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DADOS DE COPYRIGHT · 2020-03-22 · Pinheiro, bambu e ameixeira Qual o caminho? Musashi ... Ancestrais do Darma (ensinamentos corretos), jamais seria capaz de escrever este livro

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DADOSDECOPYRIGHT

Sobreaobra:

ApresenteobraédisponibilizadapelaequipeLeLivroseseusdiversosparceiros,comoobjetivodeoferecerconteúdoparausoparcialempesquisaseestudosacadêmicos,bemcomoosimplestestedaqualidadedaobra,comofimexclusivodecomprafutura.

Éexpressamenteproibidaetotalmenterepudíavelavenda,aluguel,ouquaisquerusocomercialdopresenteconteúdo

Sobrenós:

OLeLivroseseusparceirosdisponibilizamconteúdodedominiopublicoepropriedadeintelectualdeformatotalmentegratuita,poracreditarqueoconhecimentoeaeducaçãodevemseracessíveiselivresatodaequalquerpessoa.Vocêpodeencontrarmaisobrasemnossosite:lelivros.loveouemqualquerumdossitesparceirosapresentadosnestelink.

"Quandoomundoestiverunidonabuscadoconhecimento,enãomaislutandopordinheiroepoder,entãonossasociedadepoderáenfimevoluiraumnovonível."

Copyright©MonjaCoen,2014Copyright©EditoraPlanetadoBrasil,2015Todososdireitosreservados.

Preparação:AndreaCaitanoRevisão:MarciaBenjamimeRinaldoMilesiProjetográficodemiolo:ReginaCassimiroCapa:©CompañíaImagemdecapa:©MichelFilho/AgênciaOGloboAdaptaçãoparaeBook:Hondana

CIP-BRASIL.CATALOGAÇÃONAPUBLICAÇÃOSINDICATONACIONALDOSEDITORESDELIVROS,RJ

C622sCoen,MonjaA sabedoria da transformação: reflexões e experiências / Monja Coen. – 1 ed. – São Paulo:

Planeta,2014.

ISBN978-85-422-0440-7

1.Espiritualidade.2.Reflexão.I.Título.

14-16396 CDD:133.9CDU:133.9

2016TodososdireitosdestaediçãoreservadosàEDITORAPLANETADOBRASILLTDA.RuaPadreJoãoManoel,100–21oandarEdifícioHorsaII–CerqueiraCésar01411-000–SãoPaulo-SPwww.planetadelivros.com.bratendimento@editoraplaneta.com.br

Sumário

Indrodução

Agradecimentos

Parte1:Reflexões

Escolhas

Ikkyu

Nãomentir

Diferençasculturais

NaturezaBuda

Somosotempo

Amentequeobservaamente

Gratidão

SennoRikyu

Céueinferno

Erudiçãoesabedoria

Pedroeosapo

Bodidarma

Acidente

Absolutoerelativo

OlharBuda

Qualoseupedido?

Despertarecuidar

Ovoodaborboleta

Liberdade

Poderessobrenaturais

Ofilhopródigo

Oquesemove?

Viverpelovoto

Aleidacausalidade

“Umdiasemtrabalho,umdiasemcomida”

Parte2:Experiências

Afalacorreta,omomentopropício

Darereceber

Abrirasmãos

Eiheiji

Intençãosemintenção

Equidade

Ryôkan

Despertar

Perfeição

Pinheiro,bambueameixeira

Qualocaminho?

Musashi

Transcendendoobstáculos

Corposão,mentesã

Posturacorreta

Ramadã

Kôan

Dependedoseucoração

Mestreediscípula

Olhosdemar

Amanifestaçãodaverdade

Transformar-separatransformar

Transitoriedade

Horadobanho

Causasecondições

MenteBuda

Águaévida

Arrepender-seeperdoar

Alémdareligião

Presençaabsoluta

Nolimiardasemoções

Introdução

“Écomoolharnoespelhoprecioso,ondeformaereflexoseencontram.

Vocênãoéele,maseleétudodevocê.”(TôzanRyokaiDaioshô,China,séculoX)

A sabedoria da transformação é um livro que reflete você em você. Você é aimagemrefletidanoespelhoqueévocê.Quemobserva?Queméobservado?Oqueéquereflete?Refletir.Éprecisoquehajaumaforma,éprecisoquehajaluz,éprecisoquehaja

um local em que essa forma e essa luz se encontrem e se revelem – um lagotranquilo,umespelhoprecioso.Suamentepodeseresselocal.Sehouverprática,haveráiluminação.Tenhoencontradomuitaspessoas,muitashistórias,muitosreflexos,inúmeras

reflexões. Dobrando meus joelhos em frente a tantos e tantas Budas – seresiluminados–,descubroquenãosoueuquemtransmiteosensinamentos,massãoosensinamentosquemetransmitem,quemepermitemcomunicarerefletir.Umaluztãoforte,maispoderosadoqueumgrampodeouropuronoqualumraiodesolsereflete,fazendoaspupilassefecharemquasecompletamentecomseubrilho–assimsãoasreflexõesqueeugostariadecompartilhar.Aceiteodesafiodavidahumana,complexaesimples.Revejavaloreseconceitos,

abra mão e permita que todo o multiverso esteja à sua disposição. Esteja vocêtambémàdisposiçãodetudooqueéenãoé,poisestáparaviraser.Torne-seasmãossagradaseajaparaobemdetodososseres.Esteéomeuvoto:refletireserrefletidanaluzinfinita.Que todos os seres se beneficiem e que possamos nos tornar o caminho

iluminado.Gasshô(mãosemprece),

MonjaCoen

Agradecimentos

Gratidãoéumapalavraquetemsidorecuperadanosúltimostempos,usadaemlugarde“obrigada”ou“agradeço”.Iniciopeloprincípiodeminhaexistência,emprofundagratidãoameuspaise

avós,queamavamaliteratura,apoesia,asartesemeensinaramaler.Gratidãoaminhasprofessoraseprofessoresescolares.Gratidãoàquelaprimeira

cartilha.Gratidãoaosautoresquemedeslumbraramna infância:EçadeQueiroz,Olavo

Bilac,MonteiroLobato,CassianoRicardo.Eçafoioprimeiro–livrosconsideradosproibidospormeupaisemdúvidaforamosmaisinstigantes.Gratidãoatodasaspessoasquemeestimularamemeprovocaramaperguntar,

questionar.Gratidão ao Zen Center de Los Angeles, onde tive minha iniciação no zazen

(meditaçãosentada),queressignificouminhasquestõeseminhavida.Láencontreigrandes mestres e mestras, especialmente Maezumi Rôshi, conhecido tambémcomoKounTaizanHakuyuDaioshô,quemeraspouosúltimosfiosdecabeloemefezmonjadatradiçãoSôtôShû.Gratidão ao Mosteiro Feminino de Nagoia, no Japão, onde tive a formação

monástica orientada por grandesmestras e grandesmestres. Gratidão especial aAoyama Shundô Dôchô Rôshi, nossa abadessa, grande escritora e incansávelpalestrante–fontedeinspiraçãoparageraçõesegeraçõesdenoviças.Gratidão a meu mestre de transmissão, o monge que me reconheceu apta e

capaz de receber e transmitir os ensinamentos de Buda – Yogo Rôshi, chamadotambémdeZengetsuSuiganDaioshô.AtravésdessesmestresemestrasconheciSidartaGautama(XaquiamuniBuda)e

toda uma linhagem de ensinamentos e práticas, toda a comunidade zen-budistainternacional.Gratidão especial aos Mestres Zen Eihei Dôgen e Keizan Jôkin – autores

medievais que me ensinaram a ir além do pensar e do não pensar. Sem essesAncestraisdoDarma(ensinamentoscorretos), jamaisseriacapazdeescreverestelivroedeserchamadaaescrevê-lo.

MinhagratidãoàEditoraPlaneta,quemeconvidou,pormeiodesuaassessoranaépoca,OtacíliadeFreitas,aescrever.Ah!Definitivamente,semaprovocaçãodaeditora,semapropostaeoprazo,estelivronãoexistiria.GratidãoaSoraiaReis,queassumiuapublicação.GratidãoaAndreaCaitano,praticantezen,granderevisoraprofissional,que,me

conhecendo e conhecendo a prática, soube manter meu texto perfeitamentecoerentecomminhasintenções.GratidãoaReginaCassimiro,tambémpraticantezen,designerprofissional,que

paginouedesenhouestaobra.GratidãoaopraticantezenAurelianoMonteiroNeto,quemecedeusuacasana

praia, e a minha discípula Monja Zentchu, que me acompanhou e me cuidouduranteosdiasemqueescrevi.Gratidão a quem manteve a Comunidade Zen Budista funcionando durante

minhaausência.Gratidãoaocomputadorpessoal,essaextravagantedescobertadeSteveJobs.Gratidãoaopessoaldagráfica,aquemproduziuasmáquinas,opapel,atintaea

todososseresenvolvidos.NestafolhadepapelestátodaavidadaTerraedoCéu.Estafolhaéfeitadetudo

oquenãoéfolha.Assim,oeuéfeitodetudooqueénãoeu.Espero que sejamospessoas dignas e capazes de retribuir à vida tudo o que a

vidanosdá.Gratidãoavocê,queanimaestaobracomsualeitura.Semvocê,estelivronão

seria.Tudooqueexisteéocossurgirinterdependenteesimultâneo.Gratidão.Mãosemprece,

MonjaCoen

Reflexões

Reflexãoéaanálisesobreumfato,um

comportamentoouumasituação.Nestemomento

podemosreverconceitos,hábitosecostumes.

Podemosnostransformar.

Escolhas

Um homem sábio, querendo manter sempre sua mente desperta, passou ameditarsentadonotroncodeumaárvorealta.Seadormecesse,cairiadaárvore.Assim, mantinha o esforço da mente correta. Ficou conhecido. Um erudito,

muito respeitado, commais de 80 anos, ouvindo falar dele, foi interpelá-lo: “Osenhoréconsideradoumgrandesábio”,disse,olhandoparacima.“Entãomediga:oqueéomais importantenestavida?”.“Nãofazeromal, fazerobeme fazerobem a todos os seres”, respondeu o sábio. O outro, franzindo a testa, disse:“Grandecoisa!Atéumacriançade3anossabedisso!”.Eosábiorespondeu:“Masnemmesmoumhomemde80conseguepôrissoemprática”.Essecasoébemclaroemsimesmo.Osábioésimples.Omaisimportantenesta

vidaénão fazeromal, fazerobeme fazerobema todosos seres.Ouseja,nãoficarmosfechadosemnósmesmos,masperceberquesomosavidaeque,aocuidardetodososseres,estamoscuidandotambémdenós.Emborapareçaalgosimples,emnossavidadiáriamuitasvezesnãooconseguimos.Oerudito,umgrandeestudioso,talvezesperasseouvirumapalestra,citaçõesde

outros sábios e livros sagrados. A frase simples e direta o surpreendeu. Mas aresposta final opegoupor inteiro, e ele reconheceuoquanto, embora sabendoaverdade,aindaestavadistantedaperfeição–aos80anosdeidade.O que é não fazer o mal? Dependendo das causas e condições, o que

aparentementepodedara impressãodenãosernadademalpodeserumgrandecrime.

……

Háalgunsanos,umasenhoraquesempreforafielaoseumaridoerecriminavamuitosuatia,quetevemuitosamoresforadocasamento,apaixonou-seporoutrapessoa. Veiome procurar. O que deveria fazer? Seumarido era rude, gostava deassistiraprogramasdetelevisãoqueeladesprezava.Não iacomelaaosmuseus,não compartilhava seu interesse pela arte, pela cultura, pela música clássica.Enquantoseunovoamigo–ah,esse,sim!–estavasempreprontoaacompanhá-la

aosnovoslançamentosdefilmesdearte,aexposiçõesepeçasdeteatro.Lembrei-medeumahistóriaque linumlivro judaico.Damesmamaneiraque

essasenhoraveiofalarcomigo,houveumaqueforaseaconselharcomumrabino.Ela havia relutado por semanas para falar com ele. Tinha muito medo de suareprimenda. Inúmeras vezes fora até a sinagoga,mas, quando se aproximava dorabino, falava de outros assuntos e ia embora tristonha. Não conseguia tocar noassuntoprincipaldeseuconstrangimento.Atéodiaemqueseencheudecoragemepediuajuda.Parasuasurpresa,depoisdeouvirorelato,orabinodeuumaboarisadaedisse:

“Quemaravilha! Que escadamaravilhosa! Deus nuncame deu uma escada comoessa!”. A senhora ficou estupefata. Esperava uma resposta, um conselho do tipo“faça”ou“não faça”.Maseleapenasapontou-lhequeeraumaoportunidadedesubiroudedescer.Quedecisãoseriaadela?Nãoeranecessáriodizermaisnada.Damesmaforma,aconselheiapraticantequemeprocurara.Masnemsempreas

pessoas são capazes de ouvir os conselhos. Muitas vezes, querem apenas umaabsolvição,umaaprovaçãoparasuasescolhas.Optar por ter um caso extraconjugal pode provocar muitas tristezas e

sofrimentos. Se por um momento há a alegria desse amor proibido, depois dadoçuravemoamargor.Elaescolheuprovardesseamor.Sofreumuitoefezsofrermuitaspessoas.Nãofoiapenaselaquefezessaescolha.Seucompanheirotambémeracasado.Amentiratempernascurtas,dizoditado.Mentiameseafundavamemconversasconfusas.Foramdescobertos.Elaqueriasedivorciarparaficarcomele.Elepreferiuficarcomaesposa,queanosdepoisveioadizerquenuncaforacapazde perdoá-lo, que o odiava e odiará até a morte. Vivem num inferno. Muitaspessoasforamafetadasporesserelacionamento.Omaridodela,aesposadele,osfilhosdosdoiscasais,osavós,parentes,amigoseamigas.Muitaspessoasaindasãoafetadas por esse episódio. Embora o relacionamento extraconjugal tenhaterminado,criou-seumafenda.

……

Outro caso semelhante fez gerar um bebê. Mais um fez gerar um crime. Hátantas histórias assim nos jornais e na televisão.Mas há também quem escolhasubir a escada. Por mais difícil e doloroso que seja, abandona a própria alegria

momentâneaembuscadeumestadomaisplenodecontentamento–odemanterseuscompromissos.

Semprerecomendoameusdiscípulosediscípulasquemantenhamseusvotos.“Arochapode apodrecer, mas meus votos, não” é uma frase célebre no budismo. Uma rochadificilmentesedesfaz.Levaséculoseséculosparaquesetransformeempó.Nossosvotosecomprometimentos devem ser assim, mais firmes do que as rochas. Essa é a maneira debeneficiarmostodososseres.

Ikkyu

Certa feita,o líderdovilarejochamouo jovemmongeIkkyuàsuacasa. Ikkyuera famoso por sempre levar vantagem em qualquer conversa. O dono da casaestavacertodeque,destavez,eleperderia.Durante a conversa, o senhor perguntou ao monge: “Você é capaz de pegar

aqueletigrepintadonaparede?”.“Claroquesim”,respondeuIkkyu-san.“Traga-mecordaelaço,eeuoprenderei.”Osenhorsaiurindodasalaechamoutodososseusamigosparaveraderrotadomongemetidoasabichão.“Muitobem,Ikkyu-san.Aquiestãocordae laço.Prendao tigre”,disse-lhe.O

jovemmonge,segurandoacordacomumadasmãoseolaçocomaoutra,colocou-se em posição de espera e disse ao dono da casa: “Solte o tigre que eu estoupronto!”.Será que estamos prontos para o que a vida nos trouxer? Será que sabemos

responderaomundoemvezdereagir?Éprecisodesenvolveraautoconfiançaeacapacidadederesponderrapidamenteàssolicitaçõesquesurgemnonossodiaadia.Semfazerdissoumdrama,umaluta,umavitóriaouumaderrota.Semficarcommágoaeressentimento,semterraivanemaborrecimento.Maislevezaealegrianoviver. Issonosensinao jovemmongeIkkyu,que,semreagiràsprovocaçõescomraivaoucommedo,encontravarespostasadequadas.Respostaslúdicas.Certavez,uma jovemmeprocurouerelatouoseguinte:“Eutinhaachavedo

apartamentodemeunamoradoeumdiaresolvisurpreendê-lo.Nósnãohavíamoscombinadodenosencontrar,mascompreiumagarrafadevinhoeunsqueijosdequeelegostava,eentreidemansinho.Quesurpresaaminha:eleestavadormindocomumadesuasamigas,nacama,nanossacama,quecompramosjuntos.Fiqueifuriosa.Saídemansinhodoquartoefuiàcozinha.Pegueiquatroovoscrus,bati,semcasca,e,antesdeirembora,coloqueiumpoucoemcadaumdeseussapatos.Mesmocomraiva,pude rir,pensandonadesagradável sensação,nasurpresaqueteriam”.Elanãosecasoucomele,nemaoutramoça,mascontinuamamigosatéhoje.

Respostas engraçadas, divertidas, têm em si amensagem de verdade. Semmatar, semferir.Semsemataresemseferir.Responderdeformalúdicaaomundoéamensagemdomonge Ikkyu e dessa jovem brasileira. O que seu namorado e a amiga fizeram a ela erainesperado,pegajosoedesagradávelcomoovoscrusdentrodeumsapato.Precisamosestaratentospararesponderaomundoemvezdereagir.Reaçõespodemser

violentasedesagradáveisenemsemprelevamaosresultadosesperados.Açõesverdadeirasepuras podem transformar o mundo. Por isso, Sua Santidade o 14o Dalai Lama afirma:“Compaixão nem sempre vem das entranhas. Tem de ser treinada, praticada através damenteconsciente,lúcida,clara”.Quandoassistimosaviolênciaseabusos,nãosentimoscompaixãopeloagressoroupela

agressora. Temos de trabalhar nossos sentimentos e transformá-los em compreensão. Issonãosignificaaceitaraimpunidade.Significanãoódio,nãovingança,masaçãocorretaqueleveàreflexãoeàcorreçãodoserros.

Ummongetibetanoqueforapresoetorturadoduranteaúltimainvasãochinesaao Tibete, cerca de 50 anos atrás, foi finalmente solto e conseguiu chegar aDharamsala,nonortedaÍndia,ondeumagrandepopulaçãotibetanasereúneemtorno de mosteiros budistas sob a orientação de Sua Santidade. Foi recebidoimediatamentenosaposentosdolíderespiritual,queindagou:“Oquefoipiorparavocê:ofriode-40oC,afome,osabusos,astorturas,osinsultos,asolidão?”.Enxugando uma lágrima com seus dedos grossos, ele respondeu: “Por um

instante, um breve instante, quase deixei de sentir compaixão por quem metorturava.Issofoiopiordetudo,mestrequerido”.

Nãomentir

Uma jovemseapaixonouporumfuncionáriodeseupai.Elaestavaprometidaem casamento ao filho de outro grande comerciante. Engravidou. Quando o painotouabarrigadafilha,ficouenfurecido:“Quemfoiodesgraçado?Voumataressesem-vergonha que abusou de você”. Amenina, commedo de revelar a verdade,contouumamentiraestratégica:“Foioabade.Éfilhodoabade”.Ora,oabadeeragrandeamigodocomerciante,seuconselheiroeconfessor.Ele

jamaismatariaoabade,consideradoportodosumhomemsanto.Alémdomais,eraidoso.Masameninainsistiaemafirmarqueofilhoeradoabade.Assimqueacriançanasceu,foilevadaaoabadeeentregue:“Osenhorcuidede

seupróprio filho”,gritouohomem,enfurecido.Oabadepegouobebêeocriou,semdizernada.Passados alguns meses, a menina, não suportando mais a saudade do bebê,

confessouaopaiquementira.Ojovemfuncionáriofugiraparalongeeopainãoopoderiamatar.Foramjuntosbuscaracriança.“Desculpe,senhorabade.Minhafilharevelou a verdade. Vamos levar o bebê.”E o abade entregou a criança, semnadadizer.

Você faria isso?Sehouvesseumacalúnia,uma infâmia, ficariaemsilêncio?Realmentesãohistóriasraraseantigas.Hojenóspodemosiraostribunais,podemosrecorrer,pedirquepublicamentesejadesfeitaainjustiça.Naquelaépoca,ascidades,osvilarejoserampequenoseasnotíciascorriammaisrápidoqueasnuvenssopradasnastempestades.Talvezporissooabade não se importasse com o que dissessem dele, pois a verdade naturalmente serevelaria.

Soube de uma história semelhante a essa no budismo vietnamita. Só que, naversãovietnamita,a jovemacusavaumamonjadeseropai.Ocasosedeuassim:uma moça queria entrar para a vida monástica e, naquele local, só aceitavam

homens.Ela,então,sefezpassarporhomemeentrounaordem.Passouavivernomosteiro,sempreseescondendonahoradobanho,atéqueumajovemaacusoudeseropaideseu filho.Ora,omonge,quenaverdadeeraumamulher,nadapôdedizer.Nofinal,tudoseesclareceu.OquemesurpreendenaversãovietnamitaéqueBudaexigiaqueapessoa,no

momento de sua ordenação, confirmasse ser homem ou ser mulher.Definitivamente, ninguém deveria fingir ou se passar por outro gênero nomomento da ordenação. Nada é dito sobre a homossexualidade ou atransexualidade. Como poderia alguém mentir e continuar mentindo e seescondendoporanosdentrodeummosteiro?Nãoestariaessapessoaquebrandoopreceitodenãomentir?Amentiracausasempre transtornoesofrimento.Por issoexisteopreceitode

não mentir. Há cinco Graves Preceitos, tanto para leigos e leigas como paramonásticosemonásticas:·nãomatar;·nãoroubar;·nãoabusardasexualidade;·nãomentir;·nãonegociarintoxicantes.

Todasasordensbudistastêmessespreceitos.Nãomatar,emformaafirmativa,édarvida.Darvidaàprópriavida.Vivercom

dignidadeefacilitaravidadignaatodososseres.Nãoroubar,afirmativamente,écompartilhar,doar.Abrirasmãos,nãoutilizar

mais do que o necessário para sua vida. Não roubar o tempo seu ou alheio,compartilharcomalegriaensinamentoseobjetos.Nãoabusardasexualidade.Inicialmenteparaosmonásticoseasmonásticasera

não manter nenhuma relação sexual. Para leigos e leigas, é o respeito àsexualidade,semabusos,semviolência,comdignidade.Certavez,assimmecontaram,FreiBettofoiaumcasamentoepediramqueele

falasse ao final da celebração. Ele teria dito o seguinte: “O casal, depois dacerimônia,adentrouoquartonupcial.Osdoisestavaminiciandoascaríciasquandoalguémbateuàporta.Entreolharam-se.Decidiramabrir.EraDeus.PermitiramqueEleentrasse.Oqueseriaumaorgiasetornouumaliturgia”.

Essaéamelhordefiniçãodenãoabusardasexualidadequeencontreiatéhoje.

Não mentir é ser verdadeiro. Muitas vezes, enganamos a nós mesmos. Hápessoas quemeprocuramenempercebemque estãomentindopara simesmas.Buda dizia que a mente humana deve ser mais temida que cobras venenosas eassaltantesvingadores.Temosdevigiaranósmesmosparaobteraverdade.Não negociar intoxicantes. Negociar não quer dizer apenas traficar drogas.

Significanãomanipular,nãousar,nãopassaradiante,nãoquererintoxicarnemasi nem aos outros. Sua forma afirmativa é manter a mente lúcida, consciente,incessanteeluminosa.Quemsegueospreceitosencontratranquilidade,pazeharmoniaemsuavida.E

garantoquenãoénadamonótonoserfeliz.

Diferençasculturais

UmempresárioamericanofoifazernegóciosnoJapão.Foimuitobemrecebido,comgrandeamabilidade.Estavamquasefechandoocontratoquandooconvidaramajogargolfeealmoçaràbeiradeumlagobelíssimo.O jogo de golfe foi bom. Todos se divertiram. Sentaram-se para almoçar

bolinhosdearrozeoutrospetiscosprópriosdaocasião.Oamericanoestavasentadode costas para o lago.Algunsdosparticipantes do encontro comentavam sobre abeleza e tranquilidade das águas.O americano se virou e ficou sentado de costasparaogrupo,apreciandoanatureza.Anegociaçãofoicancelada,poisoamericanohaviadado as costas aogrupo, e isso é consideradoumdesrespeitomuitograve.Comodarascostasaocontrato,aosamigos?Diferençasculturaisdevemser compreendidase respeitadas.Umdosdiretores

daSôtô-ShûnoJapão,ordemàqualpertenço,conversavacomasuperioradenossomosteiro feminino: “Temos de nos preparar para os Jogos Olímpicos. Jovensmonges devem viajar e aprender costumes e línguas estrangeiras. Não devemosapenas querer que os estrangeiros se adaptem a nossos costumes e língua.Precisamos ser internacionais”. Nossa superiora balançava a cabeça, duvidando.Jovensmongespassandotrêsmesesemalgumpaísnãoseriamcapazesdeaprendermuito. Quanto tempo leva uma pessoa para aprender uma língua estrangeira e,comela,aformadepensaredeserdeumacultura?Fiquei dois anos em silêncio no mosteiro. Ouvia, pouco compreendia. Certa

ocasião,nossasuperiorarecebiaumhóspedeilustreemeincumbiudeservirochá.Preparei tudo de forma adequada, afinal eu apreciavamuito a cerimônia do chá.Mas não sabia falar japonês. Coloquei delicadamente a chávena em frente aohóspedeedisse:“Beba!”.Asuperioracorouatéotopodacabeça:“Coen-sanprecisateraulasdejaponês”.

Sim, tudo o que eu aprendera eram comandos diretos e imperativos. Afinal, eraassimquefalavamcomigo.Atéhoje,meujaponêsnãoémuitoeducadonempolido.Na pressa de querer se comunicar comigo, as monjas falavam apenas algumaspalavrasqueeucompreendia.

Levei anos para melhorar meu vocabulário e aprender como pensa o povojaponês.Agestualidadeeacomunicaçãocorporalsãodiferentes.Nomosteiro,euprocurava ser educada e falava sempre em pé com minhas superioras. Estasficavamsentadasnochão.Consideravamarrogânciaofatodeeumemanterdepé.Deveriaestarnomesmonível físicoqueelasounumnível inferior.Ninguémmedizia nada. Até que um dia uma outramonja que caminhava aomeu lado peloscorredoresdomosteiroajoelhou-seaoveraabadessaseaproximarefaloucomelaotempotodocomasmãospostas.Aprendi,finalmente.Masafamadeorgulhosacontinuou.Algumasmonjasmecompreendiamouseesforçavamporcompreender.Outras,

não.Aprofessoradechá,KurigiSensei,meacolheu.Asaulaseramsemanais,eeupraticavaescondida,usandolápisexícarascomuns,bemcomoamemória.Elameconvidoua teraulasespeciaisemseu templo.Asuperioraconcedeu.Comgrandealegria,eusaíaeerarecebidapelamestradechá.Aprendiaaarrumarobraseiro,afazerochágrossoeforte,ausarosutensíliosparacerimôniasdiferentes.Elameconvidouparaumgrandeencontrodechá,ondeoIemoto–líderdaquelaescoladechá – estava servindo. Sentei-me ao seu lado, na posição principal da sala.Acompanhei cada movimento, já meus conhecidos pelas práticas semanais. Nosemestre seguinte, o jovem Iemoto, que acabara de completar seu turno em ummosteiro zen da tradição Rinzai (escola zen-budista com origem na China),resolveufazerumchakai(eventodechá)europeu.TudosepassavaemPariseocháera servido e bebido em banquetas e mesas. “Uma boa ideia”, me dizia minhamestra.Emseupaís,façaocháemmesaseosirvaapessoasemcadeiras.Ficarãomaisconfortáveis.Cháékokoro.Kokorosignifica“essência”,“coração”.Aprendemosumasériede

regraseatitudes,masoprincipaléocoração,amenteempurezaesemintenção.Objetos e mãos devem fluir sem jamais se tornar obstáculos. O chá deve estarprontoassimqueoconvidadotiverterminadodecomerodoce.Tudofluiquandonosconectamos.Semesforço.Intençãosemintenção.Essaalegriaduroupouco.Outrasmonjasquiseramteromesmoprivilégio,efui

proibidadeiràsaulasdechá.Muitos anosmais tarde, quando fui morar em Sapporo, recebi aulas de uma

senhora leiga. Aprendi uma nova tradição, a Urasenke. Mas meu coração ficoutriste. Era como se estivesse traindo minha mestra e minha escola de chá, um

grupo pequeno, de Nagoia, chamadoMatsuryo (Escola do Pinheiro). Pinheiro dalongevidade,pinheiroquesemantémverdeemtodasasestações.Oromantismodavidamonásticaedaartedochásedesfez.Haviaintrigas,inveja.Haviadetudo.Mashaviatambémofluir,abelezadeumacerimônialitúrgicaperfeita.Todas nós, monjas, trabalhávamos na cozinha, em rotatividade. Durante os

retiros, geralmente asmonjas que ficavam na cozinha iam descansar durante aspalestras.Eucorria,faziatudobemrápidoparaestarpresentenosensinamentos.As outrasmonjasnão gostaramdisso, então fui proibida.Queria fazer zazennasnoiteslivres.Proibida.Tudobem,iameadaptar.Era muito diferente dos Estados Unidos, onde muitas vezes eu me sentara

sozinhana grande sala demeditação. A educação japonesa é a de grupo, da vidacomunitária. A individualidade não importa. Importante é ser parte do grupo efazeroqueogrupofaz.Quando eventualmente íamos a um restaurante, seria inadequado escolher

minhacomida.Comiaoquetodospediam.NoOcidente,nãoestamosacostumadosassim. Nossa cultura ocidental nos ensina a ser indivíduos, a fazer escolhaspessoais, a ser diferentes dos outros. A cultura japonesa é oposta. Mas ossentimentos humanos são semelhantes: amor, inclusão, respeito, pureza,tolerância,tranquilidade.Nasaladechá,eumesentiaemcasa.Amestramefaziasentaraoseulado,ver

atravésdeseusolhosecompreenderemumnívelqueaspalavrasnãosãocapazesdedescrever.Lembrei o dia emqueme sentei ao ladodemeumestrede ordenaçãonoZen

Center de Los Angeles. Havia uma reunião dos professores budistas norte-americanos.Elesfalavamanimadamente.MaezumiRôshieeu(suaatendente)nossentamos em um sofá e olhávamos o grupo reunido em torno de uma mesa.Maezumi Rôshi girava um rosário feito de pequenas caveiras de madeira. Oseruditos se animavam e se divertiam com palavras, conceitos, ideias. MaezumiRôshi girava o rosário e, de repente, toda aquela conversa erudita pareceu-medesnecessária, tola e absurda. Meu mestre se levantou e eu o segui. Nuncaconversamossobreisso.Diferençasculturais.

……

Umprofessordenataçãoentraemumasaladeauladoterceiroanoeperguntaaosalunos:“Quemsabenadar?”.NosEstadosUnidos,todasascriançaslevantamamão. Algumas ainda não sabem nadar direito. Outras nunca nadaram. No Japão,nemmesmoomelhornadadordaclasselevantaamão.Estáaprendendo,aindanãosabe.

Pequenas diferenças culturais podem criar abismos entre pessoas. Assim, semprerecomendoaquemvaiaoJapãoqueestudealinguagemcorporal,asatitudes,maisdoqueoidioma.

NaturezaBuda

O jovem monge procurava por um mestre verdadeiro. Por anos, vagou demosteiro emmosteiro.Até que chegou aogrande e venerávelMestre Joshu.Paraadentraromosteiro,haviaumapontedepedrasobreumriachocristalino.Omongeatravessouapontee,logonaentrada,omestreoestavaesperando.“Paraqueserveapontede Joshu?”,perguntouoandarilho.“Passamburrose

passam cavalos”, respondeu o mestre. Essa expressão da época significava quetodos eram recebidosdamesmamaneira, semque se escolhessequementrava equemsaía.Omongeficou.Meditavatodasasmanhãs,tardes,noites.Ouviaaspreleçõesdo

mestre,masnãoseiluminava.Finalmente,umdiafoiquestionarJoshu:“Ostextosdizem que a Natureza Buda, a natureza iluminada, está presente em toda parte.Masmepergunto:ocãotemaNaturezaBuda?”.MestreJoshufoimonossilábico:“Mu!”.Omongefeznovereverênciasprofundas.Compreenderaoinconcebível.Agora,vamosporpartesapreciarestahistóriaantiga.Passam burros e passam cavalos. Na sua ponte, na ponte da sua vida, você

permite a passagem de todos os seres? Ou coloca cancelas, pedágios, escolhe,seleciona,expulsa,seprotege,sedefende,ataca?Minhaprofessoradehata-ioga,WalkiriaLeitão,disseoseguinteduranteumaaula:“Avidaécomoatravessiadeumaponte.Aspessoasqueestãoagoraaonossoladonãosãoasmesmascomqueminiciamosessatravessia.Masnãoselamentenemsesintasó.Semprehápessoasatravessandoaoseulado”.AoyamaRôshi,minhamestrade treinamentono Japão,noseu livro,Para uma

pessoabonita,comentaquetemosdenostornaressaponte.Pontequelevaosseresda ignorância à sabedoria. Alguns agradecem, outros insultam, mas a pontecontinua sendo ponte e servindo em sua função e posição. Facilitando a todos atravessia.

“Algumas vezes, temos de ser o barqueiro, alguémquemostre às pessoas que há umaoutramargemequeépossívelchegar lá.”Abandonarosofrimento,opapeldevítimaeselibertarparaviverapreciandoavida.

Naconversadomongecomomestre:setudoéaNaturezaBuda(oSagrado,oImaculado),o cão (animal sujo, imundo) temaNaturezaBuda (éo imaculado,osagrado)?Vamosnoslembrardeque,naChinadoséculoVIII,ondeessahistóriasedeu,os

cães não eram animais de estimação nos quais depositamos nosso afeto. Nãodormiamna cama,não viviamdentro de casa. Comiam restos, atémesmo restoshumanos.QuandoestivenaÍndia,emVaranasi,àsmargensdocrematóriodoRioGanges,

surpreendi três meninos indianos, de uns 7 anos de idade, observando um cãofamintocomendoalgoqueboiavaàbeiradorio.Semverdireito, faleiaeles,eminglês: “Nós, humanos, cremamos os mortos. Os cães não o fazem e acabamcomendooutroscães”.Osmeninosseentreolharammuitosérioseforamembora.Aproximei-me com cautela do cão e de sua presa. Surpresa. Era ummenino

azuladoeinchado–talveztivessevividouns10anos.Ocãopuxavasuaorelha,maspareciaborrachaenãocedia,apenasesticava.Depoisfezomesmocomoslábios,que,tambémcomoborracha,esticavammasnãosepartiam.Finalmentefoiatéoabdômen e, cortando a carne, começou a sugar os intestinos, como se comesseespaguete. Outros cães foram chegando, e eu me afastei. A uns três metros dedistância, um homem lavava roupas, batendo-as numa pedra. Um boi tomavabanhonorio.Pessoaspassavamsemseimportar.“O que Shiva, a divindade da destruição, me fez ver hoje?”, pensei. Havia

visitado o Templo Dourado de Shiva nessa manhã. Local sagrado onde nãopermitiamaentradadeturistas.Convenciapolicialqueficavanaentradadequeeuera uma monástica. “Sadhu? Ah, o.k.!” E permitiu que eu entrasse desde quedeixasse minha bolsa, com documentos e passagem, fora do templo. Deixar abolsa? Tanto me recomendaram que não perdesse meu passaporte nem minhapassagem na Índia. Seria trabalhoso o processo de provar e refazer. Pedi a umcomerciantequecuidassedemeuspertenceseentrei.

