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DADOS DE COPYRIGHT · seguiram um pouco, abaixados na superfície sólida da plataforma, os passos ecoando e as lanternas de capacete lançando faixas na escuridão que os cercava

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DADOS DE COPYRIGHT

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Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando pordinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível.

Título originalTUNNELS

Primeira edição em língua inglesa publicada, em 2007,

pela Chicken House — 2 Palmer Street — Frome,Somerset BA11 IDS, Reino Unido

www.doubleduck.com

Copyright do texto © 2007 by Roderick Gordon e Brian WilliamsCopyright ilustração de capa © 2007 by David Wyatt

Copyright das ilustrações de miolo© 2007 by Brian WilliamsCopyright da tradução © Chicken House Publishing Ltd.

Design de capa: Ian Butterworth

Foto do autor: Mike Parsons

Direitos para a língua portuguesa reservadoscom exclusividade para o Brasil à

EDITORA ROCCO LTDA.Av. Presidente Wilson, 231 - 8o andar

20030-021 - Rio de Janeiro, RJTel.: (21) 3525-2000 - Fax: (21) 3525-2001

[email protected]

Printed in Brazi/ / Impresso no Brasil

preparação de originais

LUCIANA FIGUEIREDO

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

G671t Gordon, RoderickTúneis/Roderick Gordon & Brian Williams; tradução de Ryta Vinagre.-

Primeira edição. - Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2008.Tradução de: Tunnels

1. Literatura infanto-juvenil. I. Williams, Brian James, 1958-.II. Vinagre, Ryta. III. Título.

IN MEMORIAMElizabeth Oke Gordon

1837 – 1919

“Tudo que é desconhecido é suspeito”Anônimo

PARTE UM

A Escavação

Capítulo Um

SHLAAC! A picareta atingiu a parede de terra e, cintilando em uma lasca de sílex oculta,afundou na argila, parando subitamente com um baque surdo.

— Pode ser aqui, Will!Dr. Burrows avançou, engatinhando pelo túnel apertado. Transpirando e respirando mal no

espaço confinado, começou a escavar febrilmente a terra, seu hálito formando uma névoa no arúmido. Sob a luz combinada das lanternas de capacete, cada punhado ávido revelava outrastábuas de madeira velha, expondo sua superfície rachada e granulosa de alcatrão.

— Me passe o pé-de-cabra.Will vasculhou uma maleta, encontrou o rombudo pé-de-cabra azul e o entregou ao pai,

cujo olhar estava fixo na área de madeira diante dele. Forçando a ponta achatada da ferramentaentre duas tábuas, dr. Burrows grunhiu ao lançar todo seu peso para trás para ter algum impulso.Depois começou a alavancar de um lado a outro. As tábuas crepitaram e gemeram nos pregosenferrujados até que, enfim, incharam, soltando-se com um estalo alto. Will recuou um pouco aosentir o sopro de uma brisa fria e úmida vinda do buraco agourento criado pelo dr. Burrows.

Apressados, eles arrancaram mais duas tábuas, deixando um espaço da largura de umombro, e pararam por um momento em silêncio. Pai e filho se viraram e se olharam,compartilhando um breve sorriso de conspiração. Seus rostos, cada um iluminado pela lanternado parceiro, estavam sujos de terra como numa pintura de guerra.

Eles se voltaram para o buraco e começaram a vagar pelos grãos de poeira que flutuavamfeito diamantes pequenininhos, formando e refazendo constelações desconhecidas na aberturanegra como a noite.

Dr. Burrows inclinou-se cautelosamente para o buraco, Will espremendo-se ao lado delepara espiar por sobre o ombro do pai. Sob a luz das lanternas dos capacetes que penetrava noabismo, entrou em foco claramente uma parede curva e ladrilhada. A luz das lanternas,penetrando mais fundo, oscilou por dois cartazes cujas bordas descascavam da parede e seagitavam devagar, como gavinhas de algas pegas na forte correnteza do fundo do mar. Willergueu a cabeça um pouco, varrendo o espaço ainda mais, chegando à beira de uma placaesmaltada. Dr. Burrows seguiu o olhar do filho até que os feixes de luz se uniram e mostraram

um nome com muita clareza.— Highfield & Crossly North! É isso, Will, é isso! Nós achamos! — A voz empolgada do dr.

Burrows ecoou nos confins abafados da estação ferroviária abandonada. Eles sentiram uma levebrisa no rosto, de algo que soprava pela plataforma e descia aos trilhos, como que reagindo emum pânico vivificado a esta invasão rude, depois de tantos anos, em sua catacumba lacrada eesquecida.

Will chutou desvairadamente a madeira na base da abertura, lançando um jato de lascas efragmentos de madeira podre, até que de repente o chão abaixo dele escorregou e se derramou nacaverna. Ele cambaleou pela abertura, pegando a pá ao entrar. Seu pai estava bem atrás e os doisseguiram um pouco, abaixados na superfície sólida da plataforma, os passos ecoando e aslanternas de capacete lançando faixas na escuridão que os cercava.

Teias de aranha pendiam em meadas do teto e o dr. Burrows soprou quando uma delasenvolveu seu rosto. Ao olhar em volta, sua luz pegou o filho, uma visão estranha, com umemaranhado de cabelos brancos projetando-se como palha alvejada do capacete de mineradoramassado da bata-lha, os olhos azuis-claros cintilando de entusiasmo ao piscarem no escuro. Eradifícil descrever as roupas de Will, a não ser que se dissesse que pareciam ser do mesmo marrom-avermelhado e da mesma textura da argila em que estivera trabalhando. Colava-se nele, cobrindo-o no pescoço, deixando-o parecido com uma escultura que fora por milagre infundida de vida.

Quanto ao próprio dr. Burrows, era um homem magro e rijo, de estatura mediana —ninguém o descreveria como alto nem baixo, na realidade, só em algum ponto no meio. Tinha umrosto redondo com olhos castanhos e penetrantes que pareciam muito mais intensos devido aosóculos de aro dourado.

— Olhe aqui, Will, olhe só isso! — disse ele, enquanto sua lanterna pegava uma placa acimado buraco pelo qual os dois acabaram de sair. SAÍDA, dizia em grandes caracteres pretos. Elesviraram as lanternas de mão e, ricocheteando pela escuridão, os feixes de luz, unidos às lanternasde capacete, mais fracas, revelaram toda a extensão da plataforma. Raízes pendiam do teto e asparedes eram revestidas de eflorescência e raiadas de um calcário branco como giz cujas fissurasestavam úmidas. Eles podiam ouvir o som de água corrente em algum lugar ao longe.

— Que tal uma descoberta dessas? — disse o dr. Burrows com um ar de satisfação pessoal.— Pense só nisso, ninguém pôs os pés aqui desde que a nova ferrovia de Highfield foi construídaem 1895. — Eles haviam saído em um dos extremos da plataforma e agora o dr. Burrowsapontava a lanterna para a abertura do túnel ferroviário ao lado deles. Estava bloqueada por ummonte de entulho e terra. — Será exatamente igual do outro lado... Devem ter lacrado os doistúneis.

Enquanto eles andavam pela plataforma, olhando as paredes, era possível distinguir blocosde ladrilhos creme rachados com bordas verde-escuras. Lampiões a querosene brotavam mais oumenos a cada três metros, vários com o quebra-luz de vidro ainda intacto.

— Pai, pai, vem aqui! — gritou Will. — Já viu esses cartazes? Ainda dá para ler. Acho quesão anúncios de terras ou coisa assim? E este aqui está bom... Circo de Wilkinson... a se apresentar noParque... 10º dia de fevereiro de 1895. Tem uma foto — disse Will sem fôlego enquanto o pai sejuntava a ele. O cartaz fora poupado dos danos da umidade e eles distinguiram as cores rudes dotopo grande e vermelho, com um homem de azul e cartola parado na frente. — E olha só isso.Gordo demais? Pílulas de Elegância do Doutor Gordon! — O desenho em traços grossos retratava um

homem majestoso de barba, segurando um pequeno recipiente.Eles seguiram mais adiante, passando por uma montanha de entulho que descia de um arco

para a plataforma.— Este aqui levaria para a outra plataforma — disse o dr. Burrows ao filho.Eles pararam para olhar um banco de ferro batido ornamentado.— Isto vai ficar bonito no jardim. Só precisa de uma lixada e algumas demãos de verniz —

murmurava o dr. Burrows enquanto a lanterna de Will iluminava uma porta de madeira escura,escondida nas sombras.

— Pai, não há um escritório ou coisa parecida na sua planta? — perguntou Will, fitando aporta.

— Um escritório? — respondeu o dr. Burrows, vasculhando os bolsos até encontrar a folhade papel que procurava. — Deixe-me dar uma olhada.

Will não esperou por uma resposta, empurrando a porta, que estava emperrada. Perdendorapidamente o interesse na planta, dr. Burrows foi ajudar o filho e, juntos, eles tentaram abrir aporta com os ombros. Ela mal oscilou no batente, mas na terceira tentativa cedeu repentinamentee eles tropeçaram para uma sala, tomando um banho de lodo na cabeça e nos ombros. Tossindo eesfregando a terra dos olhos, abriram caminho por uma cortina de teias.

— Caramba! — exclamou Will em voz baixa. Ali, no meio do pequeno escritório,distinguiram uma mesa e uma cadeira, cobertas de pó. Will avançou cautelosamente para trás dacadeira e, com a mão enluvada, espanou a camada de teias de aranha da parede, revelando ummapa grande e desbotado do sistema ferroviário.

— Deve ter sido a sala do chefe da estação — disse o dr. Burrows ao varrer com o braço otampo da mesa, descobrindo um mata-borrão, no qual havia uma xícara de chá e um piresencardidos. Ao lado deles um pequeno objeto, descolorido pelo tempo, vazava verde nasuperfície da mesa. — Que coisa fascinante! Um telégrafo ferroviário, muito bem-feito... Debronze, eu diria.

Duas das paredes eram revestidas de prateleiras com pilhas de caixas de papelão em ruínas.Will escolheu uma caixa ao acaso e a levou para a mesa rapidamente, porque havia o risco de eladesmontar em suas mãos. Ele ergueu a tampa disforme e olhou maravilhado os maços de bilhetesantigos. Pegou um deles, mas o elástico perecido esfarelou, espalhando bilhetes feito confete pelotampo da mesa.

— Estão em branco... Ainda não tinham sido impressos disse o dr. Burrows.— Tem razão — confirmou Will, sem parar de se surpreender com o conhecimento do pai,

ao examinar um dos bilhetes. Mas o dr. Burrows não estava ouvindo. Ajoelhava-se e mexia emum objeto pesado na prateleira mais baixa, embrulhado em um pano podre que se dissolveu a seutoque.

