada de JOÃO,

passou a narrar o acontecido, sendo de súbito interrompida por ANA, que, discordando da

narrativa, e na presença apenas do policial, passou a chamá-la de mentirosa, vagabunda e

outros adjetivos desqualificadores.

Os envolvidos foram todos levados para a delegacia, onde, observadas as formalidades

legais, lavrou-se TCO contra PEDRO, por crime de lesão corporal e ameaça, e contra ANA,

por crime de injúria.

Considerando que o somatório das penas máximas previstas para os delitos imputados a

PEDRO (lesão corporal – um ano; ameaça – seis meses) era inferior a dois anos e observando

que os requisitos do §2º, do art. 76, da Lei n. 9.099/95, foram preenchidos, o Ministério

Público, em audiência preliminar, formulou proposta de transação penal, que foi aceita por

PEDRO, com anuência de seu advogado, e de logo homologada pelo Juiz. Na mesma

audiência preliminar, restou frustrada a tentativa de composição civil dos danos entre MARIA

e ANA. Apesar de se tratar de crime com pena máxima prevista de seis meses, mesmo

preenchendo os requisitos do §2º, do art. 76, da lei em comento, e ainda diante da

manifestação de ANA no sentido de obter o benefício da transação penal, o M.M. juiz

presidente da audiência não aceitou que MARIA, por seu advogado, ou o Ministério Público

formulasse a proposta de transação penal, alegando que o art. 76 não admitia tal possibilidade,

prevista apenas para os crimes de ação pública, condicionada ou incondicionada.

125

Percebe-se, sem muito esforço intelectivo, que o princípio da isonomia foi, no caso

hipotético acima, flagrante e manifestamente violado.

Os crimes imputados a PEDRO e ANA enquadram-se perfeitamente na definição legal

de infração de menor potencial ofensivo. A conduta de PEDRO mostrou-se muito mais grave

que a de ANA, posto que, em concurso material, cometeu dois crimes distintos, que somados

totalizaram um ano e seis meses. ANA, por sua vez, cometeu apenas um crime, com pena

máxima de seis meses. A natureza e a sconseqüências dos delitos praticados por PEDRO

reclamam maior reprovação, já que produziu lesão à integridade física do ofendido, causando-

lhe justo receio de morte. O delito praticado por ANA não produziu qualquer resultado no

mundo real, mas apenas, e por breves momentos, na intimidade da ofendida, não

recomendando maior reprovação.

Pela espécie de infração praticada (de menor potencial ofensivo) e havendo ambos

preenchido os requisitos objetivos e subjetivos para a concessão da transação penal, PEDRO e

ANA estavam em paridade e equivalência de situação, merecendo o mesmo tratamento

jurídico, qual seja, receberem o benefício despenalizador da transação penal. Em ambos os

casos, foi mínima a lesão cometida, razão pela qual deveriam receber os mesmos benefícos

despenalizadores. Todavia, ambos receberam tratamento jurídico diferenciado, com base

exclusivamente na natureza da ação penal que envolvia os delitos praticados.

A destinação de tratamento desigual entre iguais caracteriza flagrante violação ao

princípio constitucional da igualdade. Em homenagem a esse princípio, torna-se inevitável e

obrigatório reconhecer que não se pode inviabilizar a concessão da transação penal com base

apenas na natureza da ação penal. Entendimento diverso seria dar ao art. 76, da Lei n.

9.099/95, interpretação em desconformidade com a Constituição, premiando-se e

privilegiando-se o arbítrio em detrimento da igualdade substancial defendida pela

Constituição Federal de 1988.

5.6.2 Princípio da razoabilidade

Até bem pouco tempo, o princípio da razoabilidade não se encontrava expressamente

previsto no texto da Constituição de 1988. Apesar disso, não se podia inferir que tal princípio

estivesse afastado do sistema constitucional pátrio, haja vista que nenhum ordenamento

jurídico que se pretenda denominar como justo poderá subsistir, se não estiver amparado na

razoabilidade e na racionalidade de suas normas, elementos indispensáveis de legitimidade.

126

Através da Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004, o art. 5º da

Constituição Federal de 1988 foi acrescido do inciso LXXVIII, que, em seu texto, fez

expressa referência ao princípio da razoabilidade. Eis o inteiro teor do inciso em

comento:“[...] LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a

razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”

Razoabilidade e proporcionalidade são princípios que andam juntos e, em certos

aspectos, quase se confundem, embora entre eles haja manifesta distinção conceitual e prática.

Nem sempre a utilização do termo razoabilidade e proporcionalidade corresponde ao sentido

técnico que lhes é próprio.