Comáguaeleiteatéostornozelos,participeideumaprocissãodefé.Aoentrar,todostocavamochãocomamãodireita,eosmesmosdedosquetocaramochão(com leite e água) tocavam a testa de quem adentrava o local sagrado. Apenasindianoseindianasentoavam:“NamuShivaya!NamuShivaya!NamuShivaya!”.Comecei a entoar também.Umbrâmane (religiosoque se veste apenas comumasungabranca)foimeconduzindopelotemplo.Levou-meaverapedrasimbólicae,numa outra sala, outro brâmane desenhou com cinzas o símbolo de Shiva emminhatesta,mecolocouumcolardefloresemedeuumpacotinhocompedaçosdecoco,pipoca,amendoimeaçúcar.Ao sair na rua, recuperei minha bolsa – intacta. Ao caminhar pelas ruelas

estreitas de Varanasi, notei que os indianos passaram a me ver, reconhecer ecumprimentar. Já não eram os indianos e eu. Éramos seres humanos. Senti-meacolhida,incluída.Aoavistarosoutrosmembrosdeminhaexcursãonumaesquina,eu os vi como “os estrangeiros, os turistas”. Foi uma experiência rara einteressante.Pertencer.AmarcadeShivanatesta,feitaporumbrâmane,foimeupassaporte.Gosto muito de cães. Nas proximidades do crematório central, ao ver

filhotinhos,abaixei-meparabrincarcomeles.Houvesurpresaecomentários:“Elabrinca com cães!”. Ninguém brincava com cães em Varanasi? Eles estavam lá,comendooscorposdascriançasmortas,queatéos12anosnãosãocremadas,esimarremessadasaoriocomumapedra.VoltandoàhistóriadaChinaantigaedo jovemmonge:“OcãotemaNatureza

Buda?”. Seria a pergunta que talvez fizéssemos hoje em outros termos: “OassassinoestupradortemaNaturezaBuda?”,“OimundotemaNaturezaBuda?”.Omestrevaialémdasexplicaçõesintelectuais.Apresentaarealidadeassimcomoé:“Mu!”.Essapalavraéumanegativa,maselenãoestánegando.Estáincluindo.NãotemosoudeixamosdeteraNaturezaBuda.Anatureza iluminadaestáemtudoeemtodos.Adiferençaparanós,sereshumanos,ésedespertamosparaelaounão.SenosapercebemosdequesomosavidadaTerra,queestamosinterligadosatodososseresnumateiadecausa,efeitoecondições.

Para que cada forma se manifeste, são necessárias inúmeras causas e condições. Não

controlamos todas as causas, todas a condições e muito menos todos os efeitos do quefazemos, falamos e pensamos. Mas podemos trabalhar nas nossas intenções, nos nossosvotos, nos nossos valores e, agindo através da compaixão, com discernimento, procurarminimizaradoreosofrimentonomundo.

“Mu!”éomesmoqueaNaturezaBuda.Aperguntadomonge,naverdadeseria:“OqueéoSagrado?Oqueéo Imaculado?OqueéaEssência?”.Omestreo trazparaopresente,paraoaqui-agora,ondeoSagrado,oImaculado,aEssênciaestãomanifestos.“Mu!”Realidade.

Somosotempo

Certo dia, o monge Nyojo pediu ao abade do Mosteiro a honra de limpar asprivadas. O abade disse: “Se você me responder como purificar o imaculado, aposição é sua”. O monge sentou-se em meditação por um ano. Não conseguiaencontrar a resposta. O abade o chamou e novamente perguntou: “Sobre nossaconversa,diga-me:comopodepurificaroimaculado?”.“Mestre,pormaisqueeupense,nãoconsigoentender.”Eoabade lhedisse:“Sevocêconseguirse libertardasvelhasamarrasdesuamente,entenderá”.Pormaisumano,omongemeditou.Oabadeochamounovamente:“Eagora?Comopurificaroimaculado?”.“Entendi,mestre.Purificar...”.Omestrebateuneleantesquecontinuasseafalar.Anosmaistarde,essejovemmonge,comtantadificuldadeemresponderaomestre,tornou-seumdosmaioresexpoentesdozen-budismonaChina.

Esse exemplo serve para nos lembrar de que, mesmo quando temos dificuldades emcompreender, não quer dizer que jamais iremos entender. O amadurecimento de um serhumanoécomoodeumaplanta,deumaflor.Nãopodemosforçarparaqueseabra,poissuaspétalasquebrariam.Àsvezes,ficamosimpacientescompessoaspróximasdenós.Comose tivessemaobrigaçãodeentender,deperceber,deamadureceroseuolharmaior.Enosesquecemosdequetudotemseutempo.

DôgenZenji,fundadordaordemSôtôShûediscípulodeMestreTendoNyojo(omongedahistóriaanterior),escreveuquesomosotempo.Nãoexistealgumacoisachamadatemposeparadadenós,denossavida.Parafinsdidáticos, fazemosumalinha. No centro, colocamos o zero; do lado esquerdo, o sinal de menos; e, dodireito, o sinal de mais. Mas o tempo não tem essa linearidade aparente doesquemadidático.Háoanteseodepois,masambossemanifestamnoagora.Semoantes,nãoestaríamosaqui.Estaraquiécriarcondiçõesparaodepois.Entretanto,odepoisnuncachega,poisestamossemprenoagora.Eoantesnuncavolta,porque

estamosnoagora.Quando o jovem Nyojo pede para limpar as latrinas do mosteiro, ele está

pedindo para fazer o trabalho mais desagradável de todos. As latrinas tinhampequenasportaslateraisatravésdasquaisosmongesretiravamasfezeseaurinautilizandoconchasenormeseas colocavamemrecipientesde courooude tecidoresistente. Depois de encher os recipientes, tinham de carregá-los a um localdistante,paraevitarquecausassedoençasaospraticantes.Eraumtrabalhopesadoedesagradável.NaÍndia,apenasospáriasofaziam.Contam os sutras que, certa vez, Xaquiamuni Buda caminhava pelas ruas

estreitasdeumvilarejoantigoquandoolimpadordeprivadasoviu.Elecarregavaosacodedejetos.Eraumpária.Segundoaleidaquelaépoca,nemmesmosuasombrapoderiatocarasombradeumapessoadeoutracasta.Elenãoeraconsideradoumserhumano.Erachamadodenãohumano.Buda percebeu a aflição do moço e continuou avançando. Aflito, o jovem

tropeçou e deixou cair todo o saco no chão, que se rompeu. Temendo por suamorte, abaixou a cabeça e, com as mãos em prece, pediu perdão. Buda seaproximou, segurousuasmãos, levantou-odochãoe fezdeleoprimeiromongesemcasta.Inclusãototal.Nos mosteiros zen-budistas, os monges designados a ser líderes dos noviços

devemse responsabilizarpela limpezadasprivadas.Naverdade,quandoo jovemNyojopedeparalimpá-las,estápedindopelocargodeconfiançadoabade.Porisso,omestrelhelançaapergunta:“Comopurificaroimaculado?”.Perguntaqueolevaàpráticaincessantedurantedoisanos.Quandosesenteprontoaresponder,oabadeo faz calar. Não eram palavras e explicações que omestre pedia,mas um gestosimpleseverdadeiropormeiodoqualpudesserevelaraverdadesemaferir.Noséculopassado,houveummestrezenbeminteressantenoMosteiro-Sedede

Sojiji. Certa feita, enquanto ele limpava o jardim, um monge elegante chegouperguntandoondepoderiaencontraroabade.Omestreapenasapontouparaaportaprincipal do mosteiro. Momentos depois, recebeu o visitante em sua sala, e omongenempercebeuqueoabadeeraamesmapessoaaquemelehaviapedidoainformação. Presos às aparências superficiais, muitas vezes deixamos de ver arealidadeassimcomoé.Watanabe Zenji – esse era seu nome – também tinha outrasmanias. Jamais

permitiaqueoutraspessoaslimpassemseubanheiroesuaprivada.Muitasvezes,

pediam-lhepermissãoparafazeralimpeza,maselerecusava:“Limpooquesujo.Masoqueé sujeira e limpeza?”. Sorria e continuavanas tarefas simplesdavidadiária.Suavidatemsidoumexemploparamuitasgerações.

Amentequeobservaamente

Da janela de seu apartamento, em Ipanema, Juliana revê sua vida. Omar emmovimentoincessante,comoseuspensamentos.Sentadaemumaalmofadapretaeredonda,elaseesforçaparameditar.Meditaréesforçosemesforço, segundoosmestreszen.Entretanto, Julianase

esforça.Endireitaacolunaeacervical,posicionaoqueixoumpoucoparadentro,entrecruzaaspernas,fazcomasmãosomudracósmico.“Souocosmoseocosmosestáemmim”,repeteparasimesma.“Luciana não poderia ter falado assim comigo”, pensa. Juliana reconhece o

pensamentoetentavoltaraatençãoaociclorespiratórioeàsuapostura.“Voutelefonarparaela.Voudizertudo.Fimdenossaamizade”,tornaapensar.

Abreumpoucomaisosolhos.Asondasquebramnapraia.Nodécimoquintoandarainda se ouve o somdomar e o barulho dos carros na avenida. Inspira e expiraconscientemente.“Meu pai era um homem sábio. Sempre dizia que não devíamos confiar em

ninguém.Aspessoas só se aproximampor interesse. ‘Cuidado,minha filha.’Ah!Saudadedemeupai.”Juliana relembracenasantigas.Elamenina,opai chegandoànoite.O carinho

rápido.Adiscussãocomamãe.Osilêncionacasa.Passeiapelacasagrande,pelassalas,janelasabertas,abrisadomar.Aquelequadrodecamelosnodeserto,quantasimagens,quantasvidas.Areia,beduínos,eelaseimaginavatambémumabeduínanodeserto,montadasobreumcamelo,aosolquentee comsede.Pensamentosesensações.“Voulevantarparabeberágua.Aindanãosepassaram15minutos.Vouesperarodespertadordocelulartocar.Comopodeserlongo1minuto”,pensa.Os olhosde Juliana se fechamsuavemente. Jánão se importa como ritual de

mantê-los semiabertos. Sua mente voa mais rápido que o vento de primavera.Infância com cheiros, memórias, sentimentos. Adolescência sofrida, doída,machucada e magoada pelos olhares invasivos daqueles que não a respeitavam,invejavam,criticavam,exigiam,cobravamoqueelanãotinhaparadar.Amortedopai. O enterro. O cemitério sombrio e as meias pretas rendadas. O primo e os

abraçosprofundos,soturnos,sensuais.“Silêncio. Meditação é estar presente no presente. Por que tanto rever? Psiu.

Fiquequieta,mentequementeparamim”,maispensamentos. Julianaaguardaotoquedosinodocelular.Quinzeminutos.Umaeternidade.Respiraçãoconsciente.“Tudoéatapeçariadesuavida.Aprecie.Devoapreciaratémesmoorancorea

dor,ainveja,ociúme,aexclusão,aexpulsãodecasa,daescola,davida?”Odespertadortoca,Julianasorri.Lentamentebalançaocorpodeumladoparao

outroe se levanta.Presentenopresente.Avidasendovividanoaquienoagora.Arruma a almofada, abre mais as janelas e vê uma surfista no mar. “Deve serLuciana”,pensa.Jupegaapranchae,quandoentranomar, jánãopensanemnobemnemno

mal.Águaesal.Ondaémovimento.Vidaéatitude.–Oi,Lu.Tádeboa?Vamospegaraquela?Easduasremamjuntasparaofundodomar.

Nossa mente é assim como a de Juliana: reclama, conversa, é cheia de memórias epensamentos. Mas se ficarmos em silêncio, observando e deixando passar, assim comosurfistasqueescolhemamelhorondaesabemesperar,naturalmenteamenteseaquieta,ocorpo se equilibra e podemos transcender rancores e apreciar o momento presente complenitudeealegria.Essevoltaraopresentenãosignificadeixardefalaroudefazeralgocontra injustiçase

erros, mas aguardar o momento certo para se manifestar de maneira correta, trazendomudanças verdadeiras e significativas; não apenas brigas e discussões, mas reflexões quelevemàVerdadeeaoCaminho.

Gratidão

Julianavoltoudapraiacansada.Tomouumcocogelado,comeuumasfrutasesedeitounosofá.Lucianaestavanobanho.Terianotadoqueamagoara?Agoratudoparecia longe, distante. As ondas do mar haviam levado e lavado as faltas e ospecadosdomundo.“Estádormindo,Ju?”ELucianafoisechegando.Tambémcansada.“Sabe,outro

dia,Ju,desculpe,faleioquenãodevia.Gostotantodevocê,masachoquetenhoatéumpoucodeinveja–porissofalobesteiras.Voumecuidar.Vocêmeperdoa?Vocêmeaceitaassimtola?”Juliananãosemoveu.EracomoseLucianahouvesseescutadosuamente.“Tô

deboa,Lu.Deixapralá.”“Inveja de mim? Por quê? Pelo apartamento que herdei? Nossa, meus pais

morreramnumacidentefeiodeavião.MeuirmãoficoutetraplégicoefoimorarnaSuíça. Moro aqui tão sozinha. Pessoas se aproximam para tirar vantagem. Meuprogramadetelevisãoestáperdendoaudiência.Precisoestudarmaisparaterminaro curso– e deixar de faltar. O Cauê foi embora. Resolveu dar a volta aomundosurfando.Ocomputadorpifou.Sóocelularmeconectacomomundo.Ufa,invejadequê?”Semquerer,essaúltimafrasesaiuemvozalta.Lucianasevirouparaaamigae

disse:“Vocêélinda,rica,temapartamento,umprogramadeTVparaadolescentes.Vocêéumgrandesucesso.Eusouninguém”.Julianaselevantouvagarosamenteesesentousegurandoacabeçacomasduas

mãos.Abrisadomareracomoumafago.“Olha,Lu,aprimeiraestrela.Vamosfazerumpedido?”“Oquevamospedir?”,quissaberLuciana.De mãos-dadas, de olhos cerrados, murmuraram juntas: “Que nada jamais

destruanossaamizade”.Anoseanossepassaram.Julianaagoraéavódecinconetosetrêsnetas.Sentada

naquele mesmo sofá, sozinha no apartamento antigo, vê a primeira estrela danoite.Lembra-sedeLuciana.Porondeandaria?

Acampainhadaportatoca.Lucianaentranasala.“Olha,Lu,aprimeiraestrela.Vamosfazerumpedido?”E as duas senhoras, sentadas lado a lado, dão-se asmãos, fecham os olhos e

murmuramjuntas:“Gratidão”,enquantoumasuavegotadomardeslizaentresuasrugasmarcadas.

Quando percebemos nossos sentimentos e nossas emoções, quando conseguimosverbalizaroquesentimos,oslibertamos.Averdadeiraamizadepermanecesemrecalques,semsegredos.Naconfiançadeperceber

edecompreendersemjulgar.

SennoRikyu

Houve, no Japão, um grande mestre da Cerimônia do Chá chamado Sen noRikyu.Quandojovem,procuravaapenasprazeresmundanos.Depoisdesofrercomaperdadeumapessoaquerida,tornou-semongezeneespecialistanaartedochá.A Cerimônia do Chá é uma arte ao mesmo tempo complexa e simples. Para

chegaràsimplicidadedeoferecerumachávenadecháverdemacerado,anoseanosdepráticasãonecessários.Desdeopreparodocarvãonobraseiroatéaescolhadosalimentos, dos doces e do chá a ser usado.A sala onde se dará a cerimôniadeveestarimpecavelmentelimpa,eapenasquemvaiprepararochádevelimpá-la.Osutensíliosusadosdevemestaremharmoniacomaestaçãodoano,odiaeohoráriodacerimônia.Estaéquaseumacomunhão.Quandoseusaochábemforte(koicha,emjaponês),ascincopessoasconvidadas

bebemdamesmachávena.Emoutrasocasiões,apessoaquefezochá(ummestreouumamestradechá)bebecomaúnicapessoaconvidada.Osilêncioreinanasalae pode-se ouvir o som da água fervendo, que deve ser como o do vento nospinheiros.Háinúmerasmaneiraseváriosutensílios,quevãodesdeosdeouropuroatéos

debambunovo,recém-cortado.Naalcovaondesefazacerimôniahásempreumnicho especial onde se coloca uma obra de arte a ser apreciada– um arranjo defloresnaturais,umacaligrafia,umvasoraro.Certa feita,nos idosdo séculoXVI,o senhor feudal–umguerreiroquehavia

conseguido a hegemonia dos feudos japoneses, chamado de shogun (grandegeneral)–,apreciadordaartedocháedeseusutensílios,ordenaraqueosmestresdo chá trouxessem objetos utilizados na cerimônia para sua apreciação. Muitosvierameapresentaramcaligrafias,desenhos,pinturaserecipientesparacolocarochá– objetos raros e antigos. Ele os apreciara,mas estava impaciente: “Não hámaisnada?Nadadenovonestemundo?”.Nessemomento,SennoRikyuchegouaolocal da exibição. O samurai que o recebeu na porta o repreendeu: “Você estáatrasado!”. Sen no Rikyu respondeu, olhando para a lua cheia: “Cheguei até umpoucocedo”.

Entrounasala,tomadapelapenumbradoanoitecer.Tinhanasmãosumtecidoqueembrulhavaumacaixadelacapreta.Aomostraracaixa,osoutrosmestresdechá zombaram dele: “Veio tarde e só trouxe uma caixa preta. Que tolo! Ha!Ha!Ha!”.SennoRikyumanteve-seimpassível.Comafacetranquila,aproximou-sedaportade correrda sala e a abriu suavemente. Sentou-senaplataformaexternaetirouatampadacaixadelaca.Sacouumajarradebambudeseucintoeencheuacaixacomáguapura.Tudooqueseouviaeraosomdaáguacaindonacaixa.Aoterminar,olhouparaaluacheiaeajustouacaixa.Afastou-seumpoucoe,apenascomumgesto,convidouosenhorfeudalaapreciar.Esteseajoelhoueviu:nofundodacaixahaviapequenospássarosdouradosemvoo,umgalhodechorão tambémdouradoe,entreeles,aluacheiarefletiasualuzbrancaecálidanocírculoperfeito.Purabeleza.OshogunabriusuasacoladepepitasdeouroejogoutodasparaSennoRikyu.

Este se tornou famoso por sua sensibilidade estética e tambémpor ser capaz dedecidirsobreestratégiasdeguerraepolítica.Eraprocuradopelossenhoresfeudaise líderes regionais para aconselhamento e para uma chávena de chá. Com isso,criouinimigos,pessoasqueoinvejavam,queseenciumavamdaatençãoqueseussuperioresdavamaele.Se,deumlado,elecresciacomomestredecháegrandeconhecedor da beleza e da arte, de outro, seus inimigos – pessoas de menorcapacidade–seuniamparatentarderrubá-lo.Tantas foram as intrigas que finalmente o sucessor do shogun anterior, um

guerreiroferoz,masquetambémhaviaadmiradoetomadochácomSennoRikyu,decidiutrancá-loemsuaprópriacasa.Eraumamansãobelíssima,naqualelehaviaconstruídotambémumapequeninacasadechá.Pequenaerústica,semouronempeçasraras–masexatamenteaíestavaararidadedasala:erasimples.Achávenadechá,aúltimadaqualbebeu,erapretaesemenfeitenenhum.Cometeusempuku(tambémchamadodeharaquiri–suicídioqueconsisteemcortaropróprioventre),vistoquedesobedeceraaoshogunporduasvezes.Aprimeira,quandooguerreiro–quehavia sepervertido embacanais–pediu a filhaúnicadeRikyupara ser suaconcubinaeelenegou.Afilhasesuicidou,causando-lhegrandedor.Asegundaeúltimavez,quandoosenhorfeudalpediuqueelelheentregasseumporta-incensoraro,queRikyuguardavasempreconsigo.Ointermediáriodoshogunlhedisse:“Seosenhorentregarapeça,quetantopreza,eabaixaracabeçaparaoshogun,tudoseráperdoado”.SennoRikyurespondeu:“Sóabaixominhacabeçaparaabeleza”.

Comisso,foicondenadoàmorte.Vestidotododebrancooacompanhavanaalcovasimplesdecháumemissário

doshogun,quesepropunhaacortarsuacabeçadepoisqueeleenfiasseafacanoventreeapuxassedeumladoaoutro–issoeraconsideradoumahonratantoparaquem morria como para quem o acompanhasse cortando sua cabeça e assimevitando horas de dor e sofrimento. Como a alcova era muito pequena, oacompanhante,assustado,aoverSennoRikyuempunharaadagacobertadepapelbranco e abrir o peito, comentou: “Mestre, não poderei usar minha espada emespaçotãopequeno”.SennoRikyurespondeu:“Então,apenasobserve”.Elecortouopróprioventreemorreusemdizermaisnada.Entretanto,suaarteeseusensoestéticocontinuamvivosatéhoje.Háinúmeras

escolasdaCerimôniadoCháespalhadasportodooJapão.Essaarte,ensinadanasescolas,nosmosteiroseemcentrosespeciais,étransmitidadegeraçãoageração,tememSennoRikyuummodeloaserseguido.Simplicidade,pureza,dignidade,honra, apreciação estética e grande harmonia tanto na escolha dos objetos, namaneira de fazer o chá, de servir os alimentos, como entre as pessoas que opraticam–apenasumachávenadecháverdeetodoouniversoaliestácontido.

TranquilidadeabsolutaaorelembrarquesomosavidadaTerra,quetudoseencaixaeseharmonizaquandonossamente-coraçãoseentregaaoSagrado.Temosdefazernossaparte:limparasala,vivernossavidademaneiraimpecável,observaranaturezaeseguirseuritmo,cuidar com respeito de cada detalhe do nosso andar, tocar, falar, “interser” – então, oCaminho se abre em luz de sabedoria e compreensão, de compaixão e respeito, sem quejamaissepercaadignidadeeabelezadeviver.

Céueinferno

Umsamurai (espadachimdo Japãoantigo) estava repousandodebaixodeumaárvorequandopassouummongebudista.Elenãoacreditavaemnenhumatradiçãoespiritual.Eraumhomemduroeseco.Quantasvezesdesembainharasuaespada?Quantos corpos havia mutilado? Quantos por sua lâmina haviam morrido? Jáperderaaconta.Aoveromonge,chamou-oeointerpelou:“Essahistóriadecéueinfernoquevocês,budistas,contamépuramentira.Ondeficaessecéu,essaterrapura?Eondeestáoinferno?”.Omongeoescutouatentamentee,emseguida,respondeu:“Vocêéumsamurai

muitoburroelento.Suaespadanãoserveparacoisaalguma”.Furioso,osamuraise levantou e começou a desembainhar a espada: “Como ousa falar assimcomigo?”.Omongedisse,sorrindo:“Issoéoinferno”.Osamuraiparoue,emvezde tirar a espada da bainha, colocou-amais para dentro. “Isso é o céu”, disse omonge.Econtinuousuacaminhada.

Céue infernoestãoemnósmesmos.Quandoentramosnomundodoódio,daraiva,dorancor, da vingança, do ciúme, do tédio, da preguiça, da ganância, da ignorância,penetramos o inferno. Perdemos a condição de apreciar a vida. Sofremos e causamossofrimento.Quandopenetramosomundodacompreensão,dasabedoria,dacompaixão,daternura,doamorincondicional,adentramososportaisdocéu.Recuperamosacapacidadedeapreciaravida.Alegramo-nosecausamosalegriasamuitosseres.

Hátambémumaanalogia,quejávimanifestaemmuitastradiçõesespirituais,incluindoobudismo.Dizemque, tantonocéucomono inferno,aspessoasestãosentadasdiantedeumaimensamesacomumbanquetemuitosaborosoprontoparaserdesfrutado.Tantonocéucomono inferno,elasestãoamarradasàscadeirasetêmasmãosatadasagrandesconchasecolheres.Noinferno,tentamdesesperadamentesealimentar.Oscotovelosnãosedobram.

Enchem as conchas e colheres com os alimentos mais deliciosos, mas nãoconseguemlevá-losatéaboca.Sofrem,ficammagras,famintas,aflitas.No céu, a mesmamesa, os mesmos quitutes, as mesmas colheres e conchas

amarradasàsmãos,oscotovelosduros.Entretanto, todossorriemeestão felizes.Asconchasecolhereschegamperfeitamenteatéabocadapessoaqueestásentadaàfrente.Assim,alimentandounsaosoutros,estãotranquilosealegres.Não é assim com a nossa vida? Quando somos pessoas egoicas, quando

pensamos em nós em primeiro lugar, perdemos. Quando saímos do eumenor eadentramosoEuMaior,pensandonobemdetodosemprimeirolugar,ganhamos.Ésempreassim.

……

Umavez,ouvi falardeumpolíticodo interiordoNordestequehavia recebidodinheiro para fazer um poço na cidade, quase morta de sede. Considerando-semuitosabido,construiuopoçoemsuasterrasesópermitiaquesuafamília,seusamigosecorreligionáriostivessemacessoàágua.Suasterrasforaminvadidaseeleperdeutudooquepossuía.Sehouvesseabertoopoçoatodaacidade,suafamília,seusamigosecorreligionáriostambémsebeneficiariam,juntamentecomtodasasoutraspessoas.Faltou-lheoolharmaior.Estavapresonapequenezdesuamente,deummundodelusórionoqualseconsideravaseparadodosoutros.Estamos todos unidos pela vida. Somos a teia da vida. Ao beneficiar outras

pessoas, outras criaturas, estamosbeneficiandoanósmesmos.A isso chamamosdespertar, acordar para a mente iluminada. Não é muito diferente dosensinamentosdasoutrasgrandestradiçõesespirituais,nãoémesmo?

Aofazerobematodososseres, todososseressebeneficiam.“Todososseres” incluemnossafamília,amigos,parentesenósmesmos.

Erudiçãoesabedoria

Há uma história da Índia antiga que me relataram. É assim: certa feita, umjovemdeumpovoadopequenoretornavaàcasadeseuspais.Haviapassadoanosfora, estudando. Formara-se com louvor na universidade e, como um bichinho,caminhava de peito e nariz erguido. Para chegar ao seu vilarejo, precisavaatravessarumgranderio.Contratouosserviçosdeumsenhorquetinhaumabalsa.Atravessavam o rio quando houve uma linda revoada de pássaros. O jovemperguntou ao remador idoso: “O senhor sabe por que os pássaros voam? Qual aestruturamecânicaquelhespermitevoar?”.“Nãosei.Seiapenasquevoam.”Eojovemretrucou:“Mascomoosenhorétolo.Perdeuumterçodesuavidasemesseconhecimento”.Remando pormais algum tempo, virampassar sob a jangada um cardumede

peixesbrilhantes e rápidos.O jovem interpelouo remador idoso:“Osenhor sabepor que os peixes nadam, não sabe?”. E o remador se desculpou dizendo: “Souidosoenuncasaídestebarco.Seiapenasqueospeixesnadamenadamais”.“Quelástima!”, exclamou o jovem. “Sem estudos, sem conhecimento, é como se osenhorhouvesseperdidometadedesuavida.”Oremadoridososecalouecontinuouremando.Depoisdealgumtempo,aágua

subiu e ameaçava afundar a jangada. O remador perguntou ao jovem: “Sabenadar?”. E o jovem, assustado, respondeu: “Não, não sei, por isso o contratei”.“Poisosenhoracabadeperdertodaasuavida.”

Ahistórianos faladatolicedoorgulho.Quandoaprendemosumpoucoeachamosquesabemosmuito.Odesrespeitoquealgumaspessoaspodemvirademonstrarporoutrasquenãoestudaram.Noentanto,asabedoriaestáalémdosestudosacadêmicos.Asabedoriadavidaedamorte.

Também nos faz pensar sobre a compaixão do remador. Mesmo tendo sido

humilhadoerebaixadopelojovem,teriaeledeixadootoloseafogarenadadoparaamargemsozinho?Outeriatentadoajudá-lo?Haveriaajudapossível?

……

Houvequemtivessededeixarsuaamadamorrernumacidentenomar.Foramnecessáriosanosdeterapiaparaserecuperardaculpa.Umsenhormecontouque,emcertaocasião,seubarcoestavaafundandoeeleestavacomsuamãe,suaesposaeseufilho.Sópoderiasalvarumapessoa.Quemvocêsalvaria?Ficamos todos pensando em soluções. Salvaria o filho, um bebê? Salvaria a

esposa,seuamor?Salvariaamãeidosa?Depoisdemomentosdesuspense,elenosdisse:“Salveiminhamãe.Esposa, eupoderia encontraroutra.Filhos, eupoderiateroutros.Mãenãoésubstituível”.Issoo libertoudaculpapelamortedosoutrosdois?Atéhoje reflitosobresua

opção. Teria sido a minha? Jamais saberei. Apenas quando estamos em umasituação-limitepodemosiralémdenossolimite.NofilmeindianoAsaventurasdePi,umjovemsobreviveaumnaufrágioesevê

presoaumpequenobarcoeaumtigreferoz.Afinal,otigreferozseriaelemesmo?Queaspectodenóséaferaquedeveserdomesticada,amansada,cuidadaeamada?Queaspectosdesimesmovocêestáalimentando?Podemos cultivar a compaixão e a ternura. Podemos cultivar o cuidado e a

brandura.Podemoscultivarorancoreavingança.Qualasuaescolha?Se eu fosse o velho remador, diria: “Vamos, então, usar sabedoria e

desprendimento.Vocêterádeaprenderaboiareeuvoupuxá-loatéamargem.Nãoseexaspere.Lembre-sedospássarosvoandoedospeixesnadando.Todosestãoemseuelemento.Mantenhaacabeçanasuperfíciedaáguaeolevareiàmargem”.“Pormaisqueopeixenade,nuncadeixaaságuas.Pormaisqueopássarovoe,

nuncaterminaocéu.”(MestreEiheiDôgen,séculoXIII)

Qual é o seu limite? Podemos nos tornar seres ilimitados? Aumentamos nossos limitesatravésdapráticaincessantedoCaminhoIluminado?A escolha é de cadapessoa. Podemosalimentar a sabedoria verdadeira e a compaixão

ilimitada.Maséprecisotreinoepaciência.Apráticaeotreinodapaciênciasedãosomente

atravésdapráticaedotreinodapaciência.

Pedroeosapo

SeunomeeraPedro.Altoemagro.Filhoúnico.Nasnoitesdechuva,acordavaepasseavapelaspoçasd’águacomasoturnasensaçãodeserumbichodomato.Certanoite,aconteceu.Enquantocorria,pisandofortenaágua,umsapo.Sapocoaxou.Pedroparou.Olhouparaosapo,eosapooolhou.Quanto tempo ficaram a se olhar? Ninguém sabe, ninguém viu. Pedro voltou

paracasa.Ficoumaisquieto.Sentava-seemsilêncio.Pareciaumsapo,diziam.Osolhoscresceramnocorpotãomagro.Esperavaachuvadanoitesoturna.Até

quevoltou.Correu apressado esperando encontrar o sapo. Não estava aqui, não estava lá.

Passouanoitecorrendo.Suavanachuvafria.Estava amanhecendo. Ouviu um estampido. Correu. O sapo saltou, pulou em

Pedro.Pedroolevouparacasa.Hojeosdoisestãolá,sentados.Ladoalado.Pedropedrasaposapa.Sapatomolhado.

AssimcomoPedro,muitasvezesnossentimossós,diferentesdasoutraspessoas.Bichodomatonosafastamosdoconvíviosocial.EnessasescapadassolitáriasPedroencontraosapo–umservivoquenãolhepedenada,

nãolhecobracoisaalguma,apenasoobserva.Aprendemos a observar a nós mesmos. Os olhos grandes, olhos capazes de ver em

profundidade.Apreciarosilênciodeondesurgemtodosossons.Pedroesperouascondiçõesadequadas.Assim temos nós de esperar pela chuva, ou seja, pela condição adequada para

reencontrarmos a pessoa, o amigo, o ser que nos compreende e que compreendemos naintimidademaisprofundadoestarjuntossemprecisardizernada.Eaoreencontrarolevaconsigo–porqueeraelemesmoosapo,(emjaponês–kaeru)–

aquelequeretorna.

Cadaumdenóspoderetornaraoeuverdadeiro,aonossolartranquilo,ànossaessênciasagrada. É preciso procurar, é preciso ir atrás, apreciar a solidão para ir ao encontro. Osapatomolhado é a prova vivada caminhadana chuva– chuvaquenãodiscrimina, nãosepara,nãoescolhe–comoagrandecompaixão–caiigualmentesobreárvoresearbustos,sobrePedroesobreosapo.Podemossercomoachuva,comoPedro,comoosapo.Esóoquerestaéumsapatomolhado.Simplicidade.

Bodidarma

NaÍndiaantiga,umsábioprocuravaporseudiscípulo.Jácaminharapormuitoslocais distantes. Vilarejos, cidades e campos. Será que ainda não nascera? Derepente,osinalauspicioso:umarco-íris surgindodopalácio real.“Finalmente”,pensousatisfeito.Ecaminhoucomvigoratéosportais.Quandochegou,foimuitobemrecebido.Oreiapreciavaavisitadereligiososeficoufelizemsaberdosinal.“Quemsabe,sejaumdosmeustrêsfilhos?”Parafazeraprovadequalseria,deuaosábioajoiamaisraradeseustesourose

oalojouemumasalaparaasentrevistas.Oprimogênitoentrou.Malviuosábio.Ajoia estavano centroda sala. Foi até ela e disse: “Essa é a joiamais preciosadenossostesouros”.Osábioagradeceuesedespediram.O segundo filho entrou na sala e foi diretamente para onde a joia estava,

dizendo:“Nadasecomparaaobrilhodessajoia”.Elogosaiu.Oterceirofilhoentrounasalaefoidiretamenteaosábio,semprestaratençãoà

joia.Surpreso,osábioperguntouaomenino:“Oquevocêachadessajoiapreciosaqueseupaimedeu?”.“Senhor”,respondeuomenino,“a joiamaispreciosaqueexiste é a da verdade suprema. O brilho mais irradiante é o dos ensinamentoscorretos”.Reconhecendoalioseusucessor,osábiosefoi,dizendoaorei:“Quandochegaromomento,voltareiparaqueelemesiga”.

