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DADOS DE COPYRIGHT · ... e se não fosse por causa da miopia e da diminuta ... no murmurar da oração. Do fundo do aposento saiu a voz do ... da casa. Nem já os trabalhadores da

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutandopor dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo

nível."

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José Saramago

TERRA DO PECADO

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AVISO O autor é um rapaz de vinte e quatro anos, calado, metido consigo, que ganha avida como praticante de escrita nos serviços administrativos dos Hospitais Civisde Lisboa, depois de ter estado a trabalhar durante mais de um ano comoaprendiz de serralheria mecânica nas oficinas dos ditos hospitais. Tem poucoslivros em casa porque o ordenado é pequeno, mas leu na Biblioteca Municipaldas Galveias, tempos atrás, tudo quanto a sua compreensão logrou alcançar.Ainda estava solteiro quando um caridoso colega da repartição, segundo-oficial,de apelido Figueiredo, lhe emprestou trezentos escudos para comprar os livrinhosda colecção “Cadernos” da Editorial Inquérito. A sua primeira estante foi umaprateleira interior do guarda-louça familiar. Neste ano de 1974 em que estamosnascer-lhe-á uma filha, a quem medievalmente dará o nome de Violante, epublicará o romance que tem andado a escrever, esse a que chamou A Viúvamas que vai aparecer à luz do dia com um título a que nunca se há-de acostumar.Como no tempo em que viveu na aldeia já havia plantado umas quantas árvores,pouco mais lhe resta para fazer na vida. Supõe-se que escreveu este livro porquenuma antiga conversa entre amigos, daquelas que têm os adolescentes, falandouns com os outros do que gostariam de ser quando fossem grandes, disse quequeria ser escritor. Em mais novo o seu sonho era ser maquinista de caminho-de-ferro, e se não fosse por causa da miopia e da diminuta fortaleza física,imaginando que não perderia a coragem entretanto, teria ido para aviadormilitar. Acabou em manga-de-alpaca do último grau da escala hierárquica e tãocumpridor e pontual que à hora de começar o serviço já está sentado à pequenamesa em que trabalha, ao lado da prensa das cópias. Não sabe dizer como lheveio depois a ideia de escrever a história de uma viúva ribatejana, ele que deRibatejo saberia alguma coisa, mas de viúvas nada, e menos ainda, se existe omenos que nada, de viúvas novas e proprietárias de bens ao luar. Também nãosabe explicar por que foi que escolheu a Parceria António Maria Pereira quando,com notável atrevimento, sem padrinhos, sem empenhos, sem recomendações,se decidiu a procurar um editor para o seu livro. E ficará para sempre como umdos mistérios impenetráveis da sua vida haver-lhe escrito Manuel Rodrigues, daEditorial Minerva, dizendo ter recebido A Viúva na sua casa por intermédio daLivraria Pax, de Braga, e que passasse ele pela Rua Luz Soriano, que era ondeestava a editora. Em momento nenhum ousou o autor perguntar a ManuelRodrigues por que aparecia a tal Pax metida no caso, quando a verdade é que sótinha enviado o livro à António Maria Pereira. Achou que não era prudente pedirexplicações à sorte e dispôs-se a ouvir as condições que o editor da Minervativesse para lhe propor. Em primeiro lugar, não haveria pagamento de direitos.Em segundo lugar, o título do livro, sem atractivo comercial, deveria sersubstituído. Tão pouco habituado estava o nosso autor a andar com tostões de

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sobra no bolso e tão agradecido a Manuel Rodrigues pela aventura arriscada emque se ia meter, que não discutiu os aspectos materiais de um contrato que nuncaveio a passar de simples acordo verbal. Quanto ao rejeitado título, aindaconseguiu murmurar que iria tentar outro, mas o editor adiantou-se, que já otinha, que não pensasse mais. O romance chamar-se-ia Terra do Pecado.Aturdido pela vitória de ir ser publicado e pela derrota de ver trocado o nome aesse outro filho, o autor baixou a cabeça e foi dali anunciar à família e aosamigos que as portas da literatura portuguesa se tinham aberto para ele. Nãopodia adivinhar que o livro terminaria a pouco lustrosa vida nas padiolas.Realmente, a julgar pela amostra, o futuro não terá muito para oferecer ao autorde A Viúva.

J. S.

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I Um enjoativo cheiro a remédios adensava a atmosfera do quarto. Respirava-secom dificuldade. O ar, demasiadamente aquecido, mal penetrava nos pulmõesdo doente, de cujo corpo se divisavam os contornos por baixo das cobertasdesalinhadas, donde se exalava um odor a febre que entontecia. Da sala do lado,amortecido pela espessura da porta fechada, vinha um surdo rumor de vozes. Odoente oscilava devagar a cabeça sobre a almofada manchada de suor, numgesto de fadiga e de sofrimento. As vozes afastaram-se pouco a pouco. Embaixo, uma porta bateu e estropearam as patas dum cavalo. O ruído da areiaesmagada ao trotar do animal cresceu de súbito sob a janela do quarto e cessoulogo como se os cascos pisassem lama. Um cão ladrou.Por detrás da porta ouviram-se passos cautelosos e medidos. O trinco dafechadura rangeu de leve, a porta abriu-se e deu passagem a uma mulher que seaproximou da cama. O doente, despertado da sua modorra inquieta, perguntou,num sobressalto:- Quem está aí? - e depois, reparando: Ah, és tu! Onde está a senhora?- A senhora foi acompanhar o senhor doutor à porta. Não deve tardar...Respondeu-lhe um suspiro. O doente olhou com tristeza as longas mãos, magras eamarelas como as mãos duma velha.- Sempre é verdade que estou muito mal, Benedita? E que, segundo todas asaparências, não devo salvar-me desta?- Credo, senhor Ribeiro! Por que fala em morrer? Não é isso que diz o senhordoutor...- Meu irmão?...- Sim, senhor! E também o senhor doutor Viegas, que saiu agora. Não deve terpassado ainda o portão da quinta. Deus Nosso Senhor o guarde de maus encontrosquando passar ao pé do cemitério, que ainda vai para as bandas dos Mouchões!...O doente sorriu. Um sorriso vago, que lhe alegrou fugidiamente o rostoemagrecido e que lhe engelhou os lábios finos e secos. Passou a mão pela barbadensa, raiada de branco no queixo, e respondeu:- Benedita, Benedita, olha que não é razoável falar de cemitérios a um doentegrave, que vê com frequência demasiada, através da janela do quarto, os murosde um dos tais!...Benedita desviou o rosto e enxugou duas lágrimas que lhe assomavam àspálpebras cansadas.- Choras?

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- Não posso ouvir falar nessas coisas, senhor Ribeiro. O senhor não pode morrer!- Não posso morrer? Tonta!... Bem vês que posso... Todos nós podemos!Benedita tirou o lenço da algibeira do avental e limpou, devagar, os olhoshúmidos. Depois dirigiu-se para a cómoda, onde uma imagem da Virgemparecia mover-se na oscilação da luz das velas que a rodeavam, juntou as mãose murmurou:- Ave, Maria, cheia de graça...O silêncio caiu no quarto. Apenas o sussurro dos lábios de Benedita o interrompiano murmurar da oração. Do fundo do aposento saiu a voz do doente, um tantoenfraquecido e trémula:- Que bela fé tu tens, Benedita! E essa a verdadeira crença, a que não discute, aque se conforma e acha em tudo a própria explicação.- Não entendo, senhor Ribeiro. Creio e nada mais...- Sim!... Crês e nada mais... Não ouves passos?- Deve ser a senhora dona Maria Leonor.A porta descerrou-se lentamente e entrou MariaLeonor, vestida de escuro, com uma mantilha de renda negra sobre os cabelosclaros e brilhantes.- Então, que disse o doutor Viegas?- Acha-te no mesmo estado, mas crê que melhorarás dentro de pouco tempo.- Crê que melhorarei... Sim! Melhorarei, por certo.Maria Leonor encaminhou-se para a cama e sentou-se à beira do doente. Osolhos dele, febris, procuraram os dela. Num enternecimento brusco, perguntou:- Tu choraste?- Não, Manuel! Por que havia de chorar? Não estás pior, daqui a algum tempoestarás curado... Que motivos terei para chorar? A passarem-se as coisas comodizes, não tens, de facto, motivos...Benedita, que estivera absorta, acabando a oração, aproximou-se dos dois:- Vou ver se os meninos dormem, minha senhora.- Vim de lá agora e estavam a dormir. Mas vai, vai...- Com licença!A porta fechou-se atrás de si. Percorreu um longo corredor mergulhado empenumbra, onde os passos, amortecidos pela alcatifa, soavam surdamente. Abriuuma porta grande e pesada, atravessou uma sala deserta e iluminada por duasgrandes manchas de luar no sobrado, onde se estendia uma cruz de sombra. Foi

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até à janela, abriu-a e olhou para fora. A lua fazia cintilar as árvores e as casasdispersas pela quinta. Do andar de baixo subia um ruído de vozes. No terreiroalongavam-se, como os cinco dedos da mão, as projecções luminosas das cincofrestas da cozinha.Benedita cerrou devagar as janelas e correu os ferrolhos dos caixilhos. Asapalpadelas, dirigiu-se a uma porta cujas frinchas deixavam passar fracos raiosde luz. Entrou.Em duas camas pequenas, lado a lado, dormiam duas crianças. Uma lâmpadacolocada em cima de uma mesa baixa espalhava em redor a sua claridademortiça e trémula. Benedita debruçou-se a contemplar os dois adormecidos.Uma das crianças mexeu-se e, depois de deitar um dos braços para fora daroupa que a tapava, encolheu-se toda, suspirando, e continuou a dormir. Beneditasentou-se numa cadeira e pôs-se a vigiar as crianças, envolvida pelo silêncio quepesava sobre a casa. Embrulhou-se no xale que trazia nos ombros e,insensivelmente, foram-se-lhe as pálpebras fechando, entorpecendo. Nãoadormeceu de todo, mas ficou imersa numa sonolência mole, num torporagradável, de que acordava a espaços para logo continuar. O seu desejo seria irdeitar-se. Mas, para quê? De um momento para o outro, teria de levantar-se,para atender o patrão. Tão bom senhor, aquele! O único que, no seu modo dever, poderia ter merecido a menina Maria Leonor, a quem agora, aliás, já nãochamava menina. Depois que a ama casara, costumara-se a chamar-lhe senhoradona Maria Leonor, e senhora dona Maria Leonor ficara para sempre. Bem quelhe custara a habituar-se, mas, enfim, não era ela uma senhora casada? A si, éque ninguém quisera para mulher e agora, com quarenta e dois anos, já não eratempo. Benedita sorria no meio do seu devanear, recordando o casamento dasenhora. Bela festa, como nunca vira outra! Depois da cerimónia, tinham partidoos três para a Quinta Seca, que de seca só tinha o nome, actualmente. Nosprimeiros tempos, ambas tinham sofrido de saudades, mas o senhor ManuelRibeiro levara-as algumas vezes a Lisboa. Por fim, acabaram por não desejaraquelas viagens. Era tão agradável viver no campo, fora da balbúrdia das ruasapinhadas de gente, que ambas já detestavam e temiam! Os anos passaram, eela tinha duas crianças para entreter e para adorar. Não! Nada mais desejava.Era feliz. Só há pouco tempo a doença do patrão viera interromper a felicidadeda casa. Nem já os trabalhadores da quinta pareciam os mesmos. Todos os diasqueriam saber das melhoras do patrão e, perante as respostas quase sempredesanimadoras, suspiravam, pesarosos. Era um raio duma doença... Nem omano do senhor, o senhor doutor António Ribeiro, nem aquele outro médico doParreiral, o doutor Viegas, atinavam com o remédio para a moléstia. Doença tãoruim era ela, que o patrão estava uma sombra do que fora antes. Talvez securasse, mas não seria, decerto, nunca mais, o mesmo homem que conseguirafazer daquele chão quase bravio, que herdara do pai, a mais formosa quinta dos

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arredores. Benedita bem podia dizer que vira o milagre realizar-se diante dosseus olhos, ano a ano, estação a estação. E agora... O patrão estava doente.Quisesse Deus que ele sarasse, e a sua presença bastaria para que aquelescampos não deixassem de ser o que eram! Mas se ele morria, que desastre,Senhor Deus! A quinta era o único bem da família, e, sem o braço dum homema sustentá-la, seria a pobreza. A senhora dona Maria Leonor era uma mulhercorajosa e firme, disso estava certa. Mas seria suficiente?Benedita despertou. Teve um ligeiro estremecimento ao reparar nas crianças querepousavam. Levantou os olhos para o relógio de parede que tiquetaqueavamonotonamente no quarto. Meia-noite e meia hora! Como se deixara assimamodorrar? Não dormira, isso não, mas as pálpebras pesavam-lhe imenso e acabeça caía-lhe para o peito, atordoada. Tinha sono. Que faria a senhora àquelahora? Velava o marido, decerto. Sorriu, triste, pensando que também gostaria develar o seu marido, se o tivesse. Nunca homem nenhum lhe dissera, porém, oque o senhor Manuel Ribeiro dizia à senhora e que, por vezes, ouvia. Os quartoseram tão próximos que os ruídos mais fortes atravessavam as paredes e iamretinir-lhe nos ouvidos como risadas de troça. Deitada na sua estreita cama, ouviae sofria, em silêncio, a pena de estar só. Só, estaria toda a vida, com certeza. Eraapenas dois anos mais velha que o senhor. Poderia ser esposa dele, se Deus otivesse querido...Abanou a cabeça com força, expulsam o os últimos restos do sonho. Ergueu osbraços retesados e espreguiçou-se. Um quebranto delicioso invadiu-lhe osmembros. Reagindo, levantou-se da cadeira e, depois de olhar de novo ascrianças adormecidas, saiu do quarto, levando a lâmpada que lhe derramava noavental uma luminosidade dourada.Bateu uma hora. Do andar de baixo já não vinha o rumor das vozes. Tinham idodeitar-se, os criados. A chuva percutia as vidraças: o Inverno nunca mais tinhafim. Parecia que o céu se desentranhava em água e que fazia da terra um marde lama. Havia já algumas semanas que não se podia trabalhar na quinta.Benedita entrava no patamar da escada que descia ao rés-do-chão, quando, derepente, no fundo do corredor, no quarto dos patrões, ouviu um grito. O corpotremeu-lhe como os vimes na corrente do rio. A porta do quarto abriu-se comviolência. Maria Leonor saía, gritando, desgrenhada e com o horror vincado norosto. Das mãos, subitamente sem força, de Benedita, caiu a lâmpada com umestrondo surdo, apagando-se ao rolar no sobrado. Maria Leonor caminhava pelocorredor fora, gemendo e gesticulando como louca. Tropeçou e desabou, nochão, a soluçar. Sobre a cómoda, as velas iluminavam ainda a imagem daVirgem branca. Ao fundo, na cama, o corpo imóvel de Manuel Ribeiro, com umdos braços pendente, rojando o soalho. Na alma de Benedita qualquer coisa seafundou para sempre. Com uma longa vertigem, ficou no meio do quarto, quase

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a desmaiar, os olhos presos no magro corpo estendido, arquejante, e precipitou-se sobre a cama desfeita, a gemer, amarfanhada pelo sofrimento, cega delágrimas.Dos seus lábios, trémulos e torcidos, saíam palavras entrecortadas de soluços:- Manuel! Manuel!...Benedita aproximou-se da ama e deixou-se cair de joelhos junto dela. Choravabaixinho. Os seus olhos fitaram o rosto de Manuel Ribeiro, duma serenidadeabsoluta e indiferente, e desceram pelo braço até à mão lívida que tocava otapete. Lentamente, baixou-se e beijou os dedos frios e inertes. Que importava?Agora ele já não era de ninguém da Terra. Ninguém tinha direitos sobre ele, anão ser Deus.Maria Leonor levantou-se de golpe e gritou, com desespero:- Meu Deus, meu Deus! O meu Manuel, por que mo mataste, Senhor?Caminhou deliberadamente para o oratório e, com o braço direito, varreu asvelas, as imagens, os solitários floridos, que se estilhaçaram no chão. Benedita,estupefacta, levantou-se, e, apertando Maria Leonor nos braços, gritou:- Que faz, minha senhora? Sossegue, por amor de Deus!...Um tropel, vindo do lado da porta, fez-lhes voltar as cabeças aflitas. Os criados,tremendo de medo, tinham subido a correr as escadas, e estavam agora entre osumbrais da porta, mirando, com os olhos rasos de lágrimas, o corpo do patrão.Entraram, um por um, contrafeitos.Dentre eles saiu o ruído dum soluço e, imediatamente, as lágrimas caíram detodos os olhos. Rodearam o leito. Jerónimo, o abegão da quintal, levantou comrespeito o braço de Manuel Ribeiro e depô-lo sobre as cobertas, acariciando-lhe amão gelada com os dedos calejados e duros.

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II O dia amanheceu cinzento e chuvoso. A terra, ensopada de lama, saturava-se daágua, que escorria pelas valas, formando riachos e inundando as culturas. A portada casa, abrigados debaixo da alpendrada, os trabalhadores olhavam a desolaçãodos campos desertos e espreitavam o céu, carregado e soturno, que se desfaziaem chuva. Do interior, vinha um cheiro pesado de coisas mortas, de floresemurchecidas. Todo o dia se passou no meio do temporal, que não findava, entrevultos escuros que entravam e saíam, de olhos vermelhos, suspirando.O velho Jerónimo, que velara o corpo de Manuel Ribeiro durante a noite inteira eque em todo o dia não arredara pé de junto dele, saía agora, cansado,lacrimejante, as mãos um pouco trémulas. Deixou-se cair em cima dum dosbancos de pedra que ladeavam a entrada e, com a cabeça entre as palmas dasmãos, começou a chorar. Os outros aproximaram-se e ficaram olhando o velho.Ninguém disse uma palavra sequer. Apenas o ruído da chuva no terrenoensopado e os soluços sufocados do abegão se ouviam. Depois, um dos homensabeirou-se de Jerónimo e disse, numa voz sumida:- Então, senhor Jerónimo, não chore! Deus Nosso Senhor quis levar o patrãoManuel e lá devia ter as suas razões para isso...Jerónimo ergueu a cabeça embranquecida e replicou:- Cala-te, rapaz! Que percebes tu destas coisas?Um homem daqueles não devia morrer tão novo. Seria melhor que Deus melevasse a mim, que já não faço falta. Não, rapaz, Deus não é justo!- Estás enganado, Jerónimo! Deus é que sabe o que faz. Nós é que nãocompreendemos que a sua vontade não pode prender-se com os nossosdesejos!...Ouvindo estas palavras, pronunciadas em tom grave e solene, todos se voltaram.Tiraram os chapéus e os barretes ao reconhecerem o prior, que, debaixo dumchapéu-de-chuva que escorria água para cima da capa preta que vestia, osfitava.Jerónimo abanou a cabeça e respondeu:- O senhor prior deve ter razão! Tem razão, com certeza: basta ser quem é!...Mas não é um dó de alma ver aquele homem, que foi a vida desta terra,estendido numa cama, inteiriçado, morto?!... Acabou tudo para ele. Nunca maishá-de perguntar-me, com aqueles modos que nunca vi noutra pessoa em toda aminha vida:“Jerónimo, então como vão os homens?” E a alegria que eu tinha quando lhedizia que estavam todos bons e contentes com o trabalho!...

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- É verdade, Jerónimo, que o senhor Manuel Ribeiro, que Deus tenha em suasanta glória, era um homem de bem. Mas os homens de bem também morrem,como morrem os criminosos, os maus. E para que isto possa suceder assim, Deustem as suas razões. Só ele sabe o que quer e por que o quer. E nós, mortais quesomos, nada temos a fazer senão conformar-nos com a sua vontade...Dizendo isto, o padre avançou por entre o grupo, abraçou o abegão, que tremia,abalado pelos soluços, e entrou em casa. Desembaraçou-se da capa e do guarda-chuva e subiu lentamente a escada que levava ao andar superior. Deteve-se,comovido, quando chegou ao patamar. Mexendo distraidamente nuns blocos demadeira pintada, duas crianças encolhiam-se a um canto. Não riam, e nos seusmodos o sacerdote notou um constrangimento indefinido. A atmosfera pesava-lhes nos ombros delicados e frágeis. A mais velha, um rapaz, ao ver o padre,correu para ele, pulando para lhe chegar aos ombros. A outra lançou-se atrás doirmão. O pastor baixou-se para a agarrar e, com os dois ao colo, sentiu aslágrimas correrem-lhe pelas faces, enquanto pensava: “Deus deve ter razão... Eunão sei, mas Deus deve ter razão... “O rapazinho, atentando-lhe no rosto, perguntou, ansioso:- Que tem? Por que é que está a chorar?O padre depôs as crianças no chão e levou-as para o canto, dizendo:- Não tenho nada, Dionísio, eu não estou a chorar!- Deixa-te estar aqui sossegado com a tua irmã, que eu volto já...Limpando as lágrimas com as costas da mão, dirigiu-se para uma porta, queabriu. Encontrou-se numa sala obscura, onde um homem, sentado numa cadeirade balanço, olhava, abstracto, para o campo, que se estendia diante da casa. Aoruído da porta, fechando-se, aquele teve um estremecimento e voltou a cabeça.Vendo o padre, levantou-se e dirigiu-se-lhe, de braços abertos. Quedaram-se porlargo espaço, abraçados e mudos.Desprendendo-se, o sacerdote disse, depois:- Coragem, António! E precisa coragem para suportar um desgosto destes!...quando mais esperanças havia de salvá-lo, quando a pior crise estava passada.Nada fazia esperar isto! Nada, absolutamente nada!Encostou-se a uma mesa e, deixando cair os braços, desalentado, olhou para umaporta fechada e murmurou:- A Maria Leonor está ali, no quarto. Não consegui convencê-la a sair um pouco.Insisti e ela mandou-me sair, imediatamente. Tive de vir... Está muitoperturbada, e eu mesmo sinto quase a razão a fugir-me. Veja se a acalma...Sentou-se na cadeira e suspirou. O padre respondeu em voz baixa:

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- Sossega também, António. Não entres... Deus nos dê forças para sofrer estaangústia!Colocou a mão sobre a tranqueta da porta e rodou-a, devagar. Junto da cama,aglomeravam-se os criados, de joelhos, rezando. Aos pés do caixão, onde tinhamjá colocado o corpo de Manuel Ribeiro, Maria Leonor soluçava. O espectáculodo seu sofrimento quase produzia uma dor física.O sacerdote acercou-se, de mãos postas. Benedita ergueu o rosto para ele e,depois, com os olhos fitos na face do amo, continuou a oração.A claridade das velas lutava com a escuridão do quarto fechado, provocandouma meia luz impressionante e trágica, mais trágica que as próprias trevasabsolutas. O cheiro das flores murchas misturava-se com o odor da ceraqueimada e inundava o quarto de uma atmosfera densa, carregada deperturbações.No corredor, uma criada desmaiou. Levaram-na, à pressa, levantando um ruídode pés arrastados, que fez voltar o rosto transtornado de Maria Leonor. Umdesejo furioso de expulsar toda a gente dali se apossou dela; apenas a voz darazão a impedia de gritar que a deixassem, até morrer também, aos pés docadáver do marido.Nesse momento, entraram Jerónimo e três outros camponeses. Todos de cabeçadescoberta e curvada caminharam para o padre, ao ouvido de quem o abegãopronunciou algumas palavras em voz baixa. O prior acenou afirmativamente e,dirigindo-se a Maria Leonor, levantou-a. Jerónimo fechou o caixão. MariaLeonor, aparvalhada, olhava para ele. Súbito, arrancou-se dos braços do padre,correu para Jerónimo e tirou-lhe a Chave. Tentou abrir de novo a tampa doataúde. Os seus dedos trémulos procuravam atabalhoadamente erguer o pesadomadeiro. A desesperarão, a impotência, o desalento, perpassaram-lhe no rosto.Cambaleou, abrindo e fechando as mãos no ar, e tombou no sobrado, desmaiada.Jerónimo e os companheiros levantaram o caixão sobre os ombros eencaminharam-se para a porta. Benedita soergueu Maria Leonor, que, voltando asi, se levantava, forcejando por se manter de pé. O padre amparou-a. Beneditapassou-lhe também um braço em volta da cintura e os três seguiram, lentamente,os homens que conduziam o corpo de Manuel Ribeiro.António, que abrira a porta da sala onde o padre o deixara, juntou-se-lhe,cabisbaixo. Os criados afastavam-se no corredor largo para o deixar passar.Jerónimo e os trabalhadores vergavam sob o peso do ataúde e inclinaram-seassustadoramente ao começar a descer a escada.As crianças, no patamar, olhavam admiradas para o cortejo: os fatos escuros, aslágrimas, os suspiros abafados punham-lhes nas almas manchas de sombra efaziam-nas tremer, angustiadas. Uma criada correu para elas, e com o avental

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aberto diante dos olhos tapou-lhes a visão desoladora. Maria Leonor, amparadapelo padre e por Benedita, nem nelas atentou. Os seus olhos iam atrás daquelacaixa comprida e estreita.Chegados ao rés-do-chão, os homens que suportavam o ataúde hesitaram ummomento. Lá fora, a chuva desabava em catadupas torrenciais, tamborilando nasvidraças e entrando pela porta aberta, soprada pelo vento. Os salpicos da águapunham calafrios nas faces congestionadas dos trabalhadores, encostados àsombreiras da porta. Alguém lembrou, timidamente, que seria melhor esperarque a chuva abrandasse um pouco. Baixaram o caixão sobre quatro cadeiras equedaram-se todos em volta, um tanto envergonhados com a consciência vaga ehumilhante de que temiam molhar-se por causa do morto.A chuva redobrava de violência. O céu tingia-se duma cor escura. Riscosluminosos começavam a sulcar as nuvens e o som ribombante da trovoadapercebia-se ao longe. A espera prolongava-se e um sentimento de mal-estar esaturação apoderava-se de todos, quando Maria Leonor, que se mantivera calma,quebrou o silêncio:- Vamos!Voltaram-se surpreendidos para ela, e António observou:- Mas, Maria Leonor, esperemos mais algum tempo...A voz dela soou, novamente, agreste, dura, destacando as sílabas:- Cala-te! Vamos embora, vamos embora!...Pronunciou estas palavras com um tom de voz semelhante ao som duma cordaretesada e vibrada, prestes a quebrar. A última palavra terminou num soluço.Novamente o caixão foi içado para os ombros dos trabalhadores. Saíram para aalameda que corria em linha recta para o portão da quinta. A chuva encharcou-os no mesmo instante. Ao cair sobre a tampa do ataúde, produzia um rumorsurdo e contínuo de baquetas em pele de tambor e escorria depois pelas abas,indo pingar no chão enlameado, onde se sumia.Com lentidão, o cortejo pôs-se a caminho, passando debaixo das árvores queladeavam a estrada. As folhas largas recolhiam a chuva e deixavam-naescorregar em grossas gotas pelos troncos luzidios.Debaixo do arvoredo, o préstito atardava-se, desenrolando a longa fita de fatosescuros e rostos chorosos.Passava agora no largo portão escancarado. Para lá, era um descampadoimenso, onde a chuva caía em lençóis líquidos das nuvens baixas e cinzentas, quecorriam do Sul, fustigados por um vento gelado.Sob o guarda-chuva que Benedita sustentava, Maria Leonor seguia atrás do

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caixão, indiferente ao temporal.Os seus lábios frios não emitiam o mais leve som.Olhava na sua frente as guarnições douradas do caixão, como se descobrissenelas motivos de interesse. Depois, demorou a vista, com uma atençãoinconsciente, no correr de um fio de água que ia embeber-se nos cabelos de umdos moços que caminhava diante de si.No campo em direcção à aldeia, endireitou o cortejo, chapinhando na lama quese agarrava às solas sofregamente como se a cada passada se abrisse o chão. Achuva diminuía, quando chegaram às primeiras casas do lugar.Nas valetas empedradas corria a água com um rumor gargarejante e agradável.Aos postigos assomavam rostos femininos que acenavam tristemente,murmurando palavras de dó, e se debruçavam no parapeito, seguindo, com oolhar, a cauda do cortejo, que se arrastava na rua.Quando passaram em frente da igreja, onde os sinos tocavam a finados, a chuvacessou subitamente, e o vento frio, que arrastava as nuvens, deixou ver umanesga de céu de um azul molhado e cintilante, puríssimo.Um feixe de luz desceu sobre os telhados, fazendo brilhar as telhas húmidas.Os quatro homens que conduziam o caixão, chegando ao fim da rua, cortaram àesquerda e começaram a subir a ladeira que levava ao cemitério.No arco da entrada, uma caveira de pedra, cruzada por duas tíbias, abria asórbitas vazias com uma expressão de gélida indiferença, espectadora, há dezenasde anos, da agonia daqueles rostos aflitos e da tristeza daqueles fatos escuros.Ao fundo da álea central erguia-se o muro branco, agora manchado dehumidade. No lado de fora cresciam oliveiras, que deitavam os ramos quasedespidos para dentro do cemitério. Rente ao muro, era a cova onde ia sersepultado o corpo de Manuel Ribeiro. Os trabalhadores arriaram lentamente ocaixão sobre uma padiola e endireitaram-se, arquejantes, sentindo nos ombros ador vincada pela madeira. Lentas, grossas gotas de suor corriam nas facescrispadas pelo esforço. Jerónimo encostara-se ao muro e limpava o suor com amanga da jaqueta.Fez-se um silêncio pesado. O céu varria-se de nuvens naquele ponto e o azulmostrava-se agora esplendente e luminoso. A volta, em todo o horizonte,acastelavam-se sombras.O padre acercou-se da beira da cova, e fazendo os gestos do ritual sobre ocaixão, rezou o ofício dos mortos. Na quietude do entardecer frio, as palavraslatinas soavam mansamente, murmuradas pelos lábios trémulos do sacerdote.Todas as cabeças se descobriram e em todas as bocas a tristeza e o desgostoacharam palavras. Um coro de murmúrios e de soluços se levantou.

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Do portão do cemitério vieram uns passos arrastados conduzindo uma enxada. Ocoveiro acercou-se do buraco e, depois de ter deitado um olhar de revés aocaixão, medindo-lhe mentalmente o comprimento, começou a alongar a covacom enxadadas firmes e certeiras. A terra caía no fundo com um ruídoininterrupto ao mergulhar na água acumulada lá dentro. Um tufo de verdura foilevado, também, pelo gume da enxada. Cintilou como uma esmeralda viva, nomeio da água barrenta.Maria Leonor, de cabeça baixa, pensava quão longa se estava tornando a cova.Os seus olhos secos iam das mãos peludas do coveiro para o traço brilhante daenxada. O homem resmoneava, fazendo rodar a ponta dum cigarro apagado,dum para o outro lado da boca, enquanto desfazia os torrões que se soltavam sobo impulso do ferro.Depois duma última olhadela, o coveiro largou a enxada, batendo com as mãos,para sacudir a terra e, endireitando o olhar para o padre, murmurou, enquantoescondia o cigarro:- Pronto, senhor prior!O sacerdote voltou-se para Jerónimo, num convite mudo, que o abegão atendeu,agarrando uma das pegas do caixão. Os outros trabalhadores baixaram-setambém, e a um tempo ergueram a pesada caixa que suspenderam sobre a cova.Passaram-lhe por baixo duas cordas e deixaram-na escorregar lentamente,raspando as paredes do buraco. De manso, pousaram-na no fundo coberto deágua, e soltaram as laçadas.Maria Leonor deixou o braço de Benedita e deu dois passos para a frente,debruçando-se para a sepultura. Gemia baixinho, como se a dor não pudesse jáexprimir-se em gritos. Curvou-se rapidamente e deixou-se cair de joelhos sobrea terra molhada e negra. Os seus dedos crisparam-se nos torrões macios,esmagando-os um por um. As lágrimas desciam-lhe pelo rosto.O coveiro, abrindo as pernas sobre os lados da cova, começou a enchê-la. MariaLeonor, de novo, olhou-lhe as mãos cabeludas e negras e, de repente, sem umgrito, sem uma palavra, atirou-se ao homem, mordendo-lhe os terra dedos, comfúria. O coveiro soltou uma praga imunda e, dando um salto para trás, empurrou-a, fazendo-a cair no chão.Sobre o ataúde rolaram alguns torrões.Aquela violência rebentou o dique que sustinha o desespero de Maria Leonor. Eos muros do cemitério repetiram, uma vez mais, os ecos cansados da desolação.

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III O regresso foi penoso. Na carroça que a conduzia, Maria Leonor, deitada numacamada de palha húmida, chorava. O padre, curvado para ela, olhava-a comuma tristeza impotente. Quisera pronunciar as palavras balsâmicas que consolamas magoas e secam as lágrimas, mas toda a sua piedade de sacerdote nada lheinspirava além do silêncio.Benedita, em cujo colo repousava a cabeça de Maria Leonor, fixava a estradaapaticamente, enquanto acariciava os cabelos da ama. Pensava na trágica cenado cemitério e, diante de si, saltando no cascalho da estrada, pareceu-lhe ver acaveira de pedra, caminhando sobre as duas tíbias cruzadas. Esfregou os olhos,assustada, e a visão desapareceu. Agitada pelos solavancos do carro, sentiu ahumidade da palha infiltrar-se-lhe nos vestidos e arrepiar-lhe a pele. Olhou paraMaria Leonor e viu-a ofegante, com um tom rosado no rosto. A respiração saía-lhe sibilante dos lábios secos e gretados pelo frio e, a espaços, percorria-lhe ocorpo um longo arrepio.Benedita voltou-se para António, que guiava, e exclamou, inquieta:- Pare, senhor doutor, pareiAntónio puxou as rédeas com violência, fazendo encabritar o animal, querinchou, dorido. O padre perscrutou o rosto de Maria Leonor e disse:- Parece que não está bem!António, curvando-se sobre o banco, tomou o pulso da cunhada e, pelo espaço dealguns segundos, manteve-se silencioso e atento, enquanto o padre despia o longocapote e cobria o corpo de Maria Leonor:- Tem febre!... - murmurou.E logo voltando às rédeas, empunhou o chicote e fustigou os flancos do animal,que rompeu num trote rasgado pela estrada fora, fazendo saltar as rodas naspedras soltas do caminho. Benedita, apertando contra si o corpo de Maria Leonor,protegias dos saltos bruscos que lhe atiravam o tronco contra os taipais dacarroça,Correram assim todo o caminho até ao portão da quinta, que entraram, rasandoas grossas colunas de pedra. Estacaram diante da porta da casa. Subiram aescada apressadamente, carregando o corpo de Maria Leonor, perante o pasmodos criados que se aglomeravam nos degraus. António, impaciente, empurrou-os:- Fora daqui, brutos! Deixem passar!... Tu, rapaz, salta já para a carroça que estálá em baixo e vai chamar o senhor doutor Viegas. Depressa!No patamar, estavam ainda Dionísio e a irmã. Ao verem a mãe amparada pelo

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padre e por Benedita, começaram a chorar. No burburinho das vozes aflitas quese levantou, o choro das crianças soava nítido e comovente. Maria Leonorentreabriu os lábios e, olhando os filhos, que se lhe agarravam à saia, murmurou:- Meus filhos, meus pobres filhos!...Levaram-na para dentro, Benedita e uma criada. Quando a encaminhavam paraum dos quartos de dormir da casa, Maria Leonor resistiu, tentando andar sozinha,e dirigiu-se para o seu próprio quarto. Entre os umbrais, parou. Benedita seguiu-a,ansiosa, vendo-a caminhar, agora, encostada à parede, em direcção à cama,onde, sobre a alvura do travesseiro, descansava uma almofada.Maria Leonor franziu as sobrancelhas como se procurasse recordar qualquercoisa. Voltando-se para Benedita, perguntou, numa voz sumida, quase inaudível:- Por que não puseram também a outra almofada?Soltou um grito de susto vendo a ama cair inanimada sobre o leito. Correu paraela e deitou-a. Maria Leonor tremia de frio. Benedita, auxiliada pela outra criada,cobriu-a, e sem se voltar para a companheira disse rapidamente:- Teresa, chama o senhor doutor Ribeiro! Não te demores!Teresa saiu, apressada, e quase esbarrou à porta da sala com António, que vinhaentrando.- Senhor doutor, vá ao quarto da senhora!... A Benedita acabou de deitá-la, agoramesmo. Parece que está muito malzinha!...O rosto pálido de Maria Leonor, emoldurado pelos cabelos loiros, desfeitos sobrea almofada, estava imóvel. Apenas um leve tremor nas asas do nariz indicava arespiração débil e fervente.Benedita tirou duma gaveta um frasco de sais, com que tentou fazer voltar a amaa si. Maria Leonor agitou-se entre os lençóis, num arrepio lento, e abriu os olhos,esgazeados de espanto e incompreensão. Olhou para António e tapoupudicamente com as mãos o peito descoberto.O cunhado desviou o olhar e pediu uma toalha a Benedita, que, atarantada, abriae fechava gavetas, desmanchava roupas, desgrenhada e aflita. Depois, voltando-se para Maria Leonor, disse-lhe:- Leonor, senta-te na cama. Benedita, ajuda a ampará-la pelas costas. Assim...Desdobrou a toalha e encostou-a ao peito branco de Maria Leonor. Apoiou nele oouvido e mandou-a respirar profundamente. Franzindo a testa, preocupado,concentrava a atenção nos rumores que atravessavam o tecido e lhe iam ferir oouvido atento.Benedita sussurrou do outro lado:- Então, senhor doutor?...

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- Cala-te!Os fervores que percebia eram de mau agouro. Auscultou-a pelas costas e, denovo, as mesmas rugas de preocupação se lhe cavaram na testa.Nesse instante, um rodar de carroça se ouviu na alameda e parou debaixo dajanela. Alguém saltou do carro, apressadamente,- Benedita, vai ver quem chegou! Deve ser o doutor Viegas...A criada foi à janela ainda a tempo de ver entrar o médico.- É sim, senhor doutor! - respondeu.António sentou-se na cadeira, aguardando.Um ruído de passos precedeu a entrada dum homem forte, de cabelos e bigodesgrisalhos, com uns óculos de aros grossos de tartaruga, que lhe defendiam osolhos míopes.António levantou-se, dizendo:- Como está, doutor? - e logo, mudando de tom, em voz baixa, para que MariaLeonor o não ouvisse: - Depois de um falecimento, uma doença. Aqui está aLeonor, que pelo que me parece, tem uma pneumonia em estádio evolutivo jámuito adiantado.Viegas acenou com a cabeça e, distraidamente, olhou em volta, perguntando:- Já saiu o funeral?António, surpreendido pela pergunta, respondeu com intenção:- Já sim, doutor! Não sabia que o Manuel morreu?O médico piscou os olhos, fitando o irmão de Manuel Ribeiro, e respondeu:- Sabia, sabia, sim, meu rapaz! Que é que tu queres dizer com isso? Queres dizerque eu, velho amigo da casa, devia ter comparecido e acompanhar, à últimamorada, o Manuel? E que devia mostrar-me mais contristado e lacrimoso?Maria Leonor, que ouvia o diálogo, impassível, como se não o compreendesse,continuou:- É isto o que queres insinuar, não é verdade? Pois bem, meu rapaz, eu cuidavade um vivo enquanto tu enterravas um morto. Querias que abandonasse o JoãoPernas, que tu não conheces, com certeza, com o ventre furado pela chifrada deum boi? Em matéria de sentimento, ainda vou pelos vivos, por maior respeito quetenha pelos mortos. Compreendes? Ninguém, nesta terra, sentiu o falecimento doManuel tão profundamente como eu, mas o que eu não podia era deixar morrerum homem, só para acompanhar ao cemitério um outro, fosse ele, até, meuirmão ou meu pai!Levantou-se e, olhando para António, que o escutava em silêncio, murmurou:

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- Parece-me que não erraste o diagnóstico! A Leonor tem, de facto, umapneumonia. E grave! E preciso tratá-la, se não quisermos vê-la morrertambém!...Debruçando-se para Maria Leonor, afastou-lhe os cabelos da testa abrasada e,dando-lhe uma pequena palmada na face, disse:- Ora tu, Maria Leonor, que resolveste adoecer... Má altura, não haja dúvida...Bom, agora já aqui não sou preciso!... Volto para o João Pernas. Sabes o quedeves fazer, não é verdade, António? Eu voltarei amanhã. Adeus!...Ao sair, passou por Benedita, que o olhava, suspeitosa. O médico sorriu e,parando diante dela, pôs as mãos na cintura e perguntou-lhe, agradado:- Parece que viste o inimigo, Benedita?! Quantas vezes te tenho dito que não soutão mau como me pinta o padre Cristiano?Benedita corou, envergonhada. Pensava, exactamente, que o doutor Viegas seriaum excelente coração se não fosse tão brusco no dizer, ralhando por tudo e pornada, sem se preocupar com a idade ou a situação de quem o ouvia. Aindaagora, o que ele dissera ao senhor António Ribeiro... Quanto ao senhor padreCristiano, não dizia ele mais do que toda a gente sabia: que na casa do Parreiralninguém rezava o terço e que nunca os joelhos do médico tinham sentido adureza fria das lajes da igreja. Os criados de Viegas rezavam pela mesmacartilha do patrão. Uma peste! Deles costumava dizer o médico que eramescravos a quem tinha dado carta de alforria.Benedita, sem responder, preparava-se para acompanhar Viegas à porta, mas omédico, olhando para António e Maria Leonor, disse:- Não, não te incomodes, Benedita! Fica! Eu sei o caminho!... - e como se tivesseachado uma boa pilhéria: - Eu sei o caminho! Heim, que te parece, Benedita?Achas que, realmente, sei o caminho? Levo o padre Cristiano e aproveito paralho perguntar...Saiu, apressado, para voltar daí a momentos, chamando Benedita para ocorredor:- É preciso cuidar daquelas crianças, agora, ouviste. De ambas, masprincipalmente o Dionísio... Nunca me pareceu muito forte.Enrolou-se no capote que trazia vestido e, depois dum aceno de despedida, partiu.No quarto, Maria Leonor descerrou as pálpebras, e olhando com indiferençapara a criada, que regressara, perguntou:- Que tenho eu? Que veio cá fazer o doutor Viegas?António, que preparava umas ventosas, respondeu, sem se voltar:- Não tens nada! Um pouco de febre, talvez... Isso passará com repouso e

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tratamento adequado. Deves descansar! E, na realidade, ele agora está melhor,não é certo?António voltou-se, surpreendido. Maria Leonor, muito branca, cruzara as mãossobre o peito e aguardava a resposta. António titubeava, embaraçado:- Mas, Leonor, tu... não...Lá fora, sobre o empedrado da valeta, caiu uma enxada, produzindo um somclaro de metal são e forte.Maria Leonor levou as mãos à cabeça, apavorada, e sentando-se na cama olhouem volta, ansiosa. Não queria acreditar no que estava pensando. Fitousucessivamente o cunhado e Benedita, e perguntou, tremente, medrosa daresposta:- O Manuel?... É verdade que morreu? Não sei, recordo-me de qualquer coisaque se passou hoje!... O que foi? Digam-me...Deteve-se. Através da janela e por entre a neblina do dia escuro que findava,avistou, ao longe, sobre o cabeço, as paredes brancas do cemitério. O choque foibrutal. Como uma inundação, as recordações submergiram-lhe o cérebro,paralisaram-lhe a voz, fizeram-na tremer de horror. Estendeu os braços para afrente, quis repelir a visão trágica. A febre parecia aumentar nos seus olhos osmuros brancos, que avançavam na sua direcção, caminhavam pelo campo,rompiam pela janela e sufocavam.Caiu sobre as almofadas, gemendo:- Não, não, não!...

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IV Durante longos dias, o temporal fustigou a região. Todas as tempestades doUniverso pareciam ter ido localizar-se sobre a quinta deserta e os telhados dacasa e, mais longe, sobre a aldeia, acaçapada e inerte, à beira do caminho.Perseguindo-se, furiosas e incansáveis, numa corrida veloz e desordenada, asnuvens, pardas, de reflexos metálicos e esbranquiçados, roçavam quase os ramosmais altos das árvores, esgalhadas pelo vento e desfolhadas pela chuva.Um raio caiu no palheiro da quinta e, durante a noite inteira, durante horaspavorosas, as chamas devoraram todo o casarão. Um archote gigantesco seelevou da terra, rubro e violento como o caos original, e foi incendiar as nuvensque lhe passavam por cima, soltando gotas de água, cintilantes e rosadas, quecaíam na fogueira imensa sem a apagar. Por aquelas longas horas, lentas enegras, com sulcos delirantes de fogo, os homens e as mulheres da quintalançaram mão de tudo que pudesse apagar o incêndio. Enegrecidos, queimados,labutavam, exaustos e vacilantes, procurando salvar o celeiro, cujas paredes setisnavam já, também, com o fumo espesso da palha molhada que ardia sempre.Quando alvoreceu, apenas restavam de pé as paredes mestras do palheiro, largase reforçadas. Deixando, aqui e acolá, os baldes e os cântaros, pelos caminhosenlameados e negros das fagulhas e dos tições que o fogo lançara ao ar e quecaíam no chão com um chiar agudo e rápido, os homens encaminharam-se paraas malhadas, onde o abegão dava, a cada um, meio copo de aguardente forte,que os reanimava, espantando o frio insidioso que lhes invadia os membroscansados.Estenderam-se, arquejando, nos molhos de palha lançados ao acaso ao compridodas paredes. Jerónimo, de mãos enfiadas nas algibeiras, encostado à ombreira daporta, mirava, abanando desalentadamente a cabeça, as ruínas negras, aindafumegantes, e mais longe, ao fundo, a casa, cujas janelas cerradas tinham um armelancólico e desesperado, na meia luz do amanhecer. Do nascente, vinha umaclaridade dum amarelo-rosado, que fazia brilhar os contornos torturados dasnuvens que se acastelavam no céu.De dentro, com as lufadas do ar em que pairava um cheiro a suor e a palha seca,saía o ressonar monótono dos homens exaustos. Um ou outro levantava-se e,dirigindo-se ao pichel, emborcava mais um gole de aguardente. Pigarreava,voltava ao calor da palha, deixava-se cair de braços abertos, num espasmoangustiante de animal cansado.Por entre as filas dos adormecidos, Jerónimo dirigiu-se para o fundo da casa e,duma manjedoura derrubada, tirou enormes mantas, grossas e felpudas, queestendeu sobre os trabalhadores. Um deles, ainda não completamente

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adormecido, piscou os olhos inflamados e balbuciou:- Obrigado, mestre Jerónimo!- Dorme, rapaz.O abegão, lançando por cima dos ombros uma saca de serapilheira áspera, saiu,sob a chuva, e encaminhou-se para casa. A uma criada que passava, saltandopara evitar as poças de água, perguntou:- A senhora, rapariga?...A mulher estacou, equilibrando-se sobre uma pedra que emergia do lamaçal, erespondeu:Lá está! Melhoras, nenhumas... Desde que o patrão morreu, tem definhado dedia para dia. Diz a Benedita que será um milagre se se salvar. Deus a oiça...Interrompeu-se para saltar abaixo da pedra e, depois de raspar a lama dostamancos com a ponteira do guarda-chuva, continuou:- Parece que a casa está embruxada. Doenças, mortes, fogos, não há mal quenão nos chegue!...Jerónimo olhou distraído para a rapariga, que tagarelava sobre benzeduras eexorcismos e, continuando o caminho com um encolher de ombros indiferente,redarguiu:Está bem, está bem, rapariga! Não digas parvoeiras...De longe, a criada ainda gesticulava, de guarda-chuva na mão. Jerónimo,chegando à porta, bateu de leve e entrou, depois de sacudir no poial as botascardadas. Benedita, que descia nesse momento a escada, perguntou:- Então, o palheiro?- Ardeu todo. Só ficaram as paredes e essas mesmas caem, com certeza. Serápreciso fazer outro, desde os alicerces até ao telhado.Calou-se. Parados diante um do outro, pensavam em coisas diferentes, que nãono palheiro e no incêndio. O pensamento de ambos estava num quarto da casa, aessa hora mergulhado numa penumbra doce e resignada, onde flutuava umcheiro mole e pegajoso de remédios.Benedita sentou-se pesadamente e disse, como se respondesse a uma pergunta:- A senhora está um nadinha melhor esta manhã! Mas tem passado tão mal...Jerónimo ergueu a cabeça quase branca e murmurou:- Não há nada que não tenha acontecido nesta casa de há uns tempos a esta parte.- Sim!... - respondeu Benedita. - De há um ano para cá. Desde que o senhorAntónio voltou do Porto.

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- É verdade. Parece que a má sorte veio com ele. Más colheitas, Inverno ruim, amorte do patrão, tudo...Benedita, desalentada, deixou cair as mãos no regaço e suspirou:- Tudo - depois, mudando de tom, perguntou: - E o que irá ser de nós, agora,senhor Jerónimo?O abegão encolheu os ombros e, tirando a saca, respondeu enquanto fitava nochão as manchas húmidas das suas botas:- Eu sei lá, Benedita! Isto já não andava bem com a doença do patrão. Agora, elemorreu, a senhora está doente, que queres que eu faça? É uma casa perdida... Eolha que é uma pena! Um brinquinho, este chão!Dizendo isto, limpou às escondidas uma lágrima que lhe molhara as pálpebrasavermelhadas e continuou:- A não ser que o senhor António...Benedita ergueu a cabeça num gesto violento e ripostou:- Isso não, senhor Jerónimo! Alguma coisa se há-de fazer sem o auxílio dosenhor António Ribeiro! E demais, que podia ele fazer aqui? Um médico...Fez um trejeito depreciativo, sacudindo os ombros.Jerónimo olhou-a com atenção e murmurou como se falasse para si:- Parece que não gostas do senhor António Ribeiro, Benedita. Porquê? Que mal tefez?A criada corou e, acenando precipitadamente a cabeça, respondeu:Que ideia, senhor Jerónimo! Por que não havia de gostar dele?- Não sei, não sei! Talvez fosse impressão minha. Sim, deve ser isso, foiimpressão.Endireitou-se e, deitando um olhar a Benedita, que se atarefava na sala, disse-lhe:- Bem, adeus, Benedita! Se o tempo mudar, começo hoje com a calda bordalesano batatal do Canto da Ponte. Se não mudar, será mais um dia de costas direitas.Estimo as melhoras da senhora. Que Deus Nosso Senhor a guarde!- Adeus, senhor Jerónimo! Recomende-me à senhora Clementina.A porta fechou-se atrás do abegão, cujos passos arrastados se ouviram ainda,durante algum tempo, lá fora. Benedita tornou a subir a escada e entrou no quartoda ama.Maria Leonor, reclinada nas travesseiros, dormia. As cobertas, subidas até aosombros, apenas lhe deixavam ver o rosto emagrecido e febril. Os cabelos finos ecorredios caíam-lhe aos lados das faces cavadas pela doença. Brilhavam-lhe

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alguns fios brancos, que serpeavam em largas curvas, indo esconder-se sob opescoço levemente flectido, onde surgiam pequenas gotas de suor que, depois derolarem sobre a pele descorada, se iam embeber na dobra do lençol.Ao ruído dos passos de Benedita entreabriu os olhos e, encolhendo com vagar osombros lassos e pontiagudos, perguntou, numa voz lenta e preguiçosa:- Que foi que sucedeu para aí? Que vozes eram essas no terreiro, esta noite?A criada hesitou, mas logo, pensando que insignificante desgosto seria para aama o que se passara, comparando-o com os sucessos de há um mês, respondeucom indiferença, enquanto lhe ajeitava as almofadas:- Nada de importância, minha senhora! Apenas o palheiro que ardeu... Caiu-lheum raio em cima.Maria Leonor levantou as sobrancelhas, enrugando a testa, e indagou:- Ardeu todo?- Todo... - e todo, pressurosa, acrescentou. - Mas não se incomode, minhasenhora! O Inverno está no fim e, daqui até ao que vem, haverá tempo paraconstruir um palheiro igual ou ainda maior. O gado não há-de sentir a falta.- Sim, talvez não sinta. Olha, diz ao Jerónimo que trate de mandar levantar,encostado ao celeiro, um alpendre para abrigar a palha que se há-de comprar atéao outro Inverno, enquanto se não fizer o palheiro.Disse estas palavras com firmeza, numa voz calma e descansada, parandoapenas uma vez no meio da frase, para respirar fundamente. Benedita, inquieta,perguntou:- Está pior, minha senhora? Sente-se mal?Maria Leonor distendeu os lábios num sorriso e, apertando a mão de Benedita,pousada sobre a cama, respondeu:- Não, sinto-me melhor, até! Tenho ainda aqui a pontada, mas de tal maneira quequase a não sinto...Com os olhos rasos de lágrimas, Benedita experimentou uma alegria tãoprofunda que ajoelhou ao lado da cama e se inclinou sobre as mãos de MariaLeonor, que a acariciou em gestos lentos e cansados, olhando em frente acómoda onde os solitários floridos guardavam de novo a imagem branca daVirgem.De fora, através das cortinas de casa, discretamente cerradas, entrava aclaridade doce da manhã, que nascia detrás dos cerros do Oriente. Maria Leonor,afagando sempre Benedita, recordava outra manhã, alguns anos antes, em que aluz também entrava assim, terna e suave, como se fosse dotada dumasensibilidade feminina, pelas cortinas corridas, iluminando o quarto silencioso,

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onde pairava um vago perfume de flores de laranjeira. Recordava-se daquelamanhã e assistia agora ao romper do dia, imóvel, fraca, doente, com umaangústia desmedida na alma, uma dor intensa que lhe trazia lágrimas aos olhosardentes. Naquela cadeira, ao lado do lavatório, vira ela o seu véu de noiva.Lembrava-se da alegria profunda que a inundara, quando, de repente, sentira apresença do marido adormecido, a seu lado.Em gradações imperceptíveis, a luz ia aclarando o quarto. Um feixe luminoso,doirado e brilhante, reflectido por alguma vidraça longínqua, fazia vibrar numaeuforia louca as partículas de pó suspensas na atmosfera, e alastrava-se numaparede, enchendo o aposento dum tom de esplendor que se espalhava nassuperfícies polidas dos móveis, reproduzindo-se infinitamente, empalidecendo,devagar, à medida que o Sol subia, branco e metálico.Maria Leonor suspirou e, atentando em Benedita, notou que ela adormecera, dejoelhos, ao lado da cama, a cabeça pendida sobre as cobertas, num cansaçocompleto que lhe vincava umas rugas fundas, que, partindo das asas do nariz,desciam até aos cantos da boca, descaída e murcha. Abanou-a devagar. Beneditadespertou, sobressaltada, com uma expressão de susto nos olhos estremunhadose, passando as costas da mão direita pela boca, bocejou longamente e sorriu,fitando a ama. Maria Leonor riu também:- Como tu estás cansada, Benedita! Andas exausta! Vai descansar, vai, anda!...A criada endireitou-se, pondo as mãos nos rins, e com uma careta de dor ergueu-se rapidamente, apoiando-se à cabeceira do leito. Enquanto caminhava peloquarto, agora claro, ia arrumando os móveis, e respondia:- Tenho tempo, minha senhora! Tenho muito tempo para dormir, quando asenhora estiver curada. Se Deus quiser, não há-de tardar muito que eu durmauma noite de um sono. Já há tanto tempo que não sei o que isso e...Calou-se bruscamente, perscrutando o rosto da ama para ver aquelas frasesimpensadas, aquele “há tanto tempo”, tinham acordado nela lembrançaspenosas. Maria Leonor, porém, estava calma e seguia com os olhos atentos olidar de Benedita. Ia responder, quando umas pancadas suaves na porta lhedistraíram a atenção. Quase a seguir, sem outro aviso e sem aguardar resposta, aporta entreabriu-se e uma cabeça ornada duma toca muito branca espreitou paradentro, perguntando:- Está melhorzinha, minha senhora? Passou bem a noite? Olhe, o senhor doutorViegas está na sala. Pode entrar?Maria Leonor compôs-se, apressada, na cama, deu um puxão aos lençóis, passoua mão pelos cabelos despenteados e respondeu:- Manda entrar, Teresa, manda entrar!

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A cabeça desapareceu e, daí a momentos, o doutor Viegas avançava, fazendo decaminho uma festa a Benedita, que recuou com um arreganho maldisposto.Apoiando-se nos colchões, sobre as mãos compactas e firmes, perguntou,mirando atentamente o rosto de Maria Leonor:- Então, Leonor, que tal te sentes hoje?- Melhor! Muito melhor, senhor doutor!Os olhos de Benedita brilharam, alegres, ouvindo as palavras da ama. O médicofranziu as sobrancelhas fortes e hirsutas e resmungou:- Melhor, melhor! Os doentes dizem-se sempre melhores quando se lhespergunta como estão. Como se os médicos não existissem para verem essas taismelhoras...Aquela maneira de falar de Viegas exasperava Benedita, que observou:- Parece impossível! Então não foi o senhor doutor que perguntou se estavamelhor? É vontade de falar!...Viegas voltou-se sorridente e respondeu:- Fui eu quem perguntou, evidentemente. Não sou eu o médico?Benedita deu-lhe as costas, furiosa, e pegando num pano sacudiu-o, violenta,sobre uma estatueta de Amor e Psiché, que oscilou bruscamente e deslizou notampo polido do móvel. Deitou-lhe as mãos e conseguiu detê-la quase na queda.Olhou de soslaio para o médico e, vendo-o atento a observar as suas manobras,corou e saiu do quarto, batendo os tacões no soalho do corredor.Maria Leonor, que seguira a cena, distraída, disse para Viegas:- O doutor faz zangar a minha pobre Benedita...Viegas deu de ombros, bonacheirão, e redarguiu:- Que queres? Gosto de brincar. E a Benedita, com o seu ar de quem toma tudo asério e detesta brincadeiras, desperta sempre o diabinho da boa disposição quetrago dentro de mim!Levantou-se, procurando uma toalha, e continuou:- Quando se chega à minha idade, Maria Leonor, há dois caminhos a escolher. Oprimeiro, o mais seguido, é o da contemplação passiva, da recordação dasalegrias passadas, disfarçando a nossa incapacidade para as sentir de novo; ooutro, aquele que eu palmilho, é o da alegria decidida e enérgica, tanto maisquanto mais raros e brancos vão sendo os cabelos da nossa cabeça, a alegria quenão vem do coração como a dos novos, mas sim a que é produto dumadeterminação toda cerebral, a alegria que se impõe porque vem donde menos seespera, dos velhos. O primeiro caminho é a impotência declarada de viver; osegundo é a vontade tenaz de não ceder nunca, de aguentar a vida enquanto a

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morte não chega...Um suspiro de Maria Leonor interrompeu-o. Atirou a toalha para um dosombros, puxou uma cadeira e, sentando-se, continuou, pausadamente:- Sei em que pensas, minha filha! O Manuel morreu. Tudo o que a vidarepresentava para ti, acabou. Com o corpo do Manuel, foram sepultadas tambémas tuas esperanças. Só te resta a contemplação dolorosa dos seus retratos, orelembrar das suas palavras, a recordação do seu amor. Eis o que pensas, não éverdade?Maria Leonor acenou afirmativamente e levou o lenço aos olhos para reprimir aslágrimas.Viegas, sem se mover, continuou:- E, no entanto, tu estás enganada, Maria Leonor! Perante os dois caminhos,escolheste o da desolação, o da tristeza e da inutilidade. Confessas-te fraca paraolhar a vida de frente e recolhes-te na contemplação do teu passado feliz. Querestirar daí o alimento espiritual dos teus dias futuros, sem veres que isso é a tuamorte. Com vinte anos menos, és mais velha que eu, que escolhi o melhorcaminho. Eu podia ter, também, sucumbido a um golpe semelhante ao que tusofreste, podia passar a minha existência inundado de pensamentos inúteis,lembrando a minha mulher falecida. Não o fiz, porém. Resolvi viver. Resolvideixar a minha morta em paz, pensar nela com uma saudade vaga e, apenas umpouco triste, dedicar um breve espaço da minha vida à amargura de a haverperdido. Ao princípio, custou-me. A felicidade é tão absorvente, habituamo-nostanto a ela que quando nos foge, quando no-la roubam, sentimo-nos incompletoscomo se uma parte essencial do nosso corpo tivesse desaparecido, deixando umachaga imensa e dolorosa, que não fecha e destila sempre o pus da nossadesventura. Mas como tudo isto é vão, Maria Leonor! Como nós complicamos aextraordinária simplicidade da vida! Como nós atribuímos ao simples correr dumelo da cadeia uma importância tão grande, minha filha! No fundo, é apenas isto:o cessar de uma existência, o apagar duma lâmpada. Os laços do sangue, ohábito, é que complicam esta sucessão, este passar do facho...Maria Leonor ouvia o médico, imóvel e serena, os olhos secos e brilhantes,recostada nos almofadões, suspensa.Viegas olhou-a atentamente e, pegando-lhe numa das mãos, de dedos longos,nodosos nas articulações, apertou-a entre as suas, como a uma pomba gelada eentorpecida, e prosseguiu:No fundo, ouves, Leonor?, é isto a vida e é isto a morte. Nada mais. Nãocompliquemos, portanto. É preciso viver. Tens dois filhos que dependem de ti. Semorres, eles estarão condenados. Não descarregues, então, sobre os seus pobresombros o peso da tua desolação e da tua cobardia de viver. Ensina-lhes que

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tiveram um pai honrado, que morreu, mas que revive em ti. Oh, Maria Leonor,se nós soubéssemos o que é de facto a vida, a sua natureza íntima, a suafinalidade, não teríamos palavras para exprimir a nossa alegria, para exteriorizaio turbilhão de prazer que a simples lembrança de que se é vivo nos traria!Interrompeu-se e levantou-se da cadeira. Caminhou para a janela e, de mãoscruzadas atrás das costas, deixou-se ficar olhando longamente o Sol, que subia nocéu muito azul, por detrás das nuvens transparentes.Maria Leonor baixara a cabeça e chorava, tremendo toda, mas sentindo aomesmo tempo uma calma estranha, um sossego imenso invadirem-lhe o corpo.Viegas voltou da janela e, agarrando, de novo, na toalha que tinha atirado paracima de uma cadeira, acercou-se da cama. Auscultou Maria Leonor comatenção e cuidado. Depois, puxou o cordão que pendia ao lado da cabeceira doleito. Aguardou durante alguns instantes, passeando no quarto, resmoneandopalavras ininteligíveis e gesticulando como se falasse com alguém. Maria Leonorseguia-o com um olhar inquieto. A porta abriu-se e entrou Benedita, que, ao ver aatitude do médico, parou alarmada. Viegas sorriu, piscou os olhos para MariaLeonor e abeirou-se da criada:- Que me darias tu, pequena, se eu te desse uma notícia agradável? Umadaquelas notícias de pular de alegria?! Por exemplo, que a senhora dona Leonorestá quase curada?!Benedita, que franzira as sobrancelhas, maldisposta, quando o médico começaraa falar, juntou as mãos num êxtase ao ouvi-lo pronunciar a última frase, ecomeçou a balbuciar palavras sem nexo, trémula, exaltada, sentindo uma loucavontade de rir, de rir muito, à gargalhada, acometida dum desejo infantil desaltar ao pescoço de Viegas e de o beijar, muitas vezes, até perder o fôlego.Nada disto fez, porém. As mãos, que juntara, como para rezar, procuraram,vacilantes, uma cadeira, onde se apoiaram. Chorou.Viegas, que lhe seguira a transmutação da fisionomia, ao vê-la comovida e achorar, bateu nervosamente com as mãos uma na outra, sentindo-se tambémimpressionado, e começou a falar em voz muito alta:- Ora esta! Benedita, então o que é isso? Não chores, mulher. Mas... e continua!...Pequena, então... Sossega! Não te encostes aí, tem cuidado!...Benedita afastou-se vivamente do móvel a que se encostara e, lembrando-se dacena da estatueta, não pôde deixar de sorrir por entre as lágrimas:- Não é nada, senhor doutor. Já passou.E voltando-se para Maria Leonor:- Minha rica senhora, que bom vai ser vê-la curada! Como se sente agora?Maria Leonor, que olhava absorta para o médico, respondeu:

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- Sinto-me bem, Benedita. E tão calma, tão sossegada, como j à há muito temponão estava...Dirigindo-se a Viegas, perguntou com uma voz que se esforçava para tornarfirme:- Quando posso deixar esta cama?- Depois de uns quinze dias de bom repouso, podes levantar-te quando quiseres.Acentuou intencionalmente as últimas palavras e repetiu:- Repara bem, Leonor, quando quiseres!...Despediu-se e saiu, fazendo um sinal a Benedita para que o seguisse. Nocorredor, manteve-se silencioso, mas, quando chegou ao patamar, virou-se paraa criada, pôs-lhe uma das mãos, fortes e duras, num braço e apertando-lho comafecto, disse:- A senhora deve-te a vida, Benedita!Os olhos da criada abriram-se, espantados de incompreensão, enquanto nacabeça lhe passava a súbita ideia dum milagre, produzido pelas suas orações,pelas rezas fervorosas que balbuciava, trémula de frio, nas longas noites de vigíliaà cabeceira da ama.O médico continuou:- Sim, é a ti a quem a senhora deve a vida. As probabilidades de cura erammínimas. Os meus remédios apenas te ajudaram...Benedita, compreendendo, enfim, agarrou as mãos do médico e beijou-lhas.Enquanto o fazia, lembrou-se do dia em que beijara o anel dum bispo que visitaraa quinta. Sentiu um arrepio, como se estivesse cometendo um sacrilégio.Murmurou, por fim:- Oh, senhor doutor, por quem é! Não sei como agradecer a sua bondade...- Muito simplesmente: ajudando-me a completar a cura. O corpo já está salvo.Precisamos agora de lhe curar o espírito, de lhe dar o gosto da vida, que elaperdeu com a morte do marido. Compreendes?- Sim, senhor doutor, percebo perfeitamente!Viegas retomou o seu ar bonacheirão e, despedindo-se com uma leve palmadana face de Benedita, desceu a escada e saiu.A criada, sozinha, juntou as mãos repetidas vezes, olhou em redor da casa, comose procurasse qualquer coisa, e de repente desceu também a escada, à pressa, eno andar de baixo, depois de atravessar várias salas, irrompeu na cozinha, cheiados trabalhadores da lavoura, que tinham vindo ao almoço.- A senhora está boa! A senhora está curada!