— E aqui — anunciou o dr. Burrows enquanto Will se virava para ver o aparelho, queparecia uma máquina de escrever antiga com uma manivela grande do lado — é um exemplar demáquina primitiva de impressão de bilhetes. Meio corroída, mas talvez possamos limpar as partesmais danificadas.

— O que, para o museu?— Não, para minha coleção — respondeu o dr. Burrows. Ele hesitou e seu rosto assumiu

uma expressão séria. — Veja bem, Will, não vamos dizer uma palavra sobre isso, sobre nadadisso, a ninguém. Entendeu?

— Hein? — Will girou o corpo, um leve franzido vincando a testa. É claro que nenhum dosdois ia divulgar o fato de que se envolveram neste trabalho de escavação elaborado em suas horasvagas — não havia ninguém seriamente interessado mesmo. Sua paixão pelo que estava enterradoe o ainda não revelado era uma coisa que eles não compartilhavam com mais ninguém, algo queunia pai e filho... Um vínculo entre eles.

Eles ficaram parados na sala, as lanternas de minerador pairando no rosto um do outro.Como o filho não deu nenhum tipo de resposta, dr. Burrows o encarou e continuou.

— Não preciso lembrá-lo do que aconteceu no ano passado com a villa romana, preciso?Apareceu aquele professor medalhão, que tomou posse da escavação e ficou com toda a glória.Fui eu que descobri aquele sítio e o que foi que consegui? Um reconhecimento minúsculosepultado no arremedo ridículo de artigo dele.

— É, eu me lembro — disse Will, recordando-se da frustração do pai e de suas explosões decólera na época.

— Quer que aconteça novamente?— Não, claro que não.— Bem, desta vez não serei só uma nota de rodapé. Prefiro que ninguém saiba disso. Não

vão roubar isso de mim, não desta vez. De acordo?Will assentiu, fazendo com que a luz da lanterna subisse e descesse na parede.Dr. Burrows olhou o relógio.— Agora nós precisamos voltar, sabe disso.— Tá bom — respondeu Will de má vontade.O pai entendeu seu tom de voz.— Não temos pressa, temos? Podemos levar o tempo que quisermos para explorar o resto

amanhã à noite.— Não, acho que não — disse Will sem nenhum entusiasmo, seguindo para a porta.Dr. Burrows deu um tapinha afetuoso no capacete duro do filho ao saírem do escritório.— Devo dizer que foi um trabalho excelente, Will. Todos aqueles meses de escavação

valeram mesmo a pena, não é?Eles refizeram os passos até a abertura e, depois de uma última olhada na plataforma,

subiram de volta ao túnel. A mais ou menos seis metros, o túnel se abriu, e assim eles puderamseguir lado a lado. Se o dr. Burrows se curvasse um pouco, seria alto o suficiente para ele ficar depé.

— Precisamos reforçar os suportes e as estacas — anunciou o dr. Burrows, examinando otrecho de madeira no alto. — Em vez de um a cada metro, como discutimos, deve haver dois pormetro.

— Claro. Tudo bem, pai — garantiu-lhe Will, sem parecer convincente.— E precisamos levar isso para fora — continuou o dr. Burrows, cutucando com a bota um

monte de argila no chão do túnel. — Não queremos ficar apertados demais aqui embaixo, não é?— Não — respondeu Will vagamente, sem realmente pretender fazer alguma coisa. Graças

à mera emoção da descoberta, ele desconsiderava com demasiada freqüência as diretrizes desegurança que o pai tentava impor. Sua paixão era escavar e a última coisa que tinha em mente

era perder tempo com a “faxina”, como chamava o dr. Burrows. E, de qualquer forma, o pai rarasvezes se prontificava a ajudar na escavação em si, só aparecendo quando um de seus“pressentimentos” se confirmava.

Dr. Burrows assoviava distraído entre dentes ao se abaixar para inspecionar uma torre debaldes numa pilha ordenada e um monte de tábuas. À medida que continuavam, o túnel subia eele parou várias vezes para testar as estacas de madeira de cada lado. Batia nelas com a palma damão; ao fazer isso, o assovio obscuro chegava a um guincho impossível.

A passagem por fim se aplainou e se alargou em uma câmara grande, onde havia uma mesade armar e duas cadeiras de braço gastas. Eles colocaram parte do equipamento na mesa, depoissubiram o último trecho de túnel até a entrada.

Assim que o relógio da cidade soou a última batida das sete horas, uma folha de açocorrugado se ergueu alguns centímetros em um canto do estacionamento da Temperance Square.Era o início do outono e o sol mostrava uma ponta no horizonte enquanto pai e filho, satisfeitosao ver que a área estava limpa, empurravam a folha e revelavam no chão o grande buracoemoldurado em madeira. Eles colocaram a cabeça mais um pouco para fora, verificando se haviaalguém no estacionamento, em seguida saíram do buraco. Depois que a folha de aço foirecolocada na entrada, Will chutou a terra por cima, para disfarçar.

Uma brisa agitava os tapumes em torno do estacionamento e um jornal girou pelo chãocomo um rolo de galhos secos, espalhando suas páginas no impulso que tomara. À medida que osol tornava distintos os contornos dos armazéns ao redor e se refletia na fachada de ladrilhosvinho de um conjunto habitacional Peabody Estate, próximo, os dois Burrows andaram devagaraté o carro estacionado, parecendo, em tudo, uma dupla de prospectores deixando sua mina nosopé da montanha para voltar à cidade.

Capítulo Dois

Do outro lado de Highfield, Terry Watkins, o “Tipper Tel” para os colegas no trabalho, estava decalça de pijama e escovava os dentes diante do espelho do banheiro. Estava cansado e esperavater uma boa noite de sono, mas sua mente ainda dava cambalhotas pelo que vira naquela tarde.

Foi um dia terrivelmente longo e árduo. Ele e a equipe de demolição puseram abaixo asantigas paredes de tinta tóxica branca para dar espaço a um novo prédio de escritórios para umou outro departamento do governo. Mais do que tudo, ele queria ir para casa, mas prometera aochefe que derrubaria algumas fiadas de alvenaria no porão para tentar avaliar a extensão de suasfundações. A última coisa que sua empresa precisava era estourar o contrato, um risco semprepresente com esses prédios antigos.

Com a luz da lanterna portátil por trás, ele girava a marreta, rachando os tijolos feitos àmão, que revelavam suas entranhas vermelhas como animais eviscerados. Ele girou de novo,espalhando fragmentos no chão coberto de fuligem do porão, e xingou baixinho porque todo omaldito lugar fora muito bem construído.

Depois de mais alguns golpes de marreta, ele esperou que a nuvem de pó de tijolo baixasse.Para sua surpresa, descobriu que a área da parede que estivera atacando só tinha uma camada detijolos. Havia uma folha de ferro-gusa onde deveriam estar a segunda e a terceira camadas. Ele agolpeou algumas vezes e ela ressoou com um tinido substancial a cada golpe. Não ia ceder comfacilidade. Ele respirava mal ao pulverizar os tijolos em torno da superfície de metal e descobriu,surpreso, que tinha dobradiças, e até uma espécie de maçaneta num recesso de sua superfície.

Era uma porta.Ele parou, arfando por um momento enquanto tentava deduzir por que alguém ia querer

ter acesso ao que devia fazer parte das fundações.Depois, Watkins cometeu o maior erro de sua vida.Usou a chave de fenda para puxar a maçaneta, um anel de ferro batido que girou com um

esforço surpreendentemente pequeno. A porta se abriu para dentro com uma ajudazinha de umade suas botas e bateu na parede do outro lado, o barulho ecoando pelo que parecia umaeternidade. Ele pegou a lanterna e iluminou a escuridão de breu do ambiente. Podia ver que tinhapelo menos seis metros de largura e era, na verdade, circular.

Ele passou pela porta, pisando na superfície de pedra do lado de dentro. Mas, no segundo

passo, o chão de pedra desapareceu e seu pé só encontrou ar. Ia cair! Ele balançou na beira, osbraços se agitando freneticamente até conseguir recuperar o equilíbrio e recuar da borda. Caiu decostas no umbral da porta e subiu nela, respirou fundo algumas vezes para acalmar os nervos e sexingou por sua precipitação.

— Vamos lá, não é nada demais — disse ele em voz alta, obrigando-se a avançarnovamente. Ele girou e andou devagar, a lanterna revelando que na realidade estava parado emuma saliência de pedra e havia uma escuridão agourenta além dela. Ele se inclinou, tentandodistinguir o que estava lá embaixo; parecia não ter fundo. Tinha entrado em um enorme buracode tijolos. E, ao olhar, não pôde ver o alto do buraco: as paredes de tijolos se curvavamdramaticamente nas sombras, ultrapassando os limites de sua pequena lanterna de bolso. Umabrisa forte parecia vir de cima, gelando o suor de sua nuca.

Girando a lanterna, ele percebeu uma escada, talvez de meio metro de largura, que desciapela beira da parede, a partir da saliência de pedra. Ele deu o primeiro passo para testar e, comoparecia sólido, começou a descer a escada cautelosamente, para não escorregar na fina camada depó, palha e galhos que a cobria. Abraçando o diâmetro do poço, ele desceu, cada vez mais fundo,até que a porta iluminada por holofotes tornou-se um pontinho minúsculo acima dele.

Por fim, os degraus terminaram e ele se viu em um piso de laje. Usando a lanterna para daruma olhada em volta, ele pôde ver muitos canos de um cinza-chumbo opaco subindo pelasparedes, como um órgão de igreja embriagado. Ele acompanhou o trajeto de um dos canos quevagava para cima e viu que se abria em um funil, como uma espécie de respiradouro. Mas o quechamou sua atenção, mais do que qualquer outra coisa, foi uma porta com uma janelinha devidro. Havia uma luz inconfundível do outro lado e ele só pôde pensar que de algum modo tinhatropeçado no metrô, particularmente porque podia ouvir o zumbido de maquinaria e sentir umacorrente de ar descendo sem parar.

Ele se aproximou da janela devagar, um círculo de vidro grosso mosqueado e arranhadopelo tempo, e espiou. Não conseguiu acreditar no que seus olhos lhe mostraram. Através de suasuperfície ondulada, havia uma cena de filme em preto-e-branco antigo e irregular. Parecia haveruma rua e uma fila de prédios. E, banhados na luz de esferas cintilantes de uma chama lenta,havia gente andando por ali. Gente que parecia amedrontada. Fantasmas anêmicos usando roupasantiquadas.

Ele não era um homem particularmente religioso, só ia à igreja nos casamentos e quandohavia um ou outro funeral, mas, por um momento, Watkins se perguntou se tinha dado com umanexo do inferno, ou pelo menos uma espécie de parque temático do purgatório. Ele se afastouda janela e fez o sinal-da-cruz, murmurando uma Ave-Maria aflita e imprecisa, e fugiu de voltapela escada num pânico cego, fazendo uma barricada na porta para que nenhum dos demôniosescapasse.