Sabemosreconhecerqualéajoiamaispreciosadetodasasjoias?Ouestamosapegadosaobjetosconsideradosvaliosospelasuararidade?A raridade da mente que percebe o tesouro incomensurável da verdade e o brilho

inesgotáveldosensinamentoscorretoséariquezamaiorquesepodealcançar.Há um momento na vida em que nos questionamos sobre os valores que realmente

importam.Seestivermoscercadosporpessoassábias,seremosestimuladosapenetrarnestasquestões: o que é a vida? O que é a morte? Por que nascemos? Tudo morre quando eumorro? Quem sou eu? Há sentido nesta existência? Deus, onde está, como se manifesta?Ondenãosemanifesta?Onipresença,onisciência?

É importante questionar. É importante duvidar. É importante estimular crianças eadolescentes,adultoseidosos.Pessoasdetodasasfaixasetáriasdevemserincentivadasaoquestionamento que leva diretamente à casa do tesouro, de onde podem se servir a seucontento.Somosessetesouro.Estáemnós,maséprotegidoporvalentesguardiões.Sóquemestiverempurezapodepenetrar.Sóquemsededicaraessaprocuracomtodoo

seuser,entregando-severdadeiramente,poderápassar.Surgirãotentações,provocações.Osguardiões nos observam procurando pelos nossos pontos fracos e fazem surgir delusões,imagensfalsasnasquaisacreditamoscomosefossemreais.Amentepodeenganaraprópriamente. Se cairmos em tentação, perderemos o Caminho, que está exatamente onde nósestamos.

Umbispo católico disse, certa vez: “Aprocura é o encontro, e o encontro é aprocura”.Reflitasobreisso.Reflitaemprofundidade.Leveessafrasecomvocêearepita

detemposemtempos.Deixequesetornesua.Cheguelá,aondequemdisseafrasechegou,epercebaqueavidaéesseencontroeessaprocura.

……

Passaram-seanos.Quandoo jovempríncipeestavano finaldaadolescência,osábio voltou. Juntos se foram, com as bênçãos gerais. Ele aprendeu as artesmeditativas e o caminho para a verdade suprema. Não queria se separar de seumestre. Estavam juntos há quase 50 anos, quando o mestre falou: “Vá levar osensinamentos para outros cantos domundo. Fique longe da política, das cortes.Encontreseudiscípulosucessor”.Ele tinhaquase60 anos quando atravessouosmares da Índia até aChina.Ao

chegar, a lenda o antecedera. O senhor da localidade o esperava. Foi levadodiretamentedonavioatéopalácio.Chegoucansado,cabelos,barbaebigodelongos.Trazia uma argola de ouro na orelha esquerda e se vestia com um mantoavermelhado. O imperador, que por interesses de Estado apoiava o budismo eapreciavaaespiritualidade,foilogodizendo:“Senhorsábioindiano,tenhosidoumbomgovernante,cuidobemdomeupovoedasminhasterras.Aprecioareligião.Tenho construído mosteiros, alimentado os religiosos, criado condições para os

textos sagrados serem traduzidos e transmitidos. Adquiri muitos méritos, não émesmo?”.O indiano ouviu o relato de pé, em frente ao soberano, e respondeu: “Não

mérito”.Oreiseperturbou.Comoseatreviaafalardessaformacomele,quetãobem o recebia? Talvez não houvesse entendido bem sua pergunta. Insistiu, poroutro ângulo: “Então, o senhorme diga: o que é sagrado?”. Novamente o sábioindianorespondeucomumasópalavra:“Nada”.Furioso,orei,agoratambémdepé, gritou: “Quem está à minha frente?”. Puxando a ponta de seu mantoavermelhado para melhor cobrir o ombro esquerdo, o indiano respondeu: “Nãosei!”.Arfando,oreipediuqueelesaísse imediatamentedopalácio.Bodidarma–esse era o seu nome – segurou a ponta do manto e se afastou com nobreza.Atravessou rios e montanhas para chegar ao Monte Shaolin, onde um grandemosteiromantinha cercade 2milmonásticos. Preferiu ficar fora,numa caverna.Sentou-sevoltadoparaaparedepornoveanos.Diferentementedeseumestre,quefoi à procurado sucessor,Bodidarmao esperoumeditando.Entre osperíodosdemeditação, praticava exercícios de artes marciais. Os outros monásticos seaproximavameocopiavam.Dizemqueeleétambémofundadordasartesmarciaischinesasejaponesas.ArtequeeletrouxeradaÍndia,doseucrescimentocomoumnobreguerreiro.Quandoiameditar,àsvezessesentiasonolento.TrouxetambémdaÍndiaochá.

Bebiacháparasemanteracordado.Foicriadaumalendadequeele teriacortadosuas pálpebras para jamais fechar os olhos. No local onde as pálpebras caíram,surgiramasplantasdochá.Bodidarma é considerado o fundador do zen-budismo. Osmonges, quando se

referiamaele,ochamavamdemongezen–omongequeestavasempremeditando–,eassimoidentificavam.Certodia,surgiuumjovemchinês,quesecolocouàentradadacavernaepediu:

“Porfavor,meensineaartedemeditar”.Omestrenãosevirou.Passaram-sediasesemanas.Ojovemchinêsalipermanecia,pedindoparaseraceitocomodiscípulo.Oinvernochegouehouveumagrandenevada.Desesperado,comneveatéacintura,o jovem tirou sua espada da bainha e cortou seu antebraço esquerdo.“Ahhhhhhhh!”,gritoudedor.Osanguevermelhopintouanevebrancaesilenciosa.Bodidarmaseviroueoaceitou.

Lenda?Verdade?O simbólico importantedessahistóriaéque, sequisermosadentrarocaminhoverdadeiro,temosdeenfrentargrandesdificuldadesesuperá-las.Paraovitoriosonãoháderrota,nãohádesistência.Espera.Aguardaomomento.Capaz de entregar sua vida, seu braço, sua mente? Porque, se não for assim, não

penetraráaessênciadoseupróprioser.Essaéamesmaessênciadetodaavidadouniverso.Estaremcontato,reconhecê-la,nosfazvivercomoutroolhar.Oolharreal.Nãooolhodevidro.

Bodidarmasetornouumpersonagemraronahistóriadobudismo.Seudiálogocomoimperadorérepetidotodososanosnosmosteiroszen,pormongesemonjasqueconfirmamseusvotosnacerimôniachamadaCombatedoDarma.PorqueBodidarmanegaosméritosdoimperador?Afinal,elefizeradoações,era

umhomembom.EstariaBodidarmanegandoounão?Vindodelonge,comoolhardos horizontes sem-fim,muito além deméritos e deméritos, ele tentava– semsucesso–abriroabsolutoedesfraldá-lodiantedoanfitrião.AgoraBodidarmanãoeramaisohóspede.Eraosenhordacasa.E o sagrado, onde está? Faço a você essamesma pergunta. Estaria o sagrado

localizadoemalgumórgãoespecíficodeseucorpoouemalgumasinapseneural?Éumabioquímica?Seéonãonascidoeonãomorto,seéoniscienteeonipresente,está em toda parte e, logo, emnenhum lugar específico. É o nada-tudo, o vazioimenso de onde tudo surge e onde tudo se desfaz para ressurgir. O nada deBodidarmaéograndevaziodoalfaeômega.Novamenteelefalha.Oimperadornãoocompreende.Quem é você? O que é você? A pergunta veio em forma de ataque. Como se

atreve? Quem você pensa que é? Não é assim que falamos com nossos filhos,amigos ou mesmo pessoas que consideramos desrespeitosas? De novo, o sábioindianorespondedopontodevistaabsoluto:“Nãosei”.Nãoháninguémnafrentedoimperador.Oeu/nãoeu.Oserquesepercebeinter-relacionado,interconectadocomtodaavidadocosmos.Nãoerauminsulto.Nãofoiumabrincadeira.Elenãoquisofenderoimperador.Falouaverdade,masnãofoicompreendido.Seguindoasinstruçõesdeseumestre,escondeu-senasmontanhas.Nacaverna,

pornoveanosesperouseusucessor.Aeste, transmitiuomantoea tigela.Comotodo grande personagem histórico, não foi compreendido por todos. Haviainimigos.Tentarammatá-lo,envenená-lo.Váriasvezes.Maselesobrevivia.Atéque,umdia,resolveuaceitarovenenoemorrer.Seucorpofoicolocadona

cavernaeesta, fechadacomumapedraenorme.Algunsdiasdepois,ele foivisto,numa jangada pequena, atravessando o rio. Levava, pendurada em uma vara,apenasuma sandália depalha. Foramcorrendo abrir o túmulo.Não encontraramseucorpo.Apenasumasandáliadepalha.

Acidente

Afumaçavinhadobanheirodosfundosdoavião.Estavaemchamas.Depoisdoacidente,souberamquealguémcolocaraumcigarroacesonacaixadepapéissujos.Afumaçajáchegavaatéacabinedocomandante.Elepediuquetodosusassemasmáscarasdeoxigênio.Assimfoifeito.Umjovemqueestavaindoassistiraoshowdos Rolling Stones correu e ficou com o comandante. Um comissário de bordoenfiouacabeçanumaprivadaeficoudandodescarga.Apenasessessobreviveram.Ooxigênioeragásletal.Todosmorreram.AntonioCarlosScavone,33anosdeidade,comentaristadaGlobo,estavaindoa

Monza. Ele fora corredor de carros e era o grande fomentador da Fórmula 1 emInterlagos.Eraopaideminhaúnicafilha.Doisdiasantesdeviajar,veionosvisitar.Minhameninabrincoumuito.Ficava

tãofelizaovê-lo.Pulavanosofá,pulavanosofá.Elehaviametrazidoumablusadeveludo preto, cheia de pequeninos espelhos e fios dourados. Raramenteme davapresentes.Veludopreto.Saímos para dar uma volta de carro. Era um carro lindo, um Porsche, talvez.

Nossa filha, no estreito espaço de trás, mascava os chicletes que ele trouxera.Depois adormeceu. Paramos quase em frente à casa em que eumorava. “VenhacomigoparaMonza.Vamosvoltar.Amovocê.”Não era a primeira vez que eu o ouvia pedir que reatássemos. Pedia e depois

desaparecia.Eujánãoacreditavamaisnesseamor.Havíamosnosseparadoduranteagravidez.Suairmã,queeuconsideravaminhagrandeamiga,veiobuscarasmalasjuntocomele.Eutinha17anos,eele,24,quandoameninanasceu.Veiomevisitarnamaternidade comumaamiga.Não!Eunãoqueria ir aMonza, eunãopoderiavoltar.Entãonosbeijamossuavemente.Háanosnãonostocávamos.Foiumbeijolongo,leve,macio,semsensualidade.Umbeijodeamor.Trêsnoitesdepois,otelefonetoca.DaredaçãodoJornaldaTarde,ondeeuhavia

trabalhado.Oaviãocaiu,Scavonemorreu.Minhafilhabrincava.Nãodissenadaaninguém.Saíparaoquintaldosfundos

dacasa.Océuestreladocintilava.Eleeraagoraumaestrela,umaluzemaisnada.

11dejulhode1971,nosarredoresdeParis,umBoeingdaVarig.

Quando alguém morre, um pouco de nós morre também. Mas muito de quem foicontinuavivendoemnós.Comodarvida,emnossasvidas,paraquemsefoiantesdenós?

Nãohánadafixo,nadapermanente.Tudoquecomeçainevitavelmentetermina.

Surgimosdotodo,deinúmerascausas,condições,efeitos.Quandoterminamos,voltamosaotodo.Lembre-se, porémde que esse espaço entre o surgir e o desaparecer tambémé o todo

manifesto.Apreciesuavida.

Absolutoerelativo

“Ocorponãoémoldura.Amentenãoéespelho.Desdeoprincípio,nadaexiste.Ondeapoeirapoderiaseassentar?”

SeunomeeraDaikanEno.ConhecidocomooSextoAncestraldaChina.Viveracomolenhador.Assimsustentavasuamãe idosa.Certodia,ouviuotrechodeumensinamentodeBuda.Fezsentido.Deixouamãeaoscuidadosdevizinhosefoiaomosteiro.Oabadeimediatamentereconheceuseusucessor.Entretanto,nomosteirohaviamongesqueestavamláfaziaanos.Muitosfilhos

de nobres. Eruditos, letrados. Seria melhor que o lenhador trabalhasse ali fora,separandoelimpandooarroz.Depois de certo tempo, o abade pediu a todos que escrevessem poemas

demonstrando sua compreensãoda verdade.Haviaummonge, o braçodireitodoabade,quetodosconsideravammuito.Ninguémescreveunada,esperandoqueelefizesseseupoema.Omongeescreveueafixounumaparede,emletrasenormes:“Ocorpoéamoldura.Amenteéoespelho.Precisamosmantê-lolimpoparaqueapoeiranãoseassenteeelereveletudoassimcomoé.”

Todossemaravilharam.Issomesmo.Praticarélimparoespelhodamenteparaque reflita a realidade com exatidão. Alegraram-se. O abade elogiou o poema etodosjáoconsideravamosucessordireto.Contudo,oantigolenhador,quenemmesmohaviaraspadooscabelos,obigode

eabarba,queaindanãoforaordenadomongeevivialimpandooarroz,veiotrazerumaporçãodealimentosatéagrandecozinhadomosteiro.Nocaminho,notoua

algazarradosmongesemfrenteaoescrito.“Porfavor”,pediu,“leiamparamimoqueosalegratanto.”Felizesporpodercompartilhar,mesmocomumapessoailetrada,ensinamento

tão perfeito, leram e explicaram. O lenhador silenciou. Algumas horas depois,quandoestavaapenasomongequeeraseuamigo,pediuqueeleescrevesseaoladodoprimeiropoema:“Ocorponãoémoldura.Amentenãoéespelho.Desdeoprincípio,nadaexiste.Ondeapoeirapoderiaseassentar?”

Semassinatura,semmarcas,saíram.Oabadepassoupelolocal.Reconheceuacaligrafiadomongequeescrevera.Este

confirmou que havia escrito o que o lenhador ditara. Não houve elogios nemcomentários. O mestre foi até onde ele estava e combinaram de se encontrar àmeia-noite,nosaposentosdoabade.Assim, quando o lenhador chegou lá, escondido, a lâmpada se apagou. O

encontrosedeunobreudanoite.Omestreentregouaeleseumantoesuatigelaedisse:“Fuja.Jamaiscompreenderãoquevocêémeusucessor.Váembora”.E ele fugiu, correndo pela noite adentro. Os atendentes do abade acordaram.

Haviamovimento.Entrarameacenderamalâmpada.Oabadetinhaasfacesrosadase caminhava de um lado para outro. Omanto, eles notaram, desaparecera, bemcomoatigelademendicante–objetosagradoqueosmongesrecebemnodiadesuaordenação.“Devetersidoroubo”,pensaram.Nãoouviramoabade.Chamaramummongequehaviasidoumgrandegeneralantesdeserordenadoe,comoutrosdezmonges,foramatrásdofujão.Daikan Eno correra muito. Cansado sentou-se sob uma árvore. Pendurou o

manto em um galho e depositou a tigela sobre uma pedra. Adormeceu. Acordoucomotumultodosmongesqueoperseguiam:“Ladrão.Devolvaosobjetossagradosdenossomestre”.“Nãoroubei.Sequeremdevolta,podemlevá-los.”Oex-general foipegara tigela,geralmenteumobjeto leve, feitodemadeirae

coberto de laca.Mas não a conseguiu levantar. Aproximou-se do galho e tentou

apanharomantomonástico,mas tambémnão teve sucesso.Compreendendoqueali havia algo maior, ajoelhou-se em frente ao ex-lenhador e pediu que oensinasse. Daikan Eno, que ainda nem recebera a tonsura, tornou-se o SextoAncestralnalinhagemchinesa.

Ocorponãoémolduraeamentenãoéespelho.Comosepararcorpoemente?Esseaindaéomundodadualidade.Desdeoprincípio,nadaexiste.Prótons,elétrons,nêutrons–nadafixo,nadapermanente.

Menteincessanteeluminosa.Limpar do quê?O que é a poeira domundo?Há algo a ser purificado? Limpo? Como

purificaroimaculado?DaikanEnofaladopontodevistadoabsoluto.

Nãoqueooutromongeestivesseerrado.Maselefalavadorelativo.Tornou-seabadedomosteiroe tevemuitosdiscípulos.Eraaescolagradual.Poucoapouco,praticando,sepurificando,seusdiscípulosacessavamamentesuprema.DaikanEnofoinoutradireção.Tevemuitosdiscípulos.Eraaescolasúbita.Nãoé

poucoapoucoquesepercebeaverdade.Énummomento.Éinstantâneo.Durantemuitosanos,asduasescolassedesenvolveram.Umaaonorteeoutraao

sul.“AmentedograndesábiodaÍndiaestavaintimamenteligadadelesteaoeste.Entresereshumanos,hásábiosetolos,masnocaminhonãoháfundadordosuloudonorte.”Sekito Kisen Daioshô era tambémmonge chinês, bisneto discípulo de Daikan

Eno. Transcendendo a dicotomia entre súbito e gradual, restabeleceu a linhagemdeclarandoaidentidadedorelativoedoabsoluto.

Muitas vezes discutimos, debatemos. Uma pessoa fala do ponto de vista do absoluto.Outra, do relativo. Podem não se entender. Porém, quando percebemos que absoluto erelativosecompletam,nãohádiscussão.

Na Índia antiga, um homem se aproximou de Buda, na floresta onde eletranquilamentemeditavacomseusdiscípulos.Chegandoàsua frentedisse:“Vimaqui discutir a verdade como senhor”. Levantando as pálpebras,Buda olhou emseus olhos com ternura e disse: “Se vamos falar a verdade, não poderá havernenhumadiscussão”.

Odiálogoémais importantequeodebate.Dialogar éouvirparaentender.Entenderooutroéentenderasimesmo,écompreenderamentehumana.

Meumestredetransmissão,YogoSuiganRôshi,quandoencontravaalguémcomopiniõesmuitodiferentesdadele,apenasdizia:“Essamaneiradepensartambémexiste.Interessante”.Nãodiscutia.Erarespeitadoeouvidoportodos.Foiprofessordosprofessoresdoscursosdeformaçãodeprofessoresdemosteiro.

Como que, sem abandonar nossos ideais, podemos ouvir, entender e continuar ocaminho,semperderofocoprincipal?Ataçadecristal,cheiadeáguapura,podesetornarumalentequedistorcearealidade.Atémesmoessadistorçãoéarealidade.Meuolhovêoqueataçatransforma.Vêataça,vêoqueéalémdataça.Seráquealgumacoisaédemaisoudemenos?O olhar que vai além da taça e percebe o ângulo da taça é o olhar Buda, o olhar de

sabedoria.Esseolharésúbitoegradualaomesmotempo.Alémdetodaadualidade,contémadualidade.O relativo (o local) estánoabsoluto (oglobal).Oglobal semanifestano local.O local

interferenoglobal.Oquecadaumdenósfazmexecomateiadavida.Quandoateiadavidasemove,cada

umdenóssemodifica.Somos o todo e o todo é em cada partícula. Não somos parte do todo. Somos o todo

manifestoemcadaser.Reflita.

OlharBuda

Quando saía para esmolar, o velho abade usava seus hábitos mais antigos egastospelotempo.Estavamendigandopertodapontequandoviumuitaspessoasse dirigindo à casa do governador. Lembrou-se de que ele também secomprometeraaestarpresentenessediadefestaparafazerumapreceparaobemdetodaacidadeedaprovíncia.Jáestavanahora.Haviasedistraídocaminhandopelasruas.Seguiuumgrupode

pessoas e, quando ia atravessar os portões, um segurança o barrou: “Mongemendicante,hojenãoédiadeosenhorentraraqui.Váembora”.Ecomentoucomooutroguardião:“Comessestrapossujos.Cadacoisa!”.Omonge não disse nada. Foi ao seu templo. Trocou-se. Vestiu omantomais

fino, de brocados dourados, e chegou à casa do governador. Imediatamente osportaisseabriram.O governador o esperava aflito: “Por favor, vamos começar logo. Todos já

chegaram.Aliestáoaltarpreparadoparasuaspreces”.Omongeaproximou-sedoaltar, tirouomantobrocado,colocou-onacadeiraesaiudizendo:“Quemsabearoupafaçaumaprecemelhorqueaminha”.Mais tarde, o governador, sabendo o quehouvera, pediu desculpas aomonge,

que fez as preces para todos, deixando claro que “as aparências podem nosenganar”.

Difícilnãojulgaraspessoaspelasuaaparência,suasroupas,dentes,maquiagem,cabelos(ouausênciadeles)econseguirveroserverdadeiro.

Háquemolheparamimcompiedade,pois raspooscabeloscomoBuda fazia.Pensamquepasseiporquimioterapiaeosperdi.Seioquepensam,seuolharmediz.Jovens de periferia que combinam encontros em shopping centers de bairros

ricosnascidadesgrandescausamgrandetumultoaosseguranças.Queremproibi-losdeentrar.Nãosãoopúblicoparaesses lugares.Viriamroubar,assaltar?Não.São apenas jovens, com direito a entrar em qualquer área pública da cidade.Enquanto isso, ladrões bem-vestidos limpam joalherias sem que sejamidentificadospelossegurançasefrequentadoreslocais.

É preciso desenvolver o olhar Buda. Olhar de profundidade e sabedoria, pleno decompaixãoediscernimentocorreto.

Qualoseupedido?

Ospescadoresestavamtristes.Voltavamcomasredesvazias.Umdelesinsistiu:“Vamos tentarmaisumavez”.Cansadose semesperança, sentaram-senobarcocabisbaixos. Depois de algum tempo, recolheram a rede. Havia alguma coisapequenapresanosfios.Umpeixinho?Umapedra?Umaostratalvez?Curiosos,recolheramarede.Osolhosfixosnaquelaformaduraque,tãoleve,ali

seprendera.Surpresa.EraaimagemdeKannonBodisatva.Auspicioso.Kannonrepresentaacompaixão ilimitadaeperfeita,capazdeveros lamentos

do mundo e atender aos pedidos verdadeiros. Kan significa ver, observar emprofundidade; e on, os sons. Em vez de ouvir os sons, ver os sons. Ver asnecessidades reais e suprir essas necessidades. Bodisatva significa ser (satva)iluminado(bodhioubodai).Guardaram a imagem com respeito. Uniram as mãos palma com palma e

oraram.Cheiosdeféedeesperança,tornaramalançarsuasredes,eestasvieramrepletasdepeixes.A notícia se espalhou. Encontraram uma imagem, fonte de milagres. Todos

queriamvê-la,tocá-la.Construíramumapequenacapela.Aimagemtãopequeninafoiguardadanoaltarmaisalto,dentrodeumacaixaforradadeseda.Maisemaispessoasvieram.Maiscasosdemilagresepedidosatendidos.Hoje,essapequeninaimagemdospescadoreséafiguraprincipaldoTemplode

AsakusaKannon,emTóquio.Àsuavolta,lojasdealimentos,deimagens,deroupastradicionais, de lembranças. Multidões visitam o local todos os dias. Fez-melembrardaPadroeiradoBrasil,NossaSenhoraAparecida.Dooutroladodoplaneta,umahistóriasemelhanteacontecia.

Seráquenós,sereshumanos,seremosumdiacapazesdereconhecerquenossaestruturafísica,mental,psicológicaeespiritualémuito semelhante?Não somos iguais.Nãohádoisseres iguais.Cadaum, cadaumadenóséumserúnico.Mesmogêmeos idênticos,mesmoclones.Cadaexperiênciadevidanostransformaenosmodifica.Acadainstante.Cadalivro

quelemos,programasdetelevisãoourádioqueescolhemos,cadamensagemvirtual–tudonos transforma por meio do conhecimento e da informação. Sabemos mais. Precisamosaprenderaselecionaredarfocoaosnossosinteresses.

Certavez,numpostodeestradapertodacidadedeAparecida,haviaumacapela.Entrei.Apreceatrásdaimagemdeixavaumespaçoembrancoparaqueeupudessefazeromeupedido.Qualomeupedido?Emoutromomento,Tchijo,pajédeumatribodePernambuco,falounarodaem

queeuestava:“Souumpajé.Façaseupedidoeseráatendida”.O meu pedido. Qual é o seu pedido verdadeiro? Fiquei procurando em mim

mesma.

Talvez as orações, as imagens representando estados mentais de harmonia, bondade,compaixãosirvamparaquepossamosesclarecerparanósmesmosoquequeremos.Saberoque quer é o primeiro passo para obter. Nem sempre o que pedimos, mas aquilo de queverdadeiramentenecessitamos.

Despertarecuidar

O sábio, ao acordar, chamou seu assistente: “Tive um sonho”. O assistentetrouxeabaciaparaosábiolavarorosto.Vivemos um sonho dentro de um sonho. Quando acordaremos? O que é o

despertar?Lavarorosto.

Nomomentodesairdacama,estejapresente.Qualatemperaturadochão?Dochinelo?Dasandália?Dosapato?Treinaraplenaatençãodeestarpresentenoagora.Amentequerdivagar.Querirparaoontem.Fugirparaoamanhã.Àsvezesfalademais.Comosemilvozesnospuxassemparamillocais.Retorneaoagora.Retorneaocontatosimplesdotato.Seis sentidos: são os cinco mais a consciência. Essa consciência é uma grande

gerenciadoradetudooquepercebemos.Dentroefora.Foraedentro.Hádentroefora?

Na China antiga, houve um abade muito sábio. Pessoas vinham de todas aspartes procurá-lo. “Qual a essência dos ensinamentos verdadeiros?” Ele não secansava em responder: “Tudo o que existe no céu e na Terra é como uma joiaarredondada,semdentronemfora.Somosavidadajoia.Nãoviemosdefora.Nãovamosparafora”.Vamosjogarolixofora?Foradeonde?Foradacasa.Foradacasaénarua.Fora

daruaénomato,énomar.Arua,omato,omarsãoanossacasa.Anossacasacomum,oplanetaTerra.LeonardoBoffsugeriuque,naabóbodadoedifícioprincipaldaOrganizaçãodas

NaçõesUnidas, fosse desenhada aMãeTerra. “NossaMãe comum.Não devemosquerermalànossamãe.Precisamoscuidardela.”OcuidadoamorosocomavidadaTerra,comanossavida.Obudismotibetanoexplicaàscriançasqueaquela formiguinhaaliésuavovó.

“Você gostava da vovó, não gostava? Logo, não a maltrate.” Meio expediente.Compaixãoéencontrarmeiosexpedientes.Hojeeunãomatonemmesmoaquelas

formiguinhasbempequenasquesurgemnapiaquandoestácalor.Simplesmenteasassopro.Tentonãomatá-las.Quandoacontece,meentristeço.Parece tolice,poisna verdade uma forma de vida vive de outra forma de vida.Mas eu não vivo deformigas.Possoafastá-las.

Damesmamaneira,podemosafastarpensamentosnefastos,ideiasobtusas.Bastasoprar.Soprardeleve,paranãoferirenãoassustar.

Opequenobesouromechamouládapiscina.Coloqueiminhamãoeelesubiu.Sentisuaspatassefirmandonaminhapele.Lembrei-medahistóriadeummongeque salvara um escorpião. Quando estava colocando o escorpião à beira d’água,levouumapicada.Quemestavaporpertoocriticou,maseledisse:“Édanaturezadoescorpiãopicar.Édaminhanaturezaosalvar”.

Ovoodaborboleta

DaChinaantigavemestahistória:Umantigopoeta chinês famososonhouqueeraumaborboletavoando.Estava

tãofelizvoandocomoumaborboletaque,aoacordar,nãosabiaseeraumhomemquesonharaserborboletaouseeraumaborboletaquesonhavaserhomem.Quemévocê?Oqueévocê?

……

NasaladepalestrasdeumcentrozencoreanoemLosAngeles,omestrebatiacomseucajadonochão.Pareciafurioso.Eleeraomelhoramigodemeuprofessore,porisso,euestavalá,nosfundos.Aspessoassentadasnafrentesearriscavam:“SouMaria.”“Nãopergunteiseunome.Pergunteiquemévocê.”“Soumédicaoftalmologista.”“Nãopergunteisuaprofissão.Quemévocê?”Eelebatiacomocajadonochãoduro.Vestidodecinza,sentadosobrealmofadas

numaplataformaumpoucomaisaltaqueosseusdiscípuloseopúblicoquevieraassistiràpalestra.Fossequalfossearespostaquedessem,ogritoeabatidaressoavampelasala.

“Não quero saber seu gênero”, “Não perguntei sobre sua família”, e assim pordiante.Atéque,finalmente,alguémdisse:“Eu...eunãosei”.Então,elesealegrou.“Agora basta tirar esse ‘eu’ da frase. Seja capaz de chegar apenas ao ‘não sei’.”Interessante, forte. Cada pessoa na sala parecia estar respondendo e seperguntando:“Oquesoueu?”

Iralémdonome,daforma.Chegaràessência.Eessaessênciaéamesmadetudooqueexiste.Semnome,semforma.Éumatécnicaparadesconstruirasimagensqueconstruímosde nós mesmos. Mas é preciso também reconstruir. Há pessoas que ficam paradas nesseestadodenãoeu.

Durantealgunsanos, fizemoscaminhadasmeditativaspelosparquesdeváriascidadesdoBrasil.Caminhávamosemfilaindiana,comsolenidadeeemsilêncio.Àsvezes, andando rapidamente; outras, bem devagar. Houve grupos com até 200participantes.Caminhandoentreárvores,lagoseoutraspessoas.Numamanhãdedomingo, fomoscaminharnos jardinsdoMuseudo Ipiranga.

Um jovem senhor, que sempre participava dos retiros de meditação sentada, seatreveuavir.Percebiqueestavaumpoucoincomodadocomosolharesdaspessoasquefrequentavamoparque.Semdúvidanosestranhavam.Nuncahavíamosestadoali.Haviamuitossenhoresesenhorasdeorigemitaliana.Sentadosnosbancosporonde passávamos, nos olhavam e comentavam entre si: “Ma cosa?Qui sono? Perchè?”.Depoisdeunsdezminutos,o jovemsenhorabandonouafilaesefoi.Furioso.

“Quemico! Nuncamais.” Entretanto, ficou nele uma certa curiosidade. Por quecaminhávamosassim?Realmentedeveriateralgumvalor.Apresençadesentirosdiferentesterrenos,asdiversastemperaturas,odores.Estarpresenteemsimesmo.Perceber os pensamentos e os silêncios. Ouvir os pássaros e os carros. Haviaalguma coisa nessa caminhada, diferente das caminhadas que realizamosconversandoounosexercitando.Todasasmanhãsele costumava corrernoParquedo Ibirapuera.Certamanhã,

depoisdecorrer,entrouemumaáreadevegetaçãofechada.Nãohavianinguémporperto. Sozinho, repetiu para si mesmo as instruções que eu dava antes dacaminhadaesepôsaandaremplenaatenção.Derepentesesentiuligadoatudo.Era uma sensação forte, doce, profunda, inebriante, extasiante. Ficou algunsminutossentindoessebem-estarevoltoueufóricoparacasa.A esposa o esperava com o café da manhã. A filha já estava terminando a

refeição. Ele começou a falar de sua experiência. A filha se levantou damesa. Aesposaapenasdisse:“Émesmo?”,econtinuousuastarefas.Elemetelefonou.“Monja,aconteceu.Eagora?Oquefaço?Tenhoumareunião

de negócios em poucos minutos. Como posso discutir valores quando um valormais alto surgiu?” Ele não queria ir trabalhar. Queria continuar na sensaçãoprazerosa.Nãoqueriaperdê-la.Disse-lhe:“Váàreunião.Váleve.Aprecieestarnogrupo.Semestresse,semaflições.Agoravocêsabe.Algunsaindanãoperceberame

ficam presos às teias dos relacionamentos e ganhos pequenos. Divirta-se. Façadestaasuamelhorreunião.Estejapresente.Percebacadapessoa,sintaacadeira,ochão, a água, o lápis. A presença absoluta que você encontrou esta manhã, noparque,nãoéumobstáculo.Éumportalparasuavidadiária”.Souaborboleta.Osonhonavida.Saídocasulo.Minhaprimeiraorientadorano

zen-budismo, a Mestra Charlotte Joko Beck, costumava dizer que precisamosromperessecasuloquenosseparadotodo.Mas,assimcomoparaa larvaquesetransformará em borboleta, há ummomento certo. Podemos entrever realidadesmaiores do que as que estamos vivendo. Até que, libertos do casulo de umaindividualidadeseparada,possamosvoarlivres.O que é liberdade? Até pássaros estão limitados em seus níveis de voo. A

borboletaélivre?Hálimitesdealtura,develocidade,denecessidadesfisiológicas.

Costumamosnoscompararaoutrasformasdevidaeimaginamosquesejammelhoresdoqueahumana.Ternascidohumanoéteraoportunidadedeatépodersonhar.Podemosvoarcomospássaros,nadarcomospeixes,nosbalançaraoventocomaspalmeiras.Construímoscasas, estradas, naves espaciais. Aprendemos sobre nosso corpo e mentes. Descobrimosremédiosecuras.Construímosbombasefazemosaguerra.Queremoscontrolartudoetodose,aomesmotempo,somosvítimasdetudoedetodos.Atéquenoslibertamos.Essalibertaçãoémuitomaiordoqueovoardasborboletas.

Liberdade

Houveumgrandefilósofochinêsquecaiuemdesgraçanacorteefoidesterradopeloimperador.Maistarde,oimperador,compreendendoseuerroedescobrindoasintrigas que o fizeram mandar para longe seu conselheiro leal, pediu a seusatendentesqueofossembuscar,poishaviaumcargoimportanteparaelenacorte.Elereceberiahonras,riquezas.Oferecessemoquefossenecessário.Oimperadoroqueriadevolta.Foramencontrarograndefilósofoeconselheiropescandocalmamenteàbeirade

umrio.Fizeramtodasasofertas.Oqueeleprecisasse.Oimperadorlhedariatudooquequisesse.Seriarespeitadoereverenciadoportodaacorte.Osábiodisse:“Numlocalsagradoestãoasrelíquiasdeumagrandetartaruga.A

maioratéhojeencontrada.Elaestáemumlocallindoeémuitobemtratada.Todosa homenageiam. Ela recebe grandes honrarias,mas nunca pode se aproximar dalama. O que vocês escolheriam: ser uma tartaruga que recebe fortunas, honras ehomenagensemumlocallimitadoouserumatartarugaquepodecolocaracaudanolodo?”.Oscortesãosnãosouberamoqueresponder,eeledisse:“Poiseuprefiroficarcomacaudanolodo”.

Àsvezesdeixamosdeapreciaranossaliberdadedeirevir,aliberdadedepoderpensar,teropiniõeseescolhas,paranossubmeterasituaçõesdeaparentesriquezasehonrarias.Nãohánadamaishonradoedignodoquealiberdade.