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Os criados, que tinham suspendido o que faziam quando da entrada violenta deBenedita, ouvindo aquelas exclamações, entreolharam-se, sorrindo primeiro, elogo depois começaram todos a falar ao mesmo tempo, batendo com as colheresnos pratos de estanho, sentindo que não podiam já engolir um bocado sequer.Levantaram-se, rindo, galhofando, com grossas palmadas nas costas uns dosoutros, e saíram. O Sol, já alto, brilhava, fulgurante como um disco de oiro, nocéu límpido, um céu de bom tempo, que mandava trabalhar e que lhes atiravasobre as cabeças morenas jorros de luz, que depois caíam no chão como um marluminoso, estendido a perder de vista, um mar em que as vagas eram as colinas eos cerros que levantavam ao redor.Puseram as enxadas aos ombros e partiram, alegres, para o trabalho. A porta dacozinha, as mulheres viam-nos caminhar, perdendo-se pouco a pouco nas dobrasdo caminho, e acenavam-lhes largos adeuses.Depois, já outra vez dentro de casa, uma delas alvitrou, receosa, que fossem vera senhora. Benedita, ciumenta, tentou primeiro impedi-las, mas, reprimindo o seuegoísmo, seguiu-as pelas grandes salas desertas e frescas, até ao quarto de MariaLeonor, que dormia. Despertada pelo ruído dos passos das criadas, Maria Leonorabriu os olhos, estremunhada, e teve, de súbito, a sensação aguda de que já viraantes aquela cena. Procurou lembrar-se, rebuscou confusamente na memória omomento, o dia, o facto, que não encontrava. Por fim abanou a cabeça,afastando o pensamento importuno, e vendo as criadas cercarem-lhe a camaestendeu-lhes as mãos, sorrindo. Logo todas murmuraram, satisfeitas:- Minha rica senhora!- Está curada!...- Como está magrinha!...- Ora, há-de enrijar agora, se Deus quiser...- Oxalá!Depois, por entre o murmurar das últimas frases, saíram, olhando ainda paratrás, acenando timidamente, animadas pela satisfação de terem entrado noquarto da patroa e de ela lhes ter estendido as mãos. Benedita ficou.Maria Leonor, enternecido, murmurava:- Como são boas!...- E como estão contentes, minha senhora! Não calcula o que foi naquela cozinhaquando lhes disse que a senhora estava curada. Pareciam doidos, eles e elas. Oque será, então, quando a virem de pé9 1...Interrompeu-se, ao ver entrar Teresa, vergada ao peso duma grande bandejarepleta de acepipes, onde fumegava uma enorme tigela de leite. Benedita olhoupara a ama, estupefacta, e voltando-se para a companheira perguntou:

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- Mas que é isto, ó Teresa? Que ideia foi esta?Teresa, enrolando e desenrolando, atarantada, um guardanapo, respondeu comos olhos baixos:- Foi a Joana, a cozinheira. Disse-me que, uma vez que a senhora estava curada,podia comer de tudo. E, então, arranjou isto e mandou-me vir trazer à senhora!...Benedita, indignada, encolhia os ombros, batia com a ponta do pé no sobrado epreparava-se para expulsar do quarto a pobre Teresa e a bandeja, quando MariaLeonor, que sorria, divertida, acudiu:- Espera, Benedita, espera! Realmente sempre como qualquer coisa. Estou comapetite.Teresa deitou um olhar triunfante a Benedita e dispunha-se a servir a ama. Aoutra, porém, tirou-lhe a bandeja e, pondo-a na beira da cama, recomendou:- Mas, então, minha senhora, beba só o leite! Não coma nada do que aqueladoida da Joana aí pôs, que lhe poderá fazer mal.- Pois sim. Beberei só o leite.Benedita olhou para Teresa e, ao vê-la murcha e desesperada por ter sidoespoliada do prazer de servir a senhora, arrependeu-se do seu gesto e disse-lhemansamente:- Olha, ó Teresa, serve aqui a senhora, enquanto eu vou buscar uma toalhinha.Mas tem cuidado, não a queimes...Teresa aproximou-se, devagar, temendo um engano, mas ao ver que Beneditafalava sério sentiu tamanha alegria que, ao segurar a bandeja, lhe tremiam asmãos e quase entornou o leite sobre a cama. Servir a senhora no seu quarto, fazero que só a Benedita podia fazer, enchia-a duma tal satisfação que tinha ganas desaltar! Conteve-se, no entanto, muito sisuda, e quando Benedita voltou com adesnecessária toalhinha, já se acalmara completamente e, com um ar todo cheiode gravidade e doçura, dava o leite à patroa.Depois de Maria Leonor ter bebido, Teresa levou a bandeja silenciosa-mente.Benedita cerrou as persianas das janelas e o quarto mergulhou numa penumbradoirada, que boleava as arestas dos móveis e multiplicava as sombras.Maria Leonor aconchegou-se na cama e, voltando-se para um lado, preparou-separa dormir.

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V Nos bicos dos pés, Benedita atravessou o quarto e saiu fechando a porta atrás desi, cautelosamente. No silêncio luminoso que envolvia a casa e entrava nas salas,os seus passos soavam claros e nítidos. Ia descer a escada, mas, fazendo umgesto de quem se lembra, de súbito, de qualquer coisa, retrocedeu. Ao atravessaruma sala, ouviu por detrás duma porta uns rumores abafados, donde brotavam,mais vivos, baques estrondosos e risinhos alegres e finos. Abriu a porta de repentee recuou, assustada, diante dum grande almofadão, que voava pelos ares direito asi. Estendeu os braços para a frente e abriu as mãos, tentando desviar a montanhade penas que lhe desabava em cima.Agarrou o almofadão, e dando ao rosto e à voz uma expressão indignadaexclamou:- Parece impossível, meninos! Que desalinho que vai nesta casa! Esqueci-me devos vir levantar e entretiveram-se a jogar o soco com as almofadas. Olhem paraisto!Isto era um quadro encaixilhado, representando uma fonte com dois pombos abeber na bica cristalina, que pendia da parede, de cabeça para baixo. Ospequenos, encostados um ao outro, com as mãos comprometidamenteescondidas atrás das costas, olhavam de revés para o gesticular de Benedita, quediligenciava repor o quadro no seu lugar justo e equilibrado. A rapariga, com olábio inferior tremente do choro prestes a rebentar, encostava-se ao irmão, quefranzia as sobrancelhas finas e castanhas.Benedita voltou-se para ele e disse, tentando manter o tom zangado da voz:- Que a menina, que é tão pequenina, goste de brincar, vá, mas que o meninoDionísio, um homenzinho, faça este arraial, é que não é bonito. O que diria amãezinha se os visse assim?Enquanto falava, ia pensando que a patroa não se zangaria tanto quanto ela dizia,se visse a brincadeira dos filhos. O mesmo pensava Dionísio, com certeza,porque, dando um passo à frente da irmã, como se quisesse defendê-la darabugice da criada, respondeu:- A mãezinha não se zangava! - e logo continuou: - Ela está doente, não sezangava! Tu é que estás zangada!...Benedita curvou-se e, passando os braços por baixo das pernas das crianças,levantou-as ao colo, apertou-as ternamente contra o peito, e disse:- Eu não estou zangada, estava a brincar... E a mãezinha já está boa.Dionísio deu um salto em cima do braço da criada e, puxando-lhe o cabelo,exclamou:

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- Verdade?Júlia batia palmas e pulava no outro braço de Benedita, que se atrapalhava parasegurar as duas crianças. Acabou por pô-las no chão, derreada, e logo, um atrásdo outro, os dois irmãos improvisaram uma marcha triunfal à volta do quarto,erguendo sobre as cabeças um lençol enrolado e cantando uma canção compostanaquele momento, cujo motivo principal era a mamã. Nas variações, entrava aBenedita como desmancha-prazeres.Por essa altura, a desmancha-prazeres levava as mãos à cabeça, atordoada coma gritaria, e implorava silêncio:- Calem-se, meninos, calem-se! Olhem que a mãezinha está a dormir e, se aacordam, piora!Ouvindo dizer que a mãe piorava, as crianças pararam e, deitando o lençol parao chão, acusaram-se mutuamente de todo aquele barulho:- Foste tu, Júlia!A pequena negava com veemência, agitando os cabelos loiros, que lhe caíam emcanudos até aos ombros:- Não fui eu, não senhor! - e voltando-se para Benedita: - Pois não, Benedita?A criada sorriu e acabou dizendo:- Não foi nenhum, pronto, se querem! e vão-se lavar, depressa, senão digo àmamã que fizeram esta algazarra!Os pequenos correram para os lavatórios, ao canto do quarto, e daí a pouco aágua escorria pelos pescoços finos e torneados, e salpicava o chão, molhando natrajectória as saias de Benedita, que ajudava, com as suas mãos vigorosas, alavagem.Depois de lavados, a criada penteou-os rapidamente, não acedendo aos rogos deJúlia, que exigia a marrafa mais bem feita. Dionísio descompunha a irmã,chamando-lhe vaidosa e toleirona, beliscando-a.Saíram. As crianças, agarradas às saias da criada, pulavam de pura alegria.Dionísio estacou de súbito, e voltou-se para Benedita, dizendo que queria ir ver amamã. Que se ela estava boa, já podiam ir vê-la. Benedita recusou, alegandoque a mãezinha estava a descansar e que não deviam ir incomodá-la. O pequenoresignou-se de mau humor e, largando a saia da criada, desceu sozinho para orés-do-chão. Júlia seguiu também atrás dele, com a cabecinha orgulhosalevantada, fingindo não reparar em Benedita que, ao vê-los caminhar para aporta exterior, recomendou:- Não, não saiam ainda! Querem ir para a quinta sem comer? Ora vão à cozinhae digam à Joana que lhes dê o leite, girem!... Hoje não comem na sala.

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Os pequenos olharam-se, indecisos, com vontade de desobedecer à ordem, mas,como sentissem já nos estômagos um protestar de fome, voltaram atrás e foramà cozinha.Joana, gorda e rubicunda, agitava-se no meio das panelas fumegantes. Ao verentrar as crianças, mostrou a dentadura num sorriso radioso e saudou-as, com avoz aflautada com que a natureza a dotara:- Bons dias, meus queridos meninos! Querem o leitinho, não é? Esperem umbocadinho. É um instantinho enquanto aquenta.Encheu uma leiteira e, virando-se para Dionisio, quis saber:- Então a mãezinha já se levantou?O pequeno carregou a expressão e respondeu de mau modo:- Não sei! A Benedita não nos deixou ir vê-la. É tão má... Quando eu forcrescido. hei-de obrigá-la a fazer o que eu quiser...Cuspiu para o lado e resmungou:- Peste!Joana, escandalizada, olhou para ele e perguntou, repreensiva:- Ó menino, então isso diz-se? Onde foi aprender isso?- Ora! Ouvi ao Manuel da Barca. Que mal tem?- É feio, pois então!...Júlia tinha ido para a porta da cozinha e seguia, com os olhos extasiados, umgrande bando de pombos, que voava muito alto, batendo as asas sob o esplendorda luz do Sol. Dionísio foi para junto da irmã, e os dois, com os olhos muitoabertos e o pescoço torcido, seguiram atentamente as largas curvas que as avestraçavam no espaço.Joana tirou do lume o leite quente e chamou-os para dentro. Sentaram-se a umaponta da grande mesa da cozinha, onde raramente comiam. Repetiram o grandeprazer de contar as nódoas de vinho que alastravam na madeira e os buracos daspontas das navalhas que os trabalhadores ali espetavam enquanto comiam ebebiam. Depois de ingerido o leite, saltaram dos bancos altos e correram parafora, aos pulos, gritando quando escorregavam na terra molhada. O solreverberava nas poças de água e secava os sulcos da lama vermelha do chão.Quando passaram no local onde estivera o palheiro que, ainda na véspera, tinhamvisto, grande e pesado, transudando a tentação esquisita das suas paredesenormes atulhadas de palha até às telhas, pararam, espantados, olhando comterror os muros enegrecidos, as traves carbonizadas, a grossa viga mestramostrando apenas uma ponta encravada num resto de parede.Um garotito descalço, que se aproximara, disse, perguntado por Dionísio, que

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fora uma coisa que caíra do céu que queimara o palheiro. Júlia olhou para cimae tornou a ver lá muito alto o bando de pombos batendo as asas num movimentoconstante e incansável. Pôs-se nos bicos dos pés e segredou ao ouvido do irmão:- Oh, Nísio, teriam sido os pombos?O pequeno encolheu os ombros, atrapalhado, sentindo perigar o seu prestígiojunto da irmã. Foi o garotito que, embora disso inconsciente, o salvou.Procurando outra informação para dar, acabou por dizer:- Foi de noite...Dionísio voltou-se para a irmã, decidido, e rematou:- Ora aí está! Não foram os pombos, porque os pombos não voam à noite!Júlia não se deu por suficientemente esclarecido e insistiu:- Então, quem foi?O irmão fez um gesto de impaciência e retorquiu, pensando que a irmã era umaperguntadora insuportável:- Não sei! Como queres que eu saiba, se estava a dormir?- Pergunta...Dionísio não encontrou melhor resposta que voltar as costas à irmã e ao palheiro,deitando de caminho um olhar furioso ao garoto descalço, causador inocentedaquele embaraço. Júlia seguiu-o, de má vontade, virando-se para trás de vez emquando para mirar os restos do palheiro.Caminharam calados durante algum tempo, até que Júlia, incapaz de se conter,cortou o silêncio para dizer que, com certeza, os ratos tinham morrido todos. Oirmão, contente por poder dar uma resposta definitiva, respondeu que lhe pareciaque sim, que só ela era capaz de fazer semelhantes perguntas. A pequena amuoue, quando Dionísio largou a correr atrás duma borboleta, não o seguiu. Masquando ele voltou, com os dedos manchados do pó esbranquiçado das asas doinsecto, que esmagara, zangou-se. Que mal tinha feito a borboleta? Não podiacorrer atrás dela, sem a matar? E depois a Benedita é que era a má?! Que visse,nunca a Benedita tinha matado uma borboleta, e muito menos branca.O irmão defendeu-se, dizendo que a criada, no Natal, tinha ajudado a matar oporco e que isso devia ser pior, porque o porco fizera muito barulho, enquanto aborboleta não dissera nada.Perante a lógica terrível daquela resposta, Júlia calou-se e deixou o irmãoavançar à frente. Atravessaram um canto do pomar, onde tinham sido plantadaslaranjeiras, que se elevavam, direitas, no chão molhado e remexido. Por umpequeno portão engastado no muro saíram para o campo aberto. Entre o matoserpeava até à aldeia um carreirinho tímido, que, por vezes, se afogava nas poças

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de água que o interrompiam.Dados os primeiros passos, Dionísio, de súbito, deixou o carreiro lamacento eendireitou ao mato rasteiro. Júlia deixou-se ficar, batendo os pés para sacudi-losda lama, sem se atrever a seguir o irmão, que ia já longe, levado pelo entusiasmoda corrida, saltando as moitas baixas de tramagueira, atrás das quais desapareciapor instantes, para logo surgir mais além. Olhou em redor, indecisa.Atrás de si, levantava-se um valado verdejante, com pequenas oliveiras deespaço a espaço. Para a frente, o campo sem fim, cintilante das gotas de águasuspensas das plantas baixas e das árvores, com grandes placas luminosas nossítios inundados. Júlia sentiu-se abandonada. A aldeia aglomerada em volta daigreja ficava-lhe à direita. Para além das últimas casas, uma linha verde dechoupos esguios e de salgueiros atarracados denunciava o rio. Era para ali que oirmão corria, com certeza: havia lá um barco quase apodrecido, ancorado, comas tábuas do casco verdosas e escorrendo humidade, onde passavam as manhãs,vendo nadar na água transparente os peixes pequenos e brilhantes que Dionísioteimava em pescar com uma linha que escondiam num buraco, entre duaspranchas desconjuntadas.Gritou. A voz, clara e fina, elevou-se no ar límpido, voou por cima do mato edispersou-se na distância. O irmão ia já muito longe para que a pudesse ouvir. Asua cabeça loira brilhava ainda, mas ia desaparecer por detrás dos outeiros que,deste lado do rio, protegiam das cheias a aldeia e os campos.Júlia sentou-se sobre uma grossa raiz de oliveira, soluçando amargamente peloabandono de Dionísio. Não queria voltar para casa, mas o achar-se só, no meiodaquele deserto, assustava-a. Um golpe de vento, abanando os ramos da árvore,atirou-lhe para cima grossas gotas de água, que a arrepiaram. Olhou tristementepara os sapatos enlameados, pensando que nessa altura já o irmão tinha chegadoao rio, subira pelo tronco inclinado do freixo cortado que pendia sobre o barco e,depois de se deixar cair dentro deste, metera a mão entre as duas pranchas etirara a linha e o anzol para pescar. Quem sabe, mesmo, se não teria já apanhadoum daqueles peixes mais bonitos, que nadavam devagar, com lentos movimentosda cauda, passando sob o barco, ocultando-se na sombra da quilha para aparecerdo outro lado, nadando sempre e mantendo-se, por vezes, imóveis, contra a forçada corrente?A esta ideia, levantou-se dum salto e, depois dum momento de indecisão, diantedo mato agressivo, onde cresciam numa abundância ameaçadora grandesmaciços espinhosos, ensaiou os primeiros passos, reprimindo a dor que lhecausavam as hastes grossas e os picos agudos das plantas.No meio do campo, já as pernas esfoladas tinham um aspecto lamentável. Mascontinuou a caminhar, puxando vigorosamente os pés, que se embaraçavam nas

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raízes à flor da terra.Chegando, enfim, às primeiras elevações do terreno, nuas de vegetação, subiu-asdum fôlego e, lá em cima, enquanto olhava o rio que deslizava ao fundo dopequeno vale, entre as árvores, esfregou as pernas doridas e arranhadas.Procurava o freixo inclinado onde estaria o desejado barco. Nunca tinha vindopor aquele sítio e estava desorientada. Descobrindo, por fim, a árvore, desceu aribanceira a correr. Ao aproximar-se, diminuiu o passo e, pé ante pé, chegou aotronco rugoso do freixo. Os salgueiros que cobriam a margem não a deixavamver o barco; ouvia apenas o contínuo chape-chape da água deslizando nas tábuassubmersas. Abraçou-se ao tronco do freixo e, agarrando-se aos ramos, começoua trepar. Passou por entre as longas ramadas dos salgueiros e, depois de afastaras últimas que formavam, à sua frente, uma cortina longa e verde, viu, em baixo,o barco. Ligada por uma corrente ferrugenta à margem e amparada a umaestaca cravada no fundo do rio, a velha caçadeira mantinha-se imóvel.Deitado sobre a proa, e com os olhos fitos na profundidade, estava Dionísio. Nãodera pela chegada da irmã. Júlia, escarranchada no tronco, viu na água límpidaum peixe, branco e brilhante, nadar para o anzol. As pernas de Dionísioestenderam-se, nervosas, e os olhos arregalaram-se-lhe na ânsia de verem opeixe abocar a armadilha, sacudir a linha desesperado para fugir e enterrar oanzol cada vez mais, nas guelras, até ser puxado para fora, estrebuchando.O peixe, porém, não se decidia. Nadava em volta do isco, batendo-lhe com acauda quando se afastava, mas voltando logo, mordiscando de leve, fazendooscilar a bóia de cortiça. Júlia, lá em cima, impacientava-se. Queria saltar para obarco, mas o barulho da queda afugentaria o peixe e Dionísio ficaria zangado.Pensando nisto, achou que não era má partida fazer com que o peixe fugisse.Não a tinha o irmão deixado ficar sozinha no mato?!Em baixo, o peixe continuava a mordiscar o isco sem se decidir a engoli-lo deuma vez. As pernas nuas de Dionísio tremiam de impaciência. Se a água nãofosse tão clara, a pesca resultaria sempre. Mas ver os peixes no fundo, em voltado anzol, acabava por lhe fazer perder a cabeça e obrigava-o a mexer-se,furioso.Depois duma volta lenta, o peixe aproximou-se do anzol, com todo o ar, ao queparecia, de ir abocá-lo. Imediatamente, Júlia deixou-se escorre ar do tronco edepois de ficar suspensa durante alguns segundos, oscilando sobre o barco,deixou-se cair. Sob o peso, a caçadeira mergulhou um pouco, as velhas tábuasrangeram. O peixe fugiu.Sobressaltado, Dionísio voltou-se e, vendo a irmã que olhava para ele,desafiadora, com o petulante queixinho erguido, as pernas feridas, o vestidomolhado e amarrotado, ia zangar-se, ralhar, mas ela antecipou-se:

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- Deixaste-me sozinha e eu espantei-te o peixe! Estamos pagos.O irmão, silenciosamente, deu-lhe as costas e puxou a linha. Sentou-se na bordado barco e começou a enrolar entre as palmas das mãos uma bolinha de pãopara novo isco. As pontas dos ramos dos salgueiros, mergulhadas na água,moviam-se alternadamente para cima e para baixo, ao sabor da aragem. Umguarda-rios, de asas azuis, passou, quase rasando a água com o peito.Dionísio pôs de parte a linha e o pão e tirou do bolso um canivete. Debruçou-sesobre a popa da caçadeira, quase encostada à margem, e cortou uma verdascadum dos salgueiros. Esgalhou-a toda, deixando ficar, apenas, na ponta, duasfolhas pequenas dum verde ferrugento e tenro, e deu-as, timidamente, à irmã.Era a paz. Sempre que iam ao rio, cortava um ramo para Júlia e, ao fazer omesmo agora, apresentava simbólicas desculpas.Júlia, radiosa, agarrou a verdasca e ficou a olhar, embevecida, as duas folhas queo irmão deixara ficar. No meio delas, abrigavam-se duas outras, mais pequenas,quase brancas, enroladas sobre si mesmas, condenadas a não crescerem mais.Dionísio, entretanto, voltara ao isco e ao anzol. Estendeu-se outra vez na proa eatirou a linha à água, que se afastou em círculos cada vez maiores, até àsmargens, donde voltou em ondulações espaçadas, quase imperceptíveis. Júliadeitou-se ao lado do irmão. No fundo do no, o isco de pão era uma manchabranca que brilhava como uma jóia. Uma nuvem passou debaixo do Sol e aságuas tornaram-se sombrias. Júlia olhou para o céu, onde apenas aquela nuvempassava escurecendo cada vez mais o rio. De repente, a bóia de cortiçamergulhou, sacudida bruscamente. Dionísio, de um salto, pôs-se de pé e puxoupara fora a linha, que emergia aos estremeções.A flor da água surgiu a cabeça branca dum peixe, que lutava, desesperadamente,para se manter no seu elemento. Um puxão mais e, descrevendo no ar um traçobrilhante, o peixe caiu dentro do barco, saltando e batendo as barbatanas na águado fundo.Júlia pulava de contente e batia palmas, enquanto o irmão arrancava o anzol dasguelras do peixe, um barbo esguio e comprido que se lhe debatia entre os dedos.Dionísio, entusiasmado, preparava-se para atirar de novo a linha à água, quando,trazidas pelo vento, ouviu as doze badaladas do meio-dia, dadas pelo relógio datorre da igreja. Olhou, aborrecido, para a irmã:- Temos de ir, Júlia.- Pois temos! A Benedita, se calhar, já anda à nossa procura.- Vamos.Cortou uma forquilha dum ramo e suspendeu nela o peixe pelas guelras. Subirampara o freixo e, depois de se arranharem a descer a árvore, treparam novamente

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a ribanceira, levando o barbo já morto, que roçava a barbatana da cauda pelochão. Descendo até à aldeia, ganharam a estrada que levava à quinta. Deitarama correr pelo caminho fora, porfiando para chegar um antes do outro a uma dasárvores do caminho, depois a outra, rindo de alegria com o peixe suspenso,moído, as guelras rasgadas.Quando entraram o portão, viram ao fundo da alameda, junto da porta da casa,dois homens. Eram Jerónimo e António Ribeiro. Precipitaram-se sobre o tio.- Olhe, olhe, tio António! Um peixe, um peixe!... Pescámos nós no rio!Benedita, que assomara à porta, atraída pelo estrépito da chegada, levou as mãosà cabeça e exclamou:- Então os meninos foram para o rio? E todos esfolados, todos sujos!... Quebonito, sim senhores! A mãezinha a perguntar pelos meninos e eu sem saber oque responder!Ao ouvirem dizer que a mãe tinha perguntado por eles, os dois irmãos coraram ebaixaram a cabeça sob a repreensão. Que parecia impossível, a mãezinha aindana cama e os meninos sem quererem saber dela! Perante tal acusação, Dionísiolargou o peixe e entrou em casa a correr, seguido pela irmã, que se esforçavapor não ficar atrás, para que o irmão não tivesse o prazer de chegar primeiro aopé da mãe...

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VI Apesar das prometedoras esperanças de Viegas, a convalescença de MariaLeonor foi longa. Várias vezes quinze dias se passaram antes que ela, amparada,ensaiasse no quarto os seus primeiros e trémulos passos, vendo os móveisgirarem no quarto e o quarto com eles, sentindo a cabeça rodopiar doidamente,tendo a humilhadora sensação de não poder mover o próprio corpo. Que deesforços lhe custou a satisfação do simples desejo de chegar à janela paraestender as mãos fracas e magras aos raios quentes do sol de Junho, que lheinundava o quarto, donde, com o lento regresso da saúde, desaparecia opersistente cheiro das tisanas e dos xaropes a que o seu corpo fatigado devia avida!Estendida numa longa cadeira de verga, no terraço da casa virado ao poente,passou as doiradas manhãs daquele Verão, que chegava quente e criador. Dali,ouvia, em baixo, o monótono chiar dos carros de bois que passavam para a eira,onde os manguais subiam e desciam, fazendo saltar da espiga pulverizada o grãode trigo já seco.E à tardinha, quando o campo se enchia de sombras e o verde-escuro das árvoresse transmudava, pouco a pouco, em negro, levantava-se da sua cadeira junto dajanela do quarto de dormir, para onde ia repousar nas horas em que o calorapertava e, em passos incertos, atravessava o aposento e deixava-se cair,exausta, sobre a cama, com uma indefinida angústia a pesar-lhe no peito e umtremor de membros que a fazia desfalecer languidamente, afundar-se noscolchões macios e brandos. No quarto, donde a luz do Sol ia fugindo, tocava,então, a campainha, que soava, mansa, pelo corredor fora. Benedita vinha deitá-la. Despia-se devagar, desejando vagamente cair no chão e deixar-se ficar ali,meio despida, sentindo sobre os ombros avançar a sombra da noite, vê-los apenascomo uma mancha branca e indecisa, desaparecendo aos poucos.Experimentava com os pés nus a aspereza do tapete, quase a deitar-se nele,roçando a pele nos grossos fios como num cilício. E quando se deitava, sozinha noquarto, porque não consentia que Benedita a velasse, levantava os braços magrose, inconscientemente, ficava contemplando os sulcos esbranqui-çados quetraçavam na escuridão, abrindo e fechando as mãos como se a quisesse apalpar.De todos os cantos do quarto surgiam, depois, formas confusas, que se moviam ecaminhavam para o leito, rolando sobre si mesmas e virando para ela sempre omesmo aspecto, listas negras sobre um fundo amarelo. Tudo isto setransformava, com rapidez, em cruzes que enchiam o quarto de alto a baixo edesabavam, silenciosamente, como fantasmas.De madrugada, acordava com um suor frio a humedecer-lhe a pele. E de novo,

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de toda a parte, via aparecerem as manchas amarelas riscadas de negro, rolandoe subindo para os pés da cama, donde caíam sobre os lençóis como uma cascatasilenciosa. Era sempre o mesmo pesadelo. Quando as cruzes lhe caíam sobre oestômago sufocava, como se estivesse sendo apertada entre gigantescas mãos, esoltava um débil grito amortecido pelos dentes furiosamente cerrados na dobrado lençol. Apalpava, então, a cama ao seu lado e suspirava.Quando a manhã nascia, clara e alegre, caía num sono profundo, imóvel comouma pedra, com umas largas olheiras a sombrearem-lhe as faces, os cabelossoltos no travesseiro, destapada, fria, com o peito desnudado, onde uma gota desuor ainda brilhava. Era assim que Benedita a vinha encontrar todas as manhãs.Vestia-a e ela recomeçava a sua rotina de doente, recebendo o médico, ouvindoo palestrar do cunhado, vendo brincar os filhos, dormitando sob a calmasilenciosa e quente da tarde, sem ânimo para falar, preguiçosamentedespenteada, enrolando e desenrolando nos dedos um anel dos cabelos.Às vezes, lembrava-se das palavras de Viegas, recordava a calma que sentira aoouvi-lo e a vontade imensa de agir que elas lhe tinham despertado. Quando istosucedia, as mãos crispavam-se-lhe nos braços da cadeira, como se quisesseexperimentar a rijeza dos músculos, mas logo as deixava cair no regaço,indiferentes, esgotadas pelo esforço. Sentia em volta de si os cuidados deBenedita, o carinho dos filhos, a atenção do cunhado, que por vezes se esquecia aolhá-la, abstracto, mas tudo isto confusamente, como num sonho.Viegas, quando a visitava, espantava-se com aquela insensibilidade, aquelaindiferença que se comprazia na contemplação dos objectos imóveis, como selhes estudasse as formas ou a razão de ser da imobilidade. Desesperava-se com asua impotência para arrancá-la daquela apatia que a desgastava e perguntava a sipróprio, perplexo, que estranhas forças a tinham salvo da doença e a atiravamagora para um estado quase embrutecido, sem chispa de espírito que a animasse.Já se espalhava na quinta que a senhora “não estava boa”, que estavaembruxada. E havia quem garantisse que o raio que caíra no palheiro fora o sinaldo demo para que ela entrasse naquelas aflições. Benedita zangava-se ao ouvirtais crendices murmuradas na cozinha, à hora da ceia, entre as criadas, queinterrompiam o mastigar das migas para responder que a quem não acreditava éque aquelas coisas sucediam. Teresa e Joana, timidamente, refutavam, punham-se ao lado de Benedita, mas as outras asfixiavam-nas com citações de casosacontecidos a muita gente, com uma tal frequência, em tal abundância, que sediria que todos os seus conhecimentos estavam possessos de alminhas penadas oude demónios rabudos e escoicinhadores.Enquanto na cozinha as criadas discutiam a influência do diabo e das bruxas nasmortais vidas humanas, Maria Leonor, no quarto, lutava, desespera-damente,com os seus pesadelos e os seus fantasmas. Quis uma luz consigo, mas mandou-a

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tirar depois, porque as sombras dos móveis assustavam-na e, então, levantava-se,de vela na mão, para alumiar todos os recantos sombrios, como se quisesseencher o quarto de luz. Logo que passava de um canto para o outro, o anteriorensombrava-se imediatamente, e ela dava voltas constantes ao aposento,alumiando aqui e ali, até a vela se gastar nos dedos. Ficava hirta, no meio doquarto escuro, vendo, de novo, avançarem do chão, do tecto, das paredes, asmanchas amarelas riscadas de negro, erguendo-se transformadas em cruzes, ecair sobre ela numa chuva contínua de vigas grossas e sombrias. Corria para acama, apavorada, gemendo, e escondia a cabeça entre os lençóis, como umacriança.Uma tarde, quando Maria Leonor estava sentada, como habitualmente, à janelacom a cabeça descaída, as mãos abandonadas no regaço, olhando, abstracta, alinha castanha do rodapé do quarto, a porta abriu-se e entrou Benedita. MariaLeonor levantou os olhos para ela, mas logo os baixou, com indiferença. A criadaparou a poucos passos da ama e, de pé, deixou-se ficar, olhando-a atentamente.Maria Leonor levantou, outra vez, o olhar, onde perpassou uma expressãointerrogativa, a que a criada respondeu com o mesmo silêncio obstinado. Jáinquieta, moveu-se na cadeira, contraiu nervosamente as mãos. Perguntou:- Que queres?Benedita descerrou os lábios e retorquiu, muito fria e calma:- Nada, minha senhora! Nada, a não ser lembrar-lhe que faz hoje três meses quemorreu o senhor Manuel Ribeiro!...Maria Leonor endireitou-se, animada, batendo com o pé no chão:- Cala-te, cala-te, mulher! Que tens tu que ver com isso?- Que tenho que ver com isso? Ora essa! O que toda a gente desta casa tem!...Tenho que foi uma desgraça ele ter morrido, porque esta casa vai de mal a pior enão tardará muito que estejamos todos na rua, sem eira nem beira, porqueninguém se importa com o trabalho, visto que a dona da casa passa os dias aolhar para as nuvens, sem cuidar de saber se os criados trabalham ou calaceiam!Veja a senhora o bonito estado em que faz andar os meninos! Perderam aalegria, a saúde, andam tão enfiados e amarelinhos que metem dó! Se pergunto oque têm: “É a mãezinha que está doente!”, e daqui não saem. Veja o grandetrabalho que aflige os criados: se vou à horta, já sei que encontro o hortelão anamorar a Rita Branca, numa pândega ferrada. Berro com eles e vem logo aresposta: “A senhora não vê!” Pudera! Como há-de a senhora ver se não sai decasa, se entrega aos outros o trabalho que só ela pode fazer?!...Interrompeu-se, respirando ruidosamente, quase no fim do fôlego, masrecomeçou logo, cortando ao meio o gesto da patroa:

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- E ainda a senhora pergunta o que tenho eu que ver com a morte do patrão?!Pois aqui está: j à lho disse!...Calou-se outra vez, agora impressionada, com os olhos borbulhantes de lágrimas,torcendo o lenço entre os dedos, que tremiam. Depois, em voz mais baixa,continuou:- Quando o senhor Manuel Ribeiro morreu, eu pensei que a senhora iria ser umamulher de trabalho, que se dedicaria à quinta como o seu marido o fez!... Masenganei-me, bem vejo... E agora, é isto que está à vista de todos!Inspirou fundamente e rematou, jogando o último dado:- Pois, minha senhora, se faz tenção de continuar assim, eu é que não posso. Vou-me embora!...Calou-se e ficou, por momentos, a espiar pelo rabo do olho o efeito do quedissera. Mas logo se alarmou: Maria Leonor levantara-se da cadeira, muitopálida, com os cabelos loiros desmanchados sobre os ombros. Precipitou-se paraela, que desmaiava, carregou-a nos braços, deitou-a. Duas grossas lágrimasbrilhavam por entre as pestanas de Maria Leonor, duas lágrimas que sedesprenderam e lhe rolaram pelas faces descoradas.Benedita, inquieta, ia chamar alguém, quando Maria Leonor, com esforço,balbuciou:- Espera, não chames ninguém!... Vem cá, chega-te mais para ao pé de mim.Escuta: sai, deixa-me sozinha, quero descansar! Tu não compreendes o que eutenho! Mas tens razão, tens razão!... Vai, anda... Deixa-me!...A criada, de má vontade, saiu, mas ficou por detrás da porta, à escuta, pronta airromper no quarto ao mais pequeno ruído estranho. De dentro, porém, só vinha orumor abafado dos soluços de Maria Leonor. Duas tentativas que fez para entrarforam anuladas por um gesto decidido. Esperou, então, de pé, encostada àombreira da porta, sentindo dores nas pernas e agarrando-se aos batentes paranão cair, com tonturas. Decorreu meia hora e os soluços de Maria Leonorforam-se espaçando pouco a pouco, até deixarem de ouvir-se. Então, Beneditaempurrou devagarinho a porta e espreitou. Vendo a ama imóvel sobre o leito,teve um baque horrível no coração, mas depois, ao aproximar-se, verificou, comum suspiro aliviado, que adormecera.Ainda suspeitosa de qualquer disfarce, debruçou-se sobre Maria Leonor, mas arespiração desta, sempre igual e calma, acabou por sossegá-la. Retrocedendo, péante pé, saiu do quarto, que escurecera completamente. Foi deitar as crianças,que brincavam no rés-do-chão, e desceu à cozinha, pensativa, censurando-sepela maneira quase malcriada como respondera à ama e perguntando a siprópria se não teria feito mal. Fora, no entanto, o doutor Viegas quem a

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aconselhara e, apesar do que se tinha passado, tinha confiança. Quem sabe se omédico não tinha razão quando lhe afirmara que só um choque violento e brusco,inesperado, a poderia, talvez, arrancar daquela atonia?Durante a ceia manteve-se silenciosa, respondendo apenas por monossílabos àsinterpelações das criadas sobre o estado da senhora. A Joana, que perguntara se asenhora não queria comer, respondera que não tinha apetite, isto com uma vozmuito seca e desprendida. Foi o suficiente para que a boa cozinheira entrasse emlargas considerações sobre as consequências da falta de apetite, demorando-secom grande cópia de pormenores na grave eventuali-dade da espinhela caída.Teresa apoiou-a com descrições aturadas de consu-mações de espírito e suascuras.Benedita, mortalmente aborrecida, nem ânimo tinha para as mandar calar.Pensava de novo em Viegas, que a convencera a dar aquele passo. Fora umsacrifício para si, mas falara! E a pobrezinha lá estava em cima, sabe Deuscomo! A este pensamento, não pôde impedir-se de se levantar e de subir aescada a correr para ver a ama. Riscou um fósforo e acendeu a vela metida napalmatória; olhou para dentro do quarto. Maria Leonor dormia ainda.Aquela noite foi a primeira, depois de muitas noites pavorosas, em que MariaLeonor dormiu sossegadamente, num sono só, sem pesadelos, sem aquelashorríveis cruzes que lhe caíam inexoráveis sobre a cabeça, como destinos que secumprissem.No outro dia, já o Sol ia alto quando acordou. Junto da cama, estava Beneditacom o almoço. Olhou para a bandeja fumegante e cheirosa e para a criada, quelhe seguia os movimentos, vigilante. Depois, apertou-lhe as mãos,carinhosamente.Benedita exultou. E enquanto enxugava as pálpebras húmidas com as costas damão, dirigiu mentalmente um agradecimento a Viegas. Ele tivera razão. Asenhora estava agora ali, animada, diferente do cadáver vivo que se arrastaradurante meses.Quando o médico, por volta do meio-dia, saltou do cavalo à porta da casa,acompanhado por António, viu Benedita dirigir-se-lhe, radiante, com as facesrubras e o gesto ligeiro. Adivinhou que a sua ideia resultara:- Então a senhora?- Até parece um milagre, Santo Deus! Iria jurar que nunca esteve doente!António, que folgava a cilha do cavalo em que viera montado, voltou-se,surpreendido:- Como é possível que esteja boa? De um momento para o outro?Viegas retorquiu, irónico:

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- Então, então, António!... Não acreditas na medicina? Nem me pareces ummédico!- Bem sei. Um médico que não nasceu para o ser... já sei! Tem-mo dito bastasvezes. Mas do que a Leonor precisa não é dum médico, é dum padre.- Para a absolver?- Não. Para lhe curar o espírito, que sempre necessitou mais cuidados que ocorpo.- Pois parece que desta vez não têm razão de queixa da minha pessoa. Curei-lheo corpo e, com a ajuda da Benedita, creio que lhe curei o espírito. Não éverdade, Benedita?Repuxando as guias do bigode, subiu a escada, seguido por António e pela criada,e dirigia-se para o quarto, quando a criada o chamou, apontando-lhe a porta doterraço. Estacaram, admirados. Junto à grade, sentada no seu cadeirão de verga,Maria Leonor ouvia a tagarelice dos filhos, que se agitavam à sua volta, rindo,divertidíssimos, contando-lhe qualquer historieta engraçada, que a fazia sorrirtambém.Ao ver os recém-chegados, levantou-se da cadeira e atravessou o terraço,levando atrás de si os filhos, que se atiraram aos braços de Viegas e de António,obrigados a recolher nas faces toda a exuberante alegria que irradiavam.António, libertando-se de Júlia, que teimava em querer pendurar-se-lhe aopescoço, apertou a mão da cunhada, perguntando, solícito:- Então, Leonor? A Benedita disse que te sentias melhor. É verdade?- É verdade, sim. Julgo que desta vez é que é certo...Voltou-se para Viegas:- Não é da minha opinião, doutor Viegas?- Creio que sim. Dei-te, se bem me lembro, quinze dias para te restabe-leceresdefinitivamente. Reconheço que foi pouco. O médico quase nunca conta com oque se passa no espírito do doente, a não ser, evidentemente, em casospsiquiátricos, e portanto os quinze dias foram insuficientes. Foram necessáriosdois meses. De qualquer modo “c'en est fait”...Júlia arregalava os olhos espantados para o médico, num tremendo esforço decompreensão. Quando a mãe se afastou com Benedita e os dois homens, puxou oirmão pela manga da camisa, ansiosa:- Ó Nísio, ouve cá, o que estava o senhor doutor a dizer? Não percebi nada. Quefoi que ele disse?Dionísio, sobranceiro, com um ar de autoridade esmagadora no encolher dosombros, respondeu, desprendido:

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- Era latim. Tu não percebes...- Ah! - fez a pequena. E calou-se, sentindo a sua pesada ignorância, sem selembrar, desta vez, de perguntar ao irmão o que queria dizer aquele latim...

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VII Desde aquele dia, Maria Leonor dedicou-se de corpo e alma à tarefa imensa dedirigir a sua casa. Logo depois da saída de Viegas, mandou chamar o abegão efalou-lhe, a sós, no escritório do segundo andar, durante muito tempo. Queriaenfronhar-se nas suas obrigações de proprietária rural, de que andara tão longedurante a vida do marido. A morte dele apanharas desprevenida e ignorante equeria compensar o tempo, que perdera antes, com a exaltada pressa de adquirirconhecimentos, que demonstrava agora. Jerónimo, pacientemente, explicava-lheo que era preciso fazer e o que seria conveniente não realizar antes de tal ou taltempo, apontava projectos para o ano próximo, indicava obras urgentes, comprasa fazer. O bom velho supria a sua falta de cultura vulgar com a prática decinquenta anos vividos debaixo do sol, cavando a terra, negociando nas feiras,comprando e vendendo gado, vivendo a sua vida de camponês dos quatrocostados. E ria, mostrando as gengivas vermelhas e desdentadas, com osentusiasmos de Maria Leonor, agarrada à sua quinta, pensando que, com aquelecorpinho de alvéloa, talvez não deixasse lembrar muito o patrão morto.Maria Leonor, essa, andava exaltada, quase febril, percorrendo a quinta de umextremo a outro, palmilhando as folhas que lhe pertenciam para lá dos muros,ainda cansada, vendo, perguntando, dando tímidas ordens, sentindo gradualmenteque a terra lhe ia pertencendo de facto, porque vivia dela, porque a sentia como àsua própria carne, porque a amava com um amor feito de ciúme de umarraigado sentimento de posse. Roubarem-lha, agora, seria roubarem-lhe a vidae o pão. E no mesmo amor que se lhe levantava no peito abrangia os filhos, oscamponeses, toda a gente que girava à volta da quinta, como satélites dumplaneta. Quando atravessava a eira para o lagar e via os criados erguerem, à suapassagem, os barretes, numa saudação respeitosa, era como se tivesse voltadoaos tempos bíblicos dos patriarcas. E mais e mais alto se lhe levantava o desejodo trabalho.Às vezes, porém, quando se achava só, o pensamento divagava, as recordaçõessurgiam e a lembrança do mando levava-lhe lágrimas aos olhos, lágrimas queela escondia como indignas da sua vontade e da sua decisão. A dorenlouquecedora dos primeiros momentos dava lugar, naturalmente, a umasaudade resignada, que se esbatia devagar no fundo sempre igual das preocu-pações quotidianas. Quase não tinha tempo para pensar no marido. Somente,quando à noite se deitava e distendia os membros cansados, um suspiro lhelevantava o peito, sentindo a solidão pesar-lhe como chumbo. O sono vinhadepressa passar uma cortina sobre o pensamento e a sensibilidade e ela dormia,sem sonhos, até à manhã seguinte. Levantava-se decidida e embrenhava-se naluta diária com o coração aliviado, a cumprir aquilo a que chamava, brincando,

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as suas obrigações de senhora de terras.Assim decorreu todo o Verão. Depois do trigo, chegou a vez ao milho de ir para aeira. E não foi já do terraço da casa que Maria Leonor viu o bate-que-bate dosmanguais sobre as maçarocas e que ouviu o alegre silvo da debulhadora cortar oar fresco da manhã. Foi na eira, no meio das escamisadas bulhentas, entre osaltos cones do milho escarolado, que assistiu àquela festa da terra, que eratambém a primeira festa da sua vida desde que o marido morrera.Quando chegou Outubro, as crianças voltaram para a escola e a sua ausênciadurante o dia mais lhe animava a vontade de trabalhar. A tarde, ao vê-lasassomar ao portão, ao fundo da alameda, descia a escada precipitadamente e iaabraçá-las com ternura, sentindo que era escrava daqueles pequenos seres e quea sua vida lhes pertencia, mais do que a si própria. Um enternecimento súbito lheenchia o coração e, às vezes, surpreendia-se agarrada aos filhos a chorardocemente, um choro sem mágoa, que lhe deixava o espírito calmo e leve, numafelicidade indefinível e quieta.Sorria, ouvindo Dionísio contar-lhe, orgulhoso como um sábio nos princípios dasua ciência, o que fizera na aula, o que o professor perguntara e as respostas quelhe dera. Segundo ele, não havia na escola quem mais soubesse, a não ser, claro!,o professor. E a alegria do pequeno foi imensa quando pôde, enfim, comverdadeiro conhecimento de causa, explicar à irmã, boquiaberta, por que arderao palheiro.E assim, educando os filhos e administrando a propriedade, Maria Leonor viupassarem, iguais uns aos outros, os meses de Verão e, do mesmo modo, começaro Outono. Estava só em casa, além dos filhos e de Benedita. António voltara aoPorto, em Agosto. Era lá que tinha a sua clínica, sempre deixada um pouco aodeus-dará, e só vinha ao Sul quando precisava mudar de ares e deconhecimentos. Divertia-se em Lisboa, onde passava quase todo o tempo, eapenas uma vez por outra se metia no comboio e ia até à quinta brincar com ossobrinhos e passear a cavalo pelos arredores. Gostava de viajar, mas a suapobreza de médico pouco conhecido e de competência muito vaga limitava aspossibilidades deambulatórias às duas cidades do país onde melhor podia passar avida que lhe aprazia. Viera desta vez para casa do irmão um ano antes de elemorrer, por causa da última questão da reduzida herança paterna, e por lá ficaratodo o tempo. Agora partira de novo, disposto desta vez, conforme garantia, atrabalhar com afinco.Maria Leonor, dedicada à sua quinta, mal lhe sentiu a falta, e as cartas querecebia espaçadamente não lhe lembravam saudades. Continuamente ocupada,só interrompia o trabalho para ir todas as semanas ao cemitério. Ajoelhava aolado da sepultura, com os filhos perto, e rezava com fervor, sentindo-se justaperante a memória do marido, fortalecido pela recordação do seu exemplo e

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inspirada pelo desejo de o seguir à risca.Neste rosário de ocupações, quase tinha esquecido a missa dominical, ditasempre pelo velho padre Cristiano, que todo se alegrava ao vê-la entrar com osfilhos a portada esculpida da igreja. Apenas de longe em longe lhe dava agoraesse prazer. A própria Benedita resmungava sempre qualquer coisa quando, aoarranjar-se para ir à igreja, via a ama absorta na consulta dum maço de papéis,sem mostras de pretender sair também. Nada dizia, no entanto, apesar de MariaLeonor lhe perguntar por vezes o que tinha. Só uma ocasião respondeu que lheparecia estranho que o padre Cristiano não aparecesse tantas vezes pela quintacomo era costume. A isto, Maria Leonor respondeu que talvez o padre tivessemuito que fazer e que, como a quinta era algum tanto longe do lugar e as pernasjá não aguentavam grandes caminhadas, não pudesse aparecer mais.Foi, portanto, com surpresa que, numa daquelas luminosas tardes com que oOutono se despede do Verão, Maria Leonor viu entrar o velho padre. Recebeu-ocom um beijo, que ele aceitou risonho, e convidou-o a sentar-se. O padre pousoua bengala, deu uma olhadela apreciadora a um pacote de sementes de naboentornado na mesa, ajeitou-se na cadeira estofada e, depois de inquirir da saúdedos meninos, pergunta desnecessária porque os vira na aldeia, tentou entrar noassunto que o trouxera. Começou por pigarrear estrondosamente e olhou paraBenedita, que cirandava na sala, fazendo tempo para ouvir a conversa. MariaLeonor olhava para o padre, atenta, esperando que ele falasse:- Ora tu, Maria Leonor...Parou, suspirou atrapalhado, e recomeçou:- Ora tu, Maria Leonor... Sabes? Tenho que te dizer...Maria Leonor mexeu-se, inquieta. O padre, vendo-a nervosa, precipitou-se:- Não, não, não é nada de importância, menina, não te assustes!...Benedita voltou-se para o padre, admirada:- Como? Então, não é nada de importância, senhor prior? Não acha que...Deteve-se, vendo a ama olhar para si surpreendida, e rematou, apressada-mente:- Bem, eu não sei do que se trata, claro, mas... não sei se vê que... sim... o senhorprior lá sabe, não é verdade?O padre olhou-a repreensivamente e tornou:- Ora, o que tenho para te dizer é isto, Maria Leonor: não censuro, e Deus melivre sequer de tal pensamento, que te dediques ao trabalho com tanta vontade,sacrificando-lhe o teu repouso e a tua saúde, para teres esta casa no mesmo péem que o Manuel a teria se fosse vivo. Mas acho que, ultimamente, tensdescuidado, talvez um poucochinho, os teus deveres de cristã. Raramente

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apareces na igreja, e Deus sabe quanto fico satisfeito em ver-te lá!, e issofrancamente não é bonito. Na terra já se fala e...Maria Leonor, que o ouvira, sorrindo, interrompeu:- Perdoe-me se o interrompo, senhor prior! Tem razão no que diz e pesa-me quea minha falta o tenha entristecido tanto, mas creia que não entrou, no meuprocedimento, qualquer quebra de fé. Dediquei-me, talvez, de mais a esta terra equase me esqueci de Deus. Mas prometo-lhe, senhor prior, que voltarei à igrejacom a mesma fé antiga e para sempre!O padre sorriu, satisfeito, esfregando as mãos, e respondeu:- Pois sim, Maria Leonor, e bem hajas pelo peso que me tiraste dos ombros. Vaiquando quiseres. Sabes? O meu receio era que a morte do Manuel te tivessedesgostado a tal ponto que tivesses perdido a fé. Há tantos casos desses...- Descanse, padre Cristiano, eu voltarei. Não me esqueci de Deus, apesar de eleme ter levado o meu marido.- Pronto, Leonorzinha, não falemos mais nisto. E perdoa a este velho tonto, que émuito teu amigo. Adeus, Maria Leonor, dá beij inhos aos pequenos!- Adeus, senhor prior, até breve!- Adeus e muito obrigado!...O padre saiu e, lentamente, foi desaparecendo atrás das árvores da alameda,encostado à bengala, gemendo o seu reumatismo, que o picava, agora que seaproximavam os frios e a humidade.Depois de ele sair, Maria Leonor voltou-se para Benedita, que procuravaescapar-se, e perguntou, sorridente:- Então, agora resolveste pôr-me debaixo de tutela? Não achas que tenho idadesuficiente para me governar?- Não diga isso, minha senhora! Apenas falei no caso ao senhor padre Cristiano eele prometeu-me que viria falar à senhora.- Exactamente. Resolveram os dois chamar-me ao bom caminho. Foi umaconspiração muito semelhante àquela que fizeste com o doutor Viegas, não éverdade?- Quem lho disse, minha senhora?- Quem mo disse? Ninguém, mas calculei. O doutor Viegas traçou o plano e tuexecutaste-o, seguindo os velhos preceitos do drama em casos idênticos. Ambosse saíram bem, afinal, felizmente para mim...Benedita assentiu ligeiramente com a cabeça e aproximou-se da ama. Baixou avoz, quase segredando:

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- E sabe, minha senhora? Desde que isso sucedeu, tenho pensado muitas vezes nocaso e ainda não vejo mais do que via antes. Já me lembrei até de falar aosenhor prior, mas tenho-me acanhado e não me atrevi...Curiosa, Maria Leonor indagou:- Atreveste a quê?- A perguntar-lhe. Ora oiça, minha senhora. Agora que já está curada da suadoença e daquela prostração que a trazia consumada, posso falar-lhe destascoisas. A senhora acertou. Foi o doutor Viegas quem lembrou dizer à senhora oque sabe. Recorda-se, não é verdade? Ora bem. A ideia foi boa, e tanto assimque a senhora está curada. Agora, aqui, é que me confundo. Se o doutor Viegasé, como diz o senhor padre Cristiano, um herege, um homem condenado àspenas do Inferno, como pôde o Senhor ter-lhe inspirado aquela ideia? Não seriamais natural ter Deus dado a ideia a quem não fosse um descrente como ele?Maria Leonor teve um sorriso perante o ingénuo raciocínio da criada. Depoisolhou para ela com atenção e respondeu, após alguns instantes de silêncio:- E essa uma maneira muito simplista de raciocinar, Benedita. Bem vês! Oshomens são simples instrumentos de que a vontade divina se serve para cumpriros destinos que demarcou na eternidade. Que importava a Deus que o escolhidopara me curar fosse um ateu ou um crente? Deus entendeu que eu devia sersalva e salvou-me. Não podemos perscrutar as razões que levaram a ProvidênciaDivina a segurar-me quando eu me despenhava nos abismos da inconsciência eda morte. Foi o doutor Viegas quem me salvou, dirão os cépticos; foi Deus que,por intermédio dele, não quis que eu morresse já, dirão os crentes; ainda não eraa minha hora, dirão os fatalistas. Todos temos razão, afinal. Eu fui salva quandome perdia. Quem me salvou? Foi Deus, foi um homem, foi uma ideia? Tudo istoe nada disto. As ideias que fazemos de Deus, do homem e da ideia são, apenas,imperfeitas compreensões do que deverá ser a Verdade, se é que, por fim, aVerdade não é totalmente diferente. - Parou um momento e continuou, com umleve sorriso: - Apesar de todas estas dúvidas, todos nós, no fundo do nosso ser,cremos em alguma coisa. O próprio doutor Viegas, com tudo o que diz e faz, crê.Cremos justamente porque não sabemos e é esta constante ignorância quemantém a fé, qualquer que ela seja. A Verdade pode ser tão horrível que, sefosse conhecida, talvez destruísse todas as crenças e fizesse do Mundo um grandemanicómio. O que nos vale, o que nos mantém nesta indiferença de boi ungido, éa impossibilidade do conhecimento absoluto, e então contentamo-nos comsimples aparências, de que tecemos a vida inteira. Queres um exemplo: quesabemos nós da Joana? Que vive aqui quase desde que nasceu, que cozinha beme pouco mais. Quando nos rimos e achamos graça às suas respostas tolas,pensamos, porventura, por que será ela assim e não doutro modo? Pensamos quea mão que a fez cozinheira podia tê-la feito princesa? Que detrás daquelas carnes

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abundantes existe qualquer coisa de parecido com o que existe em nós próprias,que nos presumimos melhores que ela? E agora vem a pergunta final: quemsomos e o que somos, de facto? O que se passou antes de nós? O que virá depois?Talvez o venhamos a saber, mas então será demasiado tarde.Suspirou, agitou-se como se despertasse duma abstracção, e continuou,agarrando as mãos de Benedita.- Depois de tudo isto, creio que não respondi à tua pergunta. Desculpa. E parece-me que não posso responder. Fala com o padre Cristiano: ele dirá o suficientepara resolver a tua dúvida.Benedita, enquanto Maria Leonor falara, ouvira-a boquiaberta, suspensa dos seuslábios e dos seus gestos harmoniosos, seguindo-lhe as contracções do rosto comcontracções idênticas e, agora que ela se calara, olhava-a ainda como se nãofosse a sua senhora quem ali estivesse, mas uma desconhecida, uma mulher aquem não estava ligada por quaisquer laços. E mais. Involuntaria-mente selevantava no seu espírito a convicção de que aquela mulher que ali estava na suafrente, direita, misteriosa nos seus vestidos negros, não era uma mulher. Eraqualquer coisa de indeterminado, de indefinível, de contrário à razão e aosentimento, impossível como todas as impossibilidades, mas, ao mesmo tempo,definida, certa, inamovível como um destino. Dentro de si rasgava-se um véu epela abertura passava um raio de luz vivíssima, que a cegava. Respirava fundo,como se um novo ar lhe entrasse nos pulmões, sentia correr-lhe nas veias umsangue diferente, mais cheio de vida, mas demasiado forte e espesso para o seucoração. E não compreendia.Maria Leonor, um pouco surpreendida, olhava para ela. Benedita continuavasilenciosa, olhando também para a ama. Um toque de campainha fê-lassobressaltar, assustadas.Daí a pouco entrou na sala Viegas, sacudindo as abas do casaco. Seguia-o ummagnífico perdigueiro de longas orelhas caídas e olhar compreensivo, que,depois de farejar toda a casa, se deitou no vão duma janela, de olhossemicerrados.Benedita saiu cortejando o médico, que a seguiu com um olhar inte-ressado:- Como estás, Maria Leonor? Ouve cá, o que tinha a Benedita que levava umacara de quem viu o inimigo?Maria Leonor riu-se, alegre, e sentando-se no sofá apontou uma cadeira aoclínico.- Não viu o inimigo, não, senhor doutor. Mas foi quase pior. Ouviu uma pequenalição de metafísica. A dose deve ter sido um pouco forte, porque ela ficou sempoder pronunciar palavra!...