Os tribunais nacionais, especialmente o Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal

de Justiça, em reiteradas oportunidades, utilizam indistintamente a expressão razoabilidade e

proporcionalidade com se tivessem o mesmo significado, como se estivessem íntima e

indissoluvelmente associados. Apesar da imprecisão terminológica, o que se evidencia é que,

ao lançarem mão desses princípios, os julgadores o fazem sempre em consonância com seus

objetivos e conteúdo, com o fim de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos em face de

eventual arbítrio do poder estatal.

Não nos parece oportuno dissecar os institutos e sobre eles dissertar extensivamente.

Fugiria ao nosso propósito. Todavia, a compreensão do tema abordado neste trabalho

acadêmico exige que se trace as linhas gerais do princípio da razoabilidade. As noções gerais

do instituto nos permitirão extrair a interpretação do art. 76 que melhor se compatibiliza com

a Constituição Federal vigente.

Quando se fala em razoabilidade, de logo remetemo-nos à idéia de algo aceitável,

lógico, racional, admissível, justo. A razoabilidade traduz, ainda, a idéia do bom senso,

prudência e moderação. Os juristas americanos, por exemplo, entendem a expressão

razoabilidade como sendo tudo que esteja conforme a razão.

Ao vincular a noção de razoabilidade ao conceito de Direito, Bruno Leonardo Câmara

Carrá74 assim leciona:

74 CARRÁ, Bruno Leonardo Câmara. Aplicação do Princípio da Razoabilidade no Direito Brasileiro. In MORAES, Gemana de Oliveira (coord.). Temas Atuais de Direito Administrativo. Fortaleza: ABC Editora, 2000. p. 74.

127

Se o Direito é pautado em termos de regramento de condutas, também o é como medida do justo. E, como tal, de tudo quanto é corolário ou pelo menos relacionado a esse justo, ou seja, o prudente, o ponderado, o sábio, o aceitável, o tolerável etc. Numa só palavra: o razoável. Sem qualquer exagero, portanto, pode-se perfeitamente afirmar que a noção de razoabilidade é algo inerente ao próprio conceito de Direito, ainda que na maioria das vezes o expressemos de modo implícito.

José Frederico Marques75, referindo-se à importância e utilização do princípio da

razoabilidade, leciona que o intérprete deve trabalhar com a norma atendendo ao logos del

razonable, pois “[...] O entendimento da lei deve subordinar-se a método dúctil e flexível que

permita ao juiz, sem afastar-se da regra do jus scriptum, adotar, entre as várias interpretações

possíveis, aquela que lhe pareça mais razoável”.

Dissertando sobre o tema, especialmente sobre a finalidade e alcance do princípio em

estudo, Humberto Ávila destaca que a razoabilidade exige: 1- harmonização da norma geral

com o caso individual; 2- harmonização das normas com suas condições externas de

aplicação; 3- relação de equivalência entre a medida adotada e o critério que a dimensiona. 76

Jorge de Miranda, por sua vez, leciona que a razoabilidade também se aplica para coibir

a disfunção representada pela contradição interna da lei ou pela inadequação do seu conteúdo

com o seu fim.

Dos ensinamentos de Ávila e Jorge Miranda, poder-se-ia concluir pela nulidade da lei

ou ato normativo, por inconstitucional, que adotasse critério diferenciador desprovido de

razoabilidade e equivalência com a medida restritiva adotada. 77 Isso por uma simples razão: o

tratamento diferenciado, contrário à regra de isonomia consagrada, somente se mostra

compatível com a Constituição Federal quando verificada que a diferença legal estabelecida

atende a um fim razoável, justo, lógico, racional, também amparado constitucionalmente.

O princípio da razoabilidade serve, pois, para dar efetividade aos direitos fundamentais

consagrados na Lei Máxima, na medida em que tende a afastar do ordenamento jurídico

normas restritivas de direito que se mostrem contrárias à razão, à lógica, à racionalidade, à

moderação e ao bom senso. Nesse sentido, o princípio da razoabilidade se qualifica como

verdadeiro parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais.

75 MARQUES, José Frederico, op. cit.,1997. v. I. p.52. 76 ÁVILA. Humberto Bergmann. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003. p.95-103. 77 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3. ed. (reimpressão). Coimbra: Editora Coimbra, 1996. t II. p. 347-348.

128

Em reiteradas oportunidades, o Supremo Tribunal Federal tem utilizado o princípio da

razoabilidade como parâmetro de avaliação da constitucionalidade de leis e atos normativos.

O enunciado a que se segueir é manifestamente didático e bem se aplica ao tema sob estudo.

Embora extenso, vale a pena transcrever, quase integralmente, o teor da ementa.