Comosou idosa, lembro-medeumaépocaemquenãovotávamosparaelegernossosadministradorespúblicos.Tambémmoreimuitotemponoexterior.QuandofinalmentevolteiaoBrasil,comquealegriafuivotar.Fiqueicomovida.Mesmoquemeucandidatooucandidatanãoseelegesse.Podervotaréumahonra.Hápessoasqueconsideramapolíticaumaatividadesujaefeia.Políticaénossa

vida.Nossosacordosfamiliares,sociais,profissionais.Participardapolíticadeum

país, seja votando, fazendo campanha ou se tornando político, é pensar no bemcomum.Hámuitos,emtodoomundo,queseperdem.Essesnãosãobonspolíticos.Nemmesmopolíticossão.Masnemtodossãoassim.Ospaísescontinuamsendoadministradosesemprehápessoashábeis.MeupaifoiSecretáriodasFinançasdacidadedeSãoPauloe,depois,Secretário

daFazendadoEstadodeSãoPaulo.Diziamqueeleeraumaflorno lodo,comoaflordelótus.Aqualidadedaflordelótuséadenãosemacular.Elavivedolodo.Suaraiz,brancaeimaculada,estánolodo.

E você? Como age, pensa e fala? É facilmente corrompido? Vende-se por valoresmundanos?Trocafalsidades?Nãoéfácilsercoerentecomnossosvalores.Algumaspessoasnem sabem o que são valores éticos. A necessidade é educar. Educar para que tenhamospessoascapazesdecriar,manterepreservarpolíticaspúblicasquebeneficiemtodososseres.

Poderessobrenaturais

Certavez,chegouaumvilarejopequeno,naÍndia,umguru.Elesediziaplenode poderes sobrenaturais. No centro da praça principal da cidade, onde todos oobservavam,fechouosolhosegritou:“Passa,cãoimundo.Saijádaí”.Egesticulavacomoseameaçasseumcão.Aspessoasseentreolharam.Nãohavianenhumcãoporperto.“Oquefoiisso,ó

grandemestre?”Aoqueelerespondeu:“Hámilhasemilhasdedistância,essecãosujoqueriaentrarnograndetemplosagrado.Commeuspoderessobrenaturais,fuicapazdeafastá-lo”.Todossemaravilharam.Eograndemestre ficoumorandonacidadezinha.Era

honrado por todos, dormia ora numa casa, ora noutra. Comia muito bem. Nãotrabalhavaesempredemonstravapoderesqueextasiavamaspessoas.Aesposadolíderdovilarejodesconfiavadele.Certodia,fezcomqueseumarido

o convidasse para o almoço. Preparou arroz e uma grande panela de verdurascozidas commolho curry. Geralmente, na Índia, o curry é colocado em cima doarroz.Nesse dia, ela resolveu testar o guru. Pôsumpoucode curryno fundodopratoeocobriutotalmentecomarroz.Quando chegou omomento de comer, ela e omarido (cujos pratos tinham o

curry por cima do arroz) iniciaram a refeição, e o guru, sem tocar no alimento,disse a ela: “A senhora esqueceu deme servir curry”. Ela disse, sorrindo: “Umhomem tão ilustre, de poderesmentais tão extraordinários, capaz ver um cão aquilômetrosdedistância,comonãoconsegueperceberocurrysoboarroz?”.

Queremosmilagres.Queremos poderes sobrenaturais. Respeitamos e honramos pessoasqueparecemteressespoderes.Ograndepoderéodavida.Silencieporunsinstantes.Sintaabrisa,ouçaospássaros,asfolhasdasárvoresaovento.

Todasasformasdevida“intersendo”.O coração humano não deixa de bater, mesmo quando estamos dormindo. Temos

pensamentos, escrevemos poesias, compomos músicas, imaginamos cidades e as

construímos.Poderessobrenaturais.Nãoprocureganharpoderesraros,masdesenvolvaospoderesnaturaisdoserhumano.

Margot Fonteyn foi uma grande bailarina clássica do século passado. Suassapatilhas usadas são consideradas peças raras de leilão. Caríssimas. Sapatilhascommanchasde sangue.Antesde entrarnopalco, enquantoasoutrasbailarinasconversavam e se arrumavam, ela se exercitava ao lado da barra. A dor nos pésnunca a fez deixar de dançar. Tinha, sim, um fluir mágico, a capacidade deesquecer-sedesimesma,desetornaramúsica,adança,apersonagem.Grandes atores, atrizes, bailarinos, bailarinas, artistas são assim. Grandes

pessoas são assim. Pessoas comuns, cujo nome não aparece nos jornais e nasrevistas.Desconhecidasdograndepúblico.Semsepreocuparcomfamanemcomfortuna,vivememplenitude,comaalegriasimplesdefazeroseumelhor.Mãesquepraticamsermãesverdadeirassabemdeixarqueseus filhose filhas

cresçam. Confiam neles,mesmo que não possam compreender de imediato suasintençõeseescolhas.Abrirmãoatédopapeldemãeéoamorsupremo.

Nãocorraatrásdepoderesextraordinários.Desenvolvaoseupoderdeatençãoplena,derespeito à vida – sua própria vida manifesta em cada criatura – e sentirá prazer naexistência.Existealgomelhor?Apreciesuavida.Aprecieavida.Vivendocomaelegânciasimplesdefazerobematodos

osseres.

Ofilhopródigo

O filhopequenodesaparecera. Aonde teria ido? Procurarampor toda a cidade,masnãoo encontraram.Decorreramdias, semanas,meses.Opaidecidiu ir atrásdele.Anossepassaram.Ofilhoseperdera.Viviadeesmolas,sujoemaltrapilho.Ele

tambémprocuravaporsuafamíliaenãoaencontrava.Afinal, todos, juntocomopai,semudavamdecidadeemcidadebuscando-o.Umdia, ele ficou espiando por trás dosmuros de uma grandemansão. Lá de

longe, do terraçoda casa, ohomemviu omaltrapilho: “Meu filho”, reconheceu.Pediuaossegurançasqueofossembuscar.O pobre, vendo os seguranças se aproximar, correu e desapareceu. O pai,

percebendo omedo do filho, usou uma estratégia: “Vão procurá-lo e digamqueprecisamosdeumempregado.Alguémpararetirarolixo,fazertrabalhosmenoresnacasa”.Contente por alguém lhe dar emprego, ele se aproximou. Durante anos,

trabalhou.Foiaprendendoosváriosofícios,galgandoposições,atéqueopaificoumuitodoenteeestavaparamorrer.Chamoutodosaseusaposentoseconfirmou:“Esteéofilhoqueeuhaviaperdido.Todaaminhafortunaagoraésua”.Essa história é antiga. Aparece no Sutra da Flor de Lótus da LeiMaravilhosa.

UmadasanalogiasdeBuda.

Somos como essa criança perdida. Embora sejamos filhos e filhas de uma casa rica,estamosnomundomendigandoporalimento espiritual.Mendigamospor conhecimento esabedoria, que sãonossospordireitodenascença. Sem saber, passamospor sofrimentos enecessidades.Mas nosso ou nossa guia espiritual (para alguns, Jesus; para outros, Deus; oprofetaMaomé;osorixás;paraoutrosainda,Buda;eassimpordiante)tambémprocurapornós.Aonosreencontrar,percebenossomedo.Tememos a verdade. Tememos esse reencontro sagrado. Por meios expedientes nos

aproxima. Com uma prece, um livro, um ensinamento que vai nos preparando. Até o

momento em que revela: “É tudo seu. Toda a riqueza – do conhecimento supremo, datranquilidade infinita, da sabedoria e da compaixão ilimitadas – é sua. Sempre foi, pordireitoepordeverdeternascidohumano.Nãopercamosestavida.Despertemos,paraquepossamosreceberagrandeherançaque

nospertencecomohumanidade.

Oquesemove?

“Éabandeiraqueestásemovendo.”“Nadadisso.Éoventoqueaestámovendo.”Os dois amigos não se entendiam. Estavam ficando muito bravos um com o

outro, cada um defendendo seu ponto de vista, quando um terceiro sugeriu quefossemfalarcomummongesábiodomosteiroapoucasmilhasdali.Caminharamaté láaindadiscutindo.Quandochegaram,eratarde.Nãopodiam

ver o abade. Teriam de ficar na casa de hóspedes, perto dos portais do templo.Quemcuidavadessacasaeraamonjaresponsávelpelaentradadomosteiroeporrecebervisitantes.Elaosacolheu,serviu-lhesumasopaefoidescansar.Daoutrasala,ouviuasvozes,queseelevavam:“Éabandeiraquesemove.”“Éovento”.Elaentrounasalaedisse:“Seustolos!Nãoénemabandeiranemovento.Suas

menteséqueestãosemovendo”.Silenciaram.Elaosconvidouasentar-seemzazen.Colocaropédireitosobrea

coxaesquerda.Opéesquerdosobreacoxadireita.Ouapenasumdospéssobreacoxa contrária. Endireitar a coluna vertebral. Colocar as mãos na posição docosmos:ascostasdamãoesquerdaapoiadasnapalmadamãodireita,ospolegaressetocandolevemente.Oespaçointernodasmãocomaformaelípticadosplanetasem torno do sol. Balançar o corpo suavemente, da esquerda para a direita, atéencontrar o eixo de equilíbrio. Respirar três vezes pelas narinas, soltando o arlentamente pela boca. Fechar os lábios. Posicionar a ponta da língua no palatosuperior, próximo aos dentes frontais. Respirar gentilmente pelas narinas. Olhossemicerradospousadosàfrente.Observaropensareonãopensar.Estarpresente.Conhecer a si mesmo. Abandonar corpo e mente. Ir além do eu e do outro.Transcenderbandeiraevento.A brisa da noite fez varrer suas dúvidas e dualidades. Quanto tempo ficaram

assimsentados?Ninguémsabe.Libertosdasdúvidaseconfusões,namanhãseguinteseforam.Nãoprecisaram

maisfalarcomoabade.Ventoebandeiranãoseopunhame,juntos,seaquietaram.

Amentehumanaprecisaserconhecidaepenetrada.Zazenéumdosportaisprincipais.Iralémdadualidadecorpomente.Alémdadualidadedoeuedooutro,dodentroedofora.Pensamosquesãoassituaçõesexternasquenosmovem.Naverdade,énossaprópriamentequemoveavida.

Viverpelovoto

Erabelíssima.Seuirmãoeramongeeestavaconstruindoummosteiroimenso.IdadeMédia.Contavamqueumdiaeleadormeceunamataeumpássaroenormelevouseumantomonásticonobico.OmantomonásticofoicriadonaÍndia,peloatendentedeBuda.Certavez,orei

Ashoka, amigo de Buda, estava viajando quando viu de cima de sua liteira, nascostasdeumgrandeelefante,umcaminhantequeparecia serdiscípulodeBuda.Desceu, fez reverências e descobriu que se tratava de umhomem comum. Ao seencontrar com Buda, pediu que seus discípulos se vestissem de forma a seremreconhecidoscomotal.Buda caminhava com Ananda, seu atendente. Pararam para observar uma

plantação:“Ananda,vocêvêaharmoniadestaplantação?Poisqueroquepenseemumhábitomonásticoquetragaemsiessaharmonia”.Eassimtemsido,hámaisde2.600anos.Monásticosutilizammantos,grandesoupequenos,curtosoulongos–dependendodaordem–, feitosdepedaçosde tecidosobrepostos,que lembramaharmoniadeumaplantação.Foiessemanto,queomongecolocaraparasecar,queopássarolevaraaoscéus.

Seguiuopássaro.Este,finalmente,soltouomantonotopodeumaárvoremuito,muitoalta.Omongenãoconseguiriajamaissubiratélá.Sentou-seemmeditação.Algumashorasdepois,umventofortetrouxeomanto,quepousousuavementeemseusombros.Considerando issoumsinal auspicioso, resolveu construir ali o seumosteiro.Foi trabalhoso. Um amigo do passado, homem enorme e forte, veio ajudá-lo.

Anos e anos de trabalho. Pedras enormes. Fontes foram descobertas. Omosteiroficou pronto e centenas demonges foram lámorar e receber instruções do novoabade.A irmãpediu os votosmonásticos.Queria tambémviver ali, no local sagrado.

“Vocêémuitobonita.Comopoderiasetornarmonja?Esqueçaisso”,disseele.Seria a beleza um empecilho? A jovem, determinada a convencer o irmão,

esquentou um par de grandes hashis de ferro, usados para mover o carvão nos

braseiros. Quando estavam vermelhos, em brasa, queimou o próprio rosto.Desesperada de dor, saiu correndo pela mata. Quando voltou, foi até o irmão eperguntou:“Agoravocêpodemeordenar?Jánãosoumaislinda”.Com tal determinação, ele consentiu. Mesmo assim, não foi fácil para ela. A

marcanafacenãoescondiasuabeleza.Houveummongequeporelaseapaixonou.Perseguia-apelascolinas,peloscorredoresdomosteiro.Insistia,abusava.Hojeelapoderiaatémesmoprocessá-loporassédiosexual,assédiomoral.Naquelaépoca,oquefazer?Duasvezespormês,naluacheiaenaluanova,seuirmão,oabade,faziauma

grandecerimôniadearrependimento,naqualtodaacongregaçãosereunia.Eraluacheia.Aluzprateadailuminavaoaltarprincipal.Todosdeveriampensar

emseuserrosefaltas.Arrepender-seepurificar-se.Ajovemmonjasubiuaoaltar,aoladodeseuirmão.Eleestranhou.Perguntou,

como sempre fazia, se alguém tinha alguma falta a declarar. Silêncio. Amonja,abrindoohábitoemostrandoocorpoatodaaassembleia,disse:“Mestre,omongetal me persegue por querer me ver nua. Aqui está”. O monge foi expulso. Elacontinuounomosteiro.IdadeMédia.UmahistóriaverdadeiradoMosteiroDaiyuzanSaijoji.Essamonja

atualmenteéconsideradaumasantapelosdevotosjaponeses.

Seráque issoaconteceriahojeemdia,oupediriamparaamonjaseretirar?Seriaelaaprovocadoradosinstintossexuaismasculinos?Seriaelaomal?Atentação?Grande parte das tradições religiosas criadas e mantidas por homens tem tratado as

mulheres como perigosas ameaças a seus votos. No entanto, a ameaça não está nasmulheres,esimnafraquezadosvotos.“Podemos viver de forma comum, ou podemos viver através do voto altruísta. É como

estarmos em um barco e perceber que nele há um furo. Quem vive pelo voto vai tentarretiraraáguaqueadentraobarco.Esforçando-semuito, poderá chegaràoutramargem.Quemnão vive pelo votonão se esforçamuito e acabaafundando emdesespero e dornooceano de nascimento, velhice, doença e morte.” São palavras da minha superiora nomosteirofemininodeNagoia,AoyamaShundôDôchôRôshi.Todosnascemos,podemosficardoentes, envelhecemos e morremos. Podemos atravessar esse oceano com sabedoria e

dignidade.Ounão.Fazer o voto altruísta, de beneficiar todos os seres antes de pensar no bem-estar

individual, é como estar em um navio forte e tranquilo que nos leva da margem desofrimento, desespero, ansiedade, medo, pânico, depressão para a margem de entrega,alegria,tranquilidadeepaz.Esperoque,cadavezmais,maispessoaspossamfazerovotodeviver,deusarsuaenergia

vital,parabeneficiartodososseres.

Aleidacausalidade

Todasasnoites,umsenhoridosoassistiaàspalestrasdoabade.Ninguémsabiaquemeranemdeondevinha.Afinal,omosteiroficavanumamontanhadistantedequalqueráreahabitada.Talvezfosseumlenhador,ummoradordasmatas.Certanoite,apósapalestra,osenhorseaproximoudoabadeeperguntou:“O

seriluminadoestálivredeefeitoscármicos?”.Eoabaderespondeu:“Nenhumserestá livre de efeitos cármicos”. O idoso abaixou-se até o chão, em profundareverência,edisse:“Eufuiabadedestemosteiro.Umdiscípulomefezessamesmapergunta,eeudisseaelequeosseresiluminadosestãolivresdaleidacausalidade.Poresseerro,tenhorenascidocomoraposahá500anos.Agoraosenhormesalvou.Amanhãencontrarámeucorpoderaposapertodapedraàbeiradapontedoriacho.Porfavor,façaoenterrocerimonialdeumabade”.Namanhãseguinte,oreligiosoencontrouocorpodaraposanolocal indicado.

Mandoutocar todosossinos,anunciandoumenterromonástico.Osdiscípulosseentreolharam.Ninguémhaviamorrido.Oabadefezoenterrodaraposacomtodaapompadeumsacerdoteecontouaseusdiscípulosoquehaviaacontecido.

Algumaspessoasacreditamqueestão isentasderetribuiçãopelasações,pensamentosepalavras que produzem. Pensam que estão no nível dos seres iluminados e além dequaisquerretribuiçõescármicas.Masaleidacausalidadeéinexorável.

Certa ocasião, um lenhador se perdeu na floresta. Aflito, quando a primeiratempestade de neve caiu, ele bateu a cabeça e ficou desacordado. Ao reabrir osolhos, estava dentro de uma caverna, e um urso enorme cobria seu corpo,aquecendo-o.Logopercebeusetratardeumaursa.Mamoudoseuleitedurantetodaaépoca

dahibernação.Depois, comeu as raízes e plantas que ela foi trazendo, durante aprimavera.Sentindo-seforteerecuperado,umdiafoiembora.

Estavasaindodaflorestaquandoencontrouumgrupodecaçadores.“Poracasovocêencontroualgumurso?”Comoelenãorespondesselogo,mascoçasseacabeçapensando, insistiram: “Se encontrarmos um urso e o capturarmos,compartilharemos com você a carne. Vamos lá, diga o que viu”. E o homemexplicouondeficavaacavernadaursaqueosalvara.Poucashorasdepois,oscaçadoreschegaramcomocorpodaursa.Disseramao

lenhador:“Venha,ajude-nosacortá-la.Vocêpoderáescolheropedaçoquequiser”.O homem pegou o machado e, quando o levantou, seu braço direito se partiu.Mudouomachadoparaamãoesquerdaeooutrobraçotambémsepartiu.Oscaçadores,assustados,perguntaramseelesaberiaarazão.Quandoelecontou

ahistóriadecomoaursaohaviaalimentadoeprotegido,ficarammuitotristeselevaramocorpodelaatéumtemplopróximo.Amonjaresponsávelpelotemplofezasprecesdevidasedisse:“Estanãoeraumaursacomum.Eraumser iluminadodisfarçado.Afaltadegratidãodolenhadorfoiacausadeeleperderosdoisbraços.Aleidocarmaéinexorável.Tendorecebidoobem,eleretribuiucomomal,atravésdaganância.Agora,nuncamaispoderátrabalhar”.

Segundo os ensinamentos budistas, não é necessário que queiramos nos vingar dealguémnemmesmodesejaromalaquemnosfezomal.Aleidacausalidadeéimplacável.Omal produzido será recebido de volta. Algumas vezes, de imediato. Outras vezes, podedemorar,eháocasiõesemquenossosdescendentesreceberãoessaretribuição.

Os primeiros imigrantes portugueses que vieram ao Brasil, homens fortes,bandeirantes e também ex-prisioneiros, degradados, exilados das cortesportuguesas,nosidosde1500,nãotinhamintençãodecriarfamíliasesociedadessaudáveis. Muitos pensavam em pilhar, fazer fortuna e voltar ao continenteeuropeu.Saquearamasmatas.Mataramindígenas.Aproveitaram-sedasmulheres.Ganharam terras à força, matando e queimando. Até hoje recebemos essaretribuição cármica. Esta só vai cessar quando nos arrependermos ecompreendermos que a Terra – as florestas, as águas e o ar – tem limites derecuperação.Queasmulheresnãodevemserabusadas.Queospovosnativosesuas

tradições devem ser respeitados. Enquanto nós não nos arrependermos emodificarmosnossocomportamento,estaremossofrendoretribuiçõescármicasporaquiloquenossosancestraisfizeram.Cadavezqueoramospelosancestrais,temostambém de orar por todos com quem se relacionaram. Nossas orações maisprofundasdevemincluirtodososseres.

……

Conheciummongedodeserto,quepassoualgumassemanasnoZenCenterdeLosAngelesquandoeumoravaepraticava lá.Elenosdisse,duranteaúnica falapúblicaquefezantesdeirembora,queelesnãooravampedindofavoresaDeus.“CremosemDeus.ComopoderíamosdizeraEleoquefazer?ComopediraEle

suaatençãosobreumassuntoparticular,umapessoaousituação?Nossasoraçõessão as Benedictiones. Bendito o céu, bendita a Terra, bendita a lua, benditas asestrelas.”Seráquealgumdiasereicapazdeorarapenasparabendizeravida?Evocê?

“Umdiasemtrabalho,umdiasemcomida”

Ossinosetamboresdeumtemploanunciamasatividadesqueserãorealizadas.Em princípio, ninguém falaria, mas, ao ouvir os sinais dos instrumentos, sedirigiriamàsfunçõesporelesanunciadas.NaChinaantiga, o abade sedera a tarefade cuidardahorta.Eraum trabalho

árduo,maseleserecusavaadescansar.Todososdias,pegavaapá,oancinhoesepunhaaroçar,plantar,retirarinsetos.Maseleestavaidoso.Certa vez, seusdiscípulosdecidiramesconder apá, o ancinho e todos os seus

instrumentosdetrabalho.Desarvoradopornãopoderrealizarsuastarefas,retirou-separaseusaposentos.Sinos e tambores tocaram anunciando a refeição do dia. No refeitório, todos

esperavam por ele. Ninguém pode comer sem a presença do abade. Ninguémcomeça nem termina de comer antes do abade. É preciso manter a atenção e orespeito.Comoelenãoviesse,decidiramirbuscá-lo.“Senhor abade, a refeição está servida. Por favor, venha conosco. E ele,

guardando no armário suas tigelas, disse: “Um dia sem trabalho, um dia semcomida”. Todos tiveram de jejuar nesse dia. A frase, até hoje, é respeitada nosmosteiroszen,ondetodostrabalhamsemcessar.No passado remoto,monges emonjas não podiam trabalhar. Ainda há ordens

quemantêmessatradição.Quemfizesseosvotosmonásticosdeveriasededicaràmeditação,àmendicânciaeaosestudos.Mongesemonjassópoderiamcomerumavezpordia,antesdomeio-dia,esóoquerecebessemdeesmola.AindaéassimnaTailândiaeemoutrospaísesdosulasiático.Qualquerformadetrabalhoéproibida.Podem estudar e, para tanto, há os professores,monges emonjas que orientamoutrosmongesemonjasapenas.Algunsseencarregamdenoviços.Masnãopodemreceberporisso.Quandoo budismo chegou àChina, país enorme, comáreasde invernomuito

rigoroso e uma população não budista, os mosteiros precisaram se tornarautossustentáveis. Não havia uma comunidade local que os sustentasse, quefornecessealimentação,remédios,pousada,vestimentasamongesemonjas.Ofrio

intensotambémobrigou-osafazermaisumarefeiçãoaofinaldodia,quepassouaser chamada de Yaku Seki (pedra da cura). Ou seja, era um remédio para lhesgarantirasobrevivência.Na Índia e em outros países do sul asiático, os monges e as monjas não

trabalhavam–enãotrabalhamatéhoje–,masnaChinaelespassaramaplantarecolher.PorissoafrasedePai-chängéimportante.Revelaummomentohistóricoeumcomprometimento.Pessoas que se aposentam devem procurar atividades estimulantes. Pesquisas

têm sido feitas e descobertas da neurociência concluem que corpo e menteestimulados se mantêm mais saudáveis por mais tempo. Atividades físicas eespirituaismelhoramacondiçãodevidadoserhumano.Éprecisoencontrarpontosdeequilíbrio.Quando eu praticava no mosteiro feminino, ouvi a seguinte história sobre a

abadessa anterior: “Ela era severa e, ao mesmo tempo, alegre, divertida. Certaocasião, duas monjas foram fazer compras para a refeição da noite. Comodemoravam, a abadessa foi esperá-las na porta do mosteiro. Subiam a ladeiratomandosorvete–oqueeraproibido,pois tudodeveserdivididocomasoutrasmonásticas. A abadessa esperou que se aproximassem. Ao vê-la, as duasmonjasesconderamamãocomosorvete.Aabadessaconversoucomelassobreinúmerosassuntos,atéperceberquetodoosorvetehaviasederretido.Semdizermaisnada,entrou”.Viver em comunidade significa comer juntas, dormir juntas, levantar juntas,

trabalhar juntas, estudar juntas, meditar juntas, orar juntas, nos banhar juntas.Ninguémsaidomosteironementranelesemquetodasasoutrasmonjassaibam.

Seráquefazemosassimemnossacasa?Emnossafamília?Dizemos“bom-dia”e“boa-noite”? Quando vamos sair, dizemos para onde vamos e a que horas vamos voltar? Sehouver atraso ou adiantamento, avisamos? Comemos juntos o que for servido, semreclamar?Pensamosunsnosoutroscomcarinhoetomamosatitudesparaaliviarealegrarquemcompartilhanossaintimidade?

Afalacorreta,omomentopropício

Uma vezme convidaram a fazer uma palestra em uma escola particular paraalunos e alunas do ensino médio. O grupo era ativo e energizado, como são osadolescentesbemalimentadosebemtreinados.Aofinaldapalestra,umajovemde16anospediuparafalaremparticularcomigo:“Porfavor,meajude.Meupai,umempresário importante, recentemente começou a falar mal da família de minhamãe.Queminhamãenãoserveparanada,queminhatiaétola,queminhaavóéchata. Coisas assim. Eu amomeu pai,mas também amominhamãe,minha tia,minhaavó.Oquedevofazer?”.Refleti alguns instantes antes de responder. O que estaria acontecendo nessa

família? Por que, de repente, o marido começaria a ver defeitos na família daesposa? Perguntei à jovem: “Sua mãe já conversou com ele sobre isso?”. Elarespondeuquesimequenãoadiantaranada.Elecontinuavaofendendoafamíliadaesposacomsualínguaferina.“Então,falevocêcomseupai”,decidi.“Meupaiéumhomemmuito importante e ocupado.Nãoposso falar comele assim.”“Poisfaçaumesforço”,disseeu.“Pergunteaeleoqueoestáincomodando.Estariacomproblemasfinanceiros?Homensforamtreinadosaserprovedores.Quandoocorremproblemasfinanceiros,ficammuitonervosos,irritados.Seforisso,digaaelequevocê se propõe a trabalhar e ajudar a manter a casa. E, se não for questãofinanceira, pergunte se ele está se interessando por outramulher.Muitas vezes,quando uma pessoa encontra outra com quem queira se relacionar, começa aprocurar defeitos em seu companheiro ou companheira para justificar seuinteresse.Falecomele”,insisti.Alguns meses se passaram e fui novamente convocada a falar nessa mesma

escola.Aofinaldenossoencontro,amesmajovemseaproximoue,demãospostas,meagradeceu:“Fiqueicommedodefalarcommeupai,masmeenchidecoragemeumanoiteoabordei.Elemeouviucomovidoe,desdeentão,nuncamaisofendeuminhamãeenossafamília.Agradeçomuitoseuconselho”.Não lhe perguntei as razões de seu pai. Talvez ele não tenha dado maiores

explicações.Masofatodeajovemterpedidoaopaiquenãoofendessesuafamília,

propondo-se a estar ao seu lado e a ajudá-lo, sem dúvida evitou situações dedesgasteemocionalparatodos.

A maneira como falamos e a escolha do momento certo para falar podem ocasionarmudançasnosrelacionamentoshumanos.Afalaamorosaeverdadeirapodecausarimpacto.Afalaquereclama,insulta,exigesóprovocamaioresdesagravosedesentendimentos.Se cada pessoa for capaz de observar a si mesma, em vez de exigir tanto dos outros,

poderácausartransformaçõesmaisprofundasesutisnosseusrelacionamentosindividuaisesociais.Observecomovocêestásecomportando,falando,pensando.Procuredesenvolverumolhardecompreensãoeternura–comoodajovememrelaçãoaseupaiesuafamília.Faleamorosaeverdadeiramente,nomomentocorreto,esesurpreenda.Oquepareciaimpossívelse torna possível e a harmonia se restabelece quando penetramos o nível do amorincondicional.

Experiências

Experiência–atodevivenciararealidade,

abrir-seaonovo,transformandoasimesmoem

interaçãocomoexperimento.

Viverépraticar,experimentaravida.

Criamosavida.

Praticamosavida.

Experiênciastransformampessoas.

Tudoqueexisteéocosurgirinterdependente

esimultâneo(palavrasdeBuda).

Darereceber

“Hôôô!Hôôô!Hôôô!”.Tlin,tlin,tlin.“Hôôô!Hôôô!Hôôô!”.Tlin,tlin,tlin.Cobertasporgrandeschapéusdepalha,levandoumatigeladelacanegranamão

esquerdaeumsinonamãodireita,asmonjasemfilaseguemesmolando.Estamosem Nagoia, uma das cidades mais bombardeadas durante a Segunda GuerraMundial.HôôôsignificaDarma,aLeiVerdadeira,osensinamentosdeBuda.Aosairpara

esmolar,asmonjassevestiam–eaindasevestem–deformamedieval:braçosepernas cobertos por tecido branco. Caminham em fila e pedem esmolas por umJapão desolado e destruído. Em frente a uma loja, a jovemmonja parou e tocoumais forte seu sininho. A loja parecia intacta e, quem sabe, poderiam ajudar asmonásticas famintas. Entretanto, de uma janela do andar superior, surgiu umhomem furioso. Gritando impropérios e mandando que fossem trabalhar, jogousobreamonjinhaumbaldedeáguasujaefria.Atemperaturadodiafezcomqueela se enregelasse. Contudo, lembrando-se das orientações de sua mestra,respondeucomumaoraçãodegraçasesefoi,entoando“Hôôô!”.Etocandoosino:tlin,tlin,tlin!A monja dessa história é Aoyama Shundô Dôchô Rôshi, atual superiora do

Mosteiro Feminino de Nagoia e minha mestra de treinamento por oito anos noJapão.Naprimeiravezemquefomosesmolar,antesdesairmos,elanosrecomendou:

“Aceitemoqueaspessoastêmadar.Lembrem-sedequevocêsnãosãomaisvocêsapenas. São discípulas de Buda caminhando e oferecendo o Darma, osensinamentos”. Nessa ocasião, ela tambémnos relatou esta história e comentouque, quando recebeu aquele balde de água suja, em vez de ficar brava ou triste,sentiupiedadeporaquelehomem:“Obaldedeáguasujaeratudooqueeletinhaparadar”.

Seráquesomoscapazesdeteramesmaatitudedessamonjaadolescente?Asguerrassãofeiase tristesparatodos.Nuncahávencedores.EstiveemHiroshimaemduasocasiões.Naprimeira vez, ao ver o Domo da Bomba Atômica– ruínas de um dos poucos prédios queresistiram ao ataque da bomba –, orei fervorosamente por todos os que faleceram e seferiram,portodasasvítimasdaguerra. Isso incluíaopilotoquejogouabombaetodososqueestavamenvolvidosnaloucuradematar.Duranteaspreces,noteiqueaestátuadeumgrandepássaronotopododomosemovia.Eraumpássarodeverdade.Arelvacresciaentreas ruínas emuitos pássaros cantavam alegremente. Atrás demim, o rio de águas limpasacolhia às suas margens crianças brincando, adolescentes de bicicleta, jovens casaisnamorando e famílias almoçando. Mais adiante, uma pequena banda tocava músicasclássicas.Acidadeforatodareconstruída.Bela,forte,nova.Avidavenceuamorte?Ouvidaemortecaminhamjuntas,sãoumparinseparável?Mesmoassim,sãooshorroresdaguerra.

Há ummuseu relatando tudo o que aconteceu naquele 9 de agosto. Retratos,restosdetrapos,decasas.Pelescaindoetodosgritandoporágua,água.Nograndemausoléu, fotos e nomes em computadores e paredes. Edifício cercado de água.Dezenas de milhares de origamis de tsurus (cegonhas de papel) guardados empequenas casasde vidro são asofertasde jovens estudantes enviadasde todas aspartesdoJapão(edomundo)paraameninaquesofreuemorreuemconsequênciadaradioatividade.Todostocamumsinoeumaestudantesecolocaàfrenteefaz,em nome de todos, o compromisso: “Jamais entraremos em guerras. Jamaisusaremosarmasnucleares.Paz.Paz”.Naesquina,ummongepediaesmolas.Umapequenamoeda,umanotadeiene,e

eletocavaseusinoagradecendo.Lembrei-medeminhamestraemNagoia,ajovemrecebendo o balde de água suja e fria. Lembrei-me tambémdasmãos, inúmerasmãosidosas,dedoscurvosetortos,costastãocurvadasquenãomaisconseguiamficareretas.Eradessasmãossimples,demulheresehomensquetrabalharamnosarrozais,noscampos,quesofreramcomaguerra,eradelesedelasqueeurecebiamoedas.E, comonossaSuperioranosensinara,nãoeraamim,MonjaCoen,quedoavam.DoavamaumadiscípuladeBuda,independentementedanação,dacordapele.Aoreceberessasofertas,sempresentiquedeveriautilizaressedinheirocomresponsabilidade.Dinheiroqueveiodelonge,dafomeedasede,dasnecessidadese

doesforçodereconstruirumpaís.Daforçaedaconfiançadeumpovo.Ao voltar ao mosteiro, reuníamos as esmolas, que se transformariam em

alimento para asmonjas.Hoje em dia, osmosteiros não vivemmais apenas dasdoações colhidas nas ruas, mas temos de fazer essa prática para saber comoviveramosmongesemonjasdopassado.Duranteoitomeses,pratiqueiemoutraabadia, na cidade de Obama,mais ao norte e bem fria. Lá, no outono, fazíamostakuhatsu (mendicância) pelos campos. Recebíamos arroz, nabo, caquis. TambémhaviafeitoomesmonosarredoresdeNagoia,pertodacidadedeToyota.Masláatemperaturaeramaisamena.EmObama,conformefoiesfriando,amendicânciafoiaumentando. Saíamos na neve. Eu queria muito andar de sandálias de palha naneve.Minhasmãosestavamqueimadaspelofrio.Meuspésestavambem.Asoutrasmonjasdessemosteiroqueriamqueeuusassebotasdeplásticobranco–comooabade usava. Recusei. Precisei de uma audiência especial com ele: “Por favor,deixe-me fazer como faziamosmonges e asmonjas de antigamente. Estou aquiporpoucotempo.Talvezsejaminhaúnicaoportunidadenavidadesabercomofoiecomoé”.Depoisdeminhainsistência,eleconcordou.Felizporpoderparticipardaforma

tradicional,saí.Usávamoscapasdechuvaedeneve,deborrachagrossa.Afilaeralonga,maisde30monásticos.Eu ficavano final, antesdosdoisúltimosmongesquevigiavamtodosnóseagradeciamasofertasrecebidas.Afilanuncaparava.Nãoerapossívellevaratigeladelacanegra,poisamãoficavacongeladaepodiadeixaratigelacair.Osinodemetaltinhadesermuitobemembrulhadoemtecidogrossoparanãocolarnapele.Assim,preparada,eucaminhavagritandoalto:“Hôôô!”.Ofrioqueantecedeumanevadaécortante.Aogritar,eucolocavaumadasmãos

bem próximo da boca e soprava para a aquecê-la. Doía muito. De tempos emtempos,escondiaamãodentrodacapa.Lembrava-medeNapoleão.Logo,omongeàminhafrentesevirava,comose tivesseolhosnascostas,ememandavatiraramãodedentrodacapa.Eramedonho.Atéomomentoemqueolheiparaasmãosdosoutrosmonges,lánafiladafrente.Quandorecebíamosumaesmola,tínhamosdelevantaramãoparaqueoúltimodafilaparassealieorasseemagradecimento.Asmãosse levantavamtãovermelhasetãoferidasquantoasminhas.Enchendo-mede coragemedebrio, resolvinãoescondermaisamão.Doeualémdo limitesuportávele,então,mágica!Comosetodoomeuserhouvessemudadodemarcha,entradoemoutroritmo,adordeixoudeserimportante.Apenasestavalá.Ehavia

tantoaserapreciado:osilênciodaneve,afiladeroupaspretasechapéusmarrons.Éramosumsócorpo,umasanga,umacomunidade.Havia casebres de pescadores à beira da praia, que nos deixavam um forno

ligadoepedaçosdebolinhosdearrozespecialparacomermoscomcháquente.Eraquase impossível ficar perto do fogo. Eu entrava, pegavaummochi desses e saíapara o frio. De repente, minhas mãos suportavam o frio e não o calor. Atemperaturamaiselevadacausavainchaçoecoceira.Paratomarbanho,sódeluvasmuitogrossas.Pediquefotografassemminhasmãos.Sabiaqueesqueceria.Amentehumanase

esquecedasalegriasedasdores.Amentevivenopresente.Memóriassãoapenasmemórias. Ainda vivo do esmolar, domendigar– conformeBuda orientava seusdiscípulos.Meumendigarme leva a dar palestras, cursos, aulas, fazer enterros,serviçosmemoriais,casamentos,bênçãoseaescreverestelivro.