Ele correu pelo canteiro de obras deserto e passou o cadeado no portão principal depois desair. Enquanto dirigia para casa numa névoa, perguntou-se o que diria ao chefe na manhãseguinte. Embora tenha visto com seus próprios olhos, não conseguia deixar de repassar a visãorepetidas vezes em sua mente. Quando chegou em casa, não sabia mais no que acreditar.

Não conseguiu deixar de comentar o assunto com a família; precisava falar com alguémsobre isso. A esposa Aggy e os dois filhos adolescentes concluíram que ele andara bebendo e nãoderam a mínima para ele no jantar. Em meio a gargalhadas cruéis, ergueram garrafas imaginárias

e fingiram beber, até que ele se calou. Mas Watkins não conseguia deixar o assunto de lado e, porfim, Aggy lhe disse para calar a boca e parar de tagarelar sobre monstros de cabelo branco doinferno e bolas reluzentes de fogo enquanto ela tentava assistir a ’Stenders na televisão.

Então, aqui estava ele, no banheiro, escovando os molares e se perguntando se o infernorealmente existia, quando ouviu o começo de um grito — o grito de sua mulher —, aquele emgeral reservado aos camundongos ou aranhas errantes na banheira. Mas isso foi pouco antes deela passar ao habitual berro encorpado.

Seu alarme instintivo tocou, os nervos se agitaram como um curto-circuito enquanto giravao corpo, e ele viu as luzes apagadas e o mundo virado de cabeça para baixo enquanto seus péseram agarrados e ele era suspenso pelos tornozelos. Seus braços e pernas ficaram presos de ladopor alguma coisa tão mais forte que ele não conseguiu lutar de jeito nenhum. Depois um materialespesso o envolveu, grudando em todo seu corpo, até que ele se tornou um rolo de tapetehumano, e foi girado para a horizontal e carregado, exatamente como um tapete.

Estava fora de cogitação gritar, já que sua boca estava obstruída, e só com o maior esforçopossível conseguia respirar. A certa altura, pensou ter ouvido a voz de um dos filhos, mas foi tãobreve e abafada que não dava para ter certeza. Ele nunca ficou tão apavorado por sua família, epor si mesmo, em toda a vida. E jamais se sentira tão completamente impotente.

Capítulo Três

O Museu Highfield era um buraco glorioso — um repositório de pertences supérfluos que forampoupados do aterro sanitário da cidade. O prédio em si foi a antiga prefeitura, convertidosimplesmente pela organização ao acaso de caixas de vidro, elas mesmas tão velhas quanto osobjetos que abrigavam.

Numa cadeira de dentista horrenda da virada do século, dr. Burrows se acomodou com seussanduíches, usando como mesa improvisada, assim como costumava fazer, um mostruário deescovas de dente do início do século XX. Ele abriu seu exemplar do The Times e mordeu umsanduíche mole de salame e maionese, aparentemente sem dar importância à sujeira incrustada noimplemento dentário abaixo, que o povo do lugar dera ao museu como uma alternativa a jogá-lofora.

Nos armários em todo o salão principal onde o dr. Burrows agora se sentava havia muitosarranjos similares de objetos salvos pelos lixeiros. O canto da “Cozinha da Vovó” exibia umamplo sortimento de espalhafatosos batedores de ovos, descaroçadores de maçã e coadores dechá. Um par de calandras vitorianas enferrujadas destacava-se com orgulho junto a uma máquinade lavar Old Faithful Electric há muito defunta, que agora criava flocos de ferrugem com avoracidade com que um dia consumiu sabão em pó.

A “Parede dos Relógios” era de uma mediocridade igualmente fascinante. Na verdade, haviaum item que chamava a atenção: um relógio vitoriano que tinha pintada no painel de vidro a cenade um fazendeiro com um cavalo puxando um arado, mas, infelizmente, o vidro fora quebrado efaltava uma parte essencial, onde deveria estar a cabeça do cavalo. Em torno dele havia ummostruário bem-arrumado de relógios de parede, elétricos e de pêndulo, dos anos 1940 e 1950, deplástico duro em tons pastel — nenhum deles funcionava, já que o dr. Burrows ainda não seprontificara a consertá-los.

Highfield, um dos menores distritos de Londres, teve um passado rico, iniciado na épocados romanos, como um pequeno povoado que na história mais recente inchou sob o impacto daRevolução Industrial. Porém, pouco desta riqueza chegou ao pequeno museu e o distrito setornou o que era agora: um deserto de quartos de pensão, sobradinhos de dois cômodos e lojasindefiníveis que não podiam mais pagar por uma localização central.

Dr. Burrows, o curador do museu, também era seu único freqüentador, a não ser aos

sábados, quando uma tropa de aposentados idosos tripulava o forte. E sempre a seu lado estava apasta de couro marrom, que continha vários periódicos, livros meio lidos e romances históricos.Porque era lendo que o dr. Burrows ocupava seus dias, pontuados pela soneca eventual e umcachimbo fumado clandestina e muito ocasionalmente no “Monturo”, um depósito grande, cheiode caixas de postais e retratos de famílias abandonados que nunca seriam colocados em exposiçãodevido à falta de espaço.

Espremido entre os objetos expostos e empoeirados e os antigos mostruários de mogno, elecolocava os pés para cima e lia vorazmente o dia todo com a Rádio 4 tocando ao fundo em umrádio transistor que fora deixado para o museu por um morador bem-intencionado. Além doocasional grupo escolar desesperado por uma excursão local no clima úmido, muito poucosvisitantes apareciam no museu e, depois de ver uma vez, era improvável que voltassem.

Dr. Burrows, como tantos outros, fazia um trabalho que em princípio seria um quebra-galho. Não era que ele não tivesse um histórico acadêmico impressionante: o diploma em históriafoi acompanhado por outro, em arqueologia, e depois, além de tudo, encimados por umdoutorado. Mas com um filho novo em casa e poucos cargos disponíveis em qualquer uma dasuniversidades de Londres, ele topou por acaso com o emprego no museu no Highfield Bugle emandou seu currículo, pensando que era melhor conseguir alguma coisa, e rapidamente.

Ofereceram-lhe a curadoria, que ele aceitou com a idéia de que procuraria por um empregomais satisfatório no futuro próximo. E, como tantas outras pessoas, a segurança de um cheque depagamento regular resultou nos doze anos que se passaram num átimo e com eles qualquer idéiade procurar por alguma coisa melhor.

Então, aqui estava ele, com um doutorado em antigüidades gregas, seu paletó de tweedescuro repleto de remendos professorais nos cotovelos, vendo a poeira assentar nas peças deexposição gastas e ordinárias, consciente, até dolorosamente demais, de que a poeira tambémassentava nele mesmo.

Terminando o sanduíche, dr. Burrows amassou o papel impermeável numa bola e o lançou,brincalhão, em um cesto de lixo de plástico laranja da década de 1960 em exposição na seção“Cozinha”. Errou, a bola quicou na beira e caiu no chão de taco. Ele soltou um curto suspiro dedecepção e pegou a pasta, vasculhando-a até encontrar uma barra de chocolate. Era um regaloque ele tentava poupar para o meio da tarde, para que o dia tivesse alguma graça. Mas, hoje, ele sesentia particularmente infeliz e estava disposto a ceder à sua paixão por doces, rasgando o papelnum instante e dando uma grande dentada na barra.

Exatamente neste momento, a campainha da porta de entrada tocou e Oscar Embers bateunela com suas muletas. O ex-ator de teatro de oitenta anos criou uma paixão pelo museu e seinscreveu para a ocasional vigília de sábado à tarde depois de doar para os arquivos algunsretratos autografados seus do “Spotlight”.

Dr. Burrows, vendo o velho se aproximando, tentou esvaziar logo a boca cheia de chocolate,mas descobriu que estava além de sua capacidade. Mastigando como um louco, ele percebeu queo aposentado, ainda de posse de grande parte de seu juízo, aproximava-se rápido demais. Dr.Burrows pensou em fugir para sua sala, mas sabia que agora era tarde. Ficou sentado ali, imóvel,as bochechas estufadas como as de um hamster enquanto tentava sorrir.

— Uma boa-tarde para você, Roger — disse Oscar, alegremente, enquanto vasculhava obolso do casaco. — Ora, onde é que a coisa foi parar?

Dr. Burrows conseguiu pronunciar um “hummm” com os lábios apertados, assentindo comentusiasmo. Enquanto Oscar lutava com o bolso do casaco, dr. Burrows conseguiu mastigaralgumas vezes, mas o velho olhou para ele, ainda agarrando-se ao casaco como se estivesserevidando. Oscar parou de vasculhar os bolsos por um segundo e olhou míope as caixas de vidroe as paredes.

— Não estou vendo aquela renda que lhe trouxe na outra semana. Não vai colocar emexposição? Sei que está meio puída em alguns lugares, mas ainda assim é coisa boa. — Como odr. Burrows não respondeu, ele acrescentou: — Então não vai expor?

Dr. Burrows tentou indicar o depósito com um movimento de cabeça. Sem jamais ter vistoo curador ficar em silêncio por muito tempo, Oscar o olhou inquisitivamente, mas depois seusolhos se iluminaram quando encontrou o que procurava. Ele o tirou do bolso e o estendeu, coma mão em concha, diante do dr. Burrows.

— Foi-me dado pela velha sra. Tantrumi... Sabe quem é, a italiana que mora no final daHigh Street. Foi descoberto no porão da casa dela, quando os gasistas fizeram alguns consertos.Preso na terra, ali é que estava. Um deles o chutou sem querer. Acho que devemos incluir nacoleção.

Dr. Burrows, com as bochechas infladas, preparou-se para outro timer de ovos não tãoantigo ou lata amassada cheia de pontas de caneta usadas. Foi pego de guarda baixa quando, comum floreio de mágico, Oscar lhe estendeu um globo pequeno, que brilhava levemente, poucomaior que uma bola de golfe, protegido por uma grade de metal de um dourado opaco.

— É um bom exemplar de uma... uma luminária... ou coisa assim — prosseguiu Oscar. —Bem, na realidade, não sei para que isto serve!

Dr. Burrows pegou o objeto e ficou tão fascinado que quase se esqueceu de que Oscar oobservava com atenção enquanto ele mastigava o chocolate.

— Os dentes estão incomodando, meu rapaz? — perguntou Oscar. — Também costumavatrincá-los desse jeito, quando ficavam muito mal. É simplesmente medonho... Sei exatamentecomo se sente. Só o que posso dizer é que fico feliz por ter me arriscado a arrancá-los todos deuma só vez. Não fica tão desagradável depois que você se acostuma com uma dessas. — Elecomeçou a colocar a mão na boca.

— Ah, não, meus dentes estão bem — conseguiu dizer o dr. Burrows, tentandorapidamente se livrar da perspectiva de ver a dentadura do velho. Ele engoliu com esforço o querestava do chocolate. — Só está meio seca hoje — explicou ele, esfregando a garganta. — Precisode uma água.