E M E N T A: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI DISTRITAL QUE DISPÕE SOBRE A EMISSÃO DE CERTIFICADO DE CONCLUSÃO DO CURSO E QUE AUTORIZA O FORNECIMENTO DE HISTÓRICO ESCOLAR PARA ALUNOS DA TERCEIRA SÉRIE DO ENSINO MÉDIO QUE COMPROVAREM APROVAÇÃO EM VESTIBULAR PARA INGRESSO EM CURSO DE NÍVEL SUPERIOR - LEI DISTRITAL QUE USURPA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA OUTORGADA À UNIÃO FEDERAL PELA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA - CONSIDERAÇÕES EM TORNO DAS LACUNAS PREENCHÍVEIS - NORMA DESTITUÍDA DO NECESSÁRIO COEFICIENTE DE RAZOABILIDADE - OFENSA AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE - ATIVIDADE LEGISLATIVA EXERCIDA COM DESVIO DE PODER - PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO - DEFERIMENTO DA MEDIDA CAUTELAR COM EFICÁCIA ‘EX TUNC’. A USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA, QUANDO PRATICADA POR QUALQUER DAS PESSOAS ESTATAIS, QUALIFICA-SE COMO ATO DE TRANSGRESSÃO CONSTITUCIONAL. – [...] TODOS OS ATOS EMANADOS DO PODER PÚBLICO ESTÃO NECESSARIAMENTE SUJEITOS, PARA EFEITO DE SUA VALIDADE MATERIAL, À INDECLINÁVEL OBSERVÂNCIA DE PADRÕES MÍNIMOS DE RAZOABILIDADE. - As normas legais devem observar, no processo de sua formulação, critérios de razoabilidade que guardem estrita consonância com os padrões fundados no princípio da proporcionalidade, pois todos os atos emanados do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do ‘substantive due process of law’. Lei Distrital que, no caso, não observa padrões mínimos de razoabilidade. A EXIGÊNCIA DE RAZOABILIDADE QUALIFICA-SE COMO PARÂMETRO DE AFERIÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DOS ATOS ESTATAIS. - A exigência de razoabilidade - que visa a inibir e a neutralizar eventuais abusos do Poder Público, notadamente no desempenho de suas funções normativas - atua, enquanto categoria fundamental de limitação dos excessos emanados do Estado, como verdadeiro parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais. [...] ADI-MC 2667 / DF - DISTRITO FEDERAL MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Relator(a): Min. CELSO DE MELLO Julgamento: 19/06/2002 Órgão Julgador: Tribunal Pleno Publicação DJ 12-03-2004 PP-0003678

Desse modo, para que o tratamento desigual, previsto em lei, possa ser considerado não

discriminatório e inconstitucional, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva

e razoável, cuja exigência deve se aplicar em relação à finalidade e efeitos da medida

considerada, devendo estar presentes as necessárias e indispensáveis equivalência e

razoabilidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, observados os direitos

fundamentais constitucionalmente assegurados.

78 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em:<http:/www.stf.gov.Br/consulta/jurisprudência>. Acesso em: 09 out. 2007.

129

Feitas essas considerações, tornamos à analise do art. 76 da Lei nº 9.099/95, desta feita

à luz do princípio da razoabilidade.

Voltemos ao exemplo hipotético apresentado no tópico anterior.

PEDRO e ANA cometeram crimes definidos como de menor potencial ofensivo.

Ambos preenchiam os requisitos objetivos e subjetivos previstos no § 2º, do art. 76 em alusão.

Ambos se encontravam, a rigor, em idêntica situação fático-jurídica. O primeiro, cometedor

de dois crimes, foi beneficiado com a transação penal. A segunda, cometedora apenas de um

delito, não obteve o mesmo benefício despenalizador. O tratamento desigual baseou-se apenas

em um único critério: a natureza da ação penal.

Nessa hipótese, urge perquirir: a natureza da ação penal (se pública ou privada) seria

critério diferenciador suficientemente razoável para admitir o tratamento desigual destinado a

ANA? Acreditamos piamente que não. Oportuno ainda indagar: Qual valor constitucional ou

interesse socialmente relevante o critério diferenciador pretendeu resguardar? Nenhum, é a

resposta óbvia.

Como dito em linhas anteriores, somente será legítima a desequiparação, quando

fundada e logicamente subordinada a um elemento discriminatório de manifesta razoabilidade

e relevância aferível objetivamente e, que prestigie valores protegidos constitucionalmente. A

desequiparação fundada apenas na natureza da ação penal envolvida, ao contrário, mostra-se

contrária à razão, à lógica, ao bom senso.