“Osméritos de quem dá, do que é doado e de quem recebe são idênticos e vazios deidentidadeprópria”(dedicatóriafeitadepoisdereceberumaesmola).

Abrirasmãos

DoismongescaminhavamjuntosnaÍndiaantiga.BudahaviarecomendadoquefossemdoisadoisparaquenãosedesviassemdoCaminho.Chegaram àmargem de um rio caudaloso. Quando estavam adentrando o rio,

uma jovem se aproximou correndo, esbaforida, pedindo que a ajudassem aatravessar. Tratava-se de uma emergência. Precisava ir imediatamente. Caso devidaoumorte.Umdosmongesse recusoueatravessouo riosozinho.Ooutrodeuasmãosà

jovemealevouemsegurançaatéaoutramargem.Alisedespediram.Osdoismongescontinuaramcaminhando ladoa lado.Oquehaviaatravessado

sozinho estava furioso. Passadamais de umahora, o outromonge perguntou aocompanheiro por que estava tão mal-humorado, e ele respondeu: “Você deu asmãos àquela jovem. Nossos preceitos monásticos nos proíbem de tocar umamulher. Você não está envergonhado?”. O outromonge respondeu prontamente:“Euaajudeieadeixeiàmargemdorio.Vocêacontinuacarregandoatéaqui”.Muitas vezes assim o fazemos. Carregamos conosco nossos apegos e aflições.

Nossosamoreseaversões.Acargaficapesadaenãoconseguimossoltar,abrirmão.NaépocaemquepratiqueinotemploHosshinji,naprovínciadeFukui,descobri,

certa manhã, que do outro lado do riacho havia uma casa parecida com umpequeninotemplo.Aproximei-me.Asenhoramonjaquedalicuidavameabriu asportas e explicou: “Aqui foi a pousada do grande Mestre Harada Sogaku Rôshi.Professor do atual abade de Hosshinji, Harada Sekken Rôshi, e do abade dessetemplo vizinho. Ambos irmãos do Darma. Ao envelhecer e se aposentar, HaradaRôshiveiomoraraqui.Euerasuaassistentepessoal.Elese foi,maseucontinuoservindoaele.Todasasmanhãs,sirvoochádequeelegostava,nohorárioemqueestavaacostumado”.Aquelaconversamefezsentirumarrepio.Acasaeramantidacomoseomestre

ainda estivesse vivo e por ali andasse, bebendo chá, comendo os alimentos efazendo entrevistas individuais com os praticantes que o procuravam.Acompanhada pela monja, visitei a morada. Estava intacta – e ela se orgulhava

disso.Mantinhaacasaemperfeitoestadodelimpezaeharmonia.Haviapoucaluze,naquelapenumbra,pareciasentirapresençadomestre.Aosairdacasa,elamedeuoensinamentoprincipaldeHaradaRôshi,queaté

hojetransmitoaosmeusdiscípulosediscípulas:“Abraasmãos.Mantenhaasmãosabertasenelascaberátodoouniverso.Umpequenofioquesegure,umapedrinha,umaideia,umconceito,eestarálimitada.Abraasmãosedeixequeouniversoaspreenchacomotudo-nada”.Saí de lá tendo a certeza de que encontrara Harada Rôshi e, como se diz nas

preces que fazemos para monges e monjas falecidos, repeti mentalmente: “Overdadeirocorpodosensinamentosnãoaparecenemdesaparece”.

Assim, novamenteme comprometi a levar adiante os ensinamentos de Buda para quetodasaspessoaspossamselibertardosapegosedaspaixõesmundanaseencontraragrandefelicidade.

Eiheiji

NoMosteiro-Sede da Paz Eterna (Eiheiji), há um salão dedicado ao fundador,MestreEiheiDôgenDaioshôZenji,queviveunoséculoXIII.Naentradadessesalão,chamado Joyo Den, há um enorme incensário de cobre, onde um fio de incensoqueimadurantetodoodia.Vestidoformalmentecomohábitodelongasmangasemuitaspregasnasaia,o

responsávelpelasala,chamadodeassistentepessoaldeMestreDôgen,acendeessachamado incenso, limpa todoo salão,bemcomoas imagensque representamomestrefundadoreseusucessorimediato.Tudoéfeitoemoração:ofereceáguadocecomumpedaçodeameixasalgada,depoisumarefeiçãocompletadamanhã,umdoce e uma chávena de chá. Omesmo ritual se repete a cada refeição do dia nomosteiro. O mestre vive. Claro que não vive apenas nesse espaço. Está em todaparte.Estáemcadamongequepraticadeformacorreta.Naprimeiravezemquefuivisitaromosteiro,estavacomogrupodemonjasem

treinamento do nosso mosteiro feminino em Nagoia. Fomos avisadas para queficássemos sempre juntas; estávamos proibidas de andar pelomosteiro sozinhas.Umcuidadoamorosoeinteressanteparaevitarquaisquerproblemas.Iríamosficarhospedadas por uma semana nesse aposento grande, para praticar zazen(meditaçãosentada)eouvirpalestrasespeciaissobreaobraprincipaldofundador–textosextraordinariamentebeloseprofundosdoséculoXIII.Euestavamaravilhada.Haviasidoosonhodemuitosanoschegaratélá.Afinal,

tinhame tornadomonjaporcausadeMestreDôgen.Foiao lerseusescritos,naspoucasepobrestraduçõeseminglêsqueexistiamnaépoca,quemedepareicomanecessidade de me tornar monja e dedicar o que restava de minha vida a essapráticareligiosa.Pedi licença àsminhas companheiraspara ir ao banheiro. Fui. Entretanto, em

vez de voltar imediatamente aos aposentos, fui visitar o mosteiro. Corredoresimensos,escadariasintermináveismelevaramexatamenteaograndeincensárioemfrenteàsaladofundador.Estavacomovida,emocionada.Quandouniminhasmãospalmacompalma,ouviquealguémmechamava.Aovoltarorosto,viumajovem

com um microfone, pronta para me entrevistar: “É sua primeira vez nestemosteiro?Comovocêsesente?Qualoensinamentoprincipal?”.Respondi:“Osomdograndesinosoando”.Realmente o sino havia soado. Era o grande sino da tarde, anunciando que os

visitantes deveriam se retirar. Lembrei-me de histórias antigas, de jovensmonásticos perguntando a velhos mestres sobre o sentido principal, e estesrespondendocomolevantardeumpunho,comumgrito,comumtoquedebastãooucomumasingelafrase:“Opinheironojardim”.Embora parte de mim tenha lamentado que num momento tão precioso de

reverenciar o fundador eu houvesse sido interrompida, por outro lado fiqueivaidosademinharespostarápidaetãozen.Voltandoaosaposentosquenoseramreservados,pudeobservarosmongesem

treinamento.Ficavamhorasehorascaminhandonasalaprincipal,paramemorizarcomtodoocorpoaspassagensprincipaisdeseusmovimentosnaliturgiamatinal.Na manhã seguinte, pude ver o resultado: era um bailado extraordinariamenteperfeitoesincronizado.“Monges têm consciência de si mesmos dos pés à cabeça.” Essa frase antiga

repercutia agora emmim de forma diferente. Cada gesto, cada passo havia sidomuitobemtreinado.Osomdosinstrumentosseassemelhavaaosomdeumimensocoração.Durante anos tenho lido, traduzido e apreciado a obra de nosso fundador. Ele

perdeuopaiquandotinha4anos,amãeaos7,foicriadoporumtioe,com13anos,fugiu dessa casa aristocrática para receber a tonsura com outro tio seu, numamontanhadedifícilacessoparaumjovemandarilho.Tornou-semongee,atéos18anos, permaneceu nesse templo, Enryakuji, localizado no monte Hiei. Essemosteiro é conhecido como a “montanha mãe”, pois gerou vários líderesreligiosos,fundadoresdeordensbudistas.Hoje,numsalãoespecial,asfotosdessesgrandeslíderesestãopenduradasnasparedesantigase,numcaminhoemmeioàmata,épreservadoolocalondeomeninoDôgenteriacortadoseuscabelos.Estivelá, em 2013, com um grupo de pessoas do Brasil. Oramos em português e noscomovemoshomenageandoomestre.Suaobraprincipalchama-seShôbôgenzô.Shôsignificacorreto;bôéoDarma,os

ensinamentos;genéoolhar,avisão;ezôéolocaldeguardarcoisaspreciosas.Quando,na Índia antiga,XaquiamuniBuda levantouuma flor e sorriu, toda a

assembleia ali reunida, esperando receber seus ensinamentos, ficou aturdida.Apenasumdeseusdiscípulos,Makakashô,sorriudevolta.Então,Budadisse:“Eupossuo amaravilhosamente de Nirvana e o Olho Tesouro do Verdadeiro Darma.Agoraotransmitoavocê”.

Essa foi a primeira transmissão dos ensinamentos. Esse é também o nome do tratadoreligioso e filosófico de Mestre Dôgen. Minha fonte de inspiração e respeito. E meucompromissodemanteracesaachamaeternadapazinfinita.

Intençãosemintenção

Ikkyu-san tornou-semongemuito cedo. Era considerado esperto demais e aspessoassempretentavamtirá-lodeseucentrodeequilíbrio.Certodia,sabendoqueelegostavamuitodepeixeassado,umsenhoroconvidou

aoraremsuacasa.Terminadaaoração,ofereceuaeleumarefeição,comoeradepraxe, e colocou o peixe saboroso e fragrante bem à sua frente. Ikkyu-san fezrapidamenteaprecedeagradecimentoecomeçouacomeropeixe.As pessoas à sua volta comentavam: “Mas é um monge. Está quebrando o

preceitodenãomatar.Issonãoestácerto”.Ikkyu-sancontinuava comendoalegremente.Atéquealguém,nãoaguentando

mais, falouemvozalta:“Monge,oqueé isso?Comendopeixe?”.EopequeninoIkkyu,semtitubear,respondeu:“Opeixeestávirandomonge”.

Não nos tornamos o que comemos,mas o que comemos se torna nosso corpo e nossamente.Sabemosretribuiratodaavidadouniversocomanossavida?Somossustentadosportudooqueexiste.Nãoexistenadaseparado.

HáummongevietnamitachamadoThichNhatHanh.AtualmenteelemoraemBorgonha,naFrança,ondelideraumgrandemosteiroecentrodetreinamentoparaleigos,chamadoPlumVillage.EuoconheciquandovisitouosEstadosUnidos,noiníciodadécadade1980.Meu mestre de ordenação, Taizan Hakuyu Koun Daioshô, conhecido como

MaezumiRôshi,orecebeucomohóspede.EueraaassistentepessoaldeMaezumiRôshi no Zen Center de Los Angeles. Sabendo que o mestre vietnamita haviachegado, meu mestre pediu que eu fosse cumprimentá-lo em seu nome e oconvidasseavirconversarsobreasatividadesduranteoalmoço.Bati suavemente na porta da casa de hóspedes e o próprio Thich Nhat Hanh

atendeu. Transmiti a ele o convite de meu mestre, e ele respondeu: “Diga a

MaezumiRôshique,duranteoalmoço,euapenascomo.Poderemosfalarsobreaprogramaçãoantesoudepoisdarefeição”.Assimfoi.Duranteaconversa,elesemostrouinteressadoemadquirirumsino

debronze japonêspara colocar emumde seus templos e centros deprática. Fuibuscarasrevistasdosfabricantes.Eleescolheuumsinoedeuoendereçoparaondedeveriaserenviado.Meumestre,MaezumiRôshi,esperavaqueacomunidadedelápagasse pelo sino. Qual não foi sua surpresa quando a conta chegou à nossacomunidade.Mestre Thich Nhat Hanh pensara que era um presente. E assim setornou.MaezumiRôshi, apesar das dificuldades financeiras por que passávamos,nuncacobrouosino.

Esse episódio me faz pensar em mim mesma. Teria eu cobrado e reclamado se nãopagassem? Teria ficado brava e falaria da pessoa de modo a rebaixá-la? Como é difícilacessar esse nível de desprendimento e desapego. Mesmo quando damos um presente aalguém,damosdeverdade?Ouqueremosverondeocolocaram,seoapreciaramounão.

Minhamestradetreinamento,AoyamaRôshi,noscontavanomosteirocomoelapercebeusuamentepequena.Aodarunspapéisdedobraduraaumaamiga,esta,aoreceber,dissequeiriadá-losaoutrapessoa.Numprimeiromomento,AoyamaRôshi ficou brava: “Como? Depois de todo o trabalho que tive, você vai dar aalguém?”.Sendoumapraticantedosensinamentos, logopercebeusuapequenez.Nãoestavadandodeverdade.

“Quando damos algo, não devemos nos importar com o que a pessoa fará com opresente.”

Houve um monge no Japão, no século XIV, chamado Mestre Keizan Jôkin,consideradoa“mãe”danossaordemreligiosaporterabertoinúmerostemplosedeixadograndesmestreszencomoseusdescendentes.EranetodiscípulodeMestre

EiheiDôgen.Certaocasião,umcasaldediscípulosleigos(maistarde,aesposasetornariamonja)doouaeleumterrenodizendo:“Osenhorpodefazeroquequisernestelocal.Podeconstruirummosteiro,daremcaridade,trazerpessoaspobresecarentesparamontarseusbarracosaqui.Estamosdoandocompletamente,paraqueosenhorusecomoacharmelhor”.

Nãoésurpreendente?Aspessoascostumamoferecer locaiseobjetosquerendotambémcontrolarseuuso.Aintençãosemintençãoéocaminhosuperiordosseresiluminados.

Equidade

“ImaginemquetodasasimagensdeBudasejamfemininas.Imaginemquetodosos grandes líderes tenham sido mulheres. Imaginem que apenas as mulherestenham oportunidade de estudos superiores e que caiba aos homens servi-las,alimentá-las,lavarsuasroupas.”AlamabudistadoHavaíiniciaraassimareflexãosobreotemaasermeditado

naquele dia. Sua Santidade o 14o Dalai Lama deixava as lágrimas escorrerem. Aofinal,comprometeu-se:“Voufazeroquepuderparaquehajaequidade.Masvocêsabequenãodependeapenasdemim”.Aoouviressahistória,lembrei-medasdificuldadesdaprimeiramonjahistórica,

MahaprajapatiDaioshô.ElaeraamãeadotivadeBuda,irmãdesuamãebiológica,quemorreraumasemanaapósoparto.Criaraomeninocomosefosseumdosseusfilhos.TambémeraesposadoreiSuddhodana,paideBuda.Quandoojovemretornoucomoumrenuncianteeanunciouocaminhodepaze

tranquilidadeincomparáveisquehaviaobtido,Mahaprajapati,cujonomesignificalíderdeumagrandeassembleia,pediuparasegui-locomomonja.“Não”,eledisse.“Seasmulheresdeixaremolar,oqueserádasfamílias?”Essa foi sua primeira resposta. Ela, porém, não a aceitou. Em uma sociedade

patriarcal, comoeraa Índianaantiguidade (2.600anosatrás),amulherquenãotivesse um homem para protegê-la também era considerada uma pária. Haviavárias assim. Muitas mulheres cujos maridos, filhos, primos, tios, sobrinhos,genroshaviammorridonasinúmerasbatalhasdeumpaísdividido.Elasnãotinhammais família. Não conseguiam seu sustento.Mahaprajapati, como esposa do rei,lhes ensinava artes manuais para que, vendendo alguns artigos ou alimentos,pudessemmanterasieaosseusfilhos.Comoagoraelevinhafalarsobrefamília,seasfamíliasjáestavamdesfeitas?Commaisde500mulheres,elaseguiuBuda.Porlongasdistâncias,ferindoospésesedeixandocobrirpelapoeiradasestradassecas.Quando Buda fez um discurso para um grupo de pessoas, dizendo que todas,

semexceção,tinhamacondiçãodeobteramesmailuminaçãoqueeleobtivera,seuatendenteeprimo,Ananda,solicitouapalavra:“Mestre,todasaspessoasincluem

asmulherestambém?”.“Claroquesim,Ananda!”,disseBuda.“Então,Mestre,porqueosenhornãoordenaMahaprajapati?”,sugeriuAnanda.Esse diálogo foi fundamental para a mudança de pensamento de Buda. Ele

refletiu e concordou. Passou a aceitar as mulheres como monásticas, mesmoexigindo delas oito regras especiais de obediência, servidão e dependência emrelaçãoàcomunidademonásticamasculina.Doismil, quinhentos e oitenta anos se passaramdesde a entrada deBuda em

Parinirvana–nãodizemosqueBudamorre,masqueadentraagrandepaz final.Ainda hoje há países que não reconhecem as monjas. Mulheres podem serrenunciantes,masnãomonjascompletas.Causas e condições favoráveis fizeram com que eu conhecesse o Budismo do

Grande Veículo (Mahayana) de uma ordem japonesa em que a igualdade entremonges emonjas vem ocorrendo desde a Segunda GuerraMundial. Foi amonjaKojimaSenseique,duranteedepoisdaguerra,viajouportodoopaís,convencendoos líderes religiososdanecessidadedeequivalênciaentremongesemonjas.Hojetemos os mesmos direitos e deveres. Podemos oficiar enterros e casamentos,ordenardiscípulosediscípulasleigosemonásticos.MasfoinecessárioqueKojimaSenseiexistisseesedispusesseaexigirequidadededireitosedeveres.Damesmamaneira,aLeiMariadaPenha,aquinoBrasil,hojeabreumportalde

igualdade.Maséprecisoqueasmulheressaibamsedaraorespeitoenãopermitamnenhumaformadeabuso.No campo religioso, as monásticas devem sensibilizar as ordens a que

pertencemparaquesejamtratadascomomesmorespeitoqueosmonásticos.Ainda estamos vivendo essa mudança. Se em alguns locais, países e ordens

religiosas isso já éuma realidade, aindahá locais, países e ordens religiosasquediferenciam,discriminam,diminuememaltratammulheres.Que as lágrimas possam secar e a compaixão traga sabedoria aos corações

herméticos.Quetodososserespossamserfelizeseencontraraplenitude.

Hoje existemmaismulheres empoderadas na liderança não apenas de países, cidades,estados,mas no comando da própria vida e da de seus filhos,maridos, amantes, amigos.Mulheresque sãoprovedoras e capazesdegerenciar suas famílias, seus clãs. Famíliasnão

sãodissolvidasquandoasmulheres se tornam religiosasporque sãopoucasas famíliasdepai,mãeefilhos.Familiareseamigosquefacilitamaspráticasespirituaisrecebemméritosincomensuráveis, pois o voto religioso é sempre o de incluir todos os seres na grandesabedoriaeinfinitacompaixãodosseresiluminados.Homens e mulheres que fazem o voto altruísta de dedicar sua vida a um caminho

espiritualdevemserigualmentehonradosehomenageadosportodososseres.

Ryôkan

Ryôkan-samafoiummongediferente.Moravasozinhonumacasinharústicanomeiodomato.Deixavaosbambuscresceremdentrodecasaeatéfezumburaconotelhadoparaqueobambupudessecrescerlivrementeerespirarmelhor.Háváriashistóriasinteressantesemsuavida.Foi um grande poeta. Tinha amigos entre as crianças, com quem gostava de

brincardeesconde-esconde.Tinhaamigasnosprostíbulos,ondegostavadebeberepregar.Vestia-sesemprecomoumpobremongeandarilho.Contam que, certo dia, caminhava por uma estrada quando se abaixou para

amarrarassandáliasdepalhaefoiatacadocompauladas.Apenasseencolheu,semdizer nada. Quando o homem que nele batia percebeu que se tratava domonge,ficouatordoado:“Ryôkan-sama,desculpe,desculpe.Estavacertodehaverpegadooladrãodasminhasmelancias,porissobatitanto.Porqueosenhornãoreclamou?Por quenão se identificou logo?”.Ryôkan-sama sorriu. Terminoude amarrar assandáliasdepalhaedisse:“Jápassou!”.Efoiembora.Como é difícil ser assim. Conheço algumas pessoas que jamais esqueceriamo

fatoejurariamvingança.Conheçooutrasquechorariamseconsiderandovítimasdavida. Outras que teriam batido em quem nelas batesse. Inúmeras possibilidades.MasestadomongeRyôkan,doséculoXVII,émuitorara.Receberosabusoscomosenadarecebesse.“Sealguémvierlhedarumpresentequenãoteráuso,émelhornãooaceitar.

Deixe que o presenteador o leve de volta.” Assim professores ensinam a seusalunosno Japão.Sealguémo insultar,deixequeapessoa leveo insultodevoltacomela.Nãoaceiteopresentedesnecessário.Nãoéprecisoreclamar,dizerquenãoé bem assim, se explicar ou exigir explicações, se desculpar ou pedir desculpas.Apenas não receba e não dê força ao que é prejudicial. Pelo contrário, estimulepalavras,atitudes,gestosepensamentosquebeneficiemtodososseres.HáemumensinamentodeBuda,oSutradaFlordeLótusdaLeiMaravilhosa

(Myo Ho Rengue Kyo), a história de um ser iluminado que muitas vezes foiperseguidoenãocompreendidopelosseuscontemporâneos.Quandooofendiame

algumas vezes até o agrediam, ele sorria e gritava: “Um dia vocês se tornarãoBudas”. Alguns se irritavam com essa frase e lhe batiammais ainda. Ele apenasrepetia:“UmdiavocêssetornarãoBudas”.Tornar-se Buda é despertar. Despertar para amente de inclusão e respeito a

todas as formas de vida. Por isso o ser iluminado não se importava com ocomportamentoadormecidoetolodosqueaindanãohaviamsidodespertados.

Amissãodecadapessoaquedespertaéade facilitarodespertardosoutros seres.Quetodososseresdespertemepossamserverdadeiramentefelizes.Semofender,semferir,sematacar, sem defender, semmacular o imaculado. Seria possívelmacular o imaculado? Sedesdeoprincípionadaexiste,tudoémovimentodeprótons,elétrons,nêutrons,ondeficamapurezaeaimpureza?Noolharabsolutonãohádualidades.Noolharrelativohádiferenças.Masoabsolutoeorelativofuncionamcomoumacaixaesuatampa.Perceberessainteraçãoédespertaresetornarasmãossagradas.

Há umditado japonês que diz: “Estamos nasmãos de Buda”.Meumestre detransmissão, Zengetsu Suigan Daioshô, conhecido também como Yogo SuiganRôshi,costumavamedizer:“NãobastaestarmosnasmãosdeBuda.Temosdeseressasmãosnomundo”.

Mãosqueprotegem,queguardam,quecuidamequetransmitemumamaneiradeviverplenadealegriasprofundasesutis.Vocêseimportadesegurarminhasmãosemsuasmãossagradas?

Despertar

Hácavalosquecorremaoverasombradochicote.Hácavalosquecorremaoreceberumachicotadanolombo.Hácavalosquesócorremaoreceberumachicotadaquelhescorteacarne.Hácavalosquesócorremquandoachicotadachegaatéseusossos.

Essaanalogia foi feitaporBuda,hámaisde2.600anos.Nós, sereshumanos,podemos ser comparados a quatro tipos de cavalo. O primeiro, ao saber de umacidente grave em algum país distante, percebe a transitoriedade da existência,despertaparaavidaepassaavivercomalegriaedignidade,procurandoocaminhodoperfeitodespertar.Osegundo,quandoamorteouosofrimentosemanifestaemalguémconhecidopublicamente,massemintimidadepessoal.O terceiro tiposãopessoasquesódespertamquandoalguémmuitopróximo,íntimo,sofreoumorre.Eoquartosódespertaquandoaprópriamorteestápróxima.MinhasuperioranoMosteiroFemininodeNagoianoscontouumavezsobrea

praticanteS.,quecostumavaparticipardenossosretirosmeditativos.Jánãomaisavíamos, pois ela estava com câncer e o tratamento era delicado, doloroso ecansativo. Nesses meses iniciais, S., que era auxiliada por seu marido, semprereclamava da demora dele em trazer os alimentos, em auxiliá-la nas suasnecessidades. Tornara-se uma pessoa difícil de conviver, sempre reclamando eresmungando. Nossa superiora recomendava a ele que tivesse paciência e secomprometeuafazerumavisitaeconversarcomasenhoraS.Antes de chegar o dia da visita, porém, a senhora S., foi aomédico, que lhe

disse:“Otratamentonãopodecurarasenhora.Restam-lhepoucosmesesdevida”.Essa frase transformousuavidaesuamaneiradese relacionar.Quandonossa

superiora foi visitá-la, estava amuada e triste. Conversaram longamente. Nestemundo, nada é fixo nem seguro. Tudo o que começa inevitavelmente termina.Arrependa-seeentreempureza.Tantascoisasquedeixamosdefazer,falar,pensaretantasoutrasquenãodeveríamoster feito, falado,pensado. Juntas,entoaramopoema:“Todo carma prejudicial alguma vez cometido por mim, desde tempos

imemoriáveis,Devidoàminhaganância,raivaeignorânciasemlimites,Nascidodemeucorpo,bocaemente,Agora,detudo,eumearrependo.”

E nossa superiora explicou a ela o que é carma– a ação que deixa resíduos,vícios e hábitos que vamos criando durante a vida. Alguns bons, outros neutros,outrosperversos,prejudiciais.Disse-lheparaassumiraresponsabilidadeporessesatos, pensamentos e falas; lembrar-se dos venenos básicos que perturbam ahumanidade:ganância,raivaeignorância;earrepender-sepornãotersidocapazdeutilizarosantídotosdadoação,dacompaixãoedasabedoria.Mesessãomuitosdiasemuitashoras.Oportunidadedesepurificar,desearrepender,deseabrigarno sagrado. Libertar-se deste corpo, dizia Buda, é uma alegria. Que ela não selamentassepelaprópriamorte,masapreciassecadaminutodevida.

……

Um dos meus protetores no Japão, o monge Kuroda Rôshi, abade do temploKirigayaji, em Tóquio, falou outro dia a uma senhora que há anos o auxilia notemplo e que esteve doente: “Até amorte, vivemos”. Ela riu, ele também.Maistarde,duranteumacerimôniamemorial,eledisseamesmacoisa,apenasnumtommaissolene:“Navida,vivemos.Namorte,morremos”.Avidaéumprocessoemsimesma,tendocomeço,meioe fim.Amorteéum

processo em simesma, tendo começo,meio e fim.A vidanão se transforma emmorte. Amortenão torna a ser vida.Devemos apreciar a vida assim como ela é.Cadamomento.

……

Lembro-medeumjovempraticantequedescobriuterumcâncerderaracura.Iniciouumtratamentoquímicoquefezdeleumasombradesimesmo.Esquálido,recusava-se a consultar suamédica sobremudanças.Umdia, conversamos: “Porqueestáfazendoissocomvocê?Nãoestamosmaisnafasedoromantismo,emqueaspessoasmorremdeamor.Ninguémvaiseimportarcomsuadoresofrimentoanãoservocêmesmo.Queirasuacura.Saiadopapeldevítima.Apreciecadavômito

seu.Nãocontequantasvezesvomitou,massintaosabordovômitoepercebaqueainda está vivo. Cada experiência é passageira. Deixe passar o mal-estar. Estejapresentenomomentodemomentoamomento”.

De alguma forma, essa conversa pode ter dado alguma conexão neural que olevou à cura. Claro que não foi apenas a conversa. Houve tratamentos especiais,como acupuntura, em alternância com práticas meditativas intensas e estudosdetalhados do processo. Inúmeras causas e condições para que um efeito semanifestasse.

……

Voltando à senhora S. Depois do diagnóstico final e dos conselhos da nossasuperiora, elamudou. Cada dia, ao acordar, alegrava-se por estar viva. Passou aamar a chuva, a neve, o frio e o calor. Quando seu marido vinha cuidar dela,agradeciaprofundamenteelhepediadesculpaspeloincômodo.Morreutranquilaeempaz. Deixou ummarido tranquilo e empaz. Ele fizera seumelhor e ela foracapazdereconhecerisso.Assimpuderamsedespedir,semmágoas,semremorsos.

Seráquepodemosviversemmágoasesemmagoar?Mesmosemnenhumachicotada?

Tenhoalgunsdiscípulosquebrincamcomigo:“Asenhoraseesqueceudemim.Nãome identifico com nenhum desses quatro cavalos. Sou o burro, sou amulaempacada,queparecejamaisperceberaverdadeeapreciaravidacomplenitude”.Aodizer isso,porém, jáestãoemoutroplanodeconsciência.Énessenívelqueaconexão neural se faz e nos liberta.Mas damesma forma que todas as sinapsesneurais, se não forem insistentemente estimuladas, deixam de se conectar,praticantes do caminho precisam estar em contato com os ensinamentos e comoutros praticantes. Se abrirmos um caminho na mata – com dificuldades eferimentos–enãopassarmosporelenovamente,empoucotempoessecaminhosefechará.Budadizia:“Édifícilparaumserhumanodespertarparaamenteiluminadae,

aomesmotempo,éamentemaisfácildeperder”.

Cuidemos,pois,dedespertaredemanterdespertaamenteiluminada,incessante,lúcidaeplena.

Perfeição

“Não pense que somos perfeitas. Aqui somos seres humanos. Monjas nummosteirosãocomopedrasdentrodeumajarra.Quandoestaésacudida,aspedrasse batem umas contra as outras. A que primeiro fica arredondada nãomais fereneméferida.”Com essas palavras fui recebida no mosteiro. Tinha 36 anos de idade e me

consideravailuminada,muitozen.Foramoitoanosdeatritos,dearredondamento,delágrimasesorrisos,dedescobertaseaprofundamento.Quandomesentiamuitosó e desamparada, incompreendida e sem compreender, subia até a biblioteca etraduziatextossagradosantigos.Sentia-meprotegidaeabençoada.Traduziréficaríntimadeumtexto.Compreendereminglêsecompreenderemportuguêstornavaotextomeu.Nemsempreera fácil.Muitasvezes,paravaeolhavaas estrelas, a lua.Houve

umanoite em que uma centopeia (mukade) passou suavemente sobremeus pés.Diziam que elas eram venenosas e haviamonjas que as colhiam comhashis e ascolocavamparamorreremjarrascomálcool.Nuncafuicapazdefazerisso.Seelasexistem,têmdireitoàvida.Numa outra ocasião, estava em um mosteiro especial de treinamento para

futuros professores e professoras de mosteiro. Varria e espanava a sala demeditação quando vi uma centopeia. Era necessário tirá-la dali antes que outrapessoaavisseeacolocassenovidrodamorte.Corriepegueiumaplacadepapelque tinha o nomede outramonja e, alegre, joguei-a pela janela. Só que a outramonjaviueficoufuriosa.Nãopelamukade,masporeuterusadoaplacacomoseunome. “Usasse a sua”, me disse, brava. Mas a minha placa estava longe, e amukade,alidolado.Nemtodasaspessoasnoscompreendem.Nemsomoscapazesdecompreendertodasaspessoas.Hoje, quando reflito sobre essa cena, percebo o quanto eu deveria incomodar

essaoutramonja.Naépoca,eunãopercebia.Decertaforma,euaindaeraaquelapedracompontas.Nãohaviamearredondado.Atéhojemepergunto:quantomaisseráprecisoparaficarrealmentemaciaeterna?

Háumaprofessoranomosteiro chamadaKiito Sensei. Ela completou90anosem2014.Estavanacerimôniadegraduaçãodeminhaaluna,amonjaZentchu,juntocom as outras professoras do mosteiro e a abadessa. Ao final das liturgias, naentregadediplomas e documentos, asmonjasgraduandasdevem ir atéum localpróximoondeháumrelicáriodeBuda.Lá fazemamesmapreceque fizeramaoentrar nomosteiro. Na volta, o carro que levava Kiito Sensei passou por elas. Aprofessorapôsasmãosparaforadajanelaefoitocandoesendotocadaportodasasrecém-formadas.Houvelágrimaseafagos.Minhadiscípulacomentou:“Elaépuroamor”.Ficopensandocomoseriabomacessaresseníveldeamorosidade.Muitasvezes

falo com aspereza a meus discípulos e discípulas quando erram. Interrompocerimôniaseprecesparaensiná-los.Soucriticadaporisso.Tentomecorrigir,masnemsempreconsigo.

Queromecompararaumgrandemestrequedisseaseuspraticantes:“Desculpempelosmeusmausmodoseminhafalagrosseira.Maséporquelhesqueromuitobememuitobemiluminados que ajo assim. Espero que me compreendam e me perdoem”. E todos nomosteirochoraram.Ninguémjamaisreclamoudomestre,poissabiamquesuaintençãoeradobem.EsperoumdiametornarumaverdadeiraMestraZen.

Pinheiro,bambueameixeira

Umewakankoetesenkoohassu.(Aameixeirasuportaofrioedesabrochaemfragrância.)

Nospaísesdeinvernorigoroso,anevefazcomqueasárvorespareçamsecasemortas.Aameixeirabrancaéaprimeiraadesabrochar.Ostroncosegalhosaindaestão cobertos deneve quando o pequeno botão exala a fragrância perfumada daprimavera.“Oinvernoéumperíodoemsimesmo.Aprimaveraéumperíodoemsimesmo.