— Aaahhh, é melhor ficar de olho nisso, entendeu? Pode ser um sinal de que está com oabsurdo da diabetes. Quando eu era garoto, Roger — os olhos de Oscar pareciam luzir com alembrança —, alguns médicos costumavam fazer exames para diabetes provando a sua... — elebaixou a voz a um sussurro e olhou o chão — água, entende o que quero dizer, para ver se nãohavia muito açúcar nela.

— Sim, sim, eu sei — respondeu o dr. Burrows automaticamente, intrigado demais com oglobo de brilho delicado para dar atenção às curiosidades médicas de Oscar. — Muito estranho.Eu me arriscaria a dizer, precipitadamente, que isto deve datar do século XIX, a julgar pelotrabalho no metal... E o vidro eu diria que é anterior, definitivamente feito à mão... Mas não faço

idéia do que há dentro dele. Talvez seja alguma substância luminescente... Deixou-o na luz pormuito tempo esta manhã, sr. Embers?

— Não, ficou em meu casaco desde que a sra. Tantrumi me deu ontem. Pouco depois docafé-da-manhã, foi isso. Eu estava em minha caminhada terapêutica... Ajuda os intestinos velhos amov...

— Imagino se pode ser radioativo — interrompeu o dr. Burrows asperamente. — Li quetestaram se havia radioatividade em algumas pedras e coleções de minerais vitorianos em outrosmuseus. Alguns espécimes bem fortes foram encontrados em um lote na Escócia... Poderososcristais de urânio que eles tiveram que encerrar numa caixa revestida de chumbo. Perigosodemais para ficar em exposição.

— Ah, espero que não seja perigoso — disse Oscar, dando um passo apressado para trás.— Fiquei andando com ele colado em meu quadril... Só de imaginar que tenha derretido o...

— Não, não acho que tenha essa potência... Não deve ter lhe causado mal algum, não em 24horas. — Dr. Burrows olhou a esfera. — Que peculiar, pode-se ver um líquido em movimentodentro dela... parece que gira... como uma tempestade... — Ele caiu em silêncio, depois sacudiu acabeça, sem acreditar. — Não, deve ser o calor de minha mão que a faz se comportar desse jeito...sabe como é... termorreativo.

— Bom, é um prazer saber que acha interessante. Vou contar à sra. Tantrumi que quer ficarcom ela — disse Oscar, dando outro passo para trás.

— Claro que sim — respondeu o dr. Burrows. — É melhor pesquisar um pouco antes decolocar em exposição, só para me certificar de que é segura. Mas nesse meio-tempo, vou escreverumas palavras de agradecimento à sra. Tantrumi, em nome do museu. — Ele procurou por umacaneta no bolso do paletó, mas não conseguiu encontrar. — Espere um minuto, sr. Embers,enquanto pego alguma coisa com que escrever.

Ele saiu do salão principal e entrou no corredor, tropeçando em um pedaço antigo demadeira, escavado dos pântanos no ano passado por alguns moradores zelosos demais quejuraram que era uma canoa pré-histórica. Dr. Burrows abriu a porta em que “Curador” forapintado no vidro canelado. A sala estava escura, já que a única janela era bloqueada por umapilha alta de engradados. Ao tatear em busca da luminária de sua escrivaninha, ele por acaso abriuum pouco a mão que segurava a esfera. O que viu o atordoou completamente.

A luz que emitia parecia ter se transformado, deixando o brilho suave que ele testemunharano salão principal, assumindo uma fluorescência verde-clara muito mais intensa. Ao observá-la,ele podia jurar que a luz ficava cada vez mais forte e o líquido dentro da esfera se movia com umvigor ainda maior.

— Extraordinário! Que substância se torna mais radiante em um ambiente mais escuro? —murmurou ele para si mesmo. — Não, devo estar enganado, não pode ser! Deve ser porque aluminosidade fica mais perceptível aqui.

Mas o brilho tornara-se mesmo mais intenso; ele sequer precisou da luminária de mesa paralocalizar a caneta, já que o globo emitia uma sublime luz verde, quase tão clara quanto a luz dodia. Ao deixar a sala e voltar com o livro de donativos ao salão principal, ele segurou o globo noalto, diante de si. Sem nenhuma dúvida, no momento em que retornou a um ambiente iluminado,a esfera voltou a se apagar um pouco.

Oscar estava prestes a dizer alguma coisa, mas dr. Burrows passou apressado por ele,

atravessou a porta do museu e foi para a rua. Ele ouviu Oscar gritar “Escute! Escute!” enquantoa porta do museu batia atrás dele, mas o dr. Burrows estava tão concentrado na esfera que oignorou por completo. Ao erguê-la na luz do dia, ele viu que o brilho se extinguira quaseinteiramente e que o líquido na esfera de vidro escurecia até assumir uma cor cinzenta e opaca. Equanto mais tempo ele ficava do lado de fora, expondo a esfera à luz natural, mais escuro ficava olíquido dentro dela, até que ficou quase preto, parecido com petróleo.

Anda balançando o globo diante de si, ele voltou para dentro, observando o líquidocomeçar a se avivar numa minitempestade e brilhar sinistramente outra vez. Oscar esperava porele, a preocupação estampada no rosto.

— Fascinante... fascinante — disse o dr. Burrows.— Pensei que estivesse tendo um ataque dos vapores, meu camarada. Eu me perguntei se

talvez precisasse de ar fresco, correndo desse jeito. Não vai desmaiar, pois não?— Não, estou bem, estou muito bem, sr. Embers. Só queria testar uma coisa. Agora, o

endereço da sra. Tantrumi, se puder fazer a gentileza?— Fico feliz por ter agradado ao senhor — disse Oscar. — E, já que estamos aqui, vou lhe

dar o número de meu dentista, assim pode ver esses dentes depressa.

Capítulo Quatro

Will estava curvado no guidom da bicicleta na entrada de um terreno baldio cercado de árvores earbustos silvestres. Ele olhou o relógio outra vez e decidiu que daria mais cinco minutos paraChester aparecer, não mais de cinco minutos. Estava perdendo um tempo precioso.

O terreno era um daqueles lotes esquecidos que encontramos nos arredores de qualquercidade. Este ainda não fora coberto de casas, provavelmente devido a sua proximidade do aterrosanitário municipal e às montanhas de lixo que subiam e desciam com uma regularidadedeprimente. Conhecido no lugar como “as Quarenta Covas”, devido às numerosas crateras quemarcavam sua superfície, algumas quase chegando a três metros de profundidade, era a arena debatalhas freqüentes entre duas gangues adversárias de adolescentes, a Clan e a Click, cujosmembros provinham dos conjuntos habitacionais mais escabrosos de Highfield.

Também era o lugar preferido de crianças com suas bicicletas de trilha e, cada vez mais,bicicletas motorizadas roubadas, sendo estas últimas atiradas ao chão e depois incendiadas, osesqueletos pretos como carvão espalhando-se pela beira das Covas, onde o mato entremeava asrodas e os blocos de motor enferrujados. Com uma freqüência menor, também era cenário dediversões sinistras de adolescentes, como caça a aves e a sapos; com demasiada freqüência, ascriaturas eram torturadas lentamente até a morte e suas carcaças pequenas e lamentáveisempaladas em varetas numa sádica alegria juvenil.

Ao virar a esquina para as Covas, um brilho de metal atraiu a atenção de Chester. Era a facepolida da pá de Will, que ele pendurava atravessada às costas, como uma espada de samurai.

Ele sorriu e acelerou o passo, agarrando sua pá de jardim opaca e bastante comum no peitoe acenando com entusiasmo para a figura solitária ao longe, que estava inconfundível com sua tezextraordinariamente pálida, o boné e os óculos de sol. Na verdade, toda a aparência de Will eramuito estranha; ele vestia seu “kit de escavação”, que consistia em um cardigã enorme com oscotovelos almofadados em couro e calças de veludo cotelê velhas e sujas de terra, de uma corindefinida devido à fina patina de lama seca que as cobria. As únicas coisas que Will mantinhalimpas eram sua amada pá e as biqueiras de metal das botas de trabalho.

— O que aconteceu com você? — perguntou Will, enquanto Chester finalmente oalcançava. Will não entendia como alguma coisa pode ter retido o amigo, como é possível quealguma coisa fosse mais importante do que isso.

Este era um marco na vida de Will, a primeira vez em que permitia que alguém da escola,ou simplesmente alguém, visse um de seus projetos. Ainda não tinha certeza se agiracorretamente; ainda não conhecia Chester tão bem assim.

— Desculpe, o pneu furou — bufou Chester. — Tive que levar a bicicleta para casa e correrpara cá... E o clima está meio quente.

Will olhou inquieto o sol e franziu a testa. Não era bom para ele: graças a sua falta depigmentação, até a escassa potência do sol em um dia nublado podia queimar sua pele. Seualbinismo lhe conferia o cabelo quase completamente branco que se projetava do boné e os olhosazuis-claros, que agora disparavam impacientes para o interior das Covas.

— Mas então vamos direto ao que interessa. Já perdemos tempo demais — disse Willrispidamente. Ele partiu na bicicleta, mal olhando para Chester, que começou a correr atrás dele.— Vem, é por aqui — instou ele, já que o outro garoto não conseguia acompanhar suavelocidade.

— Ei, pensei que já estávamos lá! — gritou Chester atrás, ainda tentando tomar fôlego.Chester Rawls — quase tão largo quanto era alto e forte como um touro, conhecido na

escola como Cubóide ou Cômoda — era da mesma idade de Will, mas evidentemente forabeneficiado por uma nutrição melhor ou herdou um físico de halterofilista. Uma das pichaçõesmenos ofensivas nos banheiros da escola proclamava que o pai dele era um armário e a mãe umamesa redonda.

Embora a crescente amizade entre Will e Chester parecesse improvável, o que ajudou osdois a se unir foi a mesma coisa que os isolava na escola: a pele. Para Chester, eram fortes crisesde eczema, que resultavam em trechos escamosos e pruriginosos de pele áspera. Isto se devia,disseram-lhe sem ajudar muito, ou a uma alergia inidentificável, ou à tensão nervosa. Qualquerque fosse a causa, ele suportara as gozações e piadas dos colegas, sendo as piores “horrívelcriatura escamosa” e “bunda de cobra”, até que não agüentou mais e precisou revidar, usando suavantagem física para subjugar com bom resultado quem o insultava.

Da mesma forma, a palidez de Will o destacava da norma e por algum tempo ele aturou osgritos de “Giz” e “Homem das neves”. Mais impetuoso do que Chester, ele perdeu as estribeirasnuma tarde de inverno, quando seus torturadores o emboscaram a caminho de uma escavação.Infelizmente para eles, Will usara muito bem sua pá, e uma batalha sangrenta e unilateral resultouem alguns dentes quebrados e um nariz esmagado.