Ressalte-se, por oportuno, que o objetivo implícito do art. 98 da Constituição Federal

foi o de propiciar via alternativa de solução do litígio penal, baseada no consenso. As medidas

despenalizadoras albergadas pelo texto constitucional tendem a impedir a estigmatização do

acusado pelo processo penal, que tem em si suas próprias agruras. Embora a Constituição

tenha delegado à lei federal a tarefa de estabelecer as hipóteses da transação penal, não é

razoável admitir que a Constituição tenha permitido tratamento discriminado com base apenas

e exclusivamente na natureza da ação penal, especialmente levando-se em conta que o

legislador constituinte elegeu como parâmetro norteador da concessão do benefício a menor

ofensividade da infração penal.

Assim, o critério desigualador (natureza da ação penal) não resguarda qualquer bem ou

valor social constitucionalmente protegido. Ao contrário, ao negar a transação penal e

130

conseqüentemente submeter o acusado ao processo penal tradicional, estar-se-ia desprezando

a vontade do legislador constituinte, ao tempo em que se estaria injustificadamente

sacrificando direitos fundamentais do acusado, a exemplo da liberdade, presunção de

inocência e dignidade da pessoa humana.

Assim, em homenagem aos princípios da isonomia e da razoabilidade, o art. 76 há de

ser interpretado no sentido de admitir a transação penal nas infrações de menor potencial

ofensivo independentemente da natureza da ação penal que as envolve.

5.6.3 Princípio da dignidade da pessoa humana

Não sem razão a Lei Máxima brasileira foi alcunhada de Constituição Cidadã. Já em seu

artigo inaugural, a Constituição Federal de 1988 consagrou a dignidade da pessoa humana

como fundamento do Estado Democrático de Direito que a República Federativa do Brasil

representa, conforme expressa disposição constante em seu art. 1º, inciso III.

A opção do legislador constituinte é emblemática e demonstra que a dignidade humana

foi alçada à condição de princípio fundamental da República Federativa do Brasil,

constituindo-se, desse modo, a norma-princípio a que não só o aplicador do direito, mas

também o legislador devem curvar-se.

O destaque que se dá à dignidade da pessoa humana, dentro do arcabouço

constitucional, não é de causar estranheza. Afinal, a razão de ser do Estado, que não existe por

si e para si, é proteger o Homem, enquanto ser dotado de razão e sentimentos. Nesse sentido

se constrói o ensinamento de Ingo Wolfgang Sarlet, para quem “o Estado é que existe em

função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade

precípua, e não meio da atividade estatal.” 79

O entendimento de Ingo Wolfgang é compartilhado por J. J. Gomes Canotilho80, que,

analisando o significado da dignidade da pessoa humana, como base da República, assim

leciona:

[...] perante as experiências históricas da aniquilação do ser humano (inquisição, escravatura, nazismo, stalinismo, polpotismo, genocídios étnicos) a dignidade da pessoa humana como base da República significa, sem transcendências ou

79SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2006. p.65. 80 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 1999. p. 219.

131

metafísicas, o reconhecimento do ‘homo noumenom’, ou seja, do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República. Neste sentido, a República é uma organização política que serve o homem, não é o homem que serve os aparelhos político-organizatórios. A compreensão da dignidade da pessoa humana associada à idéia de ‘homo noumenom’ justificará a conformação constitucional da República portuguesa onde é proibida a pena de morte (artigo 24º) e a prisão perpétua (artigo 30º/1). 81

As considerações iniciais acima formuladas não se mostram, ainda, suficientes para a

aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana ao tema central deste trabalho.

Necessário se faz entender o significado e a concepção da expressão dignidade humana. Para

essa tarefa, recorremos aos ensinamentos de Ingo Wolfgang Sarlet, que, após analisar as

perspectivas ontológicas e instrumentais do princípio, apresentou o seguinte conceito jurídico

de dignidade:

[...] a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos [...].82

Ainda segundo Ingo Wolfgang, o princípio em foco possui dupla concepção: uma

voltada para estabelecer limites à atuação do poder público; outra que impõe ao Estado a

tarefa de preservar e promover a dignidade humana. Segundo Wolfgang, a dignidade da

pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais. 83

Em sua função limitadora, a dignidade da pessoa humana repele as práticas, imputáveis

aos poderes públicos ou aos particulares, que visem a expor o ser humano, enquanto tal, em

posição de injusta desigualdade perante os demais, a desconsiderá-lo como pessoa, reduzindo-

o à condição de coisa, ou ainda a privá-lo dos meios necessários à sua manutenção. Como

tarefa imposta ao Estado, a dignidade da pessoa reclama que o poder público desenvolva suas

ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente, quanto objetivando à promoção da

dignidade, especialmente criando condições que possibilitem o pleno exercício e fruição da

dignidade.