Oinvernonãosetornaprimavera.Oinvernotemcomeço,meioefim.Aprimaveranãosetornaverão.Temcomeço,meioefim.Assiméavida.”(MestreEiheiDôgen)Ofinaldoinvernoéoiníciodaprimavera.Anevederrete.Osbotõessurgemnas

árvoressecas.Floresdespontamaquieacolá.Hááreascomavegetaçãoqueimada,galhosquebradosecaídospelopesodaneve,dosventos,dastempestades.Primaveraétambémtempodereconstruir,repararosestragosdofrio.Étempo

dealegria,deverascerejeirasemflor–suavemente rosadas,pétalasnosgalhosmarrons.Céuazul.Ascoresvoltam.Osodoresretornam.Avidaressurge.NascerimôniasdecasamentoemfrenteaBuda,osnoivosbebemdetrêstaças.A

primeiratemodesenhodeumpinheiro–símbolodalongevidade,poissemantémverde em toda as estações do ano. Que o casamento possa ser assim, manter ofrescor da ternura dessemomento em todas as estações da vida.Nunca perder ovigor.Asegundataçaéadobambu.Háváriossignificadosrelacionadosaobambu–

flexibilidade é o primeiro. O bambu se dobra e não se parte. Quando somosflexíveis, podemos nos abaixar sem nos quebrar. A humildade digna. Tambémrepresenta o respeito à ancestralidade, aos que vieram antes, pois cresce emnódulos,deixandoqueosprimeirosseelevemaoscéus.Aterceiraanalogiaécomaespiritualidade.Umbambufloresceapenasacada150anos.Amaioriadenósnuncaviuaflordobambuousuassementes.Geralmenteplantamosmudas.Quersejammudas,quersejamsementes,levamcincoanos,sobaterra,paradarosprimeirosbrotos.Avidaespiritualtambéméassim.

Muitas vezes, iniciamos uma prática religiosa e queremos logo os resultados.Tudo o que surge commuita rapidez, damesma forma desaparece. A trama dasraízes do bambu (uma espécie de grama gigantesca) protege e fortalece a terra,evitando desabamentos. Cerca de cinco anos apenas criando causas e condições.XaquiamuniBudadiziaqueumapessoasósetornariamongeoumonjadepoisdecinco anos de prática incessante, depois de haver raspado os cabelos (tambémbigode e barba para os homens) e entrado para a prática da vida comunitária.Levamoscincoanosparanostransformar,paramigrardamaneira laicadeviver,pensarverefalareassumiravisãomonástica.Domesmomodo,nocasamento,sódepoisdecincoanospercebemosoquerealmenteaconteceu.Noivoenoiva,maridoe esposa, homem e mulher se tornam verdadeiramente íntimos e podem sereconhecerumnooutro.A terceira taça mostra o desenho de uma ameixeira florida. Que o casal seja

capazdeatravessaros invernosfriosegélidosdasperdasesofrimentospossíveisem uma existência. Não só perdemos pessoas queridas, mas também sonhos,ideais, expectativas. Tudo aquilo que nos faz lembrar do frio da morte.Atravessamosedesabrochamosnovamente.Sãoosvotosdequetenhamcapacidadedesuportaroaparentementeinsuportáveledarvidaàsuaprópriavida–comofazaameixeira.

Shohakubai,emjaponês,significapinheiro,bambueameixeira.Seformoscapazesdeaprender comanatureza, como fluir daságuas, comas estaçõesdoano, comopinheiro,comobambuecomaameixeira,semdúvidaviveremosdeformaplena.

Qualocaminho?

Mizunagaretemottokaikinikizu.(Aságuascorremevoltamaooceano.)

AofinaldaCerimôniadeCombatedoDarma,apessoaquefoiShusso(líderdosnoviços)devolveaomestreoumestraaespadadebambuchamadashippei edizafraseacima.Noinício,receberaaespadadomestre,queperguntara:“Comovocêausará?”.E

aresposta:“Paratirareparadarvida”.Tirar, cortar o falso, o pensamento dualista, o irreal, a delusão. Ninguém é

mortonacerimônia.Aespadadebambudepositadanasmãosdoatéentãonoviçoounoviça simboliza a confiança domestre.Não se coloca facanasmãos de umacriança.Nãoquea faca sejaperigosa emsi,masa criançapodenão terodevidocontroleeferirouserferida.Damesmaforma,nãoseentregaaespadadebambuaalguémquenãosaibaresponderdeformasábiaeprofundaàsperguntassobreosensinamentos.Ocombateéumdebate.Nãohávitoriososnemderrotados.Cadaperguntadeve

provocar o Darma. Deve provocar para que os ensinamentos verdadeiros sejamrevelados.Muitasvezes,quemseguraaespadadebambudáocortefinal,apalavra,aexpressãoquelevatodosàrealidadedoagora.Emnossa vida, estamos semprenesse eterno combatedoDarma.A espadade

bambupassademãoemmão.Entreparentes,casais,amigos,colegasdetrabalho,companheirosdepartido, timesde futebolesuas torcidas,emtodososesportes,emtodosocamposdavidahumana.Quandonossos encontros e diálogos, nossas atitudes e gestos estão de acordo

como caminho supremo,háum fluirmacio, suave e profundo.Quando estamosseparadosdocaminho,hátrancos,desencontros,superficialidadeedureza.

Sepercebemosaoutrapessoaperturbadaeaflita,devemosameaçá-laeprovocá-la?

Um brigadiano (policialmilitar) de Porto Alegreme relatou o seguinte: “Umsábado desses, uma senhora nos telefonou pedindo socorro. Havia apanhado domarido.Chegamosasuacasasimples,omaridoembriagadonosofá.Preparamosasalgemaseoprendemos,depoisdeverasmarcasnocorpoenorostodamulheredeouvirodepoimentodevizinhos.‘Masosenhornãovaiprendermeumarido,vai?’‘Claroquevamos.Asenhoradeuqueixa.’‘Maseusóqueriadarumsustonele,paraqueparedemebater.’‘Asenhoraachaquetemoscaradefantasma?Quemdásustoéfantasma.Elevai

preso.’A senhora chorou. Foi até a brigada (delegacia) e retirou a queixa. O marido

voltou para casa na segunda-feira. Na semana seguinte, ela tornou a ligar. Omaridoerapedreiro,trabalhavacomumabritadeiraodiatodo.Nofimdesemana,não tinhadinheiroparanadamais alémdeumagarrafa depinga. Enchia a cara.Quandoestavaembriagado,amulhercomeçavaareclamardavida,dele,detudo–coisaantigase futuras.Elesedescontrolavaebatianela.Elagritavaechamavaapolícia. Depois amesma cena se repetia. Ou ela se separava dele ou deixava deprovocarohomemembriagado.Nãohaviaoutrasolução.”Assimmerelatouobrigadiano.Fiqueipensandosehaveriaumaterceirasolução.

Deve haver. O homem pode também parar de beber. Se não estiver embriagado,podetercontrolesobresuasações.

……

Háalgunsanos,umjovempaulistanofoiatropeladoe,empoucosdias,morreuem consequência do atropelamento. A jovemque o atropelou estava embriagada.“Foiacidente”,defendeuafamíliadela.Afamíliadojovemmortoseuniuaoutrasfamíliasecriaramumacampanha:“Nãofoiacidente”.Matar alguém, atropelar, bater o carro – se o(a) motorista estiver

embriagado(a),écrime.Nãoéacidente.Apessoanãoestavaemcondiçõesdeguiar.NoJapão,converseicomumtaxista.“Comoéporaqui,ondeoshomensbebem

tantodepoisdotrabalho,principalmenteàssextas-feiras?”,perguntei.“Háalguns

anos, a Lei era menos severa. Muitas pessoas ficaram aleijadas, morreram oumataram.HojeaLeié justa,porissoquasetodosandamdetáxioudetransportepúblico. Sempre há um ou outro que pega o próprio carro. Mas podem até sercondenadosàpenademortesemataremalguém.”Buda dizia que devemos manter a mente clara, incessante e luminosa.

Embriagar-se é perder a clareza mental. Os reflexos ficam lentos. Fico muitoincomodadaquandoestudantesqueentraramemuniversidadesvêmpedirdinheironas ruas. O chamado “trote” para os calouros. Pedem dinheiro para comprarbebidas alcoólicas muito fortes. Alguns chegam a entrar em coma alcoólico. JápresencieiissonasproximidadesdoHospitaldasClínicasemSãoPaulo.Atévi,aoamanhecerdeumdia,quandopasseavacommeuscachorrosakitas,umgrupodeestudantes batendo em outro que, caído no chão, se encolhia enquanto recebiapontapése tapas.Gritei.Nãopodiameaproximar,poismeuscãeserambravosepoderiamcausarumestragomaiorainda.Depoisdeváriosgritos,pararam.Houvequemvisseenadafizesse.Por que não fazem o trote de limpar a cidade? De varrer as ruas? De ajudar

pessoasaatravessaráreasdifíceis?Porquenãosãocapazesdeinovaremelhorarotrote?Limparafaculdade,assalasdeaula.Sergariporumdia.Vivenciaracidadeearealidadedeoutraforma.Essaéafunçãodaeducação,osignificadodeentraremumafaculdade,deaprenderecrescercomoserhumano.Nadaavercomsairdeumestadodeconsciênciaalertaebrilhante–queoslevouapassarnosvestibulares–paraumestadoletárgicoebruto.Temosdenosmanifestar.Nãopodemosnoscalar.Mastambémnãodevemosnosexportolamente.

……

Euacreditono serviçopolicial.Achobomquehajapessoas treinadasparanosproteger de nós mesmos. De tempos em tempos, aparecem escândalos sobrepoliciaiseacabamosgeneralizando,achandoquetodossãomausecorruptos.Nãoébemassim.Amesmacoisafazemcompolíticos,religiosos,médicos,professores,empresários.Parecequeomundoestáperdido,queninguémserveparanada,quetodosestãosóquerendovantagenspessoais.Nãoébemassim.Háseresdobemnomundo.Talvezagrandemaioria.Pessoas

que vivem com dignidade e cumprem suas tarefas sem esperar nada de volta. É

preciso filtrar até mesmo as notícias dos jornais, do rádio, da internet e datelevisão.Aqueminteressaessaperspectivadosfatosedarealidade?Quemganhaequemperdecomessasnotícias?Será que podemos estar mais conectadas com o bem de todos do que com a

vitóriadomeutime,domeupartido,domeuclã,daminhatribo,domeugrupo?“Outros? Que outros?” Foi assim que encontrei Beto, policial que se tornou

professordaculturadepazenãoviolência.Somossereshumanosetemosdenoscuidar. Beto vai a escolas e universidades. Ele, que tantas vezes foi à favela daRocinha, no Rio de Janeiro, para matar e ferir os “outros”, os bandidos, osmarginais, os traficantes. Quando seu companheiro morreu, percebeu: “Não háoutros.Somosnós.Semprenós”.

Verdade.Somosnós,habitantesdoplanetaTerra.FilhosefilhasdaTerraedoSol.Somosavidadoplaneta. Senosunirmos, senos cuidarmos,nãoprecisaremosmaisdearmas,dedrogas, de bebidas, de brigas feias, de guerras, de fronteiras, de barreiras. O fim dadiscriminaçãopreconceituosaeoiníciodaacolhidaamorosa.Háumcaminho,umterceirocaminho–oCaminhodaCulturadePaz.

Musashi

MusashiSenseifoiumgrandesamurainoJapãomedieval.Usavaaespadalongae a espada curta, uma em cada mão. Quando jovem, fora muito violento,provocando brigas e desafiando para duelos qualquer um que encontrasse. Foipreso.Havia um monge, chamado Takuan Osho, que o conhecia desde pequeno.

Tornou-seresponsávelpeloprisioneiro.Trancou-onumatorreportrêsanos,comlivrosdeestratégiadeguerraeautoconhecimento.Musashiaprendeu.Depoisdisso,costumava dizer que estava sempre lutando consigomesmo. Cada adversário eraumaspectodesimesmo,quedeviarespeitaresuperar.Certavez,foiatacadopor25samurais.Saiuvivo,masmuitoferido.Quandolhe

perguntaramqualaestratégiaqueusara,respondeu:“Umaum”.Podemos responder aos ataquesque sofremos, simultâneos, de25 solicitações

imediatas e sair inteiros? Somos capazes de tratar cada assunto por vez, comhabilidadee tática?OexemplodeMusashiSenseiéparanossavidadiária.Nãoéapenasumahistóriaantigadeumpaísdistante.Houveoutraocasiãoemqueelesehospedouemumapousadamuitosimples.Os

espadachins de nível inferior que estavam lá vieram provocá-lo. Ele fazia suarefeição, comendo com hashis. Os homens falavam de maneira grosseira eimprópria,eele,MusashiSensei,pegavanoarasmoscasquevoavamemtornodacomida.Depoisdehaverpegadomaisdedezmoscasenãoterficadobravocomodesrespeito dos outros, estes se deram conta da habilidade do mestre e foramsaindodefininho.Pessoas fortes e poderosas não precisam gritar, espernear e reagir a insultos.

Mantendo a calma, a tranquilidade, são capazes de observar os outros sem ficarenvolvidaspelasmesquinhariasesuperficialidades.Sintopenadasmoscas.Musashi Sensei nãomorreu lutando. Sua última batalha foi à beira-mar. Ele

sabia que seu oponente usava uma espada longa, maior que a sua. Estava emdesvantagem. O outro talvez fosse, nesse momento, o mais bem treinadoespadachim daquela época. Procurava a fama de derrubar Musashi Sensei. Este,

comsabedoria,usouestratégias.Primeiro,fezparasimesmoumalongaespadademadeiraenãousounenhuma

lâmina cortante. Segundo, chegou tarde para o encontro – o que desestabilizouemocionalmenteseuoponente.Terceiro,aproveitou-sedaluzdosolaoamanhecerpara se colocar emposição corretaa fimdequeo solperturbasseavisãode seuoponente.TalvezMusashiSenseinãofosseomaisrápidoeeficientecomaespada,masfoiomaishábilevenceu.Depois disso, aposentou-se. Escrevia poemas e fazia pinturas, usando com

delicadezaeperfeiçãoospincéisjaponeses.Atéhojeémodelodehonra,dignidade,sabedoria,habilidadeeestratégiapara todososqueapreciamaartedaespada.Etambémémodeloparacadaumdenós.

Sabemos usar de estratégias adequadas para alcançar nossos objetivos? Ou somosmanipuladospelasemoçõeseperdemospornãoteravisãodotodo?Osol,omar,aespadademadeira,otempo.Tudoconta.Tudoéograndequadrodanossavida.Ondevocêseposicionaecomoseposicionaemcadamomentododia?Notrabalho,em

casa,notrânsito.Observeecorrija.ComodizoprofessorMarioSergioCortella:“Nãoéerrandoqueseaprende.Écorrigindo

oerro”.

Transcendendoobstáculos

“Endireite a postura, prenda o abdômen e os glúteos, levante os joelhos,mantenhaosbraçosemânguloretoefaçaomovimentodacorrida.Vamos.Vamos.”Mônica Peralta, minha assessora de corrida, apita na Praça do Estádio do

Pacaembuacadadoisminutos.Doisminutoscorrendoforteeumminutodevagar.Os treinos acontecemduasmanhãs por semana, quando ela vemme acordar.Noinício, eu apenas caminhava os 600 metros da praça. Mônica foi paciente einsistente.Quantasvezesnãoquismelevantar,mas,aopensarnajovemeducadorafísicameesperandopoucodepoisdas6hdamanhã,eumeesforçava.“Comeu antes do treino? Beba água. Precisa se hidratar.” Eu a conheço há

algunsanos.Chegouàcomunidadeparapraticarzazen.Queriaentenderporquesemachucavanas corridas. Era corredorademaratonas e treinadoradoPAClub,naépoca. Admirava o Abílio Diniz e sua família, que reconheciam a necessidade doesporte para uma vida saudável. Sentava-se admiravelmente bem. Era capaz desuportar os retiros mais severos. Conhecia a dor. A dor da parede dos 30quilômetros.“Nas maratonas, uma parede invisível surge por volta dos 30 quilômetros.

Temos de atravessar essamuralha. A perna dói, o corpo reclama, amente querparar.Masnãoparamos.Aoatravessaressamuralha, tudosetransforma.Apenasouvimos os sons de nossos próprios passos na pista. Entramos em outra ondacerebral,outroestado.”Asparedesnão são apenasnos 30 quilômetros deumamaratona. Elas podem

surgir em qualquer momento de nossa vida. Paredes invisíveis que nos dizem:“Pare, deixe para lá, vá fazer outra coisa, está difícil, chega, cansei”. E, sepersistirmos,seatravessarmosessafase,avidaficamaisrealemaisverdadeira.Ossentidosalertas,amenteclaraeluminosa,osbatimentoscardíacos,arespiração,aalimentação,ahidratação.HojeMônicatemumaassessoriadecorridaemaisde100praticantes,aquemdá

treinos regulares. Eu sou uma delas. Dos 600 metros caminhando, hoje possocorrer5quilômetros.Participeideváriasprovaseredescobriaalegriadaatividade

física.Nossocorpoprecisademovimento,deaçãoquecauseimpacto(issoretardaou

inibeaosteoporose)equeacelereocoração,ativandoacirculação.Comelaaprendiacuidardeminhasrefeiçõesregulares,perceberasalteraçõesnacorridaconformeaalimentaçãododiaanterior.Quando viajo para dar palestras ou participar de eventos nacionais ou

internacionais,levoumpardetênis–eminhatreinadoratambémvaicomigo,emminhamente.Euaouçodizer:“Endireiteacoluna,forçanocore,vai,vai,vai”.

Cadaobstáculoéumaoportunidadedecrescimentoeaprendizado.Levante-seecorra,caminhe,movimente-se.Vidaémovimento,atividade.Corposaudávelémentesaudável.Canseocorpoerepouseamente.

Corposão,mentesã

Umcasaldeeducadoresfísicosveiomeprocurar.Iamsecasarequeriamqueeuoficiasse a cerimônia. Concordei e iniciamos os preparativos. Ela era de famíliajaponesaeele,defamíliaitaliana.Trabalhavamjuntosemumaescolacatólicaeseamavam.Ocasamentofoilindo.Poucotempodepois,ganharamumespaçoparadaraulas

depilates,treinamentofuncionaleoutrasatividades.Novamentemeprocuraram,pararealizarabênçãodeabertura.Oramosjuntosemtodasassalas,equipamentosnovos, chão de tacos e madeira, janelas de vitrais coloridos antigos, nasproximidades do Parque da Água Branca. O canto dos pássaros acompanhou asbênçãos.Emprecescomoessas, entoooSutradaGrandeSabedoriaCompletae revolvo

umdosvolumesdesse sutra– sãomaisde600–, rogandoqueodiscernimentocorreto, a sabedoria perfeita esteja presente e afaste tudo o que possa serprejudicial. O que afasta omal é a compreensão correta, que leva a uma atitudecorretaeaumaaçãocorreta.Taiken–corpoesaúde–foionomequeescolheramjuntos.Corposaudável.O

pilatesmeencantaesurpreende.Malentendoosexercícios.“Monja,estásentindooquê?”,elameperguntava.“Xii...Sentindo?Oqueestousentindo?Quemúsculoestouusando?”Tudoera

tão diferente do que eu conhecia: corrida, ioga, balé, natação. “Bem, estoupreocupadacomarespiração,compuxarocinto.Oresto,nemsei.”Puxarocintoéprenderamusculaturadobaixoabdômen.Quedificuldade.Maistarde,elamecolocoudependuradaemumabarraalta.Pareciaqueestava

em um hospital, me recuperando. “Pois foi assim mesmo que Joseph Pilatesiniciou”, F. revelou. Ele trabalhava com feridos de guerra e criou uma série deexercícios para ajudar na sua recuperação – alguns podiam ser feitos sem quesaíssemdacama.Fortalecemocore,ocentrodeequilíbriodocorpo.Preciso do core fortalecido. Nasminhas práticas religiosas, devo fazermuitas

reverênciascompletasatéochão.Aposturadezazentambémexigequeoabdômen

esteja firme para sustentar as costas. Hoje, além do pilates, faço treinamentofuncional e procuro manter corpo saudável e mente saudável. Minha filha meacompanha. Sãodoces reencontros. Lembromeupaidizendo:“Corpo são,mentesã”.Agorasourealmentecapazdeentenderainterdependênciaentrecorpoemente.

Ameditaçãomeauxilianasaúdementaleaatividadefísica,nasaúdecorporal.Oinversotambéméverdadeiro.Praticoiogaduasvezesporsemana,comumagrandemestra.Nãosãoapenasexercíciosfísicosdealongamento.Sãoconsciênciadocorpoedamente.A mestra Walkiria Leitão diz: “A ciência da ioga”. Entre posturas e

relaxamentos, ela nos dá gotas de sabedoria demestres emestras em filosofia ereligiões. Saímos da aula mais leves, suaves e sensíveis. Olhos vendo melhor,ouvidos ouvindomelhor, narinas cheirandomelhor. Todos os sentidos alertas, amentetranquilaeaptaacuidardoquesurgirànossafrente.Agradeçosempreodiaemqueelaveiomeconvidaradarumapalestraemseu

instituto de hata-ioga. “Minhas alunas, nem todas entendem a necessidade dameditação. Você poderia vir dar uma palestra para elas?”. Observei essa senhoraelegantequeme convidava. Seráque suas alunas se interessariampela aridezdozen? Fui. Meus processos discriminatórios em relação a mulheres elegantes sedesfez.Sua sala de ioga era perfeita. Tatames japoneses, meus velhos amigos e

conhecidos dos 15 anos em quemorei naquele país. Na parede, um indígena debraçosabertossaindodeumrio,deummar,deáguaspuras,parecianosreceber.Mestresdeiogaedatradiçãovedanta,Jesus,divindadeshindus–todosdividiamamesmaparede.Terminada a palestra, pedi permissão à professoraWalkiria para ter aulas de

ioga com ela. “Você? Uma monja?” Sim, eu mesma. Seria impróprio o que eusolicitara? Ela me pediu alguns dias para responder. Foram duas semanas.Finalmente me aceitou. Já nem sei quantos anos faz. Sete, oito, dez? Continuoaprendendoeapreciandoessaciência.Vidacorreta,posturas,pranayama (circulaçãodeenergiavitalno corpoatravés

de exercícios respiratórios). O sistematizador da ioga, na Índia antiga, incluíadhyana(zen)esamadhi.SeunomeeraPatanjili.Ozen-budismocomeçanessefinal.Sentar-seemzazenepenetrarosamadhidossamadhis.Essa,aminhavida.

Buda foi praticante de ioga antes de se dedicar ao zazen por sete dias e setenoites e penetrar o samadhi dos samadhis. Na manhã do oitavo dia, teve suaexperiência iluminada e exclamou: “Eu, aGrandeTerra e todos os seres, juntos,simultaneamente,nostornamosoCaminho”.

Repitaessafrase.Penetreoseusignificadomaissutileprofundo.Seja,porummomento,ojovemSidartaGautamasetransformandoemBuda–odesperto,oiluminado.Esse“eu”éaGrandeTerraetodososseres.OpróprioBudasurgedesseEu.OEuMaior.VocêtambémsurgedesseEu.Aprecieavida.Cuidedocorpoedamente.Nãopercatempo.Viverépreciso.Vivercomsaúde.Asaúdedependedesuasescolhas–atividadeepassividade,alimentação,hidrataçãoeumbomsonoànoite.Merecidodescansodequemvivebem.

Posturacorreta

“Posturacorretanãoéapenasendireitaracoluna.Éaposturaquevocêmantémem sua vida. Postura correta não é apenas uma posição correta– émuitomais.Posturacorretanãoéapenasumapose–temdesermais.Éprecisosentir,tornar-se,comprometer-se.”Esse foi o início de uma aula de hata-ioga com o professor Marcos Rojo.

Estávamos em Fortaleza, num hotel à beira-mar. Ouvíamos o vento e o mar.Ouvíamos o mestre. Um homem simples e feliz. Casado, pai de três filhos eprofessor demilhares depessoas. Já viajamos juntos paraUbatuba, para a Índia,para Istambul,AbuDabie Japão.Semprecomgruposdepraticantesde iogaedozen-budismo. Fui com sua esposa, Deise, até o Peru e visitamos Machu Picchunumamanhãchuvosaeenevoada.Gostomuitodessaparceria,comaqualaprendomaisdoquetransmito.EleconseguiulevaraiogaparaaUniversidadedeSãoPaulo.Reconhecimento importante dos meios acadêmicos. Suas aulas são divertidas eprofundas.

Posturacorreta.Qualasuaposturadevida?Comovocêsecomporta?

Nos Estados Unidos, iniciei a prática do zazen no Zen Center de Los Angeles.Postura.Respirarcomoabdômen.“Queabsurdo!Comorespirarcomoabdômen?”Eoprofessordizia:“Coloqueamãosobreseuabdômeneobserveque,aoinspirar,eleseexpandee,aoexpirar,háumacontração”.Foi o princípio de uma série de descobertas. Retiros longos, pernas doendo e

todaavidaemrevista.Derepente,asbroncasdopassado,asreclamaçõesequeixasse tornaram fios de linha, desenhos na tapeçaria de minha vida. Tudo o que jáaconteceumetrouxeparaoagora.Aquieagorapossotomaressetearemminhasmãoseprocurarfazerdesenhosmaisadequados.Masnãocontrolamostudo.Pouco,muitopouco.

Postura correta. Endireitando as costas, permitindo que a musculatura doabdômenauxilieoesqueletoamanteraposturafísica–quenãoestáseparadadapsíquica,mental, espiritual. Deve vir de dentro também, do coração, do core, damente,doespírito.Sorrio. Cheguei a pensar que a pose bastasse. Quando jovem, praticava balé e

minhaprofessora,emLosAngeles,dizia:“Vocêtemumaposeincrível.Entretanto,quando começa a dançar, ainda falta muito”. Eu me lembrava do Snoopy e mesentiaassim:agrandebailarina,aprimeirabailarinaaquiestáevaidançar.Aposeeramuitoboa.Naquela época, fazia três horas– todos os dias, de domingo a domingo– de

aulasdebaléclássicoemLosAngeles,acidadedocinema,dosatoreseatrizes,dosprofissionais da arte do entretenimento. Eu era secretária do Banco do Brasil,casada com um norte-americano e queria me exercitar para ter saúde. Minhavizinhapediuqueeuaajudassea fazerumadieta.BeverlyHillsDiet.Erasevera.Umdia,sócomiaabacaxi;nooutro,peixesemsaleassadonabrasa;nooutro,sópipoca; e assim por diante. Fiquei pesando 47 quilos – de músculos e ossos.Compreiumabarradebalée,todasasmanhãs,antesdeirparaobanco,praticavameusalongamentos.DepoiscorriaemeexercitavacomocãoJoshua,umgreatdaneazul.Então iatrabalhar.Nasaídadobanco,comiaalgorápidoe iaparaaauladebalé.Aossábadosedomingosdemanhã,bemcomonosferiados,tínhamosaulas.Haviaprofissionaisnogrupo.Osmovimentoseramtodosfeitos32vezescadaum.Cobertasdelãedeplástico,transpirávamos.Chamávamosdesaladetortura,masnãoperdíamosnenhumasessão.Até que encontrei o Zen. Fui substituindo os horários de balé por horários de

meditação. Estava acostumada ao desconforto físico e aprendera a relaxar na dordosalongamentos.Maseradiferente.Diferentedetudooquejáfizera.Einstigante.Empoucotempo,pediparametornarmonja.Insisti.Roguei.Proveiquepoderia

ser. Aquilo era minha vida. Dava sentido a toda minha vida. Minha mãequestionava,meupai sepreocupava eminha filha abria osolhinhos arregalados.Era pequenina emorava com os avós no Brasil. As conversas erampor telefone,cartas,fotografias.Fui.Fuiordenadamonjaemjaneiroe,emoutubro, jáestavanoMosteiroFeminino

deNagoia.Os encontros comminha filha se espaçaram.Nadamaisdebanhosde

mar,debalé,derock’n’roll.Umgrandesilêncio.Zazen (meditação sentada), samu (faxina, trabalho comunitário), aulas em

japonês (no início, sem entender nada) e as dificuldades de relacionamento compessoasdeumaculturadesconhecida.Sofri.Chorei.Encontreiforçasdesconhecidasem mim que me faziam continuar. A meditação, os estudos, o samadhi metornavam mais forte. Traduzia textos. Aprendia a cerimônia do chá. Engordei.Emagreci.Formei-me monja especial. Fiquei oito anos no mosteiro e participei de um

treinamento específico para futuros professores e professoras de mosteiros. Fuiprotegida e abençoada por algumas mestras e por alguns mestres. Supereibarreiras.Atingiobjetivos.Depois que casei, voltei ao Brasil. Trabalhei num templo da colônia japonesa.

Abriotemploatodososbrasileiros.Fuirenegada.Tivedesair.Abrimeupróprioespaçodeprática.Ficoupequeno.Mudamosparaumlocalmaior.Ficoupequeno.AgoraestamosnumacasanoPacaembu.Acasademinhainfância,deondesaíaos14 anos de idade. Retorno e faço dela um templo. Um local sagrado. Local demeditar,de encontrar a essênciado ser.Tenhodiscípulos ediscípulas em todooBrasil e na Europa. Tenho dissidências e pessoas que me questionam – seriaminimigos?Não!EmmeuuniversoBuda,nãohá inimigos.Háapenasbodisatvas–seresiluminados,disfarçados,anosmostrarocaminho.

Postura.Posturacorreta.Nãoépose.Nãoéapenasumaposição.HádeseraposturaBuda.

Ramadã

“Alá!Alá!Alá!”Ramadã em Abu Dabi. Pela televisão, vejo Meca e os milhares de peregrinos

louvando aAlá.Homensde branco. Eventualmentepassamalgumasmulheresdepreto.Nohotel,tomamosocafédamanhãescondidos.Ninguémdevecomerdepoisdo amanhecer. Somos turistas, viemos de horários e culturas diferentes.Mesmoassim, a lei exige que todos cumpram o jejum. É proibido comer ou beber águaduranteodia.Pode-sefazê-loantesdoamanhecerouapósopôrdosol.Pela cidade, ouvimos os sons das mesquitas convidando as pessoas à oração.

Gosto disso. Nossa viagem ao Japão é uma viagem de teor religioso. Vamosconhecertemplosemosteiros.ComomepareceuadequadochegaraAbuDabiemplenoRamadã.Quantasluas?Seteluas?Quarentaenovedias?Nãotenhocerteza.Fomos visitar uma grande mesquita. Riquíssima e belíssima. Uma senhora

levantouasmãosemoraçãonadireçãodoqueseriaolocaldeoreligiososesentar.Logo vieram os guardiões damesquita dizer: “Aqui é proibido orar. Visite comoturista”. As orações eram reservadas para horários especiais. Aquele salão eraapenasparahomens,que,semdistinçãodeclassesocialouposiçãopolítica,ficamombrocomombroorandoeseprostrando,formandoumcorpouno.Asmulherestêmáreasseparadas,nosfundos,algumaspartesfechadasporparedesdemadeiraentalhada.Burcas e roupas pretas escondendo belezas e feiuras. Cabelos, narizes e bocas

cobertas.Óculosescuros.Lojasdeprimeiromundo,grandesmarcasinternacionais.Joiase joiasraras.Carrosenormes.Famíliasgrandes.Homensdebrancoseguidospor mulheres de preto. Alguém as viu no banheiro público. Lindas, maquiadas,elegantes,comjoiasraras.Numedifício, descobri a sala de orações feminina. Entrei. Cobriminha cabeça

commeulençobranco.Umajovemsenhoraselevantouemedeuumasaiaeumaburcacoloridaparavestir.Cheiravaacabelosujo.Fiqueisóalgunsminutoselogosaí.Ajovemquemeconvidarafalavanocelular–aindanãoeraahoradaprecenaSaladeOração.Meditei.

Percorrishoppingcentersquasefantasmagóricos.Pouquíssimaspessoas.Soube,depois,quetudocomeçarianopôrdosol.FuiaoFerrariPark,certadequepoderiaandar na maior montanha-russa do mundo, commotor Ferrari. Estava fechado.Haviaapenasalgunsbrinquedosabertosparapoucosturistasdesavisados,comoeuemeudiscípulomaisjovem,oMongeDaiko,quemeacompanhava.Ramadãnãoéépocaderisadas,cantos,divertimentos.Éépocaderecolhimento.Atéopôrdosol.Jantei no hotel, um banquete que se iniciava com tâmaras. As tamareiras são

árvores sagradas do deserto. A punição é grave para quem bate o carro numatamareira. Estavam lindas, carregadas. Tâmaras de várias cores e tamanhos.Algumasenormes,macias,doces.Quando me recolhi a meus aposentos, algumas pessoas do grupo foram aos

shoppingse,nodiaseguinte,mecontaramsobreumgrandemovimento,músicas,olharesfortes,profundosesedutoresentrehomensemulheres(deburca),falaramdascomidas,dosbanquetes.Tudotãodiferentedoqueencontreiduranteodia.Na manhã seguinte, fui nadar. Uma pequena praia do hotel. Eram 6h30 da

manhã e tive de esperar até as 7h, quando o salva-vidas nos permitiu entrar nomar.Surpresa.Eraquente,muitoquenteemuitosalgado.Estranho.Diferente.Resolviseguirasregraslocais.Comiabemcedoesódepoisdopôrdosol.Fez-

mebem.Quebrar o jejum com tâmaras e frutas secas.Não bebo álcool de formaalguma,nemfumo.Estavabem.Águapuramebasta.Passavaodiasembeberágua,apenas engolindo saliva. Por quê? A professora Lia Diskin, da Associação PalasAthena,foiquemmeexplicou,diasdepois,quandonosencontramosnumvoodeBrasília para São Paulo: “O profetaMaomé foi feito prisioneiro em casa de suaamada. Ele e um grupo de companheiros. Sem água e sem comida, suacompanheiramorreu, bemcomoalgunsde seusparentes e amigos. Passaram-semuitos dias, 40, talvez. Finalmente ele conseguiu fugir, ao anoitecer. Por issotodos, relembrandoos dias emque oprofeta estevepreso, semalimentos e semágua,fazemomesmo”.Senti por, antes da viagem, não terme preparado para sabermelhor sobre o

islamismo.

QueAláprotejaatodosqueNeleconfiamsuavidaesuafé.

Kôan

“Qualéosomdeumasómão?”Esseéumkôanantigo.Kôansignificaliteralmentecasopúblico.Referia-seaos

editaisqueosimperadoresmandavamafixaremlocaispúblicosnaChinaAntiga.Asperguntasqueosmestreszenfaziamaseusdiscípulos,paraosprovocarairmaisfundo,apenetrarosensinamentos,passaramaserchamadasdekôans.Qualosomdeumasómão?Aperguntaprincipalé:doqueestamosfalando?Do

somdouniverso?Dosomdamãobatendoosdedos?Quemãoéessaequesoméesse?Hápraticantesquelevamseteanospararesponderaessapergunta.Cabeaomestre decidir quando realmente compreenderam e quando estão apenas nascercaniasdoreal.Háváriasescolasbudistase,entreessasváriastradições,existeozen-budismo.