Era compreensível que depois disso Will e Chester fossem deixados em paz e tratados comaquele respeito relutante que damos aos cães raivosos. Mas os dois meninos continuaramdesconfiados de seus colegas de turma, acreditando que a perseguição poderia muito bemrecomeçar se baixassem a guarda. Assim, apesar da inclusão de Chester em vários times da escoladevido a sua força física, os dois continuaram excluídos: os solitários na beira do pátio. Segurosem seu isolamento compartilhado, eles não falavam com ninguém e ninguém falava com eles.

Isso foi muitos anos antes de eles tentarem conversar, embora há muito houvesse umaadmiração furtiva entre os dois pelo modo como sustentaram sua posição contra os valentões daescola. Sem realmente perceber, eles se aproximaram, passando cada vez mais tempo juntos nohorário de aula. Will ficara sozinho e sem amigos por tanto tempo que tinha que admitir comoera bom ter um companheiro, mas ele sabia que, para a amizade chegar a algum lugar, cedo ou

tarde teria que revelar a Chester sua grande paixão — as escavações. E agora chegara o momento.Will pedalou entre os montes de mato, crateras e pilhas de lixo largado por porcalhões,

parando ao chegar ao outro extremo. Desmontou e escondeu a bicicleta em um pequeno abrigosob a carcaça de um carro abandonado, seu formato irreconhecível graças à ferrugem e aodesmonte que suportou.

— Chegamos — anunciou ele, enquanto Chester o alcançava.— É aqui que vamos cavar? — Chester arfava, olhando o chão em volta de seus pés.— Não. Afaste-se um pouco — disse Will. Chester se afastou alguns passos de Will,

olhando-o bestificado.— Vai começar uma nova?Will não respondeu, mas se ajoelhou e pareceu tatear alguma coisa em um trecho de mato.

Descobriu o que procurava um pedaço de corda com nós — e se levantou, pegou a ponta solta epuxou com força. Para surpresa de Chester, uma fenda se abriu na terra e um painel grosso decompensado se ergueu, a terra caindo dele e revelando uma entrada escura.

— Por que precisa esconder isso? — perguntou ele a Will.— Não posso deixar aquela ralé mexer na minha escavação, posso? — respondeu Will em

tom possesso.— Não vamos entrar aí, né? — questionou Chester, aproximando-se mais para espiar o

vazio.Mas Will já começava a descer pela abertura que, depois de um ou dois metros, ficava cada

vez mais funda e inclinada.— Guardei um desses para você — disse Will de dentro da abertura enquanto colocava um

capacete amarelo e acendia a lanterna de minerador instalada na frente. Ela brilhou para Chester,que pairava indeciso acima de Will.

— Bom, você vem ou não? — perguntou Will de mau humor. — Vai por mim, étotalmente seguro.

— Tem certeza disso?— Claro que sim — respondeu Will, demonstrando ao esbofetear um suporte a seu lado e

sorrindo com confiança para encorajar um pouco o amigo. Ele continuou a sorrir fixamente aopasso que, nas sombras atrás dele e fora da vista de Chester, uma pequena chuva de terra caía asuas costas. — Seguro como uma casa. É sério.

— Bom...Depois de entrar, Chester ficou surpreso demais para falar. Um túnel, de alguns metros de

largura e igual altura, corria um pouco inclinado para a escuridão, as laterais sustentadas aintervalos freqüentes com estacas velhas de madeira. Parecia, pensou Chester, exatamente asminas daqueles antigos filmes de faroeste que eram exibidos na TV, nas tardes de domingo.

— Que legal! Você não fez tudo isso sozinho, Will, não pode ser!Will deu um sorriso presunçoso.— É claro que fiz. Trabalho nele desde o ano passado... E você ainda não viu nem a metade.

Venha por aqui.Ele recolocou a tampa, fechando a boca do túnel. Chester o observou com um misto de

emoções enquanto desaparecia a última lasca de céu azul. Eles partiram pelo corredor, passandopor pilhas de tábuas e estacas empilhadas desordenadamente nas laterais.

— Caramba! — disse Chester à meia-voz.Inesperadamente, a passagem se ampliou em uma área do tamanho de uma sala razoável,

com dois túneis ramificando-se de cada lado. No meio havia um montinho de baldes, uma mesade cavalete e duas cadeiras velhas. As tábuas de madeira do teto eram sustentadas por filas deestacas Stillson, colunas ajustáveis de ferro tomadas de ferrugem.

— Lar, doce lar — disse Will.— Isso é tão... doido — disse Chester sem conseguir acreditar, depois franziu o cenho. —

Mas não tem mesmo nenhum problema para a gente aqui embaixo?— Claro que não. Meu pai me ensinou a reforçar com estacas e a escorar... Não é minha

primeira vez, sabe?... — Will hesitou, reprimindo-se bem a tempo, antes de dizer alguma coisasobre a estação de trem que escavara com o pai. Chester o olhava desconfiado enquanto ele tossiaalto para disfarçar o silêncio na conversa. Will jurara segredo ao pai e não podia trair suaconfiança, nem mesmo com Chester. Ele fungou alto, depois continuou. — E é perfeitamenteseguro. É melhor não abrir túneis embaixo de prédios... Isso requer escoras mais fortes e muitomais planejamento. Além disso, não é uma boa idéia onde houver água ou correntessubterrâneas... Elas podem provocar o desmoronamento da coisa toda.

— Não tem nenhuma água por aqui, tem? — perguntou Chester rapidamente.— Só essa. — Will pegou uma caixa de papelão na mesa e passou uma garrafa plástica ao

amigo. — Vamos nos refrescar por um tempinho.Os dois se sentaram nas cadeiras velhas, bebendo a água, enquanto Chester olhava o teto e

esticava o pescoço para ver os dois túneis.— É tão tranqüilo, né? — Will suspirou.— É — respondeu Chester. — Muito... hã... tranqüilo.— É mais do que isso, é tão quente e calmo aqui embaixo. E o cheiro... Meio reconfortante,

né? Papai diz que é de onde viemos, há muito tempo... Os homens das cavernas e essas coisas... Eé claro que todos vamos acabar aqui um dia... Debaixo da terra, quero dizer. Então, acho que émeio natural para nós, como se fosse o lar.

— Parece que sim — concordou Chester, em dúvida.— Sabe de uma coisa, antigamente eu pensava que quando você compra uma casa, também

é dono de tudo o que está embaixo dela.— Como assim?— Bom, sua casa é construída num terreno, não é? — disse Will, batendo a bota no chão da

caverna para dar efeito. — E qualquer coisa abaixo do terreno, direto, até o centro da Terra,também é seu. É claro que quanto mais próximo você chega do centro do planeta, do“segmento”, se quiser chamar assim, vai ficando cada vez menor até que você chega ao próprionúcleo.

Chester assentiu devagar, sem saber o que dizer.— Então, sempre imaginei cavar para baixo... Descendo em sua fatia do mundo e todos

aqueles milhares de quilômetros que são desperdiçados, em vez de ficar só sentado em um prédioempoleirado na crosta da Terra — disse Will sonhadoramente.

— Sei — disse Chester, apreendendo a idéia. — E aí, se você cavasse para baixo, poderia tertipo um arranha-céu, só que invertido. Como se fosse um pêlo encravado ou coisa assim. — Ele

coçou involuntariamente o eczema no braço.— É, é isso mesmo. Não tinha pensado desse jeito, é um bom argumento. Mas papai diz

que você não é dono de toda a terra abaixo... O governo tem o direito de construir tubulações eessas coisas, se quiser.

— Ah — disse Chester, perguntando-se por que, antes de tudo, eles estavam falando nisso,se as coisas eram assim.

Will se colocou de pé num salto.— Muito bem, pegue uma picareta, alguns baldes e um carrinho de mão, e siga-me por aqui.

— Ele apontou para um dos túneis escuros. — Há um probleminha com uma pedra.

Enquanto isso, na superfície, o dr. Burrows andava decidido para casa. Sempre gostou daoportunidade de pensar ao caminhar por alguns quilômetros e isso também significava queeconomizaria na passagem do ônibus.

Ele parou na banca de jornal, detendo-se abruptamente a meio passo, oscilou um pouco,girou 90 graus e entrou.

— Dr. Burrows! Estava começando a achar que nunca mais o veria de novo — disse ohomem atrás do balcão ao desviar os olhos de um jornal aberto diante dele. — Pensei que tivessepartido em um cruzeiro pelo mundo ou coisa parecida.

— Ah, não, quem me dera — respondeu o dr. Burrows, tentando desviar os olhos dasbarras de Snickers, Mars e Walnut Whips exibidas tentadoramente diante dele.

— Guardamos as suas reservas — disse o vendedor ao se curvar sob o balcão e aparecercom uma pilha de revistas. — Aqui estão. Excavation Today, The Archaelogical Journal e Curators’Month. Todas atuais e corretas, espero.

— É assim que deve ser — disse o dr. Burrows, procurando pela carteira. — Não ia quererque outra pessoa as levasse!

O jornaleiro ergueu as sobrancelhas.— Pode acreditar, aqui não há exatamente uma demanda excessiva por estes títulos — disse

ele enquanto pegava a nota de vinte libras do dr. Burrows. — Parece que está trabalhando emalguma coisa — acrescentou o jornaleiro, vendo as unhas sujas do dr. Burrows. — Desceu emalguma mina de carvão?

— Não — respondeu o dr. Burrows, contemplando a terra incrustada sob as unhas. — Naverdade, andei fazendo uma oficina no meu porão. Ainda bem que não rôo as unhas, não é?

Dr. Burrows saiu da banca com seu novo material de leitura, tentando enfiá-lo comsegurança no bolso lateral da pasta enquanto abria a porta. Ainda lutando com as revistas, elerecuou meio às cegas na calçada, batendo em alguém que seguia a grande velocidade. Arfando aorecuar do homem baixinho mas troncudo em que tinha esbarrado, dr. Burrows deixou cair apasta e as revistas. O homem, que parecia sólido como uma locomotiva, não se deixou afetar eapenas continuou seu caminho. Dr. Burrows, gago e aturdido, tentou se desculpar às costas dele,mas o homem andava decidido, ajeitando os óculos de sol e virando a cabeça de leve para abrirum esgar antipático ao arqueólogo.

Dr. Burrows ficou espantado. Era um homem-de-chapéu. Ultimamente ele começara aperceber, em meio à população geral de Highfield, um tipo de pessoa que era... bem, era diferente,

mas sem se destacar demais. Sendo um observador habitual das pessoas e tendo analisado asituação como sempre fazia, ele supôs que essa gente devia ter algum parentesco. O que mais osurpreendia era que, quando ele levantava o assunto com qualquer pessoa na região de Highfield,ninguém parecia ter dado pela presença dos homens de cara peculiarmente oblíqua, usandochapéus achatados, casacos pretos e óculos escuros muito grossos.