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- Mas que foi que lhe disseste? Isso não surgiu, decerto, sem mais nem menos...As feições de Maria Leonor serenaram e foi com um ligeiro tom e melancoliana voz que respondeu:- Perguntou-me por que tinha Deus escolhido o doutor para me curar. Na suaopinião, o doutor, como herege que é, não pode receber de Deus qualquerinspiração.O médico recostou-se na cadeira, sorridente, e depois de ter olhado, pensativo,para o cão, que se estendia no sobrado sob a luz do Sol que entrava pela janela,respondeu:- Creio poder dar a resposta que a Benedita parecia desejar. É que Deus nãotinha à mão outro médico além da minha pessoa. Bom, havia ainda o António,mas isso... E tu, que lhe respondeste?- Nem eu sei, doutor. Lembrei-me de meu pai, da sua ansiedade espiritual, dassuas divagações metafísicas, da sua insatisfação moral, que acabaram por levá-lo ao suicídio, e respondi-lhe de acordo com as minhas recordações de momento.Assustei-a e creio até que me assustei também. Já não pensava nestas coisas hámuitos anos e não sei por que as lembrei agora. Enquanto lhe respondia, pensavana frase que ouvi a meu pai poucos dias antes da sua morte. Foi ela: “Na nossafamília sempre morremos por grandes coisas.” E pensava se eu, também,seguirei a regra...Viegas levantou-se, enfiou as mãos nas algibeiras, e falou, enquanto atravessavaa sala em largas passadas, que faziam tilintar finamente os copos do aparador:- Só o futuro o poderá dizer. Mas entendo que todas as suposições são absurdas e,a menos que queiras ir preparando em vida uma morte correcta e digna, comumas leves tinturas de heroísmo ou sacrifício, para que falem de ti comadmiração quando sete palmos de terra te separarem da vida, deves pôrsemelhante preocupação de parte e pensar apenas no que actualmente fazesdebaixo do Sol. Se começas outra vez a enredar-te nessas trapalhadas, perdoa odepreciativo!, esqueces-te de que a tua missão no Mundo não é de filósofa demãos atadas à cabeça a chorar a rapidez da vida ou a desejar uma apoteose paraa morte, mas a de mãe, única e exclusivamente a de mãe, e mãe tanto maisresponsável quanto é verdade que... Não falemos em coisas tristes, porém...Sabes o que eu ia dizer... Por conseguinte, e recapitulando...Parou diante de Maria Leonor, braços cruzados sobre o peito, o rosto carregado:- Viver, já to disse, é uma operação simples, que a sociedade, as conven-ções, amaldade dos homens complicam diariamente com emoções, senti-mentos,desgostos, esperanças, desilusões e tristezas. Infelizmente é assim e não podedeixar de ser assim. Mas resta-nos a consolação de que, muitas vezes, das nossas

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tristezas nascem as alegrias dos outros. Somos como que um degrau onde seapoiam os pés dos que nós ajudamos a viver. Já chamaram aos médicos ossacerdotes do fogo sagrado da vida. Tirando o que a frase tem de poeirento e depomposo, temos de lhe reconhecer alguma realidade, não te parece? Do mesmomodo, quase posso definir a mãe...Maria Leonor interrompeu, com um sorriso disfarçado por entre o seu arpensativo:- Não defina, doutor! A Joaquina dos Cem Filhos, que é a mulher mais proliferada aldeia, não quereria certamente outra definição além daquela que lhe cabepor direito próprio: a de mãe. Temos de voltar à origem, doutor. Dar às coisas onome que elas têm e nada mais. Sou mãe, apenas. Mãe, sem complicaçõesdesnecessárias...Viegas riu gostosamente e replicou:- Não se pode falar a uma mulher lisonjeando-a, quando é mãe. Para a lisonjear,bastam-lhe os filhos... - olhou para o relógio e deu um brado: - O quê? São já setehoras? Oh, Maria Leonor, adeus, adeus menina! Com tanto para fazer e aqui medeixei ficar de conversa! Anda, Piloto...O cão descerrou os olhos sonolentos e levantou a cabeça. Deu um salto para forae, a correr, desapareceu na poeira que as patas do cavalo de Viegas levantavamna alameda.Maria Leonor voltou para dentro e, depois de atravessar várias salas, abriu umaporta que dava para um pequeno quintal nas traseiras da casa, Debaixo dumaacácia, agitavam-se Júlia e Dionísio, que, debruçados para dentro da capoeira,olhavam qualquer coisa. Ao verem a mãe, romperam em altos gritos:- Mãezinha, venha depressa, venha depressa! Já nasceram três pintos, venhaver!...

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VIII Quando chegou Dezembro, frio e seco, de grandes noites estreladas e silenciosase de dias cinzentos sem chuva, Maria Leonor perguntou, indecisa, a si própria, oque deveria fazer no Natal. Festejá-lo como em todos os anos anteriores ouguardar uma discrição reservada na alegria tradicional da época? Observando oscriados, verificava neles a mesma indecisão e o mesmo cons-trangimento.Quando alguém falava no Natal, era olhado repreensivamente peloscircunstantes e logo se calava como se tivesse dito alguma inconveniência.Benedita não sabia o que responder às perguntas de Júlia e de Dionísio, ansiosospor saberem se a mãe lhes tinha comprado qualquer presente. Os dias decorriamvelozes e a data aproximava-se, mas Maria Leonor não dava qualquer ordempara os preparativos da festa. Ninguém lhe perguntava o que deveria fazer-se.Dois dias antes do Natal, Maria Leonor, à tarde, saiu de casa sozinha, recusando aautorização pedida pelos filhos para a acompanharem, e a pé pela alamedaencaminhou-se para a aldeia. Corria um ventinho agreste, que lhe unha nas facesuma sensação desagradável de frio. Caminhou depressa para aquecer e sódiminuiu o andamento ao chegar às primeiras casas do lugar. Saudando àesquerda e à direita as cabeças curiosas que espreitavam pelos postigos,atravessou a aldeia até entrar de novo no campo deserto e frio. Deixou a estradae cortou para um atalho à esquerda. Dum lado e doutro do carreiro estendia-se oolival sem fim. Os troncos rugosos e contorcidos das árvores destacavam-senítidos do fundo verde do chão, coberto por uma camada de erva fina e rasteira,apenas interrompida pelos traços claros dos carneiros que atravessavam ocampo.Maria Leonor arfava ligeiramente no esforço da subida. A sua frente abria-se ocemitério. Entrou. O saibro do chão estalava debaixo dos seus pés, quebrando osilêncio. A álea central acabava no muro fronteira. De fora, uma oliveirainclinava os ramos sobre o muro, de um branco cintilante, caiado de fresco.Numa das ramadas voava um pardal. O frémito das asas era o único ruído nosilêncio que se fizera por momentos no campo santo. Depois, um golpe de ventodo lado da povoação trouxe no ar sons de chocalhos de gado, latidos de cães e umsurdo rumor de vozes das mulheres que lavavam no rio. Ouvia-se o bater daroupa nas pedras, com um som claro que repercutia entre as árvores. O pardalfugira. Uma nuvem empurrada pelo vento descobriu o Sol. O cemitério ficoucheio de luz. As cruzes de cada sepultura, que pareciam a materializarão dosilêncio, projectaram-se no chão em sombras deformadas de braços muitolongos. Inconsciente do que fazia, Maria Leonor recuou, vendo que pisava umadas sombras. Voltou-se devagar e saiu do cemitério. Sobre o arco da entradaestava a caveira de pedra. No caminho Maria Leonor virou-se diversas vezes

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para a ver. Lá estava, presa ao muro, atirando para o campo um riso mudo esem lábios, indiferente ao sol que lhe entrava pelas órbitas, alumiando o interiordo crânio vazio.Quando chegou à quinta, subiu ao quarto e lá ficou até ao fim do dia, pensativa,sentada no mesmo lugar onde passara os dias de convalescença. Quase à noite,desceu e foi à cozinha. Diante da larga mesa as criadas preparavam a ceia.Joana, à chaminé, vigiava as panelas.Ao verem entrar a ama, interromperam o trabalho. Maria Leonor, em voz alta enítida, chamou:- Benedita!A criada acorreu, pressurosa:- Minha senhora!...- O Natal este ano será igual aos dos anos anteriores. Trata de arranjar as coisaspara que nada falte.Saiu. Benedita seguiu-a. Na cozinha, as criadas murmuravam de espanto.Nenhuma se atrevera a fazer observações em voz alta, mas em quase todas selevantou um repentino desejo de censurar a ordem da ama. Pensavam que erafalta de respeito pela memória do patrão a festa que se ia fazer.No dia seguinte, quando Maria Leonor repetiu a ordem a Jerónimo, julgou ver-lhe passar nos olhos uma sombra de reprovação. O velho arqueara assobrancelhas grisalhas num gesto de admiração. Abrira a boca, mas calou-se.Maria Leonor perguntou, então:- Que ia dizer, Jerónimo?- Nada, minha senhora! Não ia dizer nada.- Está a enganar-me! Quero saber!...Jerónimo, atrapalhado, acenou negativamente sem poder falar. Maria Leonorolhou para ele, silenciosa, e mandou-o retirar.Durante todo o dia, sentiu nos criados a mesma reprovação muda, exprimidaclaramente nos olhares de estranheza que lhe deitavam. Quando chegou aopalheiro, novamente construído, para assistir à descarga duma carrada de palhaque comprara, viu que os homens se calavam quando entrou. A descargacontinuou, em silêncio, apenas interrompida pelo atirar dos grandes fardos para ochão. Retirou-se, pensando se não teria feito mal dando aquela ordem. Mas nãoachava que fosse mau o seu procedimento. Eles não compreendiam a intenção.Apenas viam a falta de respeito, a frieza aparente, e nada mais. Como convencê-los de que estavam errados? Talvez Benedita... Mas até essa mesma andavacalada e arredia. Restava-lhe apenas aguardar.

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Apesar da resistência dos criados, tudo se achava pronto para a festa quando anoite começou a descer. Esperava-se, para a ceia, pelo doutor Viegas e pelopadre Cristiano. Era ainda cedo, porém. O dia afundava-se por detrás da linhadas serras do poente, que se erguiam como a guarda dum poço imenso.Maria Leonor subira ao quarto a fim de preparar-se para a consoada. Nãoacendeu a luz. A última claridade diurna entrava ainda numa penumbra fugidia,que ia desaparecendo aos poucos. Depois de se vestir, abriu a janela e encostou-se ao parapeito. De baixo vinha o rumor alegre da criadagem na cozinha. Ouviaos pratos tilintarem, o bater compassado das facas nos tabuleiros cortando aslargas fatias de carne de porco, que iam para o lume em frigideiras imensas.Uma estrela-cadente riscou o céu. Maria Leonor sorriu lembrando-se da estrelade Belém e, brincando consigo própria, começou a procurar no campo, quasetotalmente imerso em sombra, os três reis magos.Olhou por cima das casas quase invisíveis, no lugar onde brilhavam luzesmortiças de candeias, até uma colina que recebia ainda no topo os últimos raiosde luz. Ali, os muros brancos do cemitério, caiados de fresco, cintilavam sob aclaridade dourada do Sol, que desaparecia rapidamente.Caiu de joelhos e, com a cabeça apoiada no parapeito da janela, choroulongamente, como nunca mais tinha chorado depois da sua doença. A colinadesapareceu de súbito, fundida na escuridão. Maria Leonor enxugou os olhos,levantou-se e, ao dirigir-se para a porta, recuou assustada diante duma sombraescura entre os batentes.Ia gritar, mas a sombra moveu-se. Era Benedita. Respirou aliviada:- Credo, mulher, que susto me deste!Vendo que a criada não respondia, perguntou:- Que há?Benedita respondeu com a voz trémula de choro:- Oh, minha senhora, desculpe a minha maldade! Compreendo agora por quequis que se fizesse a festa do Natal...Riscando um fósforo para acender o grande candeeiro de petróleo da cómoda,Maria Leonor respondeu:- Compreendes, com certeza? É preferível que não compreendas a quecompreendas mal.- Compreendo, sim, minha senhora! Mas garanto-lhe que não me engano. Vou jádizer àquelas doidas da cozinha que não é nada do que elas pensam...- Mas o que é que elas pensam?- Ora! Tolices que não se dizem.

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- Pois sim! E que lhes vais tu dizer?A esta pergunta, Benedita suspendeu o entusiasmo. Sim, o que lhes ia dizer? Quetinha visto a senhora a chorar? E depois? Ora! Elas haviam de compreendertambém...Saiu, quase a correr, e pela escada abaixo Maria Leonor ouviu-lhe o bater dostacões nos degraus. Sentou-se na beira da cama e aí se deixou ficar cismando,até que o ruído das rodas dum carro lá fora a advertiu de que os seus convidadostinham chegado. Desceu para os receber. Viegas ajudava o padre a subir osdegraus da porta, enquanto Benedita alumiava, levantando, a toda a altura dobraço, o candeeiro. Entraram para a sala de jantar.Na mesa, coberta por uma toalha muito branca, havia cinco talheres. Umabaixela de prata brilhava. Sentaram-se. Havia na atmosfera um constrangi-mento subtil e os próprios objectos pareciam ter um aspecto diferente e alheado.A luz brilhava com uma claridade crua, que não animava nem aquecia, e osquadros, nas paredes, tinham uma aparência hostil e fria, que indispunha.Quando Benedita saiu, Maria Leonor levantou-se e disse em voz firme,esforçando-se para dominar a comoção:- Enquanto não vêm para dentro os meus filhos e enquanto não começa a ceia,quero dizer-lhes umas palavras, meus amigos. Os meus criados acharamestranho que eu mandasse que a festa deste ano fosse igual às dos anosanteriores. Os meus amigos terão, talvez, o mesmo pensamento. Deixem-meexplicar, portanto. Meu marido morreu há mais de seis meses e, desta maneira, oNatal não deve nem pode festejar-se com a mesma alegria antiga. Falta aqui asua presença. Mas este ano o Natal festeja-se. Para isso, tal como dantes, matou-se o porco, estão a fazer-se as filhós, logo à noite atirar-se-à para o ar o foguetetradicional. E tudo isto eu mandei fazer apesar das murmurações. Estive ontemno cemitério. Não rezei. Havia lá demasiada paz para que eu necessitasse rezar.O meu espírito estava suficientemente calmo. Não ouvi vozes interiores, nem mepareceu ouvir a voz do Manuel no rumorear das árvores, mas, quando de lá saí,pensava que não podia fazer outra coisa senão o que faço agora. Compreendem-me?Ao mesmo tempo, Viegas e Cristiano levantaram-se e, em silêncio, apertaram asmãos de Maria Leonor. O padre assoou-se com estrondo. Viegas voltou-se para aparede e limpou os olhos com as costas da mão. Quando se voltou, compondo osóculos no nariz, estava já calmo. Inclinou-se para o padre e soltou a sua frase detodos os anos na véspera do Natal:- Então, reverendíssimo padre, vamos a caminho dos dois mil anos donascimento, em Belém, na Galileia, dum menino a quem puseram o nome deJesus e que, não sei por que artes, a tanto tempo de distância, ainda lhe fez perder

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a cabeça!Habituado àquela graça, o padre respondeu, como sempre que a ouvia:- Exactamente! Que me fez perder a cabeça e que há-de fazer perder a suaquando lhe chegar a altura, sossegue!Maria Leonor, também como sempre, interveio:- Pronto, acabou-se! Em minha casa não se discute na noite de Natal. O padreCristiano alegra-se por mais um ano de cristianismo; o doutor Viegas regala-secom a talhada de carne de porco que eu lhe puser à frente daqui a pouco. Vamosà cozinha!...Saíram, sorridentes, Viegas dando o braço ao padre e falando sobre o plantio dasoliveiras e Maria Leonor abrindo a marcha. Pela porta aberta da cozinha saíauma claridade rubra e quente de mistura com um delicioso cheiro de frituras.Teresa, sentada ao lado da chaminé, com um garfo comprido numa das mãos,virava regularmente as filhós que boiavam no azeite fervente duma frigideiraimensa. Júlia e Dionísio, acocorados ao lado dela, muito corados pela vizinhançado fogo, seguiam atentos a trajectória dos fritos na ponta do garfo espirrandoazeite e caindo num grande alguidar de barro, onde ficavam chiando atéarrefecerem.Joana passava da panela para uma travessa, já cozido, um galo quase inteiro, ecom uma faca pontiaguda trinchava-o, fazendo tremer no esforço os braçosgordos e roliços.Por toda a cozinha ia uma azáfama prodigiosa. E Benedita, suando, afogueada,gesticulava no meio da casa, dando ordens que ninguém ouvia e ouvindoperguntas a que não respondia. O rebuliço decresceu um pouco com a entradados visitantes, mas logo continuou, imenso e esbaforido.A um canto, Jerónimo, fleumaticamente, com uma neta sentada nos joelhos,preparava com um grosso cordão branco uma isca comprida, que acendia eapagava, experimentando-lhe a combustibilidade.Vendo a ama aproximar-se, pôs a neta no chão, e com um largo sorriso que lheencrespava as suíças grisalhas, informou:- É para acender o foguetezinho logo, quando a Teresa acabar as filhós. Deusqueira que ela não demore muito...Maria Leonor sorriu e respondeu:- Deixe, Jerónimo, que há-de ser o primeiro este ano.- Vamos ver, vamos ver, minha senhora...Voltaram à sala de jantar. Na cozinha, Júlia e o irmão tinham-se escondido atrásde Teresa, para não terem que sair dali, e a mãe passara por eles simulando não

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os ver. Voltaram para o seu lugar, novamente interessados no frigir das filhós.Por pouco tempo, no entanto, porque daí a pouco o jantar era servido, e depois deterem lavado as mãos cheias de farinha e dado um jeito arrumador nos cabelosdespenteados entraram na sala de jantar, Júlia um pouco atrás do irmão, parandoquando ele parava e andando quando ele andava.Subiram para as cadeiras, alteadas com duas almofadas de modo a poderemchegar aos talheres.O jantar começou silenciosamente, depois de o padre Cristiano ter rezado umacurta oração. Maria Leonor e os filhos, de mãos juntas, acompanharam a rezaem surdina, com os olhos fitos no prato e a cabeça baixa. Enquanto rezavam,Viegas tamborilava com os dedos, um pouco nervoso, no tampo da mesa.Quando as cabeças se levantaram e as mãos se dirigiram aos talheres, o médicoprocurou o olhar de Maria Leonor. Um pouco pálida, à cabeceira da mesa,dirigia o serviço, indicando os pratos a colocar e a retirar na altura devida.Benedita, de avental branco bordado, girava à volta da mesa, levantando ospratos e cumprindo as ordens que Maria Leonor lhe dava em voz baixa. Ajeitou otalher de Dionísio, que se atrapalhava, um nadinha trémulo, ao segurar a faca e ogarfo. A irmã, mais à vontade, olhava-o com um ar de comiseração profunda, oque mais o embaraçava ainda.A tempestade, prestes a rebentar, foi evitada por Benedita. O gesto, porém,valeu-lhe um olhar zangado de Dionísio, que não queria ficar mal colocado emcompetição com a irmã. Daquela vez o maldito talher tinha-o atrapalhado osuficiente para saber que, no dia seguinte, a irmã o importunaria comobservações ingénuas, que tinham o condão de ser irritantes e, afronta suprema!,pretender ensinar-lhe a estar à mesa.Viegas, que interrompera a conversa que mantinha com Maria Leonor e o padre,não pôde evitar o riso ao ver o ar despeitado de Dionísio. Tentou animá-lo:- Então, Dionísio, que tens tu? Olha que o não saber estar à mesa não entra nalista dos delitos que impedem que o sapatinho da chaminé, de manhã, estejarepleto.O pequeno sorriu, mais tranquilo. A conversa generalizou-se. O padre Cristianoperguntou ao médico se andava a plantar pereiras ou macieiras. E gabava umpessegueiro que tinha no quintal, que dava os pêssegos mais sumarentos de duasléguas em redor. O médico volveu logo, sorridente:- Isso deve ser da água benta, padre Cristiano! Não é com água benta que osrega?O padre fazia um trejeito de leve aborrecimento, mas vendo o olhar risonho queViegas lhe deitava por cima dos óculos, respondeu, procurando manter-se no

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mesmo tom:- Da água benta não direi, porque, quando a árvore é ruim, não há água bentaque resulte, e o meu pessegueiro é bom com qualquer água que se lhe deite...O médico fingiu-se zangado, e encrespando o sobrolho respondeu:- Padre Cristiano, padre Cristiano! Em matéria de doentes e de pomares, nãoconsinto que ninguém me ponha o pé adiante. E olhe que prefiro que me chamemau pomareiro a médico ruim.O padre acenou com as mãos à frente do rosto, negando:- Isso não, isso não, doutor! Posso desconfiar dos seus dotes de pomareiro, masdas suas qualidades de médico não duvido. E que o diga aqui a Maria Leonor, quemais razões tem para falar!...Maria Leonor, que ouvira a conversa com um sorriso distraído, aprovou o dito dopadre, dizendo:- Sim, realmente, poucos melhor que eu poderão dizer quem é o doutor Viegas.Um homem que podia fazer fortuna em Lisboa e que veio enterrar-se aqui, nestaaldeola, para...- Bom, bom - interrompeu o médico, mal-humorado -, era o que faltava, serconvidado para jantar e ainda por cima ouvir o meu elogio. O estômago ficasatisfeito com o jantar, mas a vaidade dispensa o elogio. Acabou-se!...Maria Leonor acorreu com um sorriso acalmando Viegas, que só acabou rindoquando Júlia lhe perguntou, inocentemente, se também não sabia estar à mesa.O jantar estava no fim. Servido o café, Viegas pediu licença para acender umcharuto, e enquanto o padre murmurava as graças foi até à janela. Afastando ascortinas, olhou para fora. Batia nesse momento a meia hora depois das onze.Levantaram-se todos da mesa e foram também para a janela. Depois de MariaLeonor a ter aberto, encostaram-se ao varandim, tremendo um pouco de frio eolhando o céu onde passavam grossas nuvens que tapavam o brilho das estrelas,lucilantes no azul negro do espaço. Falavam em voz baixa, Maria Leonor com osfilhos apertados contra as saias abrigados do frio, e o médico tirando largasfumaças do charuto, cuja ponta brilhava na escuridão em intermitênciasluminosas.O padre, encostado à ombreira da janela, cerrava os olhos, pensativo. Derepente, a porta da cozinha abriu-se. No chão do largo defronte da casa espalhou-se um rectângulo de luz, E à frente dos criados irrompeu Jerónimo, com a iscaacesa na mão direita e o foguete enristando o cartucho para cima, na esquerda.Vendo Maria Leonor à janela, voltou-se, risonho, e exclamou:- Pronto, minha senhora! Acabámos! Lá vai o foguete! E desta vez somos osprimeiros!...

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- Atire, atire depressa, Jerónimo! - gritou Maria Leonor, entusiasmada.O velho abegão soprou nervosamente a isca, que largava chispas - e chegou-a àpólvora já picada do canudo. Manteve o foguete um momento preso na mão,aguentando o impulso ascensional que a combustão da pólvora lhe imprimia, equando o fogo era expelido com maior força largou o foguete, ajudando-o aindana subida com o atirar do braço para cima.O foguete subiu, assobiando, deixando atrás de si urna esteira de fogo, riscando aescuridão do céu com um sulco brilhante, e rebentou lá em cima numa chuva deestrelas amarelas, verdes e vermelhas, dando, ao mesmo tempo que atingia oápice da subida, três estoiros potentes que despertaram os ecos da quinta.Enquanto o foguete, lá em cima, vivia intensamente a sua vida fugaz, os olhos doscriados, das crianças, de todos seguiam-no extasiados. Os dois irmãos, sobretudo,viram, com o coração dilatado de entusiasmo e admiração, a chuva de estrelascair do céu lentamente, até se transformar numas luzinhas amareladas quedepressa se extinguiam.Quando o foguete caiu, romperam todos em aclamações, na alegria de teremsido os primeiros a acabar, naquele Natal. os fritos tradicionais. Ainda gritavamsatisfeitos, quando, do lado da aldeia, subiu um risco luminoso que estoirou no ar.Era um modesto foguete de três respostas.Aventaram-se logo hipóteses sobre o sítio donde teria partido. Enquanto unsgarantiam que era da casa do Joaquim Tendeiro, outros afirmavam que tinhasaído da banda do rio, e que, portanto, era dos Pintos Barqueiros.Novo foguete veio terminar a discussão. E, logo após, outro. E mais se seguiram.Como se se chamassem uns aos outros, os foguetes subiam sobre as casas,traçando uma trajectória luminosa que ia acabar em relâmpagos sucessivos emal se viam na escuridão.Durante algum tempo, dezenas de foguetes subiram ao ar. A cada um, os criadose as crianças que tinham descido para o terreiro batiam palmas com entusiasmo,mal sentindo o frio. Depois, os foguetes foram rareando. Apenas um ou outroriscava o céu, aborrecido pela falta de companhia, preguiçosa-mente, e depoisde dadas as clássicas três respostas descia melancólico, ardendo mortiço.Os criados entraram de novo para a cozinha. Estava finda a festa do Natal. Ascrianças subiram. O padre despedia-se: tinha a sua missa do galo e não podiadeitar-se muito tarde quem dentro em pouco deveria estar a pé. O médicoacompanhava-o até à porta de casa. Subiram para o carro. Acendeu-se alanterna junto à manivela do travão, e o médico, empunhando as rédeas,chicoteou o cavalo, que partiu num ligeiro trote com um alegre guizalhar.Maria Leonor subiu ao andar de cima, levando as crianças, enquanto Benedita nacozinha dava as últimas ordens. Pelas salas desertas e silenciosas, Maria Leonor,

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com os filhos encostados a si e já com os olhos sonolentos e o passo trôpego,dirigiu-se para o quarto deles. Deitou-os, aconchegando-lhes amorosamente asroupas aos corpos. Beijou-lhes os olhos, que se fechavam consolados, e depois decontemplá-los durante longo tempo, saiu. Encontrando Benedita, que vinhatambém para deitar as crianças, disse-lhe:- Já estão deitados. E tu vai também, Benedita. Boa noite!- Boa noite, minha senhora! Até amanhã, se Deus quiser!- Adeus!...Sozinha, de braços desalentadamente caídos, percorreu as salas escuras, até aoseu quarto. Acendeu a luz. O aposento silencioso, familiar, habitual, espantou-a.Olhou em volta. Da casa, imersa na escuridão exterior, não vinha qualquer ruído.Apenas ouvia a própria respiração, sibilante, apressada. Juntou as mãos, apertou-as fortemente uma contra a outra, e em passos arrastados deixou-se cair nacama, soluçando, sentindo, numa acabrunhante angústia, o peso esmagador dasua viuvez.

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IX Quando acabaram as férias do Ano Bom e dos Reis, as crianças voltaram para aescola. Maria Leonor ficou, de novo, sozinha. Os seus dias sempre iguaissucediam-se num desenrolar suave, sem grandes prazeres nem grandesaborrecimentos, dias que a envelheciam lentamente, sem deixarem recordações,alegres ou tristes. Os trabalhos do campo já não lhe davam aquele entusiasmo,aquela animação sem limites dos primeiros tempos. A sua iniciação estavaconcluída e nada se passava agora que ela não conhecesse já. Dentro de casa,quase sempre silenciosa pela ausência das crianças durante a maior parte do dia,passava as horas que as suas ocupações lhe deixavam livres.Benedita falava sempre em voz baixa e a casa revestia-se de um ar conventual,resignado e solene, que intimidava, pondo cautelas estranhas nos passos e recatonas palavras. Quando Viegas, depois de se ter desembaraçado do pesado capotãoalentejano, ali se demorava uns minutos no intervalo de duas visitas aos doentes,toda a casa retomava um brilho acolhedor e doméstico, que alegrava. Mas logoque ele saía, as mulheres entreolhavam-se indiferentes, como se sedesconhecessem, e cada qual partia aos seus afazeres.O Inverno, que tardara e se manifestara apenas pelo frio seco de Dezem-bro,começou, por fim, a desfazer-se numa chuva fina e leve, que caía das nuvensdurante horas seguidas, dando ao dia um tom pardacento e indefinido, queenvolvia o campo numa penumbra estática e morrinhenta, num frio húmido quefazia crescer vigorosa a erva dos prados. Por esse tempo, os campos em redor da quinta apresentavam-se, quando demanhã cedo o sol os banhava, cobertos dum tapete infinito, que se amoldava àsondulações do terreno, um tapete duma cor maravilhosa de verde, que durante ashoras do amanhecer rebrilhava do orvalho e da humidade.Depois, a chuva cessou e o frio voltou mais intenso. As noites tornaram-se,rebrilhantes de estrelas sem conto, que só desapareciam horas altas, quando aLua surgia do horizonte numa vermelhidão de sangue, que ia aclarando à medidaque subia no céu, até se transformar num disco pálido, que vogava na frieza danoite, a caminho do outro lado da Terra. Era por estas noites vagarosas e frias,quando em casa tudo era silêncio e todas as criadas dormiam, extenuadas, nocansaço dos dias trabalhados, que Maria Leonor se levantava da cama, semruído, enfiando os pés descalços e friorentos numas pantufas. Abrigava-se numalonga capa, cobria os cabelos com um velho lenço de lã e abria a janela do seuquarto de par em par, tremendo de frio e de uma comoção indefinível.Sentava-se, então, numa cadeira, enrolava as pernas arrepiadas num cobertor edeixava-se ficar durante muito tempo imóvel, sob a grande luz do luar que

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entrava pela janela. Quando, depois de algumas horas, a Lua se escondia detrásdo beiral do telhado, deixando o quarto imerso em sombra, Maria Leonorlevantava-se, entorpecida, esfregando as mãos gretadas do cieiro e ia deitar-se,tiritando. Não dormia logo. Ficava com os olhos muito abertos, tentando penetrara escuridão, ouvindo na sala de fora o bater do relógio numa cadência monótonade quartos de hora sempre iguais.Aos poucos, os lençóis frios iam aquecendo e ela estirava os membrospreguiçosamente, numa volúpia leve e perturbadora, virando-se dum lado para ooutro sem poder dormir. Sob o peso dos grandes cobertores, deitava-se de costase sentia então um arrepio muito longo e muito doce percorrer-lhe o corpo até ànuca, vibrando toda, sentindo a garganta entumecer-se, quase se magoando noesforço de engolir a saliva.Quando, de manhã, se erguia, estava pálida e fatigada, como se em toda a noitenão tivesse dormido.Ao receber dos filhos o beijo matinal, olhava-os com indiferença, e quando elespartiam para a escola, sob a chuva, na carroça que Jerónimo guiava, embrulhadonuma manta pesada e com as pernas protegidas por grossos safões de pele decarneiro, despedia-se distraída com um afago, ficando a olhá-los atédesaparecerem na estrada.Voltava para dentro, pensativa, quase não ouvindo Benedita perguntar-lhe o queera preciso fazer naquele dia. Depois de a despedir, vagueava pela casa,perplexa, mexendo em qualquer objecto, olhando-o como se o não visse até queo largava.Por vezes, saía do seu devaneio, e numa grande decisão movia e pela casa comose tivesse em mente uma obra a executar, mas logo recaía na mesma distracção,sorrindo vagamente, relanceando o olhar para a quinta, através das janelas,como se esperasse alguém. Outras vezes, e sem qualquer motivo, impacientava-se com as criadas, gritando irritada, dando ordens intempestivas num desejo dedesabafo, e ia pela casa, apressada, numa inquietação absurda, pletórica de vida,sentindo o sangue a correr-lhe com impetuosidade nas veias e chegar-lhe aocoração, excitando-a inquietamente em palpitações desordenadas, que asufocavam, latejando-lhe nas fontes e na garganta.Na cozinha, ao serão, enquanto nas panelas gorgolejava o caldo que os moços daquinta haviam de comer ao outro dia de manhã, as criadas, sentadas em volta dolume, aconchegando as pernas debaixo das saias, falavam da “disposição” dasenhora. Enquanto faziam meia, desenrolando no regaço o fio de algodão,murmuravam das palavras da senhora, dos maus modos da senhora, da vidaaborrecida da casa. A um canto da lareira, sorrindo significativamente, Joaquina,a criada mais nova, admitida quando das vindimas e que ainda continuava na

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quinta, ouvia as conversas de Joana e de Teresa, conversas em que, apenas devez em quando, Benedita intervinha para as censurar pelo atrevimento defalarem da senhora daquela maneira. Que não era atrevimento, era a verdade,respondiam as duas, abespinhadas.Uma noite em que se discutia a maneira particularmente irritante como asenhora ralhara todo o santo dia e em que Benedita se calara, mau grado seu,reconhecendo quanta razão tinham. Joaquina soltou uma gargalhada, muitosublinhada e intencional:- Oh, que parvas vocês são! Todas mulheres feitas e não são capazes de saber oque a senhora tem! Pois sei eu e não foi preciso muito tempo para saber. Quantome dão se eu disser?As saias juntaram-se todas no mesmo movimento de curiosidade. Até Beneditase inclinou para a frente, aguardando as palavras da criada, que gozava o efeito,mirando-a de lado. Joana e Teresa perguntavam, ansiosas:- O que é, o que é? Diz o que é, Joaquina! Anda, mulher!...A criada, risonha, olhou-as, e depois dum breve silêncio respondeu, baixando avoz, sem querer:- Pois é muito simples! A senhora tem falta de homem!As criadas recuaram as cabeças, estupefactas, soltando um “oh!” escandalizado,mas sentindo dentro de si um apertão delicioso. Apenas Benedita, corandointensamente, balbuciou, atropelando as palavras na pressa de se exprimir:- Ouve bem, Joaquina! Eu já sabia que tu não eras boa rês, mas ainda não tinhadescoberto que eras tão velhaca! Se te atreves a dizer essas coisas outra vez e àminha frente, juro-te, pelas chagas do Senhor, que te faço engolir esta tenaz!E deitava a mão a uma tenaz de ferro, imensa, com grandes garras nas pontasencurvadas. Joana e Teresa agarraram-na, aflitas, chorosas, enquanto Joaquinarecuava atemorizada, com uma expressão de susto na face alvar e redonda.Benedita atirou a tenaz para o chão e, fazendo esforços para se conter, continuou:- Se tu não és reconhecida a quem te dá o pão, cigana de má morte, vais para oolho da rua! Velhaca, que não sabes quem é a minha senhora, repara que só tedigo isto uma vez: mato-te como quem mata um piolho, se te atreves!... Edesaparece da minha vista! Se eu fosse outra, ias já amanhã para a rua, mas olhaque não perdes pela demora. Traste!Joaquina, silenciosa e trémula, saiu da cozinha.No silêncio que se fez depois, o fervor das panelas soou mais alto e nítido.Benedita nervosa, partia com um pau um grande pedaço de carvão incandes-cente, que rolara debaixo duma trempe. Sob as pancadas, a brasa desfazia-se em

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centelhas fulgurantes, que iam morrer no chão.Joana suspirou levemente e disse, a medo:- Aquela Joaquina é uma doida! Inventa coisas...Benedita acabou de desfazer o carvão e respondeu, ainda exaltada:- Ela é doida porque inventa e vocês são parvas porque acreditam!As duas protestaram:- Oh, Benedita, francamente!... Pois tu acreditas?...- Sim, sim, acredito! Acredito que vocês são umas parvas!- Não digas isso! Parece impossível!... Quem julgas tu que nós somos?- Já disse: umas parvas. Mas tenham cautelinha, porque senão dou cabo devocês! Tão certo como eu chamar-me Benedita!Atirou o pau para o fundo da lareira e saiu também, enquanto Teresa e Joanaficavam na cozinha, comentando o dito da Joaquina e a zanga da Benedita. Queela era muito capaz de fazer o que dissera! Boazinha até ali, outra igual talvez nãohouvesse, mas quando a arreliavam era má, vingativa. Não deixara de falar aoChico Ferrador por ele ter dito, por graça, já se vê, que ela não casara por estar àespera dum proprietário? Sim, porque ela, depois de vir para ali com a senhora,recusara todos os partidos que lhe tinham aparecido. E bons. O JoaquimTendeiro, que já estava casado agora, bem lhe pedira. Recusara sempre. Nofundo, era natural: sempre conhecera a senhora e não ia deixá-la assim. Maspodia ter casado, se quisesse: e aquela Joaquina... A Benedita tinha razão: erauma doida e uma ingrata, que melhor faria se deixasse a casa. Falta não fazia. Asenhora é que, com o seu bom coração, a deixara ficar. Sim, porque a senhoraera uma santa. Andava agora aborrecida, mas aquilo até devia ser do tempo.Depressa lhe passaria. E, quando passasse, logo andariam todas satisfeitas. Erabom viver naquela casa, não havia dúvida...Entretanto, Benedita subira ao andar de cima e, depois de espreitar o sono dascrianças, dirigiu-se para o seu quarto. Ao passar pela porta do aposento de MariaLeonor, apurou o ouvido. A senhora dormia, com certeza. Aquela hora...Entrou no quarto e começou a despir-se às escuras. Enfiou uma camisa dedormir, branca e áspera, e meteu--se na cama. Arrepiou-se ao contacto doslençóis frios e puxou os cobertores para os ombros. Virou-se para um lado etentou adormecer. As palavras cínicas e mal-intencionadas de Joaquina vieram-lhe à memória. Que a senhora tinha falta de homem! Como aqueladesavergonhada se atrevera! E uma fúria irritada fê-la voltar-se no leito, bemdesperta. Que parva fora em não lhe ter arrancado a língua, que era justamenteo que ela merecia! Havia de ir para a rua, pois então! Debaixo dos tectos em queresidia a senhora não podia viver aquela indecente. No outro dia havia de

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procurar dar a entender à senhora que a Joaquina não podia continuar na casa.Porquê? Ora! Arranjaria uma mentira e ela não ficaria nem mais uma hora. Erapecado, lá isso era verdade, mas nem que fossem necessárias mil!E, de repente, lembrou-se de que, na sua zanga, nem sequer rezara antes de sedeitar. Levantou-se apressada, e de joelhos, aos pés da cama, orou, tentandoconcentrar o espírito no significado das palavras rituais. Em vão! Não se esqueciada gargalhadinha de Joaquina. Deixou de rezar e enfiou-se de novo na cama.Ajeitou nervosamente as almofadas para se deitar, mas deixou-se ficar sentada,com os joelhos dobrados e encolhidos servindo de apoio ao queixo e os braçosapertando os pés contra as coxas, protegendo-se do frio.Os primeiros impulsos da sua ira iam-se desvanecendo como fumo e agorapensava, procurando descobrir a razão que tinha levado a Joaquina a dizeraquilo... Que a senhora tinha falta de homem!... Mas porquê, Santo Deus? Porandar zangada e aborrecida com as criadas? Mas era ela obrigada a mostrarsempre boa cara àquelas delambidas? Não! Não podia ser só por isso! AJoaquina tinha, com certeza, outras razões. Mas, então, quais? Ela, Benedita,conhecias desde rapariga e melhor do que ninguém podia falar, conhecias maisque ninguém. Que viesse agora uma delambida, com cara de pêra dessorada,dizer tais coisas, não o podia consentir! Havia de pagá-las...E a sua irritação renascia à lembrança da gargalhadinha cínica e reles que acriada soltara. Atrevida! Ingrata! E o tom com que ela dissera aquilo!... Se aapanhasse ali, esganava-a!Deixando-se cair nas almofadas, batia no colchão com os punhos cerrados,furiosa. Iria para a rua, olé se iria! Quando se levantasse, a primeira coisa quefaria era dizer à senhora que aquela desavergonhada não podia continuar nacasa.E, de repente, sem que pudesse explicar a si própria a razão de recordar a épocaem que fora para casa da senhora, ainda ela era solteira. A família eraconstituída apenas por três pessoas: o senhor Melo, com o seu ar distraído eabsorto, passeando no escritório, de braços cruzados, fumando incontáveiscigarros, folheando grandes livros, que lia até de madrugada. Só então se iadeitar, seguindo pelo corredor, direito ao quarto, curvado, naquele jeito quesempre lhe conhecera; a senhora dona Júlia, a mãe de Maria Leonor, resignada,falando sempre em voz baixa, que se movia como se fosse uma sobra, emsilêncio, escutando o marido com atenção e cuidado, preocupada sempre que ovia mais melancólico e aborrecido. Havia, por fim, a menina Maria Leonor, queentão era bem menina com os seus quinze anos muito esgalgados, os cabeloslouros em farripas caindo-lhe para a testa, não deixando adivinhar, nem de longe,a linda mulher em que mais tarde se tornaria.

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Revia-se de avental branco muito lavado, servindo à mesa, com um sorrisoalegre, que logo lhe desaparecia quando o senhor Melo, depois de meter duasgarfadas na boca, se sumia detrás da porta do escritório. O que chorara aprincípio, julgando que ele não gostasse da comida! Depois, por meias palavras enunca completamente, fora sabendo o que o apoquentava. E eram umas coisasmuito esquisitas que a faziam cismar, apreensiva, perguntando a si própria setambém estaria sujeita a andar um dia naquela consumação.Num salto brusco de quinze anos recordou-se das palavras que a ama lhe disseraquando lhe falara na cura. Que susto tivera! E voltava atrás, outra vez, seguindo opensamento até àquela noite em que, ao subir a escada, de volta de procurar umremédio para as dores de cabeça do patrão, se sentira apertada nos braços dumhomem que a beijava brutalmente, no escuro. Gritara, espavorida, até que, porcima do corrimão, no patamar, aparecera a senhora dona Júlia, com umcandeeiro. Quando lhe perguntaram o que sucedera, não fora capaz deresponder, tremendo como varas verdes. E quando se explicou, diante dospatrões e da menina, viu o senhor Melo encolher os ombros e voltar-lhe as costas,enquanto a senhora acenava indignada, murmurando da maldade dos homens. Amenina Maria Leonor abrira para ela uns grandes olhos dilatados de curiosidade.E era este olhar que Benedita agora recordava, mergulhada num estado de quaseinconsciência próximo do sono, debatendo-se, ainda, agarrada àquela ideia fixa:o olhar de Maria Leonor, cheio de curiosidade, que parecia querer tirar-lhe daboca as palavras com que contara o sucedido.Era já noite velha quando Benedita adormeceu. De manhã, ao lembrar-se do quese passara na véspera, repreendeu-se pelas tolices que recordara antes deadormecer e, zangada consigo própria, ia pensando que estava sendo tão boacomo a Joaquina.Ao chegar junto da ama, ainda abriu a boca para lhe contar, mas calou-se.Justificou-se a si mesma perguntando-se para onde iria a outra se a senhora amandasse embora. A resposta era simples: iria trabalhar para o campo. E acontemplação do dia chuvoso e frio fê-la encher-se dum grande dó pelaJoaquina. Quando a encontrou na cozinha soprando vigorosamente os tições dalareira, chamou-a. A criada aproximou-se, de cabeça baixa, as mãos juntasdebaixo do avental escuro.- Afinal resolvi não dizer nada à senhora. Pensei que se daqui saísses terias deandar aí no campo a ganhar o pão com mais suor do que aquele com que oganhas aqui. Mas aviso-te que não tornes a dizer aquelas coisas, porque senãovais para a rua, tão certo como eu chamar-me Benedita. Ouviste?Elevou a voz, à irritada com a sua própria benevolência e esperando da parte deJoaquina uma resposta azeda. Se ela viesse, despertaria de novo a lembrança da

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sua fúria do serão da noite anterior e, então, daria largas à irritarão que a invadiaoutra vez.Joaquina, no entanto, respondeu, em voz sumida, que desculpasse, que tinha sidomá e que não tornaria. Jurava que não tornaria e que seria sempre muito amigada senhora. Benedita voltou-lhe as costas e respondeu aspera-mente que estavabem e que tivesse juízo.Sentira-se furiosa ao ouvir a criada dizer que seria muito amiga da senhora.Muito amiga, hem? Como é que ela se atrevia, tinha o descaramento de afirmarsemelhante coisa? Amiga da senhora, só ela, Benedita! Mais ninguém, a não seros meninos, o padre Cristiano, o doutor Viegas, o Jerónimo e, talvez, o senhorAntónio Ribeiro. Mas estes eram homens...Sacudia o pó dos móveis da sala de jantar quando este pensamento a assaltou.Eram homens... Mas era justamente deles que a Joaquina dizia que... Bateu como pé no chão, colérica, procurando não pensar no resto da frase. E novamente lheveio a vontade de agarrar a criada por um braço e empurrá-la para a rua,fechar-lhe a porta na cara e deixá-la ficar ali à chuva até que se fosse emborapara sempre.Mas, logo a seguir, uma grande moleza a acometia. E também um vago receiode que ela fosse repetir lá fora, na povoação, o que dissera. E depois? O nome dasenhora andaria murmurado por todas as tabernas e portais, à boca pequena,com risadinhas trocistas e maldosas, pelas más-línguas da terra. Haviam deemporcalhá-lo impunemente no “diz-se” com que desfaziam honras e sujavamreputações. Fariam o mesmo que tinham praticado com a Joaninha Benta e onamorado. Uma tarde em que a fora ver ao postigo, sucedera que um botão dacamisa dele, mal seguro, se desprendera. Logo a rapariga fora buscar agulha elinha e em poucos momentos o botão estava no seu lugar. Além do rubor maisacentuado nas faces da Joaninha e o ar satisfeito do rapaz, nada mais se passara.Daí a oito dias ambos se afogavam no pego da boca do rio, depois de por toda aparte os seus nomes terem andado de rojo.E havia ela, Benedita, de não evitar que o mesmo escândalo, ateado por aquelamalvada Joaquina, atingisse a senhora?! E verdade que a senhora dona Leonornão era a Joaninha Benta, tinha amigos e seria mais difícil que os dentes afiadosdas coscuvilheiras da terra a mordessem, mas sempre era bom acautelar. Calar-se-ia de maneira que aquilo não fosse espalhado e avisaria a Joana e a Teresapara que não fossem também badalar. Custava-lhe suportar aquela cara de luacheia, molengona e estúpida, mas tinha de ser: era a tranquilidade da senhora queestava em jogo.Remoendo estes pensamentos, Benedita acabou de limpar os móveis. Abriu umadas janelas que dava para a quinta e sacudiu o pano de que se servira. Depois

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deixou-se ficar encostada ao peitoril, com um braço pendendo para fora. Choviade novo. Distraía-se ouvindo a água precipitar-se do telhado e cair no chão emfios longos e contínuos, quando se sentiu agarrada por detrás ao mesmo tempoque lhe soava aos ouvidos um “uuuuuu” prolongado e lúgubre. Deu um grito,assustada, e voltou-se rapidamente. Diante dela agitava-se um estranho animalbranco com quatro pernas morenas e magras, que avançava e recuava aocompasso do gemido soturno. Mal refeita ainda, Benedita avançou para o animale, com dois açoites valentes um pouco acima de cada par de pernas, pô-las emfuga, cada qual para seu lado. As pernas corriam agora à volta da mesa,embaraçados pelas dobras do lençol e sempre perseguidas por Benedita, queempunhava um espanador. Encurraladas a um canto da sala, as pernasacabaram por se render, cansadas da correria. A criada arfava.- Os meninos nunca mais têm juízo!... Quando lhes dá para a brincadeira, há queaturá-los com todas as tropelias que queiram fazer. Imaginem: um susto destes!...Não sabem que até podia morrer?As pernas avançaram devagar e em linha e pararam a dois passos de Benedita,que limpava uma lágrima nervosa, pondo a mão ansiada sobre o peito.O dono das pernas mais altas agitou-se, embaraçado, e murmurou com umligeiro tremor na voz:- Ó Benedita, não chores, não?! Foi sem querer... Se soubéssemos que teassustavas tanto, não tínhamos feito aquilo...Sacudiu o braço de Benedita para a animar e a obrigar a ouvi-lo e continuou:- Fui eu quem teve a culpa. A Júlia não queria, mas eu teimei e ela tambémajudou. Mas fui eu quem teve a culpa... Estás a ouvir, Beneditazinha?E os seus lábios tremiam também para reprimir o choro. Júlia já chorava.Benedita sentou-se numa cadeira para descansar e puxou as duas crianças parasi. Afagou-as e procurou acalmá-las:- Pronto, meninos, não chorem, estejam sossegados... Mas é preciso que saibamque a Benedita já vai estando velha e não pode ter sustos. Sosseguem. Pronto, nãose fala mais no caso!Nesse momento Maria Leonor entrou. Tinha descido do andar de cima e viera âsala de jantar buscar uns papéis que deixara numa gaveta do aparador. Estacousurpreendida ao ver os filhos chorosos, encostados ao regaço de Benedita, que osacariciava. E numa voz irritada perguntou o que era aquilo.Benedita levantou-se, respeitosa, sentindo-se vagamente ofendida, sem quepudesse, no entanto, dizer porquê, e respondeu com doçura:- Não é nada, minha senhora. Fui eu que estive a contar uma história aosmeninos. Era uma história triste e eles começaram a chorar...

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Maria Leonor enrugou a testa num vinco acentuado entre as sobrancelhas erespondeu, rispidamente:- Vê se deixas de lhes contar disparates, para que não andem aqui a chorar comoestúpidos. Meninos, venham cá!...As crianças acercaram-se, receosas, tentando reprimir as lágrimas. MariaLeonor, ao ver a maneira tímida como os filhos se chegavam, impacientou-se e,numa voz estridente, gritou-lhes:- Calem-se!Os pequenos recuaram, assustados. Aquele movimento ainda mais a exaltou.Sem pensar no que fazia, deu uma bofetada atroadora em cada um. Nos olhosdas crianças secaram subitamente as lágrimas e as pálpebras abriram-seespantadas e medrosas: era a primeira vez que a mãe lhes batia assim. Ficaram-se a olhar para ela, num espanto mudo, sem lágrimas, sentindo nas pequenasgargantas um espasmo doloroso que as impedia de gritar.Maria Leonor, apatetada, olhou para os filhos e num movimento brusco saiu dasala. Só então as duas crianças choraram. Sentaram-se no chão, abraçaras uma àoutra, a soluçar em surdina, como se o desgosto sofrido tivesse sidodemasiadamente grande para se exprimir em gritos.A criada, estupefacta, olhava ainda a porta por onde a ama saíra. Apossava-sedela um desejo de bater na patroa, de estrangulá-la, de trazê-la de rastos até aospés dos filhos, para a obrigar a pedir-lhes perdão. E no fundo da sua alma sentialevantar-se, devagar, um ódio imenso a Maria Leonor, uma raiva que lhe faziapalpitar o coração e fincar as unhas nas palmas das mãos até ao sangue. E,vindas não sabia donde, as palavras de Joaquina sussurraram-lhe de novo nosouvidos, frias, calculadas, certeiras. Já não lhes resistia e, obscura-mente, iapensando que talvez “aquilo” fosse verdade...Levantou as crianças do chão, e com elas ao colo, chorando ainda encostadas aopeito, subiu a escada até ao quarto. A meio caminho encontrou Teresa, que sedebruçou logo sobre os rostos aflitos e congestionados dos meninos, perguntando,ansiosa:- O que foi, Benedita, o que foi? O que têm os meninos? Caíram?- Não, mulher! Onde está a senhora?- A senhora saiu para a quinta. Embrulhou-se na capa e para lá foi. Até meassustei com o ar dela! Ia, assim, a modo que espavorida, como se tivesse vistocoisa má,Benedita deixou a companheira e abriu a porta do quarto das crianças. As camasainda não estavam feitas e guardavam nos lençóis um vago calor. Deitou-as.Soluçavam, mas os olhos já não choravam. Apenas uma grande tristeza se lhes

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espalhava no rosto, onde os dedos da mãe tinham deixado vincos lívidos. Ecerravam os olhos devagar, como se quisessem dormir para não pensar, com umaspecto angustiado mas sereno, que comovia infinitamente. Benedita saiulimpando os olhos húmidos.Foi para o quarto da ama. O desalinhado que tinha de arranjar fê-la tremer deraiva. As cobertas arrastavam pelo tapete. Um bafo morno saía dos lençóisquando Benedita os puxou para trás. Sentiu uma leve tontura. As narinastremeram-lhe, palpitantes. Atirou a roupa para o chão, irritada, e achou-se amurmurar consigo própria, enquanto olhava a cavidade que o corpo de MariaLeonor deixara nos colchões:- Com que então tem falta de homem, hem? Tem falta de homem e os filhospagam com pancada!... Cabra!Virou costas à cama e saiu para o corredor. Ali, gritou pela Teresa. Quando acriada veio, espantada pela estranha atitude, disse-lhe:- Arranja tu o quarto da senhora que eu hoje não estou disposta!Enquanto a outra encolhia os ombros, resignada a não compreender a razão daordem, Benedita voltou ao quarto dos meninos. Sentou-se numa cadeira ao ladodas camas e ali se deixou ficar, pensativa, movendo-se apenas de vez emquando, cautelosamente, até eles acordarem.Era meio-dia quando o almoço foi servido na sala. Júlia e Dionísio, com os seusfatos de domingo, aguardavam, atrás das cadeiras em que deviam sentar-se, achegada da mãe. Benedita esperava também, de pé, ao lado da cabeceira damesa.Quando Maria Leonor entrou, silenciosa, teve um ligeiro movimento de recuo aonotar a imobilidade dos três. Era aquele o espectáculo que via em todas asrefeições. Desta vez, porém, havia qualquer coisa de diferente. Uma atmosferagélida, um silêncio extraordinário enchiam a sala. Sobre a mesa, os copos e ospratos brilhavam friamente numa hostilidade severa.Deu a volta à mesa, sentou-se, e logo Benedita começou a servir a refeição. Ascrianças sentaram-se também e a ajuda de Dionísio à irmã para subir à cadeira,que era sempre motivo de brinquedo, foi feita gravemente, sem um riso.O almoço decorreu em silêncio, apenas interrompido pelo leve tilintar dostalheres. Maria Leonor olhava para os filhos, espantada, sentindo uma certavergonha de mistura com uma irritarão surda perante as faces graves dascrianças inclinadas sobre os pratos, como um protesto mudo contra a violência deque tinham sido vítimas. E durante todo o tempo que durou a refeição, nunca tevenecessidade de fazer a mais pequena advertência. As crianças serviam-se com amaior compostura, recusando ou aceitando o alimento com os modos comedidos

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de um adulto.Perante os ares retraídos dos filhos, Maria Leonor surpreendia-se vagamentehumilhada, pouco à vontade, como se estivesse diante de dois juízes severos ejusticeiros. Antes mesmo de a refeição ter terminado, levantou-se e saiu da sala,cruzando-se na porta com Benedita, que entrava com a sobremesa. Para deixarpassar a ama, a criada encostou-se à parede, com as pálpebras descidas, velandoo olhar, que fitava obstinadamente o tapete. Maria Leonor sentiu a repulsa. ViuBenedita contrair os lábios num arreganho de desprezo, numa contracção dehorror, que a fez tremer, irada. Esforçando-se por se dominar, chamou quando acriada já entrava na sala:- Benedita!A criada, que ia servir a sobremesa, voltou-se lentamente e aproximou-se daporta. Aí, parou e, levantando os olhos para a patroa, disse, calmamente:- Minha senhora...Maria Leonor pensou, de repente, se a criada não estaria troçando de si, mas amaneira dócil como ela aguardava as suas palavras embaraçou-a, e respondeu,bruscamente:- Não é nada! Quando precisar de ti, chamarei!...Subiu devagar para o pavimento superior. De baixo, vinha o rumor indistinto daconversa entre Benedita e as crianças. Debruçou-se do corrimão para ouvir, masnão conseguiu entender o que se dizia. Apenas distinguia a vozinha aguda de Júlia,pontuada de vez em quando pela voz um pouco mais grave de Dionísio e pelotom maternal de Benedita.No meio da escada, encostada ao corrimão, deixou-se ficar a ouvir. Quando soouuma risada de Júlia, fina como um estilhaçar de cristal, pousou um pé no degrauinferior para descer. Deteve-se, suspensa. A gargalhada cessara bruscamente esucedeu-lhe um momento de silêncio. Maria Leonor sentiu o coração apertar-se-lhe numa súbita angústia, mas logo respirou, aliviada. Os risos recomeçavam e,agora, era também Benedita quem gargalhava, sacudidamente, numa alegriaespontânea e viva. Ouvindo aquilo, subiu-lhe uma vaga de ciúme do maisprofundo da sua alma e teve a sensação clara de que estava sendo espoliada dealgo que fazia parte de si mesma, que tinha raízes nos recessos mais íntimos doser. Desceu decididamente alguns degraus, mas parou, ao ver saírem da sala dejantar Benedita e as crianças galhofeiras. Passaram em baixo sem a verem.Então, Maria Leonor recomeçou a subir, com uma tristeza imensa na alma e osolhos manejados de lágrimas.Sentia-se estranha dentro de casa e olhava em volta, como se pela primeira vezos visse, aqueles móveis e aqueles quadros, a cor já debotada dos tapetes e o

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brilho baço das portas polidas. O aroma peculiar da casa despertava-lhesensações novas e afligia-a numa opressão indefinível e amargurante.Entrou no escritório. Deixou-se cair no cadeirão atrás da secretária e, com asmãos amparando o rosto, ficou durante muito tempo a cismar.Nas janelas, a chuva rufava a espaços, empurrada pelo vento, que assobiava nocunhal do prédio, mas logo recaía no ruído monótono das gotas, que chegavamao chão apenas com a força do próprio peso. O dia acinzentava-se. Ospensamentos de Maria Leonor iam-se impregnando da melancolia do ambiente.Que solitária se sentia naquela casa, sabendo embora que por baixo de si haviavida, que lá fora a chuva preparava incansavelmente vida e que para lá da chuvahavia, ainda, vida, sempre vida!... Aquela hora andaria Viegas montado na suaégua baia por longos caminhos transformados em atoleiros, à procura dumabarraca perdida num ermo, onde um velho se debatia com a doença e com omedo da morte. Aquela hora, o padre Cristiano, numa carriola desconjuntada,encaminhava-se para um outro casinhoto imundo, levando consigo o viáticosalvador para a longa caminhada que alguém iria empreender até ao fim dosséculos.Maria Leonor levantou os olhos e fitou-os na parede fronteira. Uma estante alta eescura, de portas abertas, mostrava as prateleiras carregadas e dadivosas. Eramos seus livros, que tinham sido, antes, do pai, encadernados em cores sombrias epesadas; eram os livros do marido, mais claros, duma leveza que contrastavacom o tom quase negro do móvel. Livros de aparências tão diferentes como osdois homens a quem tinham pertencido.Um, inquieto, incompreensível à força de buscar compreensão, torturado dumaangústia íntima, tiranizante e absurda; o outro, prático, calmo, que traçara umcaminho na sua vida, um caminho claro, iluminado pelo sol dos campos e dascolheitas. Dois homens que tinham deixado de existir já, mas cujas concepçõesdiferentes da vida a faziam hesitar, numa procura constante de si própria,buscando qualquer coisa que lhe faltava e que sabia lhe daria a calma redentorade que precisava.Era a sua vida um oscilar perpétuo entre dois conceitos de existência diferentes.Solteira, vivera sob a influência acabrunhante do pai, sob a terrível impressão devácuo à sua volta, numa angustiosa convicção da inutilidade de qualquer esforço;casada, recebera a sugestão viva da existência determinada pela vontade e pelodesejo de andar em frente, sem perder tempo a lamentar ou glorificar o que jáestava feito.A sua passagem de rapariga a mulher dera-lhe a alegria louca e estonteadoraduma saída para o ar livre depois de longa permanência numa penumbra húmidae fúnebre. Vivera na contemplação da sua transformação física e psíquica, num

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embevecimento constante do mistério genésico. A gravidez fora para si ummotivo de espanto, como se nunca a mulher alguma tivesse sucedido coisaidêntica. E surpreendia-se a perguntar-se que méritos seriam os seus para queem si se reproduzisse a manifestação mais perfeita da vida. O crescimento dosfilhos fora vigiado ansiosamente, como se temesse uma sorte de mágica que oslevasse. E este esquecimento de tudo que não fossem as crianças quase a fizeraolvidar também do que a cercava. A morte do marido despertara-a brutalmentepara uma vida que já não era a sua e, tremente de medo, sentia que regressavaao passado cheio de terrores e de sombras, ao passado estéril e inútil que julgavamorto. E debatia-se, procurando onde agarrar-se, numa ansiedade de salvaçãoque a esgotava.De súbito, levantou-se da cadeira, impetuosamente, com os olhos alucinados,abertos como se quisessem fulminar o pensamento que lhe atravessara o cérebronum relampejar veloz.Saiu do escritório a correr, como se todos os fantasmas da terra a perseguissem,ferozes e atormentadores. Cá fora, parou, e, fazendo um gesto vago, sorriutristemente. Que pensamentos, Santo Deus, que pensamentos! Deveria chorar ourir? Era o maldito tempo que a desvairava. Sem poder sair de casa, vinha-lheagora à cabeça uma série de tolices impossíveis. O que faz a ociosidade, justoscéus! Terra daninha onde crescem os maus pensamentos, que são a fonte dasacções condenáveis. E, pensando isto, uma sombra apreensiva lhe perpassavapelo rosto, mudando-lhe o sorriso numa expressão de nojo que lhe transtornavaas feições.Sacudiu a cabeça num gesto violento e desceu rapidamente ao rés-do-chão.Atravessou as salas que precediam a cozinha. Quando entrou, aspirou deliciada ocheiro da lenha queimada no forno. Debaixo do alpendre, lá fora, ia cozer-se opão de milho para os trabalhadores. Joana, com uma vassoura de ervasmolhadas, varria o forno, puxando para o buraco as brasas miúdas que seintroduziam nas fendas dos tijolos. Júlia e Dionísio, ao pé do alguidar da massa,furtavam pequenos bocados que engoliam à socapa. Benedita e Teresa rapavamcom uma faca o tabuleiro que devia receber os pães já cozidos.Voltaram-se todos, surpreendidos, para Maria Leonor, estranhando vê-la ali. Ascrianças entreolharam-se, embaraçados. A mãe, com um sorriso que obrigava aser natural, exclamou:- Meninas, quem vai tender o pão, hoje, sou eu! Joana, dá-me a tigela!Arregaçou até aos cotovelos as mangas do vestido, descobrindo os braços alvos eredondos. Depois de ter polvilhado com farinha o fundo do recipiente, introduziua mão em concha na espessura da massa lêveda e tirou-lhe um pedaço grande.Meteu-o dentro outra vez, fê-lo saltar até lhe dar uma forma arredondada. Com

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os braços levemente flectidos, acompanhava a pancada do pão.Quando a massa adquiriu a forma desejada, rolou-a sobre a pá que Joanasustentava. O pão alastrou no ferro, abrindo bocas. Uns pós mais de farinha, e acriada, com um brusco movimento de vaivém, fez deslizar o pão sobre a pá atéescorregar para os tijolos quentes do forno.As mulheres debruçaram-se, curiosas. A massa alourava rapidamente e oscontornos das fendas escureciam como os bordos duma ferida aberta. Logo aseguir, outro pão foi introduzido no forno. E, até acabar, foi sempre Maria Leonorquem tendeu.O gelo entre ela e os filhos parecia desfazer-se, ali, ao calor da boca negra doforno. E eram eles que ajudavam quando era preciso segurar a pá para recebera massa. Por fim, também Dionísio quis substituir Joana. Cerrando os dentes,muito vermelho, para aguentar todo o peso do comprido cabo, conseguiu imitar omovimento da cozinheira. Havia já pouco espaço, porém, e o pão ficou achatadocontra a abóbada fumegando.Quando Joana, concluída a tarefa, tapou a entrada da fornalha com uma velhalata caiada, Maria Leonor agitou os cabelos que lhe caíam sobre a testa, desceuas mangas e, sorridente, exclamou:- Não podem dizer que não trabalho, não lhes parece? Olhem que o primeiro pãoque sair pertence-me. Quero comer dele, logo, ao jantar!Entrou na cozinha, contente, ao perceber atrás de si os filhos que a seguiam.Eram de novo seus.