Destaque-se, ainda, que entre o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio

da isonomia existe intrínseca relação e estreita simbiose. Todos os seres humanos são iguais

em dignidade, sentencia, desde 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, sendo a 81 SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., 2006. p.65. 82 SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., 2006. p.60. 83 SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., 2006. p. 47-48.

132

dignidade o núcleo essencial da existência dos direitos humanos. De logo, a isonomia entre os

Homens representa obrigação imposta aos poderes públicos, tanto no que concerne à

elaboração da regra de direito, quanto em relação à sua aplicação. A exceção à regra da

isonomia somente se admite à vista de razões sociais e constitucionalmente relevantes.

Nesse prumo, correlacionando dignidade e igualdade, veja-se a lição de Ingo Wolfgang

Sarlet:

[...] Em verdade – e tal aspecto consideramos deve ser destacado – a dignidade da pessoa humana (assim como os próprios direitos fundamentais), sem prejuízo de sua dimensão ontológica e, de certa forma, justamente em razão de se tratar do valor próprio de cada uma e de todas as pessoas, apenas faz sentido no âmbito da intersubjetividade e é também por esta razão que se impõe o seu reconhecimento e proteção pela ordem jurídica, que deve zelar para que todos recebam igual (já que todos são iguais em dignidade) consideração e respeito por parte do Estado e da comunidade. 84

Falar sobre a dignidade da pessoa humana é, necessariamente, referir-se também à

igualdade, na medida em que garantir tratamento igualitário entre os Homens significa

assegurar respeito às suas dignidades. Por óbvio conclui-se que: violando-se o princípio da

igualdade, violado resta o princípio da dignidade humana.

Oportuno, agora, seria retornar à interpretação do art. 76, desta feita sob a ótica do

princípio da dignidade da pessoa humana.

Voltemos, pela última vez, ao exemplo hipotético apresentado no tópico anterior.

PEDRO foi beneficiado com a transação penal, apesar de haver cometido dois delitos

distintos, cujas penas máximas, somadas, totalizavam um ano e seis meses. O benefício

despenalizador evitou a instauração do processo e as agruras que lhe são próprias,

resguardando a liberdade e a presunção de inocência de PEDRO.

ANA, por sua vez, embora tenha cometido um único delito e de menor gravidade, não

obteve o mesmo benefício, passando à condição de acusada, com a apresentação da Queixa-

Crime e conseqüente instauração da ação penal.

Defendemos, em tópicos anteriores, que, no exemplo apresentado, os princípios da

isonomia e da razoabilidade foram flagrante e manifestamente violados. A uma, porque foi

dado tratamento desigual a pessoas que se encontravam em paridade de situação fático-

84 SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., 2006. p.54.

133

jurídica; a duas, porque o critério diferenciador mostrou-se desprovido de um mínimo de

razoabilidade, já que não visou a preservar qualquer bem jurídico ou valor social relevante

amparado constitucionalmente.

Opinamos, ainda, que o princípio da dignidade da pessoa humana também restou

violado, pelas seguintes razões.

O art. 98, da Constituição Federal, previu, expressamente, a possibilidade da transação

penal para as infrações de menor potencial ofensivo, com o manifesto propósito de evitar a

instauração do processo, ante a solução consensual da lide penal. Nessa hipótese, a Lei

Fundamental previu, expressamente, uma alternativa menos gravosa para os pequenos delitos.

Impor ao autor de uma infração de menor potencial ofensivo as agruras de um processo penal,

quando preenchidos os requisitos de admissibilidade do benefício penal, significa violação à

dignidade humana.

Segundo L.G. Grandinetti, a pesada e onerosa máquina estatal não pode ser acionada

desarrazoadamente, especialmente quando a conduta violadora se mostrar menos grave que o

processo que visa a apurá-la.

[...] quando a conduta não seja grave o bastante para justificar a pretensão de imposição de uma sanção penal, que é o mais severo modo de reação do Direito. Um processo criminal não pode ser mais grave e mais sério do que a conduta que ele visa apurar. Nesse caso, quando o fato narrado puder ser tratado por outro modo menos ofensivo à dignidade da pessoa humana, e mais proveitoso socialmente, não haverá justa causa para a propositura da ação penal, considerando-se tratar-se o Direito Penal de última ratio para recompor o tecido social injustamente violado [...].85

Sabe-se, por outro lado, que o processo produz efeito estigmatizante. O recebimento da

Queixa-Crime ou Denúncia coloca o autor do fato na condição de réu, na situação de

subjudice. Esses efeitos atingem diretamente a paz, nome, imagem e honra do réu, que se vê,

inclusive, impedido de ingressar no mercado de trabalho ou mesmo sob o risco de ser dele

excluído, quando sua condição de réu tornar-se pública.