Ao esbarrar no homem, desalojando um pouco seus óculos pretos, o dr. Burrows teve achance de ver um “espécime” de perto pela primeira vez. Além do rosto singularmente inclinadoe o cabelo fino, tinha olhos azuis muito claros, quase brancos, numa pele pastosa e translúcida.Mas havia mais uma coisa: um cheiro peculiar se desprendia do homem, um bolor. Lembrava aodr. Burrows as velhas malas de roupas mofadas que de vez em quando eram largadas porbenfeitores anônimos na escada do museu.

Ele olhou o homem andar decidido pela High Street e seguir na distância, até que era oúnico à vista. Depois, um transeunte atravessou a rua, interrompendo a linha de visão do dr.Burrows. Naquele instante, o homem-de-chapéu desapareceu. Dr. Burrows semicerrou os olhosatravés dos óculos e continuou a procurar por ele mas, embora as calçadas não estivessem tãomovimentadas, não conseguiu localizá-lo novamente, por mais que tentasse.

Ocorreu ao dr. Burrows que ele devia ter feito o esforço de seguir o homem-de-chapéu paraver onde estava indo. Mas, com as boas maneiras que tinha, ele não gostava de nenhuma forma deconfronto e rapidamente raciocinou consigo mesmo que esta não era uma boa idéia, dados osmodos hostis do homem. Então, qualquer idéia de trabalho de detetive logo foi abandonada.Além disso, podia descobrir outro dia onde morava o homem e talvez toda a família desemelhantes enchapelados. Quando se sentisse um pouco mais intrépido.

Debaixo da terra, Will e Chester se revezavam na face rochosa, que Will identificara como umaespécie de arenito. Ele ficou feliz por ter recrutado Chester para ajudar na escavação, porque oamigo realmente parecia ter jeito para o trabalho. Observou com uma admiração muda enquantoChester girava a picareta com uma força imensa e, depois que uma fissura se abriu na rocha,parecia saber exatamente quando arrancar o material solto, que Will rapidamente colocava nosbaldes.

— Precisa de um intervalo? — sugeriu ele, vendo que Chester começava a se cansar. —Vamos respirar um pouco. — Will quis dizer respirar literalmente porque, com a entrada para aescavação coberta, muito em breve haveria pouco ar e ficaria abafado onde eles estavam, a unsseis metros da câmara principal.

— Se eu levar esse túnel muito mais à frente — disse ele a Chester enquanto os doisempurravam os carrinhos de mão abarrotados —, terei que cavar uma torre de ventilação. Só queé uma trabalheira tão grande instalar uma dessas, quando eu podia estar descendo mais por aqui.

Eles chegaram à câmara principal e se sentaram nas cadeiras, bebendo a água com prazer.— E o que vamos fazer com tudo isso? — disse Chester, indicando os baldes cheios nos

carrinhos de mão.— Puxar para a superfície e despejar no barranco do lado.— Não tem problema fazer isso?

— Bom, se alguém perguntar, eu digo que estou cavando uma trincheira para um jogo deguerra — respondeu Will. Tomando um gole da garrafa, ele engoliu com ruído. — O queinteressa a eles? Para eles, somos só um bando de crianças burras com baldes e pás —acrescentou com desdém.

— Eles iam ligar se vissem isso... Não é o que crianças comuns fazem — disse Chester, osolhos girando pela câmara. — Por que é mesmo que você faz isso, Will?

— Dê uma olhada aqui.Will ergueu delicadamente um engradado de plástico do lado de sua cadeira e o colocou no

colo. Depois passou a tirar uma série de objetos, inclinando-se para colocar um por um na mesa.Entre eles, havia garrafas de Codswallop (garrafas de refrigerante vitoriano de gargalos estranhosque continham um mármore vítreo) e todo um sortimento de frascos de remédios de tamanhos ecores diferentes, todos com uma linda camada envelhecida de seu período na terra.

— E estes — disse Will com reverência, enquanto retirava todo um leque de vidros de patêvitorianos de diferentes tamanhos com tampas decorativas e nomes numa caligrafia antiga esinuosa que Chester nunca vira antes. Na verdade, ele parecia estar genuinamente interessado,pegando cada vidro e fazendo a Will perguntas sobre a idade que tinham e onde exatamenteforam encontrados. Estimulado, o garoto continuou até que cada uma de suas descobertas deescavações recentes estivesse em cima da mesa. Depois, voltou a se sentar direito, vendo comcuidado a reação do amigo recém-descoberto.

— O que é esse montinho? — perguntou Chester, sondando com o dedo uma pequenapilha de metal muito enferrujado.

— Pregos do tipo cravo. Provavelmente do século XVIII. Se olhar bem, dá para ver quecada um deles é diferente, como se fossem feitos à mão por...

Mas, em sua empolgação, Chester já havia se desviado na mesa para outra coisa que chamousua atenção.

— Isso é tão legal — disse ele, erguendo e virando um pequeno frasco de perfume para quea luz brincasse em seus maravilhosos tons de azul-cobalto e malva. — É incrível que alguémtenha jogado fora.

— Não é mesmo? — concordou Will. — Pode ficar com ele, se quiser.— Não! — disse Chester, pasmo com a oferta.— É, pode ficar, tenho outro exatamente igual em casa.— Olha, isso é demais... obrigado — disse Chester, ainda admirando o frasco com tal

enlevo que nem viu Will abrir o sorriso mais rasgado que se pode imaginar. Ele praticamentevivia para os momentos em que podia mostrar ao pai a última safra de achados, mas isto era maisdo que um dia podia esperar: alguém de sua idade que parecia estar sinceramente interessado nosfrutos de seu trabalho. Ele olhou a mesa abarrotada e sentiu inchar de orgulho. Em geral, seimaginava voltando ao passado e colhendo estes pequenos exemplos de história descartada. ParaWill, o passado era um lugar muito mais interessante do que a realidade horrível do presente. Elesuspirou ao começar a recolocar os objetos no engradado.

— Ainda não encontrei nenhum fóssil por aqui... Nada realmente antigo... Mas nunca se sabea sorte que se vai ter — disse ele, olhando pensativamente os túneis ramificados. — É aí que estáa emoção.

Capítulo Cinco

Dr. Burrows assoviava, balançando a pasta ao ritmo de seu andar animado. Ele virou a esquina àsseis e meia da noite, precisamente como sempre fazia, e sua casa entrou no campo de visão. Erauma entre as muitas casas que se espremiam na avenida Broadlands, caixas de tijolos com espaçosuficiente para uma família de quatro pessoas. A única compensação era que este lado da rua davafundos para um terreno baldio, então, pelo menos a casa tinha vista para um grande espaçoaberto, mesmo que fôssemos obrigados a vê-lo dos cômodos em que mal cabia um camundongo,que dirá um gato.

Ao entrar e ficar parado no hall, pegando os livros velhos e revistas de sua pasta, seu filhonão estava muito atrás. Numa velocidade estonteante, Will entrou na avenida Broadlands comsua bicicleta, a pá cintilando à primeira luz avermelhada dos postes de rua recém-acesos. Elecosturou com habilidade entre as faixas brancas no meio da rua e inclinou como louco ao selançar ao portão aberto, os freios chegando a um guincho crescente ao parar sob a garagemaberta. Ele desmontou, trancou a bicicleta e entrou na casa.

Will era o tipo de garoto que precisava de espaço. Conseqüentemente, raras vezes era vistoem casa, a não ser nos horários das refeições e para dormir, tratando-a como um hotel, comofaziam tantos da idade dele. O único problema com seu desejo constante de ficar ao ar livre eraque, como não podia ficar exposto à luz do sol por muito tempo, ele era efetivamente obrigado air para o subsolo em todas as oportunidades que tinha. E é claro que ele não se importava comisso.

— Oi, pai — disse ele ao pai, que agora estava postado desajeitadamente na sala de estar,ainda segurando a pasta aberta em uma das mãos e vendo alguma coisa na televisão.

Dr. Burrows era inquestionavelmente a maior influência na vida do filho. Um comentáriofortuito ou a menor informação do pai podia inspirar Will a se meter nas “investigações” maisloucas e mais radicais, em geral envolvendo uma quantidade absurda de escavações. Dr. Burrowssempre conseguiu estar presente em qualquer das escavações do filho se desconfiasse de quepoderia haver alguma coisa de verdadeiro valor arqueológico, mas na maior parte do tempopreferia enterrar o nariz nos livros que mantinha no porão, no porão dele. Ali, ele podia fugir davida familiar, perdendo-se em devaneios com templos gregos e coliseus romanos ecoantes.

— Ah, sim, olá, Will — respondeu, distraído, depois de uma longa pausa, ainda absorto na

televisão. Will passou pelo pai até onde a mãe estava sentada, igualmente hipnotizada peloprograma.

— Oi, mãe — disse e depois saiu, sem esperar por uma resposta.Os olhos da sra. Burrows estavam grudados em eventos carregados e inesperados no asilo

de idosos.— Olá — respondeu ela, por fim, embora o filho já tivesse deixado a sala.Os pais de Will se conheceram na universidade, quando a sra. Burrows era uma animada

estudante de mídia, determinada a seguir carreira na televisão.Infelizmente, naquele tempo a televisão preenchia sua vida por um motivo completamente

diferente. Ela a via com uma devoção quase fanática, fazendo malabarismos com dois gravadoresde vídeo quando seus programas preferidos, e eles eram muitos, eram exibidos no mesmohorário.

Se tirássemos um instantâneo mental de uma pessoa, uma imagem que fosse a primeira a serlembrada quando pensássemos nela, a da sra. Burrows seria dela deitada de lado em sua poltronapreferida, uma fila de controles remotos organizados no braço e os pés pousando em umbanquinho encimado pelas páginas de televisão arrancadas dos jornais. Ali, ela ficava sentada, diaapós dia, semana após semana, cercada de uma pilha desorganizada de fitas de vídeo, paralisadana luz bruxuleante da telinha, de vez em quando mexendo a perna para que todos soubessem queainda estava viva. A sala, domínio dela, tinha móveis que viram dias melhores: um sortimento decadeiras de madeira desiguais pintadas de roxo e turquesa, duas poltronas diferentes com o forroazul-escuro solto e desbotado e um sofá com braços puídos, móveis que ela e o dr. Burrowsherdaram com o passar dos anos.

Como fazia toda noite, Will seguiu batido para a cozinha ou, mais especificamente, para ageladeira, e estava abrindo a porta ao falar, sem sequer olhar a outra pessoa no ambiente, emborareconhecesse sua presença.

— Oi, mana — disse ele. — O que temos para comer? Estou faminto.— Ah, a criatura da lama voltou — disse Rebecca a ele. — Tive a estranha sensação de que

você ia aparecer justo agora. — Ela fechou a porta da geladeira num baque para impedir o irmãode fuçar seu interior e, antes que ele tivesse a chance de reclamar, meteu uma embalagem vazianas mãos dele. — Frango agridoce, com arroz e um vegetal qualquer. Estava em promoção nosupermercado, leve-dois-e-pague-um.