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X E novamente o Inverno findou, deixando sobre os campos os sulcos lamacentosda sua passagem e, sob a lama avermelhada, as raízes embebidas de humidade.Um novo ciclo no crescimento das plantas reverdecidos ia iniciar-se com o surgirda Primavera. Da terra molhada saía, ofegante, o hálito bom do trabalho criadorda natureza. Pisando os torrões moles dos campos cultivados, sentia-se a energialatente da terra, num desdobrar infinito de forças ocultas e misteriosas, numchamamento mudo a todos os músculos humanos. As grossas patadas dos boisalargavam-se no chão num vinco severo e honesto, como determinaçõesraciocinadas de um cérebro vivo. E havia naquela sucessão de sinais, uns apósoutros, a inflexibilidade digna dos bons pensamentos.Rompiam da terra vermelha os rebentos verdes do trigo, numa profusão que sealastrava pelo campo, subindo e descendo leves colinas, num assalto contínuo,numa fome insaciável, que ia devorando aos poucos a cor berrante do chão. Asúltimas nuvens, já mais brancas que pardas, passavam no céu levadas por umvento fresco numa corrida constante para outras paragens. Por vezes, juntavam-se todas num ponto do espaço, formavam uma grande mancha acinzentada edeixavam cair na terra as últimas chuvas do Inverno. Era breve, porém. Umgolpe de vento mais forte e, como cabras-montesas ligeiras e irrequietas,espalhavam-se pelo céu, deixando entre si, mais e mais largo, até ao horizonte, oespaço por onde o Sol se despenhava, deslizando pelas cores molhadas do arco-íris.E o trigo verde ia crescendo. O Sol passou a nascer mais à esquerda de quem ovia sair do horizonte num pulo cor-de-rosa sanguíneo. Era como um balão cheio,largado subitamente de uns dedos misteriosos que se escondem por detrás dosúltimos cerros que viravam para o céu os lombos azulados, quase a desfazerem-se na distância.O chão foi perdendo a humidade e as patadas dos bois já não se vincavam adireito na lama; agora esparrinhavam para os lados um pó que ficava suspensono ar a poucos centímetros do solo e que caía de leve no caminho, sob o pesoescaldante do meio-dia.Foi quando, entre o trigo, começaram a surgir manchas de sangue, que sanguepareciam as grandes corolas das papoulas, que subiam, direitas, nas delgadashastes, com a sua cápsula solitária ao centro, grave e majestosa como se dirigissea harmonia dos trémulos movimentos das pétalas largas.O trigo amarelecia e, sobre o ouro derramado nos campos, cintilavam sempre ospingos de tinta vermelha das papoulas. Mas até mesmo estas perderam o viço e acor. E isso foi quando as curvas denteadas das foices começaram a cortar as

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hastes do trigo, num raspa-raspa contínuo de manhã à noite, desde que o Solborbulhava no horizonte até que se afundava atrás dos ceifeiros, atirando-lhessobre o trigo ainda não ceifado as suas esguias sombras deformadas.Quando as últimas paveias foram para a eira, morreram nas searas as últimaspapoulas que a foice tinha deixado vivas. As cápsulas secas estalaram num ruídoligeiro, espalhando em volta as sementes, que ninguém queria e que para nadaserviam. E, então, o caule das papoulas dobrava-se lentamente para a terra, maise mais ressequida e ardente, e morria entre o restolho duro, ainda agarrado aochão gretado e pulverulento.Era por esta época que Dionísio deixava de aparecer na quinta com a irmã. Asascensões deliciosas aos altos fardos do palheiro, com o alvoroçado incidente daperseguição a um rato esguio e espantadiço, as peças maravilhosas no barcodesconjuntado da beira do rio, as caçadas às borboletas por entre as couves dahorta e as laranjeiras do pomar eram substituídas pelas penosas horas de esforçosobre as páginas impassíveis e graves dos cadernos e dos livros escolares.Com os olhos semicerrados, Dionísio balbuciava, hesitante, voltando ao princípioconstantemente, os nomes dos cabos da costa de Portugal. O cabo da Roca era oseu Bojador: para baixo tudo era confusão e mistério e, quase sempre, indicava ode São Vicente quando devia enunciar o Espichel.Desforrava-se ao recitar os afluentes do Tejo, começando pela margem direitapara não se enganar. Sabia-os todos. Quando chegava a vez do rio que passavajunto da aldeia, pronunciava-lhe o nome numa voz clara e nítida, orgulhosa,como se lhe coubesse a honra de ser o primeiro a dizê-lo.Diante da irmã, que assistia às lições soletrando humilhada a sua pobre cartilha,começava a declamar as dinastias da História de Portugal e os nomes dos reis edava à voz um tom profundo e significativo para dizer os cognomes doConquistador, do Povoador, do Lavrador, do Magnânimo, até D. Manuel II. Aopronunciar o cognome de D. Afonso II, inchava as bochechas para provar aimensa gordura do rei; e a Batalha de Aljubarrota tinha na sua voz ressonânciasépicas: era a História o seu forte, a matéria em que mais brilhava.Este ano, porém, as dificuldades seriam maiores. Era o exame da quarta classe,era o presidente do júri a mirá-lo por detrás dos óculos, num fuzilar constante einquieto. Era para si o espectáculo a que assistia desde que ia à escola. Desta vez,cabia-lhe um papel de actor e, durante meia hora, havia de representá-lo emcima do estrado, daquele estrado tão alto de cuja borda escorregara, no anoanterior, o filho do boticário. E todo o seu terror era o escorregar também e ver aaula a rir, enquanto ele, no chão, sentiria o saber, penosamente acumulado eretido, fugir, espantado pela galhofa. Era este o seu medo.Para não pensar em tal, atirava-se à Gramática, à Geometria, à Aritmética,

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resmoneando no meio dos predicados e dos complementos directos, agitando-seentre largas folhas de papel cheias de quebrados e de decimais, sofrendointensamente para distinguir uma tangente duma secante. E quando nãoconseguia decorar todas aquelas frases que teria de repetir lá, no exame, punha-se a chorar, debruçado sobre os livros, enquanto a irmã o olhava entristecido,como perante um mal de que não soubesse a cura.Quando chegou o dia do exame, levantou-se muito cedo, ainda no quarto seespalhava uma penumbra suave cortada pelas delgadas lâminas luminosas queentravam pelas frinchas da janela. Em baixo, rente ao prédio, passava um chiarfino de carro de bois. E a voz do boieiro, falando aos animais, tinha um somconsolador, que enchia o quarto de ruídos lentos que esmoreciam.Com as pernas pendidas para fora da cama, a face apoiada nas palmas das mãosabertas como uma flor de que os dedos fossem as pétalas, Dionísio cismava,imóvel, numa concentração de espírito que lhe punha rugas na testa lisa. Sobre amesa-de-cabeceira repousava, embrulhado na sua encadernação escura, umvolume de Geometria Elementar. No chão, de lombada para o ar, com as capasabertas como as abas dum telhado, a Aritmética, a pavorosa e inútil Aritmética.E Dionísio pensava sempre, com os pés nus roçando o tapete. Começou abalançá-los, primeiro levemente, depois descrevendo um arco de círculo cadavez mais largo, até quase roçar o livro caído no sobrado. E de repente, numimpulso que lhe fez esticar os polegares dos pés, atirou um pontapé ao volume,que caiu mais à frente, aberto, voltando as páginas.Dionísio saltou para o chão e tentou abrir a janela. O fecho resistiu e cortou-o,abrindo-lhe um golpe profundo na mão direita. Lacrimejou enquanto procuravaum pano para estancar o sangue que lhe saltava da ferida, escorrendo pelosdedos, até ao chão. Começou a sentir-se vagamente assustado. Apertou o trapocom força e conseguiu impedir que o sangue corresse. Então, sentou-se numacadeira baixa, perto da janela, a chorar, muito infeliz e abandonado, naquelequarto enorme que era seu desde que findara o Inverno. Dormia ali sozinho, nasua cama, que, outrora, ficava sempre onde ficasse a da irmã. Ouvira dizer àmãe que era já tempo de ser um homem e que, portanto, deveria dormir semcompanhia, a fim de perder o medo aos papões escuros que se ocultavamdurante o dia nos desvãos da casa, para aparecerem à noite, envolvidos emgrandes capas negras, que arrastavam pelo chão, por cima dos móveis, subindoaos altos cabides, onde ficavam à espreita, a noite inteira. Mas ele nunca tiveramedo. Via-os, é verdade, aos tais papões, mas, apesar das carrancas ferozes quelhe faziam, sempre lhe restara coragem para animar a irmã, que se encolhiaamedrontada na cama, pondo a almofada diante dos olhos, tapando por fim acabeça com os lençóis.Havia, com certeza, outra razão para assim o afastarem da irmã. Como é que ela

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se haveria agora com os papões? É verdade que a Benedita mudara a cama parao quarto dela, mas não lhe parecia que a criada fosse boa companheira paraespantar papões.Suspirou, olhando para a mão envolvida no trapo branco, e desenrolou-o. Aferida tinha fechado, obrigada pela pressão feita, mas, quando a descobriu, umagotinha de sangue aflorou e deslizou rapidamente pelas costas da mão. Tornou aenrolar o trapo e saiu para o corredor deserto e silencioso. Colou o ouvido à portado quarto da irmã. De dentro não vinha qualquer ruído. Ia perguntar a si mesmoque horas seriam, quando o relógio da sala bateu, pausadamente, sete pancadas.Sete horas! Mas já devia estar toda a gente a pé! Como é que não ouvianinguém?!Dispunha-se a voltar para o quarto quando ouviu vozes, vindas do lado da escada.Era a mãe, acompanhada de Benedita. Correu para lá, com a mão escondidaatrás das costas. Benedita espantou-se de o ver levantado:- Viva! Como se levantou cedo, hem?!...Dionísio ergueu-se nas pontas dos pés para beijar a mãe e a criada. Nomovimento, deixou ver a mão ligada, com o pano já manchado de sangue.Inquieta, Maria Leonor perguntou, enquanto desfazia a atadura:- Mas o que foi isto, filho? Como te cortaste assim?Num nervosismo que o fazia engasgar, tartamudeando, Dionísio explicou odesastre: que puxara o fecho, mas que lhe escapara a mão e que fora de revéscontra um prego da janela. E fizera aquele golpe.Benedita foi buscar tintura de iodo e gaze e fez-lhe um curativo apressado,tremendo toda, dizendo que até a ferida podia infectar.Dionísio, sob o olhar da mãe, suportou o ardor do medicamento com valentia,mordendo os beiços para não gemer. As lágrimas assomavam-lhe, ferventes,mas ele cerrava os olhos apertando as pálpebras com força, enquanto Benedita iapassando a ligadura entre os dedos e por cima do golpe, jeitosamente, com umcarinho leve que o consolava.Quando a criada concluiu, mirou a mão. A dor já tinha passado e sentiu um certoprazer íntimo vendo a mancha branca da ligadura sobre a pele morena.Desceu com a mãe ao rés-do-chão, enquanto Benedita ia acordar a irmã. Nasala de jantar o pequeno-almoço estava na mesa.Maria Leonor instalou-se numa cadeira e chamou o filho para junto de si. Ele foie sentou-se-lhe ao lado, inclinando a cabeça para o regaço da mãe. Ali se deixouficar, sentindo as pálpebras cerrarem-se docemente, num descanso enorme,como se, daí a duas horas, não tivesse que enfrentar aqueles três homensbarbados, que lhe fariam perguntas aterrorizadoras. O tiquetaque do relógio

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soava-lhe aos ouvidos como uma melancólica cantiga de embalar, que o iaadormecendo. As mãos de Maria Leonor percorriam-lhe o cabelo num afagosuave, acalentador como um berço e morno como as asas duma pomba.Passos precipitados na escada despertaram-no daquele remanso. Júlia, com ocabelo molhado e descalça, irrompeu na sala, perseguida por Benedita, queempunhava um pente.Dionísio deixou o regaço da mãe para atender a irmã, que se lhe atirou aosbraços, quase o derrubando. Encheu-o de perguntas sobre o golpe, espantando-separa a ligadura manchada, querendo por força saber se doía, se lhe custaramuito, qual fora a janela...Benedita conseguiu por fim arranjá-la e sentaram-se todos à mesa. Comeramdepressa e sem vontade. Dionísio mastigava, resignadamente, o seu pão commanteiga, levantando, de vez em quando, os olhos para o relógio, que continuavao seu tiquetaque, empurrando os ponteiros com ligeiros arrancos vagarosos. Júliaabria para o irmão uns grandes olhos espantados, por vê-lo tão sério, com o narizcaído para a chávena de leite, que ficava em meio.Quando deixaram a mesa, viram Jerónimo, de barrete na mão, que curvava acabeça à entrada da sala, anunciando que a charrette estava pronta. Quando omenino quisesse...Dionísio subiu ao quarto com Benedita. Ia mudar de fato e pentear-se, que nemisso fizera. E buscar os livros...Quando desceu a escada, já Maria Leonor o esperava à porta. Júlia teimava quetambém queria ir ver o exame de Nísio! E chorava porque a mãe lhe dizia queficaria em casa...Subiram para a charrette. No limiar da porta, Benedita segurava Júlia, que batia opé, furiosa, gritando que havia de ir.Jerónimo içou-se para o seu lugar e perguntou:- Podemos ir, minha senhora?- Vamos... - suspirou Maria Leonor.O abegão agitou as rédeas sobre o dorso do cavalo e num solavanco lento acharrette partiu. Lá atrás, Júlia chorava, pedindo a Benedita que a largasse, portudo...Quase ao sair o portão, Dionísio voltou-se para trás e acenou. A irmãcorrespondeu, de longe, num adeus precipitado e ansioso, e logo se escondeu,soluçando, entre as saias da criada.A charrette seguia ao trote cadenciado do cavalo pela estrada branca demacadame, entre os campos ceifados, duma amarelidão de restolho, mais

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acentuada e viva sob a luz forte do Sol. No banco da frente, Jerónimo, com aborla do barrete caída para a testa, para proteger os olhos da luz, afagava asorelhas do cavalo com um chicote. A cada vergastada, o animal sacudia acabeça num guizalhar estridente e alargava o trote. De vez em quando, ao passarpor baixo dos plátanos, que se perfilavam à beira da estrada, relinchava, gozandoa sombra esgarçada, semeada de manchas luminosas. Sob o pêlo castanho, ojogo dos músculos ritmava o esforço da corrida. E a charrette, calçada deborracha, saltava ligeiramente e quase sem ruído sobre as pedras miúdas daestrada, num deslizar constante e infatigável, deixando para trás a distância.Batiam no relógio da torre os três quartos depois das oito, quando o carro entrouna povoação. O cavalo alçou a cabeça, levantou os joelhos como para martelar ochão e irrompeu na praça, ofegante, num alardear de energias, que fazia brilharde contentamento os olhos de Jerónimo. Só Dionísio não dava importância aomenear do cavalo. Absorto, ia ruminando os cabos da costa de Portugal...Maria Leonor mandou parar a charrette ao pé da tenda. Queria encomendaralgumas massas e saber se a semente do aipo já viera. O Joaquim Tendeiroacorreu pressuroso, esfregando as mãos num gesto de satisfação radiosa,sacudindo com a aba do guarda-pó uma cadeira, para Maria Leonor se sentar.Mas a freguesa tinha pressa. E, feita a encomenda, saiu e subiu para o carro,ajudada por Dionísio, que descera para estirar as pernas e afagar, enfim, oanimal. O Joaquim veio até à porta, todo mesuras, e ao ver o pequeno perguntou,abrindo os lábios num sorriso que rescendia adulação:- Então, o examezinho, não é verdade, menino Dionísio?Dionísio olhou-o de soslaio e respondeu, pouco polidamente:- É...E o outro continuou:- Assim é que se quer, assim é que se quer. Que esta terra precisa de grandeshomens e o menino Dionísio há-de ser...O resto da frase perdeu-se no estropear do cavalo, que arrancava sobre as pedrasredondas da praça. E quando Dionísio se voltou, o guarda-pó cinzento do tendeiroainda se agitava entre as ombreiras da porta, acenando respeitosos adeuses.Quando a charrette estacou diante da escola e Dionísio saltou com a mãe, fazia-se a chamada dos alunos para o exame. Abriram caminho para chegar àacanhada sala de espera, onde se aglomeravam, de envolta com as crianças, osparentes que as acompanhavam. No silêncio da sala, no meio daquela genteapinhada que cheirava a terra e a suor, ouvia-se a voz aflautada de um dosprofessores, um homenzinho baixo e magro, de enorme calva luzidia, que seempertigava nas pontas dos pés sempre que repetia os nomes que ia lendo numa

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grande folha de papel almaço, toda rabiscado.- Bento Simões!E depois, mais alto, empertigando-se:- Bento Simões!!- Pronto!Um garoto moreno, de grandes cabelos negros pendentes para a testa, esgueirou-se entre os circunstantes e entrou na sala dos exames.- Carlos Pinto!Era um dos rapazes da família dos barqueiros. O pai, um homem grande e forte,de grossa camisola de lã, com a pele escura e gretada sob a barba rija, baixou-serapidamente e despediu-se do filho com um beijo. E o rapaz entrou também.O professor continuava:- Catarino!Era um enjeitado. Não tinha outro nome além daquele. Trabalhava em casa doFaustino barbeiro, que o recolhera por caridade, e com o salário das barbas iaestudar à escola.Depois o professor elevou a voz, num esforço que lhe fez enrubescer a calva lisa,e chamou, ao mesmo tempo que sorria deferentemente:- Dionísio de Melo Ribeiro!Houve um sussurro na sala. E Dionísio, sentindo as faces em fogo e as pernas atremer como os vimes do rio, despediu-se da mãe, que sorria, nervosa. E lá foi...Mais uns rapazes foram chamados. E depois de toda a gente ter entrado paraocupar os lugares vagos, começou o exame. Numa sucessão lenta forampassando pelo estrado, perante os óculos do senhor inspector, todos os rapazinhosdas primeiras filas. Apertados nas suas roupas novas, guardadas para aquelemomento, balbuciando respostas entrecortadas pela necessidade constante deengolir a saliva, mostrando os tímidos rostos aos senhores do júri, os rapazinhosbisonhos foram, lentamente, deixando ali a prova do que conhe-ciam do mundo eda vida, eles que nunca tinham saído do estreito horizonte da terra acanhada epobre. Todos sabiam muito do que custa o pão antes de ser comido, todosconheciam o calor do Sol e o frio da geada, mas nenhum deles fazia uma ideianítida do sentido das frases que dizia, procurando reconstituir as palavras docompêndio tão aborrecido e, a essa hora, tão desejado.Em certa altura, entraram na sala o doutor Viegas e o padre Cristiano, e logo doisaldeões, sentados junto de Maria Leonor, se levantaram compreen-sivamente,para lhes darem lugar. O médico e o padre recusaram. E os homens sentaram-se, de novo, pouco à vontade.

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Dionísio, quando viu entrar os seus dois amigos, sentiu-se apavorado. Como podiaele, agora, fazer boa figura, tendo ali, quase ao seu alcance, a mãe, o padrinho, omédico, toda aquela gente que o estimava, mas cuja presença era, naqueleinfeliz momento, um suplício?Olhou timidamente para trás e viu todos os rostos atentos para o enjeita-do, queestava no estrado, e sentiu um terror imenso ao pensar que o olhariam tambémassim, daí a pouco. Desviou a vista e fixou a mãe. Maria Leonor sorriu-lhe, e ele,perante o seu ar calmo e confiante, sentiu-se repentinamente seguro econfortado. E quando o Catarino acabou, com o sacramental “pode sentar-se”,quase não lhe buliu o coração. Sabia que era a sua vez agora, que nada podiaevitar que fosse a sua vez.Quando o seu nome soou na sala, com um ruído que lhe pareceu igual ao dodesabar de um tecto, levantou-se e caminhou para o estrado. No curto trajecto iarelembrando os cabos da costa de Portugal. E, de repente, suspendeu-se,aterrorizado. Faltava-lhe um. Lembrava-se perfeitamente de que eram onze eagora não conseguia contar senão dez.Respondeu correctamente às primeiras perguntas que lhe fizeram. Depois, poucoa pouco, sentiu a confiança voltar. E foi brilhante. Apenas se mantinha o pontonegro do seu esquecimento e, no intervalo das respostas, punha-se a relembrarvelozmente os malditos cabos: começava do Norte para o Sul e do Sul para oNorte, mas o resultado era sempre o mesmo: faltava-lhe um. Debatia-se comeste tremendo problema, quando o presidente do júri, satisfeito, o mandou sentar.Na sua profunda alegria quase não ouviu: deixou-se ficar a olhar o professor,prestes a agradecer-lhe não lhe ter perguntado os cabos. Foi preciso que lhedissessem que podia sentar-se. Voltou para o banco a tremer de alegria e, quandoolhou para a mãe, viu-a acenar-lhe docemente. Sentou-se, de olhos cheios delágrimas, muito corado, mal se atrevendo a olhar à sua volta.O resto foi depressa, mas a Dionisio a espera pareceu de séculos. Quandoacabou, enfim, saíram todos para o pátio, onde, em tempo de aulas, os rapazessaltavam o eixo e jogavam o “homem”. Lá dentro, o júri resolvia.Dionísio, junto da mãe, que o acariciava, tagarelava com ela e com o médico e opadre. Estava exaltado, febril. Brilhavam-lhe os olhos numa animação imensa,numa exuberância impetuosa. A mãe e os dois homens deixavam-no falar,sorridentes, vagamente comovidos.Quase ao lado deles, o Pinto barqueiro, pai, de braços cruzados sobre o peitolargo e valente, ouvia o filho, com gravidade, tirando largas fumaças do seucigarro de onça. Trazia as calças arregaçadas até aos joelhos, mostrando ascanelas lisas e morenas. Com os pés descalços traçava na poeira do chão,nervosamente, largos sulcos.

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A um canto do pátio, o enjeitado remexia nos bolsos, inquieto. E todos os garotospasseavam de um lado para o outro, de nariz no ar, farejando os ruídos quevinham da escola. Duas mulheres discutiam os méritos dos respectivos filhos, quejogavam encarniçadamente o pião. De súbito, todas as conversas cessaram.Abrira-se a porta e, na abertura, assomava o professor calvo. Tinha um sorrisosatisfeito quando anunciou os resultados. Fora um dia feliz, aquele: todosaprovados. Três ou quatro distinções, uma delas para Dionísio.Quando o professor acabou de ler, toda a gente rebentou em risos ecumprimentos. As mães beijaram os filhos, chorosas, agora que o grande perigopassara. Os pais deram um cachação amigável nos garotos, que se encolhiamsob a carícia um pouco pesada. E todos saíram para a rua, falando alto e rindo.Os rapazes caminhavam à frente, radiosos, os peitos levantados, um ar deimportância precoce no gingar dos ombros, e uma irreprimível vontade de pularfuriosamente e de gritar de gozo.Dionísio, quando ouviu a sua distinção, agarrou-se à mãe a chorar e a rir, com amesma alegria dos seus companheiros pescadores e aldeões. O médico e o padresorriam. E foram cumprimentar o professor, que ainda se detinha entre asombreiras da porta, olhando, risonho, o desfazer do grupo, com o seu papel dosresultados.Maria Leonor apertou-lhe a mão:- Agradeço-lhe, senhor professor, a sua bondade e o que ensinou ao meu filho...Corando, o professor respondeu:- Oh, minha senhora, por quem é!... Eu não fiz mais que o meu dever e o meninoDionísio foi sempre bom aluno. Mas hoje estou, realmente, conten-tíssimo!Imagine, minha senhora, que o senhor inspector me deu os parabéns pelocomportamento dos rapazes!... Estou radiante...Despediram-se, deixando o excelente homem encostado à porta a atender oCatarino enjeitado, que também lhe queria agradecer. E o padre observoudepois:- Não desencareço as tuas palavras, Maria Leonor mas creio que nenhunsagradecimentos serão hoje mais gratos ao mestre que os do Catarino - e olhandopara o médico: - Isto, se ainda resta, aos homens do meu tempo, aquelapequenina parcela de sentimento que faz a vida doce...O médico sorriu:- Não será difícil encontrar num professor primário essa parcela de sentimento.Eles vivem entre crianças e acabam sempre por ter, também, qualquer coisa deinfantil. O pior para a humanidade é que nem todos os homens são professoresprimários... De resto, se assim fosse, não haveria ninguém que quisesse aprender.

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Chegavam junto da charrette. E lá do alto do seu banco, já o abegão sedebruçava, ansioso:- Então, minha senhora, o menino?!...E Maria Leonor, num sorriso:- O menino ficou distinto, Jerónimo. Sabe o que quer dizer?O abegão fez um trejeito de suficiência e respondeu, enquanto tirava de debaixodo focinho do cavalo a alcofa da palha:- Sei, com certeza. Ficou bem, não é? Foi Dionísio quem lhe respondeu, seguindo-o em volta do animal. Entretanto,Maria Leonor despedia-se:- Bem, então, espero-os à noite. Depois do jantar, já que não podem antes...Içou-se para a charrette, apoiada ao ombro do filho. Depois de todos sentados,Jerónimo floreou o chicote sobre os flancos do solípede, que largou num trotetriunfal. Dionísio, ao lado da mãe, cantava. A frente, o abegão, assobiandofinamente, incitava o cavalo, que galgava a estrada no bater claro das patasjogadas à frente, briosamente.Entraram, assim, na quinta, seguidos pelo ladrar de dois cães. Abriram-se janelasna casa. Benedita apareceu a uma delas, com Júlia. Os de baixo acenaram eJúlia, deixando a janela, precipitou-se pela escada, atirando-se aos braços doirmão. Ela “sabia” que ele ficara bem. Não podia ser de outro modo...Os criados acorreram, também. E todos festejaram o menino quando souberam.Dionísio entrou em casa, aclamado, como um pequeno rei. Benedita beijou-ochorando, e ele, caindo em si, ficou a olhar para a criada, num pasmo mudo eagradecido. Sentia-se diferente e importante e, olhando em volta, viu a casa e oscriados com outros olhos, com os olhos de quem tem o poder do Conhecimento eda Ciência.

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XI A noite, depois do jantar, chegaram o médico e o padre. E após novos parabéns efelicitações, entraram na sala. Sentaram-se em volta da grande mesa de mognopolido, onde floria um ramo de garridas dálias vermelhas. Numa das paredeshavia um retrato de Manuel Ribeiro. E nenhum dos presentes pôde evitar umrápido olhar para ele. O médico, com as mãos apoiadas no castão da bengala,demorou o olhar pensativo, e o padre moveu lentamente os lábios como se fossefalar. Ambos se calaram, porém. E foi Maria Leonor quem iniciou a conversa.- Sabem qual foi a primeira coisa que o Dionísio fez quando chegou a casa?- Que foi? - quiseram saber, interessados.- Subiu a escada a correr, como um doido, e meteu-se no quarto. Palavra que meassustei quando o ouvi gritar lá em cima, daí a um bocado: “São Vicente, SãoVicente!” Dionísio riu. E o padre perguntou, curiosamente:- Mas o que era?- Contou-me depois que no exame se esquecera de um dos cabos da costa dePortugal e que, por mais esforços que fizesse, não se recordava do nome. Logoque chegou foi ver na Geografia qual ele era. Era o de São Vicente...O médico riu, prazenteiro. E a conversa continuou, mais ligeira. O padre quissaber com um “E agora?” o que faria o Dionísio. Foi Maria Leonor quemrespondeu:- Em primeiro lugar, naturalmente, irá para o liceu. Depois, que escolha acarreira que desejar. Tudo se há-de fazer. Só não sei ainda para casa de quemhei-de mandá-lo - voltou-se para o médico: - Falando francamente, doutor, tinhapensado em seu irmão Carlos. Gostaria que o doutor se interessasse, se nãohouver qualquer inconveniente, claro!...Viegas franziu, levemente, as sobrancelhas e respondeu, catarroso:- Hum... Não me parece que haja qualquer inconveniente. E se o Dionísio forpara Lisboa, não encontrará melhor casa, com certeza. De resto, terá umcompanheiro pouco mais velho que ele e que o ajudará: o meu sobrinho João...Maria Leonor ia agradecer, mas o médico continuou, apressadamente:- No entanto, quero advertir-te de uma coisa em que parece não teres pensado. Amudança de ambiente fará talvez sofrer Dionísio. Isto seria o menos importante,mas a verdade é que ele vai para uma casa onde se usam métodos de educaçãomuito diferentes dos teus. Somos muito parecidos, eu e meu irmão. Ninguém lheirá exigir que dê graças a Deus pelo pão que comer. Pelo contrário: se o fizer,

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lembrar-lhe-ão, certamente, aqueles que as não podem dar, porque nãocomeram. Vê, portanto, onde te vais meter!...O padre Cristiano sorria docemente ouvindo o médico e, fitando o rosto sonolentode Dionísio, que cabeceava, alheio aos graves problemas que zumbiam sobre asua cabeça, observou:- Ai, doutor, doutor, essa preocupação mata-o. Que abismos está já abrindo àfrente do nosso Dionísio. A Maria Leonor resolverá, mas, quanto a mim, creionão haver perigo. Seu irmão Carlos não tem o direito de impor as suas ideias aum pensionista. Bem vê, eu não o conheço, mas não faço tão mau juízo dele...Pois não lhe parece?O médico teve um gesto de mau humor e pareceu ir dar uma longa resposta.Maria Leonor preparava-se já para intervir, mas ele apenas respondeu:- Sim, parece-me... deve ter razão!...Maria Leonor interrompeu o silêncio que se fez após as últimas palavras deViegas, dizendo:- De qualquer modo, o doutor faça-me o favor de saber, junto do seu irmão, como que posso contar. Veremos a seguir a parte material do caso... E quanto aoperigo que o meu filho possa correr em matéria religiosa, confio. Não receiocorrer o risco - mudando de tom, continuou: - E agora, expulso-os. Vai dar meia-noite e não quero abusar da vossa paciência e da vossa amizade!Levantaram-se com um arrastar de cadeiras e caminharam para a porta.Benedita, que acorrera da cozinha à chamada de Maria Leonor, alumiava. Eenquanto as crianças se deixavam ficar na sala encostadas à mesa, jáadormecidas, e o padre ficava para trás, preso pelo reumatismo, Viegas abeirou-se de Maria Leonor e murmurou:- Não sei que diacho de escrúpulos são estes, mas peço-te que te lembres que oDionísio crescerá, que os livros e a vida hão-de dar-lhe perspectivas diferentesdas actuais e que as suas crenças infantis sofrerão rudes abalos. E ele nãoresistirá, por certo...Maria Leonor ouviu, calada, e respondeu, também em voz baixa:- Olhe, doutor, quer que lhe fale francamente? Nem eu sei se desejaria que eleresistisse. A única coisa que sei é que nada sei! Recorda-se de quem disse isto?O médico, que abrira os olhos espantados às primeiras palavras, sorriu depois erespondeu:- Vá lá uma referenciazinha clássica!... Pois claro que me lembro, foi ovelhíssimo Sócrates. E desde então não avançámos um passo sequer. Adeus,Maria Leonor!... - e voltando-se para o padre: - Vamos, meu amigo, meusemeador de ilusões?

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O padre riu-se, mansamente:- Vamos lá, senhor ceifeiro das ilusões que eu semeio!...Saíram sorridentes, questionando. E partiram.Enquanto Benedita colocava na porta a pesada tranca de ferro, Maria Leonorsubiu, devagar, ao andar superior, levando consigo um castiçal de três velas queespalhava uma claridade morta em redor e lhe cavava grandes sombras no rosto.Ao passar diante do espelho, não pôde reprimir um movimento de susto ao verreflectida, no cristal, a sua face pálida, destacando-se como um borrão branco donegrume dos fatos e do aposento. Benedita subiu atrás dela com as crianças, quedormiam já, no colo. A mãe beijou-as.Entrou no escritório. Pousou o castiçal sobre a secretária, imobilizando assombras que se agitavam nas paredes e no tecto. Sentou-se numa cadeira de altoespaldar e reclinou-se. A cabeça descaída para trás repuxava-lhe os músculos dopescoço e dava-lhe à fisionomia um aspecto duro, fatigado, envelhecido. Oscabelos desciam-lhe ao lado das faces numa moldura doirada e brilhante, quecontrastava ainda mais com o rosto. Um suspiro lento, doloroso, lhe levantou opeito.Ergueu-se da cadeira e acercou-se da secretária. Numa pequena cesta de vimeestava o correio do dia. Com a animação que se apossara de si desde manhã nemse lembrara de o ler. Remexeu distraída num jornal, abriu dois sobrescritosdonde tirou algumas facturas que meteu numa gaveta e agarrou depois numacarta estreita e comprida, a única que restava. Procurou-lhe o carimbo: Porto.Abriu-a lentamente e começou a ler. Era do cunhado: “Leonor: Parto para aí no fim da semana. Vou com demora e é mesmo naturalque passe em tua casa todo o tempo que tirei aos meus deveres para gozar umasférias. Começo a aborrecer o Porto e ando a pensar em fixar-me. Os clientesnão abundam e o meu talento de curar também não é famoso. Hesito, no entanto,em tornar-me um médico de aldeia, como o nosso Viegas, e estou convencido deque me falta a sua persistência de apóstolo barbudo. Trago o moral bastantedeprimido.Espero que estas férias me restabeleçam, a mim, já que não consigorestabelecer os meus doentes.Adeus, até breve. Beija, por mim, os pequenos. Um abraço afectuoso. António.” Maria Leonor pôs a carta de lado com um vago sorriso e, agarrando de novo ocastiçal, saiu para o corredor a caminho do seu quarto.Durante uma boa parte da noite diligenciou dormir, sem o lograr. Caía sobre a

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casa uma atmosfera morna e entorpecente como a respiração das telhasrechinadas pelo calor do dia. Abrira as janelas de par em par, sôfrega de umaaragem de frescura que a madrugada trouxesse, mas por elas apenas entrava obafo cansado dos campos seco s. Da cama, via os traços esverdeados dospirilampos que sulcavam o escuro e, de vez em quando, o esvoaçar silencioso emacio dos morcegos, que passavam rentes às janelas. E por mais de uma vez oseu coração bateu, assustado, quando, lá fora, soava o pio curto e gargalhado dascorujas.Os ruídos nocturnos do campo tinham o condão de acordar no seu íntimo todos osterrores da infância. Contra os raciocínios da sua mente de mulher esclarecida,levantavam-se os pávidos medos nascidos do mistério da natureza imensa,mergulhada nas trevas, encobrindo na sua profundidade ignorada as forçasinconscientes e irreprimíveis da criação. Por vezes, caminhando à noite nocampo, parecia-lhe sentir debaixo dos pés o arfar convulsivo da terra. O ventoque passava sobre as ramagens, rasgando-se contra os espinhos e roçando-se nasmaciezas da erva, era o ofegar cansado do parturejo contínuo do solo. No seupasmo mudo diante do trabalho cego da natureza havia o medo do desconhecido,o terror absurdo e total dos primeiros homens perante a primeira trovoada e oprimeiro abalo de terra. E a sua alma comprimia-se, apavorada, subjugado einerme, quando via descer do céu num voo rápido as asas negras dum noitibósolitário.Com os olhos fixos na abertura das janelas, varando a escuridão, analisava, omais friamente que lhe era possível, os medos que sentia e o seu imenso absurdo.Quando um som ou uma imagem exterior lhe iam acender no cérebro umpensamento, donde logo surgia o encadear do susto, prendia-o ferreamente e só olargava quando, pela força da sua especulação, o deixava vazio e semsignificado.Flutuava já, por fim entre o último pensamento e o sono. Quase a cerrar aspálpebras cansadas e a velar o entendimento que bruxuleava perto dainconsciência, quando o ranger tímido duma porta a fez sentar na cama,vigilante. Apurou o ouvido. O som continuava por intervalos, suspendendo-separa logo persistir, mais fino e atrevido. Ao mesmo tempo, da alameda, veio oestalar da areia pisada por passos cautelosos. O ranger da porta cessou de súbitoe, no silêncio que se fez, Maria Leonor ouviu distintamente o tinir surdo da tranca.Saltou da cama quase a gritar.Lá fora a areia já não estalava, mas Maria Leonor tinha a certeza de que juntoda porta estava alguém para entrar, alguém a quem uma pessoa de dentrofacultava a entrada. E dominando os nervos, premindo os lábios com as palmasdas mãos crispadas, foi, alta e branca na sua longa camisa, por entre a escuridãodo quarto, até à janela.

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Debruçou-se. Encostado a um dos pilares do alpendre estava um homem. Tinhao rosto voltado para a porta, mergulhado na sombra, e, sobre a camisa brancaque vestia, a Lua nascente punha claridades lívidas.Com um rangido grave e decidido a porta abriu-se.E quando Maria Leonor, trémula de susto, esperava ver o homem precipitar-seavidamente no interior da casa, viu-o abrir os braços para alguém que saía, umamulher.Maria Leonor abafou a exclamação que lhe ia Pular dos lábios e quedou-seestupefacta a olhar os dois, abraçados e imóveis. Mas logo se moveram, rápidos,e atravessaram a alameda, perdendo-se, por momentos, entre as sombras dasacácias, aparecendo adiante, no espaço limpo e inundado de luar, que seprolongava até ao palheiro. Desapareceram no boqueirão largo da porta.De novo o silêncio amortalhou a casa. E as estrelas brilharam no céu, do lado doocidente, como a mirar-se no espelho que surgia por detrás dos montes do outroponto cardeal. A pouco e pouco, os ruídos do campo voltavam na mesmacadência e com o mesmo mistério. Havia um latejar voluptuoso, uma doçuracálida, que perpassavam envoltos nas aragens quentes da noite. E tudo, ruídos earagens, parecia vir da Lua enorme, que ia subindo devagar, num esforçoenorme, que a empalidecia cada vez mais.Um pirilampo entrou pela janela e foi quase enredar-se nos cabelos de MariaLeonor. Pairou no quarto, subindo e descendo, no tremeluzir ansioso do abdómen,e tornou a sair para o ar livre. Maria Leonor nem nele reparou sequer. Com osolhos fitos no palheiro, por nada deste mundo deixaria de olhar para lá. O casarãotinha um aspecto calmo e inexpressivo, como se encerrasse dentro das paredesgrossas apenas os restos das colheitas do pão. Mas ela sabia o que se estavapassando lá dentro e sentia-o em todo o seu corpo, que vibrava retesado contra opeitoril, num tremor irreprimível. Todo o sangue lhe afluía ao cérebro emturbilhão. Cuidava desfalecer, com as pernas moles e fracas, como rodilhas,prestes a cair de joelhos, sufocada. A razão gritava-lhe que saísse dali, descesse aescada e fosse trancar a porta, recusando a entrada à impura que lheemporcalhava o lar, mas os sentidos amarravam-na à janela, retinham-lhe osolhos nas paredes brancas do palheiro e torturavam-lhe os nervos, tentando,numa febre doida, ver, descobrir o que se estava passando lá!E ficou assim, rente à janela, torturada duma revolta surda, até que de novo, osdois surgiram, olhando em volta, receosos, sob o arco da porta do palheiro. Eramduas manchas vivas, claras, movendo-se sobre o fundo escuro do portal. E derepente as duas manchas fundiram-se numa só. Abraçavam-se. Maria Leonordeu um gemido fraco, soluçante, e enclavinhou as mãos furiosamente até à dor.Recuou ao ver que regressavam. Atravessaram de mãos dadas o terreiro

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enluarado e de novo se detiveram, apertados um contra o outro, na sombra dasacácias. Depois, lentamente, sedentos ainda, separaram-se, deixando cair aolongo do corpo as mãos presas, palmas com palmas, despregando os lábios noúltimo beijo. Ele partiu abrigado no escuro, por detrás dos troncos rugosos quemontavam guarda a proteger a fuga, e ela ficou, figurinha clara e cintilante,ansiosa, até o ver desaparecer na noite. Depois, devagar, hesitando a cadapassada, com os pés chumbados num desfalecimento dorido, voltou para casa.Quase ao entrar, ergueu o rosto para as janelas numa precaução inconsciente.Nesse momento, Maria Leonor viu-lhe a cara. Era Teresa.Recuou para o leito, atordoada, num pasmo que a não deixava pensar. Tornou aouvir, como num pesadelo, o deslizar da tranca sobre os suportes, o ranger daporta e, depois, o silêncio. E, absurdamente, atirou-se para os lençóis, a dormirum sono pesado e longo, como o duma fêmea saciada e exausta.Noite alta, acordou sobressaltada, com o coração a pulsar numa agonia horrível.Tivera um sonho abominável, e agora, desperta, com os olhos esgazeados para orectângulo claro da janela, torcia-se na cama, com os dedos enterrados nosflancos, comprimindo-os brutalmente. Sentia-se enlouquecer. O aroma acre danoite entrava em ondas perfumadas pela janela e inundavas numa carícia lenta einsidiosa, como os afagos duns dedos macios e fortes. Passavam-lhe no cérebropensamentos que a faziam enlanguescer e lhe levavam aos lábios gemidos doces,palavras inarticuladas, balbuciadas por entre as lágrimas que lhe corriam esecavam nas faces ardentes.E no silêncio da casa pensativa, alheia ao seu martírio, Maria Leonor levantoupara o tecto os punhos cerrados, num desejo de morrer naquela agoniavoluptuosa, entorpecido pelos perfumes da noite, numa ânsia de dissolver o corpoe o espírito no vinho quente e embriagador que lhe corria nas veias.

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XII Foi, realmente, no fim da semana, no sábado, que chegou António Ribeiro. Era àtarde, cerca da noite, quando o céu se arroxeava devagar, passando do laranjaviolento do poente para o violeta desmaiado do anoitecer. A carroça que forabuscar António Ribeiro estacou à porta, na beira da valeta. E quando ele saltouagilmente do assento onde viera conversando com Jerónimo, Maria Leonor veiorecebê-lo no limiar, desejando-lhe as boas-vindas num leve abraço.Enquanto o abegão, auxiliado por dois criados, descarregava as grandes malas decoiro que enchiam o bojo da carroça, António, ao lado da cunhada, entrava emcasa. No meio da sala de entrada aprumou o busto e deitou um olhar em redorcomo que procurando alguém. Os olhos embaciaram-se-lhe numa comoçãointensa, mas logo sorriu vendo em frente, numa formatura algo desalinhada, opessoal da casa. Benedita, numa ponta da fila, olhava-o duramente, quasemalévola, com um brilho irónico nas pupilas. Do outro lado, Teresa fitava, porcima dos ombros de António Ribeiro, o labor dos homens que rebocavam,ofegantes, as malas para dentro de casa. E havia no seu olhar negro uma ternuralíquida e embevecida que lhe inundava o rosto de felicidade.O cerimonial da recepção foi interrompido, de repente, pelo deslizar de Dionísiopelo corrimão abaixo, desde o andar de cima. Júlia, ao lado dele, descia a escadanuma corrida, tentando dirimir definitivamente um velho pleito: era mais rápidodescer pela escada, pelos processos naturais e prosaicos de quem se serve dosdegraus, ou recorrer à superfície escorregadia do corrimão, com prejuízo,embora, dos calções e da integridade da parte do corpo que os mesmos calçõesprotegiam?Ainda desta vez nada ficou resolvido: caíram os dois ao fundo da escada e forambeijar o tio.A formatura dos criados desmanchou-se e cada qual foi à sua vida. ApenasTeresa se aproximou da porta, tentando auxiliar a entrada dum saco de lona quetranspunha o limiar aos ombros de um dos criados. A mão que levou a uma daspegas do saco ao ajudar, demorou-se, tardia e acariciadora, sobre a mão forte emorena do homem. E ficaram ambos, por segundos, com os olhos presos e asmãos unidas, num abraço de almas sólido e perfeito.Ao lado do cunhado, enquanto subia a escada, Maria Leonor voltou a cabeçapara a porta, onde as silhuetas de Teresa e do namorado se salientavam a negrono fundo violeta do céu. Pareceu-lhe ver os lábios dele moverem-se, marcando,talvez, um encontro no palheiro, onde ela fora no dia seguinte ao da suadescoberta da ligação da criada, levada por uma curiosidade mórbida a procuraro sítio, as palhas amorosas que tinham aquecido os dois corpos moços e ardentes.

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Tornou a olhar em frente, para responder às perguntas do cunhado, que queriasaber da saúde dela e dos garotos. Respondeu quase distraída que estavam todosbem, como via.- E o nosso padre Cristiano, como passa do seu reumatismo? E o doutor Viegas,meu irmão em Esculápio.Que estavam bem, um e outro, o padre Cristiano mais aliviado com os calores doVerão e o doutor Viegas muito atarefado com as sezões que grassavam nosarrozais do rio e que chegavam até Miranda. E Maria Leonor, numa ideia súbita,lembrou:- Ó António, já que vieste, parece-me que deves ajudar o doutor Viegas... Pelomenos, enquanto as sezões andarem tão malignas...António franziu as sobrancelhas, contrariado, e respondeu:- Ó menina, mas eu não venho para curar, nem para exercer medicina. Venhopara descansar, compreendes?Com um sorriso, Maria Leonor redarguiu:- Compreendo perfeitamente! ... Deixaste muitos doentes no Porto?...António teve um riso alegre, alto e casquinado, que soou estranhamente na casa:- Oh, não, Maria Leonor! Os meus doentes, por mais graves que estejam,sempre têm forças para fugir de mim... - e depois, mais sisudo: - Compreende,Maria Leonor. Eu sou médico como poderia ser loj ista, caixeiro-viajante ousaltimbanco. Não foi por meu gosto que me sentei nos bancos da faculdade, nempor prazer que decorei os duzentos e tantos ossos do corpo humano. Foi o pai quequis um médico na família, já que o Manuel, que Deus haja, estava fadado paralavrador. E louvo os deuses por não se ter lembrado de me fazer padre!... OManuel ficou com a quinta, eu com o meu canudo de lata e as acções daCompanhia das Aguas. Ele trabalhou até impor o nome dos Ribeiros à estima dopovo, até à satisfação de sentir-se qualquer coisa de positivo na vida; eu tratei deexplorar o meu curso, matando o menos possível, porque não quero remorsos naconsciência, e ganhando o mais possível, porque preciso de comer.Compreendes? É por isso que penso que não serei de grande ajuda para o nossoViegas. Falta-me a chama, eu reconheço-o bem... Em todo o caso, umassezõezitas sempre se poderão curar...Maria Leonor, que suspirara ao ouvir falar no marido, respondeu, sorrindo commelancolia:- És duma franqueza infantil! Essas coisas não se dizem, assim, tão naturalmente,nem mesmo quando se sentem...- Ora, ora! Preferias talvez que arranjasse uns ares doutorais para te fazer umdiscurso sobre humanitarismo e vocações erradas?

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Chegavam ao fundo do corredor. E aí, Maria Leonor, abrindo uma porta, disse:- Bom, falaremos nisso com mais vagar, depois. Por agora, aqui tens o teu quartode rapaz, pronto desde a tua carta. Eu desço. Espero-te para jantar...Voltou as costas e foi pelo corredor fora, enquanto António a seguia com umolhar distraído. Ao dobrar a esquina para a escada, Maria Leonor olhou para tráse sentiu-se corar ao ver o cunhado, ainda fora da porta, a fitá-la. Desceu asescadas, rápida, chamando pela Benedita, apressando o jantar, quase feliz.

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XIII Na manhã seguinte, António acordou ao cantar dos galos na quinta. Pela janelaque deixara entreaberta, segundo um preceito higiénico que sempre observava,entrava uma tira de sol, que se estendia no soalho até aos pés da cama. Esfregouos olhos, estremunhado com a intensidade da luz, e espreitou pela fenda,inclinando-se na beira do colchão. Apenas lobrigava um rectângulo azul do céu,onde surgia o contorno branco e suave duma nuvem, muito alta e leve, quasetransparente, que passava devagar, boiando.A beleza daquela nuvenzinha fê-lo sorrir, deliciado. Dilatou as narinas nasofreguidão do ar fino e fresco e logo pulou da cama, divertido, trauteando umacantiga. Tirou do estojo a navalha e, depois de encher a cara de espuma desabão, começou a barbear-se, assobiando. De vez em quando, deitava um olharpara fora e sorria, satisfeito, desfrutando o verde-amarelado das acácias e astelhas encarnadas do palheiro. Mais longe, em segundo plano, era o pomar, comas pequenas laranjeiras e os pessegueiros esgalgados. Depois dos limoeiros,estendia-se a perder de vista a terra de semeadura, onde, agora, apenas orestolho aparecia. Lá ao fundo, os montes severos onde o mato dominava e oscoelhos pululavam. A ideia das caçadas futuras, António assobiou com maisforça.A barba estava quase pronta. Depois da última raspagem, a escanhoar, lavou acara, regaladamente, na frescura da água da bacia. Enquanto se enxugava, iarelembrando o jantar da noite anterior. Ocupara a cabeceira da mesa,naturalmente. Maria Leonor ficara à direita e Dionísio e Júlia à esquerda. Emtoda a refeição soubera mantê-los alegres, presos das suas facécias e da suapalavra fácil e amável. Duas historietas que contara, quase tinham feito estalarde riso os sobrinhos que, em toda a noite, não o largaram, querendo por forçabrincar com ele, divertidíssimos e bulhentos. Depois, mais tarde, quando osgarotos se foram deitar, cansados da brincadeira, ficara sozinho com a cunhada,conversando, enquanto tomavam café. As três janelas que deitavam para aalameda estavam abertas e, lá fora, passavam, num rumor indistinto de vozes erisos, os camponeses que depois da ceia, voltavam para Miranda. Todo o serão opassara assim, recordando peripécias da infância, brinquedos de que fora, com oirmão, o protagonista heróico, enquanto Maria Leonor o escutava silenciosa ecomovida. Dera já meia-noite há muito quando subiu ao quarto.Curvado diante do espelho, ia pensando tudo isto, ao mesmo tempo que esfregavavigorosamente os braços molhados até às axilas, quando, de súbito, se suspendeu,imobilizando nos lábios o sorriso que os animava. Fez um gesto de contrariedadee murmurou entre os dentes:

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- Idiota! Que disparates que se pensam!...Veio até à janela, com a toalha pelos ombros. E com as mãos apoiadas noparapeito, lançou à volta, por sobre a quinta e as árvores, até ao horizonte, umolhar apreciador e contemplativo. Demorou-se uns instantes a ver duasandorinhas que traçavam no ar, com os seus corpinhos negros e alvadios, curvasde maravilhosa beleza, num enredar e desenredar constante, como embaraçadosnuma teia invisível.Voltou para dentro, e depois de concluir a toilette saiu. Desceu as escadascantarolando um pedaço de melodia popular. No caminho cruzou-se comBenedita, que se afastou para o lado para lhe permitir passagem desafogada. Iasaudá-la, risonho, mas a saudação e a melodia morreram-lhe nos lábios ao ver asfeições carregadas e duras da criada. O contraste era tão flagrante, depois de teracabado de gozar a beleza do campo e a magnificência do sol, que não pôdedeixar de olhar curiosamente para Benedita, tentando adivinhar o que estariadetrás daquela fisionomia severa. E foi com um tom de voz neutro e semanimação que disse:- Bom dia, Benedita!A criada sorriu com frieza, descerrando os lábios finos e secos, e respondeu:- Bom dia, senhor António Ribeiro!...António encolheu os ombros, indiferente, e, em meia dúzia de passos, venceu osúltimos degraus. Encaminhou-se para a sala de jantar, donde vinha o cheiroapetitoso e fragrante do chocolate que Maria Leonor deitava nas chávenas. Acunhada, quando o viu entrar, suspendeu o que fazia e foi ao seu encontro.Apertaram-se as mãos, enquanto António a fitava, interessado.Maria Leonor tinha posto um vestido preto, a que aplicara uma gola cinzenta,bordada, que lhe ondulava em volta do pescoço e sob os cabelos loiros penteadosao meio, em bandós brilhantes e cuidados.António reprimiu no último momento a palavra apreciativa que tal aspecto lheprovocara e sentou-se à mesa, no mesmo lugar da véspera. Enquanto servia ochocolate, Maria Leonor indagou do cunhado como passara a noite. Elerespondeu:- Optimamente. De um sono apenas. E acordei ao som da mais alegre sinfoniaque nos últimos tempos tenho ouvido. Os galos da tua capoeira cantaram estamanhã com uma afinação e um entusiasmo maravilhosos.- Quem será o maestro?- Não têm maestro, com certeza. Afinam e desafinam por acaso. E ou entramtodos a um tempo como numa marcha militar, ou então alternam as vozes e ostimbres, como numa fuga!...

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Diziam estas coisas fúteis, sorvendo o chocolate em pequenos goles, quandoentraram Benedita e as crianças, estas ainda com os olhos e os cabelos molhadospelo banho ligeiro.Enquanto elas rodeavam o tio, folgazãs pela lembrança da véspera, Beneditapasseava o olhar da ama para António Ribeiro, um olhar inquisitorial, perfurantecomo uma verruma, um olhar que no seu semblante agressivo e pálido tinhacintilações de suspeita. Tornou a fitar a patroa, que voltava para ela a face calmae indiferente e, no espaço que as separava, os seus olhares cruzaram-se comogládios que se chocam e recuam, temerosos do golpe final.Havia algumas semanas que ambas se surpreendiam numa hostilidade mútua,recalcada e surda, surgindo e desaparecendo rapidamente em qualquermomento e lugar. Tinham acabado, quase sem o perceber, com a familiaridadeíntima que as prendia, antes, em longas conversas descansadas e fáceis.Evitavam-se.Quando acabaram a refeição, António segredou qualquer coisa ao ouvido deMaria Leonor. Benedita curvou-se para a frente, mas logo se endireitou, calma eimperturbável, ao ouvir a ama responder:- Um cavalo? Pois, decerto, ainda os temos. Não tão bons, nem tão bemensinados como dantes... - deteve-se um pouco pálida e confusa, mas logocontinuou:- Manda-se aparelhar um!...Elevou a voz para dizer:- Benedita, fazes favor dás ordem para que mandem aparelhar um cavalo para osenhor António Ribeiro...- Pois sim, minha senhora...Veio até à porta e chamou:- Teresa! Ó Teresa!Quando a rapariga veio, disse:- Diz ao João para aparelhar um cavalo. É para o senhor António Ribeiro!...Sabia que desagradava à patroa com aquela ordem. Notara já que Maria Leonor“torcera o nariz” ao namoro da criada e, pelo prazer de a contrariar, fazia tudopara aproximar Teresa do namorado. Apesar do seu puritanismo, iria, se tal fossepreciso, ao ponto de os atirar para os braços um do outro, só para irritar a ama.António levantou-se ao ouvir o tropear do cavalo na valeta debaixo da janela edisse:- Bem, vou começar as minhas férias! Uma galopada e duas visitas: ao doutorViegas e ao padre Cristiano. Até logo!

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Saiu, despedindo-se dos sobrinhos, que se lhe agarravam, decepcionados, vendoos projectos de brincadeira desfeitos por aquele passeio, totalmente fora dasprevisões. Maria Leonor foi até à varanda. Em baixo, o criado segurava o cavalopela rédea, enquanto esperava. Era um rapaz forte, moreno, com uns ombroslargos e ágeis. Havia nos seus movimentos uma harmonia rítmica, segura eprofunda. E a mão que afagava a crina do animal possuía a inocência, cheia debeleza e serenidade, das coisas puras.Atrás do tio, saíram as crianças para a alameda. Quando António Ribeiro, numsalto leve e decidido, cavalgou o animal, apanhando depois os estribos, baterampalmas, já reconciliadas com o logro que para elas era o passeio.António fez caracolar o cavalo numa saudação e partiu a trote, pela alamedacheia de sol. Ao chegar ao portão voltou-se e, de pé nos estribos, acenoudemoradamente um adeus. Maria Leonor, da janela, acenou também com o seulenço branco, que uma estreita barra negra entristecia. Voltou para dentro, umpouco estonteada pela luz do Sol, que mal a deixava ver a sala e os móveis. Nodeslumbramento, quase esbarrou com Benedita, que a fitava a poucos passos,enigmática, com os olhos brilhantes. E até à entrada das crianças, ficaram-se aolhar uma para a outra, olhos mergulhados nos olhos, o rosto crispado, retendo asperguntas inevitáveis.Naquele momento, feliz como um pássaro livre, António trotava ao longo do rio,obrigando o cavalo a mergulhar as patas na água baixa, deliciado por sentir ossalpicos levantados molharem-lhe o rosto. Ia radiante, apertando os flancos doanimal entre os joelhos, formando com a montada um corpo único, com omesmo sangue, os mesmos músculos, a mesma vontade de correr e saltar.Longe da lembrança lhe iam ficando as longas horas gastas no seu consultório doPorto, a atender as doenças, a apalpar as carnes em véspera de putrefacção, asofrer o hálito dos febricitantes e a suportar o pus dos abcessos. Agora, por aquelamargem do rio, com os longos ramos verdes dos salgueiros a roçar-lhe a cara, eo ar puro e lavado do campo a refrescar-lhe os pulmões, revivia, numa ânsiainsofrida de gozar. E todos os seus sonhos de rapaz, todas as suas esperanças navida lhe acordavam no espírito numa revoada súbita, como aves despertadas, aosentir a docilidade do cavalo sob a pressão dos joelhos e o mando forte e suavedas rédeas.Num lugar onde o rio estreitava subitamente, atravessou-o para a outra margemcom a água roçando a barriga do cavalo. No outro lado, deteve-se por instantes,orientando-se. Entre duas filas brancas de marmeleiros esgalhados, apertava-seum caminho. O chão era uma enxerga de poeira. Hesitou. Pretendia visitar odoutor Viegas, é verdade, mas o Parreiral ficava lá em baixo, no fim daquelecaminho abrasado e branco, que se contorcionava como uma serpente cujarespiração era o pó que se levantava em nuvens. Não era agradável sufocar-se

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por sua vontade debaixo do Sol que ia subindo, escorrendo chamas.Mas, de repente, nos seus trinta e cinco anos gastos e desiludidos, fartos demiséria e de dor, brotou como uma flor de maravilha o fogo da mocidade, oimpetuoso desejo de aventura, ainda que ela fosse apenas o galopar à rédea soltapor uma estrada quente e empoeirada, numa radiosa e criadora manhã de sol. Efoi num espasmo quase doloroso de alegria, os olhos humedecidos de gratidão asi próprio por se sentir ainda capaz daqueles entusiasmos, que encabritou o cavaloe o arremessou pela estrada, desaparecendo entre o pó, num galope frenético,curvado sobre o pescoço do animal, a rir, a rir como um perdido.Quando se apeou à porta da casa do médico, a boca doía-lhe do riso. Levou ocavalo pela rédea e subiu o pequeno arruamento, ladeado de formosas parreiras,que ia terminar nos degraus que conduziam ao interior da casa. No fim da latada,do lado esquerdo, brotava, de Ilhoa um buraco na parede, um fio de água vindodo poço, donde se ouvia o som vagaroso e isócrono da nora. E sob o calor do Sole da galopada António bebeu longamente, os lábios sequiosos apoiados na bica,num chuchurrear fresco e demorado.Depois, ergueu-se e olhou em volta, escutando. A não ser o ruído constante danora invisível, nada mais se ouvia. Ia chamar, quando de detrás do cunhal doprédio surgiu um homem em mangas de camisa, com uma enxada ao ombro.Olhou desconfiado para António e perguntou, enquanto o esquadri-nhava desde acabeça às botas empoeiradas:- O que deseja?António puxou o cavalo até à taça de pedra para onde a bica se entornava erespondeu:- Procuro o doutor Viegas...- Do outro lado da povoação, no caminho para o cemitério.Aquela hora era possível não encontrar ninguém até lá.Seguiu por detrás dos quintais que davam para o carreiro, por entre o ladrar doscães, que pulavam, furiosos, atirando-se contra as sebes.Desembocou por fim no pequeno terreiro da casa do padre. Curioso do ruído daspatas do cavalo, Cristiano chegou à janela. E vendo António, no pátio,desmontando à pressa, veio recebê-lo, à porta, de braços abertos, trémulo na suasenilidade:- Ora viva, o grande viajante! Um abraço, meu filho!...- Quantos queira, padre Cristiano!Ficaram abraçados longamente. Mas depressa o padre se recobrou da comoção.E fez entrar António para uma sala cheia de frescura como um oásis, onde o

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chão barrado de fresco era uma mancha viva sobressaindo na alvura das paredescaiadas. Por cima de uma pequena mesa um grande crucifixo de pau-santo emarfim abria os braços angustiadamente. De fora vinha o zumbido grave do diaque esquentava.Naquela frescura, olhando o velho padre, António sentiu o espírito repousar denovo, acalmar-se da excitação da galopada para casa de Viegas. Conversaram.As palavras do sacerdote eram impregnadas da suavidade que os rodeava. Entreos móveis velhos e o aroma fresco da sala as suas frases ficavam a pairar comoressonâncias puras de orações.E foi só muito tempo depois que António saiu. Cá fora, olhou para o relógio.Eram onze horas já mas, antes de voltar para a quinta, tinha ainda tempo desubir, num galope, a encosta para o cemitério.Quando lá chegou apeou-se e prendeu o cavalo aos ferros do portão. Sacudiu opó do fato e entrou. O cemitério estava deserto e silencioso. Foi pela álea central,ensaibrada de novo, fazendo ranger a areia sob as botas de montar. Ao fim, juntoao muro, era a cova onde repousava o corpo de Manuel Ribeiro. Aos pés dasepultura, António parou. Em frente, por cima do sítio onde devia estar a cabeçado irmão, uma pequena caixa de lata abrigava, por detrás do vidro, um retrato jádescolorido. Em baixo, na terra gretada, duas jarrinhas de porcelana, ondesecavam, à míngua de água, umas poucas flores. O coval tinha um certo ar deabandono. Ainda sob a influência da visita ao padre e do ambiente da pequenacasa ao fundo da colina, António curvou a cabeça e procurou na memóriafragmentos das suas orações infantis, balbuciando uma prece pelo descanso daalma do irmão.Quando acabou, caiu de joelhos no chão duro e seco e chorou, numa infinitamelancolia. Depois, levantou-se e foi, rente ao muro, onde se abrigava aindaalguma humidade, cortar as pequenas flores silvestres que ali tinham ido nascer.Juncou com elas a sepultura do irmão, deixando-a coberta de um manto colorido,palpitante, vivo.Saiu, cabisbaixo. Desprendeu do portão as rédeas do cavalo e desceu a colina, apé, levando o animal pela arreata, silenciosamente, sob a grande luz impiedosaque caía do céu sobre a sua cabeça descoberta e sobre as flores que deixara nocemitério.