Apalavrazenoriginalmentevemdedhyanaou jhana,queoschinesespassaramachamardech’aneparaaqualcriaramumcaractere,queosjaponesesleemcomozen.Dhyanaoujhanaémeditar.Masumameditaçãosemobjeto.Nãoémeditarsobre

avida,sobreamorte,sobreDeus,sobreBuda.Éumestadodepresençaabsoluta.Oeu com o próprio eu. Observado, observando, observador – todos são a mentehumana.Atradiçãozen-budistatematualmentetrêssubdivisões:Obaku – quase completamente extinta, ainda mantém um templo nas

proximidadesdacidadedeUji,emQuioto,noJapão.Rinzai – com muitos mosteiros e templos principais localizados em Quioto,

baseiasuapráticanoestudoeaprofundamentodoskôans,de formasistemáticaeprecisa.Sôtô – possui dois mosteiros principais, um em Fukui e outro em Tsurumi.

Baseiaapráticaemshikantaza(apenassentar).A ordem a que pertenço é esta última. Foi trazida da China para o Japão no

séculoXIII,porMestreEiheiDôgen,econtinuadacomgrandeexpansãonoséculoXIV por seu neto sucessor, Mestre Keizan Jôkin. Ambos são considerados os

fundadores da ordem e cada um é representado por um templo-sede: Eiheiji eSojiji. Há ainda cerca de outros 8 mil templos, 30 mil monásticos e mais de 8milhõesdeadeptos–sónoJapão.DepoisdaSegundaGuerraMundial,aordemseexpandiuparaEuropa,Estados

Unidos,Canadá,AméricadoSuleAustrália.NaAméricadoSul,oprimeirotemplofoi construídona cidadedeSanVicentedeCañete, a cercade 120quilômetrosdeLima,noPeru.NoBrasil,oprimeirotemplo,Zenguenji, localiza-seemMogidasCruzes,enossasedeadministrativaparaaAméricadoSulficanotemploBusshinji,nobairrodaLiberdade,emSãoPaulo.Atualmenteháváriosoutrostemplosecentrosdepráticaespalhadosportodaa

AméricaLatina.Algunsutilizamoskôans;outros,não.Oficialmente,aSôtôShûnãousakôans comométodode treinamento.MeuprofessordeordenaçãonosEstadosUnidos, Maezumi Rôshi, usava kôans. Ele criticava pessoas que insistiam emafirmar queMestreDogen, o fundador, recomendasse shikantaza: “Quantas vezesessapalavraapareceemseustextos?Pouquíssimas.Noentanto,amaiorpartedeseutrabalhoestácentradanaexplicaçãodekôansantigos”.QuandopratiqueinoZenCenterdeLosAngeles,fizgrandepartedosprimeiros

100kôansqueMaezumiRôshicompilaraeapreciava.DepoisfuiaoJapãoeapenasmesenteiemZen,deixandooskôansdelado.Atualmente,utilizoparaumououtropraticante,afimdeestimularsuaprática.Muitasvezes,o(a)praticanteentraemumaplataformaenãoconsegueavançar.Okôanpodeservirdealavanca.

Qualosomdeumasómão?Semseprenderàspalavras.Qualosomdeumasómão?

Dependedoseucoração

Nyoze.Nyoze.(Assimcomoé.Assimcomoé.)

Todos osmeses, oMestre Yogo Rôshi vinha aoMosteiro Feminino deNagoiapara liderar nosso retiro. Nós, monjas em treinamento, muitas vezes nosestressávamosnaspreparaçõesenosirritávamosumascomasoutras.Entretanto,no dia de sua chegada, como num passe demágica, ficávamos gentis, educadas,bondosas. Isso me surpreendia. Acontecia com todas nós. Mesmo antes de elechegar.Comsuapresença,então,nostornávamosserescelestiais.Yogo Rôshi falava inglês, e fui perguntar a ele o porquê dessa situação. Eu

também gostaria de ser assim, de ter essa capacidade de trazer harmonia só depensarememmim.“Tudodependedoseucoração”,merespondeu.Quandochegueiaomosteiro,tambémforavisitaraantigaabadessa,queestava

nohospital.Elapediraqueeulevasseumpoema,mostrandominhacompreensãodos ensinamentos. Fui com uma colega japonesa que falava inglês. Ela traduziupara a idosa abadessa, em seu leito hospitalar. Sem aprovar ou desaprovar, amestramedisse:“Apráticadependerádoseucoração”.Meu coração. Em japonês, a palavra é kokoro ou shin, duasmaneiras de ler o

mesmocaracterechinês.Kokoroéaessência,aalma,oâmagodoser.Todaanossavida,amaneiracomovivemos,comotratamosaspessoasecomosomostratadas,dependedenossokokoro?Há um praticante que reclamamuito emminha comunidade. Ele reclama de

tudo. Sempre encontra doenças, problemas, obstáculos. Se vai a uma farmácia,acaba brigando com o farmacêutico. No trânsito, está sempre envolvido emconflitos. Sua vida familiar é de desentendimentos e sofrimento. Veio me pedirorientação,e lherespondi:“Tudodependedoseucoração”.“Falemais,Sensei,asenhoratambémvaidizerqueaculpaéminha?”Acrescentei:“Nãoébemassim,maspartedaresponsabilidadeésuatambém.Oseucoraçãosignificatambémasuamente,assuasexpectativas.Vocêéumhomeminteligente,talvezmaisinteligentequeamédiadaspessoas.Issolhepoderiaservantajososevocênãoesperassedos

outrosasrespostasquenãopodemdar.Entretanto,vocêsetornaapalmatóriadomundo.Quer sero transformadordahumanidade. Se cometemerrosno trânsito,vocêbuzina,reclama,gritaeacabaentrandoemencrencas.Nafamília,esperaqueseusirmãossecomportemdamaneiraqueelesnãoconseguem.Consideratodasaspessoas burras, grosseiras e estúpidas. De certa forma, você está estimulando apartenegativadessaspessoas. Se seu coraçãonada esperar, se suamente estiversem nenhuma expectativa, poderá observar com maior grandeza o que estáacontecendo”.Seriaelecapazdemeouvir?Estariacompreendendooqueeudizia?Seuolhar

estavadistante.Afastou-sedacomunidadeporunstempos.Eunãoocompreendia.Omundoeramau;aspessoas,rudes;elesofriamuitoenãotinhanadaavercomisso. Lembrei-me de quando eu reclamava para a superiora domosteiro sobre ocomportamentodasoutrasmonjas,eelasempremerespondia:“Dependedevocê”.Asuperioranãoestariameentendendo?“Nãosejadeporcelana.Porcelanaquebra.Sejacomoaágua,quetomaaformadovasoqueacontém.”Sercomoaágua?Eume considerava água, me considerava macia e correta. As outras eram rudes,estavamerradaseeucaminhavadecenhocerrado.“Sorria. Uma face sorridente transforma o ambiente.” Assim a superiora

autografara um de seus últimos livros. Ela trabalhava tanto. Era a primeira a selevantareaúltimaasedeitar.Durantetodoodia,escrevia,recebiapessoas,faziapalestras,davaaulas,participavadasmeditaçõeseliturgias.Nasnoitesdebanho(eeramsódequatroemquatronoitesquenosbanhávamos),ela,quedeveriaseraprimeira a entrar para apreciar a água quente e limpa, fazia questão de ser aúltima.Estavaocupada,escrevendo,atendendoasmonjasreclamonascomoeu.

……

Háumahistóriaantigadeumnoviçoqueentrounummosteiromuitograndeefamosopela prática correta.O abade sópodia falar comcadamongeumavez aoano. Na primeira entrevista, perguntou ao jovem se tudo estava bem, e elerespondeu: “Não estou acostumado ainda com os horários de meditação. Tenhodormidomal”.Passadoumano,novamenteoabade fezamesmapergunta,eelerespondeu: “Recentemente tive diarreia. A comida do mosteiro nem sempre seassentabem”.No terceiroano,aoentrarnasaladoabade,disse:“Senhor,quero

agradecer, estou indo embora”. E o abade respondeu: “Claro, você só reclamoudesdequechegou”.Aoportunidadedefalarcomomestre,apenasumavezporano,eleadesperdiçarafalandodesimesmo,reclamandodavida.ARegra34deSãoBentodizqueéproibidoreclamar.Éproibidoresmungar.Até

mesmoomurmúriocorretoéproibido.Quãosábioeverdadeiro.Perdemosgrandeparte da vida e da experiência da vida resmungando, reclamando, murmurando,querendo que fosse diferente. Deixamos de apreciar o que é, assim como é. Porisso,meumestredetransmissão,YogoRôshi,dizia:“Nyoze!Nyoze!”.

Assimcomoé.Assimcomoé.Apreciemosnossavidaenossasexperiênciasdevida.Quenossocoraçãomente,nossokokoro,seja sensível e ternoaooutro, às outras pessoas e aosoutrosseres,poiselessãoapenasumreflexodenossopróprioser.

Mestreediscípula

“Agoraeuoconheço.Agoraeuoconheço.”Memorialde49diasdoMestreMaezumiHakuyuKounTaizanRôshi,fundador

doZenCenterdeLosAngeles.Suadiscípulafavorita,aquelaaquem,entretodos,elemaissededicouaensinar,estáfalando.Hátantaspessoasreunidasnosjardinsdo Zen Center. De todas as partes do mundo. Monges, monjas, leigos, leigas.Tristeza.MortesúbitaemTóquio.Eleacabaradeliderarumretiroemquerepresentantesdosváriosgruposzen-

budistasdosEstadosUnidossereuniram.Seusonhoestavaserealizando.Queriaaunidade, a harmonia entre todos. Era a única possibilidade de conseguir oreconhecimentoeaaprovaçãodasautoridadesreligiosasdoJapãoparaoscentrosdeprática,osmosteirosondenorte-americanos reconstruíamoZenVerdadeiroepurodosBudasAncestrais.Fora um grande esforço e uma grande alegria. Terminados os três meses

intensivos, como fazia todos os anos, iria ver as cerejeiras em flor. Entretanto,quando chegou ao aeroporto, o funcionário notou que lhe faltava o visto para oJapão. Ele se tornara cidadão norte-americano. Que coragem. Cidadão do paísinimigoquedevastaraaterradeseusancestrais.QuandoseuirmãomaisvelhovisitouacomunidadedeLosAngeles,suapalestra

eraaindacheiaderancoresetristezas.Falavadaguerra,dasbombas,dafome,damisériaemqueopaísficou.Decomotodossofreramtanto.Aaudiênciasuspirava.MaezumiRôshijamaisreclamavadopassado.Viviaopresentecomintensidade.

Não gostava de comer batatas “porque comi batatas demais durante a guerra”.Depois da palestra, os irmãos foram para a casa do mestre. Outros dois irmãosestavam lá, mais sua esposa norte-americana e sua primeira filha. Jantaram ebeberam.Beberamtantoquebrigaramequaseseagrediramfisicamente.Aesposaea filha dormiam. Eu era a atendente. Ouvindo as vozes, entrei no aposento ondeestavameinterferi:“Mestre,porfavor.Lembre-sedequeosenhoréummonge.Não bata nele”. Separaram-se. O irmãomais velhomuitome agradeceu e disse:“Seequandoprecisardealgo,contecomigo.Vocêsalvouminhavida”.Semdúvida,

umexagero,masnuncapediaajudadeque tantoprecisei e continuoprecisandoparaminhacomunidadezen-budistanoBrasil.Nodiaseguinte,comosenadahouvesse,fizeramjuntosarefeiçãodamanhã.Os

irmãos foram passear e Maezumi Rôshi, trabalhar. Mais tarde, levou-os até oaeroportoesedespediramcommuitasreverênciaseencostandocabeçacomcabeça.Maezumi Rôshi gostava da jardinagem. Sabia podar as plantas. De camiseta e

boné, ficava horas e horas nessa atividade. Um de seus grandes alunos uma vezcontou a todos: “Quando vim aqui pela primeira vez, encontrei o jardineiro.Perguntei a ele sobre omestre zen, e ele disse que jamais o vira por ali. Fiqueisurpreso. Fui perguntar a outras pessoas que estavam por perto e soube que ojardineiroeraele”.A primeira vez em que o encontrei foi em sonho. Estava no zazen para

iniciantes, voltada para uma sala separada da que eu estava. Ocorreu-me umpensamento estranho. Eu estava aqui por causa dele. Quem era ele? Ao sair dameditação, vi ummonge todo de branco entrando na outra sala e deixando suassandáliasnaporta.Oquefoiisso?Umsonho?Umavisão?Umafantasia?Atéhoje,nãoseiresponder.MaezumiRôshinuncaentrarianaquelasala,debranco,àquelahora.Aportacostumavaserfechadapordentro.Mongessevestemdebrancoparacerimôniasespeciais.Meses depois, tive uma entrevista individual com ele. Me parecia um ser

enorme,umhomemgrande.Naverdade,eramaisbaixodoqueeu.Penseiestarnapresençadeumdragãocelestial.Suasvesteseramverdes/azuis.Eleeraimenso.Mais tarde,pediparaser freira.Elemedissequenãohavia freirasali,apenas

mongesemonjas.“Entãoquerosermonja”,falei.“Vamosver”,respondeu.Quemquisessesermongeoumonjapassavaumanocomoseuassistentepessoal.Assimfuiconvocada.Acordavaantesdetodosnacasa.Preparavaochádomestre,osucodaesposa,a

mamadeira do bebê que acabara de nascer. Lavava o arroz, preparava a sopa e oesperava lendo um trecho do Shôbôgenzô (livro de ensinamentos do fundador danossaordem).Quandoeledescia,ajudava-oaterminardesevestir,tomávamosochájuntos.

Euacendiaváriosincensoseoseguia.Eleiacolocandoincensoemtodososaltaresdotemplo:dojardim,dacozinha,dasaladosfundadorese,finalmente,dasaladezazen–que,nessaépoca,ficavalotadaàs5h20damanhã.Percorriaasaladeponta

apontaantesdesesentar.Recebia todas aspessoasque o solicitavam, fazia entrevistas individuais, dava

palestras, lia, transmitia os ensinamentos aos seus discípulos mais antigos. Vimestres fundadores sendo treinados. Sou antiga. Tenho mais de 30 anos nestaestrada. Alguns já morreram, se foram. Eu continuo levando a luz que me foiconfiada.Havia ciúme entre os discípulos e discípulas. Uma grande família. Todos

querendooamordopai.Amonjaquechoravaedizia“Agoraeuoconheço”tinhalivreacessoaomestre.Estavanoprocessodetransmissão.Elesseamavam.Depoisdeminhaordenação, fuiparaomosteirono Japão.Alguémmevisitou

dizendo que houvera cisão, brigas, confusão. Que muitas pessoas tinham seafastado. Continuei minha prática em Nagoia e o via uma vez por ano, quandochegavaparaapreciarascerejeirasemflor.Entretanto, dessa última vez, eu estava voltando para o Brasil. Cada minuto

contava.Maezumi Rôshi perdera o voo. Chegaria só no dia seguinte. Questão devisto.Faleicomeleportelefone.Ascerejeirasfloriam.Poucosdiasdepois,veiootelegrama: “Maezumi Rôshi morreu em Tóquio”. Tentei conseguir visto para oJapão.Impossível.Sósefossemeupai.“EleerameupainoDarma”,argumentei.Masdenadaadiantou.Noseumemorialde49dias,euestavalá.Ajudeiatransporseusrestosmortais,

umapequenafalangedesuamão,deumaurnaparaoutra.Anokutara sammyaku sambodai (perfeita e completa iluminação) era sua frase

favorita. Em seu último discurso, dissera ao final: “Rogo que continuem estatransmissão”.Assimotenhofeitoeassimofarei.

Degeraçãoemgeração,agradeceremossuavida,suapráticaeaternuradeseuafeto.

Olhosdemar

Meditarécomoentrarnomar.Noinício,sópercebemosasmarolasàbeiradapraia.Masomarnãosãoapenasasmarolas,emboraasmarolassejamomar.Damesmaforma,hápensamentos,estímulosdetudooquerecebemosdesdeantesdenascer,quepodemsurgiremnossamente.Observamos.Assimcomoobservamosasmarolasantesdeentrarnomar.Depois

sentimos a água nos pés e as marolas se quebrando em nós. Sentimos ospensamentos...sentimentos...Maisadiante,sãoondasquechegam.Hámarestranquilosondepodemosnadar.

Outrosondeapenaspodemospular.Hámaresquentes,mornosefrios,gelados.Hámaresverdes,azuis,dourados.Maresbrancospelaluzdoluar.Eaespuma,espumadomar.Aprendemos a nadar. Escolhemos um grupo, uma tradição meditativa e

seguimosasinstruçõesdealguémquesaiba.Flutuamos, boiamos, batemos o pé. Usamos boias, alguém nos segura pelas

mãos.Acomunidade,chamadadeSanga,aspessoasquepraticamjuntas.Ossinos,os

encontros,asconversas,oslivros.Aprendemosanadar.Ainda não podemos ir sós a praias desertas. Vamos com outras pessoas, nos

retiros,como(a)salva-vidasanosobservar.Podehaverpeixesnomar.Algas-marinhas.Podehavertubarõeseáguas-vivas.

Porisso,o(a)salva-vidascolocaavisosenosindicaomelhorlugar.Entramos nomar, pulamos as ondas, mergulhamos por cima e por baixo da

arrebentação.Vamosmaisfundo.Háquemolhepornós.Se houver correntezas, cuidado. O mar é bonito, o mar é malvado. Arrasta

pessoascomotroncosquebrados.Umdiaconseguimosmergulharbemnofundo.Commáscara,semmáscara.Com

oxigênioesemar.

Mergulhamosenossentimosumagotadeáguadomar.Jánãoháumeu,umaágua,umajangada,umabolha.Apenasoestarpresenteeinteiracomtodaavida.Masnãoficamoslá.Háondasenormesparasurfar.Éprecisosaberseequilibrar.

Paraadireita?Paraaesquerda?Temos,sim,devoltar.Voltarparaapraia.Voltaraobservaromar.Asondas,asespumas,asmarolas.Sentadosnaareia,pernascruzadas.Zazen.Voltandoasergente.Olhandoopassado,ofuturoeopresente.Comolhosverdes.Olhosimensos.Olhosdemar.

Rafaela,olhosdemar,éminhaneta–mãedemeuprimeirobisneto–,queamasurfar.“Omaréminhavida,minhavidaédomar.”

Quandoonossoolharsetornaimensoeprofundocomoosoceanospassamosaconviveremharmoniacomtudoecomtodos.Somosdamesmamatéria-primaeestamosinterligadosacadapartículacósmica.Aprecie.

Amanifestaçãodaverdade

Omosteiro estava dividido. Osmonges quemoravam do lado oeste discutiamcomosdoladoleste.Discutiamsobreaverdade.Deumlado,defendiamavisãodoabsoluto.Dooutro,adorelativo.Brigavamefalavamalto,quandooabadechegou.Nansenerasevero.Nopátiointerno,chamouosdoisgrupos.Havia um único gato nessemosteiro. Todos osmonges amavam o gatinho. O

mestre Nansen, segurando o gato pelo pescoço, gritou: “Digam uma palavraverdadeira e a vida do gato será salva”. Nansen segurava uma espada na mãodireita.Todosficaramdebocaaberta.Amavamogato.Novamenteomestredisse,quaseempranto:“Manifestemaverdade”.Silêncio.Omestredecepouacabeçadogato.Algumas horas depois, o monge Joshu chegou de uma caminhada. Todos

pareciamconfusosetristes.Foifalarcomoabade.Nansencontouoocorrido.Joshunão disse nada. Tirou a sandália do pé e a colocou sobre a cabeça. E foi emboraassim. Todos os monges o viram e Nansen, o abade, comentou: “Ah, se eleestivesseaqui,ogatoteriasidosalvo!”.Muitasvezes,énecessárioquefaçamosumgesto,ummovimentoquemanifeste

a verdade. Para que tantas discussões inúteis? O gesto de Joshu manifestava arealidade. No Brasil, usamos a expressão “trocar os pés pelas mãos”.Analogamente, Joshu colocouospés sobre a cabeça.Esse é o comentário sobre aatitude do abade, matando o gato. Essa é a manifestação de um gesto real,verdadeiro,quesalvariaogato.Há outra história semelhante. O abade reuniu todos os monges e declarou:

“Temosumproblema.Ganhamosestevasoenãosabemosoque fazercomele”.Logo os grupos se dividiram. Deveriam colocar aqui ou ali? Não chegavam anenhuma conclusão. Um dos monges se levantou, foi até o vaso e o partiu empedaços.Faz-melembrarahistóriadeSalomãocomasduasmulheresquediziamsera

mãedamesmacriança.Parasecertificar,elesugeriu:“Vamoscortaracriançaaomeioecadaumaficacomametade”.Aoqueamãeverdadeirareagiu:“Não!Ela

podeficarcommeufilhointeiro”.

Oquevocêfazparaprotegeranatureza,avida?Discursa,debate,gritaoutomaatitudesadequadasdetransformação?

Transformar-separatransformar

“Devemosseratransformaçãoquequeremosnomundo.”Essa frasedeMahatmaGandhi temsidoumguiaparamim,pormuitosanos.

TemsidousadaatéparamelhorarotrânsitoemSãoPaulorecentemente.Elaservepara inúmeros aspectos de nossa vida. Como queremos viver depende de comovivemos.Temosdeseressamudança.Nemsempreéfácil.Temoshábitosdecomportamento,defala,depensamento.

Quebrarumhábitoédifícil,requerplenaatenção.Porexemplo,tenhorugasnatesta.Seeudecidirquenãoasqueromaisfundas,

vou ter de fazer grande esforço para modificar a maneira como utilizo amusculaturadaface.Hátantosanosfaçoessesmovimentosque,paraosmodificar,terei de usar algum meio expediente. Posso colocar uma fita adesiva, que,impedindoomovimento,meajude.Possoaplicarbotox–oqueseriaumaatitudeextrema. Posso desenvolver minha atenção e modificar meus hábitos. Isso éimportante.Quando as pessoas chegam até mim e dizem: “Eu sou assim”, já estão

apresentandoumproblemaquaseinsolúvel.Congeladasnumaideiadesimesmas,são incapazes de trabalhar para que haja qualquer alteração em comportamentosseusquepodemnãoestardandocerto.“Eusouassimmesmo,falooquepensoepronto.Souverdadeira.”Essasenhora

estava muito só. Sim, ela falava sem se preocupar se as outras pessoas semagoavamounão.Reuniaamigosefamiliaresemsuacasa,massempretinhaumapalavrarude,umcomentárioácidoeespinhoso.Aospoucos,aspessoasdeixaramdeaceitarseusconvites.Eelafoificandosó.Veio me procurar para se lamentar do mundo, das pessoas, das irmãs, dos

genros, das filhas. Todos estavam errados, todos tinhamdefeitos graves. Ela nãoconseguiaverasimesma.Nãoconseguiasermaciaegentil.Ascausasecondiçõesdesuavida,váriossofrimentosqueatravessaradesdeainfância,atornaramassim,secaeáspera.Mas,sobessacapadeproteção,haviaameninaabandonada,carente.Haviatantasperdasdesonhosedepessoas.Diferentementedequemsefechana

tristezadoluto,elasefechavanasflechadasquelançavaatodosàsuavolta.Lembrei-medeminhamestranomosteirodeNagoia.Com2anosdeidade,fora

entregueàsuatiamonja.Trabalhavamuitonotemplo.Estudava.Tornou-seumapessoadoceeamorosa.Passaraporgrandesdificuldadesesofrimentos,incluindoaSegunda Guerra Mundial. Fome, miséria, mortes, doenças. Mas a vida a tornoumaciaequente.Aoutrasenhora,noentanto...Comoajudá-la?Seriacapazdemeouvir?

……

Certa feita, uma senhora ilustre foi pedir auxílio aomonge do templo de suafamília.Ficoumaisdeumahoraapenasreclamandodanora.Estaera inadequadaemtodososaspectos,segundoasogra.Omongeouviuatéqueelasecansassedefalar e,no final, apenasdisse:“Lembre-sedequeumdiaa senhora tambémfoinora”.Passadosalgunsdias,anoraveioaotemplo.Assimcomoasogra,ficoumaisdeumahorareclamandodaoutra.Quenãoacompreendia,queexigiademais,quetudooqueelafaziaestavaerrado.Falouefalou.Quandoterminou,omongeapenasdisse:“Umdiavocêtambémserásogra”.

……

Os índiosamericanos costumamdizer:“Vivaumdia emmeusmocassins”. Sepudermos compreender as dificuldades e sofrimentos pelos quais as pessoaspassam,sepudermosconheceroscinzéisquevãodesenhandocomportamentoseatitudes,seremoscapazesdeacolhertodaequalquerpessoaemnossocoração.Eatransformaçãoestaránonossocomportamentoeatitude.Sequeroarualimpa,nãovousujarevoulimpar;nãosóaminhacalçada,mas

posso estender para a da vizinha quenunca a limpa. Emvez de reclamar dela–“preguiçosa,suja”–,possoajudar.“Ah,mascomissovaiserpior.Elanuncavaifazer nada mesmo.” Pode ser que sim, pode ser que não. Claro que não temostempodevarreracidadetoda.Maspodemoscomeçar.Seroexemplo.Manteraltooníveldeenergiavital.Há pouco tempo, assisti ao filme sobre a vida de Nelson Mandela. Fiquei

admirada. Principalmente ao notar que ele se recusava à violência, depois de terficadotantosanospreso.Nacadeia,exercitou-sefísica,mental,moralmente.Saiu

umserhumanomelhor.Tornou-sepresidentedopaís.Sabianegociar.Terminoucomadiscriminaçãoracial.Abriuportaisdecomunicaçãoentrepovos.Tornou-seatransformaçãoquequerianomundo.MahatmaGandhiviviadeformasimples,usavaumtearparafazersuasroupas.

Dizemquecertavezestavaemumencontrocomgrandespolíticos,decidindosobreofuturodaÍndia.Emmeioaumaconversacalorosa,pediulicençaefoiordenharsuascabras.Anecessidadedelaseraprementeeseucoraçãoestavaatento.Damesmamaneira,DomHélderCâmara,emmeioaumareuniãocompolíticos,

notouquealguémbateraàportadasacristia.Eraumamulherconhecidaporvendero corpo. Ficou horas conversando com ela. Quando voltou, os políticos estavambravos.Eleapenasdisse:“Elaprecisavafalar,sofria”.

……

TantonoJapãoantigoemodernoquantonoBrasil,hámuitasemuitashistóriasdebondadeecompaixão.Umladrãoentrounumtemploerouboutodasasimagenseobjetosdevalor.Quandofoipreso,omongedisse:“Eudeiaele,nãofoiroubo”.Oladrão,recebendoessegestodeacolhida,tornou-seumhomembom.Na casa de Dom Hélder, entrou um ladrão uma noite. Ouvindo barulhos na

cozinha,eledesceu.“Ah,você,comoeu,temfomenomeiodanoite.Vamoscomerjuntos?” O ladrão ficou assustado. DomHélder preparou alguns ovos com pão ecomeram em silêncio. Antes de o homem ir embora, Dom Hélder encheu duassacolascomcomidae,conduzindo-oatéaporta,disse:“Sejasemprebem-vindo”.Ryôkan-sama, monge japonês do século XVII, morava numa casinha de

montanha. Vivia emgrandepobreza. Certanoite, acordou comapresença deumladrão.Esteestavaatordoado,poisnãohaviaoqueroubar.Omongeentregouaelesuacoberta.Sentou-senavarandaaobservaraluaedisse:“Sepudesse,eutedariaobrilhodoluar”.

Ser a transformação que queremos no mundo pode começar com uma pose, umaimitação.Algumaspessoasficamapenasnasuperficialidadedacópia.Outrassãocapazesdeincorporarasatitudesemsuavida.Quetenhamosacapacidadedenostornaratransformaçãoquequeremosnomundo.

Transitoriedade

Quandofuirealizarsozinhaoprimeirovelório,nacidadedeSapporo,nailhadeHokkaido,bemaonortedoJapão,oabadedotemplomeperguntou:“Oquevocêvaifalaremseusermão,depoisdaspreces?”.“Voufalardatransitoriedade.Dequenãohánadafixonempermanente.”“Uh”,disseele,“sóissonãoésuficiente.Falemais.Váalém.”Fuiparaovelóriopreocupada.Sempreoacompanhava,eeraelequemfalava.Eu

guiavaoseucarro,umgrandeToyotapretocomtodososequipamentosmodernosda época. O carromais caro e demaior luxonaquelemomentono Japão.Guiavalentamentepelasruascobertasdeneveedegelo.Essa noite eu deveria ir só. Primeiro havia o estranhamento de eu não ser

japonesa, de ser mulher e de não falar japonês perfeitamente. Mas era minhaprática, e eu conseguiria. Enchi-me de coragem. Rezei com todo o fervor pelafalecida.Suafotonoaltaràminhafrente.Umaltarqueficavasobreumpalcocomfloresdepontaaponta.Floresbrancas.Ocaixãoquasequeescondidoemmeioatantas flores. A cabeça para o norte.Ninguém se aproximava do caixão, pois eleestavadistantedetodos.Familiares,amigoseconhecidosofereceramincenso.Umapessoa falou com a falecida, chorando, se despedindo, em nome de todos ospresentes.Chegaraminha hora de falar. Transitoriedade e interser. Universo de causas e

efeitos.Levantei-me.Asalaera imensa,estavalotada.Notetohaviaapinturadeumcéuazulenuvensvoavamatravésdeumaprojeçãoespecial.Do ladode fora,um piano tocava,movendo as teclas sem que um pianista ali estivesse. As salasparavelóriosnoJapãosãodegrandeluxoeesplendor.Colunasenormes,salõesesalões.Olheiparaaspessoas,amaioriadepreto.Haviamulherescomquimonospretos

nosquaisosbrasõesdasfamíliasestavamimpressosembrancoepreto.Roupasdeluto. Homens de terno preto e gravatas pretas.Mas eu precisava irmais fundo.Olheinovamenteevi sereshumanos tristes, saudosos.Lembrei-medoabade,desuaspalestras.Lembrei-medenossasuperioradomosteiro,quesemprefalavade

Buda nesses momentos. Lembrei-me do monge de Tóquio, abade do templo deKirigaya,ondealgumasvezeshaviaatétrêsvelóriospordia.Inspiradaportodos,eprincipalmenteporBuda,MestreDôgeneMestreKeizan

– os fundadores de nossa ordem religiosa –, comecei a falar. Falei pouco epausadamente.Queriaquemeouvissemeentendessem.Minhapresençasempreossurpreendia. Algumas vezes ouvia murmúrios ao passar: “Será homem? Serámulher?Temalturadeumhomem,masacabeçaé feminina”.Semme importarmais sobre quem eu era, de onde viera, os ensinamentos foram saindo comnaturalidadeeleveza.Budamorreucom80anosdeidade.Amesmaidadedafalecida.Antesdemorrer

reuniraseusdiscípulosmaisqueridosefizeraseuúltimosermão:“Tudooqueseune, umdia se separa. Façamdos ensinamentos o seumestre, e eu viverei parasempre”.Somosa continuidadedenossosancestrais.Umpoucodenósmorre comessa

morte.Muitodessavidaviveemnós.Honrarnossosmortosévivercomdignidade,éprocuraroCaminhodeBudaefazerobematodososseres.Faleiporcercadedezminutos.Sobreoarrependimentoquenospurifica,sobre

o refúgio ou abrigo nas Três Joias (Buda, Darma e Sanga), sobre a vida ética,seguindo os Dez Graves Preceitos (não matar, não roubar, não abusar dasexualidade, não mentir, não negociar intoxicantes, não falar dos erros e faltasalheios,nãoseelevarerebaixarosoutros,nãosermovidopelaganância,nãosercontroladopelaraiva,nãofalarmaldosTrêsTesouros).Ofereceram-me chá e sushi na sala onde eu me trocava, antes de sair. Os

familiaresmaispróximosvieramsedespedireagradecer.Soubedepois,peloabadedotemplo,queafamíliaficaramuitogrataepediaque

euorassenascerimôniasseguintes:de7,de49ede100dias.Assimofiz.Entravanacasa,quemantinhaasportassempreabertas,semtrancas.Erauma

casagrandeeaquecida.EmSapporo,hánevedurantecercadeseismesesporano.Deixavameucarroligadonaporta,paraqueosvidroseespelhosnãocongelassem.Ninguémnuncatentouroubar.Aoentrar,erarecebidacomrespeitoeconduzidaaoaltarfamiliar.Atéquesecompletem49dias,osrestosmortais,cinzasepequenospedaçosde

ossos,vindosdacremação,bemcomoafotografiaquefoiusadaduranteovelório,comumafitanegranamoldura,sãocolocadosemumamesa,comofertasdevelas,

flores,incenso,alimentos,águaechá.Fazia as orações devidas, as dedicatórias adequadas. Ao terminar, falava um

poucodosensinamentosdeBuda,daaceitaçãodoqueé,assimcomoé.Serviam-mechá,muitofino,edocesespeciais.Perguntavamdemim,deminhapráticanoJapão.Foi-secriandoumaamizadepuraesimples.Assimeraemmuitascasas.Todososdias,saíaporvoltadas6hdamanhãpara

meditarcomoabadeetocarograndesino108vezes.Dizemquehá108obstáculospara a iluminação (ganância, raiva, ignorância, ciúme, inveja, sono, preguiça,vaidade,eassimpordiante).Mastambémnosensinamquecadaobstáculopodesetransformaremumportal.Porissoas108badaladasetambémas108contasdosrosáriosbudistas.Depoisdameditaçãoedasprecesmatinais,pegavameucarroevisitavadeseisa

oitofamíliaspordia,atéporvoltadas14h.Almoçávamosnotemplo.Éramoscincoparafazeraspreces.Oabade,trêsoutrosmongesjaponeseseeu.

Tinhaalgumashorasdedescanso,emcasa,umapartamentodedoisquartosaduasquadrasdali.Voltavaparavelóriosououtrascerimôniasespeciais,quernotemplo,quernascasasdasfamílias.Essetemploeramuitogrande,tinhamaisde2milfamíliasaquematendíamos.

A esposa do abade nos preparava o almoço (sempre macarrão japonês) e era aresponsável por organizar nosso trabalho. Ela também recebia as ofertas emdinheiro,queasfamíliasnosdavam,asdoaçõesdedocesealimentose,aofinaldomês, fazia a divisão do que entrara. Era suave, macia, silenciosa e, ao mesmotempo,severaeassertiva.Umavez,entreinacasaerrada.Eradifícilparamimentenderosendereçoseas

ruassemnomedoJapão.Quadrascomnorte,sul,lesteeoeste.Ondeficaonorte?Geralmentepassavaastardesenoitesplanejandooscaminhosparaodiaseguinte.Chegueiàruacertae,naporta,haviaumajovemmeaguardando.Entrei.Oaltareraum pouco diferente. Ela tambémme estranhou: “Você está há pouco tempo poraqui,nãoé?”.“Sim”,disseeu.Eraverdade.Fiztodasasorações,recebiadoação,tomeiocháeviqueaesposadoabademe

chamava.Pedilicençaeuseiotelefonedacasa.Elaestavaaflita:“Ondevocêestá?Afamíliaprecisasaireaestáesperandoháumahora.Válogoparalá”.Saíatrapalhadaeviqueacasaondeeudeveriaestarrezandoeraavizinha.Fizas

preces, pedi desculpas a todos. Saímos, as pessoas da família tinham um

compromisso. E agora? Voltei para o templo envergonhada. A esposa do abadeconsertou tudoeacabamosrindo.Aprimeira famíliaparaquemoreiera ligadaaoutro templo. Depois que saí, omonge do outro templo chegou e também fez aprece.Estavamcontentes.Duaspreces.Deveriamterméritos.EssapráticaemSapporomecolocoudentrodocoraçãodasfamílias japonesas.