Will olhou a foto na embalagem e, sem comentar, devolveu a ela.— E como está indo a última escavação? — perguntou Rebecca, exatamente quando o

microondas apitava.— Não muito bem... Nós chegamos a uma camada de arenito.— Nós? — Rebecca o olhou indagativamente enquanto pegava um prato no microondas.

— Tenho certeza de que acaba de dizer nós, Will. Não está me dizendo que o papai estátrabalhando com você, né? Não durante o horário do museu.

— Não, o Chester, da escola, está me dando uma mãozinha.Rebecca acabara de colocar um segundo prato no microondas e por muito pouco prendeu

os dedos na porta ao fechá-la.— Quer dizer que realmente convidou alguém para te ajudar? Bom, isso é mesmo uma

novidade. Pensei que não confiasse em ninguém com seus “projetos”.

— Não, em geral não confio, mas o Chester é legal — respondeu Will, meio confuso com ointeresse da irmã. — Ele foi de uma ajuda e tanto.

— Não posso dizer que o conheço bem, a não ser que é chamado de...— Sei exatamente do que ele é chamado — Will a interrompeu asperamente.Com doze anos, Rebecca era dois anos mais nova do que Will e não podia ser mais diferente

dele; ela era magra e delicada para a idade, ao contrário do irmão, de uma estatura maisatarracada. E com o cabelo preto e a pele clara, o sol não a incomodava, mesmo no auge doverão, enquanto a pele de Will começava a ficar vermelha e a arder em questão de minutos.

Sendo os dois tão completamente diferentes, não só na aparência mas também notemperamento, sua vida em casa tinha certo ar de trégua in-tranqüila e cada um deles sódemonstrava uma curiosidade passageira pelos interesses do outro.

Também não havia as saídas em família que se poderia esperar, porque o dr. e a sra.Burrows também tinham gostos totalmente divergentes. Will ia com o pai nas expedições — umdestino habitual era a costa sul, sendo Lyme Regis um franco favorito, onde eles procuravamfósseis, percorrendo a praia em busca de aterros recentes.

Rebecca, por outro lado, arranjava-se sozinha nas férias, viajando regularmente — paraonde, ou para fazer o quê, Will não sabia nem se importava em saber. E nas raras ocasiões emque a sra. Burrows se aventurava para fora de casa, só andava pelas lojas de West End ou via osfilmes mais recentes.

Esta noite, como acontecia na maioria das noites, os Burrows estavam sentados com arefeição no colo vendo uma comédia da década de 1970, repetida com freqüência, que o dr.Burrows parecia gostar. Ninguém falou durante a refeição, a não ser a sra. Burrows, que a certaaltura murmurou “Meu Deus... isso é bom”, que pode ter sido um elogio à comida demicroondas ou possivelmente ao final do programa datado, mas ninguém fez o esforço deperguntar.

Depois de comer apressadamente, Will saiu da sala sem dizer nada, colocando a bandeja napia da cozinha antes de subir a escada, agarrado a um saco de lona com objetos recém-descobertos. Dr. Burrows foi o próximo a sair, entrando na cozinha, onde depositou sua bandejana mesa. Embora ainda não tivesse acabado de comer, Rebecca seguiu de perto, atrás dele.

— Pai, algumas contas precisam ser pagas. Os cheques estão na mesa.— Temos dinheiro suficiente na conta? — perguntou ele ao rabiscar sua assinatura em um

dos cheques, sem sequer se dar ao trabalho de ler as quantias.— Eu te disse na semana passada, consegui uma transação melhor no seguro da casa. Nos

poupou alguns centavos no prêmio.— Está bem... Muito bom. Obrigado — disse o dr. Burrows, pegando a bandeja e virando-

se decidido para a lava-louças.— Deixe aí do lado — disse Rebecca meio rápido demais, parando protetoramente diante

da lava-louças. Só na semana passada ela o pegou tentando programar seu amado microondasesmurrando furiosamente os botões em seqüências ao acaso, como se procurasse decifrar umcódigo secreto. Desde então, ela tratou de tirar das paredes as tomadas dos principaiseletrodomésticos.

Enquanto o dr. Burrows saía da sala, Rebecca colocou os cheques em envelopes e se sentou

para preparar uma lista de compras para o dia seguinte. Na tenra idade de doze anos, ela era omotor, a usina de força por trás do lar dos Burrows. Assumia sozinha não só as compras, mastambém a organização das refeições, a supervisão da faxineira e fazia quase todo o resto que,numa casa comum, seria de responsabilidade dos pais.

Afirmar que Rebecca era meticulosa seria dizer muito pouco. Um esquema no quadro deavisos da cozinha relacionava todas as provisões de que precisaria com pelo menos quinze dias deantecedência. Ela rotulava cuidadosamente as pastas de contas da família e da situação financeiraem um dos armários da cozinha. E esta operação tranqüila dos cuidados domésticos só começavaa falhar quando Rebecca estava ausente. Neste caso os três, o dr. e a sra. Burrows e Will, viviamda comida que Rebecca deixava para eles no freezer, servindo-se quando tinham vontade, com adelicadeza de um bando de lobos num saque. Depois destas ausências, Rebecca simplesmentevoltava e colocava a casa em ordem outra vez sem protestar, como se aceitasse que seu destinofosse arrumar a bagunça dos outros membros de sua família.

De volta à sala, a sra. Burrows agitou o controle remoto para começar sua maratona noturnade novelas e programas de entrevista enquanto Rebecca limpava a cozinha. Às nove horas, elaconcluíra suas tarefas e, sentada à altura do meio da mesa, a parte que não estava tomada dosnumerosos vidros de café sobre os quais o dr. Burrows prometera tomar alguma providência, elaterminou seu dever de casa. Decidindo que estava na hora de dormir, pegou uma pilha de toalhaslimpas e subiu com elas debaixo do braço. Ao passar pelo banheiro, teve que parar ao olhar paradentro por acaso. Will estava ajoelhado no chão, admirando os novos achados e lavando a terradeles com a escova de dente do dr. Burrows.

— Olha só isso! — disse ele orgulhoso enquanto erguia uma pequena bolsa feita de couroapodrecido, que gotejava água suja por toda parte. Ele abriu a aba frágil de seu prêmio com todadelicadeza e tirou uma série de cachimbos de barro. — Em geral só achamos as peças isoladas...pedaços que os lavradores largaram. Mas olha só isto aqui. Não tem nenhum que-brado. Estãoperfeitos como no dia em que foram feitos... pense só nisso... todos esses anos... no século XVIII.

— Lindo — disse Rebecca, sem a mais vaga sugestão de interesse. Sacudindo o cabelo comdesdém, ela continuou a atravessar o patamar da escada até o armário, em que colocou as toalhas,e depois entrou no quarto, fechando a porta firmemente.

Will suspirou e reassumiu a análise de seus achados por vários minutos, depois reuniu-os notapete sujo de lama do banheiro e os levou com cuidado para o quarto. Ali, ele arrumoupensativamente os cachimbos e a bolsa de couro ainda ensopada ao lado de seus muitos outrostesouros nas prateleiras que cobriam completamente a parede do quarto — seu museu, como elechamava.

O quarto de Will ficava nos fundos da casa e deviam ser duas horas da manhã quando elefoi despertado por um som. Vinha do jardim.

— Um carrinho de mão? — disse ele, identificando de imediato ao abrir os olhos. — Umcarrinho de mão carregado? — Ele tropeçou para fora da cama e foi até a janela. Ali, na luz dameia-lua, pôde distinguir uma forma vaga empurrando um carrinho de mão pelo passadiço. Elesemicerrou os olhos, tentando ver melhor.

— Pai! — disse ele a si mesmo ao reconhecer os traços do dr. Burrows e ver o brilho da luaem seus conhecidos óculos. Aturdido, Will viu o pai chegar ao final do jardim e passar peloburaco na sebe, depois sair para o terreno baldio. Ali, Will o perdeu de vista atrás de algumas

árvores.— O que é que ele está aprontando? — murmurou Will consigo mesmo. Dr. Burrows tinha

horários estranhos graças a suas sonecas freqüentes no museu, mas este nível de atividade eraanormal para ele.

Will se lembrou de que no início do ano ajudou o pai a escavar e baixar o piso do porão emquase um metro, e depois depositar uma nova camada de concreto para aumentar a altura dali. Emais ou menos um mês depois, o dr. Burrows teve a brilhante idéia de cavar uma saída do porãopara o jardim e colocar uma porta nova já que, por um motivo qualquer, decidira que precisavade outros meios de entrar em seu santuário na base da casa. Pelo que Will sabia, o trabalhoterminara ali, mas seu pai podia ser imprevisível. O garoto sentiu uma pontada de ressentimento— o que o pai estava fazendo de tão sigiloso e por que não pedira sua ajuda?

Ainda grogue de sono e distraído pelos pensamentos em seus próprios projetos nossubterrâneos, Will tirou o assunto da cabeça por ora e voltou para a cama.

Capítulo Seis

No dia seguinte, depois da aula, Will e Chester reassumiram seu trabalho na escavação. Willvoltava após se desfazer do entulho, o carrinho de mão abarrotado de baldes vazios enquanto elevirava para a extremidade do túnel, onde Chester golpeava a parede de pedra.

— Como está indo? — perguntou-lhe Will.— Não está ficando mais fácil, disso eu tenho certeza — respondeu Chester, enxugando o

suor da testa com a manga suja e emporcalhando de terra a própria cara.— Pare um pouco, me deixa dar uma olhada. Faça uma pausa.— Tudo bem.Will apontou a lanterna do capacete para a superfície rochosa, os tons sutis de amarelo e

marrom dos estratos cinzelados aleatoriamente pela ponta da picareta, e suspirou alto.— Acho melhor a gente parar e pensar um pouco nisso. Não tem sentido bater a cabeça

numa parede de arenito! Vamos beber alguma coisa.— É, boa idéia — disse Chester com gratidão.Eles foram para a câmara principal, onde Will passou uma garrafa de água a Chester.— Que bom que você quis fazer mais um pouco disso. É viciante, né? — disse ele a

Chester, que encarava à meia distância.Chester olhou para ele.— Bom, sim e não. Eu disse que ia te ajudar a passar pela pedra, mas agora não tenho muita

certeza. Meus braços doeram muito ontem à noite.— Ah, você vai se acostumar e, além de tudo, você nasceu para isso.— Você acha mesmo? De verdade? — Chester ficou radianre.— Não tenho dúvida nenhuma. Um dia você pode ser tão bom quanto eu!Chester lhe deu um soco de brincadeira no braço e eles riram, mas seu riso esmaeceu

quando a expressão de Will ficou séria.— Que foi? — disse Chester.— Vamos ter que repensar isso. O veio de arenito pode ser espesso demais para ser

ultrapassado. — Will entrelaçou os dedos e pousou as mãos no alto da cabeça, uma afetação quepegara do pai. — O que você acha de... de passar por baixo dela?