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XIV Depois do almoço, as crianças subiram aos seus quartos para descansar durante ahora da sesta. Benedita levantou o serviço, auxiliada por Teresa, e com eladesapareceu na cozinha. Na sala apenas ficaram Maria Leonor e o cunhado.Sentados ambos perto de uma das janelas semicerradas, repousavam napenumbra suave, onde a luz forte do exterior se amortecia depois de filtradapelas cortinas corridas. Havia em toda a casa um silêncio grave e expectante,maior na modorra do dia, que parecia crestado e seco debaixo do calorimplacável que caía como chuva ardente e invisível do céu azul. O som asmáticodo relógio ia matando os segundos um a um, sem pressas escusadas, como quemsabe que tem a eternidade à sua espera.Na atmosfera íntima da sala aconchegada, sentados nas velhas poltronas devime, em cujos braços havia o tom quente das mãos que neles se tinham apoiadosucessivamente, António e Maria Leonor conversavam. Ele começara por contaro seu passeio matutino, desde a partida até à visita a casa do padre. Um escrúpuloindefinível o impedira de relatar a ascensão ao cemitério, as suas orações e assuas lágrimas, e a volta, a pé, triste, trazendo o cavalo pela arreata. MariaLeonor, embora convencido de que ele visitara a sepultura do irmão, tambémnada lhe perguntou. E ficaram silenciosos e embaraçados, evitando olhar-se,sabendo cada qual o que o outro pensava. A recordação de Manuel Ribeiroassombrou, por momentos, a casa. No silêncio, o relógio continuou,incansavelmente, o caminho para a consumação dos séculos.Foi António quem quebrou o enleio. Levantou-se e foi até uma das janelas, queabriu. Entrou uma baforada de ar quente, que enfunou as cortinas brancas e foicorrendo pela casa até ao tecto. Na quinta ladraram cães.António deu costas à janela e voltou para dentro, acendendo um cigarro. Rodeoua mesa, aspirando o perfume do tabaco, e parou, pensativo, diante de MariaLeonor, que cruzara as mãos no regaço no seu antigo jeito de convalescente.Trazia o mesmo vestido que usara de manhã. A cor negra diluía-se na penumbrae apenas as mãos e o rosto cintilavam como cristais preciosos. Um feixe de solveio derramar-se-lhe sobre a cabeça, como a chuva de ouro em que Júpiter setransformara para seduzir Dánae.A comparação mitológica fê-lo sorrir. Mas logo reconsiderou e o sorrisodesapareceu-lhe dos lábios. Ficou a olhar para Maria Leonor, um poucoperturbado pela sua imobilidade. Fez um esforço para quebrar o silêncio eperguntou:- Então, Maria Leonor, e a situação económica da quinta?Imediatamente se arrependeu da pergunta, sem saber porquê. Mas Maria

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Leonor, movendo-se como se tivesse despertado naquele momento, entrou defalar das colheitas e das vindimas, numa voz monótona e insípida, como serecitasse um trecho aborrecido de selecta escolar. Quando acabou, chegava ocunhado ao fim do seu cigarro. Ficaram de novo silenciosos. Apesar da aridez doassunto, Maria Leonor animara-se. O seio arfava-lhe lentamente,profundamente, e no pescoço uma pequenina veia latejava.Desta vez, o silêncio foi interrompido pelo bater do relógio. E, logo a seguir,Benedita apareceu à porta, tão devagar que não deram por ela senão quandodisse, num murmúrio grave, onde havia ligeiras dissonâncias:- Minha senhora, está lá fora o doutor Viegas. Deseja que o mande entrar?Maria Leonor abriu os olhos, espantada. A sua voz sabia a irritarão quandorespondeu:- Evidentemente. Por que não havia o doutor Viegas de entrar? Não é costume?Benedita pôs os olhos no chão e murmurou:- Julgava... - e deteve-se.- Julgavas o quê? - quis saber Maria Leonor.Mas logo silenciou, perturbada. Benedita saiu e voltou daí a pouco com o médico,a quem deu passagem para a sala. Depois, cerrando a porta, desapareceu.Viegas entrou, soprando, acalorado, expansivo. E após o abraço apertado que ouniu a António, voltou-se para Maria Leonor, interrogando:- Então, menina, que espécies de empenhos são precisos para chegar à tuapresença? Quererás tu que eu solicite audiência para te falar?Maria Leonor surpreendeu-se:- Mas porquê?- Porquê? Ora essa! O ar misterioso da Benedita e o tempo que esperei pelaresposta não me fizeram pensar noutra coisa. Que, aliás, é a primeira vez que eupreciso que me anunciem aqui... Passa então a ser necessária a apresentação dobilhete-de-visita?- Quanto tempo esperou?- Quanto tempo esperei? Ora deixa ver...Tirou o relógio da algibeira do colete e precisou:- Cinco minutos.Maria Leonor encolheu os ombros, irritada.- São coisas daquela Benedita. Anda na lua...O médico sorriu:

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- Ah! Vocês estão zangadas? Patrões e criados maldispostos é o diabo, não tenhasdúvidas...Voltou-se para António e foi com ele a uma das janelas, a agradecer a atençãoque tivera em visitá-lo, logo de manhã, por aquela estrada tão cheia de poeira, eentão com a pouca sorte de não o encontrar. António respondia, sorrindo, que lhecustara mais o regresso que a ida, enquanto o médico, depois de ter feito umaceno interrogativo a Maria Leonor, atufava o cachimbo de tabaco.Demoraram-se à janela, Viegas explicando o estado em que andavam oscamponeses, com as malditas sezões daqueles malditos arrozais. Interrompeu-se,de repente, e voltou-se para Maria Leonor:- Menina, os mais elementares deveres da hospitalidade mandam que ao visitantecansado, que chega, depois de um estirado passeio debaixo de um sol como este,capaz de frigir ovos numa pedra, seja dado, pelo menos, um refresco. Reclamo,pois, o refresco!Maria Leonor sacudiu-se do entorpecimento que a amarrara à cadeira e foi atéjunto dos dois homens:- Tem razão, doutor. Desculpe-me. Terá o seu refresco.Virou-se para o cunhado e perguntou:- Tu também bebes, não é verdade?- Pois sim, se fazes favor...- Esperem, então, um pouco, sim?! Não tardo...Saiu da sala, elegante e ágil, no seu vestido preto, que a fazia parecer maisesbelta. António seguiu-a com o olhar até ela desaparecer. Quando voltou, denovo, o rosto atento para Viegas, viu-o mordiscar a ponta do cachimbo, umpouco irónico no olhar. Rufou, enervado, com os dedos na vidraça.- Então, doutor, continue. Como entende que cessava definitivamente osezonismo?Viegas deu uma baforada e respondeu:- Ah, sim, as sezões!... Acabar com os arrozais, secar todas as alvercas que por aíhá e alimentar esta gente a quinino. Mas como nada disto se pode fazer, vamosandando até ao fim do Verão. Depois, curam-se por si...- É verdade, tu vais ajudar-me enquanto aqui estás, não é assim? Hem?!- Não sei se serei de grande ajuda. De resto, o doutor nunca teve muita confiançanas minhas qualidades de médico... Viegas atalhou, brutal:- Exactamente. Mas sezões qualquer pessoa as trata...

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Corando, António preparava-se para responder, mas suspendeu-se.Maria Leonor entrava nesse momento, trazendo uma bandeja com grandescopos, onde boiavam amarelas cascas de limão.Viegas deixou a janela e precipitou-se. Agarrou um dos copos que Maria Leonorlhe oferecia e, afastando os pêlos do bigode, sorveu um regalado gole. Antónioveio também, lentamente, ainda aborrecido. Ao olhar interrogativo da cunhada,respondeu com um encolher de ombros impacientes. E aquele olhar e aquelegesto isolaram-nos, por segundos, do médico, que se sentara, bebendo o refresco.Ficaram os três em silêncio enquanto bebiam. Viegas fez dançar o resto dalimonada no fundo do copo para dissolver o açúcar e, atirando a cabeça paratrás, despejou-a na garganta. Deu um ah! consolado, estendendo sobre a esteirado chão as pernas magras, apoiando-se nos tacões das botas empoeiradas.Limpou a boca a um grande lenço de quadrados azuis que tirara da algibeira ecruzou os braços, contente, olhando à sua volta.Um após outro, Maria Leonor e António tinham pousado na bandeja os coposvazios. Na sala, entre o cheiro do tabaco, ficou a pairar um leve perfume delimão.Maria Leonor chamou a criada e mandou a bandeja.Quando ficaram sós, olharam-se silenciosos. António remoía, indisposto, a ironiado médico e Maria Leonor olhava, pela janela aberta, os campos encharcados deluz, que tremiam no horizonte, no lugar onde se confundiam com o céu, numesbatimento de azul e verde. Viegas sorria, soprando fumaças do seu cachimbo.António levantou-se e deu uns passos na sala. O ranger das botas soou como umtiro na quietude do ambiente e pareceu despertar Maria Leonor da distracção. Iafalar, quando Viegas, sacando a carteira da algibeira interior do casaco, seantecipou:- Quando três pessoas não encontram que dizer entre si, é preciso fazer umesforço, e esse esforço, quase sempre, acaba por ser pior que o próprio silêncio.Veremos o que desta vez acontece...Abriu um sobrescrito e tirou uma carta que desdobrou sobre as pernas,cautelosamente. António veio sentar-se de novo e Maria Leonor inclinou-se parao médico, apoiando os cotovelos nos joelhos, interessada.Viegas continuou:- Ora bem! Não sei se tu, António, conheces os factos. Se não conheces, digo-te,em poucas palavras, que a Maria Leonor me pediu que arranjasse uma casaonde o Dionísio pudesse residir, comer, estudar, viver, enfim, enquanto estiverem Lisboa, no liceu. É disso que se vai tratar agora.Voltou para Maria Leonor e acrescentou:

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- Recebi, hoje de manhã, uma carta do meu irmão Carlos!- Ah!...Uma leve sombra perpassou no rosto de Maria Leonor. Era o começo daseparação que chegava.Viegas limpou a garganta do pigarro do tabaco e disse:- Bom, eu vou ler a carta! E tu apreciarás e dirás o que te parece. Lá vai!E começou a ler num tom monótono e áspero, interrompendo-se uma vez poroutra para puxar uma fumaça de cachimbo: “Pedro: Recebi a tua carta há cerca de oito dias e só agora me é possívelresponder-te porque tenho andado atrapalhado com uns negócios que, emboradessem esperanças ao princípio, se complicaram depois, a ponto de meconvencer que ia perder um bom par de contos de réis. Tudo se compôs, por fim.Esta que foi, outra que não venha.Depois de ler o que me escreveste, passei a carta ao João, sem dizer palavras.Quis que fosse ele a dar a resposta, visto que neste assunto é ele, segundo meparece, o interessado principal, abstraindo, evidentemente, desse garoto porquem te interessas e da mãe. O João leu, remirou a carta, tornou a lê-la edevolveu-ma em silêncio. Enfiou as mãos nas algibeiras, num gesto muito seu,que quer dizer indecisão e perplexidade perante um acontecimento novo, deconsequências novas. Vendo que não dizia nada, perguntei o que lhe parecia.Encolheu os ombros e resmoneou qualquer coisa que não percebi. Insisti eacabou por dizer que não gostava de dormir acompanhado. Tranquilizei-o quandolhe disse que tal não aconteceria, tanto mais que não acreditava que o teuDionísio gostasse também de dormir nessas condições. Depois disto mostrou-sesatisfeito.Parece-me, portanto, que tudo se arranja, visto que o João não mostrou má cara.De resto, nos dias seguintes, fez-me várias perguntas sobre a maneira de receberhóspedes em casa, em que grau iriam os estudos do seu futuro companheiro, seseria mais alto que ele, etc. Podes dizer a essa senhora tua amiga, dona MariaLeonor Ribeiro, segundo me informaste, que recebo o seu filho em minha casacomo se meu fosse e que nada aceitarei dela em paga, se o rapaz puder ser, parao João, o irmão que eu lhe não dei. Peço-te que apresentes a essa senhora osmeus mais respeitosos cumprimentos e que beijes por mim o Dionísio, futurocompanheiro do João.Quando vens a Lisboa? Abraça-te o Carlos.” Viegas tornou a dobrar a carta, respirou fundo, e reclinando-se no espaldar da

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cadeira, rematou:- E aqui está! É a estas pessoas que tu vais entregar o Dionísio durante trêsquartas partes do ano. Não falo da minha cunhada, que é, positivamente, aquilo aque se pode chamar uma excelente alma. Em casa, além dos três, não há maisninguém, a não ser as criadas, claro...Interrompeu-se para riscar um fósforo e, mantendo-o aceso sobre o fornilho docachimbo, perguntou:- Então, que te parece?Maria Leonor levantou-se, foi até à janela, onde se demorou uns momentos,silenciosa, olhando a cúpula azul-cinzenta do céu abrasado. Depois, voltou, eparando atrás de Viegas, pôs-lhe as mãos sobre os ombros grossos, respondendo:- Parece-me bem. Achei a princípio um bocadinho de liberdade em demasia namaneira como se jogava a sorte do Dionísio. O final da carta comoveu-me erendi-me. Só tenho pena de não ter educado o Dionísio de modo que mepermitisse, também, passar-lhe a carta para as mãos e ouvir a sua opinião -suspirou e concluiu, com tristeza: - Nem tudo o que se faz por bem é bem feito...Viegas riu, alegre, e respondeu, enquanto se levantava:- Tal como as pegas de Sintra, não é verdade?- Exactamente. Tal qual como as pegas de Sintra...António, que se mantivera em silêncio durante a leitura da carta e no decorrerdas palavras trocadas entre a cunhada e o médico, teve um ligeiro gesto de quemse espreguiça e perguntou, bocejando:- Temos, então, o Dionísio em Lisboa, hem?Viegas respondeu, enquanto sacudia o cachimbo em cima de um cinzeiro:- Mais propriamente, teremos. Há qualquer coisa a opor?- Não, que ideia!, tanto menos quanto a Maria Leonor já decidiu. Somente...Maria Leonor voltou-se para ele:- Somente...- Somente... Peço-te que não interpretes mal as minhas palavras, somente,parecia-me natural teres-te lembrado de que vivo no Porto e de que no Portotambém há liceus...Maria Leonor ruborizou-se e respondeu rapidamente:- Não me lembrei, confesso, mas penso não ter errado procedendo comoprocedi. A tua qualidade de pessoa de família não me parece suficiente parasuprir as que te devem faltar, tratando-se da educação de uma criança!...

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António cruzou as mãos atrás das costas e, curvando-se numa reverênciaprofunda e trocista, redarguiu:- Parece-te? Sois ambos muito amáveis, o doutor- Viegas e tu... Com licença.Saiu da sala e, durante alguns segundos, ouviram-se-lhe os passos pela escadaacima. Bateu uma porta. Maria Leonor ia dar um passo para fora, também, masdeteve-se e ficou na sala, nervosa, batendo o pé, evitando o olhar do médico, quea fitava, calmo e sorridente, e que acabou por dizer:- Que malcriado está o menino?! Que tem ele, Maria Leonor?- Ele, saiu-se com aquilo. Só de uma criança...Viegas riu silenciosamente, agitando os ombros. Deu um jeito no casaco e,depois de ter deitado um olhar ao relógio, foi à janela espreitar o sol.- Ainda vai alto e isto deve estar um calor de morrer. Mas, francamente, prefiroos três quilómetros até casa debaixo desta torreira, a ficar o resto da tarde eaturar as birras alheias...Bateu com as botas de encontro à grade da varanda para lhes sacudir o pó evoltou para dentro. Maria Leonor estava sentada num dos braços do canapé,pensativa, olhando os desenhos esmaecidos da esteira, onde alastravam grandesrosas de mistura com verdes galhos floridos de pereira. Viegas parou junto delae, de súbito, sem aviso, levou dois dedos à nuca de Maria Leonor, apertando-a deleve. Ela soltou um gritinho e ficou-se a olhar, estupefacta, para o médico, quesorria, com um brilho irónico e malicioso no olhar.- Que... que foi isso, doutor? - e tremia.O sorriso do médico desapareceu.- Nada, menina! Desculpa! Não sei que tolice foi esta minha... Desculpas, sim?...- e mudando de tom: - Bem, então fica combinado. Posso dizer ao Carlos queaceitas, não é?Maria Leonor olhava para ele, intricada, perguntando que estranho capricho seriaaquele de lhe apertar a nuca, tão bruscamente que a assustara. Respondeu:Pode, sim. Pode dizer que aceito e agradeço, mas que teremos de falar mais apreceito acerca do pagamento da pensão. É demasiado que...Viegas interrompeu, aborrecido:- Não é demasiado nada, bem vês... O meu irmão não procura a satisfaçãomaterial que lhe possa dar o ter um pensionista. Não ouviste ler a carta?- Ouvi, sim, mas...- Então... que mais é preciso dizer?

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Agarrou o chapéu e concluiu:- Estamos entendidos, não é assim? Até amanhã!Atravessou a sala e saiu, com os ombros caídos e as costas arqueadas, vergando.Ouviu-se um ruído que dava para a alameda. Quando o ranger da areia se sumiu,Maria Leonor deixou-se cair devagar numa cadeira, inclinou-se sobre a mesa,pousou a cabeça nas mãos e, sem saber o motivo, começou a chorar baixinho,sufocando os soluços, numa irreprimível angústia, que a enchia toda.Um arrastar de pés junto da porta fê-la erguer-se rapidamente, com os olhosvermelhos e húmidos e o coração palpitante. Era Benedita que entrava. Enquantoa criada se dirigia à janela para a fechar, Maria Leonor, mantendo-se sempre decostas voltadas, saiu da sala.Cá fora, limpou os olhos e, depois de uma curta hesitação, subiu as escadas parao segundo andar. Lá em cima, havia um silêncio mortal. Dirigiu-se ao quarto esentou-se diante do toucador. Considerou demoradamente a fisionomia, olhandoo espelho. Alisou com um pente os cabelos, passou nas faces levementecongestionadas a borla do pó-de-arroz e vazou uma gota de perfume nas palmasdas mãos. Depois, saiu do quarto e caminhou para o escritório.Ao entrar, quedou-se um momento tomada de súbito pavor, gelada, sentindo-setremer dos pés à cabeça. No cadeirão negro, inclinado sobre um livro aberto querepousava em cima da secretária, estava sentado António Ribeiro. Para MariaLeonor, aquela presença de homem, ali, na meia luz do aposento, resultavaestranha, sobrenatural. E ficou imóvel e silenciosa, encostada à ombreira daporta, olhando o cunhado, que, absorvido na leitura, não a sentira. Tremia. Umfogo que parecia queimá-la subia-lhe pelo corpo até à garganta, aos olhos,palpitando-lhe nas têmporas, riscando-lhe no cérebro traços luminosos, quefulguravam e se extinguiam numa sarabanda orgíaca e entontecedora.De súbito, ao voltar uma página, António viu a cunhada. Recuou a cadeira elevantou-se. Estava pálido e nervoso. Contornou a secretária e caminhou paraMaria Leonor, que se apertava contra a parede, como se quisesse fugir-lhe.Parados diante um do outro, a centímetros de distância, sentiam o sibilar dasrespirações. A garganta de Maria Leonor contraía-se espasmodicamente.Qualquer coisa dentro dela rolava e crescia, uma vaga imensa, que lhe enchia ocrânio, zumbindo-lhe nos ouvidos num marulhar constante. No silêncio, morno eacariciador, do escritório, António murmurou, baixinho, quase inaudivel-mente:- Maria Leonor... desculpas-me o que disse lá em baixo? Eu estava doido, comcerteza... Desculpas?A sua voz era um ciciar dolorido, num arrulhar cioso e perturbador. E os olhoschamejavam-lhe.

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Maria Leonor desfalecia num pavor delicioso, os olhos esgazeados, húmidoscomo violetas esmagados, e respondeu, balbuciante:- Sim... desculpo...Sentia que sob os pés se cavava um buraco imenso, profundo, onde se iriadespenhar numa queda que duraria a eternidade, rolando entre fragas agudas quelhe despedaçariam a alma.Fechou os olhos, cambaleando. Quando os abriu um pouco erguendo as pálpebraspesadas de volúpia, viu avançar para si, por entre o nevoeiro das pestanas, o rostodo cunhado. Entreabriu os lábios num gemido, que foi cortado pelo choquealucinado das duas bocas, esmagada a carne numa dor angustiosa e consoladora.Os joelhos vergaram, muito lentamente, como se as forças que a sustentavam sefossem exaurindo devagar. Depois, numa última contorção, caiu no tapete, comoum corpo morto.Debruçado sobre ela, António quase a esmagava sob o peso do seu corpo. E, coma boca presa nos lábios dela, sugava-lhe a respiração, como um vampiro afartar-se de sangue. Maria Leonor, com as espáduas assentes no chão, a bocasangrando, sentia-se enlouquecer, e quando as mãos do cunhado a percorreramtoda, numa carícia lenta e insidiosa, um espasmo violento a sacudiu epileptica-mente. Era o fim. As mãos, que arrepanhavam o pêlo rijo do tapete, subiram,rápidas, até aos ombros de António, e aí se agarraram com força, enquanto duasgrossas lágrimas lhe deslizavam devagar pelo rosto. A cabeça rolou-lheentontecido e, em todo o seu corpo, começou a lassidão do abandono e darenúncia.Naquele momento soaram passos na escada. António levantou-se de um salto efoi até à cadeira. Aí se deixou cair com a cabeça entre as mãos, olhando o livroaberto na sua frente. Maria Leonor, num esforço penoso, gemendo, ergueu-se,apoiando-se à alta estante de mogno, onde os livros perfilados assistiam, mudos eimpassíveis.Os passos aproximavam-se. António procurava dominar a agitação que o invadiae lhe punha tremores nos ombros. Forçava-se a olhar o livro, a tornar-se alheioao que o rodeava, enquanto Maria Leonor, encostada à estante, ia percorrendocom a mão inconsciente as lombadas dos livros, como se procurasse um volume.Quando Benedita entrou, ambos estavam silenciosos e quietos. A criada parou àentrada, surpreendida.António ergueu a cabeça, mas logo a baixou sobre o livro. Maria Leonor, quetirara, por fim, um volume, folheava-o agora, trémula e ansiosa. E quandoBenedita deu alguns passos no aposento, os dois apavoraram-se.No silêncio da casa aqueles passos soavam como as marteladas finais num

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caixão fúnebre. Benedita parou, rente a Maria Leonor, que lhe sentia os olhos e arespiração sibilada a queimarem-lhe a face como brasas. Numa supremavontade de reagir, fechou o livro de estalo e fitou a criada. Nos olhos dela viu obrilhar agudo de uma desconfiança prevenida. Os cantos da boca tremeram-lheconvulsivamente, e entre as pestanas cintilaram duas lágrimas enormes que nãocaíam, que se queimavam lentamente no fogo das pálpebras.Detrás da secretária, António levantou-se e foi caminhando até à porta, evitandoolhar as duas mulheres. E saiu. No corredor alcatifado os passos morreram,extinguindo-se como uma melodia que se dissipa no ar. Ficou só o silêncio. Noaposento, passou a sombra fugidia de umas asas, que voaram a roçar a janela. Eas duas mulheres continuaram a fitar-se, até que Maria Leonor sentiu a faceabrasada. Desviou os olhos para o tapete, onde quase morrera de gozo. Beneditaseguiu-lhe o olhar e pareceu compreender: tomou uma inspiração funda ecuspiu:- Porca!Foi uma chicotada. Maria Leonor levantou as duas mãos e esbofeteou-a. Equando Benedita, aturdida, recuou, bateu-lhe ainda, cega de raiva, consumindonaquele esforço as últimas energias que lhe restavam. Benedita, com as mãosdiante do rosto, protegia-se, enquanto recuava para a porta. Quando lá chegou, jáMaria Leonor a deixara, especada no meio do aposento, hirta, os olhos dilatados,sentindo como que uma mão de ferro apertar-lhe a garganta. A criada olhava-a,espantada. Um sentimento de vaga compaixão lhe perpassou na alma, mas logoa imensidade absurda da traição a invadiu e, num arranco de ódio e desprezo,atirou:- Até na casa onde o seu marido viveu...Saiu a correr. Maria Leonor ficou a olhar estupidamente o fundo negro docorredor onde a criada se sumira. Depois, deixou-se cair no chão, quasedesmaiada. Corriam-lhe no cérebro mil pensamentos, que se entrechocavamcomo planetas de um sistema donde desaparecesse a ordem e a harmonia. Tãodepressa revia o funeral do marido, sob aquela grande chuva de Março, peloscaminhos enlameados do campo, como lhe parecia sentir nos lábios, aindamagoados, a pressão furiosa da boca de António. Por entre as nebulosidadescrescentes da inconsciência, ouviu lá fora um gargalhar de crianças. Depoisdesmaiou.Quando, daí a longo tempo, acordou do desmaio, olhou em roda, espavorida.Ergueu-se. Deu uns passos, hesitantes, a cambalear. Apoiou-se a uma dasextremidades da secretária e, passando a mão livre pela testa, tentou concentraros pensamentos. E lembrou-se! Então, uma vergonha infinda a inundou. Dentroda sua alma ia um desmoronar caótico: era como se todas as razões morais em

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que pode ser sustentada uma vida humana desabassem, deixando apenas de si apoeira dos escombros, o desalento das ruínas.Encostada à secretária, os braços caídos ao lado do corpo, deixou que as lágrimaslhe corressem livremente pelo rosto. Mas eram lágrimas que não aliviavam.Cada uma que lhe caía no corpete do vestido parecia perfurá-la toda a fogo lento.Moveu-se a custo e enxugou os olhos, tão inutilmente como se tentasse secar umafonte bebendo-lhe um gole. As lágrimas continuavam a abrir-lhe sulcos fundosno rosto, como rios de lava nas abas de um vulcão.Na sua angústia, sentiu um grande dó de si própria, e quando lhe surgiu nopensamento a pergunta “e agora?”, abanou desalentada a cabeça, mordendo oslábios, numa tristeza imensa, numa pena impotente da sua desgraça.Ia caminhar para a saída, mas estacou, perplexa. A porta estava fechada e embaixo, no chão, a chave caída. Compreendeu. Benedita tinha voltado e, para queninguém a visse prostrada no soalho, fechara a porta e metera a chave pelafenda. Sorriu com amargura, ao pensar que ainda lhe devia agradecimentos porisso. Abriu a porta e foi pelo corredor, quase arrastando-se, até ao quarto. Cerroua porta atrás de si, um pouco acalmada com o aspecto familiar do aposento. Asjanelas estavam fechadas, mas tinham as cortinas abertas. Uma claridadedoirada fazia brilhar os tampos dos móveis.Na cómoda, ao fundo, erguia-se, branca e imóvel na sua prece eterna, com osolhos de porcelana virados num êxtase mudo para o tecto, a imagem da Virgem,emblema de pureza. Os cortinados do leito caíam em pregas harmoniosasformando um dossel, debaixo do qual a colcha guardava o perfume dos lençóis.A almofada, à cabeceira, tinha uma pequena cavidade de curvas repousantes econvidativas. Entontecida pela intensidade da luz, que entrava pela janela numfeixe delgado, uma mosca voejava, fazendo cintilar as asas quando atravessava afita de sol que descia para o chão.Maria Leonor puxou uma cadeira e sentou-se. Escondeu a face entre as mãos e,aconchegando-se num jeito friorento de doente, ali ficou, imóvel, num pensarconfuso, sobressaltada pelos rumores da casa. Estremeceu quando, uma vez,ouviu a voz de Dionísio, junto da porta fechada, perguntar:- A mãezinha está lá dentro?Outra voz, a de Benedita, respondeu:- Está lá dentro, mas não pode vir. Está um bocadinho doente. E os meninos nãofaçam muito barulho, ouviram?A voz desolada do rapazinho decaiu num murmúrio de pena. Depois, a tarde foichegando. O céu começou a escurecer e o quarto a encher-se de sombras. Poruma fresta da cortina, Maria Leonor viu no céu a primeira estrela da noite a

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brilhar. Levantou-se e contemplou-a por detrás das vidraças. Na abóbada, que iaenegrecendo, era a única luz que cintilava, com umas fulgurações vermelhas,como um rubi cravado no céu. Parecia que todo o azul não tinha outro fim senãoo de fazer ressaltar, por contraste, a beleza da estrela. Mas todo o céu, pouco apouco, se foi picando, aqui e além, de pontos luminosos, como se, por detrás donegrume azulado, houvesse o despontar de um novo dia, que assim lograsseiluminar a terra.Quando a noite caiu por completo, Maria Leonor deixou a janela. Caminhou peloquarto, às apalpadelas, e sentou-se na cama. Despiu-se e deitou-se. Era-lheimpossível dormir, mas admirava-se por se sentir tão calma e sossegada. Nosseus olhos já não havia lágrimas. O cérebro recusava-se a pensar no que sepassara, e nem conseguia recriminar-se, nem achar atenuantes que aJustificassem. Entre os lençóis que a iam aquecendo, lentamente, apossava-sedela uma sensação de segurança e indiferença que a isolavam da realidade,como se, sob o mesmo telhado que a abrigava, não houvesse duas pessoas aquem, àquela hora, porventura, o que se desenrolara à tarde, no escritório,provocava um desencadear de paixões tumultuosas, refreados pela consciênciado segredo que era preciso guardar. E era, justamente, o saber que o segredoseria guardado, que lhe dava aquele sentimento de tranquilidade.O ranger da porta que se abria interrompeu o devaneio. Encolheu-se na cama,assustada, esperando ver o rosto de Benedita emergir da claridade do candeeiroque traziam. Mas não era Benedita. Era Teresa, que entrava com o jantar.- Então, minha senhora, está melhorzinha?A comédia continuava! E Maria Leonor não tinha outra solução que não fossedesempenhar o papel que lhe tinham distribuído. Depois de um momento desilêncio, em que perscrutou a face compadecida da criada, respondeu:- Estou um poucochinho melhor...Teresa pôs o tabuleiro sobre a cama e, enquanto arranjava os pratos, disse:- Veja lá, minha senhora, como, de um momento para o outro... Quando aBenedita contou, até fiquei passada! Estar a senhora tão bem-disposta aconversar e, de repente, sem aviso, desmaiar...Aí estava a explicação. Benedita fora engenhosa, não havia dúvida. EnquantoTeresa lhe compunha o guardanapo no peito, sentiu uma súbita angústia aopensar no preço por que teria de pagar aquele disfarce. Toda a tranquilidade seevolou, como um perfume deixado ao ar livre.- Não me apetece comer! Leva isto, Teresa, leva isto tudo... E sai daqui...A criada inquietou-se:- Que é, minha senhora, sente-se pior?

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- Não estou pior! É que não me apetece... Leva, leva, anda...- Pois sim, já que assim o manda... Mas olhe que não faz nada bem ficar sem aceiazinha!- Não te incomodes. Sinto-me bem.Teresa agarrou de novo no tabuleiro intacto e preparou-se para se retirar. Quaseà porta, voltou-se:- Deixo ficar a luz?Maria Leonor hesitou:- Não... sim, sim, deixa ficar!- Quer que mande cá vir a Benedita?Ela? Ali, sozinhas no quarto, forçosamente silenciosas, porque as palavras a dizernão poderiam ser ditas?Respondeu apressada:- Não, não quero que venha! Quando eu chamar, vens tu, ouviste?- Sim minha senhora.Teresa saiu, fechando a porta. Pela primeira vez, desde que Benedita entrara noescritório, quase a surpreendendo no chão agarrada ao cunhado, Maria Leonorviu nitidamente a situação: o que se passara era do conhecimento de Benedita. Oque faria ela agora? Podia dominá-la, escravizá-la, trazê-la agrilhoada ao pavorde revelar o escândalo, um dia, quando lhe parecesse...O escândalo! Como tinha podido descer tão baixo? Como, sem amor, sem queoutra paixão, que não fosse a dos seus miseráveis sentidos, a cegasse, puderaapertar um homem nos braços, apertá-lo contra o peito, torcer-se sob o seu pesode animal cioso? Que miséria a sua! E agora? Que fazer? Em casa, à sua vistaconstantemente, uma mulher que não vira, mas que sabia... O olhar claro e purodos filhos, a confiança dos amigos, o seu trabalho, tudo o que até ali constituíra asua razão de viver, ficava à mercê de uma inconfidência, de uma palavra solta,de um gesto denunciador. E, então, seria a vergonha, o escarro na face, o olhardesviado, a reprovação no rosto dos outros, os ditos murmurados, as insinuaçõestorpes a sugerir pormenores lúbricos... E ele? O que faria, também? Ele, quequase a possuíra, o que diria, o que pensaria?Um novo medo se apossava de Maria Leonor: o de encarar o cunhado, de falar-lhe. Como poderia estar diante dele, sós ou acompanhados, vendo-o mover-se,ouvindo-o falar, sentindo nos seus gestos e nas suas palavras as intimidades dosseres que se conhecem fisicamente? E a mesma pergunta voltava, insistente,perseguindo-a como um cão de fila: “Como fora possível?...“Deitada na cama desfeita, Maria Leonor era um farrapo. Em toda a noite não

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dormiu. Pela madrugada, o candeeiro, sem alimento, apagou-se. Na escuridão,apenas esbatida junto da janela, por onde entrava uma luz indecisa, opalescente,chorou então, como se na claridade tivesse vergonha até do próprio choro.Depois, exausta de forças e de lágrimas, num abatimento que lhe obscurecia arazão, ficou prostrada, os olhos enxutos, imóveis, arregalados para o tecto, quenão viam.Lá fora, a noite ia terminando vagarosamente. E foi numa crescente angústia queMaria Leonor começou a perceber os rumores do dia que despertava. Foi,primeiro, o canto claro, de uma limpidez de cristal, de um galo na capoeira.Depois, o chiar dos carros de bois, que passaram rente ao prédio, fazendo tremeras janelas, e, quando já a luz ia mostrando os objectos no quarto, o ruído dasportas que se abriam e fechavam, o som dos passos que ecoavam na casa. Eram,todos eles, os ruídos habituais das suas madrugadas. Mas tinham agora umsignificado diferente: era o dia que chegava, os rostos que viriam até si, asperguntas a que seria forçoso responder, a verdade, quem sabe?, que sedesvendaria para mostrar a face envergonhada. E, então, teria de levantar-se eentrar no círculo vivo dos habitantes da casa, deixar aquele refúgio, onde, apesarde tudo, se sentia segura...De repente, começou a ouvir no fundo do corredor, perto da escada, vozes quedialogavam alto. Chegavam-lhe aos ouvidos rumores de objectos arrastados, umbaque surdo de qualquer coisa pesada que caía. Ergueu-se na cama, inquieta,procurando descobrir o motivo do rebuliço. Agora, as vozes passavam rente àporta, possivelmente a caminho do escritório. E daqui, logo depois, veio umranger de gavetas abertas. Na escada, deslocavam um objecto pesado, que batiasucessivamente nos degraus, cada vez mais baixo, até ao rés-do-chão. As vozestornaram a ouvir-se, mais fortes, e desta vez pararam em frente do quarto. Aliamorteceram-se, segredando, e continuaram.Em baixo, a porta que deitava para a quinta abriu-se e houve na alameda umamultidão de rumores confusos, onde sobressaía o bater das patas de um cavalonas pedras da valeta. Alguém falou ao animal e, imediatamente, ouviu-se o rodarde uma carroça na areia do caminho.Maria Leonor dava tratos à imaginação no esforço de descobrir a causa queobrigara, tão cedo, a um tal barulho. Exausta como estava, nem sequer lheocorrera levantar-se para espreitar. E a ora que tudo terminara, recaía na sualassidão, indiferente sobre a almofada.O quarto estava já completamente claro. De fora, vieram, compassadas, as oitohoras. Maria Leonor mexeu-se na cama buscando posição mais cómoda paradescansar. Uma dor muito fina varava-lhe as costas. Esticou as pernas,suspirando, e fechou os olhos cansados, que se debruavam de escuro numaslargas e fundas olheiras. Por momentos, foi a Maria Leonor dos dias felizes,

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quando, no morno dos lençóis, sentiu o corpo lasso repousar. Os lábios,amargamente curvados, descerraram-se num sorriso triste, que lhe descobriu osdentes amarelados pela febre.Ia adormecer, quando, num estremecimento brusco, abriu os olhos, assustada. Ocoração batia com força e ela ouvia a ressonância surda do vibrar das costelas.No momento exacto em que ia mergulhar no sono, o pensamento alumiarabrutalmente no cérebro o canto escuro onde se escondera o fantasma que aperseguia. Voltada para a Virgem, eternamente muda e bendita, estendeu-lhe asmãos súplices num pedido angustioso de paz e de salvação. Quando acabou aprece, tombou, amarfanhada, os olhos pregados na imagem, que sorria, naplenitude do êxtase que parecia desprendê-la da nuvem de por-celana brancaque a retinha.Bateram de leve na porta. O silêncio no quarto ficou maior depois daquele ruído.A voz de Maria Leonor tremia, quando disse:- Entre, quem é...A porta abriu-se com cautela. Maria Leonor fechou os olhos, temerosa da visão.No escuro ouviu passos que se aproximavam da cama. Apertou as pálpebrascom mais força. Era horroroso saber que, ao abri-los, veria Benedita na suafrente, a face impassível, a fronte severa rispidamente enrugada...- Então, minha senhora, como se sente?...Não era ainda Benedita. Era Teresa, com o pequeno-almoço. No suspiro dealívio que entreabriu os lábios de Maria Leonor, houve também decepção. Tinhade aguardar, e o adiamento trazia-lhe novas torturas.Enquanto Teresa a servia, olhou de soslaio para ela e ficou surpreendida ao ver-lhe a expressão indignada.Também esta saberia?Sentindo um nó na garganta, perguntou baixinho, os olhos na xícara de leite:- Que é que tens, Teresa?A rapariga deu um suspiro, desabafou:- Parece impossível, minha senhora!... É uma vergonha que o senhor AntónioRibeiro viesse de tão longe aqui, só para fazer o que fez!Maria Leonor recuou espavorida, e a voz sumiu-se-lhe, ao perguntar:- O quê, rapariga, que dizes tu?- Já disse. É o cunhado da senhora, bem sei, mas lá por causa disso não deixo dedizer que se portou como um velhaco!Maria Leonor recusava-se, não queria compreender. Pois era possível que

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Benedita tivesse tão ignobilmente espalhado a sua loucura, o seu nome? Toda agente sabia...Insistiu, apesar de tudo incrédula:- Mas o que dizes tu? O que é que tu sabes? Quem foi que te disse?A criada respondeu num fôlego:- Foi a Benedita. Logo de manhã, assim que nos levantámos, chamou-nos àcozinha e contou tudo!A voz de Maria Leonor era um sopro, apenas.- Tudo, Santo Deus!... Que vergonha...- Diz muito bem, minha senhora, que vergonha!... Querer tirar o pão à senhora eaos meninos. E de velhaco, pois!Maria Leonor apertava a cabeça entre as mãos, como uma doida. O pão? Masqual pão? Não se tratava disso. Havia ali um tremendo equívoco...A criada continuava:- Um senhor doutor devia ser mais honesto! Agora vir aqui, de propósito, paraexigir, não sei porquê, metade do que é da senhora, só da senhora e dosmeninos...Ah, era aquilo! Mas então... o que se passara? O que houvera debaixo daquelestectos desde que se fechara no quarto? Pensava já se não teria endoidecido,quando a criada continuou:- Já lá vai embora. E olhe, minha senhora, que a Benedita deu-lhe uma desandacomo ele não deve ter ouvido muitas, nem do pai!... Quando subiu para acarroça, até levava os olhos avermelhados, parecia que tinha chorado. Não, quea Benedita quando quer sabe dizê-las!Na sua animação, Teresa, exaltada, batia com os pés no chão, gesticulando.Maria Leonor deixara-se cair para trás, sobre o travesseiro, e ria, riaperdidamente, com um riso que se assemelhava a um soluço. A criadaespantava-se perante a alegria ruidosa da sua senhora, que quase perdia arespiração. E começou a rir também.De súbito, num arquejo estrangulado, o riso morreu na garganta de MariaLeonor. No vão da porta surgira Benedita. Vinha tal qual a imaginara durante ashoras insones da noite: hirta, com a face dura e hostil, o andar silencioso, oaspecto de uma acusação viva. Baixou os olhos para as mãos, que tremiam nadobra do lençol. Teresa sufocava os últimos froixos de riso.Benedita parou ao lado da cama e murmurou:- Muito bom dia, minha senhora.

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Maria Leonor levantou os olhos e respondeu, numa voz sumida, que pareciaquebrar-se a cada inflexão:- Bom dia, Benedita...A criada continuou:- Está melhor? - e sem esperar resposta: - O senhor António Ribeiro resolveu,depois do que se passou ontem, partir novamente para o Porto. Deixou umacarta, que entrego à senhora...Tirou do bolso do avental um sobrescrito fechado. Maria Leonor fez um gesto derecusa, mas qualquer coisa no olhar de Benedita a obrigou a agarrar na carta,que logo deixou cair no colchão, como se queimasse. Rasgou o sobrescrito e tiroude dentro uma folha de papel de carta, rabiscado à pressa. Leu para si: “Maria Leonor: Vou para o Porto. Perdoa-me. Esquece o que se passou ontem.Eu vim aqui para te exigir metade da quinta. A Benedita sabe... Adeus. António. “ As mãos de Maria Leonor tremiam convulsivamente. A face ergueu-se paraBenedita, numa expressão de humildade infinita, de um reconhecimento semlimites.A criada perguntou:- Então?!...Era uma ordem. Era preciso ainda ser comediante.E Maria Leonor, sentindo o rosto afoguear-se-lhe numa onda de vergonha,balbuciou:- Pede desculpa...Benedita fez, compreensiva:- Ah, sim!...Voltou-se para Teresa e disse, com toda a calma:- Vamos, menina! Há muito que fazer hoje: a primeira coisa é limpar o quartoonde esteve o senhor António Ribeiro... Abrir a janela, arejar bem...Saiu com a companheira. A porta, voltou-se e disse para a patroa, que se deixaraficar imóvel, atordoada pela simplicidade dramática com que a questão seresolvera:- Acho melhor que essa carta desapareça, minha senhora. Pode queimá-la, porexemplo...Maria Leonor olhou para a carta, que ainda segurava entre os dedos, e

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respondeu, muito humilde:- Pois sim...Quando ficou só, pousou a carta sobre o tampo de mármore da mesinha-de-cabeceira. Depois, tremendo, sem atinar nos gestos que fazia, riscou um fósforo.A labareda rompeu bruscamente, mas logo se apagou. Riscou ainda outro fósforoe chegou-o ao papel. O bordo da carta enegreceu ao contacto da chama etorceu-se todo sobre si mesmo. A combustão começou rápida, e, em breve,devorava as letras traçadas. Daí a segundos, atirando um clarão mais alto para oar, a chama apagou-se, deixando ficar apenas uns pontinhos luminosos, quecorriam na cinza negra. Sobre a pedra, depois de extinta a labareda, a folha depapel encarquilhava-se ainda, como se nas suas fibras ténues se crispasse umnervo oculto.Um soluço sufocado sacudiu o peito de Maria Leonor. Ergueu-se da cama e, aolevantar a roupa que a cobria, a corrente de ar provocado atirou para o chão opedaço de papel queimado. Num gesto irreflectido estendeu as mãos para oagarrar e apertou-o nos dedos antes que caísse. A cinza desfez-se em pequeninaspartículas negras.

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XV A notícia da partida de António Ribeiro espalhou-se na quinta com umavelocidade incrível. Quando o pessoal largou o trabalho para o almoço, todossabiam já que o cunhado da senhora viera do Porto para reclamar, embora semrazão, parte da propriedade, que tinha havido uma tremenda cena entre eles, detal modo que a senhora ficara abalada e tivera de recolher à cama, com febre.Segundo a opinião geral, fora Benedita quem o pusera fora de casa e citava-se oar acabrunhado que António levava quando partira.Sentados à sombra das árvores, durante a sesta, enquanto o Sol a prumo faiscavana terra ressequida, os trabalhadores faziam comentários irritados à conduta doirmão do amo defunto. E havia quem apontasse novos pormenores ouvidos daprópria boca de Benedita, que afirmara saber que o senhor António Ribeiro sómuito tarde voltaria à quinta, talvez mesmo nunca...Da cozinha, do lagar, da horta, levantava-se um coro de execração ao mauparente que quisera roubar. E de um lado para o outro, incansável e corajosa,Benedita corria a sua via-sacra, incitando os ânimos ao desprezo e ao ódio aousurpador logrado, que se espantara como um corvo medroso, perante aresistência de duas mulheres. E havia risos de troça naquelas bocas talhadas peloshaustos do ar livre, e havia um encolher desdenhoso naqueles ombros calejadospelos carregos. Ridicularizava-se o caçador caçado, o que viera pela lã e ficaratosquiado...Quando os homens voltaram ao trabalho, sentiram, ao deitar as mãos aos cabosdas enxadas e das pás de limpar trigo, a segurança de quem ainda pisa chão quelhe pertence, de quem, depois de um susto, recobra, pouco a pouco, a calma quelhe modera as palpitações exaltadas do coração. E durante a tarde, enquanto otrigo subia e descia no ar como poalha de ouro largando as escorias, ouviram-sena eira comentários ao acontecimento.- O fidalguinho, hem?!... Não era eu que o queria para patrão.- Nem eu! Largava-o logo!E em volta do nome de António Ribeiro erguia-se uma atmosfera de maldade.Naquele momento todos lhe recusariam água se o vissem morrer de sede, todospassariam de largo se o vissem cair à beira de um carreiro.Em certa altura, quando Benedita atravessou a eira para o lagar, suspenderam otrabalho para a seguir com os olhos, num agradecimento mudo, que tocava aveneração. Depois, voltaram à labuta, enquanto Jerónimo ia contando de grupoem grupo o que se passara até que António Ribeiro subira para o comboio que olevara.

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Quando o Sol desapareceu, abandonaram o trabalho. E, em magotes, com asjaquetas postas ao ombro e o barrete descaído para os olhos, as ferramentas numtinir de aço que ritmava a marcha, saíram da quinta, a caminho de casa, paraMiranda. Quando passaram debaixo das janelas de Maria Leonor levantaram osolhos e, insensivelmente, subiram a voz a fazer sentir a sua presença, provando acontinuidade da sua dedicação.A noite, depois da ceia, nas tabernas de Miranda, foi o recontar da história, jáaumentada, em estilo de lenda tenebrosa, que fazia espantar as faces dos queainda ignoravam. Na taberna de Joaquim Tendeiro ia um burburinho exaltado,uma profusão de gestos explicativos que representavam a pantomima do dramacom requintes de arte. E todos tratavam de impressionar o ânimo do dono dacasa, aumentando sempre, a cada relato, a imensidade da exigência malvada. OJoaquim Tendeiro era o fornecedor de mercearias da quinta. Era preciso quesoubesse bem que aquilo ainda era da senhora dona Maria Leonor... Mas ele,curioso como o gato da história, queria saber mais pormenores, maispormenores...O taberneira tinha a preocupação da bela-frase, e a leitura quotidiana do jornaltrouxera-lhe aquele “legal”, de que se agradara e que empregava a torto e adireito.Os homens, simples como as enxadas, viam-se sempre em palpos de aranhapara o entender naqueles devaneios linguísticas, e desta vez custava-lhes acompreender como poderia o senhor António Ribeiro encostar-se a razão legal.Acabaram por encolher os ombros: só sabiam o que tinham ouvido contar e issochegava-lhes...Quanto às razões legais, o diabo as levasse... O dono da taberna resignou-se a nãosaber o motivo, o porquê, e em toda a sociedade foi o único que pensou quedeveria existir um porquê. De resto, isso também não lhe importava, mas,enquanto limpava o balcão enxovalhado com um pano mais enxovalhado ainda,ia ruminando que, se a Benedita tivesse consentido em casar com ele, estariaagora na intimidade da família e poderia saber... Era a sua grande dor. Tentaraaquela oportunidade de subir na escala social da terra e falhara.Encostado a uma pipa, onde riscara a giz o preço do conteúdo por litro, otaberneira sonhava, torcendo o trapo, que era como que a insígnia da suaprofissão. E, num repelão de incompreendido, odiou o negócio, o vinho, Benedita,a quinta, quando, de uma mesa onde se jogava a bisca no meio de uma espessanuvem de fumo, alguém reclamou:- Mais uma roda, ti Jaquim!...- Ti Jaquim, hem!... Uma roda mais para aqueles borrachos! E enquanto enchiaos copos ia, mentalmente, misturando veneno no vinho... Ao servir a bebida,

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rebentou na ponta da outra mesa uma questão. Já havia momentos que se discutiaali a competência de dois dos presentes na podagem das oliveiras. Enquanto umteimava que, a não ser a serrote, o corte não ficava bem feito, o outro berrava,vermelho, agitando os grossos punhos, que era capaz de podar uma oliveira edeixar os cortes tão lisos como uma vidraça, e tudo isto a podão...- A podão, ouviste bem? A podão, alma de cântaro!...O outro contravinha: que não, que a serrote era mais seguro e que isso da vidraçaera história... A isto, o do podão perdeu a calma por completo, e, erguendo-se naspernas já trémulas do branco, desafiou o adversário para ir com ele à vinha doPato, ver um corte que fizera há mais de dez anos e que estava ainda tão liso emacio como uma vidraça... E a podão...Saíram os dois da taberna, encostados um ao outro, com todo o ar de quem nãopassaria da esquina mais próxima.O taberneira, aborrecido, entrou de bocejar, e daí a pouco ia empurrando para aporta os últimos fregueses, que, em roucas despedidas, se dispersaram na rua, acaminho de casa. Depois da taberna vazia, voltou para dentro a dar umaarrumadela nos bancos e a limpar as mesas cobertas de nódoas de vinho. Limpouas mãos ao avental molhado e voltou à porta para a fechar. Já tinha corrido osfechos de meia porta quando ouviu, no largo escuro e silencioso, o trote de umcavalo. Afirmou-se na escuridão para ver quem era, mas o cavaleiro poupou-lheo esforço, dirigindo-se para ele. Ao apear-se, entrou no feixe de luz que seprojectava pela porta sobre a praça. Era o doutor Viegas.- Boa noite, Joaquim! Já ias fechar?O taberneira curvou-se:- Boa noite, senhor doutor! Já ia fechar, sim senhor!... Mas cá o estabeleci-mento, para o senhor doutor, está sempre aberto. Faça favor de entrar.O médico entrou e sentou-se, enquanto o taberneira corria a um armário, dondetirou um copo limpo e uma garrafa de vinho do Porto.- O costume, não é, senhor doutor?- Sim, claro, o costume...Quando voltava das suas visitas nocturnas, passava sempre pela taberna parabeber um copo de Porto de 1860, que o taberneira guardava avaramente para aspessoas de posição na terra. Ultimamente, só o doutor Viegas provava do néctar,e os momentos em que ele sorvia regaladamente o precioso vinho eram, para otaberneiro, dos mais agradáveis da sua vida. Sentia-se quase igual a Viegas porter um vinho que os colegas não tinham, um vinho que merecia ser bebido pormédicos. Neste estado de espírito se sentou defronte de Viegas, vigiando-lhe osorriso agradado e a face bem-disposta inclinada sobre o copo, onde o vinho

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cintilava como uma jóia rara.Viegas bebeu um gole lento, saboreador, e perguntou, enquanto pousava o copo:- Então Joaquim, que novidades contas?O taberneira encolheu os ombros:- Ora! Não há novidades... Tudo velho... A não ser aquilo da quinta, que o senhordoutor já conhece, com certeza...O médico surpreendeu-se:- Aquilo da quinta? Qual quinta?...- Qual quinta? Da Quinta Seca, senhor doutor! Ai, o senhor doutor ainda nãosabe?- Eu sei lá o que isso é! Mas o que é que se passa? Há por lá alguém doente?...O taberneira interrompeu. Nada disso. Ao que parecia, o senhor doutor aindaignorava. Pois então, se o senhor doutor desse licença, ele contaria como osfactos se tinham passado, segundo, claro, tinham chegado ao seu conheci-mento.Pela absoluta veracidade da história não se responsabilizava, evidente-mente,sabido como era... Mas ele contaria...E contou. Viegas ouviu-o com atenção, sem interromper, mas, quando eleacabou, respondeu, duvidoso:- Mas que diacho de história é essa que tu tens estado para aí a desfiar? Quem tecontou esses disparates?Ao ouvir classificar de disparate o que tinha ornado das suas mais belas flores deretórica, o taberneira respondeu, agastado:- Disparate? Não me parece que seja disparate!- Quem veio para aqui com isso foram os criados da quinta e eles com certezanão inventaram!...O médico já não ouvia e ruminava:- Ora essa... ora essa...O taberneira juntou:- O senhor doutor está admirado, não?! Olhe que eu também não fiquei somenos!E bem me parece que ali deve haver coisa...- Que coisa?- Não sei... qualquer coisa, compreende, senhor doutor, qualquer coisa que...que...Procurava a palavra, aflito para completar a frase. Olhou o avental molhado econcluiu com um sorriso de satisfação:

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- Qualquer coisa que não transpirou, claro!...O médico gracejou:- Com um calor destes, acho difícil que não tenha transpirado. Bom, amanhã eusei isso.Foi até à porta e espreitou. A Lua começava a erguer-se por detrás do telhado daigreja. A cruz cimeira desenhava-se, negra, no fundo claro do céu. O largo,silencioso, alvejava sob o luar. Viegas esfregou as mãos e disse para dentro:- Bom, eu vou-me embora. Tenho o animal a arrefecer... Boa noite! Obrigadopelo vinho.Montou na égua e partiu a trote. Ao dobrar a curva da estrada, acenou um adeusao taberneira, cuja silhueta aparecia entre as ombreiras da porta. O tendeiroficou por momentos a olhar para fora e resmungou qualquer coisa ao ver amassa branca da igreja avultando entre o casario baixo da praça; o taberneiraera um homem de ideias e ninguém o faria convencer que a igreja valesse maisque as supraditas... E mais: já o dissera na regedoria e ninguém o prendera porisso!...Deu um puxão decidido no avental e fez aquilo a que chamava, vaidoso da frase,fechar a porta na cara da igreja: encerrou a taberna.Depois, lá dentro, deu uma vista de olhos, contemplativamente, peloestabelecimento. A simetria das mesas, as garrafas alinhadas nas prateleirasencheram-no de prazer e orgulho: era aquilo que “dona Benedita” recusara. Poistambém houvera quem aceitasse...Ao aproximar-se da mesa a que se sentara o médico, estacou, admirado: ficaravinho no copo! Então, cuidadosamente, com a aplicação de quem mexe emfragilidades, tornou a vazar para a garrafa o vinho que restara, aquele preciosovinho de 1860, que reservava para as pessoas de posição!Guardou a garrafa no pequeno armário e, depois de um último relance de olhospela taberna, apagou a luz e subiu, às apalpadelas, ao primeiro andar, onde, noleito do casal, já dormia a sono solto a co-proprietária do estabeleci-mento. Otaberneira despiu-se depressa e deitou-se. Virou prosaicamente as costas àmulher e daí a pouco adormecia...Entretanto, pela estrada que o conduzia a casa, Viegas moderava o trote da éguaaté ao passo. E atravessando os olivais enluarados e silenciosos, ia cismando nascoisas extraordinárias que o taberneira lhe contara. Que história seria aquela daexigência de metade da propriedade? Era evidente um disparate, uma invençãosem pés nem cabeça.Ao chegar ao sítio onde devia largar a estrada para atravessar o rio a vau, aindapensou em ir à quinta, dando depois a volta para casa, pela ponte, mas acabou

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por encolher os ombros com indiferença e obrigou o animal a entrar na água. Naoutra margem, os salgueiros formavam uma muralha negra, que se alongavasempre da mesma altura, como se fosse aparada à tesoura, e projectava, quaseaté metade do rio, as pontas flexíveis dos ramos mais novos. De espaço a espaçoum choupo elevava-se para o céu, torcido e esgalhado, e ficava lá em cima como topo brilhando ao luar, oscilando ao impulso do vento leve. Entre as patas daégua, que atravessava o rio, a água passava rumorejando, em bolhas de ar, queseguiam na corrente, até adiante, debaixo da sombra das árvores, onderebentavam.No outro lado, a égua sacudiu-se, num estremeção de todos os músculos,agitando a cauda farta sobre os flancos. Viegas parou o animal no cimo daribanceira e ficou-se a olhar o campo raso que se estendia em frente, banhado daclaridade leitosa do luar, rasgado em sombras negras nos sítios onde cresciamárvores. Havia uma paz imensa em toda a terra em redor.

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XVI No dia seguinte, o trabalho na quinta recomeçou à hora habitual. Na eira, osmesmos braços da véspera atiraram ao ar o trigo, que se ruborizava na claridadedo amanhecer. Os mesmos bois puxaram os mesmos carros, com a mesmainfinita paciência e a mesma suprema força. Um vento igual soprou nos ramosdas acácias que bordavam a alameda e os ramos oscilaram com o mesmo vagare o mesmo rumorejo.Dentro de casa, porém, andava na atmosfera qualquer coisa de estranho, dediferente. Havia no ar como que um rumor surdo de batalha, uma trepidação deesforços contrários, uma expectativa ansiosa, que aguardava não se sabia o quê.Naquela casa, cheia de mulheres, ia um fervilhar invisível de suspeiçõesdiscretas.A noite fora, para Maria Leonor, outra longa e persistente insónia. Mas desta veznão eram o remorso e a vergonha que lhe roubavam o sono. Procuravareconstituir, friamente, o que se passara, e de deduzir, daí, o futuro, arquitectar asua linha de conduta em relação a toda a gente: filhos, criados, amigos... Via comclareza que nada tinha a recear a respeito de qualquer indiscrição: ocomportamento de Benedita, a sua preocupação em explicar tudo, a convenciamdisso. Assim, restava-lhe apenas manter lá bem no fundo da sua falta, onde nãochegassem nunca as recordações, tudo o que fora a origem daqueles diaspavorosos. Surpreendia-se ao sentir-se vagamente cínica: a sua incapacidadepara sofrer mais embotara-lhe a sensibilidade até à indiferença. Quando selevantou, tinha o semblante sereno e o olhar límpido, pacificada e segura de siprópria, como se detivesse nas mãos, para todo o sempre, as rédeas queconduziam o seu destino.Depois de proceder a uma toilette sumaria, desceu ao rés-do-chão. No caminhocruzou-se com Teresa, que subia. Ao mesmo tempo, pela porta, escapava-se,rápido, um vulto de homem. Maria Leonor sorriu, complacente, e respondeu àsaudação da criada. Era o amor vivo que trazia sempre, à vista um do outro,Teresa e o namorado. Não podia deixar de ser assim: aquilo, a procura constantedos sexos, era velho como a vida, mais velho ainda do que a própria vida, porqueo anseio amoroso deveria ter existido, completo e definido, nos desígnios dacriação, do princípio.Enquanto assim desenvolvia no espírito aquele início de uma filosofia do amor,Maria Leonor acabou de descer a escada e caminhou rapidamente até à porta.Ao chegar lá, aspirou, deliciada, o ar fresco, fino como uma agulha, e olhou aquinta na sua frente por entre os troncos das acácias.Demorou a vista, um pouco, no pedaço da eira que via dali e voltou para dentro.