Assim, submeter alguém a um processo criminal, vedando-lhe, injustificadamente, a

possibilidade de obter transação penal para comportamento de menor potencial ofensivo,

caracteriza violação do princípio da igualdade, com reflexo direto na dignidade da pessoa

humana.

85 CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho, op. cit., 2006. p. 31.

134

Portanto, em homenagem aos princípios da isonomia, razoabilidade e dignidade da

pessoa humana, o art. 76 há de ser interpretado no sentido de admitir a transação penal nas

infrações de menor potencial ofensivo independentemente da natureza da ação penal que as

envolve, desde que preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos previstos nos incisos de

seu parágrafo 2º.

CONCLUSÃO

Lançamo-nos, neste estudo, na tarefa de esquadrinhar o art. 76, da Lei n. 9.099/95,

interpretando-o à luz da Constituição Federal, dos métodos tradicionais da hermenêutica

jurídica e dos princípios constitucionais de direito fundamental, a fim de melhor responder à

seguinte indagação: é admissível ou não a transação penal nos crimes de ação privada?

À primeira vista, e com base numa interpretação exclusivamente gramatical do art. 76,

em alusão, poder-se-ia concluir, equivocadamente, a nosso ver, que a proposta de transação

não se aplica aos crimes de ação privada. Isso porque o dispositivo legal sob análise não

estabelece qualquer regulamentação quanto à possibilidade ou não da transação nos crimes de

ação privada, sendo omisso, lacunoso, nesse caso. Por outro lado, o mesmo dispositivo legal

prevê, expressamente, sua admissibilidade quando, não sendo caso de arquivamento, tratar-se

de crime de ação penal pública, condicionada ou incondicionada, havendo representação no

primeiro caso, o que, para alguns, significa vedação tácita quanto aos delitos de ação privada.

Buscamos refletir, logo no primeiro capítulo, acerca dos princípios que regem a ação

penal de natureza pública e privada. Constatamos que os crimes de ação pública são regidos

pelos princípios da obrigatoriedade, indisponibilidade e indesistibilidade, o que, em suma,

significa: O Ministério Público está obrigado a propor a ação penal, dela não podendo desistir

ou dispor.

Até a entrada em vigor da Lei n. 9.099/95, inexistia, no tradicional modelo de direito

penal e processual penal brasileiro, qualquer margem legal para que o MP desistisse da ação

penal ou por algum modo pudesse dela dispor. O comando constitucional, previsto no art. 98

da Lei Fundamental, regulamentado pela Lei n. 9.099/95, mitigou os princípios que

tradicionalmente se aplicavam à ação penal pública, ao permitir que o MP transacionasse com

o autor da infração penal.

Por outro lado, a ação penal privada, tradicionalmente, regia-se pelos princípios da

oportunidade ou conveniência e da disponibilidade. Em suma, o ofendido, há tempos já podia

136

dispor da ação penal. Conforme lhe parecesse mais conveniente, poderia ou não promover a

ação penal ou mesmo prosseguir ou desistir da ação já intentada.

Já no primeiro capítulo, pudemos constatar que a transação penal se mostra mais

compatível com os princípios que regem a ação penal privada do que aqueles norteadores da

ação penal pública. A indagação formulada inicialmente já poderia, a nosso ver, ser

respondida, interpretando-se o instituto despenalizador à luz dos princípios acima referidos.

Após análise dos capítulos iniciais deste trabalho acadêmico, encontramos a razão de

ser da criação dos Juizados Especiais Criminais e das medidas despenalzadoras neles

albergadas. Não encontramos, por outro lado, razão que justifique a vedação da aplicação das

medidas despenalizadoras com base exclusivamente na natureza da ação penal a que a

infração de menor potencial ofensivo esteja submetida.

De fato, o tradicional modelo de direito penal, até então em vigor no Brasil,

reconhecidamente anacrônico, moroso e intervencionista, mostrou-se ineficiente e incapaz de

atender aos anseios da sociedade moderna, quer na prevenção da criminalidade, quer na

ressocialização do infrator. A pena privativa de liberdade, sanção penal preferencialmente

adotada por esse tradicional modelo de direito penal, também não atendia aos fins a que

teoricamente dela se esperava. O intervencionismo do Estado, tipificando condutas e

recrudescendo penas, não mais se podia ser aceito passivamente.