Eu já tinha ido rezar em casas de pessoas ligadas ao Mosteiro de Nagoia e aoTemplo de Tóquio. Agora era diferente, todos os dias. Aprendi a falar sobre osensinamentos e aprendi sobre a cultura japonesa. Sentia-me acolhida e em casa.Esqueciaqueerabrasileira.Àsvezesatémesurpreendiaaoverminhaimagememumespelho–narizcomprido,olhosgrandes.

Vocêsempreselembradoseurosto?Lembrei-me de CecíliaMeireles e do poema em que pergunta: “Em que espelho ficou

perdidaaminhaface?”.

Horadobanho

“Osenakasaseteitadakimasu?”(Possofazersuascostas?)

Decoreiafrase.Maldormiduranteanoiteanterior.Nodiaseguinte,teriadetomarbanhocom

nossasuperiora.Hábitosculturais tãodiferentes.“Oquedevofazer?”,perguntei,perplexaeassustada.Era, para asmonjas japonesas, uma grande honra e alegria banhar-se com a

superiora.Desdecrianças,acostumadasaobanhofamiliarecomunitário.Momentodeintimidadeerelaxamento.Paramim,eramomentodetensão.Entramosna saladebanho. Já sabiaquedeveria cobrir a frentedemeu corpo

com a pequena toalha branca, um poucomais estreita emais curta do que umatoalhaderostocomum.A abadessa sentiameu embaraço. “Vire-se de costas. Aprenda e depois faça o

mesmoemmim.”Senti-medamesmamaneiraquemesentiaemcriança,quandominhatiaNena

medavabanho.Minhamãeeraumaeducadoraetrabalhavaforaeestudavanoutrosmomentos.Nãotinhatempodemebanhar.MasNena,minhatia,ficoualgunsanosmorandoconosco.Lembrei-medela.Comumabuchaforteeensaboada,aabadessaesfregouminhascostascomforça

erapidez.Debaixoparacimae,nosombros,dopescoçoparaosbraços.Colocouáguaquentedabanheiraemminhapequenabaciadebanho,molhouminhatoalhaepassounascostas.Depois,jogouáguaquenteemassageoumeusombrosporcimada toalha. Não tocoumeu corpo com asmãos. Fez com queme sentisse limpa.Entãovirou-sedecostasparamimedisse:“Façaoquefiz”.Quandoasuperiora,depoisdelavadasascostas,entrounabanheira,fiqueisem

saberoquefazer.Haviammeditoquenãoseriaadequadoentrarnabanheiracomela. Sendo assim, lavei o resto domeu corpo eme levantei para sair da sala debanho.Elamechamou,queeuentrassenabanheira.Entãofoielaquemprimeirosaiudasaladebanho.Enxugou-seevestiu-sena

antessala. Corri para acompanhá-la até seus aposentos e colocar sua toalha parasecar.Nãofoifácil.Hábitosculturaisdiferentes.Entendia fraseem japonês,que literalmente seria traduzidapara:“Vouagora

terahonradefazersuascostas”.Fazerascostas,darvidaàscostas.Áreasempretãodifícildeesfregar.Quando os primeiros colonos japoneses chegaram ao Brasil, foram muito

discriminados.Umadasrazõeseraadequeusavamtanquesvelhosdeóleocomobanheiras aoar livre.Aáguaquente relaxaamusculatura tensapelo trabalhonaroçadoamanheceraoanoitecer.“Eusaíadecasacomasestrelasevoltavaparacasacomelas”,merelatouuma

senhoraimigrante.Nascasasdefamília,geralmenteopaientranobanhocomosfilhoseasfilhasenquantoaesposapreparaojantarouseocupadeoutrastarefasdacasa.Períodos de férias, de descanso, fins de semana sempre incluem a ida a uma

onsen – casa de banhos termais. São grandes piscinas de água quente natural ecoletivas. Há algumas em que homens, mulheres e crianças se banham juntos.Estas atualmente sãomais raras. No passado, eram todas assim. Hoje há o ladofemininoeomasculino.Depois do banho, um banquete tradicional japonês. Corpo emente relaxados,

todos andam pelo hotel/banho termal vestidos com os quimonos listrados ouestampados de dormir. Mesmo quando há eventos de grandes empresas e sãoservidos por gueixas – mulheres jovens vestidas de forma tradicional, rosto epescoçopintadosdebranco,lábiosvermelhos,cabelospresoscomonaIdadeMédia.As gueixas são treinadas na arte do entretenimento. Sabem cantar, tocarinstrumentosclássicos,dançardeformatradicional,declamar,servirealegrarumencontro.Nãosãoprostitutas.Nãofazemsexocomosclientes. Issonãoentranoacordodetrabalho.Ocontratoéparamostraraarte.Ocaracterguei,degueixa,querdizerarte.Gueixaéumapessoaligadaàarte,artista.A rua em Quioto que leva ao Mosteiro de Kenninji (local famoso e hoje um

museu)–ondenossofundadorestudouantesdeiràChinaequeguardaobrasdearte e memórias sagradas, incluindo o jardim de pedras diante do qual nossentamos, a certa distância, para apreciar emeditar – essa rua é a principal dobairro das gueixas. Lá estão asmais famosas gueixas de todo o país. Turistas se

amontoavam para vê-las passar. Uma vida de treinamento e prática incessante.Entrammeninas, trabalhammuito, estudam. Há grandes exigências para que setornemperfeitas.No finalda rua, a entradadomosteiro.No jardim,a caminhodeumacasinha

simplesparaacerimôniadochá,haviaaesculturadeumsapocomaluacheia.Alua é símbolo também para a iluminação. Independentemente da fase em queesteja, é sempre a lua cheia e perfeita. Poetas se reúnem para admirar a lua eescreverpoesias.O único retrato de Mestre Dôgen o mostra sentado em uma cadeira alta,

admirando a lua cheia,nasmontanhasdeEchizen.Ele escreveu:“Quemaravilhaestar em Eiheiji, admirar a lua e recitar o Sutra da Flor de Lótus da LeiMaravilhosa”.Atémesmomeu nome budista vem de um poema chinês antigo, queMestre

Dôgenrelembranocapítulo“Lua”(Tsuki),desuaobramáxima,oShôbôgenzô:

“Mentelua(Shingetsu)sóecompleta(Coen)AluzrevelatodasasformasQuandoaluzeaformasãotranscendidas,oqueexiste?”

Oqueháantesdoviraser?Antese/oudepoisdasformas,antese/oudepoisdaluz?Oqueexistenograndevazio?Vaziodeidentidadefixa.Vaziodoseredonãoser.Culturasdiferentes.Formasdepensardiferentes.Hábitosdiferentes.Mas,alémdaformaedaluz,sereshumanoscompartilhandoavida.

Causasecondições

OmongeRyôkan foi convidado a oficiar um casamento.Depois da celebração,pediram que ele brindasse com algumas palavras. “Morrem os avós.Morrem ospais.Morremosfilhos”,disse.Todos ficarammudos de espanto. Alguémmurmurou próximo ao seu ouvido:

“Ryôkan-sama.Éumcasamento,nãoumenterro”.“Bemosei,meuamigo.Masessaéamaiorbênçãoqueeuconsigopensar.Ocontrárioémuito,muitodoloroso.”Quãoverdadeiro!Meusavósmaternosperderamumafilhade21anos. Jamaisaesqueceram.Ela

era, naminha infância, a santa da família. Alguém para quem eu podia rezar epedirquemeajudasse.Numlivrodepoesiasantigas,queelacopiava,aspáginaseramnumeradas. Elahavia pulado a página 20 e, na 21, escrevera o final deumpoema:“Dentrodoinfinito?Masestavaescrito”.Estáescrito?Minhamãetinhaa imagemdoCoraçãodeJesusnaparededacabeceiradesua

cama. Era uma imagem bonita, branca e preta. Jesus trazia, namão esquerda, oplanetae,nadireita,umapenadeescrever.Pareciaumacaneta,e,quandocriança,euficavapensandoqueeleestavaaliescrevendoanossavida,desenhandonossosencontrosedesencontros.Outro dia, passandode carro pela baixadadoGlicério, ondemoradores de rua

fazemsuascamas,vipenduradaumaimagemcomoademinhamãe.Opraticantequedirigiaocarromedisse:“ApenacomaqualEleescreveaLei”.Nuncaouviraissoantes.JesusescreveaLei?OEvangelho,oSermãodaMontanha...Foramtodosescritosporseusdiscípulos,masosimbólicodeosestarescrevendofoiaideiadoautordoquadro.Buda também não escreveu seus ensinamentos. Estes foram compilados anos

mais tarde por seus discípulos. Buda dizia que há uma Lei Verdadeira, chamadaDarma. Essa lei é inexorável e impessoal. Lei da causalidade, da origemdependente, da interdependência. Causas, condições e efeitos. Palavras de Buda:“QuemconhecealeidacausalidadeconheceoDarma”.Podemos criar, conscientemente, algumas causas e condições que facilitam

determinados efeitos. Mas não controlamos todas as causas e condições, muitomenostodososefeitos.Escrevemos a Lei ou já foi escrita? Determinismo ou livre-arbítrio? Essa

perguntaérecorrente.Háumdestinofixoeinflexívelounão?Tudosurgeaoacaso?Será que existe uma terceira opção? Sempre procuro pelo caminho domeio: umpoucodedeterminismo,umtantodelivre-arbítrio.Carma,oqueécarma?

……

Uma senhora judia veiome ver. O filhomorrera jovem.Havia falado comumrabino, que lhe dissera: “Colhemos o que plantamos”. Ela ficara indignada:“Definitivamente,eunãoplanteiamortedemeufilho!”.Não.Vocênãoplantouamortedeseufilho.Assimcomoofilhocujamãeeirmã

foramatropeladasemumacalçadanãoplantaraamortedelas.São tantas dores, tristezas, luto. O jovemde 27 anos que pulou do 27o andar.

Estava escrito? A menina que morreu num desastre na estrada. Isso havia sidodeterminadomesmoantesdeelanascer?Não consigo pensar assim. Certas causas e condições determinam o efeito.

Podemosmudar causas e condições. Podemosmudar os efeitos. Só não podemosmudaronascimento,adoença,avelhiceeamorte.

……

Meumestrede transmissão,YogoRôshi,ao fazerqualquercerimônia fúnebre,dizia:“Foilongevo”.Podiasetratardeumacriança.Geralmentedizemos:“Morreucedo”.Elenãofalavaassim.Dizia:“Nãohácedonemtarde.Otempodemorreréquandomorremos.Temosdeaceitaramortecomoumfatoabsoluto.Oquenasceinexoravelmentemorre”.Nãopodemosrevivernossosmortos.Temosdecremá-los,enterrá-los.Issonão

significaesquecê-losouabandoná-los.Háumcuidardiferente.Háumpermitirsersuacontinuidadenesteplano.Darvidaaosnossosmortosemnossavida,emnossasatividades.Honrarsuamemória.Mortesviolentas,dramáticas,depessoassaudáveisnosfazemquestionar:estava

escrito?Quemeporqueassimoescreveu?Poderiatersidodeoutraforma?Nãosei.Oquefoifeito,feitoestá.Nãopodemosretroceder,nãopodemosapagarascausase

condiçõesqueresultaramnamorte.Podemos,sim,evitarqueserepitam.Podemos,sim,evitarqueoutraspessoassoframoquesofremos.Podemosusarnossaenergiavital,nãoparaavingança,araiva,masparatransformarumasociedadeviolentaefriaemumaculturadepaz.Alguns grupos espiritualistas acalmam as mentes inconformadas com o

veredictofinal:“Écarma”.Outrasreligiõesalegamsetratarda“vontadedeDeus”.Assimcomoparaonascer,há infinitas causase condições.“Porqueminha filhanasceucomumcromossomoamenose temnecessidadesespeciais raríssimas?”,“Porqueeunascicomessaformaestranhaetantasdoenças?”.Queremos uma resposta. Talvez não haja apenas uma, mas múltiplas

possibilidades. Somos o que somos. A maneira com a qual lidamos com asadversidadeséquefazadiferença.Lembro-medeumajovemmonjadoSriLankaquevisitavaoBrasil.Elamedisse:“Nãohánadapessoal”.Nadapessoal.Nãoháumadivindadequepessoalmenteescolheestedestinopara

estapessoa.Tudoestáconectadoatudo.Nascemosemorremosnestaépoca,comtodososseusmeiosdetransporte,doençasecuras,erroseacertos.Carma, literalmente, significaação.Açãoquedeixamarcas, resíduos.Àsvezes

meperguntosequestõesgenéticaseramchamadasdecarmanaÍndiaantiga.Seaideia de carma sossega os aflitos, seria também uma forma de aquietar revoltassociais?Sefoicarmaoassassinato,tambémécarmaprenderoassassino,tambémécarmafazercampanhasparaquejamaisserepitamcrimessemelhantes.Setudoécarma,comoficamos?Semcarma?Ações do corpo, da boca e damente. Causas e condições que deixammarcas,

resíduos,possibilidadesderecorrência.Ocarmapodeserbenéfico,podeserneutro,podesermaléfico.Podeserindividual,familiar,social.Hácarmafixoenãofixo.Foicarmaosalva-vidasjovemeforte,quebrincavacomseusamigos,pulardo

ombro de um deles e mergulhar no mundo dos tetraplégicos? Quantas pessoasforam afetadas? Familiares, amigos, namorada, médicos, hospitais, enfermeiras,pesquisadores.Quando,emGoiânia,apolíciaentrouemumafavelaeostratorescomeçarama

demolirosbarracos,aassistentesocialqueacompanhavaocasogritou:“Issonãoécarma.Éinjustiçasocial!”.

Épreciso saberdiferenciar.MahatmaGandhi trabalhavapara empoderarospobres, osesquecidos.Quenãoficassemparadosaguardandoapróximavida,masquefizessemdestavidaalgosignificativoparasimesmoseparatodaahumanidade.

“Estejabem,meuamor.Estejabem,minhaamada.Vocêmorreu.Seucorponãotemmaiscondições fisiológicasdesemanter.Deixamuitassaudades.Masvá.Váparaa luz infinita.Retorneàorigem.Nãohánadacomquesepreocupar.Missãocumprida.QueKannonBodistavaconduzavocêàTerraPura,ondepoderábrincarlivremente.” São palavras de amor incondicional.Não um lamento do eumenor,quesentepenadesimesmo,quenãoquersentirsaudade.

Nopoemaqueminhamãefezàsuairmãzinha,quandoelamorreu,ofinaleraassim:“mãonatuamãoqueroenfimmorrer,murcharenãosernoteucoração”Queeupossaficaresofrer.Queeusaibasuportarador.Quevocênãosoframais.Namu

AmidaBuda[1]!

MenteBuda

“Odesabrochardaflordaameixeiraéaprimavera.”Costumamos dizer que a flor desabrocha na primavera. Não é bem assim. O

desabrochardafloréaprimavera.Pensenisso.Háumasutileprofundadiferença.Quandoconseguimosmodificar

nossamaneiradefalaredeser,éporterhavidoumamudançanonossomododevereinterpretararealidade.Primaveraéflor.Odesabrocharéaprimavera.Verãoécalor.Ocaloréoverão.Outonoéaluanocéuclaro.Aluanocéuclaroéooutono.Invernoéfrio.Ofrioéoinverno.NoBrasil,asestaçõesdoanonãosãotãobemmarcadascomoemoutrospaíses

de clima temperado. Podemos ter no mesmo dia a manifestação das quatroestações.Nospaísesfrios,odesabrochardaameixeirabranca–aprimeiraflorquesurge,aindananeve–écausadegrandealegria.Fragrânciasecoresvoltam,sairde casa é mais fácil. Alimentos frescos aparecem em maior quantidade nosmercados.Menosroupas,maisleveza.Renovaçãodavida.FuiaoUruguaiparaumretirozen-budista.Eraoutono.Árvoressemnenhuma

folhaoufloresticavamseusgalhoscortadosformandodesenhosestranhos.Formasque desconheço no Brasil. Eram árvores grandes, altas, escuras sob um céunublado.RecebidaprefeitadeMontevidéuumaplacadeHonraaoMérito,poishaviam

dito a ela que trabalho para o desenvolvimento de uma cultura de paz. Faço tãopoucoquenãomesentidignadahonra.Participodeencontrosinter-religiosos,façopalestras,douaulas,praticozazen

(meditação sentada). Sempre que posso, falo sobre nossa responsabilidade emrelaçãoàrealidadeemquevivemos.Somosessarealidade.Assimcomoafloréaprimavera.Somosomundoemque

vivemos.Podemosfazeradiferença,amudançaquealmejamos.Claroquehámuitacoisaquepodemosfazersozinhos.Limparasujeiradoscães

narua,nãojogarlixonascalçadas,separarolixoorgânicodoreciclável,usarpoucaáguanobanho,naspias,cuidardasplantaseevitaradengueemnossacasaeemespaços comunitários, minimizar o uso de energia elétrica. Podemos terpreocupações ambientais e sociais. Podemos participar de grupos, ONGs. Massempreseránecessárioquehajapolíticaspúblicasbaseadasnocuidado.

“Amentehumanadevesermaistemidaquecobrasvenenosaseassaltantesvingadores”,dizia Buda. Verdade. Enganamos a nós mesmos. Consideramos bom aquilo que nosengrandeceefavorece.Senãoformoscapazesdesairdesseeumenor,quenosmantémemdelusão,jamaisacessaremosaVerdade,oEuMaior.O desabrochar do coração de compaixão e sabedoria é a Mente Buda, assim como o

desabrochardafloréaprimavera.

Águaévida

Osomdoriachonovale,aformadasmontanhassãoavozeocorpodoTathagata.

EsseéumdospoemasdeMestreDôgen(1200-1253).Tathagataéumdosepítetos,umdosnomeselogiososdadosaBuda.Significa

aqueleouaquelaquevemequevaidoassimcomoé.Opoemarevelaoóbvio:todaagrandenaturezaéavozeocorpodeBuda.Budaé

muitomaisdoqueumserhumanoqueviveunaÍndiahá2.600anos.Budaémuitomais. É toda a vida da Terra e do Céu. Cada montanha. Por isso, não devemosesvaziarasmontanhasdeseusminérios.Nãoaspodemosdeixarcomocascasvaziase perigosas. Não devem se tornar apenas formas ocas, como me alertaram, hámuitosanos,queestavaocorrendoemMinasGerais.Sabemos usar os elementos da natureza em nosso proveito, retribuindo,

refazendo, refletindo e sabendo quanto, quando e onde podemos utilizar essesrecursos?Nosso corpo comum, mais do que nossa casa comum, o planeta deve ser

cuidado.Oqueacontecequandonãoescovamososdentesecomemosmuitodoce,por exemplo? Haverá cáries, infecções, dores. O tratamento nem sempre éagradável. Mas, se não o fizermos, todo o nosso corpo poderá ser danificado. ATerraénossocorpo.Nãopodeserabusada.NoséculoXIII,oMongeDôgencaminhavamuitocomseusdiscípulos.Eraverão,

ascigarrascantavamincessantemente.Transpirandoecomsede,pararamàbeiradeumrio.Usandoumaconchacomcabodemadeira,elepegouumpoucodeágua.Bebeua seucontentoe retornouaáguaquesobrounaconchaao rio, ensinando:“Nãoabusardoselementoséamenteiluminada”.Atéhoje,nomosteirodeEiheiji,háumlocalsagradocomumaconchademadeiraàbeiradeumpequeninotrechodo riacho dentro das edificações, para lembrar a todos os ensinamentos dofundador:nãoabusemdaágua.Quando eu era noviça, em Los Angeles, fiquei durante um anomorando com

meu mestre, em sua casa. Curiosa, ao limpar sua mesa de trabalho, sempreprocuravapor algum livronovoou algum texto, queprofessores e estudiososdomundotodoenviavam.Umdia,encontreisobreamesaumtrabalho(eminglês)deum grande amigo seu, o reitor da Universidade de Komazawa, em Tóquio. Essauniversidade pertence à nossa ordem Sôtô Shû, assim como a PUC, no Brasil,pertenceàIgrejaCatólica.Otítulodopapelaindaestavaemjaponês:MizuwaInochi.Traduzidoparaoinglês:“Águaévida”.Nãome recordodo texto,mas lembroque,depoisde lê-lo, comecei a agirde

formadiferente.Molhavaaescovadedentesefechavaatorneira.Aotrocaraáguados vasos dos altares, cuidava para jogar a água usada no jardim e nunca deixarvazarágualimpa.Houveumdespertar.

Educação é isso. Poder sensibilizar as pessoas para que seu comportamentomude. Atéhoje agradeço a esse grande professor. O texto era de duas laudas e meia. Simples eprofundo.

Arrepender-seeperdoar

Umjovemmedisse:“Meupainãofalacomninguémemcasa.Sóvêtelevisão”.“Oqueestariaacontecendocomessehomem?”,pensei.Disseaojovem:“Cuidadoparanãoficarcomavisãodesuamãesobreseupai.Falecomele.Muitasvezes,oscasaisnãoseentendemeosfilhos,semnotar, tomamo ladodeumoudeoutro.Conversecomseupai–umaconversaentrehomens”.Atéhojeesse jovemnãoretornouàminhacomunidade.Teriaconseguido falar

comopai?Teriavencidooolharmaternoqueofaziaveropaitaciturnoearredio?Soubequehavia anoso casalnão se falava.Comunicava-sepormeiodebilhetespregadosnageladeira.Porqueguardarmágoasassim?

……

Quandopediqueumjovemcasalescrevesseseusvotosdecasamento,estranheiquando li: “... e nunca iremos dormir sem fazer as pazes”. Com certeza, teriamconvivido com pessoas que dormiam demal, pessoas capazes de ficar semanas,meses,anoseatémesmotodaumavidasemsefalarmais.Não devemos cultivar em nós o rancor, a birra, a raiva. Quem primeiro se

arrepender e se desculpar é o mais forte. Pessoas fracas jamais se arrependem.Pessoas fracas jamais se desculpam verdadeiramente. Pessoas fracas insultam,discriminam,maltratam.Sãopessoasfracasasquebatem,ferem,quebramobjetos.Parecemfortes,masnaverdadesãomuitofrágeisinternamente.Umapessoagrandesentecontentamentocomaexistência.Podedormirnochão

duroeestáfeliz.Quemnãoconheceocontentamentoéinfelizmesmonumpalácioreal.Contente, correto, amoroso, terno, sem entrar em discussões inúteis, falo

apenas para que todos os seres despertem para a mente suprema e realizem ailuminação.

Podemoscrescer.Crescerdói.Assimcomodoeramosdentesdeleiteparacair.Crescere

setornarumserhumanocompletoelivresignificaserresponsáveletranquilo.Nãopossuirnenhummotivoparamataroumorrer,masencontrarinúmerasrazõesparaviver.

Alémdareligião

Quando voltei ao Brasil, em 1995, iniciei minha participação nos encontrosinter-religiosos. Estava encarregada de cuidar do Templo Busshinji, no bairro daLiberdade,emSãoPaulo.Umtemploqueforacriadonadécadade1950,logoapósotérmino da Segunda GuerraMundial. Fiquei sabendo que fora o dr. Adhemar deBarros, então nomeado governador de São Paulo pelo presidente da República,quemderaliberdadeaopovojaponêsresidentenoestadoparaabrirseustemplos,falarsua línguaereativarsuacultura.Atéhoje tenhoemmeuquartoumquadrofeitoporumartistajaponêsdessaépoca.Oquadrorevelaumasenhoraidosadandomilhoasuasgalinhas,tendocomocenáriooMonteFujieascerejeirasemflor.Meupai,quetrabalhavacomogovernador,foiquemtrouxeoquadro–gratidãodeumsenhorjaponês.

Gratidão é uma palavra em moda atualmente. Muitas pessoas, em vez de agradecer,apenasdizem“gratidão”ecolocamamãosobreopeito.Gratidãoéumapalavraqueestáconectada com a cultura japonesa. Gratidão aos antepassados, à ancestralidade, à vida, ànatureza,atodososseres.

EuhaviaacabadoderetornardoJapão,ondeficarapormaisde11anos.SetenoMosteiro Feminino de Nagoia e outros quatro servindo e praticando em váriostemplosemosteiros.Meu coração estavaplenodegratidãoaopovo japonês, quehavia preservado, mantido e transmitia os ensinamentos de Buda. Alegrava-mecuidardotemplorecém-construído.Trabalhavade16a18horaspordia.Limpava,servia, atendia, oficiava enterros, casamentos, serviços memoriais, bênçãos decrianças,carros,casas,empresas.Davaaulas,palestras,praticavameditaçãoefaziatodasasliturgiasqueaprenderanomosteiro.OantigosuperiordaAméricadoSul,DaigyoMoriyamaRoshi,estavavoltandoao

Japão,depoisdehaverreconstruídoaparteprincipaldotemplo–asaladeBudae

seusanexos.Umatarde,ohojecônegoJoséBizonveiomeconvidarpara integraruma celebração inter-religiosa organizada pela Arquidiocese de São Paulo. “Nopassado, o superior da sua ordem aqui no Brasil, Ryohan Shingu Sookan Roshi,participava conosco. Houve um intervalo grande e gostaríamos de retomar aparticipaçãodaSôtôShû”,eledisse.Muitomealegrouo convite.Minha superioranoMosteirodeNagoia,Aoyama

ShundôDôchôRôshi,participaraativamentedeencontros inter-religiosos.ForaaAssis,na Itália,paraoprimeiroencontro inter-religioso lárealizado.Mais tarde,monjas beneditinas vieram passar um mês conosco, e a superiora de nossomosteiroforapassarummêsnummosteirobeneditinonaBélgica.Aprendíamos umas com as outras. Respeitando-nos em nossas escolhas

religiosas. Monjas beneditinas de hábitos pretos longos, outras de hábitos maiscurtos e modernos e outras de roupas comuns. Eram religiosas trabalhando emáreasdiferentes:professoras,assistentessociais.Todastinhammaisde25anosdevidamonástica.Aosdomingos,convidávamosumpadre,professordauniversidadedeNagoia,eeleoficiavaamissa,cantadaporvozesafinadíssimas.Asmonásticasficavamrubrasdeemoção.Eratãobomvê-lasassim.E,semquerer,eucomparavacom nossos cânticos – meu e de minhas companheiras noviças –, ainda tãoimaturas, tão pouco sensíveis. Quem sabe, um dia, chegaríamos a esse fervormístico?Assimfuiaesseprimeiroencontro.Teriasidoem1996ou1997?ACatedralda

Sé,noCentrodacidadedeSãoPaulo,estavaemreforma.OencontrofoinalotadaIgrejadaConsolação.Chameiminhamãeparaassistir.Elaera católicaapostólicaromanae,quandopedisuapermissãoparaentrarnavidamonásticazen-budista,depois demeses de reflexão, um dia elame disse: “Minha filha, seja qual for areligião de sua escolha, você estará servindo a quem eu chamo de Deus. Eu aabençoo!”.Como havia sido maravilhoso ouvir isso dela. E poder agora, como monja

representantedeumaordemzen-budista, convidá-laapresenciar esse encontro,realizadoemumade suas igrejas favoritas, localdemuitasdasmissasdeminhainfância. Idosaecomdificuldadesparaandar,sentou-sebemnafrente.Quebomtê-laali pertodemim,quandoeuestavanoaltar, entreospadres católicos eosrepresentantesdeoutrasordensreligiosas,autenticandooqueelamedisseraanosantes.

……

Servindo ao Sagrado estavam rabino, xeique, monge tibetano, monja zen-budista,pastor,xamã,babalorixáeialorixá,pajé,líderespíritaeorepresentantedaArquidiocesecomtodososseusauxiliaresreligiosos.Éramosmuitosnumafilaqueiadeum ladoaooutrodo altar.Unidospelopropósito comumde construirumaCulturadePaz.Unidospelaféepelaesperançadequeépossível,sim,transformarcadaserhumanoeasociedade–nãopelaviolência,maspeloamorepelorespeitomútuos.Continuoatéhojeparticipandodessesencontrossemprequeposso.Alegra-me

trabalhar para a inclusão e para o fim da intolerância religiosa. Nessa inclusãotambém está em meu coração o ateísmo. Não são apenas os tementes a Deuspessoas corretas. Não são apenas os que sabem da lei de causa e efeito pessoashábeis.TodososseresdaTerra,todosossereshumanosmerecemrespeitoporsuascrençasenãocrenças.Aéticaverdadeiraindependedasreligiões,emboraaspossaincluir.Émais,muitomais.NasocasiõesemqueSuaSantidadeo14oDalaiLamaestevenoBrasil,desdeque

retornei ao país, pude assistir a suas palestras. Na Catedral de São Paulo, noTemplo Budista Zu Lai, em centros empresariais, no Ginásio do Ibirapuera e noAnhembi. Estive também em alguns encontros especiais, reservados a seusdiscípulos e seguidores, em lobbies de hotéis e salas nos fundos das áreas deapresentaçãopública.Elesempremecumprimentavausandoaexpressãozenmaster(mestrazen):“Alémda religião.Devemosconstruirummundodepazcommaiscompaixão. Podem estranhar que eu diga isso, sendo um monge. Mas atransformaçãodomundodependedeeducação, e educaçãosecular,não religiosa.Temos de incluir todos e todas. A essência da compaixão é o desejo de aliviar osofrimentodosoutrosedepromoveroseubem-estar.Esseéoprincípioespiritualdoqual todososoutrosvalores internosepositivosemergem.Compaixãopodeedevesertreinada.Nemsempresurgedasentranhas”.No Anhembi lotado, também disse – e aqui o repito, pois creio nesse credo:

“Todas as grandes religiões do mundo, com ênfase no amor, na compaixão, napaciência,natolerânciaenoperdão,promovemvalores internos.Masarealidadedomundohojeéoutra,eseapoiarapenasnaéticareligiosajánãoémaisadequado.

Acredito que chegou o tempo de encontrarmos um caminho para pensar sobreespiritualidadeeéticaqueváalémdareligião”.Nossos encontros inter-religiosos também são encontros com o ateísmo.

AcreditonoDNAhumano,quejáseapercebeu:parasobreviver,temosdecuidardoplanetaedetodasasformasdevida.

Independentemente de crerem ou não no que eu possa crer ou descrer. Aqui é precisocuidado.Um fiode cabelodediferença, e tudo seperde.Nãopossoadmitirnemaceitaraviolência,oabuso,adiscriminaçãopreconceituosaemnenhuma formade relacionamentoentresereshumanoseentresereshumanoseaMãeTerra.Cuidarépreciso.Umcuidarforteedeterminado,quevaialém,muitoalémdasfronteirasreligiosas,semasexcluir.

Presençaabsoluta

Estelivroéumpoucodemim,demeusvotosmonásticos,depalestraseaulasquedei,depensamentosquecirculamhojeemminhamente.Sou um ser em constante transformação e mudança. As reflexões de hoje

poderãonãoserasmesmasdeamanhã.Aoescreverestashistórias,tiveaintençãodeestimularvocêapensar.Temosde

pensar–umacapacidadehumanaessencial.Mastambémpodemosobservarquehámomentos em que não pensamos. Isso não quer dizer que agimosimpensadamente.Issoéoutracoisa.Existeopensareonãopensar.Hámomentosemqueapenasexistimos.Inteiras

e inteiros. Sentimos nosso corpo, todos os sentidos alertas. Não por medo. Porpresença.Apresençaabsolutanosliberta.

……

Umavez fui levarmeumestrede transmissão–YogoSuiganRôshi,professorqueconfirmouoficialmenteminhacapacidadedeensinarozen-budismodaOrdemSôtô Shû – ao aeroporto de Sapporo, no Japão. Ele havia participado de umencontro com todos os monges e monjas da cidade. Trouxe-nos palavras dereflexãoecoragemparacontinuarmosnossapráticareligiosa.Os outros monásticos foram parar o carro e nos deixaram na entrada do

aeroporto. Fazia frio. Entramos, para esperá-los numa área mais agradável.Paramosemmeioaumcorredorlongoeaquecido.Meumestreestavaapenaspresente.Eleestavavivo,alerta,tranquilo.Olhavaà

sua volta. Via as pessoas, omovimento. Aguardava como quem não aguardasse,como quem já tivesse obtido tudo o que se há a obter e mais nada esperasse.Esperávamososmongeseabagagemcomosejáhouvessemchegado.“Tendo ido, ido, ido. Ainda indo, indo, indo. Tendo chegado e, ainda assim,

indo”–éumtrechodeumtextosagrado.Nemumasóvezolhouparaalgumrelógio.Nãoprocurouaportacomolhosque

buscameesperamalguém.Láestávamososdois.Semapegosesemaversões.Semexpectativaseaflições.Apenassendo.Aissochamopresençaabsoluta.Os outrosmonges chegaram, cuidaramdas bagagens. Fomos comer sushi. Ele

pediu pequenos enrolados de alga com atum cortado bem pequeno e cebolinhaverde.Euachavaquenãogostavadecebolinha.Foidelicioso.Estive com ele outras vezes, no Mosteiro de Daiyuzan Saijoji, onde eu havia

escritoosváriosdocumentosdaTransmissãodoDarma.Umasemanaescrevendo,copiandoeaprendendo.Só,fechadanoshoin,saíaapenasparaozazenealiturgiamatinal.Noúltimodia,houvecerimôniasfinais.Anosdepois,visitei-oumdiaantesdeeleirparaumhospitalterminal.Alime

comprometiacontinuarsuamissão,alevaradianteosensinamentos.Éoquetenhofeito.

Talvezvocêesperasseumlivrodiferente.Menosbudista,maisautoajuda?Maisengajadosocialmente?Budismoéengajado,budismonosajuda.Masnãoapenasobudismo.Temosde perceber em cada tradição espiritual e também no ateísmo a maneira de viver comalegriaeliberdade.Liberdadeéresponsabilidade.Nosso dever e direito, de nascença, é despertar, crescer e nos tornar grandes pessoas

maravilhosas.Queosméritosdestaobraseestendamatodososseres.EquepossamosnostornaroCaminhoIluminado.

AnoBuda2580,outono(outubrode2014).

Mãosemprece,MonjaCoen

Seservir,use.Senãoservir,descarte.Apreciesuavida!

1. OBudadaLuzInfinita,quegovernaaTerraPuradoOeste,ondeatémesmoosbonsentram.