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Da sala de jantar vinha um ruído de chávenas e talheres. Hesitou antes de entrar:sabia que lá dentro ia encontrar Benedita, estar com ela a sós pela primeira vez,desde a partida do cunhado. Retesou-se toda numa energia decidida, tentandosubjugar a fraqueza. Ao chegar à porta, ouviu um estilhaçar de louça. Furiosacom o estrago, irrompeu na sala, esquecida já da sua cobardia.Benedita, no topo da mesa, olhava aborrecidamente um pedaço de uma chávenaque segurava nas mãos; o resto espalhava-se no chão, em mil bocados. Ao ouvira ama entrar, pousou o fragmento que lhe restava em cima da mesa, e aguardou,de olhos baixos.Maria Leonor, numa agitação insofreável, quase gritava:- Parece-me que é preciso ter mais cuidado com essas coisas! Não te parece, ati?Pelo rosto de Benedita passou a sombra de um sorriso e logo o pânico começou ainvadir a alma de Maria Leonor. Inteiriçou-se no esforço de resistir ao medo quese apossava dela, e continuou:- Não posso admitir que estragues coisas tão caras, só porque tens de lhes mexer!Perdia a cabeça. Sentia-se afundar à medida que falava. As frases que ia atirarao rosto da criada perderam-se num murmúrio. Depois, foi o que ela maisreceava de tudo, foi o silêncio. E o mesmo sorriso, apenas esboçado, perpassounos lábios de Benedita. Era um sorriso calmo e seguro, um sorriso de quem tem aconsciência da própria segurança.A criada baixou-se e começou a apanhar do chão os bocados de porcelana. Foisó quando os tinha recolhido todos que respondeu, enquanto os alinhava em cimada toalha:- A senhora tem razão! Peço-lhe que me desculpe. Farei o possível para que istose não repita...Seria uma insinuação? Haveria outro sentido naquele “farei o possível para queisto se não repita”? Maria Leonor de novo se sentiu acobardada, de novo o medoentrou nela, empolgando-lhe o coração. E sem poder falar, com a gargantaapertada, saiu da sala. Lá dentro tomou a ouvir-se o mesmo ruído de talheres elouças que se dispunham para a refeição da manhã. Tudo normal, tudo dentro doque já conhecia, tudo igual ao que o dia-a-dia da sua existência a habituara, tudomenos aquela sensação de isolamento, de insegurança...E de súbito veio-lhe uma vontade grande de voltar ao pé de Benedita, de contar-lhe as suas torturas, de pedir-lhe esquecimento e consolação. Sorriu comdesalento. Encaminhou-se para uma poltrona e acomodou-se, suspirando.Estranha na sua própria casa, eis como se sentia. E, medrosa de se encontraroutra vez com Benedita, deixou-se ficar sentada, esperando que os filhos

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descessem.Com as mãos cruzadas no regaço, esquecia-se nos seus pensamentos, quando umrumor de passos à entrada a fez levantar os olhos. Viegas entravaapressadamente, e não vendo logo Maria Leonor, quase escondida na penumbrado vão da escada, passou os olhos em redor, investigando.Ao vê-lo caminhar para a sala de jantar, Maria Leonor, de um salto, ergueu-se:- Bom dia, doutor!O médico voltou-se, franzindo os olhos míopes.- Ah, estavas aí! - e mudando de tom: - Então, bom dialFoi até junto dela em três passadas rápidas e perguntou bruscamente:- Ouve cá, que história é essa que me contaram ontem, a respeito de António?Maria Leonor recuou um passo, como se tivesse apanhado um soco em plenopeito, e empalideceu. Abriu muito os olhos para o médico e tentou sorrir:- História?! Mas deve ser o que toda a gente sabe... A propriedade...Viegas enfiou as mãos nas algibeiras e cortou, decidido:- Não acredito!Maria Leonor recuou mais até à poltrona. E, como se as forças lhe tivessemfugido subitamente, deixou-se cair nela. O médico avançou de novo e inclinou-separa diante até pousar as mãos nos braços da poltrona. E repetiu, mais baixo:- Não acredito!...Fechada no círculo vivo dos braços do médico, Maria Leonor não podia fugir. Eentão, corajosamente, inclinou-se para trás e mostrou o rosto angustiado. Osolhos de Viegas debruçaram-se, ansiosos, e correndo dos lábios crispados, pelasfaces pálidas, até aos olhos dela, ali mergulharam, ávidos. No desvairamentodaquele olhar de animal perseguido, nas lágrimas que come-çavam a surgirentre as pálpebras, viu a verdade. E, na sua estupefacção, só pôde murmurar:- Como pudeste, Leonor?...Um soluço angustiado lhe respondeu. Dentre as lágrimas, por detrás das mãosque lhe tapavam a face envergonhada, Maria Leonor balbuciou:- Não houve nada... não houve nada...A voz era um murmúrio cansado, um som prestes a extinguir-se, e todo o seucorpo tremia num arrepio febril, que lhe entrechocava os dentes. O médicoergueu-se, olhou-a por momentos, calado, e, depois, dando passos vagarosos pelasala, disse, como se fosse tendo o pensamento à medida que falava:- Mas, Leonor, eu não posso compreender isto... Vejo nos teus olhos, em todo o

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teu aspecto de aniquilada, uma verdade horrível, em que não quero acreditar.Diz-me, por caridade, o que se passou? Mas diz, fala!...Maria Leonor debateu-se no fundo da velha poltrona contra os soluços que asufocavam, e numa crise de choro que a fazia tartamudear como uma imbecil,repetiu:- Não houve nada...Viegas impacientou-se e foi num arremesso irritado que atirou:- Nada ou tudo?Ela levantou-se, direita como a lâmina de uma espada, com todo o sangue norosto, e ia responder, violenta, mas logo a mesma humildade, o mesmosentimento de culpa lhe baixaram a voz, cobardemente:- Não, doutor, juro-lhe que não houve nada...Baixou a cabeça e, como se todo o pudor a abandonasse, continuou:- Não houve nada... A Benedita apareceuO médico, sob o choque, quase se agachou. Diminuiu a voz:- Mas a Benedita sabe? Viu?Maria Leonor encolheu os ombros com desalento:- Não sei... Não viu, mas é como se tivesse visto, tão estupidamente eu procedi.Insultou-me, bati-lhe... E foi ela quem inventou a história da proprie-dade!- Para quê?- Não sei... Finge que ignora, fala-me como antigamente, mas parece-me umfantasma... Sinto que a minha vida está nas suas mãos, que terei de submeter-meaos seus caprichos!O médico sacudiu os braços, furioso:- Irra! Mas que disparate é este? Isto é um absurdo, é uma história inventada porvocês para darem comigo em doido! Ouve cá...Interrompeu-se: a porta da sala de jantar abrira-se lentamente e por ela saíaBenedita. Maria Leonor estremeceu ao vê-la e olhou para o médico. Viegasfranziu as sobrancelhas e ficou-se a olhar para a criada, que atravessava a sala,silenciosa e indiferente. Apenas ao roçar o ombro do médico murmurou um“bom dia, senhor doutor!” quase inaudível, e desapareceu atrás de um reposteiro.O médico riu, nervoso:- Não há dúvida, é um fantasma! Um fantasma a que me apetecia quebrar umacostela para lhe medir a sensibilidade! No fim de contas, que quer ela?- Já lhe disse: não sei!... Acaba por ser-me indiferente, mesmo! A mim é que o

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doutor não conseguiria medir a sensibilidade; estou farta, tenho desejos de fugir,de desaparecer!...Exaltava-se. Os olhos brilhavam com um fulgor louco e as mãos, crispadas nosseios, pareciam garras. O médico inquietou-se e puxou-a um pouco para si:- Sossega, Maria Leonor... Subamos lá acima, vamos conversar.Levou-a, impelindo-a suavemente à sua frente, e subiram a escada. Quandovenciam o último degrau, ouviram no fundo do corredor um grulhar infantil e unspassos precipitados. Eram Dionísio e Júlia que saíam dos quartos com Teresa.Maria Leonor correu para uma porta aberta e escondeu-se. As crianças, agoraperto da escada, palravam com o médico:- O senhor doutor viu a mãezinha?Viegas mentiu:- Não. Ando à procura dela. Mas vão almoçar que, logo que a encontre, mando-air ter com vocês...Júlia desceu com a criada, mas Dionísio, depois de espreitar a irmã, já no andarde baixo, segredou:- O senhor doutor, quando é que eu vou para Lisboa?O médico sorriu e respondeu, enquanto afagava a cabeça do rapaz:- Vais este ano... quando acabarem as férias.Em baixo, Júlia, de cabeça erguida, esganiçava-se a chamar pelo irmão:- Nísio, vem almoçar!O pequeno irritou-se e gritou, debruçando-se no corrimão:- Já vou! Estou aqui a falar de coisas importantes... - voltou-se para o médico econtinuou, interessado: - Bom! E que vou eu ser?- Não sei, Dionísio. Vais estudar e que saibas muito, quando já fores um homem,escolherás.- E posso escolher o que quiser? O meu livro diz que nos somos sempre o quequeremos. E verdade?Viegas sorriu, enternecido:- Às vezes, Dionísio!... Às vezes, é assim. E tu, o que escolhes?O rapaz , embaraçado, encolheu os ombros e respondeu:- Ainda não sei. Quer dizer, eu sei, mas é uma coisa muito complicada...No rés-do-chão, Júlia chegava ao limite da paciência.E ameaçou:

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- Vou contar até cinco! Se não desceres, como sozinha!O irmão hesitou. Ia continuar a falar, mas a voz dela subia pela escada,impaciente:- Um, dois, três, quatro...Dionísio atirou-se pela escada abaixo:- Pronto! Não contes mais! Já cá vou!...Quando acabou de descer, voltou-se para o médico e informou, pesaroso:- Bem, deixe lá, senhor doutor, eu depois digo...- Pois sim, vai almoçar.A porta da saleta onde Maria Leonor se refugiara abriu-se.- Já lá vão? Ao que eu cheguei: ter de fugir dos meus filhos. Vamos para aqui!Viegas entrou e, quando ambos se sentaram defronte um do outro, puxou docachimbo, que acendeu, e ordenou:- Conta.Ela suspirou, passou as mãos pelos olhos para enxugar duas lágrimas e começou:- Quisera neste momento não sentir vergonha, nem pudor, para lhe poder falarcom a frieza que eu desejaria. Mas não pode ser assim. Preciso de qualquercoisa que me dê a certeza da minha mesquinhez: olhe, doutor, vá ao escritório,peço-lhe, e traga... traga Os Primeiros Princípios de Spencer...O médico levantou-se e saiu. Voltou daí a momentos com o volume e, quando oentregou, inquiriu:- Para que o queres tu?- Quero sentir que, no fundo, isto vale, desde que eu mantenha a serenidadesuficiente para não deixar de pensar na grandeza esmagadora do Universo.Quero sentir-me íntima, idêntica à fêmea irracional que atraiçoa pela primeiravez o macho preferido, já depois dele morto... Sei que é impossível sentir-medeste modo, mas, se o não consigo, um pouco que seja, não poderei chegar aofim!Apertou com força o livro contra o peito e continuou:- É simples. Tudo isto é simples e claro, duma simplicidade e duma clarezanaturais... Uma mulher, um homem, a chispa que salta, a razão que se encadeia,e é tudo... Quando sucedeu, achei-me reles, baixa como a lama, abjecta comoum escarro, pensei que não podia viver mais. Depois, acalmei-me, concluí quenão agira propriamente como mulher, como representante de uma espéciedistinta e superior, em que a posse animal foi adornada, crismada, enfeitada depalavras lindas, que a tornaram apresentável, capaz de não ofender os ouvidos

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mais castos e os sentimentos mais puros: eu procedera como a fêmea pré-histórica, que se embrenhava no mato, berrando, ciosa pelo macho, e que seespojava depois na terra fecunda e negra. Eu era joguete das forças naturais dosexo, as mais misteriosas forças da vida, que são o anseio íntimo para aimortalidade dos deuses. Foi pensando isto que me acalmei: desde que fora tudoconsequência duma causa de que me não era possível defender, sentia-meirresponsável como o cavalo que alguém guia para um abismo. Não me cabiaresponsabilidade na queda, alguém me impelia, alguém me guiava...Aqui, suspendeu-se um instante, olhou para o médico, que a escutava, atento eimpassível, e observou:- Creio que sei o que está pensando. Desde o histerismo até à loucura, já admitiutodas as hipóteses, não é verdade?...Viegas acenou:- Não, estou a instruir-me, simplesmente...- Sou, então, um objecto de estudo?- Até aqui, és. Continua...Maria Leonor perdia a serenidade. Mordeu o lábio inferior, tentando reprimir otremor convulso do queixo, e prosseguiu:- Tudo se recomporia se a consciência daquela irresponsabilidade se mantivesse,e eu sabia que tal era impossível. Há pouco, senti de novo a minha abjecção, aaltura da minha queda. A Benedita tem um olhar perfurante, que vasculha o maisescondido da minha alma. Tudo o que eu laboriosamente procurei reconstruir,esta teoria da fatalidade, desaba com um fragor horrível que me endoidece. Nãoresisto a esta perseguição, doutor! Eu morro!O desespero das últimas palavras extinguiu-se no ar e, por longos momentos, osilêncio ocupou a saleta. Viegas soprava nuvens de fumo, enervadamente, eMaria Leonor, com o livro aberto nos joelhos, folheava-o, enquanto tentavaestancar as lágrimas.Súbito, o médico, num impulso irritado, atirou o cachimbo ao chão, estilhaçando-o. Levantou-se e foi até à janela, praguejando em voz baixa. Depois voltou eacercou-se de Maria Leonor. Inclinou-se para ela:- Morres, hem?... Ora, não digas disparates! Quem é que fala aqui em morrer? Avida é dos vivos e não dos mortos, que não servem para outra coisa senão paraestar mortos e para atropelar os que vivem. Não fazemos mais que lidar comfantasmas e só não lidamos com esqueletos por simples repugnância. Admiro-me como ainda não chegámos ao extremo de guardar os nossos mortos emarmários envidraçados providos de rodas, para nos acompanharem por toda aparte, a fim de que o defunto não perdesse nenhum dos nossos movimentos.

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Mesmo assim, temos sempre ao lado um espectro qualquer, tão inevitavelmenteagarrado a nós como a própria sombra, e é a ele que sacrificamos tudo, porque,em primeiro lugar, é preciso não o ofender, ainda que isso nos custe sofrimentosinenarráveis!Maria Leonor aproveitou a pausa para dizer num tom de voz neutro e semexpressão:- O doutor, lá em baixo, indignou-se, e agora quase aprova...O médico corou, hesitando, mas respondeu:- Não aprovo! Mas, entendamo-nos!... Lá em baixo falou a surpresa pela boca doconvencionalismo rígido da moralidade habitual; aqui fala o homem naturalperante o facto natural... Esperavas agora que te censurasse, não é verdade?Neste momento pregam-se por esse mundo fora dezenas de sermões execrandoo teu pecado, escrevem-se dezenas de livros em que se prova por a+b que umaacção dessas tem como remate necessário as penas do Inferno. E depois de tudoisso, ainda querias que te censurasse? E quem há-de defender-te? Deus?Maria Leonor teve um gesto de fadiga e murmurou:- Ele defendeu uma mulher da lapidarão...Viegas encolheu os ombros:- Isso foi há dois mil anos! Deixa-te de misticismos. Nem agora se lapidammulheres, nem Cristo anda no Mundo...De novo o silêncio voltou. Na saleta só se ouviam soluços abafados e um rangerde botas em passos inquietos.Maria Leonor ergueu-se custosamente da cadeira e foi até ao médico. Viegasparou e ambos ficaram imóveis no meio da sala, olhando-se. O aspectoamarfanhado de Maria Leonor, o seu rosto desfeito, as profundas rugas - que lhedesciam das asas do nariz até às comissuras dos lábios - comoveram Viegas.Segurou-a pelos ombros e puxou-a para si, com ternura. E, com a cabeçaencostada ao seu ombro, foi dizendo, baixinho, insinuando:- Isto não pode continuar assim, Maria Leonor! Tu deves reagir, deves levantarbem essa cabeça infeliz e, mais do que tudo, deves dominar esse nervosismo quete apoquenta constantemente. Ainda que te reconheças culpada, não pode isso sermotivo para te deixares vencer na luta que és obrigada a travar com o destino.Conduziu-a de novo para a cadeira e sentou-se também. Depois inclinou-se paraa frente, apoiando os cotovelos nos joelhos, e continuou:- Lembro-me de que quando estiveste doente te disse qualquer coisa que tambémpoderia repetir agora. Mas é inútil. Tu recordas-te com certeza... A situação nãoé a mesma, mas as causas são idênticas.

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- Bem sei. Não precisa repetir-mo, eu lembro-me: é preciso viver de qualquermodo, embora, desde que seja viver! - e num assomo de raiva: - Mas é tão duro,tão contra a ideia que se faz da finalidade da vida, que penso se não seriapreferível a morte!Viegas retorquiu, docemente, como se falasse a uma criança:- Não, morrer, não! Só quem nunca viveu, ou já viveu de mais, pode desejar amorte...- Eu já vivi de mais!- Louca! Mas nós nunca vivemos de mais! Todos, quando morremos, vamosainda demasiado ignorantes para poder deixar dito ou escrito que vivemos demais. Vive-se sempre de menos... A Natureza só é pródiga, excessiva, para o quenão pode ser destruído. Para nós é duma avareza mesquinha, que faz pagar bemcaras as poucas migalhas que nos atira com desdenhosa complacência! Apesarde tudo, nós continuamos, e ainda há-de ver-se quem é que ganha a batalha...Maria Leonor, que o ouvira com um sorriso triste e comovido, respondeu:- Se formos nós, lá teremos de emigrar para os astros...Viegas retorquiu, animando-se: se estiver esgotada de tudo, quando do solo já nãosair mais que ossos e pedras, restos de gerações e civilizações, os outros, osfuturos, deixem o cadáver inútil deste planeta para procurar novos lares noinfinito? Eu admito isto como possível e só lamento não participar neste final deacto senão com uma costela esburgada, cravada no chão ao lado duma pedra doParreiral!Um meio sorriso entreabriu os lábios de Maria Leonor, que levantou para omédico o rosto enxuto, onde sinceramente no que acabou de dizer?- Creio.- Pois eu tenho ideias diferentes acerca disso a que chama final de acto. Pensoque a humanidade futura não terá meios, nem possibilidades, nem forças, parafugir ao seu destino de vencida. E então, o final do acto será a Terra continuandoa girar no espaço levando no dorso um carregamento de cadáveres até que oempresário se resolva a tirar a peça da cena.Viegas encolheu os ombros, sorrindo. E lembrou:- Podemos apostar!...Ela franziu a testa, surpreendida com a proposta:- É engraçado!... Mas apostar, como?- Como? Ora, como!... Visto que, conforme todas as aparências, não serápossível chegarmos ao momento que corresponda à realização, quer da minhaquer da tua hipótese, transmitiremos a quem continue a viver depois de nós o

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encargo de cumprir a aposta ou de a transmitir, por sua vez, a quem o siga naescala. Combinado?- Combinado!- Eu escolho... quem há-de ser?!... escolho o João, o meu sobrinho!- E eu, o Dionísio!Levantaram-se sorridentes e apertaram-se as mãos, firmando a aposta risonha.Mas, de repente, Maria Leonor lembrou:- Mas, ó doutor, o que é que nós apostámos?Viegas coçou a cabeça, embaraçado:- Ó diabo, que me esqueceu isso! Que há-de ser, então?Maria Leonor pôs o livro em cima de um banquinho e disse:- É melhor deixar a aposta sem objecto. Os últimos que decidam...- E a melhor solução, de facto! Os últimos que decidam...Houve um momento de silêncio, que Viegas interrompeu quando tirou o relógioda algibeira do colete:- Dez horas! Bonito, sim senhora! E eu aqui a tagarelar e essa gente toda à minhaespera... É a primeira vez que tal me sucede!Com um gesto triste, Maria Leonor respondeu:- Foi a primeira vez, de há quarenta e oito horas, que me esqueci de mim própria.E foi pena que me tivesse lembrado assim...O médico baixou-se para apanhar os restos do cachimbo. Quando se levantou,guardou-os numa algibeira e pegou na mão direita de Maria Leonor. Apertou-acom força, aconchegando-a toda entre os seus dedos grossos e fortes, emurmurou:- Coragem, Maria Leonor! Precisas de muita coragem e é necessário que aconsigas. Eu vou-me embora já, mas, se isto te pode servir de alguma coisa, ficapensando que estou a teu lado e que sou teu amigo!Uma onda de gratidão trouxe lágrimas aos olhos dela, que só pôde balbuciar:- Oh, doutor!...Saíram para o patamar e, ali, o médico despediu-se:- Adeus, menina! Levanta-me essa cabeça, olha de frente, não tenhas medo deninguém! - e mudando de tom: - Se eu vir os garotos, posso dizer-lhes que teencontrei e que não te demoras?- Pode.Viegas desceu, quase a correr. Quando chegou lá a baixo, acenou para Maria

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Leonor, que lhe respondeu, apoiada ao corrimão.Depois de ele ter saído, ali se deixou ficar, absorta em funda meditação, com orosto impassível, os olhos baixos, fitando os degraus. Ia descer, por fim, quandoviu Benedita aparecer no rés-do-chão e começar a subir.A criada vinha devagar, a cabeça curvada, sem olhar para cima. Ao lado deMaria Leonor havia uma coluna de madeira torneada, onde repousava umgrande vaso de louça com uma aspidistra cujas folhas erectas pareciam lanças.Um pensamento rápido lhe passou pela mente: era tão fácil empurrar o vaso,fazê-lo cair sobre a criada!Justamente naquele instante, Benedita subia os degraus por baixo dela. E vinhatão devagar, tão lenta, que parecia esperar a queda do vaso sobre a cabeça, umgolpe tremendo, que lhe abriria o crânio como um melão maduro.Mas o vaso não caiu e Benedita continuou a subir.Estava agora diante da ama, num plano mais baixo, e parecia surpreendida porvê-la naquele lugar. Maria Leonor fazia um esforço sobre-humano para nãofugir e encarar a criada. Obrigou-se a ficar ali, agarrada ao corrimão, vendo orosto de Benedita aproximar-se. E enquanto os ouvidos lhe zuniam e a cabeçavacilava, ainda encontrou forças para perguntar:- Onde estão os meninos?Benedita, que ia já adiante, voltou-se para responder:- Foram para a quinta, depois do almoço. Perguntaram pela senhora, disse-lhesque estava com o senhor doutor Viegas e que não podia atendê-los. E a propósito,minha senhora, que veio cá ele fazer?Maria Leonor exaltou-se, irreflectida:- Que te importa isso? Que tens que ver com a minha vida? Quem é aqui dentro asenhora, tu ou eu?O rosto de Benedita escureceu como se lhe tivesse passado por diante umanuvem. As pálpebras bateram, rápidas, e juntaram-se numa frincha, por onde aspupilas espreitaram, fixas e duras.- Nada tenho que ver com a vida da senhora, seja ela qual for. E não pretendo,também, ser a dona da casa. A minha pergunta foi natural e não esperava que asenhora me falasse dessa maneira.Pronunciou estas palavras sem que a voz se lhe alterasse. Dir-se-ia recitar umalição. O seu olhar, fito no da ama, parecia traspassá-la de lado a lado e ir perder-se, indiferente, na parede fronteira.Diante do olhar de Benedita, Maria Leonor sentiu-se transparente como cristal.Todos os sentimentos lhe afloravam na pele para que ela os considerasse e

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apreciasse.Deu dois passos no patamar e sentou-se numa cadeira. Benedita seguiu-a e ficoude pé, dominando-a com a sua alta figura. Maria Leonor esteve um momentosilenciosa, e depois, tomando uma inspiração funda, perguntou:- Afinal, que queres tu de mim?Perante aquele ataque directo, Benedita recuou, surpreendida. Enquantoprocurava uma resposta ou meio de escapar a ela, Maria Leonor voltou à carga,mais segura:- Que intenções são as tuas? Não respondes?O silêncio de Benedita continuava e Maria Leonor sentia que estava a ponto deganhar a sua primeira batalha naquela luta que durava há dois dias. Com umsentimento de desafogo e de evasão, continuou:- Eu sei o que posso esperar de ti, mas, se temos de ser inimigas até ao fim davida, prefiro que o declaremos já! - levantou-se e pronunciou com força: - Euodeio-te!Benedita levou uma das mãos à boca para reprimir um grito. Os olhos abriram-se-lhe espantados, deixando brilhar duas lágrimas.Murmurou baixinho, numa voz que tremia: - Eu adorava-a, minha senhora!...Logo voltou as costas e desceu as escadas, a correr.Maria Leonor apertou a cabeça entre as mãos, estupefacta, ao passo que asegurança que a sua vitória lhe dera se esvaía e dispersava como fumo ao vento.E achou-se a repetir para si, estupidamente: “Eu adorava-a, minha senhora!”Tudo se embaraçava cada vez mais e o que fora, primeiro, apenas um escândaloabafado, tornara-se agora numa guerra aberta e declarada entre as duas. E foraela, a que mais precisava de esquecimento e de tolerância, quem derrubara oúltimo muro. O seu golpe fora vibrado, com a força do desespero, a matar, masa resposta viera, certeira e bem mais contundente. Aquele “adorava-a” deixavaa perder de vista o seu clássico “odeio-te”. Sentia quão limitado fora o seuespírito ao sugerir-lhe aquela frase gasta e incolor, batida pelo uso constante dasinimizades humanas.A própria fuga de Benedita não representara uma cobardia, mas a benevolênciade quem sabe, de quem pode, mas não quer fazer valer o seu conhecimento e oseu poder.

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XVII A tarde, estava Maria Leonor na sala de jantar, sentada perto da janela,bordando, enquanto os filhos, debruçados na comprida mesa, folheavam emsilêncio um maço de revistas antigas, quando Benedita entrou trazendo numasalva o correio.Maria Leonor levantou os olhos do bordado quando a criada parou junto de si eestendeu a mão distraída para as cartas e para os jornais. Espalhou-os no regaçoe ia fazer um gesto a despedir Benedita, quando reparou no remetente de umadas cartas: António Ribeiro, Avenida dos Aliados, Porto.Tremeu. Olhou para a criada tentando distinguir-lhe no rosto impene-trávelqualquer expressão. Teria ela visto?Enquanto procurava tranquilizar-se com o pensamento de que a carta lhe teriapassado despercebida, ia escondendo o sobrescrito debaixo dos jornais. Mas, derepente, pelo tacto, sentiu-o aberto a todo o comprimento. A carta fora aberta! E,para escárnio supremo a criada trouxera-lha assim, como se lhe gritasse quenada podia fazer, pensar ou sentir, sem que a sua atenção e a sua presença avigiassem.Maria Leonor agarrou o sobrescrito num repelão e, sem o olhar, rasgou-o empedaços. Depois, encarando a criada de frente, depô-los na bandeja vazia.Benedita vacilou um momento, mas logo saiu, levando os restos da carta.Assim que o reposteiro se imobilizou, Maria Leonor pôs-se de pé e dirigiu-se àmesa onde os filhos se entretinham ainda a ver as estampas coloridas dasrevistas. Sentou-se no meio deles, tremendo, como se procurasse um refúgio.Quando colocou as mãos sobre os ombros das crianças e se debruçou com elaspara as ilustrações, teve a sensação de um regresso a si própria, como se tivesseandado, até ali, por muito longe, fora dos caminhos onde se encontram as íntimasafeições. Olhando os dedos curiosos de Dionísio, que seguiam o contorno sinuosode uma figura de elefante que suportava na tromba arqueada um grosso barrote,desejou poder ficar para sempre ali sentada, percebendo as respirações calmasdos filhos, descobrindo nos seus olhos claros e transparentes a pureza sem máculadas virgindades intangíveis e completas.Demorava-se, assim, naquele sonho, com os olhos pregados na superfície luzentedas páginas da revista, quando Dionísio, saltando da cadeira e indo encostar-se-lhe aos joelhos, perguntou:- Mãezinha, quando eu for a Lisboa, vai também comigo?- Vou, com certeza!O pequeno insistiu, com o interesse de quem pretende ver resolvida uma dúvida

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importante, de que depende uma decisão grave:- Mas fica lá?- Ficar lá?! Não, isso não, Dionísio... Como queres que eu fique lá? Eu não possolevar a quinta comigo! Ou posso?...Dionísio entristeceu:- Claro que não pode... E a Júlia também fica em casa?- Evidentemente.- Então eu fico sozinho, sem ninguém?A mãe sorriu, carinhosa. Recostou-se no espaldar da cadeira e puxou os filhospara si. E enquanto enrolava nos dedos um dos caracóis louros de Júlia, que se lheencostara ao ombro, foi dizendo para Dionísio, fitando-o bem nos olhos:- Eu já devia ter-te falado nisto... Tu não ficas sozinho, Dionísio: vais ter umcompanheiro da tua idade para os teus estudos e para as tuas brincadeiras, serásbem tratado com certeza, tão bem ou melhor do que em casa, e, além disso,virás passar à quinta todas as tuas férias... O Natal, as férias grandes, tudo,enfim...O pequeno não se convenceu:- Mas eu não posso ficar lá sem a mãezinha, sem a Júlia, sozinho!- Não ficas sozinho, já te disse... Tens de acreditar que nem só eu e a Júlia somosteus amigos. Deves começar a ver outras pessoas, outras caras, deves, com osteus olhos, descobrir que o mundo não é só a Quinta Seca, nem o parreiral, nemMiranda. E se queres ser alguém quando crescido, não podes continuar sempredentro destas paredes...Dionísio abanou a cabeça. Não se convencia da necessidade daquela separação eas palavras da mãe deixavam-no indiferente. E acabou por dizer:- Assim, não quero ir!Maria Leonor zangou-se:- Ora essa! Não seja tolo menino! Bem vê que não pode deixar de ir.A boca de Dionísio tremeu. Por simpatia, Júlia, do outro lado, tinha já as lágrimasnos olhos. E era ela quem murmurava enquanto o irmão se encolhia de encontroà beira da mesa:- Ó mãe, não se zangue...Reconsiderando, Maria Leonor chamou de novo o filho e, com entoações meigasna voz, acariciando-o, persuasiva, foi dizendo:- Tu tens de compreender, Dionísio. Devemos trabalhar, a vida está feita assim,

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não podemos ter sempre onze anos... Quando somos crianças, tudo vai bem, háquase sempre quem trabalhe para nós, mas, depois, não é possível viver sem onosso próprio trabalho, sem o nosso esforço. Se formos ignorantes ou sesoubermos pouco, achamo-nos em má posição em relação aos outros. Ora, tunão queres ser menos que os outros, não é verdade?Dionísio abanou a cabeça com força e a mãe continuou:- Ora aí está! Para que tal não suceda, é preciso estudar, aprender, trabalharmuito... E é para isso que vais estudar para Lisboa. Enquanto lá trabalhas eaprendes, eu aqui esforço-me também para que esta casa possa continuar a sernossa. Compreendes?A cabeça baixa, as mãos cruzadas atrás das costas, Dionísio ouvia aquelaprelecção sobre as suas responsabilidades futuras. E ainda que não acreditasseem tudo o que a mãe dissera, respondeu:- Compreendo, sim, mãezinha!- Ora ainda bem... Então, quando acabarem as férias, iremos os três a Lisboa,valeu?Júlia bateu palmas, radiosa, e Dionísio, embora com um sorriso descorado,também aplaudiu. A mãe levantou-se, abriu uma gaveta do guarda-louça, dondetirou uma toalha, que estendeu em cima da mesa.- Vamos ao chá!Voltou-se para o filho e acrescentou:- Os estudantes não devem beber chá! Faz-lhes mal... Mas uma vez...Sabia que as crianças são sensíveis à lisonja como os adultos e aquela meiarecusa era bem uma lisonja. Dionísio também o sentiu porque o sorriso alargou-se-lhe mais, numa precoce consciência da sua importância.Pela sala ia quase uma azáfama de festa grande. Júlia, nos bicos dos pés, sobreuma cadeira, tentava retirar o açúcar da prateleira e Dionísio compunha aschávenas e os pires na toalha branca, que caía das abas da mesa empanejamentos fundos e largas pregas. Tudo estava pronto: faltava apenas o chá.Maria Leonor tocou a campainha. Esperou uns minutos e tocou de novo, commais força. Por fim, apareceu Teresa, limpando as mãos molhadas ao avental.- Onde está a Benedita?A criada encolheu os ombros:- Não sei, minha senhora. Saiu, mas não disse aonde ia...- Ora essa! Mas quem deu à Benedita a liberdade de sair sem mais nem menos?Eu preciso de chá.

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- Vou tratar, minha senhora. Mas da Benedita...Maria Leonor interrompeu:- Pronto, não se fala mais na Benedita! Vai fazer o chá.A criada saiu a correr, desapertando as fitas do avental. Maria Leonor sentou-seà mesa, nervosa, batendo com a colher na beira do pires. As crianças sentaram-se-lhe ao lado. Após uns momentos de silêncio, Júlia inclinou-se para a mãe eaventurou:- A mãezinha está zangada com a Benedita?- Zangada? Por que dizes tu isso?- Pareceu-me...- Não sejas tonta! Por que havia eu de estar zangada com a Benedita?No outro lado da mesa, Dionísio, que mastigava uma fatia de pão, interrompeu-se para dizer, com a boca cheia e os lábios luzidios de manteiga:- Eu já não gosto dela!Maria Leonor calou-se. E foi Júlia quem perguntou:- Não gostas da Benedita, porquê?- Ela disse mal do tio António... Ainda esta manhã...Maria Leonor levantou a cabeça, inquieta:- Que foi que ela disse esta manhã?- Que lhe tinha rogado uma praga e que, se ela lhe caísse, o tio nunca mais teriauma hora feliz em toda a vida.- Ela disse isso?- Pois disse!Voltando a cabeça para o lado, Maria Leonor reprimiu as lágrimas. Mexeu nachávena que tinha diante de si e só respirou, aliviada, quando viu Teresa entrarcom o bule fumegante do chá. Antes que a criada chegasse à mesa, Dionísio,depois desatou em voz baixa:- Ó mãezinha, sempre é verdade que o tio António queria metade da quinta?...Maria Leonor olhou para o filho e respondeu, muito baixo:- É..Teresa, chegando à mesa, pousou o bule e, quando se preparava para servir,Maria Leonor fez um gesto mandando-a retirar e foi ela quem encheu aschávenas.Em silêncio, os três beberam.

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Daí a momentos, levantado o serviço, as crianças voltaram às suas revistas eMaria Leonor ao bordado.Desta vez, porém, não pegou na agulha. Com o pano sobre os joelhos, os olhospresos na paisagem dos montes negros do horizonte, pensava na teia emaranhadade mentiras em que a sua vida se ia tornando. E via que o seu futuro seria feio,destituído de sentido moral e de direcção definida. Teria de amoldar o seucomportamento, o seu espírito, à necessidade de manter de pé, a todo o custo, aaparência austera da sua existência, não deixar nunca que qualquer olhardesconfiado penetrasse no véu com que era obrigada a cobrir a sua vida íntima.Apenas dois dias tinham passado e já quatro pessoas sabiam o tremendo segredo:dentro em pouco quase o segredo de Polichinelo.Imersa no seu cismar, não deu por que a tarde caía numa lentidão infinita. Ascrianças tinham abandonado na mesa as velhas ilustrações quando a luz começoua fugir da sala e, ouvindo fora o chiar de um carro que passava, saíram para aquinta, à procura dos últimos raios de sol que vinham do horizonte até aostelhados das casas. Maria Leonor ficou só com os seus pensamentos.Súbito, ao lembrar a conversa da manhã com Viegas, ao recordar as palavrasque lhe ouvira: “Trazemos sempre um fantasma agarrado a nós como a nossaprópria sombra”, pareceu-lhe ter perto de si uma presença estranha,sobrenatural. Sentiu como que uma mão potente e fria que lhe apertava ocoração até o esvaziar de todo o sangue. Não ousava mover-se na cadeira, comas costas apertadas contra o espaldar duro e a cabeça latejando, congestionada.O que quer que fosse voltejava em torno dela, incansavelmente, amarrando-acom invisíveis fios, prendendo-a num abraço gelado. Um calafrio a percorriatoda. As histórias da infância, as almas penadas das lendas tenebrosas,precipitaram-se-lhe no pensamento com um cachoar sinistro e lúgubre.E então, diante da sua imaginação exaltada, ergueu-se, inteiro e acusador, ofantasma do marido. Era o remorso. Era o deus das noites dos culpados quesurgia com os cabelos brancos tingidos de sangue e de fel, com a boca rasgadade orelha a orelha, por onde saíam ao mesmo tempo as súplicas, as pragas, osgritos, as maldições e o silêncio.Levantou-se apavorada e precipitou-se para fora. Tropeçou na cadeira, magoou-se de encontro a uma esquina da mesa, feriu-se no puxador metálico da porta.Todas as saliências, todos os móveis pareciam querer prendê-la, todos osobjectos pareciam estender longos braços para a segurar. E ela fugia a tudocomo se fugisse da morte.Subiu a escada a correr e foi fechar-se no quarto.Com as mãos trémulas, mal atinando no que fazia, acendeu o candeeiro pousadosobre a mesa-de-cabeceira. Uma luz amarelada encheu o aposento até ao tecto.

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As colunas da cama projectaram-se na parede, imóveis, como as grades de umajanela de prisão. No silêncio que se fez, ouviu um ranger de insecto roendo amadeira, algures. Havia no quarto um leve cheiro a mofo, como se todos osmóveis se estivessem decompondo lentamente, numa ruína silenciosa.No cone de sombra que rodeava o candeeiro, sobre mesa, estava um papel.Agarrou-o. Era um bilhete com umas garatujas canhestras e tortuosas.Aproximando-se da luz, leu: “Fui a Miranda deitar uma carta para o Sr. Ribeiro.” Nada mais. Todo o trágico da situação se dissipou rapidamente e só ficou paraMaria Leonor o ridículo imenso daquelas palavras, escritas numa caligrafiadesajeitada de aprendiz de primeiras letras.Rasgou o bilhete e, com o gesto, a realidade retomou os seus direitos. Beneditarecusava a guerra aberta, as palavras ditas no rosto, preferia a insinuação quenunca passasse disso, embora fosse de uma clareza transparente que dispensavadisfarces. Lutar com ela era esgrimir no escuro. Nunca se sabia onde golpear etodas as estocadas varavam o vazio, o vácuo. Intangível como uma sombra,rodeava-a constantemente, manobravas como a um bonifrate de teatro de feira.Tinha escurecido completamente quando Maria Leonor desceu ao rés-do-chão.Aproximava-se a hora de jantar. Quase todas as janelas estavam abertas paraarejar a casa. O ar que vinha de fora circulava lentamente, entorpecido ainda docalor do dia, fazendo tremer as luzes acesas nas salas.Maria Leonor assomou à porta. Numa réstia de luz que saía da casa do abegão,mais acima, vinham Dionísio e Júlia de mãos dadas. Entre os umbrais da porta,Leonor enternecia-se sentindo a impressão de extraordinária fragilidade que lhedava a figura dos filhos, movendo-se sob o denso véu negro da noite. A blusa deJúlia parecia brilhar, fosforescendo na escuridão, e os passos de ambos, na areiada alameda, ressoavam num rangido intermitente, hesitante.Chegaram, por fim, à porta, e vendo a mãe começaram logo a contar o quetinham ido ver a casa do Jerónimo: um morcego que o Sabino, o neto do abegão,tinha apanhado com uma cana.- Ó mãe, o morcego tem focinho de rato! Eu vi!...Mas Júlia entristecia à lembrança da pobre asa quebrada, uma asa vestida depêlos fininhos, tão macia como penugem de pássaro, que pendia inerte tapandoum dos lados do pobre morcego! E logo Dionísio gesticulava, gabando a pontariado Sabino... O morcego voava em volta da cana erguida ao alto, e zás!, terra!...Ainda chiara, aflito, mas de nada valera: lá estava dependurado num prego por

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uma das patas, com a asa intacta aberta como numa despedida, os pequeninosdentes arreganhados entre a boca negra.Enquanto os filhos disputavam, Maria Leonor dirigiu-se à sala de jantar. Láestava Benedita, silenciosa e calma como sempre, um silêncio e uma calmaexasperantes, que fizeram nascer em si o desejo de a sacudir pelos ombros,arrancá-la àquela impossibilidade. Sabendo embora que nada faria, deixou-secaminhar com a decisão que lhe trouxera o pensamento. Em todo o seu aspectodevia transparecer um ar de coragem interior e de segurança tais que Benedita,ao vê-la, esboçou um ligeiro movimento de recuo. No seu olhar passou umaexpressão de temor: naquele instante ressurgia nela a criada submetida porlongos anos de obediência. O poder que lhe dava a posse do segredo pareciaesvair-se enquanto os passos de Maria Leonor, avançando na sala, faziam tremeros vidros nos móveis e o coração dentro do seu peito. Quando a ama parou diantedela, separadas pela mesa, ambas tinham a consciência exacta da situação, masenquanto Maria Leonor tentava manter-se a todo o custo no plano a que o acaso aiçara, Benedita procurava vencer as velhas ideias do dever e do respeito que selhe levantavam na alma. Ambas tinham a certeza de que, se Maria Leonorvencesse, ficaria livre do pesadelo.Por momentos Benedita pareceu vacilar, houve como que uma renúncia à luta,uma abdicação na expressão cansada do seu rosto. Dentro do peito de MariaLeonor já badalavam Páscoas! Mas, de súbito, sem motivo, achou-se a pensar naasa quebrada do morcego, e na outra, na intacta, aberta como um adeus. E sentou-se, vencida.

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XVIII O jantar estava perto do fim quando Benedita, que saíra para ir buscar o café,assomou à porta, anunciando:- Minha senhora, o senhor padre Cristiano!Maria Leonor levantou-se logo para o receber e as crianças saltaram dascadeiras e correram para o velho. Beijaram-no e voltaram trazendo-o pelasmãos. Atrás vinha Benedita com a cafeteira. O padre sentou-se num sofá,soltando um fundo suspiro de cansaço e alívio. Passou o lenço pela testa e, depoisde enxugar os lábios húmidos, murmurou:- Que cansado, meu Deus!...Em Maria Leonor foi uma curiosidade. O que trouxera ali, àquela hora, sem umacompanhia, sem ter avisado sequer?! E logo o padre acudiu:- Eu já devia ter vindo... Mas tenho estado um bocadinho doente, não saio de casadesde domingo...- Doente? Mas, então, esteve mal? Por que não mandou recado?E Maria Leonor inclinava-se para o velho e passava-lhe o lenço pela testahúmida. As crianças tinham-se sentado no chão e escutavam. Apenas Beneditadava a volta à mesa, deitando o café nas chávenas. O padre, depois de hesitarolhando os pequenos, perguntou:- Então, Leonor, que foi isso com o António? Eu nem quis acreditar...A expressão carinhosa do rosto de Maria Leonor desapareceu e a mão quesegurava o lenço caiu desfalecida. Os seus olhos perderam-se no sobrado e,quando os levantou para o padre, tinham lágrimas. Havia neles uma súplicadesesperada, um pedido de clemência. E não respondeu. Houve um silêncioincómodo na sala.O padre abanou a cabeça com tristeza e juntou:- Quem suporia? Ainda quando ele esteve em minha casa, no domingo, achei-otão bom, tão sossegado... E logo uma destas...O mesmo silêncio. Enquanto o padre falava, Benedita chamava as crianças paraa mesa, a fim de tomarem o café. E agora, junto delas, estendia-lhes oaçucareiro, solícita, quase meiga. O padre continuava:- Olha que eu, às vezes, ainda me pergunto se não estarei enganado. Como foipossível que o António viesse de tão longe até aqui, com a intenção preme-ditadade te exigir...Maria Leonor, de braços cruzados sobre o seio, encostada à mesa, baixava a

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cabeça. Por fim, suspirou e respondeu, enquanto lançava um olhar rápido para acriada:- Que hei-de fazer, padre Cristiano? Nem eu esperava...Havia um cinismo inocente nas suas palavras. Sentia um certo prazer amargo,fazendo aquelas alusões veladas, que só podiam ser compreendidas por Benedita.Falar assim era combatê-la com as suas próprias armas, meter-se-lhe no terreno,jogar com as suas cartas. A situação era nova e Benedita bem o sentiu, porquedeitou um olhar inquieto para a ama. Como se se defendesse, meteu-se naconversa, falando para o padre:- É assim, é assim, senhor padre Cristiano! Donde menos se espera, salta alebre...E, imediatamente, Maria Leonor, corajosa:- Foi uma vergonha para todos nós!Aqui, Benedita perdeu o fôlego e recuou outra vez para a mesa, corando. MariaLeonor aprumava-se diante do velho, sentindo a indignidade daquela vitória. Opadre ouvira, contristado, as mulheres. Havia em todo o seu velho rosto um ar desantidade que se repugna ouvindo os males do mundo e Maria Leonor,encarando-o, considerava-se um poço de perversidade e de ignomínia.Embotara-se-lhe de tal modo o respeito por si própria, que era já capaz de falarda sua vergonha diante de quem a conhecia. E, coisa irrisória, não fora ela, aculpada, quem se humilhara, fora Benedita. Quem sabe? Talvez fosse essa umamaneira de mantê-la segura e calada!Caída na sua abstracção, esqueceu o lugar onde se encontrava e as pessoas que aacompanhavam. No sofá, o padre, com as mãos cruzadas por cima dos joelhos,os polegares fazendo ponte e beliscando o lábio inferior, consideravamentalmente o gesto de António.Nas paredes da sala, duas naturezas-mortas litografadas, representando lagostasvermelhas de mistura com maçãs e uvas, debruçavam-se para o chão, suspensasdos pregos. O velho relógio inglês agitava sem descanso o disco faiscante dopêndulo, combinando o movimento com o som. Júlia e Dionísio bebiam o caféem pequenos sorvos, soltando de vez em quando uma aspiração mais ruidosa.Foi Benedita quem interrompeu o silêncio, ao fazer notar que o café da senhoraarrefecia. E Maria Leonor, regressada aos seus deveres, inquiriu:- O senhor padre já jantou?- Já sim, minha filha. Jantei antes de vir...- Bem, então bebe uma chávena de café connosco...O padre Cristiano levantou-se do sofá e anuiu:

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- Pois sim, com prazer!Maria Leonor voltou-se para a criada e mandou:- Benedita, põe mais uma chávena!Enquanto Benedita retirava do guarda-louça o necessário, o padre sentou-se àmesa, ao lado de Dionísio. Fez-lhe uma carícia nos cabelos, ao mesmo tempoque vigiava na chávena a altura do café que a criada lhe ia deitando.- Pronto, Benedita, não deites mais!...Maria Leonor, que se sentara também, chegou-lhe o açucareiro. O padre, comduas colheres bem cheias, deu-se por satisfeito, e enquanto remexia o açúcar nofundo da chávena perguntou, interessado:- Então, já está resolvido o caso do Dionísio?Maria Leonor deu uma leve pancada na testa.- Oh, que disparate o meu! Desculpe-me! Não me lembrava sequer de contar-lhe...Serviu-se do açúcar e continuou, noutro tom.- Pois está! No... no domingo, o doutor veio dar-me a resposta. Está tudocombinado e o Dionísio partirá para Lisboa em Outubro.- Estás, então, contente, não é verdade?- Estou, de facto. Há, apenas, um ponto que me desagrada um pouco...O padre sorriu.- O quê? São ainda os mesmos receios quanto à questão religiosa?- Questão religiosa?! Ah, não! É tudo quanto há de mais material. Trata-se dedinheiro.- Porquê? O irmão do doutor pede muito?- Não, e antes fosse isso. Não quer aceitar dinheiro. Diz que lhe basta o prazer deconsiderar o Dionísio como um irmão do filho, o irmão que lhe não deu,conforme as suas próprias palavras... Que hei-de fazer?O padre encolheu os ombros. Soprou dentro da chávena, bebeu um gole de cafée respondeu:- Hum! Que hás-de fazer senão agradecer?!- Podia não aceitar!O velho abanou a cabeça, reprovador, e respondeu:- Seria mal feito. Vivemos neste mundo para fazer concessões e sacrifíciosmútuos. O teu caso resume-se numa questão de amor-próprio: pois que sesacrifique o amor-próprio e o Dionísio que vá para Lisboa ser um homem!

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Dionísio passeava o olhar da mãe para o padre.E sentia-se vagamente ofendido, vendo a extraordinária facilidade com que sedispunha da sua pessoa, conduzindo-a para aqui e para ali, sem a ouvir. Não tinhao mais pequeno desejo de sair da quinta e iria porque a mãe assim o mandava,mas, se o contrário se desse, também seria obrigado a obedecer. Sobretudo,irritava-o aquele “ser um homem”, de súbito, interrompendo-se a meio de umafrase, exclamou:- Espera, tive uma ideia!- Uma ideia que não creio ser despropositada de todo e que deve permitir quefaças as pazes com o teu amor-próprio... Por que não convidas o sobrinho dodoutor Viegas?Não era só a reconciliação com o seu amor-próprio, era também a perspectivade que a entrada de uma pessoa estranha no círculo vicioso dos habitantes dacasa lhe trouxesse uma distracção das suas preocupações, dos seus receiosintermináveis. Todos teriam que adaptar-se ao visitante, esquecer por dias asquestões antigas. Maria Leonor entusiasmava-se.Porém, ao lado, Dionísio não estava satisfeito. Encolhera-se involuntaria-mentena cadeira ao ouvir o padre e, enquanto a irmã acolhia com júbilo a ideia,baixara a cabeça, amuado. A sua natureza de tímido não suportava relaçõesnovas, e muito menos com pessoas da sua idade. Preferia a convivência damaturidade, como se ele próprio não fosse mais criança. Aquele convite era umaviolência...Mas o pior estava ainda para vir. E isso foi quando o padre, depois de beber oresto adocicado do café que restava na chávena, continuou:- Bom. Ainda bem que concordaste. Mas olha que me lembrei doutra coisa!O padre estava fértil em ideias e Maria Leonor, sorridente, acenava já,concordando, ainda sem o ouvir.- Que o convite seja feito pelo Dionísio!Todos se voltaram para o pequeno. Muito corado e fitando com obstinação atoalha, Dionísio não disse palavra. Vendo, porém, que todos aguardavam umaresposta, levantou os olhos e fitou sucessivamente os circunstantes. O padre, amãe e a irmã mostravam-lhe os rostos satisfeitos, demasiado satisfeitos para oseu desejo, e apenas em Benedita viu o que lhe pareceu uma pontinha desolidariedade e compreensão. Apoiou-se aquele auxílio e respondeu, enfim,numa voz sumida e um nadinha trémula:- Eu não o conheço...- Era razoável! E Dionísio respirou aliviado quando, depois de demoradaponderação, ficou resolvido que o convite fosse feito, de facto, por ele, mas por

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intermédio do doutor Viegas.Daí a pouco levantaram-se, arrastando as cadeiras num debandar e, enquantoBenedita saía levando as chávenas, o padre, depois de olhar o relógio, disse:- Nove horas! Vou-me chegando até casa, que este corpo já não aguenta grandesserões...Maria Leonor levantou-se e, aproximando-se da janela, perguntou:- O padre Cristiano veio a pé?- Não, filha, tanto já não posso! Vim na minha carrocita. Não está à porta?Maria Leonor debruçou-se mais:- Não, não está! Devem tê-la retirado - voltou para dentro e acrescentou: - Voumandar um criado consigo.- Para quê? Não vale a pena. A égua não toma o freio nos dentes. Bem feitas ascontas, parece-me que deve ter tantos anos como eu...Maria Leonor sorriu:- Mesmo assim... Vamos, meninos, despeçam-se do senhor prior!As crianças acercaram-se e beijaram o velho. A despedida de Dionísio foi muitoseca e muito fria: os lábios mal afloraram a face enrugada do padre. Havia nasua alma um ressentimento fundo pela ideia do convite.Daí a pouco ouviu-se fora o rodar abafado da carroça. E o padre, depois dasúltimas despedidas, partiu.Voltaram à sala de jantar. Sobre a mesa, donde Benedita retirara já os talheres ea toalha, abria-se, num perfume suave e enlanguescedor, um grande ramo derosas-chá. Da profundidade amarelada, subia a fina subtilidade do aroma, e asflores, como que entontecidos, dobravam as corolas para o tampo da mesa,escuro e polido, num desfalecimento murcho.Maria Leonor sentou-se numa cadeirinha baixa com o seu bordado. Inclinou-separa o desenho e com as unhas coloridas foi fazendo nascer na brancura do panoas manchas e os contornos duma ave do paraíso. Dionísio fora sentar-se longedas janelas, ao lado do relógio, balançando as pernas, aborrecido. E Júlia, que aoprincípio tentara brincadeira com o irmão, desistira ao vê-lo tão sisudo e vierasentar-se no chão, junto da mãe.Em certa altura, Maria Leonor levantou a vista do trabalho e olhou para o filho.Ia falar-lhe da visita do sobrinho do médico, mas vendo-o calado e pensativo,compreendeu o que se passava no íntimo e calou-se. Não podia censurá-lo pelacobardia que demonstrava com aquele pavor ao desconhecido. Apenasentristecia sentindo o filho assim fraco e solitário. Naquela sensibili-dade decriança existia um ponto rígido mas quebradiço como uma peça de metal

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fundido: não haveria muito a esperar no dia em que um choque mais forte davida o ferisse ali.Uma pergunta de Júlia, acerca do bordado, distraiu-a dos seus pensamentos.Dionísio, no seu canto, bocejou, ensonado. Debruçou-se e espreitou as horas norelógio, que abria os ponteiros como dois longos braços doirados. Esfregou osolhos com as costas das mãos e declarou que ia deitar-se,Era uma espécie de fuga, uma procura de esquecimento no sono daspreocupações que o ralavam. E depois de beijar a mãe e a irmã, lá foi acaminho da cama. Na escada encontrou Benedita, que, ao saber que ele iadeitar-se, subiu também. Entraram no quarto e a criada abriu a cama. Saiuenquanto Dionísio se despia, mas voltou daí a minutos, quando ele enfiava opijama nocturno. Dionísio, depois de um rápido sinal da cruz, meteu-se entre oslençóis, arrepiado apesar do calor que ainda fazia.Benedita aproximou-se do leito e, ao passo que lhe aconchegava as cobertasjunto do pescoço, perguntou:- Ouça cá, menino Dionísio, que idade tem o sobrinho do doutor Viegas?

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XIX No dia seguinte, logo de manhã, Maria Leonor mandou um criado ao Parreiralcom recado para o doutor Viegas, para que fosse à quinta assim que pudesse. Orapaz escarranchou-se no lombo de uma burra ruça e largou num trote rasgadopara a casa do médico.Viegas assistia na cavalariça ao selar da égua em que ia iniciar o seu giro peloscasais afastados de Miranda, quando ouviu fora, nas lajes do pátio, um estropearde ferraduras. Espreitou pelo postigo da cavalariça e viu o criado de MariaLeonor saltar do animal, que abria as ventas num saudar ruidoso pondo emsobressalto as galinhas que esgaravatavam entre as pedras.O médico gritou:- Vê lá se fazes calar esse diabo! - espreitou as pernas da burra e acrescentou,sorrindo: - Esse diabo ou essa diaba!...O rapaz indignou-se com o animal e, com duas chibatadas nas orelhas, fê-localar, vencido. Depois acercou-se do médico, que o esperava debruçado dopostigo, e rapando o barrete da cabeça foi dizendo:- A senhora manda dizer que vá lá, assim que puder!- Que há? Temos doença?A boca do criado abriu-se num sorriso, que lhe mostrou duas fileiras de dentestortos e estragados. E contente por poder dar boas notícias, respondeu:- Não, senhor! Não está ninguém doente! Acho que é a senhora que lhe querfalar...O médico consultou o relógio, olhou para o Sol, e voltando-se para dentro dacavalariça, donde vinha um cheiro forte de suor e excremento de gado,perguntou:- A égua está pronta, Tomé?Uma voz respondeu, num arfar esforçado:- Não tarda, senhor doutor...Viegas saiu, abotoando o casaco. Olhou para o criado, que esperava, e inquiriu:- Que fizeste tu das botas que te dei?O rapaz coçou a cabeça:- Deixei-as em casa, senhor doutor...- Ah, sim?! Então hás-de vir para mim com outra infecção num pé... Desta veznão to curo, corto-to!

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Embaraçado, o rapaz dava voltas nervosas ao barrete. Olhou angustiada-mentepara os pés, como se já visse o serrote a entrar-lhe na pele, e respondeu:- Não vê, senhor doutor?!... Eu queria poupar as botas. Meti-as na arca e ainda láestão. - Fez um esforço e acrescentou, corando: - Queria guardá-las para ocasamento!O médico riu:- Ah, sim, para o casamento! Mas o que preferes tu: casar com botas e sem pésou casar com pés e sem botas?No olhar do rapaz brilhou um fulgor de esperteza.E riu, ao responder:- Eu queria casar com botas e com pés...Nesse momento, o criado de Viegas saía trazendo a égua pela arreata. O médicoenfiou o pé esquerdo no estribo e cavalgou o animal. E, enquanto compunha asrédeas e as crinas da montada, respondeu:- Bom!... Calça lá as botas, que eu depois dou-te outras para o casamento!Tocou as ilhargas da égua com as esporas e saiu para o pátio. O criado montou aburra de um salto e seguiu o médico pelo caminho dos marmeleiros. Fustigoucom os calcanhares a barriga do animal até o obrigar a correr ao lado da égua e,com a voz sacudida pelos solavancos da carreira, agradeceu as botas.O médico, porém, não o ouvia. Ia procurando o motivo que obrigara àquelachamada matinal. Se não era doença, tratava-se, com certeza, da história... Nanoite anterior, pela primeira vez em muitos anos, dormira mal, apesar defatigado. E quando acordara, ainda a manhã vinha em Espanha, perguntara a sipróprio, na semiescuridão do quarto, se não fora tudo um pesadelo idiota, tãoabsurdo lhe parecia o que se passara na tarde de domingo, na quinta. Por fim,conformou-se: a coisa sucedera, não havia dúvida, e agora, nem que o mundocomeçasse a girar ao contrário seria possível apanhar aquele domingo de modo aocupar-lhe a tarde de outra maneira.Sem dar por tal, picou o ventre da égua e passou do trote a um galope curto,deixando para trás o criado, esbaforido em cima da burra, que espetava asorelhas para a frente na ânsia de não se despegar dos quartos traseiros damontada do médico. Acabou por ficar para trás na primeira curva do caminho,enquanto Viegas desaparecia numa nuvem de poeira, direito ao rio.Daí a pouco o médico entrava na quinta. E quando se apeou a porta, viu, debaixoda alpendrada, Teresa e João, que conversavam. Resmungou:- Vocês dão bom lucro à casa, lá isso... Sempre no namoro!Teresa corou e desapareceu. O rapaz sorriu:

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- Era só conversar, senhor doutor!- Qual conversar! Isso é perder tempo. Tratem de casar e deixem-se de paleio.Têm o resto da vida, depois, para a conversa... Arrecada-me aí essa bichinha!João deitou as mãos às rédeas e levou a égua. Viegas entrou em casa e parou nomeio da sala, ao lobrigar uma saia escura que desaparecia por detrás dumaporta. Em três passadas largas seguiu-a, a tempo de ver Benedita, que entrava nacozinha. Encolheu os ombros e voltou atrás. Enquanto subia a escada, chamou:- Maria Leonor!Um ruído de passos no patamar e Maria Leonor apareceu. Vinha satisfeita,risonha, compondo as fitas de um avental na cintura. Sorriu para o visitante,saudando:- Bom dia, doutor! Desculpe o incómodo, mas precisava de falar-lhe!Viegas acabou de subir os últimos degraus e parou diante dela, um poucosurpreendido:- Venho encontrar-te hoje muito bem-disposta. Que se passa?- Oh, não se passa nada! Acordei contente, não sei porque, embora o contráriofosse mais natural, não é verdade?!- Sim, realmente... Mas, o que queres, afinal?- Falar-lhe, já lho disse. E fazer-lhe um pedido. Vamos.Entraram no corredor que levava ao quarto e ao escritório. Ao chegar aqui,Maria Leonor hesitou uns segundos, mas logo abriu a porta, decidida.- Sente-se, doutor.O médico deixou-se cair num cadeirão de balanço, forrado de couro preto,coberto com um pano vermelho, bordado, e tirou o cachimbo, que encheu detabaco e acendeu. Aspirou duas vezes, deliciado, e disse, olhando o fornilho quechispava:- A Benedita...Maria Leonor encolheu os ombros.- Lá anda...- Sempre na mesma?- Sempre na mesma.Viegas deu um impulso com as pernas e balançou a cadeira. Soprou mais umafumaça e acrescentou:- Parece que a Benedita se transformou na guardiã da moralidade da casa.Maria Leonor corou intensamente. Aquela maneira de falar...

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- Porquê?- Apanhei-a a espreitar a Teresa e o João que namoravam à porta.Um sorriso entreabriu a boca de Maria Leonor. Deu volta à secretária para sesentar e murmurou:- Já é demasiado tarde...Viegas apanhou o cachimbo, que lhe caía da boca, sujando-lhe o fato de cinza.Sacudiu-se e perguntou, enquanto o entalava outra vez nos dentes:- Tarde, porquê? Também houve alguma coisa?Aquele também saíra-lhe dos lábios involuntariamente. Espreitou o rosto deMaria Leonor e viu-a empalidecer, enquanto as mãos, que se apoiavam notampo da secretária, se crispavam, doloridas. Repetiu a pergunta:- Houve alguma coisa?Maria Leonor sorriu, compreendendo a delicadeza, e respondeu:- Creio que sim...O médico, aborrecido, levantou-se e foi até à janela.Deu uma olhadela distraída pela quinta, e, voltando para dentro, despejou o restodo tabaco num cinzeiro de loiça onde brilhavam as quinas e os castelos do escudode D. João V.- Afinal, que me querias tu?Brincava com uma faca de cortar papel, batendo-lhe com a lâmina no tinteiro:Com um suspiro, Maria Leonor respondeu:- Queria pedir-lhe que convidasse o seu sobrinho João a vir passar o resto dasférias connosco. Isto em nome do Dionísio...- Quem teve a ideia?- O padre Cristiano.- Vá lá! Não é nada má, não senhora! E o Dionísio, o que diz?- Nada! Que havia de dizer?- Ora! Podia não gostar. Isto de crianças, quem puder que as entenda...Tirou da algibeira a caneta e acrescentou:- Bom, nesse caso, vamos à escrita!Maria Leonor levantou-se e deu-lhe o lugar. O médico sentou-se à secretária,puxou uma folha de papel, sacudiu a caneta e, depois de olhar para o tecto.Começou a escrever.Ia já a meio da página quando, de repente, levantou a cabeça e olhou para Maria

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Leonor.- Que estás tu a ver no tapete?Ela deu um pequeno grito e levou a mão ao coração, sobressaltada. Estava pálidae trémula e, perante a face perplexa do médico, só pôde responder:- Nada, nada...Viegas olhou desconfiado e voltou à carta. Daí a momentos, traçou a assinaturano fundo da página, enxugou as linhas que escrevera e, depois de um relance deolhos, estendeu-a a Maria Leonor, dizendo:- Vê se achas bem.Ela passeou o olhar pela carta, mal vendo o que estava escrito, e devolveu-a.- Está bem, decerto...- Decerto? Naturalmente, não gostas do estilo. Pois, minha rica, num médico dealdeia é do melhor que se pode encontrar!Dobrou a carta e guardou-a no bolso interior do casaco. Bateu duas vezes nopeito, como para certificar-se de que a carteira continuava no mesmo lugar, erecostou-se.- Sinto que me estou tornando preguiçoso. Nesta casa respira-se indolência... Seaqui vivesse continuamente, acabaria os meus dias de papo para o ar, gozando avista do tecto, ou de pernas cruzadas sobre uma esteira, de olhos baixos, acontemplar as belezas do meu umbigo.Maria Leonor sorriu.- Aqui respira-se mais que preguiça, doutor. Respira-se entre estas paredes um arde tragédia grega. Anda por estas salas, oculta nas sombras dos desvãos e naspregas dos reposteiros...O médico interrompeu, sem cerimónia, resmungando:- Fantasias!...- É possível! - respondeu Maria Leonor. - Mas a verdade é que eu sinto no ar querespiro uma viscosidade estranha, como se nele andasse dissolvida uma presençamaterial. Se quisesse fazer literatura, diria que anda por aqui a Fatalidade, amesma que cegou Édipo e o fez esposo da própria mãe. Desloco-me pela casacomo por entre um nevoeiro espesso e frio, que me traz arrepios. Os móveis sãograndes sombras esfumadas, os passos repercutem-se pela casa, secos eindeterminados...Viegas repetiu, enquanto se levantava e dirigia à janela:- Fantasias, menina, fantasias!... Por que não hás-de tu ser uma mulher sensata,fria como o teu nevoeiro, sem esses delírios de imaginação?!