Nesse cenário de crise, a intervenção mínima do Direito Penal passou a ser um princípio

veementemente defendido. Ao lado de outros princípios de igual relevo, entre os quais o da

subsidiariedade e fragmentariedade do Direito Penal, da dignidade da pessoa humana e da

insignificância, defendia-se que o Direito Penal só deve intervir se o fato for relevante e, em

última instância, quando os outros ramos do Direito se mostrarem ineficientes, não se

justificando a intervenção do Direito Penal, através do processo e com a imposição de pena,

quando a conduta tipificada não seja grave o bastante para justificar a pretensão de punir.

Assim, frente à crise a que nos reportamos acima, as medidas despenalizadoras e todo o

microssistema penal, inaugurado pela Lei n. 9.099/95, representam, indubitavelmente,

instrumentos jurídicos modernos, que se mostram valiosos para a desburocratização e

simplificação da Justiça Penal, solução rápida da lide, supressão da degradante e

estigmatizante cerimônia do processo e neutralização dos efeitos deletérios das penas

privativas de liberdade, quando a infração penal é de menor potencial ofensivo. Reduzir o

137

alcance de tais medidas despenalizadoras é remar na contramão da modernidade, é estreitar os

limites da justiça penal consensual que o legislador constituinte pretendeu criar no Brasil.

A novel Constituição Federal de 1988, inauguradora de um novo modelo de Estado, o

Estado Democrático de Direito, centrado na dignidade da pessoa humana, dando como

garantia fundamental a liberdade do cidadão, à guisa de uma política criminal moderna e

contemporânea, consistente na intervenção mínima do Direito Penal, criou os Juizados

Especiais (art.98, I), neles inserindo o instituto da transação penal, como forma alternativa de

resolução de conflitos oriundos de infrações penais de menor relevância jurídica, no que se

refere ao bem jurídico tutelado – aquelas que não incidem em pena privativa de liberdade.

Dessa forma, o constituinte de 1988 adotou, no Brasil, um modelo próprio de justiça

penal consensual já implantado com sucesso em vários países da Europa ocidental e nos

Estados Unidos e, por via de conseqüência, ampliou-se o acesso à Justiça, por meio do

exercício democrático da cidadania, com o mínimo de formalidade, visando à pacificação

social

Ao instituir os Juizados Especiais Criminais, a vontade do constituinte voltou-se para

uma política criminal despenalizadora, tanto é que criou mecanismos jurídicos (transação e

suspensão do processo) que consistem em alternativas ao alcance dos autores de infrações

penais consideradas de menor potencial ofensivo, antes de estes serem submetidos a um

processo criminal, ou seja, a efetivação da transação penal, medida menos gravosa, que afasta

a possibilidade da instauração da persecução penal, que, por si só, atinge o status libertatis do

cidadão.

Ora, o legislador constituinte de 1988, ao instituir os juizados especiais Criminais, teve

como desiderato inaugurar, no Brasil, um novo e revolucionário modelo de justiça penal

consensual, inclinado para a despenalização, mitigação da obrigatoriedade da ação penal e

solução rápida dos conflitos penais originados de infrações penais de menor potencial

ofensivo (art. 98, I: - “juizados especiais....e infrações de menor potencial ofensivo,[...]”). Em

momento algum, o constituinte pretendeu dar exclusividade ao instituto da transação penal

aos crimes de ação pública incondicionada e condicionada. Sua pretensão voltou-se, tão e

somente para uma política criminal exercitada através de uma justiça penal consensual.

Os Juizados Especiais Criminais foram regulamentados pela Lei n. 9.099, de 26 de

setembro de 1995. Todavia, o art. 76 da mesma lei mostrou-se tecnicamente lacunoso e

138

omisso, em relação à transação penal nas infrações de menor potencial ofensivo de ação penal

privada. A omissão do legislador tem sido interpretada como vedação tácita, o que, a nosso

ver, mostra-se inconcebível, haja vista que, em matéria de benefício penal, não se pode dar ao

texto da lei interpretação restritiva.

A corrente doutrinária e jurisprudencial que defende ser vedada a transação penal nos

crimes de ação privada fundamenta-se com base exclusivamente na interpretação literal e

restritiva da lei.

A nosso ver, a interpretação literal do art. 76, em comento, conduz-nos às seguintes

conclusões: Primeiro: Nos crimes de ação penal pública, a proposta de transação penal poderá

ser proposta pelo MP; Segundo: Às contravenções penais (que tecnicamente não se

confundem com crime) não se poderia propor transação penal; Terceiro: O art. 76 é

inteiramente omisso quanto à possibilidade ou não de aplicação da transação penal nos crimes

de ação privada. Tal omissão não pode, em absoluto, ser interpretada como proibição. Ir além

dessa conclusão seria mergulhar nas turvas águas da presunção, ilação, especulação.