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Voltou-se para ela, de mãos nas algibeiras, as pernas levemente afastadas, umligeiro sorriso de ironia nos lábios.- Começo a acreditar que tens pouco que fazer. Ou melhor, talvez: que poucofazes, tendo muito que trabalhar - deu dois passos indiferentes e sem destino econtinuou, lançando as palavras ao acaso, com displicência: Nem doutro modo seexplica o abandono em que a quinta começa a estar... Outros olhos, que nãoandassem cegos por esse nevoeiro imaginário, já teriam visto os caminhos cheiosde erva, o muro da horta meio esboroado, a dar passagem livre aos carneiros dosvizinhos; outros ouvidos, que não dessem atenção aos passos dos criados, játeriam percebido o ranger dos gonzos do portão, que não levam azeite hásemanas...Maria Leonor levantou-se de golpe, pronta a responder, mas o médico, com umgesto da mão, deteve-a:- Quietinha, quietinha!... Pensa bem antes de responderes! - e após um momentode silêncio, em que suportou o olhar zangado de Maria Leonor: - Bom, agoraresponde...Ela teve um gesto mal-humorado e respondeu-- Não tenho nada que dizer!- Hum! É pena. Teríamos aqui, talvez, mais uma conversa interessante.Paciência! Desde que me falta o parceiro, conformo-me...Maria Leonor bateu com o tacão do sapato no sobrado e, dando às palavras umaentonação sarcástica, respondeu:- E admirável! O doutor nunca teve problemas?Viegas deu uma risada que lhe fez tremer os óculos. Depois serenou. Os olhostiveram ainda um clarão risonho, mas logo se amorteceram por detrás das lentesgrossas. Houve um silêncio. E o sorriso voltou-lhe aos lábios quando respondeu:- Ora aí está uma pergunta infantil, que não é senão consequência do tal nevoeiroem que te embrulhaste e em que me andas a querer embrulhar a mim!... - Deuum suspiro e continuou: - Pois eu também tenho os meus problemas... Ou, paramelhor dizer: tive. E, para te falar francamente, foram mesmo várias sériesdeles. Por exemplo: aí dos sete aos doze anos o problema que mais meatormentou o espírito foi a procura da maneira legítima de conciliar a obrigaçãode ir à escola com a minha paixão pelo pião; dos dez aos quinze, andei às voltascom outro problema: disfarçar o maldito cheiro do tabaco que fumava, para quea minha mãe não me desse um par de açoites, que era, aliás, o que merecia, nãopor fumar, mas por usar um tabaco tão ordinário; dos quinze aos vinte, e isto vaiem séries de cinco anos para não cansar, não te digo nada, então!..., foi umchorrilho de problemas, desde a primeira criada de servir que namorei até ao

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primeiro silogismo, desde a primeira dúvida acerca da Divindade até ao primeirocalote a um amigo, desde a primeira bebedeira ao... enfim, um nunca maisacabar; dos vinte aos vinte e cinco, a coisa acalmou-se mais e, então, se bem merecordo, os problemas mais importantes que me apoquentaram foram...Aqui, Maria Leonor, exasperada, já não pôde mais e explodiu:- O doutor é uma pessoa muito espirituosa, mas eu não posso suportarsemelhantes brincadeiras! Pensei que a sua sensibilidade compreenderia, comodeve ter compreendido a sua inteligência, a minha situação, os pavores de que aminha vida está cheia, esta inenarrável angústia em que me debato. Os meusnervos doem-me, não vivo senão para esta obsessão, e o doutor graceja...Viegas segurou Maria Leonor pelos braços e, mantendo-a direita diante de si,deu-lhe um safanão nos ombros, para a obrigar a olhá-lo. E depois de a ter assimimobilizado, respondeu, numa voz donde desaparecera todo o sabor risonho:- Tens razão, estive a gracejar. Mas ainda não acabei, falta o último gracejo. Aosvinte e sete anos formei-me. Era médico, enfim, realizara o meu ideal mais alto,o meu sonho mais belo, mas foi justamente nesse momento que apareceu o talúltimo problema: o espectáculo das vidas que definham, das febres que devoram,dos males que desfiguram, das lágrimas e dos gritos dos que não querem morrer.O espectáculo da grande vida que acaba miseravelmente num suspiro, depois dese ter enchido de alegrias e de tristeza, de triunfos e de desastres.Falara com uma violência tremenda, como se cada palavra fosse uma pedralançada no espaço, veloz e agressiva. Maria Leonor tinha lágrimas nos olhos,como se tivesse visto desfilar diante de si, num instante, toda a história dosofrimento humano.O médico, depois de a olhar com atenção, acrescentou:- Desde então, os problemas restantes têm sempre um interesse muito restritopara mim.Calou-se. Ficaram, assim, por largos segundos, até que no rosto de Viegas seespalhou uma expressão de constrangimento e embaraço. Deixou Maria Leonore foi sentar-se, maldisposto. Cruzou as pernas e enfiou o queixo entre as abas docasaco.Daí a pouco, Maria Leonor foi até ele, pôs-lhe uma das mãos no ombro e disse,de mansinho:- Façamos as pazes, sim?Viegas resmungou uma concordância. E ela foi continuando:- O doutor, então, deita hoje a carta no correio, não é verdade?Ele levantou a cabeça: a má disposição desaparecera. Deu duas palmadinhas

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afectuosas na mão de Maria Leonor e respondeu:- Deito, evidentemente! A carta deverá chegar amanhã, que é terça-feira.Preparativos para a viagem, tachas nas botas do João, recomendações da mãepara que não parta a cabeça ao subir às árvores, e temo-lo cá quinta ou sexta-feira!- Óptimo! E eu prometo-lhe que, para a chegada do seu sobrinho, os gonzos doportão estarão bem azeitados, as ervas da alameda arrancadas, o muro da hortaposto de pé e os carneiros do lado de fora.Viegas levantou-se e foi buscar o chapéu. Deu-lhe dois piparotes a sacudir o pó edisse:- É interessante! De todos os meus doentes, és o que mais vezes tem recaído, e sóeu sei o trabalho que no tenho, de cada vez que isso acontece, para te pôrnovamente em pé. Vives de entusiasmos súbitos e depressões prolongadas e eu,que tão pouco jeito tenho para escalar montanhas, sou obrigado a acompanhar-tenesses altos e baixos.Maria Leonor enfiou o braço no dele e, enquanto caminhavam para o corredor,respondeu:- É verdade. E Deus sabe quanto lhe estou grata. Sem si e sem a sua admirávelconcepção da vida, já teria feito nem sei o quê!... Se não fosse a sua presençaconstante, se não fossem as suas palavras... Nem quero pensar nisto, doutor! Faz-me mal!Pararam no patamar. Viegas desceu um degrau e voltou-se para despedir-se. Elaapertou-lhe a mão com força e murmurou:- Agora, o doutor vai-se embora. Voltará logo, ou amanhã, ou depois. Eu ficareiaqui, sozinha dentro deste casarão, até que volte. Até lá, serão os terrores, osanseios miseráveis, os meus companheiros de sempre!- Quando voltar, tudo desaparecerá!- Tanta falta te faço?- Sim, doutor, faz-me muita falta!...A mão de Viegas apertou com mais força a de Maria Leonor e a sua boca,irreprimivelmente, pronunciou as palavras fatais e irremediáveis:- Maria Leonor, queres tu casar comigo?Dos lábios dela saiu um gemido. A casa pareceu tremer-lhe debaixo dos pés e asparedes como que vacilaram nos alicerces. Diante de si, a cara do médico,pálida, os olhos brilhando por detrás dos óculos e das lágrimas. Levou as mãos aorosto, que se lhe incendiava.Quando as retirou, olhou para Viegas, tremendo.

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E, de súbito, viu-o voltar as costas e fugir, escada abaixo, como só se foge doridículo e da morte. Os passos amorteceram na alcatifa da entrada. A porta quedava para fora estrondeou.Aquele ruído, Maria Leonor pareceu acordar. A boca abriu-se-lhe para gritar,mas ficou muda, petrificada. Levou as mãos à garganta dolorida e encostou-seao corrimão, a soluçar perdidamente.

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XX Deixavam nas pernas do médico longos traços lívidos. Por vezes, entre as lançasverdes das piteiras, desenrolava-se o mosqueado duma cobra cinzenta de cabeçacilíndrica e inofensiva. A égua espantava-se ao rastejar do réptil, mas logo,recobrada a calma, cadenciava o passo na moleza do calor.Até que o Sol estivesse bem a pino, Viegas gastava assim as suas horas, já semdoentes para ver, naqueles longos passeios, que o deixavam ao fim do dia numcansaço de velho que procura arrimo para distender os membros gastos.Depois daquele momento de doida exaltarão, que fora ao mesmo tempo tãosimples e natural, não sossegara um instante sequer. Parecia-lhe terconstantemente diante dos olhos a cena infeliz, parecia-lhe ouvir ainda a suaprópria voz pronunciar as palavras impossíveis. Havia momentos em que arecordação era tão viva e pungente, que cerrava os punhos e os olhos, como seuma dor física o atormentasse. Então, achava-se a murmurar:- Que ridículo, Santo Deus!Porque todo o seu desgosto era o imenso ridículo de que se revestia a seus olhos aproposta que fizera a Maria Leonor. Casar! Imagine-se! Ele, Viegas, com quasecinquenta e cinco anos, gasto, atrever-se a pedir em casamento uma mulher detrinta, na eflorescência de todos os instintos sensuais que a natureza lhe dera! Efizera-o sem que o pejo lhe prendesse a língua! Mas, como se isto não bastasse,era preciso considerar que ela fora mulher de um amigo seu, de um grandeamigo, por quem ainda chorava nos momentos de solidão e desânimo.Como fora possível tal coisa? Iria jurar que dez minutos, que dez segundos antes,lhe não passava pela mente dizer semelhantes palavras. E, contudo, dissera-as!Mas porquê, justos céus? Se não era já capaz de dominar os seus pensamentos, senão conseguia ser senhor das suas próprias palavras, então, estava no últimoextremo da senilidade, da fraqueza mental, da baboseira!E sentia um prazer ácido insultando-se com aquele termo reles de baboso. E queno dia seguinte iria falar com Maria Leonor, desfazer aquele estúpido mal-entendido que vinha envenenar as relações de ambos, e pensando todas asmanhãs, ao erguer-se da cama, que seria preferível guardar a explicação paraquando fosse impossível evitá-la.Na quinta-feira, à boquinha da noite, ia por todo o campo, ao redor do Parreiral,uma longa paz silenciosa, sob a cúpula azul-cobalto do céu, onde ponteavamchispas trémulas de estrelas e onde, do lado do poente, a última nuvem do dia,que mergulhava atrás do Sol, mostrava os contornos avermelhados e tortuosos,sangrentos como os despojos de uma batalha.

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Viegas, depois de contemplar da varanda o pôr do Sol, viera para dentro esentara-se à mesa. Tomé, o criado que em sua casa era despenseiro e aio, moçode cavalariça e ajudante de laboratório, começou a servir-lhe o jantar.Ainda o médico não tinha engolido a segunda colherada de sopa, ouviu-se naporta da entrada uma argolada forte. Tomé resmungou qualquer coisa acerca dopéssimo hábito do diabo e desceu para atender. Daí a momentos voltou. Trazia namão um telegrama. Viegas abriu e leu.Quando acabou de ler, Viegas empurrou o prato para o lado. Perdera o apetite aolembrar-se de que tinha de ir à quinta avisar da recepção do telegrama. Aindaprocurou pensar que, provavelmente, o irmão remetera telegrama idêntico paraMaria Leonor, mas logo pôs essa ideia de parte.Levantou-se da cadeira e foi a um armário buscar o casaco. Vestiu-se, perante oolhar intrigado de Tomé, que, vendo o patrão com todo o ar de quem se dispunhaa sair, perguntou:- Então, o senhor doutor vai sair?- Vou, não vês? - E não janta?- Não.Era uma singularidade, não havia dúvida. O criado encolheu os ombros ecomeçou a levantar o serviço. Viegas enfiou o chapéu e dirigiu-se para a porta.Ao chegar ali, deteve-se, como se um pensamento súbito lhe ocorresse, evoltando-se perguntou:- Ouve cá, ó Tomé, que pensarias ou que dirias tu se eu me casasse?O criado pousou sobre a mesa a garrafa do vinho, e teve apenas uma pergunta:- Agora?Viegas olhou-o por momentos, sorriu nervosamente e murmurou:- Sim, tens razão!... Agora...Voltou costas e desceu. Cá fora, hesitou entre a caminhada a pé e a cavalo.Olhou para o céu e, imediatamente, decidiu-se pelo passeio pedestre. E foi istomesmo que respondeu ao criado, que lhe perguntava da janela se queria a éguaaparelhada. Enquanto descia a pequena avenida que levava à estrada dosmarmeleiros, foi enchendo o cachimbo. Parou no portão para o acender e,depois de duas largas baforadas, começou a andar, estendendo um pouco opescoço para a frente, franzindo os olhos de míope para melhor ver o caminhoque a noite ia escurecendo até não deixar ver mais que a mancha branca daestrada. Ao chegar perto do rio, cortou para um carreiro à direita, e foi subindo amargem por detrás da densa cortina de salgueiros que cresciam em maracha

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com os troncos e as raízes dentro de água. Mais acima, onde se erguiam duasgigantescas faias, era a ponte romana de um só arco. Atravessou-a. Perto, a duascentenas de metros, abriam-se os portões da Quinta Seca.Viegas parou à entrada, hesitante. Um cão velo de dentro a ladrar, furioso,rosnando de suspeição ao chegar mais perto. Por fim, reconheceu o médico ecomeçou a saltar à volta dele, tentando chegar-lhe aos ombros. Viegas afagou oanimal e entrou. Percorreu a alameda devagar, parando a cada passo, até quechegou à porta. Todo o andar superior estava às escuras; apenas no rés-do-chãohavia luz: de um lado, na sala de jantar; do outro, na cozinha.O cão, como se apenas se tivesse proposto acompanhá-lo até ali, deixou-o elargou a correr outra vez para o portão. Viegas ficou só, entre os umbrais.Arrastou os pés na soleira e por fim decidiu-se a entrar. Foi, pé ante pé, para aporta da sala e olhou para dentro. Tremeu.Debruçada sobre a mesa, onde se enrolava uma toalha meia bordada, MariaLeonor explicava qualquer coisa, em voz baixa, à filha. No outro lado, Dionísioinclinava a cabeça para um livro.Por momentos, Viegas pensou em fugir, em sair dali. Veio-lhe ao pensamento aconsciência do ridículo da sua situação de velho pretendente, que nem sabia porque o fora. Oculto pela sombra do reposteiro, passou, assim, segundos demiserável indecisão. Chamou-se idiota, criança, estúpido, e para sarcasmo final,velho. Depois, entrou.Ao primeiro passo todos ergueram a cabeça assustados, mas, enquanto Dionísiosaltava da cadeira e corria para o médico e Júlia deixava a mãe para seprecipitar atrás do irmão, Maria Leonor levava as mãos ao peito, muito pálida, efazia menção de se retirar. Viegas nem para ela olhou. Recebeu nos braçosabertos, que tremiam, as duas crianças, e a elas mesmas, atabalhoadamente,disse ao que vinha:- Recebi há pouco um telegrama de Lisboa. O João vem amanhã, no comboio datarde... – e sentindo que não podia dizer outra coisa, repetiu: - Vem no comboioda tarde... Amanhã...Depois da última palavra, não soube que mais dizer.Ficou imóvel no meio da sala, com as crianças apertadas contra o peito, o olharobstinado fixo na parede da frente, sentindo em todas as células do seu corpo umconstrangimento doloroso, angustiante.Foi Maria Leonor quem, primeiro, recobrou a serenidade. Veio da mesa com amão estendida para o cumprimento. Viegas baixou os olhos e, despegando-se deJúlia, estendeu também a mão direita. O aperto foi tão frouxo que ambossentiram o tremer das mãos, uma na outra. Mal se tocaram deixaram cair os

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braços, num desalento magoado, cheio de cansaço.Quando Viegas se encaminhou para o sofá, as pernas tremiam-lhe como juncose Maria Leonor, ao voltar para a mesa, deixou-se cair na cadeira, com umgrande suspiro de fadiga. O silêncio prolongava-se e ambos lutavam contra omedo de falar.Por fim, Júlia, intricada, olhou para o médico, e voltando-se para a mãeperguntou:- Ó mãezinha, o senhor doutor parece que está doente?! Está tão branco!Dionísio acercou-se também:- E tem a testa toda húmida de suor!...Viegas mexeu-se no sofá, pigarreou, aclarando a voz que se lhe prendia, erespondeu:- Tenham juízo! Então eu, que sou médico, posso adoecer como vocês, compalidez e suores?Maria Leonor, do seu canto, depois de ter puxado a toalha para o regaço, lançou:- Então, dizia o doutor que...A voz extinguiu-se-lhe, mas o médico apanhou a deixa e continuou:- Pois! Recebi um telegrama do Carlos, dizendo que o João chegará amanhã, nocomboio da tarde... Devemos ir esperá-lo, não achas?- Ah, pois claro! Iremos todos.Júlia começou a saltar em volta da mesa, cantando, felicíssima. Só Dionísio seencostara à parede, com as mãos amuadas enfiadas no cós dos calções, riscandoo chão com a ponta da bota. E quando a irmã lhe perguntou se estava contente,teve um encolher de ombros indiferente e aborrecido.Maria Leonor enfiou uma linha na agulha, forcejando por afirmar a mão e,depois de ter dado uns pontos, olhou pela primeira vez de frente para o médico eperguntou:- Acha que o seu sobrinho trará muita bagagem? Talvez seja preciso levar umacarroça...Viegas estendeu o lábio inferior, num jeito de ignorância, e redarguiu:- Não sei. Mas creio que não deverá trazer muitas coisas: uma criança... Éverdade, onde dorme ele?- Ficará no quarto ao lado do de Dionísio.Júlia precisou:- Já está pronto. É o quarto onde ficou o tio António quando cá esteve!

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Viegas sentiu um arrepio quando Júlia falou no tio e não pôde impedir-se de olharpara Maria Leonor, que baixou precipitadamente a cabeça.Houve um novo silêncio. Júlia, vendo que não lhe respondiam, foi para junto doirmão, que se sentara no sobrado, enrolando e desenrolando distraidamente aponta do tapete.O médico pensava já na maneira de se evadir da sala e de voltar para casa,quando entrou Benedita. A criada vinha sorridente e cumprimentou Viegas,expansiva:- Boa noite, senhor doutor! Como passa?Viegas gracejou:- Boa noite! Não passo melhor porque não me deixam!...Imediatamente se arrependeu da frase e olhou de soslaio para Maria Leonor,tratando-se mentalmente de burro. Ela tivera um gesto, meio constrangido meioimpaciente, e logo redobrara de atenção ao bordado. Entretanto, Beneditaatravessara a sala e, vendo Dionísio carrancudo, ajoelhou-se-lhe ao lado eperguntou, carinhosa:- Que tem o menino?Dionísio foi malcriado:- É o sobrinho do senhor doutor que vem amanhã...Júlia olhou para a mãe, receosa. Maria Leonor levantara-se de repente, atirara atoalha para o chão. Foi direita ao filho e puxou-o por um braço. Pô-lo de pé comviolência.Dionísio ficou diante dela, assustado, com as pálpebras frementes de medo, obraço dorido onde a mãe o empolgara.E Maria Leonor, com os lábios brancos de ira, perguntava:- Que quer o menino dizer com isso?Benedita meteu-se de permeio:- Então, minha senhora, o menino não pensou!...A intervenção da criada foi a gota de água que fez transbordar a taça já cheia.Maria Leonor gritou:- Cala-te! Mete-te na tua vida! - e voltando-se outra vez para o filho: - Respondaao que lhe perguntei! Já!Dionísio encostou-se a Benedita. As mãos de Maria Leonor tremiam quandoavançou para ele. Ia agarrá-lo novamente e castigá-lo, mas Benedita, nummovimento rápido, escondeu-o atrás de si, e quando a ama procurava afastá-lada frente pôs-lhe a mão direita no braço, apertando-o com força e detendo-a na

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sua frente. Maria Leonor abriu para ela uns olhos espantados e ia empurrá-la,quando a criada murmurou:- Não consinto.A surpresa fez tartamudear Maria Leonor.- Não... quê?Benedita repetiu, mais alto:- Não consinto!E cravou na patroa um olhar carregado de intenções e de significado. Nãonecessitou de dizer por que não consentia. Era a ameaça de sempre.Ficaram uma diante da outra, silenciosas, inimigas, fuzilando ódios. No olhar deMaria Leonor, pouco a pouco, apagou-se o brilho colérico e os olhosamorteceram-se-lhe numa lassidão que lhe baixou as pálpebras vencidas. Virouas costas a Benedita e foi sentar-se outra vez na cadeira, defronte do médico, queassistira a toda a cena sem se mover e sem pronunciar palavra. E de lá, numavoz exausta e dorida, ordenou à criada:- Vá deitá-los, faça favor!...As crianças beijaram o médico e, depois de uma pequena hesitação, acercaram-se da mãe. Esta recebeu os beijos com indiferença e fez um gesto a mandá-lasretirar. Saíram, seguidas de Benedita, que se despediu com um “boa noite!”sacudido, ofensivo.Quando os passos dos três deixaram de ouvir-se no patamar, Maria Leonorinclinou a cabeça sobre os braços cruzados e rompeu a chorar, num abaloprofundo de todo o seu corpo, que tremia, convulsionado, arquejante, contra aaresta viva da mesa, que lhe magoava o seio.Viegas levantou-se e fez um movimento para ela, mas deteve-se. E disse apenasuma palavra, murmurada num ciciar compadecido e triste:- Leonor! Ela ergueu a cabeça. E estava tão bela na sua esplêndida maturidade, comaquele brilho de lágrimas nos olhos e nas faces, os cabelos desmanchados, soltoscomo ondas de um mar dourado, que Viegas sentiu correr-lhe no sangue umespreguiçamento voluptuoso, um vago erotismo que lhe arrepiou a espinha.Mas logo se recriminou por aquela sensação. No rosto de Maria Leonor só haviamágoa, uma dor infinita e sem amparo, um desvairamento perdido, aconsciência de uma fraqueza total e irremediável. Diante daquela face desfeita,Viegas teve o impulso íntimo que o empurrava para a cabeceira do doente que setorcia nas garras da moléstia. E em todo o seu ser houve apenas o desejo deconsolar aquela dor e de enxugar aquelas lágrimas.

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- Sossega! Escuta-me!Nervosamente, deu alguns passos em frente até à beira da mesa. Ali, obrigando-se a fitar Maria Leonor, foi dizendo numa voz trémula que se firmava pouco apouco:- Quero pedir-te desculpa do que disse na última vez que aqui estive. Não penseino que disse, nem sei mesmo por que o disse. A minha idade devia obrigar-me ater mais cuidado e os cabelos brancos deviam dar-me a frieza do coração queme faltou naquele momento! Mas eu quero esquecer aquela hora e espero da tuacaridade que a minha presença não se torne para ti um motivo de escárnio! -respirou fundo e prosseguiu: - De resto, o que te pretendia dizer agora não eraisto. Quis apenas aliviar a consciência... Mas, vendo o que se passou hámomentos, considero o que se perdia se tivesse a loucura de insistir e tu a loucuramaior de aceitares. As nossas vidas, o nosso sossego, estariam à mercê doscaprichos dela. Veríamos a cada passo o seu sorriso maldoso, escarnecedor, asua impudente segurança. Não é o medo nem o egoísmo que me obrigam aretirar o que propus: é a certeza de que te posso valer bem mais como amigo doque como... nem posso pronunciar a palavra, vê tu! Compreendes o que querodizer? Sou teu amigo e quero continuar a ser apenas teu amigo!Maria Leonor, atordoada, ergueu-se da cadeira e apoiou as mãos ao espaldar.Deu um fundo suspiro e respondeu:- Compreendo... Indicou o andar de cima e continuou, como se falasse:- Se não fosse ela, eu seria sua mulher.Viegas ergueu o tronco num movimento brusco. Tudo isto nos parecerá umpesadelo e teremos vontade de fugir um do outro!Recobrava a calma. Sentia-se aliviado do tremendo peso que trouxera nopensamento durante os últimos três dias. E agora desejava apenas sair, evitarmais explicações sobre aquele assunto tão melindroso, que o mais leve exagerofaria descambar no irrisório. Apesar de toda a sua sinceridade, e talvez mesmopor ela, temia que, com o regresso da fria razão, viesse também a percepçãodaquela ponta de ridículo que existe em todas as coisas, por mais graves edolorosas.Estendeu a mão, já firme e serena, a Maria Leonor, que lha apertou por cima damesa. Com os dedos presos e unidos na despedida, olharam-se.- Até amanhã, Maria Leonor!- Até amanhã!

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XXI O dia seguinte acordou pesado e cinzento. O céu toldara-se de nuvens baixas, poronde o azul aparecia apenas de longe, quando o vento alto e quente as rasgava.Havia uma atmosfera morna, abafadiça, que anunciava trovoada, e já para asbandas dos cerros do poente corriam rumores de trovões, entrecortados pelorasgar de sedas dos relâmpagos. Os cumes altos dos montes, vistos da quinta,iluminavam-se de uma claridade violeta, onde os pinheiros se desenhavamnegros e nítidos. Depois do relâmpago vinha o enrolar do trovão, primeiro tímidoe espaçado, desabrochando depois no esplendor sonoro que enchia o céu, atémorrer como começara, num esmorecer que era o início de novo trovão. O Solpassava através das nuvens escuras, lançando para baixo, nos espaços, furtivosraios, que amarelavam com um tom de ocre luminoso os campos sombrios.Sobre a terra ia um mal-estar indefinido, uma expectativa ansiosa. Os animaistremiam de excitação quando as descargas eléctricas longínquas traziam naatmosfera o retumbar abafado da trovoada. E o mormaço do vento arrepiava osramos das árvores, que pareciam crispar-se da mesma ansiedade que perturbavaos animais.Por volta do meio-dia, a trovoada fugiu mais para poente, deixando ficar sobre ocampo a humidade superficial das grossas e raras gotas de chuva que soltara noscaminhos empoeirados e nos restolhais secos e endurecidos.Jerónimo, que levara a manhã a erguer para o céu a face tisnada e rugosa, pôde,pela hora da sesta, dizer à patroa que podiam ir à estação sem perigo de umamolhadela desagradável. No entanto, não deixou de acrescentar:- Mas, para acautelar, sempre será bom os guarda-chuvas e os capotes, que aestação é longe e o caminho desobrigado!Assim fizeram. Uma hora antes da chegada do comboio saíram da quinta, nacharrette, bem defendidos contra todos os possíveis temporais. Jerónimo, com avelha capa alentejana e os safões de pele de carneiro preto, empunhava asrédeas. Em voz baixa insultava o cavalo que lhe parecia molengão e trôpego.Dionísio, sentado no banco, ao lado dele, ainda sentido da noite anterior,embrulhava-se num oleado, e, de vez em quando, deitava um olhar de esguelhapara a mãe, num desejo de reconciliação de que a sua natureza de tímido oafastava. Para se consolar ia arquitectando impossíveis sonhos de boas relaçõescom o sobrinho do doutor e rebuscando nos seus pobres conhecimentos infantistudo o que o pudesse colocar num plano superior a ele.Atrás e sentadas de costas para o cavalo, iam Maria Leonor e a filha. Júlia puserano vestuário, a par da necessária segurança contra o tempo carrancudo, umainconsciente garridice, que fazia sorrir a mãe. Assim, atara os cabelos com uma

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fita cor-de-rosa e deixara cair o capucho para trás, para que se não perdessenem o brilho da seda nem o arranjo dos caracóis. Maria Leonor aconchegava-sena sua capa escura, que a cobria até aos tornozelos. No fundo da charrette iamguarda-chuvas para todos.Correram até Miranda ao trote descansado do cavalo. Quando chegaram à portado Tendeiro, pararam. De dentro saía Viegas, que limpava ainda os lábioshúmidos do 1860. O médico cumprimentou e subiu para o carro.Enquanto Jerónimo agitava as rédeas sobre o dorso do cavalo e a charrettearrancava com lentidão nas pedras roliças da calçada, apertou em silêncio a mãode Maria Leonor. Fez um sinal na direcção de Dionísio, que se voltara para afrente: ela encolheu os ombros, semicerrando os olhos num gesto de ignorância.Enquanto atravessavam a aldeia e cumprimentavam à esquerda e à direita osamigos que passavam, ninguém trocou palavra. Depois de deixadas atrás asúltimas casas, que vinham rareando entre espaços descobertos, cada vez maislargos e silenciosos, entraram no campo que se desdobrava pelo meio dos troncoscinzentos e mirrados, até desaparecer atrás da cortina escura das ramagens.Rente ao chão, corria um vento quente, que levantava nuvens de pó vermelhodebaixo das patas do cavalo. E o rodar da charrette com o trote do animal eramos únicos ruídos que atravessavam àquela hora escura da tarde o silêncio dosolivais. As nuvens, baixas novamente, pareciam roçar as copas atarracadas dasárvores.Viegas exprimiu o pensamento de todos quando murmurou:- Parece-me que vamos ter uma tarde de água...Do banco da frente, Jerónimo ainda quis negar, mas depois de olhar para o céuencarvoado acabou por acenar com a cabeça, fazendo oscilar a borla do barrete.Olhou para cima mais uma vez e deu uma chicotada valente no cavalo, queatirou um esticão a fugir do castigo.Enquanto a charrette corria, assim, estrada fora, Viegas voltou-se para MariaLeonor e murmurou por cima da cabeça de Júlia, como se reatasse umaconversa interrompida:- Pensei muito esta noite, em tudo... E cheguei à conclusão de que caminhavapara isto desde que para cá vieste!Ela deitou um olhar curioso ao médico e juntou, enquanto alisava os cabelos dafilha:- Há dez anos...- É verdade, há dez anos. E nunca tinha dado por tal! Os meses e os anospassavam sucessivamente, naturalmente, tudo era simples, sem complicações,sem que qualquer pensamento importuno me viesse prevenir contra a

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eventualidade de uma coisa destas. Não! Apareceu sem aviso, ao fim de tantosanos, de repente, como aparece o primeiro broto verde do trigo. O trabalho dagerminação ninguém o vê, oculto pelo véu negro da terra, enquanto vai erguendodeva ar o torrão que lhe impede a passagem, até aparecer à luz do Sol, gloriosona sua pequenina força tenaz, ressurgindo das trevas num grito de vitória queecoa pelos campos... Há uma esplendorosa vitalidade naquele grito deesperança! - estendeu as pernas até ao fundo da charrette, olhou pensativamenteas botas empoeiradas e acrescentou: - Naquele infeliz brotar é que não houveglória, nem vitalidade, nem nada, senão fraqueza!...Entre as pregas do capucho, Maria Leonor deu um suspiro:- Houve grandeza.O médico encolheu os ombros.- Ora!...Calaram-se. Ambos sentiram quão falso era o terreno que pisavam e ainutilidade do que diziam. Tudo era vagamente ridículo e fútil, as própriaspalavras vinham desajeitadas e sem sentido.Ao balanço do carro, por entre os troncos angustiosamente contorcidos, como seem cada raiz houvesse uma dor oculta, tudo era supérfluo. Apossou-se de ambosuma indefinível sensação de pesadume incómodo, de aborrecimento por aquelasituação. Por momentos, desejaram não se ter conhecido.Quando a charrette passava entre duas altas filas de sobreiros de tronco esfolado,mostrando a madeira dum vermelho-escuro como sangue seco, caíram do céuas primeiras gotas de chuva. E logo a seguir, por detrás das ramagens dasárvores, brilhou a luz violenta de um relâmpago. A trovoada voltava. Houve umbreve momento de silêncio no espaço e o trovão desabou sobre a terra como se océu viesse abaixo. Esbarrondou-se numa lentidão majestosa e foi, por entre asárvores, acordando todos os ecos que subiam espavoridos nas alturas e vinhamcair de novo, já amortecidos, numa confusão de sons que morriam.Ao ruído do trovão, o cavalo encabritara-se entre os varais, e, para que se nãoespantasse, foi preciso que o abegão quase lhe rasgasse a boca no puxardesesperado das rédeas. Júlia refugiara-se no colo da mãe, a rezar, com a línguaentaramelada, a Santa Bárbara. Dionísio, após um sobressalto de susto, fitava océu com o vago receio corajoso de quem não quer ter medo.Mas a chuva, como daí a pouco disse Jerónimo, estava pegada. Quandochegaram à porta da estação, caía já com violência, em cordas translúcidas, quese sumiam no chão duro.Entraram na estação a correr, sacudindo-se, rindo. Ao tropel, veio da bilheteira oCardoso, o chefe, que todo se admirou por vê-los ali. Foi Viegas quem explicou:

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vinha esperar o sobrinho. E logo o outro, pesaroso, informou que o comboio seatrasara no Setil uns vinte minutos. Daí para cima vinha a mata-cavalos (e aqui oCardoso fazia a velha graça, trocadilhando com os cavalos-vapor), mas mesmoassim não devia vencer o atraso.- Há que esperar, então?!...O chefe fez um trejeito dolorido com os lábios, confirmando:- Pois é! Há que esperar.Foi até à porta do cais, espreitar instintivamente, a “ver se já lá vinha ocomboio”... Voltou para dentro: o comboio não chegava. Mas veio-lhe a ideia deoferecer a Maria Leonor que se acomodasse na casa da bilheteira, enquantoesperava. Sempre estaria mais à vontade!Entraram todos. Cardoso empurrou dois caixotes, espalhou um maço de jornaisno tampo de um barril de vinho e convidou-os a sentarem-se.Lá fora a chuva continuava a cair. Sentada ao lado da janela, Maria Leonorolhava através dos vidros sujos os carris negros e brilhantes, que desapareciamnuma curva larga, por detrás do talude onde cresciam piteiras esguias. O relógiomonotonizava o silêncio.Já passavam alguns minutos da hora da chegada quando Dionísio, que fora deitaruma olhadela à escrita do Cardoso, teve um movimento brusco, que fezestremecer a mesa, e voltou-se para o médico:- O senhor doutor, o João... o sobrinho do senhor doutor vem sozinho?...Havia uma admiração mal reprimida no seu olhar.Viegas abanou a cabeça:- Não, não vem sozinho! Vem com um amigo do pai, que segue viagem.O fulgor admirativo apagou-se no olhar de Dionísio, que soltou um “ahn!”desiludido mas contente.Novo silêncio. A chuva, agora empurrada pelo vento, vinha desmaiar nos vidrosda janela. A tarde, ensombrada ali pelos grandes eucaliptos que bordavam alinha, escurecia a bilheteira. No chão de cimento da sala de espera, raspavambotas cardadas.Viegas murmurou:- Espero que te dês bem com o João...Dionísio e a mãe olharam para o médico, sem saber a qual dos dois se dirigia afrase. Foi ela quem respondeu:- Decerto...Interrompeu-se ao ouvir lá fora o sinal indicativo de que o comboio partira já da

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estação anterior. Levantaram-se e saíram para o cais. Abrigaram-se debaixo doalpendre, olhos fitos na curva da linha, à espera. Passaram longos minutos.Dionísio agitava-se, nervoso. Júlia esticava o pescoço e compunha o laço dacabeça.Lá de trás do talude, onde a linha se ocultava, começou a vir o ruído das milrodas do comboio. E o som, primeiro abafado e indistinto, aumentava de volumecorrendo sobre as travessas de pinho, passando diante da estação sem se deter.Depois, foi o penacho branco da locomotiva, que se mostrou por cima dasárvores, e logo a seguir, num rugir de ferros, o comboio apareceu. Pelo dorsonegro da locomotiva corria a água da chuva com suor. O comboio parou dianteda estação com um longo suspiro cansado. Aqui e ali abriram-se as portas dascarruagens. Uma cabeça espreitou para fora. Saltaram passageiros arrastandobagagens. E, imediatamente, o comboio, com um novo suspiro de cansaço eresignação, se empurrou pela linha fora.Viegas olhou pelo cais e exclamou:- Lá está ele! Ali!Apontou um rapazinho, que se esforçava a puxar duas malas para debaixo deuma árvore. Correram para lá. E sob os grandes ramos do sobreiro, Viegasabraçou o sobrinho. Depois, foram as apresentações:- O meu sobrinho João... a senhora dona Maria Leonor... a Júlia... o Dionísio...Maria Leonor beijou o pequeno, e Júlia, após uma breve hesitação, também obeijou. Quando foi a vez de Dionísio, João estendeu-lhe a mão aberta, como numcumprimento entre homens. E Dionísio, acanhado, retribuiu. Ficaram depois aolhar-se, um momento, de mãos apertadas. Os olhos de um corriam o rosto e ocorpo do outro, à procura do motivo inicial de simpatia.Houve, a seguir, um momento de embaraço. As apresentações estavam feitas, oconhecimento travado, mas dir-se-ia faltar qualquer coisa, um movimentoespontâneo de carinho, um grito de alegria jovial e feliz.No cais deserto, a chuva continuava a cair mansamente, sem ruído. Uma grandenuvem cinzenta subia do Sul com o ventre cheio e pesado. Dos beirais da casa daestação caíam longos fios de água, que iam desaguar na linha em pequenascascatas.No crepúsculo que o céu coberto precipitava, saíram do cais. Vinham com umvago aborrecimento, como se tivessem sido esbulhados de qualquer coisa queesperassem. João enfiara as mãos nas algibeiras e caminhava entre o tio e MariaLeonor, metendo os pés, deliberadamente, nas poças de água. Dionísio olhava-ode soslaio.Quando chegaram junto da charrette, onde Jerónimo os esperava, embrulhado

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na sua capa, o cavalo teve um brusco movimento espantadiço. O abegão deu-lhecom o cabo do chicote no focinho. O animal relinchou de dor, ergueu a cabeça,revoltado, num ímpeto que lhe fez voar as crinas longas. Recuou como sequisesse fugir aos varais, mas Jerónimo deitou-lhe as mãos às rédeas, perto daboca, e sujeitou-o até o sossegar.Ao espantar do cavalo, João, que nesse instante passava diante dele, assustou-se esoltou um pequeno grito. Deu dois passos precipitados atrás e foi esbarrar comDionísio, que o seguia. Quando tudo acabou, olharam-se sorridentes.Depois, subiram todos para a charrette. Quando já estavam sentados, Jerónimoresmungou, de baixo:- E agora, onde é que eu me meto?Efectivamente, não havia lugar. O abegão já pensava em ir sentado num dosvarais, quando Dionísio teve uma ideia:- Sentamo-nos os três no banco da frente, a mãezinha e o senhor doutor no de tráse...Jerónimo tornou:- E eu?...- Vai de pé, entre os dois bancos!- Não está mal lembrado, não senhor!E saltou para o carro. Lá em cima, com a sua capa alentejana, o barrete preto, abarba grisalha e crescida, o bom Jerónimo parecia um frade antigo. Só nas suasmãos o chicote destoava do conjunto: frades não usam chicote.A charrette deu a volta e começou a descer o empedrado. Depois entrou naestrada e o rumor diminuiu na lama fina e líquida que a cobria. A chuva cessarae agora, na noite que chegava, era só o ruído das patas do cavalo que se ouvia nocaminho. Atrás, o médico e Maria Leonor começaram a falar em voz baixa, elogo Dionísio entrou de dar tratos à imaginação para encontrar motivo deconversa. Fora ele quem propusera que seguissem os três no banco da frente...Era preciso dizer alguma coisa!Lá de trás veio a voz da mãe:- Dionísio! Então!...A expressividade daquele “Então! ... “ ainda mais o embaraçou. Respondeusumidamente:- Já vai, mãezinha?E foi. Foi Júlia quem começou a cantar, debaixo do seu capucho de lã, a CaninhaVerde:

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Oh, minha caninha verde,Oh, minha verde caninha... E por aí fora. Daí a pouco, Dionísio entrava também na cantoria, e logo depois,apanhada a música e a letra, João juntava a sua voz ao coro. Estava desfeito ogelo.Acabada a cantiga, houve risos e palmas, e não tardou nada que Jerónimolembrasse outra, o Mestre Gadanheiro. Ele próprio acrescentou ao coro a sua vozgrossa e áspera, que fez arrebitar as orelhas do cavalo.Atrás, Viegas murmurou:- Até que enfim respiro...- Também eu! - respondeu Maria Leonor.Daí por diante tudo foi fácil. Já não eram só cantigas que vinham do banco dafrente, eram também ruidosos projectos de grandes passeios e pescarias, decaçadas aos ninhos...Mas, aqui, Júlia protestava, indignada:- Isso não! Para isso não contem comigo!...João também concordou:- Sim, ninhos, não! Só para ver...Dionísio cedia, radioso. E, reentrando na consciência da sua própria segurança edo seu valor, atirou de novo, para o ar húmido e escuro, a voz infantil nos versosingénuos da caninha eternamente verde e fresca.Quando chegaram à quinta, o coral ia no auge.E agora era João quem o guiava nas estrofes gloriosas do “Zé Pereira”. O “pum!pum! pum!” retumbava entre as filas das acácias, enquanto a charrette avançavano caminho já todo negro.Pararam à porta da casa e apearam-se. João teve um olhar apreciativo para afachada, onde corriam no andar de cima as oito janelas que deitavam para aalameda, e procurou espreitar, por entre os troncos, a quinta, invisível àquelahora e com aquele tempo.Quando entraram em casa, veio-lhes ao encontro Teresa. Maria Leonorapresentou-a:- Esta é a Teresa...O pequeno sorriu, respeitoso:

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- Muito gosto...E ficou-se a olhar a casa, os sofás de veludo vermelho antigo, os altos tectosapainelados de castanho, o corrimão luzidio e polido. Mas logo Dionísio e Júlia oarrancaram da contemplação e o levaram a correr a casa toda, num rebuliçoalegre, que fazia tremer os vidros.Maria Leonor sorriu, satisfeita.Desapertou a capa encharcada e atirou-a para cima duma cadeira.- O doutor janta cá, evidentemente...- Sim, se me quiseres.- Que resposta! - e, para Teresa: - Diz à Benedita que venha falar-me.Teresa ia cumprir a ordem, mas logo voltou:- Que cabeça a minha! A Benedita, logo que a senhora saiu, foi-se deitar.Queixou-se de que lhe doía a cabeça.Maria Leonor olhou para Viegas, surpreendida.O médico encolheu os ombros.- Bom, então vê tu que se não atrase o jantar!Teresa saiu. Quando abriu a porta que dava para o corredor que levava àcozinha, vieram de lá as gargalhadas esganiçadas de Joana. Que brincadeira iriapor ali!Viegas tirou o sobretudo e deu-o a Maria Leonor.- Que quererá dizer esta doença? - perguntou ela.- Ora! Provavelmente o que querem dizer todas...- Mas não andará qualquer coisa por detrás disto?O médico ergueu as sobrancelhas.- Lá voltam os eternos receios! Como queres que o saiba? Todos podemos dizerque nos dói a cabeça, mesmo que estejamos de perfeita saúde.Maria Leonor deixou-se cair num sofá.- Tudo o que ela faça ou diga tem sempre para mim um segundo sentido, umaintenção reservada. E justamente o que me tortura é o não saber ainda, depois detodo este tempo, quais são as suas verdadeiras intenções.- Mas para que hás-de preocupar-te com semelhantes pensamentos? - deu umjeito ao casaco, compôs os óculos e acrescentou: - Bom, eu não posso deixar delá ir acima ver o que ela tem...- Pois sim, vá.

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Enquanto o médico subia a escada, Maria Leonor levantou-se e dirigiu-se para asala de jantar. A mesa, já posta, resplandecia de cristais e de lumes. Foi até àjanela e espreitou para fora, através dos vidros embaciados.O céu descobria-se lentamente e, por entre as nuvens ténues que se dispersavam,luziam estrelas. De fora vinha o negro sussurro das árvores. Os últimos respirosdo vento sopravam na alameda, uns atrás dos outros, na pressa de partir daquelessítios.Maria Leonor abriu a janela, debruçou-se, e inconscientemente, durante algunsmomentos, procurou imaginar-se na alameda, olhando a casa toda embrulhadana escuridão, a arregalar apenas as órbitas vazias e brilhantes das janelasiluminadas. E a casa, com aquele olhar fixo e duro, a tentar furar as trevas, deviaparecer-se com um grande monstro de muitos olhos, sempre vigilante.Por cima de si acendeu-se outra luz. O monstro acordava e ia levantar-se,despegar os grossos membros enterrados no chão, e caminhar através doscampos empurrando as árvores para os lados, pisando as vegetações húmidas,sempre com os olhos inexpressivos brilhando no escuro. Era horrível acaminhada do monstro, com o seu capacete de telhas musgosas, manquejandonos alicerces, subindo e descendo os vaiados e chocalhando dentro de si osmóveis e as pessoas.Agora, o monstro rodopiava numa tarantela doida e ia subindo uma encosta onde,no cimo, se elevavam muros brancos, fechados por um portão velho eferrugento, que arrombava num só contacto. Sempre bailando, o monstro enchiaas paredes e derrubava plantas e cruzes até ao fundo, onde se erguia um pequenomontículo de terra, num esforço logrado para atingir o céu.Ao chegar ali, o monstro deixou-se cair no chão, de cansado. Os olhos iam-se-lhefechando, pelo capacete musgoso corriam-lhe gotas de água, que pareciamlágrimas caídas dos ramos das árvores. E adormeceu. Mas, enquanto dormia,gemia e suspirava.Maria Leonor, agora nas garras da alucinação, via-se tentando fugir de dentro daescuridão do monstro adormecido. E conseguia-o. Ia, cautelosamente, pelocaminho, reprimindo o desejo de largar a correr, espavorida. Quando chegavaao portão, ouviu, atrás de si, um ronco. O monstro acordava, abria todos os seusolhos, e ela ficava toda banhada naquela luz agressiva, dura e inexorável. Evoltava. E o monstro tornava a adormecer, suspirando e gemendo.Aqui, Maria Leonor fez um violento esforço. Atirou a janela num repelão ecorreu para dentro, trémula, com os olhos dilatados, e todo o terror que erapossível sentir estampado no rosto.Precipitou-se para a porta. Ia fugir de casa, gritar, num pavor louco e insensato.Nesse momento entrava Viegas, e ela ficou nos braços dele, a tremer, num

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frenesi histérico que lhe fazia castanholar os dentes.Viegas assustou-se:- Que é isso, Maria Leonor? Que tens tu?Ela quase lhe desmaiava nos braços. E balbuciava:- E horrível!... O monstro... sentado no coval do Manuel! Jesus!O médico levou-a para o canapé de verga e deitou-a. Borrifou-lhe as faces,encharcou-lhe as têmporas, abanou-a com força. Por fim, Maria Leonorserenou. Começou a chorar e caiu numa lassidão completa. O sangue fugiu-lhedo rosto e ficou branca e fria, com um grande suor a humedecer-lhe a fronte.- Jesus! Jesus! - murmurou outra vez.- Mas que tens tu? - insistiu Viegas. - Acalma-te! Não tarda que venha gente.Ela limpou as lágrimas, deixou pender a cabeça para o espaldar da cadeira, enuma voz que tremia contou a pavorosa alucinação.Quando acabou, Viegas conduziu-a à mesa. Ela sentou-se e cruzou os braçossobre a toalha, exausta. O médico ficou de pé, pensativo. E depois de um grandesilêncio, murmurou:- Vamos tentar não pensar, nem falar nisto, até amanhã. Esta noite não nospertence. É dos pequenos que lá andam dentro. Reage, Maria Leonor, peço-te!Amanhã discutiremos o que é preciso fazer.- Pois sim...Daí a pouco as crianças entraram e começou o jantar.

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XXII Viegas, no dia seguinte, voltou à quinta. Ao apear-se da égua, à porta, logo lhevieram de dentro os risos e as correrias estrondosas das crianças. Ainda com umpé no estribo, espreitou para dentro, risonho, curioso daquela alegria que pareciaexpandir-se através das paredes.Atrás de si, o seu velho perdigueiro erguia metade das orelhas e farejava,intrigado.Levando o cão nos calcanhares, o médico entrou, para logo estacar na soleira daporta. Do alto da escada, sobre o corrimão, precipitava-se o sobrinho. Em baixo,Dionísio e a irmã aguardavam de braços abertos a queda.Viegas teve uma larga exclamação:- Então, na alegre brincadeira?!...Os dois irmãos voltaram-se para ver quem falava, mas imediatamente seestatelaram no soalho debaixo do peso de João, que terminava em cima deles asua viagem quase aérea. Ficaram os três enrodilhados no chão, enquanto omédico atirava uma risada. O perdigueiro correu para o emaranhado de pernas ebraços, e latiu, desconfiado de tal abundância de membros em espaço tãoreduzido.Quando os três garotos se levantaram, esfregando os joelhos, Viegas ainda ria:- Então, vocês tratam assim as visitas?!Sorriram, mal refeitos da queda. E Dionísio rectificou, muito pronto:- Se o senhor doutor não tivesse falado, o João não cala...- Pois foi! Mas vocês magoaram-se muito?Todos negaram. Acabavam de ver lá fora a égua, a garupa forte luzindo ao sol,sacudindo as moscas com o abanar impaciente da cauda. E o selim, visto delonge, parecia-lhes o melhor assento do mundo.Correram para a porta. Dionísio punha já o pé no estribo e agarrava-se às crinaspara subir, quando a lembrança do que era seu dever fazer naquele momento odeteve. Largou o estribo e o pescoço da égua e disse para o companheiro:- Sobe tu, João! Vais ver como é bom!Já se tuteavam. O jantar do dia anterior completara a obra que o pequeno orfeãoiniciara. E depois da refeição terminada e todos os habitantes da casa deitados, osdois irmãos tinham-se evadido dos quartos para passarem a noite com o hóspede.Sentados na beira da cama, todos contaram histórias e as respectivas vidas.Agora, escarranchado na égua que Dionísio conduzia pela arreata, João ria,

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contentíssimo. Júlia, agarrada a uma das pernas dele, gritava para o irmão quenão puxasse com tanta força porque podia haver perigo de cair...- Qual cai?! Não cai nada!Viegas, encostado à ombreira da porta, sorria.E, por fim mandou-os subir aos três para cima da égua.Logo Júlia teve um grande movimento de piedade:- Mas o cavalinho não pode...João, de cima, excitado, garantia que eram todos leves, que a égua podiaperfeitamente. E o tio tinha mandado...Acabaram por subir. Daí a momentos, Viegas, conduzia, para cima e para baixo,na alameda, a sua velha égua mansarrona e pacata, com aquela carga dejuventude radiosa. O perdigueiro, com a cabeça alongada entre as patas, tinha-seestendido a gozar o sol e o espectáculo. Os criados que passavam sorriam para ogrupo.Quando Maria Leonor apareceu à porta, o médico acenou-lhe:- Viva! Como estás vendo, de cirurgião a ama-seca vai um passo!...Deixou a égua e dirigiu-se a Maria Leonor. Junto dela, com um olhar enternecidopara as crianças, murmurou:- Os garotos estão felicíssimos...- É verdade! Têm levado a manhã inteira naquela doida alegria!Dionísio, quase sentado no pescoço da égua, puxava as rédeas para a obrigar avoltar.- Vamos indo? - perguntou Maria Leonor.- Vamos indo aonde?! - respondeu o médico, intrigado.- Combinámos dar uma volta para mostrar a quinta ao João...- Ah, bom!...Voltou-se para os garotos, que esperavam, ainda em cima da égua.- Acabou-se a cavalgada! Todos para o chão!Lá de cima veio um murmúrio desaprovador. Mas como naquele momento aégua se sacudisse sob a picada mais forte dum moscardo, deitaram-se todosabaixo, tomados de pânico, como se temessem vê-la partir à desfilada.Reunidos debaixo do alpendre, discutiram a volta a dar. Assente o itinerário, ascrianças romperam a marcha, depois de um último olhar saudoso para a égua,que se afastava, levada por um moço.Passadas as primeiras árvores da alameda e quando o riso das crianças já se

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ouvia adiante, Maria Leonor começou:Creio que estou doente, doutor... Trago em mim uma sensação de incompletudeconfrangedora e arrepiante. Ando separada de qualquer coisa, sem a qual nãopenso, não vivo. É como se me tivessem esvaziado de tudo quanto é espírito e metivessem deixado apenas a matéria, incapaz de viver e de pensar só por si! Tudoisto me dá um sentimento de inexplicável vazio, uma angústia de quem procura enão acha, de quem sabe que deve fazer algo, mas ignora o quê...- Como passaste a noite?- Como passei a noite?! Imagine!- Mal, suponho eu...- Não. Estupidamente calma. Dormi como só dormem as crianças e os mortos.- É extraordinário!- Pois é isto, precisamente, que me obriga a pensar que a minha alma deve andarpor muito longe.Viegas sorriu-se.- Não ria, doutor! Alma, sim! Alma! Pois não vê que, apesar de tudo o que sepossa dizer contra o emaranhado de superstições e crendices a que a ideia daalma deu origem, a íntima consciência da inevitabilidade da sua existênciapermanece sempre? Não vê que não há outra solução?O médico parou para acender o cachimbo. A frente, João, empoleirado nummarco de pedra, seguia com a vista um carro de bois que Júlia lhe apontava.- Dar-se-á o caso de que a velhice do padre Cristiano te tenha inspirado tão fortesrazões e argumentos que te levem a falar assim?- Não tenho falado com o padre Cristiano!- Então, houve revelação?!- Por favor, não brinque!...- Ai, não estou a brincar, menina, não estou! Só quero saber o que posso fazer porti. Bem vês, se te refugias na religião, então, eu, do fundo da minhainsignificância, afasto-me e deixo o campo livre à consolação suprema...Maria Leonor teve um gesto de desespero:- Não sei, não sei nada!- Bom, aí está um princípio! Achas-te nas condições necessárias para começar asaber qualquer coisa!Interromperam-se. Tinham alcançado as crianças, que miravam a debulhadora.Viegas deu ao sobrinho umas explicações apressadas sobre o funcionamento da

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máquina. Depois, continuaram:- Vamos a saber. Ela?...- Continua doente, segundo diz. Dores de cabeça, inverificáveis.- De facto. Viste-a?Houve uma náusea no rosto de Maria Leonor.- Não, não vi! Receio não poder dominar as mãos e...- E?...- Matá-la!- Que disparate! Não achas que para falar da existência da alma, com o teuentusiasmo, é preciso respeitar um pouco mais o corpo? Ou a certeza de que nãolha destruirias te bastava?- Não discutamos isso!- Como queiras...Sentaram-se no muro que delimitava a quinta, daquele lado. Em baixo era oprado, onde pastavam cavalos. Ao fundo, entre choupos de tronco branco, o rio,que àquela hora da manhã se esgueirava por debaixo de uma neblina ténue, queo vento e o sol desfaziam aos poucos. No céu já eram raras as nuvens e o azulcomeçava a surgir em largas faixas, ainda veladas e indecisas.Entre os esteios da latada que cobria o poço, os garotos jogavam “o esconderas.E eram gritos alegres de “e já!” e risadas frescas quando o fugitivo era agarradoe protestos de “assim não vale!”. Por entre as árvores do pomar, que se alargavaalém do poço, corria uma aragem fresca e húmida, cheirando a terra molhada, obom cheiro das núpcias do solo e da água.Viegas passeou o olhar pelo campo, do lado de lá do rio, até às colinas negras demato que fechavam o horizonte. E observou:- É, realmente, um sacrilégio falar nestas coisas, sob este grande céu onde têmcabido todos os deuses, sobre esta beleza de terra. Isto não vem a propósito, mas,crê, há momentos em que desejaria sentar-me naquelas leivas verdes, deitar-meao comprido naqueles sulcos negros e ficar o dia inteiro a desfazer torrões comos dedos, a enterrar as mãos na terra, a possuí-la durante horas seguidas numalenta e consoladora volúpia.Pelos olhos de Maria Leonor passou uma comoção intensa, que os fez rebrilhar.As mãos afagaram nervosamente a saia e descansaram depois, já pacificadas,no veludo verde do musgo.Do poço, vinha agora a melopeia de uma dança de roda. A vozinha fina de Júliaenumerava as flores do jardim da Celeste e os garotos acertavam o tom para

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explicar o que tinham ido lá fazer. Acabadas as coplas, seguia-se o estribilhoflorido do girofié-giroflá.- Em que pensa? - perguntou Maria Leonor.O médico, após um momento de silêncio respondeu:- Estava a pensar na minha teoria da simplicidade da vida e na inveja louca quetenho do apuro a que os homens das cavernas a tinham levado! Naquele tempo,era a grande Natureza a senhora de tudo. E não me parece que se tenhaverificado a existência de Beneditas arreliadoras, de Leonores infelizes e, muitomenos, de Viegas cirurgiões e conselheiros. Então, a machadinha de sílexresolvia quase todos os problemas e dificuldades... O pior foi que a evolução doteu Spencer deu cabo de tudo!Maria Leonor teve um sorriso significativo, intencional:- É a Fatalidade, meu caro doutor, é o “estava escrito”!O médico levantou-se, impaciente:- Já sei. O mau é que esta filosofia de “três, um vintém” não resolve nada eacabamos como os filósofos que constroem universos e morrem à míngua.Vamos andando!Maria Leonor levantou-se também. Já perto do poço, gritou para os pequenos:- Desçam o valado e vão até ao meloal!As crianças saudaram a ideia com gritos de alegria, e, de mãos dadas, deitarama correr pelo pomar fora, sob os verdes ramos espinhosos das romãzeiras. Aofundo, desapareceram num salto encobertas pelo valado.- O que hei-de fazer, então?Lado a lado, roçando os ombros onde o caminho se estreitava, confundindo nochão as duas sombras numa só, os dois seguiram as pegadas das crianças.- Posta de lado, por absurda e por falta da machadinha de sílex, a ideia de lhecortar o fio da existência, podes, por exemplo, despedi-la...Maria Leonor teve um gesto de violenta recusa. E foi clara:- Isso não!- Essa agora! Mas porquê?- Não posso. Para onde iria ela?O médico parou no meio do caminho, boquiaberto.E, arrancando-se de surpresa, analisou:- Vocês, mulheres, são extraordinárias! Aqui estás tu, que detestas a Benedita eque recusas pô-la na rua com a grande razão de que a pobrezinha não teria para

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onde ir!... E de magnânimo!De que é não sei! O que importa é que não o poderia fazer. O meu sofrimentoseria maior.Viegas considerou:- Sem contar que ela podia abandonar o seu processo silencioso e vingar-se comotoda a gente, num caso destes: falando.- Sei que não o faria. Conheço-a o suficiente para saber que o não faria! E issoseria, justamente, o pior...Chegavam ao valado. Viegas deu a mão a Maria Leonor para descer. Deramuma ligeira corrida no declive, até ao carreiro que serpeava entre a erva, direitoàs ramagens rasteiras do meloal.Dirigiram-se para lá, Viegas à frente e Maria Leonor alguns passos atrás,pensativa e silenciosa.Em Viegas, adivinhava-se uma hesitação quando respondeu, daí a pouco:- Então, só te restam duas soluções! - e continuou: - Uma, é aguentar tudo, comoaté aqui!...De trás, veio uma exclamação de desespero, e logo a seguir um murmúriotrémulo e pávido:- É impossível...Os largos ombros de Viegas soergueram-se concordando:- A outra já não é de agora e até já foi posta de parte por motivos que, no fim decontas, talvez não valham nada... Casares comigo.Não pararam. Não houve gestos nem interjeições. Dir-se-ia que ambosesperavam aquele remate e o aceitavam tal como era, sem discussões inúteis,como aceitariam o inevitável.Apenas, quase ao chegarem à borda do meloal, Viegas levantou os braços,invocando, e declamou, voltando-se para Maria Leonor:- Ó vida simples e natural do homem das cavernas, por onde andarás tu, quetanta falta me fazes?Ela sorriu-se, abanou a cabeça e disse:- Continuamos sem solução, doutor!- Achas?!E tudo tão confuso, tão complicado... Como posso aceitar a sua solução, que nãoé outra coisa senão um sacrifício para si? E que direito tenho de lhe estragar avida? Basta que a minha o esteja.

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A resistência impacientou-o:- Creio que nunca homem algum fez uma proposta de casamento como eufaço... A situação é, de facto, estranha, quase absurda, mas a verdade é quefomos empurrados para ela por uma mão invisível e poderosa, que não nos deixaoutra saída. Haverá mal em experimentar? De resto, tu não precisas de ummarido...Um brilho fugidio no olhar de Maria Leonor fê-lo calar-se, embaraçado. E tevemedo. Murmurou algumas palavras, que ela não percebeu, e rematou:- Não vejo outra solução... Se encontrares melhor, diz-me...Acobardava-se. Os mesmos pensamentos que o tinham perturbado após aprimeira vez que falara de casamento a Maria Leonor, voltavam agora,obcecadores e teimosos. A idade, o temperamento dela, aquela exaltaçãonervosa de que ele bem conhecia a causa...Quando chegaram junto das crianças, iam outra vez a par, silenciosos eaborrecidos, roçando ainda os ombros, mas sem a intimidade e a confiança de hápouco. Sentados na terra dura, os pequenos enterravam os dentes no miolo macioe sumarento de uma melancia, rindo ao sentirem o sumo correr-lhes pelopescoço abaixo até ao peito. E todos tinham já melancia nos fatos e nas pernasnuas.- Ora que asseados que os meninos estão! - começou Maria Leonor.Mas logo Dionísio explicou, sem sombra de receio:- Desculpe, mãezinha, mas estávamos a ensinar o João a comer melancia!...E exemplificava, enfiando pela boca dentro a parte que lhe coubera do castelo.João, um pouco timidamente, repetiu o gesto. Só Júlia teve que dividir a operaçãoao meio, já quase engasgado. Acabaram todos por sorrir e Maria Leonoresqueceu o ralho.Enquanto os garotos corriam a lavar as mãos e a cara numa pipa cheia das águasda chuva, Maria Leonor ofereceu:- Quer uma talhada, doutor?- Não, obrigado! Prefiro as minhas. Desculpas, sim?- Ora essa! - e calou-se, amuada.Ao lado, depois de limpos do sumo pegajoso do fruto, os dois rapazesconversavam. E Dionísio, mostrando o rio, que dali mal se divisava por entre aramaria dos salgueiros, ia dizendo:- Olha, acolá, fica o rio. Depois de se passar aquele choupo mais alto, há umfreixo cortado. Preso ao freixo há um barco: amanhã, logo de manhãzinha,vamos pescar para ali...

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Júlia, ainda com a face gotejando de água, aproximou-se: queria saber o queestavam eles a combinar, assim, tão em segredo...O irmão retorquiu, superior:- Não é contigo. São conversas de homens!...Júlia explodiu logo: não era com ela? Mas quando o João não estava, era tudocom ela! E a Júlia ia à pesca, ia caçar gafanhotos, ia... Aqui, não pôde mais, erompeu num choro desabalado.Viegas sorriu:- Ora cá estão os inevitáveis ciúmes!Olhou para o sobrinho e disse-lhe com um sorriso bonacheirão e bem-disposto:- Vê tu o que arranjaste. Vá, anda faz qualquer coisa...João chegou-se para a pequena, que se sentara ao acaso num monte de melões, eajoelhou-se-lhe ao lado.Tirou-lhe as mãos do rosto e disse, muito sério:- Então, Júlia, não chores! Nós estávamos a combinar ir à pesca amanhã, mas tutambém vais... - e acrescentou, resoluto: - Olha que se choras, digo à tuamãezinha que me vou embora: não quero que vocês se zanguem por minhacausa.Júlia limpou o rosto molhado e os olhos, e respondeu, ainda com uns restos desoluços na voz:- Não, não te vás embora! Eu, amanhã, vou com vocês, sim?- Pois claro. Nem eu iria...Ela desceu abaixo dos melões. Quando compunha as saias, deu de cara com oirmão, que a olhava de través.Atirou-lhe:- Ruinzão!Viegas deu uma gargalhada. Empurrou Dionisio Para o lado dos outros bois:- Ora tenham juízo, meus patetas! Sigam lá adiante.Voltavam para casa, agora mais devagar, porque o sol, já quase no meio-dia,aquecera, liberto das névoas da manhã. Tornaram a atravessar o prado, onde seerguiam figueiras-do-inferno, abrindo os seus frutos negros e espinhosos.As crianças tinham largado a correr para o valado e resolvem as suas questõescom facilidade. Já não se socorrem do machadinho de silex, mas ainda seesgatanham e descompõem. Como, no fim de contas, não há morte de homem,acabam por se reconciliar!

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- Devo eu, também, procurar uma reconciliação?- Que seria uma humilhação para ti, e sem qualquer proveito.- Então?- Então, já te disse...Novamente se deteve. Sentia que se afundava, que não tinha mão em si, de modoa calar aquilo que mais temia dizer. Enfiou as mãos nas algibeiras, irritado, e tuou o passo, obrigando Maria Leonor a dar ligeiras corridas para conseguiracompanhá-lo.Chegaram assim a casa, com as crianças ao lado cansadas da correria e dabrincadeira. Quando entraram, veio-lhes ao encontro Teresa, que logo deu anotícia:- A Benedita já se levantou, minha senhora.- Ali, sim?! - fez Leonor.Viegas resmungou, enquanto limpava as botas de lama:- Vai começar a festa...- Disse alguma coisa, doutor?- Disse. Disse que aceitava o almoço de bom grado, se mo oferecesses!Com um sorriso magoado, Maria Leonor respondeu:- Nesta casa, até os inimigos comem - e vendo que as crianças se espalhavam jápela casa fora, avisou: - Tratem de subir para mudar de fato. Não podem ir paraa mesa nesse estado.Enquanto elas cumpriam a ordem, perguntou à criada:- Onde está a Benedita?- Na sala de jantar, a pôr a mesa para o almoço, minha senhora. E eu, se me dálicença, volto para a cozinha...- Vai, sim! E diz à Joana que apresse o almoço.- Pois sim, minha senhora!Depois de Teresa sair, ficaram apenas, na sala de entrada, os dois. E MariaLeonor, com um lento suspiro, murmurou:- Venha comigo...Viegas deu-lhe o braço e, ao notar que a mão dela tremia, não pôde reprimir oespanto:- Como tu a receias!...- Não é a ela que eu temo - respondeu Maria Leonor, apoiando-se-lhe ao ombro.

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É ao seu silêncio, ao seu aspecto esfíngico e severo, à sua máscara de cera, quenão deixa transparecer um pensamento sequer!Voltou-se de súbito para o médico e, prendendo-lhe as mãos nas suas,acrescentou, como se o que ia dizer apenas naquele instante lhe ocorresse:- Não, não é a ela que eu temo. É a mim! Parece-me que ela não é mais que umdesdobramento da minha personalidade, uma outra Maria Leonor, que se vestiude modo diferente e que pôs uma máscara para que eu não a conheça. E agorapenso se a verdadeira Benedita não voltará um dia, como eu a conheci, amiga eboa, quase irmã...Viegas, que a olhava com inquietação, sacudiu-a.- Leonor, que é isso? Estás a divagar, minha tonta!... Vamos, sossega! Vemalmoçar.Maquinalmente, Maria Leonor apoiou o braço no de Viegas. Levava os olhos nochão, mas ao chegar à porta da sala de jantar ergueu-os. Teve um movimento derecuo, que o médico reprimiu no último instante. Benedita estava lá dentro,compondo flores na jarra do centro da mesa.Ao vê-los entrar, largou o ramo e saudou:- Bom dia, minha senhora! Bom dia, senhor doutor!Maria Leonor não respondeu. Deixou o braço do médico e foi sentar-se nocanapé, defronte da janela aberta.Viegas foi expansivo:- Bom dia. Então, isso vai melhor?- Ah, estou boa! O comprimido que me deu fez-me bem...- Óptimo!Deixou Benedita e veio sentar-se ao lado de Maria Leonor. A criada continuoujunto da mesa, compondo o serviço.O médico chamou o cão e começou a puxar-lhe as orelhas e a segurá-lo entre osjoelhos. Quando o animal rosnava, de zangado, dava-lhe safanões amigáveis nacabeça e fazia-o rolar no soalho.Maria Leonor olhava de revés para a brincadeira.E sentia-se infeliz por ver a alegria que o cão irradiava quando, depois de rebolarpelo chão, investia de novo, de goela aberta, para o dono. Num momento em queo animal passou ao seu alcance deu-lhe um empurrão mal--humorado. O cãoolhou para ela, surpreendido, e farejou-a de longe.Viegas sorriu-se, complacente:- Ora não me dirás que mal te fez o cão?

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Ela, com o queixo apoiado na mão cerrada, não deu resposta. Limitou-se a olharpara Viegas e a encolher os ombros.O médico ia chamar o perdigueiro e recomeçar a brincadeira, quando se ouviuum ruído de pés correndo pela escada abaixo. O cão ergueu a cabeça,precipitou-se para a porta, latindo, e quase se foi embrulhar com as crianças queentravam.Os dois irmãos foram logo direitos à mesa. Só João se deteve à entrada, umpouco embaraçado com a presença de Benedita, que ainda não conhecia.Vendo-lhe a hesitação, Maria Leonor teve um largo gesto de indiferença e disse:- Entre, João! É Benedita...O pequeno corou e olhou para a criada, que empalidecera. Benedita fez um gestona direcção da ama, mas conteve-se e voltou ao trabalho.Maria Leonor sorria, impudentemente vitoriosa. Entre tanta gente, sentia-sesegura e protegida para atirar aqueles inofensivos dardos, ainda que soubessequão cara lhe viria a custar a satisfação destes momentos.Viegas murmurou, do lado:- Tem cuidado...Com um brusco e desdenhoso movimento de ombros, replicou:- Ora, que importa?Disse-o em voz alta, de modo que a criada ouvisse. Benedita, num gesto violento,atirou um prato sobre a mesa e saiu de rompante.Enquanto as crianças se debruçavam da sacada para a quinta e Dionísio gritavaqualquer coisa para baixo, para o Sabino, Viegas perguntou:- Por que diabo não hás-de tu guardar um meio-termo razoável? Ora a receiascomo uma criança se apavora com a escuridão ora a afrontas como se nãotivesses nada a temer! Seria preferível que tomasses uma atitude única e que amantivesses.- É isso, justamente, o mais difícil. Procedo ao sabor dos meus nervos: quase fujodela se estou deprimida ou calma, mas, se me excito, sinto-me capaz dedefrontá-la toda a vida numa luta de todos os dias, num ódio de todas as horas!... -após um momento de silêncio, acrescentou: - Utilizando a velha frase, tenho acoragem da minha cobardia!Calou-se. As crianças voltavam para dentro e, no mesmo instante, Beneditaaparecia à porta, com uma terrina fumegante nas mãos.Levantaram-se e foram para a mesa. A criada começou a servir a sopa e logoDionísio, depois de espreitar para dentro da terrina, anunciou:

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- É de pato!Júlia, da ponta da mesa, quis saber se era o seu patinho branco. E tinha jálágrimas nos olhos quando Benedita a sossegou:- Não é do patinho branco, menina!- Ah! - e deu um suspiro de alívio.Inclinou-se para o lado, para João, e começou a contar-lhe a atribulada históriadaquele patinho branco, que nascera coxo e que ela alimentava como se fosse amãe pata. O patinho, coitado, não podia correr tanto como os outros, e quandochegava à comida só encontrava restos. De maneira que era ela quem otratava...No outro extremo da mesa, a mãe e Viegas sorriam àquele idílio. Depoisfitaram-se confundidos, conscientes da estranha atmosfera familiar que pareciaencher a sala, unindo-os todos sobre a toalha branca.Mas já Dionísio, do seu lugar, quebrava o encanto, chamando:- Mãezinha!Maria Leonor ergueu a cabeça, que baixara para o prato:- Que é?- A mãezinha dá licença que vamos amanhã, cedinho, à pesca, com o Sabino?- Para onde querem vocês ir?- Para o paul...Maria Leonor franziu os lábios:- Para o paul, não, que é perigoso... Vão antes para o barco. Ou vocês já oafundaram?- Deixa-os ir para o paul - interveio Viegas. Depois da pesca vão almoçar aminha casa. Que dizem vocês?O convite foi acolhido com entusiasmo pelas crianças, que logo entraram decombinar o passeio, o número de linhas de pesca, todos os apetrechos para aexpedição.Maria Leonor e o médico ficaram, de novo, quase isolados, no fundo da mesa.Benedita saíra. E subtilmente, com passos de veludo, passou entre os dois amesma sensação de intimidade conjugal que há pouco os confundira. MariaLeonor olhou para Viegas com uma curiosidade disfarçado, correndo-lhe asmãos nodosas e fortes, os ombros grossos, um tanto abaulados, os cabelosgrisalhos e despenteados. Demorou o olhar no rosto do médico, interessada nasrugas fundas que lhe vincavam a testa. E teve um arrepio quando ele levantou acabeça e a olhou com a mesma expressão de curiosidade. Ambos, naquele

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momento, sentiram o que devem ter experimentado o primeiro homem e aprimeira mulher no momento da revelação do sexo, quando as diferenças físicasse patentearam e o instinto deu o primeiro alarme, ateando nas veias o fogodesconhecido.Ambos coraram e desviaram o olhar. O médico remexeu-se, inquieto, nacadeira, e obrigou-se a intervir na conversa ruidosa dos garotos. Maria Leonorbaixou a cabeça, sorvendo a sopa em lentas colheradas, silenciosa, com os olhospregados na toalha.O almoço continuou e acabou em silêncio. Depois de retirado o último prato,Maria Leonor disse para Benedita:- Serve o café no escritório.A criada teve um relancear de surpresa, mas respondeu:- Sim, minha senhora!Saiu, enquanto Maria Leonor, cruzando as mãos sobre a mesa, dava graças. Dooutro extremo, João, já levantado, abria uns grandes olhos espantados para acena. E vendo os seus dois jovens amigos, silenciosos e graves, de cabeça baixa,murmurando palavras incompreensíveis, deixou pender, também, a testa,confuso, sem saber o que fazer. Viegas olhava para ele com um sorrisocompreensivo e doce, que o sobrinho viu e compreendeu: era um mundodiferente, aquele, com outras regras e outras leis, um mundo que para o mesmofim seguia um caminho diverso do seu.Acabadas as orações, Maria Leonor levantou-se. Ergueram-se todos e saíram dasala de jantar. Viegas, ao lado dela, ia perguntando:- Por que dás tu, ainda, as graças? Já não é tempo.- É sempre tempo para agradecer seja o que for.- Quanto ao motivo por que o faço, nem sei! Hábito, não, com certeza: quandoera solteira, em casa dos meus pais não se agradecia o pão a Deus, tal como senão censurava o diabo pelas dificuldades. Devoção, sei lá!... Bem sabe que nãosou devota, mas... quem pode dizer que sabe o que é? Dou-as, talvez, porqueminha mãe, depois da morte do meu pai, introduziu em casa esse uso. De resto,obrigou-me a abandonar as ideias dele e a passar a ter as suas, que durante tantosanos escondera. O que eu resisti, Santo Deus! De qualquer modo, não sei... E tudotão confuso!Começaram a subir a escada. As crianças já lá iam em cima, tagarelandosempre. Enquanto subia devagar, quase parando em cada degrau, Viegas foirespondendo:Depende do ponto de vista. A confusão e a clareza não existem. Uma questãonem é clara nem é confusa: é uma questão, e nada mais. No teu caso, se tudo se

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apresenta confuso, não é o tudo que tem a culpa, és tu. Verdadeiramente crenteou verdadeiramente descrente, a clareza e a confusão não existiriam para ti...Maria Leonor encostou-se à parede e respondeu:- Vê-se bem que no seu espírito nunca apareceram dúvidas!- Dúvidas? Ai, tenho tido muitas...- Dúvidas religiosas?!...- Ah, isso não! Dúvidas sérias, depois da adolescência, não! Nunca dentro demim houve tais guerras santas! As vezes um ligeiro prurido, que provoca umaainda mais ligeira escaramuça, que não pode ser considerada dúvida... Coisas desomenos importância. Em tal matéria, creio que sou um homem definitivo!Recomeçaram a subir. E Maria Leonor teve um sorriso breve, que mal lheentreabriu os lábios:- E noutras matérias?- É o jogo do gato e do rato que me propões, não?! Pois estou pronto a aceitá-lo,mas só depois de saber o papel que me cabe. O de gato ou o de rato?Chegaram ao patamar e, aí, pararam de novo.- Não o que lhe caberia, naturalmente, pelo direito da força - respondeu ela. - Opapel de gato não é para nenhum de nós...Entravam agora no corredor largo e penumbroso.Adiante, do lado esquerdo, era o quarto de Maria Leonor. A porta estava meioaberta e pela larga fenda via-se, ao fundo, o leito claro, onde um raio de sol seespreguiçava. Havia lá dentro o perfume casto da mulher só. A sugestão era tão forte e vinha tanto ao encontro dos seus pensamentos, queambos quase pararam.E Viegas perguntou, depois de um último olhar para o quarto:- Então, aceitas?- Aceito - respondeu Maria Leonor, num sopro que se perdeu na gargantaentumecida e entre os dentes cerrados.Entraram no escritório. Viegas dirigiu-se para a secretária. Atirou-se para cimado cadeirão negro, puxou um livro e abriu-o distraidamente.Maria Leonor foi sentar-se também numa cadeira baixa, virada para a porta.Daí a momentos entrou Benedita com a bandeja do café. Teve um ligeiromovimento de recuo, como se tivesse surpreendido uma cena íntima, mas logoserenou:- Aqui tem o café, minha senhora! - e pousou a bandeja sobre uma mesa.

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- Deixa ficar que eu sirvo - disse Maria Leonor. - E olha, chama os meninos paraque venham. Devem estar num dos quartos, aí dentro...- Sim, minha senhora, direi que venham.Ia sair. Mas já entre os umbrais da porta, ainda acrescentou:- E depressa...Era a mesma cena da outra tarde. Menos violenta, com certeza, mas a mesma.Maria Leonor ergueu-se rapidamente e saía já atrás da criada, quando Viegas achamou:- Que vais tu fazer?Ela voltou-se, trémula:- Como é que ela soube?- Ela não soube nada. Tem o faro amoroso das solteironas, apenas...Maria Leonor voltou para a cadeira e, depois de um fundo suspiro, perguntou:- Vê como eu tinha razão quando lhe dizia que não posso esconder nada? Até isto,agora...Um barulho de passos, no corredor, interrompeu-a. Eram as crianças quevinham. Levantou-se e começou a servir o café.

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XXIII No dia seguinte, de manhã, quando a luz tinha ainda um colorido cinzento, osquatro pequenos largaram da quinta, a caminho do paul. Com as linhas de pescaenroladas em torno das canas postas ao ombro, à laia de pampi-lhos, os trêsrapazes, de saquitel preso nos cintos, pareciam vagos campinos que tivessemperdido os cavalos. Júlia carregava os chapéus de palha com que haviam dedefender-se do sol, quando a manhã fosse alta e o calor apertasse.A frente, caminhava, com o desprendimento de quem está na intimidade dascoisas, o neto do abegão, o Sabino. Descalço, palmilhava o carreiro húmido doorvalho da noite, abrindo e fechando como lâminas de tesouras as pernasmorenas, num ritmo seguro e rápido. Logo a seguir ia Dionísio, rolando a canasobre o ombro, muito seguro de si, marcando o passo pelo do Sabino. Atrás, João,pouco habituado àquele andamento de galga-côvados e sempre com os olhosalerta, presos nas árvores e nos muros, o nariz no ar aspirando a frescura subtil doamanhecer, distanciava-se um pouco.Da frente, Sabino avisou:- Temos que chegar ao paul antes do sol-fora, senão depois não pescamosnada!...No céu brilhavam já grandes riscos rosados, todos apontando o lugar dondesurgira o Sol. Pareciam fios luminosos com que, do outro lado, a noite, que partia,fosse arrastando o dia, que chegava, e eram apenas nuvens esfiam-padas, que sedesfaziam nas alturas, ao ventar da brisa.Cá em baixo, pelo carreiro torcido, por entre os altos choupos de tronco branco eramos esguios, folhados de corações verdes até ao cimo, os garotos alargavam opasso, olhando para trás de vez em quando, a ver se o Sol já apontava.Perto do rio, subiram uma pequena encosta e, lá no alto, ao chegarem à crista,ficaram envoltos na transparência rosada da luz que naquele momento inundavatudo, enchendo o campo de uma claridade irreal.Ao fundo do declive, uma faia, embrulhada na sua folhagem revestido de veludobranco, pareceu estremecer. Um arrepio percorreu-a toda desde as raízes até àfolha mais alta. Ficou assim, um instante, extática, quase a desprender-se dochão, como se todas as suas fibras vibrassem entre os dois apelos mudos do céu eda terra.João, voltado para a rosa vermelha do Sol, exclamou:- Que bonito!Mas Sabino, já entre a ramaria dos salgueiros, chamava, com a indiferença dosseus catorze anos criados dia a dia, desde o nascer ao pôr de milhares de sóis.

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Dionísio quase se atirou pela ribanceira abaixo. E Júlia teve de puxar pela mangada camisa do deslumbrado João:- Vamos embora!O pequeno lançou um último olhar por cima das copas das árvores até ao Sol, játodo fora do horizonte, grande, redondo, vermelho.Da margem, vinham os gritos de chamada de Sabino e Dionísio. Ouvia-se asonoridade líquida do bater dos remos na beira do barco. De mãos dadas, João ea sua pequena companheira correram para lá. Embarcaram de um salto,fazendo oscilar a proa da caçadeira, que afocinhou na água com um chapevagaroso e mole. Sabino deitou as mãos aos remos, mas Dionísio exigiu um parasi. E os dois, sentados lado a lado no banco, as pernas retesadas, fincando os pésnas cavernas, acertaram o golpe:- Um, dois, três!As pás mergulharam e empurraram a água, que foi redemoinhar na popa, numgargarejo confuso e borbulhante.Nas duas margens do estreito rio erguiam-se longos freixos, que se iam fecharem cima, numa abóbada verde e rumorosa. Por entre as ramagens coavam-sefeixes de luz.- Deixe de remar agora, menino! - mandou Sabino.Dionísio levantou o remo, que gotejava. Sabino fez a manobra e encostou o barcoà margem, devagar. Agarrou-se a uma raiz de salgueiro que rompia da água,enquanto os outros saltavam. Preso o barco, todos treparam o valado,arranhando-se nas silvas. Do outro lado era o paul.- Vamos para a vala grande? - perguntou Dionísio.Sabino coçou a cabeça, fazendo descair o barrete para a orelha esquerda. Erespondeu:- É muito fundar- Ora, nós temos cuidado!- Prà vala grande não vou! - interveio Júlia. – Se lá caímos dentro, nunca maisnos encontram!Dionísio teve um repelão de mau modo. Voltou-se para João, a pedir-lhe auxíliocontra aquela teimosa, mas viu-o também com certo ar reprovativo, e rendeu-se.- Vamos lá então para qualquer parte!Sabino endireitou o barrete, aliviado, e meteram pé ao caminho.Entre as longas hastes de bunho que os ultrapassavam em altura, procu-raram omelhor sítio. O caminho era inçado de dificuldades. Por vezes, abria-se um

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buraco cheio de água negra e lodosa, onde as pernas se atascavam até aosjoelhos. As compridas raízes aquáticas enredavam-se nos pés e atrasavam amarcha.João ia entusiasmado. As faces afogueadas, o olhar brilhante de aventura,atirava-se contra a resistência múltipla das plantas e rompia caminho a direito,numa imensa leveza de corpo e espírito.Por fim, chegaram a uma vala larga e funda. Iam despenteados e sujos, maserguiam ainda as canas de pesca, como troféus erectos para o céu, como se aterra já não bastasse para a contemplação das suas glórias.Na sombra de um chorão, que mergulhava na água as pontas finas e verdes dosramos, resolveram assentar arraiais. Desenroladas as linhas e prepa-rados osiscos, começaram a longa e paciente espera, que ia durar toda a manhã.Entre gargalhadas de triunfo e exclamações de desapontamento à beira da águasombria, no bunhal deserto onde zumbiam insectos e ressoavam estalidos deárvores secas, se passaram as horas. A pescaria foi pobre e, quando o solcomeçou a aquecer, cessaram de todo aqueles súbitos mergulhos das bóias, queos punham num estado de excitação ansiosa, olhos esbugalhados, à espera domomento propício para o sacão brusco, que arrancaria atrás da linha a criaturaaquática, cintilante e molhada, ou o anzol sem isco e sem peixe.Por fim, com uma voz desolada, Sabino anunciou que os peixes não picariammais. Dionísio concordou:- Só por acaso!...E como não podiam ficar à espera o dia inteiro que o acaso obrigasse umasguelras palpitantes a prenderem-se na armadilha, tiveram de dar-se por vencidosna batalha.Júlia foi a encarregada de conduzir os poucos peixes.E lentamente, deitando olhares cobiçosos para a vala, regressaram ao rio, semdificuldade desta vez, pelo sulco aberto na vegetação, à ida. Quando chega-ramao barco e se preparavam para descer, Dionísio deu uma palmada na testa:- É, que temos de ir ao Parreiral!- É verdade! - lembraram os outros.Sabino fez uma visagem embaraçado e respondeu:- O menino desculpe, mas eu volto para a quinta... O meu avô precisa de mim.Houve um “oh!” penalizado, mas logo Dionísio, prático, aproveitou para entregarao rapaz as canas e os sacos. Após um momento de hesitação, deu-lhe tambémos peixes:- Toma, são para o teu almoço.

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Sabino agradeceu e saltou para o barco. Remou até ao meio do rio e, de lá,acenou um adeus com o barrete.Dionísio ainda gritou:- Diz à minha mãe que nós fomos ao Parreiral!Já na outra margem, Sabino respondeu um “sim, senhor!” e desapareceu nomeio das árvores.Os outros seguiram pela borda fora do rio, sob os ramos nodosos das figueiras-bravas, ajudando-se nos passos difíceis quando as sebes espinhosas lhes cortavamo caminho, ou quando, sobre um lodaçal crivado de pegadas de gado, era precisoachar os lugares mais resistentes. Então soavam, no silêncio do campo, brevesrisos assustados, que se transformavam em expansões alegres e bulhentas, logoque era vencida a dificuldade.A cada passo, debaixo dos pés, dentre a erva húmida e vigorosa, saltavamgrossas rãs esverdeadas, que cambalhoteavam no ar e mergulhavam nadandoentre duas águas, até aparecerem adiante, detrás dos limos, olhando para amargem, o peitilho branco a ofegar.Para João, aquele espectáculo era um deslumbramento e, vezes sem conta, sedeteve a olhar, na água baixa, os cardumes cerrados de girinos, que flectiampara um e outro lado como se fossem comandados por uma só vontade. Umacaçadeira que passou no rio, conduzida à vara pelo barqueiro, abrindo com aproa chata largas ondulações que escorregavam pelo casco, fê-lo parar,embevecido. E na contemplação mal respondeu à saudação do homem.Os dois irmãos, calejados de mais para aquelas emoções, acabaram porperguntar se nunca saíra de Lisboa.João, um tanto embaraçado, respondeu:- Saí. Mas ia quase sempre para a praia...- Praia! - admirou-se Júlia. - Que é isso de praia?Dionísio esclareceu:Não te lembras de quando fomos a Lisboa e o pai zinho nos levou num barquinhoaté um sítio onde havia muita areia e muita gente? Até tomaste banho?! E viestede lá a cuspir, porque a água era salgada?!Júlia lembrou-se, de repente:- Ah, já sei!... Então era para aí que tu ias?- Pois era.- E de que gostas mais? Disto - e indicava o rio e as árvores - ou da praia?Os olhos de João brilharam quando respondeu:

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- Gosto mais disto.Calaram-se por momentos para trepar um tronco que lhes barrava o caminho. Amargem baixava quase ao rés da água. Para trás tinha ficado o paul com aslongas lanças de bunho erectas e verdes, e os três caminhavam agora a par, porum campo largo e plano, que ia findar ao longe num renque longo e atarracadode salgueiros.- E por que é que nunca vieste para cá?- Para onde?- Para aqui, para a casa do teu tio...- O meu pai dizia que o tio Pedro vivia sozinho e que não me podia ter com ele.Dionísio, parado, com o chapéu de palha erguido e os olhos pregados no chão,interrompeu:- Caluda!Logo a seguir atirou-se para o chão, ao mesmo tempo que gritava:- Já está!Mas quando espreitava sob a copa do chapéu, irrompeu de lá um seco revoar deasas, que se abriram, metros acima, em dois traços azuis. O gafanhoto fugira.Dionísio enfiou o chapéu, aborrecido:- Tinha-o apanhado... Como é que se escapou?- Levantaste o chapéu e querias que ele ficasse à espera, não? - respondeu Júlia.- Eu não levantei o chapéu!- Levantaste, sim senhor! Não sabes apanhar gafanhotos, é o que é...- Ora! Lá se vê quem é que apanha mais...- Pois sim, mas deixaste fugir este!Estavam quase zangados. Providencialmente, do tronco oco de um freixo saiunaquele momento, com um grito assustado, uma poupa, que foi pousar ao longe,arrepiando as penas da cabeça. E as explicações que tiveram de dar aocompanheiro distraíram-nos da mais que provável discussão.Chegaram, enfim, à ponte.- Falta muito para a casa do tio Pedro?- Não. É ali onde estão aqueles marmeleiros.Debaixo do sol, àquela hora quente, sem a beleza infantil do nascer, os garotosapressaram o passo, ao longo da maracha. Por entre as árvores vinha o fungar deum rebanho de ovelhas, deitadas nas sombras.

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Quando chegaram à entrada do Parreiral espreitaram para dentro e Dionísiogritou:- Cá estamos!Ao aviso, Viegas, em mangas de camisa, assomou à janela do andar superior dacasa. E logo se debruçou, risonho, exclamando:- Toquem todas as trombetas do castelo, abram alas as parreiras que deramnome a esta casa, suba no mastro o pendão, que chegam os reis da brincadeira!Diante daquela recepção tão calorosa e divertida, as crianças entreolharam-se,sorridentes. Mas o médico continuava:- Entrem! Mas previno-os de que, se querem comer, têm de o trazer!Os garotos riram-se e, numa corrida, precipitaram-se de roldão em casa. Operdigueiro, que os viera receber à porta, atraído pelo barulho, começou a saltarà roda deles, latindo para exprimir a sua canina alegria. Logo atrás apareceuViegas, ainda risonho:- Então, essa famosa pescaria? Olhem que, se não trazem peixe, não comem!Dionísio explicou: os peixes eram poucos...- Já sei: os peixes eram poucos e os anzóis eram muitos, de modo que eu tenho devos dar almoço.Foi até ao corrimão da escada e gritou:- Tomé, ó Tomé!...De cima veio uma voz pachorrenta e descansada:- Senhor doutor!...- Põe-me esse almoço na mesa!- Quatro? - tornou a voz.- Sim, quatro! - virou-se para os pequenos: - Vamos! Tratem de lavar essas mãosimundas para irem almoçar. De caminho, mostro-te a casa, João!Deram uma rápida volta pela horta, foram à cavalariça, e regressaram a casa, àpressa, aguilhoados pelo calor e pela fome.Quando se sentaram à mesa batia o meio-dia no velho relógio de parede da salade jantar. Ao engolirem as primeiras colheradas, Júlia deteve-se e deitou umolhar inquieto para o irmão. Viegas, que surpreendera o gesto, sorriu e perguntou:- Que é, Júlia?A pequena corou e respondeu, gaguejando:- Não é nada, senhor doutor... - fez um esforço tremendo e decidiu-se: - Asgraças...

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Dionísio deixou cair a colher sobre o prato e corou também. Ficaram todosperturbados a olhar-se, até que Viegas, pousando a colher sobre a toalha, disse,devagar:- Pois que se dêem as graças. Tu, Dionísio.O pequeno começou um gesto de recusa, mas depois, muito sério, em voz baixa,pronunciou as palavras tradicionais. Tomé, que entrava naquele momento comum galheteiro, parou no limiar da porta, estupefacto. Ia falar, mas Viegas fez-lhesinal e ele aguardou, sem se mexer, que as graças fossem dadas. Depoiscomeçou o almoço. E, durante todo ele, houve, a par da natural satisfação, umaleve atmosfera de religiosidade, que apenas o espírito agudo do médicopressentia.Quando a refeição acabou, repetiu-se a cena.Tomé, desta vez, não se conteve e largou a andar de um Lado para o outro,mexendo nos pratos, abrindo e fechando armários, fazendo todo o barulho quepodia. E Viegas não pôde deixar de pensar na serenidade impassível da fé e noesbracejar violento da descrença, ambos inúteis diante do Eterno Ignorado, sejaele, afinal, um Deus, uma Lei ou o Nada.Com um encolher de ombros levantou-se, quase esquecido da presença dascrianças, e olhou o seu velho relógio, enquanto pensava: “Este, tem corda paraquinze dias e sou eu quem lha dá. A minha corda dura há cinquenta e cinco anos,e quem é que ma deu, afinal de contas?...”Fez meia volta e resmungou:- Metafísica!...Foi para junto das crianças, que se debruçavam da janela a ver o campo e disse:- Que tal se fôssemos ver o santo da terra?! Um passeiozinho de charrette comeste calor não é agradável, mas não se perdia o tempo...João surpreendeu-se:- O santo da terra! Quem é o santo da terra, tio?- É o nosso padre Cristiano - respondeu Viegas. -- Um homem cujo único defeito é saber teologia e latim.- Vamos, então?Os pequenos correram a buscar os chapéus e, daí a momentos, já estavam àporta, impacientes. Daí a pouco, chegou Tomé, trazendo a égua atrelada àcharrette.Com uma pequena vénia, Viegas exclamou:- Primeiro, as damas! Quer a dona Júlia dar-me a honra de escolher o lugar que

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mais lhe agrade?Com um riso feliz, Júlia saltou para a charrette e foi sentar-se no banco da frente.O médico subiu atrás dela e os dois rapazes instalaram-se atrás.- Ora, então, vamos lá! Segurem-se bem que isto vai ser uma galopada comovocês nunca viram!Afagou com a ponta do chicote as ancas da égua, mantendo-a segura enquantodesciam a pequena alameda, mas, logo que chegou ao caminho dosmarmeleiros, deixou-a trotar à vontade. Num ápice, atingiram o rio. Quando iamatravessar, duas mulheres que lavavam roupa mais abaixo queixaram-se:- Ai, senhor doutor, que nos vai sujar a água toda!- Tenham paciência, santinhas, por que não passam vocês para o lado de cima?Com um resmungo sufocado de protesto, as mulheres acarretaram as tripeças eos alguidares para onde Viegas indicara. O médico agitou as rédeas e a charretteatravessou o rio.- Vamos fazer uma entrada triunfal em Miranda!Passaram as primeiras casas da aldeia num galope desenfreado. As galinhas, quedebicavam na estrada, fugiram espavoridas, batendo as asas quase debaixo daspatas da égua. Quando chegaram à praça, Viegas moderou o andamento e, como chicote dobrado, foi cumprimentando, aqui e ali, os conhecidos, quearregalavam olhares curiosos para o sobrinho.No fim da rua cortaram para a esquerda, para um pequeno largo, onde umaoliveira enchia de sombra a frontaria da casa térrea em que morava o padre.Viegas fez estacar a égua com um “hoo!” prolongado. Prendeu as rédeas notravão e saltou. Foi empurrar a porta, chamando:- Ó da casa! ó padre Cristiano! Visitas!...Ninguém respondeu. E o médico ia insistir, quando, duma casa ao lado, umamulher espreitou pelo postigo, a informar:- Não está, senhor doutor!- Onde foi?- Deixou dito que ia para a igreja e que, se alguém procurasse, lá o encontraria.Viegas murmurou um “obrigado!” e voltou para a charrette. Enquanto faziavoltar a cabeça da égua, disse para Júlia:- Que demónio iria fazer aquele homem, a esta hora, para a igreja?A pequena deitou-lhe um olhar de censura perante tão sacrílega mistura eencolheu os ombros. Num passo mais lento, refizeram o caminho, pela ruaesbraseada e deserta, onde o macadame era uma longa passadeira em que o sol

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reverberava duramente. Chegados diante do adro, apearam-se. Viegas levou oanimal para a sombra das árvores. A porta grande da igreja estava fechada.- Vamos pela portinha do lado.Com as crianças atrás de si, empurrou a porta, apenas encostada, e espreitou. Dedentro não vinha qualquer ruído. Viegas, tirando o largo chapéu de feltrodesabado, entrou. Enquanto corria a vista pela igreja, os três pequenos entraramtambém. João ficou ao lado do tio, acanhado e silencioso, olhando os outros dois,que, voltados para o altar-mor, se benziam.- Onde estará ele? - murmurou Viegas.A voz ressoou-lhe estranhamente na clara frescura da igreja e ficou a vibrarnum eco que se repercutiu mil vezes, entre as grossas colunas quadradas depedra, até ao tecto de madeira escura. Deu um passo enervado para o meio daigreja e dali viu, então, a cabeça branca do padre erguer-se por detrás de umaltar, onde S. Sebastião arfava o corpo dolorido e sangrento, crivado de flechasnegras.O padre tinha um pano na mão, com que acabara de limpar os dourados do altar.Curvado e trémulo, veio pela nave, com as mãos estendidas ao encontro domédico.- Há quanto tempo não entra nesta casa, doutor?Na sua voz havia uma doce ansiedade. Fitava Viegas com um rebrilhar nos olhosapagados. O médico sorriu-se:- Sei lá! Já lhe perdi o conto...- É a conversão, desta vez?O sorriso desapareceu dos lábios de Viegas e as rugas da face cavaram-se-lhe,mais fundas e amargas.- Ainda não, meu caro padre! Tem de continuar à espera. E só os deuses sabempor quanto tempo ainda!- Os deuses, não! Deus!O médico encolheu os ombros, aborrecido, e respondeu:- Como quiser. Mas o que aqui me trouxe foi o querer apresentar-lhe o meusobrinho João, o filho do meu irmão Carlos...Voltou-se para o pequeno, que, de mãos atrás das costas, contemplava, numquadro esmaecido, de vagas cores, a ressurreição de Jesus.- João!Fez as apresentações:- Padre Cristiano, eis o meu sobrinho... João, este senhor é que é o santo da terra,

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de que te falei, o homem cujo único defeito é saber teologia e latim.O padre curvou-se para beijar o sobrinho do médico.Durante um momento, as duas cabeças ficaram unidas, confundidos os raroscabelos do padre com as madeixas revoltas de João. Depois, o sacerdote disse:- Não acredite, João... Para santo, falta-me tudo, e tenho muitos mais defeitosque os que seu tio me atribui.Fitou atentamente o garoto e murmurou:- Pobre criança!Viegas, num impulso quase rude, travou-lhe o braço:- Isso não, padre Cristiano! Não tem esse direito.- Que é que pretende?O padre teve um sorriso. E respondeu:- Não pretendo nada, bem vê! Saiu-me a frase sem pensar, instintiva-mente.Desculpe!...Dionísio e a irmã puxavam o companheiro. E os três lá foram, pela igreja fora,parando diante dos altares, contemplando as feições imóveis e frias das imagens.Viegas serenara.- Esse sestro de catequizar a torto e a direito vem-lhes de São Pedro, não? É jáquase uma segunda natureza... É claro que não se trata de uma questão dehereditariedade...- Não discutamos, peço-lhe!Ficaram ambos silenciosos, indispostos. Diante do altar-mor, Júlia gesticulava,voltada para João. Dionisio, de lado, assentia com leves meneios de cabeça. Orumor das vozes chegavam aos ouvidos do padre e do médico, indistinto econfuso.- Lá estão aqueles! - exclamou Viegas.- Deixe-os lá! Não tem nada a recear!- Isso sei eu. Mas irrita-me!O padre voltou ao seu altar e recomeçou a limpar, desta vez, os pés manchadosdo santo.- Então o padre Cristiano é quem faz agora esse serviço?- Que quer? O Teófilo está doente, bem sabe...- Desculpe-me se não ajoelho, nem rezo as orações da circunstância, mascheguei à conclusão desoladora de que todo o reumatismo articular da terra édevido a estas lajes frias. Quanto às orações, não me lembro se já as esqueci, se

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nunca as soube...O silêncio da igreja abafou as últimas palavras. Era tão diferente aquelaconfissão, sem as compridas filas de penitentes aguardando a vez para o alíviodos pecados...- Pois é mesmo assim! Creio que me vou casar.Aguardou um momento e, como o padre não respondia, perguntou:- Não diz nada? Não pergunta com quem?Por entre os furos do ralo, veio a voz velada do padre:- Um confessor não pergunta, meu amigo: ouve, apenas...- Então, escute: vou casar... com a Maria Leonor.Nem um único ruído saiu da escuridão do confessionário.Não é o chamado amor que me leva a isto, bem deve compreender. Já não tenhoidade para essas fantasias... Trata-se apenas de salvar a Leonor da loucura ou depior ainda... Não lhe posso dizer os motivos que me levam a dar semelhantepasso! São demasiadamente graves e creio até que não compreenderia, tão longeanda o seu espírito do conhecimento das misérias do mundo, do lodo nojento emque esbraceamos. Baste-lhe apenas isto: há um motivo forte que me leva aocasamento. Não posso fugir!Com um suspiro, o padre murmurou:- Basta-me isso. Não vale a pena acrescentar seja o que for. O resto imagino eu.Viegas precipitou-se para o ralo:- Não pode imaginar!De dentro, veio novamente a voz fatigada, exausta, do padre:- Posso, sim... Eu sei, meu amigo. O meu espírito não anda tão longe das misériashumanas que não se aperceba delas. E, de resto, não é só o doutor que seconfessa!...- Quem lho disse?- Ninguém. Perdoe-me a mentira, mas o segredo da confissão é tão forte como oseu segredo profissional, de médico... Basta, também, que lhe diga isto: não hámuitos dias, ajoelhou-se, nesse mesmo lugar, uma mulher.O padre levantou-se e abriu a porta do confessionário. Foi para o médico, que sedeixara ficar no mesmo sítio, muito pálido, com grossas gotas de suor na testaenrugada, onde se empastavam os cabelos grisalhos.Viegas fez um esforço para sorrir-se:- Que penitência me dá? Que me aconselha?

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O padre ergueu os olhos para o alto tecto da igreja e quedou-se em silêncio,aguardando. Depois, exclamou:- Pois casem! E que Deus vos proteja!Um pesado silêncio se sucedeu. Aquele desejo de protecção divina, expressonuma voz fervorosa, em que vibravam seguras notas de esperança, arrepiouViegas.Pelas vidraças das janelas que se rasgavam na frontana da igreja entravamlargos raios de sol, que iluminavam o coro e vinham entornar-se no lajedo danave. Dali, a luz reflectida subia para o tecto de castanho, negro dos anos epicado de caruncho, esverdeado de humidade nas pranchas onde se embebiamas colunas. E, conforme o Sol ia descendo, devagar, a larga mancha luminosa dochão escorregava docemente, deslizando para o altar-mor.Como se respondesse a uma pergunta, o padre murmurou:- Quando o Sol se põe, o altar é um deslumbramento. A luz refulge em todos oscristais e a sombra da cruz projecta-se no fundo vermelho, muito grande, com osbraços muito abertos!... As chagas do Senhor parecem mais doridas, escorrendomais sangue e mais luz!O médico deitou um olhar furtivo para o altar. O Sol ainda estava muito alto e ocrucifixo era apenas uma mancha escura, onde se torcia um corpo branco,emaciado.- É extraordinário o vosso poder de impressionar. E que hábeis foram osconstrutores da igreja ao orientar as janelas para poente! Há muita gente a essahora para ver?O padre abanou a cabeça com um ar compadecido e triste.- Não, ninguém vem à igreja ao pôr do Sol. Essa é a hora em que a família se vaijuntando debaixo do tecto do lar. Só eu é que venho até aqui. Não tenho família...- indicou a primeira coluna junto da porta grande e continuou: - Ajoelho ali. Esempre que Deus é servido de iluminar o seu altar, assisto àquela glória...Viegas sacudiu-se, pouco à vontade. Ia responder, mas, de súbito, a igrejaencheu-se de sons de bronze, que pareciam despenhar-se do alto, em catadupas.Davam três horas no relógio. Depois da última pancada, o ar ficou a vibrar àpassagem das derradeiras ondas sonoras que desciam.No olhar que o padre deitou ao redor da igreja, sob o zumbido final dos sinos,Viegas surpreendeu uma tão profunda alegria que perguntou, quase sem querer:- O padre Cristiano é feliz?O velho abriu os olhos, admirado.- Muito feliz. Disse que não tenho família, mas enganei-me! A minha família são

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todos os homens e todas as mulheres, o meu lar é a igreja de Cristo, é estaimensa casa cheia de luz e de sombras, onde tenho passado a minha vida... Comonão hei-de ser feliz?Deteve-se. Pela pequena porta da torre saíam as crianças, rindo, esfregando osouvidos atordoados. Os dois amigos foram ao encontro delas, a alta e grossafigura do médico dominando o corpo trémulo e curvado do padre. Fizeram asdespedidas.Já no adro, enquanto Viegas e as crianças subiam para a charrette, o padreacenou-lhes um adeus. E quando a charrette desapareceu na curva da estrada,voltou para dentro da igreja, cerrando a porta atrás de si.

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XXIV Quando Viegas e os pequenos se apeavam na quinta, saía Benedita de casa. LogoDionísio perguntou onde ia. A criada, que levava um saco sobre os ombros,respondeu:- Vou à horta.Prontificaram-se os três a acompanhá-la e a ajudá-la, se fosse preciso. Semmeio de recusar, Benedita acedeu, embora contrariada. E lá foram todos.Viegas entrou sozinho, abanando a face afogueada com o chapéu. Parou no meioda sala, de ouvido à escuta, sem saber para onde ir. Foi à porta da casa de jantare espreitou para dentro. A sala estava deserta e as janelas que deitavam para aquinta fechadas. Uma fina réstia de luz entrava por uma frincha, cortando apenumbra como uma lâmina. Cerrou a porta e encaminhou-se para a escada. Aopôr o pé no primeiro degrau, olhou para cima. Depois começou a subir,assobiando baixinho.Chegando ao patamar, alongou a vista pelo corredor que servia o lado esquerdoda casa. Ia chamar, anunciar a sua presença, mas um indefinível sentimento deinquietação lhe susteve as palavras. O calor e o silêncio pareciam adensar aatmosfera e carregá-la de expectativa. As botas de Viegas rangeram de levequando voltou para a direita. Adiante havia a claridade de uma porta aberta.Adiantou-se, quase nas pontas dos pés. Era o quarto de Maria Leonor. No limiarparou, a olhar. Maria Leonor, de joelhos, de costas viradas para a porta,arrumava roupa branca num gavetão da cómoda.- Pode-se entrar?Com um pequeno grito de susto, Maria Leonor voltou-se:- Ah, é o doutor! Assustou-me... Entre.Viegas deu alguns passos no quarto e foi encostar-se à esquina do móvel. Elacontinuou ajoelhada.- Então, os pequenos?...- Foram para a horta com a Benedita.Maria Leonor deitou um olhar rápido para a porta, que o médico, ao entrar,encostara.Divertiram-se.Viegas deixou a cómoda e foi até à janela. De lá, respondeu:- Creio que sim. Foram à pesca ao paul, almoçaram lá em casa, e depois levei-osa Miranda para apresentar o João ao padre Cristiano...

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Calou-se durante alguns segundos, olhando a nuca de Maria Leonor, que sedobrava sobre a gaveta. Os cabelos, em duas grossas madeixas, caíam-lhe aoslados do pescoço, deixando à mostra um pequeno triângulo de carne, de umabrancura de jaspe. Desviando o olhar, Viegas continuou:- E, a propósito, lembro-me que tive com ele uma conversa muito interessante...Sem se voltar, Maria Leonor respondeu:- Com ele?!... Quem?- Com o padre Cristiano, evidentemente.- Posso saber do que trataram?- Claro que podes. Tratámos da confissão!...Voltou para a cómoda e, desta vez, ficou rente a Maria Leonor, que manteve acabeça baixa, obstinadamente.De tal modo, que acabei por me confessar também, eu, Pedro Viegas, comfama e proveito de herege. Verdade seja dita, que a minha confissão foi o menosortodoxa possível...Com um empurrão brusco, Maria Leonor fechou a gaveta e levantou-se. Olhou omédico nos olhos, devassando-o.- E que lhe disse?A um palmo de distância, Viegas respondeu:- O suficiente para conseguir para o nosso casamento as bênçãos da igreja!- E não disse mais nada?- Não - respondeu vagarosamente Viegas -, não foi necessário. Julgueicompreender que o resto já alguém lho tinha dito. Enganei-me?A resposta veio rápida e decidida:- Não!Viegas semicerrou os olhos numa contracção de todos os músculos da face eperguntou:- Contaste tudo?- Tudo!- Porquê?- Porque já não podia mais. Estava farta de sofrer, de chorar...- E agora? Já não sofres?Maria Leonor encolheu os ombros. Deu alguns passos sem destino no quarto erespondeu:

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Não sei, talvez sofra com certeza, mas sinto o espírito mais leve, mais lavado edesoprimido. Aquela confissão foi como um banho lustral, foi como se tivesseentregado a minha alma ao padre Cristiano e ele ma tivesse restituído depois,ainda manchada, sim, mas aliviada do tremendo peso dos meus pavores...- Aliviada?!- Não acredita, pois não?! Nem eu acredito, afinal. Palavras, palavras, e nadamais!Teve um fatigado gesto de resignação e continuou, já com duas lágrimas abrilharem-lhe nos olhos:No fim, tudo continua na mesma...Viegas foi para ela com os braços estendidos, as mãos abertas.Não, nem tudo continua na mesma! Vamos casar e isso há-de servir de algumacoisa. Ainda hei-de dar-te dias felizes!Entre os braços que lhe rodeavam o tronco num largo amplexo, Maria Leonorchorou. E os dois ficaram assim, unidos, encostados, sentindo cada qual o corpodo outro, apenas separados pelos tecidos finos do vestuário.Uma ligeira perturbação fê-los vacilar. A percepção do perigo que corriamdespegou-os, assustados e trémulos. Nos olhos dela havia um brilho líquido que jánão era de lágrimas. Os lábios, engrossados pelo nervosismo, tremiam-lhe.Viegas estava muito pálido e respirava com força.Num impulso irresistível, as mãos de ambos uniram-se. E, lentamente, foram-seaproximando de novo, tocando-se nos joelhos, corpo acima, até ficarem presosnum beijo.Na garganta dela arquejou um soluço. Os braços cruzaram-se com força nanuca de Viegas e dobrou-o todo sobre si. Recuou um passo, atordoada. As pernasvergaram-se-lhe na beira do leito e caiu para trás.Rolaram na cama, desesperados, perdidos.- Não! - gemeu Maria Leonor.O queixume perdeu-se no ofegar de ambos e no ruído seco da palha doscolchões.

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XXV Meia hora depois de ter deixado o médico à porta da casa, Benedita voltava dahorta, às carreiras. Fora forçada a seguir os três garotos, que não a largaramenquanto correram todos os couvais, seguindo ao longo das regadeiras aindahúmidas, perdendo um tempo infinito debruçados no poço negro, onde, lá nofundo, se espalhava uma larga rodela de céu. Os risos finos e alegres dascrianças, embasbacadas para o recorte das cabeças que boiavam na água, lámuito em baixo, impacientavam-na. Um sexto sentido avisava-a, aguilhoavaspara que saísse dali e voltasse para casa.Mas depois, como João quisesse experimentar as forças a empurrar o longobraço da nora, obrigaram-na a ser juiz da competição, decidir qual fazia subirmais depressa os alcatruzes e despejava mais água no tanque, uma largaconstrução verdosa, envolta em avencas, com esguios fetos e maciços desempre-noivas.Benedita remoía um desespero nervoso e irritado. Por fim, deixou-os na ruidosaalegria com que empurravam, todos à uma, a nora, que estralejava içandocaudais do poço.Deitou a correr, curvando a cabeça ao passar debaixo dos ramos caídos danogueira que assombreava o largo onde se afundara o poço. O lenço preto quelevava nos ombros prendeu-se-lhe num espinheiro, e ela nem sequer olhou. Ohortelão, ao vê-la naquela corrida, perguntou, entre duas enxadadas:- Que levas tu, mulher?A criada não respondeu. Continuou na correria desatinada, já ofegante, com ocoração a pulsar-lhe desabaladamente no peito. Quando empurrou a cancela,feriu uma das mãos na farpa de um arame, mas nem sentiu a dor nem o calor dosangue. Parecia que era levada por uma força sobre-humana que a cegava etornava insensível a tudo que não fosse o caminho que conduzia a casa.Ao virar a esquina, parou um instante, arfando. Olhou pela alameda fora até àestrada deserta. Rente ao prédio, deu uma carreira, a ocultar-se debaixo doalpendre. E dali aproximou-se mais devagar, até chegar à porta. Entrousilenciosamente. Foi à sala de jantar, mas regressou logo, vendo-a deserta eescura. Correu todas as casas do rés-do-chão numa busca ansiosa, foi até àcozinha, onde surpreendeu Joana, que dormitava sobre a mesa enquanto aspanelas chiavam. Atirou a porta num repelão e correu para a escada. Ali, nomomento em que ia precipitar-se, sentiu um arrepanhamento de medo e ficoulargo tempo encostada ao corrimão, sem se atrever a subir.Depois, numa decisão brusca, subiu a escada, à pressa, soerguendo as saias paranão tropeçar. Ao chegar acima, endireitou logo ao corredor. Vendo fechada a

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porta do quarto da patroa, deitou as mãos ao puxador e, com um empurrãodesesperado, fez saltar o trinco. A porta girou nos gonzos e foi embater na paredecom um estrondo cavo que retumbou no quarto, que ecoou por toda a casa até sedesfazer no silêncio morno e abafado da atmosfera.Quando olhou para dentro, teve uma vertigem que a obrigou a apoiar as mãostrémulas, húmidas de suor, nas ombreiras da porta. Sobre a cama desfeita estavaMaria Leonor, inerte, vermelha, descomposta. Os travesseiros caídos, a colchaarrastando no chão, um odor de sexo no ar...Com um grito sufocado, Benedita recuou para a penumbra do corredor, comtodo o sangue nas faces abrasadas, uma horrível náusea a subir-lhe do estômagoaté à garganta. Mas logo se atirou para dentro do quarto. Parou diante de MariaLeonor, a tremer, olhando-lhe as saias amarfanhadas, subidas quase até às coxas.Estendeu a mão vacilante e cobriu-lhe as pernas. No mesmo instante, MariaLeonor moveu-se sobre os colchões com um gemido surdo e dorido. E logo, semtransição, abriu os olhos. Olhou para a criada, inexpressivamente, e soergueu-se,levando as mãos aos rins, com uma careta de dor. Sentada na cama, deitou umolhar à sua volta e começou a tremer. Levantou os olhos para Benedita, comuma expressão de medo inenarrável, absoluto.A criada curvou-se para ela e deitou-lhe as mãos aos pulsos. Aproximou-a de sie, forçando a língua que se lhe entaramelava, só pôde perguntar:- Que foi isto?Maria Leonor arrastou-se na cama, presa pelos pulsos. Num esforço supremo,arrancou-se das mãos de Benedita e desceu pelo outro lado. A criada deu a voltaao leito e foi atrás dela. E tendo-a encurralada contra a parede, esmagada sob asua figura negra, repetiu, abanando o tronco, numa fúria irracional:- Que foi isto que se passou aqui?Todo o desalinho do quarto lhe respondia. Principalmente aquele vago cheiro quepairava com uma persistência insidiosa e provocadora. Mas ela queria a certeza,queria as palavras, e repetia, irritada:- Que foi?Maria Leonor, de olhos esbugalhados, não respondia. Deslizou ao comprido dacama, fugindo. Mas Benedita atirou-se contra ela, apertou-a contra a parede comuma força gemente, esmagadora. De novo aquele estranho odor, agora maisvivo e capitoso, subindo ao longo do corpo de Maria Leonor, lhe feriu as narinas.Foi esta sensação que lhe destampou a fúria. E quase gaguejando, atropelando aspalavras, com uma espuma esbranquiçada nos cantos da boca:- Pois a senhora atreveu-se? Aqui dentro, no mesmo quarto e na mesma camaonde morreu seu marido!?... Mas que espécie de mulher sem vergonha é a

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senhora? E Deus não a matou, não lhe caiu um raio em cima, que osdespedaçasse, quando se espojavam aí como dois cães.Aquela saraivada de injúrias, que a fustigavam como bofetadas, Maria Leonorempalideceu, ficou branca como a parede a que se encostava e desabou no chão.Caiu enrodilhada aos pés de Benedita, como um trapo sujo e mole, indigna eabjecta. Os cabelos desmanchados pegavam-se-lhe às faces molhadas, ossoluços despedaçavam-lhe as costelas. E num fio de voz que mal se percebiarente ao chão, murmurou:- Nós íamos casar!... Estava combinado já, compreendes? íamos casar...A revelação fez recuar Benedita:- O quê?- Íamos casar... - repetiu Maria Leonor, emparvecida. - íamos casar...Levantou-se custosamente, como se cada movimento lhe gastasse uma vida deenergias.Naquele momento não sentia medo nem vergonha. E pôde olhar a criada semque um músculo da face se lhe contraísse, sem que o velho pavor lhe entrasse naalma.Arrastou-se para uma cadeira e sentou-se, deixando cair a cabeça desfalecidopara trás, contra o espaldar arestado e duro.Benedita cerrou a porta do quarto. Lentamente, veio até à beira da patroa, e ficouali, a aguardar explicações. Mas Maria Leonor calava-se, tomada de um cansaçomortal, como se todas as células do corpo se desagregassem num prenúncio dedecomposição. Foi preciso que a criada lhe desse um abanão cruel, com a fúriareprimida e instintiva com que um gato sacode um rato morto, para que elaabrisse os olhos num descerrar lento e quebrado das pálpebras escurecidos.- E por que iam casar?Maria Leonor inclinou-se para diante e respondeu, apoiando a testa nos pulsos,num desabafo:- Que te importa? Não é da tua conta.- Não é da minha conta? É o que julga. Já pensou que eu, se quiser, lhe possocontar aquela história da propriedade, mas por miúdos, com todos ospormenores?- Ele sabe!...- Sabe?! Quem lho disse?- Eu, evidentemente...- E, mesmo assim, ele casava consigo?

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Naquele “mesmo assim”, havia toneladas de desprezo.- Mesmo assim.Benedita abanou a cabeça sem compreender, e voltou à carga.- Por que iam casar, então?- Para me livrar de ti...- De mim?! Mas que mal fiz eu?- Durante estas semanas tens feito o que tens querido. Fui um farrapo nas tuasmãos. Andei arrastada ao pavor de saber que tudo o que dizias e fazias eracarregado de intenções e de ameaças!... Era para me livrar de tudo isto que elecasava comigo.Depois destas palavras, houve um silêncio grande e espesso, apenas interrompidopelos rumores indefinidos do dia esbraseado, que atirava chapadas de luz pelasjanelas, através das cortinas. Um raio de sol, reflectido, subia do chão e ianimbar de uma doce claridade a face piedosa e triste da Virgem de porcelana,que afogava debaixo dos pés a serpente horrível do Mal e do Pecado.Como se as forças a abandonassem, Benedita recuou até apoiar-se na parede, eali ficou, de braços caídos, os ombros vergados e sucumbidos. Pouco a pouco,dentro do seu coração, o antigo amor pela ama ia ressurgindo e, ao mesmotempo, uma imensa e desolada piedade lhe inundava os olhos. Por fim, não pôdemais. Com um soluço arrancado do mais profundo do seu desgosto, as lágrimascorreram-lhe. Levou os punhos cerrados aos olhos para sustê-las, masinutilmente.Lá fora, passou um carro cheio de canolhos. A alta carga quase roçou as janelas,que tremeram ao abalo do chão e das paredes. No lento passo dos bois, o ruídofoi esmorecendo, distanciando-se cada vez mais, até desaparecer de todo.Dentro do quarto, as duas mulheres continuavam silenciosas, imóveis, numaexpectativa dolorosa. Ambas sentiam que era preciso dizer qualquer coisa, masas palavras morriam-lhes na garganta perante a consciência da sua inutilidade.Em Maria Leonor era um desejo imenso de levantar-se e de ir abraçar-se àcriada, chorar com ela, mas amarravas à cadeira um resto de orgulho, e, maisdo que isso, o amarfanhamento do corpo, a fraqueza do espírito. Benedita, essa,após as lágrimas, quando um movimento bastaria para atirá-la aos pés da ama,esquecida de tudo e obedecendo apenas aos impulsos do seu amor, regressara àvisão do acto repugnante. Para alimentar a fogueira do seu ódio, recordava todasas palavras e todas as acções da patroa desde aquele dia chuvoso em que bateranos filhos.Pelo corredor deserto, por todos os compartimentos da casa, ressoaram, devagar,as cinco horas. A última nota expandiu-se ainda por alguns segundos, mas logo

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morreu sufocada no silêncio. Benedita mexeu-se, impaciente. A impossibilidadede manter aquela situação tornava-se agora angustiosa, quase física. Deu umpasso na direcção da ama. Maria Leonor levantou a cabeça, assustada,implorativa. Nos seus olhos havia tanto medo que a criada parou impressionada,perplexa. E como se a última nuvem que ainda a impedisse de ver claramente setivesse dissipado naquele instante, Benedita, de chofre, apreendeu toda a imensatragédia de Maria Leonor, o tenebroso motivo que quase a fizera perder-se como cunhado e a lançara agora, cega e doida, nos braços de Viegas.Dali mais um instante sequer, fugiu do quarto. Após o bater da porta, o silênciovoltou, pertinaz e indiferente, rodeando Maria Leonor de mil grades invisíveis,cobrindo-a de um manto que tinha a espessura da própria atmosfera.Ia pelo quarto, direita ao sofá de veludo vermelho, arrumado no canto maisescuro. Passou rente à cama desmanchada sem a olhar, como se aqueledesalinho nada representasse para si. Uma ligeira vertigem fê-la sentar-se noleito, ao mesmo tempo que uma sensação de agonia lhe comprimia a gargantanum vómito. O corpo cobriu-se-lhe de suor e a vertigem, mais forte, fez dançaros móveis e as paredes, num rodopio que a entonteceu ainda mais.Agarrou-se com força à beira do colchão e fechou os olhos. Por momentos,julgou que se despenhava num abismo, numa queda que não findava nunca.Depois, de repente, tudo se imobilizou. Abriu os olhos, ergueu-se a custo erecomeçou o caminho para o sofá. Deixou-se cair na moleza do veludo eestendeu-se com um suspiro de cansaço sobre o espaldar inclinado, que se lheoferecia, acolhedor. E ali ficou, lassa, prostrada. O vestido, arrepanhado debaixode si, descobria-lhe os joelhos. Com um pudor vago, puxou a saia para baixo, acobrir as pernas.Foi o último gesto de que teve consciência. Os pensamentos foram-se-lheturvando no cérebro, e, com uma ligeira distensão de todo o corpo, adormeceu.O Sol, lá fora, ia descendo, perdendo o brilho fulgurante e duro à medida que seaproximava a tarde. A luz, agora rosada, entrava quase horizontalmente noquarto através dos vidros e projectava-se na parede fronteira, aos lados da cama,em duas altas manchas, que subiam, devagar, para o tecto.Morriam os últimos restos de luz e começava já a levantar-se do chão a sombrada noite, quando Maria Leonor acordou. Descerrou os olhos de súbito e ficouimóvel, deitada, fitando a parte superior das janelas, onde refulgia ainda o sanguedo poente.Com um movimento brusco sentou-se no sofá e olhou em roda, franzindo assobrancelhas ao ver a cama desmanchada. Mas a surpresa veio e partiu logo,acossada pela verdade. Maria Leonor levantou-se do sofá e foi até ao meio doquarto. E quando se recordou completamente, em todas as minúcias, do que se

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passara desde a chegada de Viegas até à aparição de Benedita, foi como se umachoupa lhe ferisse a nuca. Ficou atordoada um momento, presa de um tremorirreprimível, enquanto a noite lhe subia pelo corpo, afogando-a em escuridão.Imediatamente, dominando todos os outros pensamentos, uma interrogação selhe ergueu no espírito: Que fazer?Desta vez, era claro. Chegara ao fim do declive por onde viera a rolar desde amorte do marido. Todos os gestos, todas as resistências, não tinham feito maisque empurrá-la, com pressa maior, para o poço que se abria no termo da ladeira.E agora? Deixar-se cair, fechar os olhos, rolar ainda os últimos metros até aodespenhamento final? Ou (e quando esta alternativa se lhe apresentou, as maxilasapertaram-se-lhe e os olhos brilharam-lhe de susto) interromper ali mesmo aqueda, com uma queda maior e definitiva, um autêntico salto nas trevas?Podia casar. Benedita, afinal, adorava-a e guardaria silêncio através de tudo. Eainda que a sua dedicação tivesse morrido, o silêncio seria guardado do mesmomodo. Mas a imensa absurdeza daquele casamento impôs-se-lhe como umasombra escura. Sentia que, depois de ter conhecido Viegas tão intimamente, nãopoderia casar com ele. Era quase uma repugnância física que se opunha. Masnão casando, era possível, Santo Deus, continuar a vê-lo? Que seria a vida com arecordação daquele dia, daquela horrível meia hora, a erguer-se entre ambos? Ocasamento seria a água que lavaria a mancha. Mas não podia, não podia!...Casar? Não! Era impossível! Viver depois toda a vida ao lado dele, sempre, diaapós dia, vendo-lhe as rugas cada vez mais fundas e os cabelos cada vez maisbrancos? Era impossível. A própria recordação do pecado, a lembrança de quese tinham pertencido quando ainda não tinham esse direito, ensombraria a vidade ambos: acabariam por odiar-se. E teria ela coragem de dizer aos filhos que iacasar com o médico? E o que diriam os criados, toda a gente da quinta, toda agente de Miranda?Num impulso desesperado, atirou-se para cima da cama. Mas logo se levantou,como se os lençóis ardessem. Fora ali. E a tudo se juntou a recordação brutal domomento, a violência do choque, o aperto duro dos seus ombros, a sensação deum peso de macho em todo o seu corpo. Reviu a face congestionada de Viegas,curvada para si, as mãos em garra que a tinham esmagado contra a cama...Correu para a janela a refugiar-se na última claridade do dia. E ali, sem horror,se lhe apresentou a outra solução: o salto nas trevas, o suicídio, a morte. Apertou-se contra a parede fria e cerrou os olhos. Reprimindo um arrepio, procurou ir atéao fundo do pensamento, esgotá-lo de todo o medo. Estava a ponto de oconseguir, numa dolorosa sensação de triunfo, quando a porta do quarto se abriu.Era Benedita quem entrava, com um candeeiro de petróleo na mão. Pousou a luzsobre uma mesa baixa.

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Depois, virou-se para a patroa e disse, numa voz toda sumida e trémula:- O jantar está pronto, minha senhora!...Aquela voz, vinda do outro extremo do quarto, perturbou Maria Leonor de talmodo que os olhos, até ali secos de febre, se enevoaram de lágrimas. Como seuma grande vaga se enrolasse no peito, chamou:- Benedita!A criada veio para ela, devagar, de cabeça baixa. Depois, ficaram nos braçosuma da outra, envoltas na claridade dourada do candeeiro, que lhes projectava assombras deformadas e gigantes na parede.Não chore, minha senhora, não chore – gemeu Benedita. - Então, por amor deDeus, tudo se há-de arranjar!... A senhora casa e tudo esquece...Mas Maria Leonor negava:Não, Benedita, isso não! Não posso casar! Como queres que eu case agora,depois disto? E como queres que diga aos meus filhos que me vou casar? O quediriam eles?... E tu? Podias tu suportar que me casasse?...A criada abanou a cabeça, tristemente:- Desde que fosse para seu bem...- Sei lá qual é o meu bem!...Pela escada acima, ouviram passos, Júlia chamava:“Mãezinha! Benedita!”, com um aflautamento de mimo nas últimas sílabas.- Vai depressa, vai ter com eles! Diz que estou incomodada e que não desço!Mas que não entrem, sobretudo que não entrem!...Benedita correu para a porta e saiu. Ouviu-se um murmúrio e logo a seguir ospassos da criada e das crianças, que desciam a escada, para o jantar.De novo sozinha no quarto, Maria Leonor tentou reatar o pensamento no pontoem que o deixara. Procurou agarrar friamente a ideia do suicídio, dominar arevolta da sua carne contra o aguilhão do cessar da existência, mas já não oconseguiu. Retinia-lhe nos ouvidos aquele chamamento animado de“Mãezinha!”, como um apelo desesperado de vida. E não pôde resistir.Caiu de joelhos junto da janela, a cabeça apoiada no peitoril, a chorar.Nesse momento, ouviu na alameda vozes excitadas, passos apressados. Abriu ajanela e olhou para fora. Em baixo, dois homens iam entrar em casa, falando egesticulando. Chamou:- Que se passa?Um deles levantou a cabeça e, tirando o chapéu, disse:

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- Vínhamos informar a senhora de que o senhor doutor morreu. Encontraram-nono fundo do dique, com a charrette espatifada e o cavalo morto, também. Deveter caído...

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