A interpretação literal e restritiva do art. 76 poderá conduzir aos seguintes absurdos:

crimes comportam transação penal; contravenção, não. Crimes de ação pública comportam

transação penal; de ação penal privada, não.

Reconhecendo tratar-se de direito público subjetivo do autor do fato, o STF firmou

entendimento no sentido de que, preenchidos os requisitos legais autorizadores, a Lei dos

Juizados Especiais Criminais aplica-se aos crimes sujeitos a ritos especiais, inclusive àqueles

apurados mediante ação penal exclusivamente privada, a estes se estendendo, por analogia, a

aplicação da transação penal e suspensão condicional do processo.

Evidentemente, a solução do problema em deslinde, gerado pelo legislador ordinário,

através do predito dispositivo, será encontrada na hermenêutica constitucional, mais

precisamente na interpretação do texto conforme o princípio da Supremacia da Constituição e

da máxima efetividade das normas constitucionais. Também chamado por alguns

doutrinadores de técnica de interpretação, por meio desta se extrai da norma

infraconstitucional o significado que mais se compatibilize com aquela Lei maior. Com efeito,

considerada como norma de hierarquia superior e absoluta, a Constituição Federal encontra-se

entronizada no ápice da pirâmide jurídica e dela deriva e nela se encerra todo o fundamento

de validade da norma jurídica. Da supremacia constitucional decorrem os limites impostos aos

139

entes e demais poderes da federação, que devem se pautar dentro das normas da lei

fundamental. Daí concluir-se que toda norma, decorrente do poder constituinte derivado ou do

legislador infraconstitucional, deve ser interpretada considerando a superioridade da lei maior

que lhe dá sustentação, de modo a lhe assegurar a máxima efetividade.

Nesse diapasão, estamos convictos de que o legislador infraconstitucional, caso tivesse,

expressa ou implicitamente, estabelecido no art. 76 tratamento diferenciado para os autores de

infração penal de menor potencial ofensivo, com base apenas na natureza da ação penal

(distinção não prevista no comando constitucional), afrontaria os princípios da soberania

constitucional, ao mesmo tempo em que violaria o princípio da máxima efetividade da lei

fundamental, pois estaria a lei infraconstitucional indo além da delegação (quebrando o

vínculo de subordinação do legislador), como também restringindo o alcance das medidas

despenalizadoras, que se constituem a materialização e efetividade da justiça consensual.

Por outro lado, a destinação de tratamento desigual entre iguais caracteriza flagrante

violação ao princípio constitucional da igualdade. Em inexistindo razões de manifesta

relevância no critério adotado como desigualador (natureza da ação penal), estar-se-ia

afrontando o princípio constitucional da razoabilidade. Submeter alguém a um processo

criminal, vedando-lhe, injustificadamente, a possibilidade de obter transação penal para

comportamento de menor potencial ofensivo, caracteriza violação ao princípio da igualdade,

com reflexo direto na dignidade da pessoa humana.

Assim, em homenagem aos princípios constitucionais da isonomia, razoabilidade e

dignidade da pessoa humana, o art. 76 há de ser interpretado no sentido de admitir a transação

penal nas infrações de menor potencial ofensivo, independentemente da natureza da ação

penal que as envolve. Entendimento diverso seria dar ao art. 76, da Lei n. 9.099/95,

interpretação em desconformidade com a Constituição, premiando-se e privilegiando-se o

arbítrio em detrimento da igualdade substancial defendida pela Constituição Federal de 1988.

Consoante citação efetivada no transcurso deste trabalho, a uma lei, em caso de dúvida, não se

pode dar uma interpretação que possa fazê-la parecer inconstitucional.

À guisa de sugestão, a nosso ver, a solução definitiva ao artigo 76, da Lei n. 9.099/95,

no sentido de afastar todas as discussões jurídicas, inclusive a ameaça de

inconstitucionalidade, seria a apresentação de um projeto de lei, acrescentando-se ao mesmo

o seguinte: “EM SE TRATANDO DE CRIME QUE SE APURA POR MEIO DE AÇÃO

140

PENAL PRIVADA E NÃO OBTIDA A COMPOSIÇÃO DOS DANOS CIVIS, O

OFENDIDO PODERÁ PROPOR A APLICAÇÃO IMEDIATA DE MEDIDA

ALTERNATIVA AO PROCESSO, CONSISTENTE NA RESTRIÇÃO DE DIREITO OU

MULTA.

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