— Por baixo? Não vai nos levar fundo demais?

— Não, já fui mais fundo antes.— Quando?— Alguns túneis meus desceram muito mais do que este disse Will, esquivando-se. — Olha

só, se cavarmos por baixo, podemos usar o arenito, como camada sólida, como teto do novotúnel. Talvez nem precisemos usar nenhuma escora.

— Sem escoras? — perguntou Chester.— Vai ficar perfeitamente seguro.— E se não ficar? E se desabar com a gente embaixo? — Chester aparentava uma

infelicidade evidente.— Você se preocupa demais. Vem, vamos continuar com isso! — Will já havia se decidido e

começava a descer o túnel quando Chester o chamou.— Ei, por que estamos arrebentando nossas costas... Quer dizer, tem alguma coisa em

alguma planta sua? Qual é o sentido?Will ficou muito confuso com a pergunta e levou vários segundos para responder.— Não, não há nada marcado nos mapas do arquivo de papai nem nos levantamentos

militares — admitiu ele. Ele respirou fundo e se virou para Chester. — O sentido é a escavação.— Então acha que tem alguma coisa enterrada lá? — perguntou Chester rapidamente. —

Como os troços naqueles aterros sanitários velhos de que você andou falando?Will sacudiu a cabeça.— Não. É claro que os achados são ótimos, mas isto é muito mais importante. — Ele

agitou a mão de um jeito extravagante.— O quê?— Tudo isso! — Will correu os olhos pelas laterais do túnel e depois para o teto. — Não

sente? A cada golpe da pá, é como se voltássemos no tempo. — Ele se interrompeu, sorrindopara si mesmo. — Aonde ninguém foi por séculos... Ou talvez nunca tenha ido.

— Então não tem idéia do que há lá? — perguntou Chester.— Nenhuma, mas não estou disposto a deixar que um pouco de arenito me derrote —

respondeu Will, resoluto.Chester ainda estava atarantado.— É só que... Eu estava pensando, se não vamos chegar a nada em particular, por que não

trabalhamos no outro túnel?Will sacudiu a cabeça de novo, mas não deu mais nenhuma explicação.— Mas seria muito mais fácil — disse Chester, um tom exasperado invadindo sua voz,

como se soubesse que não ia conseguir uma resposta sensata de Will. — Por que não?— Um pressentimento — disse Will subitamente, e desceu o túnel antes que Chester

pudesse pronunciar outra palavra. Ele deu de ombros e pegou a picareta.— Ele é maluco. E eu devo ser maluco também. Mas o que é que estou fazendo aqui? —

murmurou ele para si mesmo. — Podia estar em casa, agora mesmo... no PlayStation... aquecido eseco. — Ele olhou as roupas ensopadas de lama. — Maluco desgraçado! — repetiu ele váriasvezes.

O dia do dr. Burrows era o mesmo de sempre. Ele estava reclinado suntuosamente em suacadeira de dentista com um jornal dobrado no colo, prestes a cair na soneca pós-chá, quando aporta do museu se abriu num rompante. Joe Carruthers, ex-major de Sua Majestade, entroudecidido e varreu a sala com os olhos até localizar o dr. Burrows, cuja cabeça balançava sonolentana cadeira de dentista.

— Atenção, Burrows! — berrou ele, quase sentindo prazer na reação do dr. Burrowsquando sua cabeça deu um arranco para cima. Joe Carruthers, um veterano da Segunda GuerraMundial, nunca perdeu o porte e a brusquidão de militar. Dr. Burrows até lhe dera o apelidopouco gentil de “Joe Abacaxi”, devido a seu nariz incrivelmente vermelho e bulboso,possivelmente resultado de um ferimento de guerra ou, como às vezes especulava o dr. Burrows,mais provavelmente devido ao consumo de uma quantidade excessiva de gim. Ele erasurpreendentemente vivaz para um homem em seus setenta anos e tendia a ladrar alto. Era aúltima pessoa que o dr. Burrows queria ver agora.

— Desmonte, Burrows, preciso que venha reconhecer uma coisa para mim, se tiver umminuto. É claro que tem, vejo que não está ocupado agora, não é verdade?

— Ah, não, desculpe, sr. Carruthers, não posso deixar o museu desassistido. Afinal, estou deserviço — disse o dr. Burrows preguiçosamente, relutando em abandonar os últimos vestígios desono.

Joe Carruthers continuou a berrar com ele do outro lado do salão do museu.— Vamos, homem, este é um serviço especial, compreende? Quero sua opinião. Minha filha

e o marido novo compraram uma casa perto da High Street. Depois de uma reforma na cozinha,eles descobriram uma coisa... uma coisa estranha.

— Estranha como? — perguntou o dr. Burrows, ainda aborrecido com a intrusão.— Um buraco estranho no chão.— Não é trabalho para os pedreiros?— Não é esse tipo de coisa, meu velho. Não é esse tipo de coisa mesmo.— Por quê? — perguntou o dr. Burrows, agora curioso.— É melhor vir e dar uma olhada você mesmo, meu velho. Quero dizer, você sabe tudo de

história por aqui. Pensei em você de imediato. O melhor homem para a tarefa, eu disse a minhaPenny. Este camaradinha realmente entende dessas coisas, eu disse a ela.

Dr. Burrows apreciava a idéia de que era considerado o especialista em história na cidade,então, se levantou e vestiu cheio de empáfia o paletó. Depois de fechar o museu, acompanhou amarcha forçada de Joe Abacaxi pela High Street e eles logo chegaram à Jekyll Street. Joe Abacaxisó falou uma vez quando eles viraram outra esquina, entrando na Martineau Square.

— Aqueles cães malditos... As pessoas não deviam deixar que corressem soltos desse jeito— grunhiu ele ao ver alguns papéis voando na rua ao longe. — Deviam andar numa trela. —Eles haviam chegado na casa.

O número 23 era uma casa com varanda, em nada diferente de todas as outras que ladeavamas quatro faces da praça, construída com tijolos com as típicas características georgianas. Emboracada propriedade fosse bem estreita, com apenas uma lasca de jardim nos fundos, dr. Burrows asobservava nas poucas ocasiões em que por acaso estava na região e lhe agradava a oportunidadede ver uma delas por dentro.

Joe Abacaxi martelou a porta georgiana original de quatro painéis com força suficiente paracavar um buraco e o dr. Burrows estremeceu a cada golpe. Uma jovem atendeu à porta, a carailuminando-se ao ver o pai.

— Oi, pai. Então o senhor o trouxe. — Ela se virou para o dr. Burrows com um sorrisoconstrangido. — Venham à cozinha. Está meio bagunçada, mas vou colocar a chaleira no fogo— disse ela, fechando a porta após a entrada dos dois homens.

Dr. Burrows seguiu Joe Abacaxi enquanto ele pisava duro pelas tábuas empoeiradas docorredor escuro, onde o papel de parede havia sido arrancado.

Na cozinha, a filha de Joe Abacaxi virou-se para o dr. Burrows.— Desculpe, que grosseria a minha, eu nem me apresentei. Meu nome é Penny Hanson...

Acho que já nos conhecemos. — Ela enfatizou o novo sobrenome com orgulho. Por ummomento incômodo, o dr. Burrows pareceu tão completamente pasmo com a sugestão de que elacorava de constrangimento que Penny rapidamente murmurou alguma coisa sobre fazer um chá,enquanto ele, indiferente ao desconforto dela, começava a inspecionar a cozinha. Havia sidoestripada e o reboco fora retirado, revelando os tijolos nus, e havia uma nova pia instalada commódulos de armário semi-acabados de um lado.

— Achamos que foi uma boa idéia retirar a chaminé para nos dar espaço para um balcão decafé-da-manhã ali — disse Penny, apontando a parede oposta à dos módulos novos. — Oarquiteto disse que só precisamos de uma escora no teto. — Ela indicou um buraco onde o dr.Burrows podia ver que fora acomodada um nova estaca de metal. — Mas quando os pedreirosderrubavam os tijolos velhos, a parede de trás desabou e eles encontraram isso. Liguei para onosso arquiteto, mas ele ainda não retornou meu telefonema.

Na parte de trás da lareira, uma pilha de tijolos sujos de fuligem indicava onde estivera aparede da fornalha. Com a retirada dessa parede, um espaço considerável se revelara atrás, comoum esconderijo.

— Isso não é comum. Um segundo cano de chaminé? — disse ele para si mesmo, quaseimediatamente pronunciando uma série de nãos ao sacudir a cabeça. Ele se aproximou e olhoupara baixo. No chão, havia uma abertura de quase meio metro de largura.

Colocando-se entre os tijolos soltos, ele se agachou na beira da abertura, espiando dentrodela.

— Ah... tem uma lanterna à mão? — perguntou ele. Penny conseguiu uma. Dr. Burrows apegou da mão dela e a acendeu na abertura. — Forro de tijolos, do início do século XVIII, eu mearriscaria a dizer. Parece ter sido construído na mesma época da casa — murmurou ele consigomesmo enquanto Joe Abacaxi e sua filha o observavam com atenção. — Mas para que servemestas porcarias? — acrescentou ele. O estranho era que, ao se inclinar e olhar embaixo, ele nãoconseguia ver onde terminava. — Já testou a profundidade disso aqui? — perguntou ele a Penny,endireitando-se.

— Com o quê? — respondeu ela, simplesmente.— Posso usar isso? — Dr. Burrows pegou um tijolo quebrado na pilha de entulho da

parede desabada. Ela assentiu, ele se voltou para o buraco e parou, pronto para largar o tijolo.— Agora ouçam — disse-lhes ele ao soltar o tijolo na abertura. Eles o ouviram bater nas

laterais ao cair, os sons tornando-se cada vez mais baixos até que só chegaram ecos fracos ao dr.

Burrows, que agora estava ajoelhado na abertura.— Mas ele... — começou Penny.— Shhhh! — sibilou o dr. Burrows sem nenhuma educação, sobressaltando-a ao erguer a

mão. Depois de um minuto, ele levantou a cabeça e franziu o cenho para Joe Abacaxi e Penny. —Não ouvi parar — observou ele —, mas pareceu levar séculos quicando nas laterais. Como é...como pode ser tão profundo? — Depois, aparentemente sem se importar com a sujeira, ele sedeitou no chão e enfiou a cabeça e os ombros no buraco até onde pôde, sondando a escuridãoabaixo com a lanterna em seu braço esticado. De repente ficou paralisado e começou a fungaralto.

— Não pode ser!— O que é, Burrows? — perguntou Joe Abacaxi. — Tem algo a dizer?— Posso estar enganado, mas eu poderia jurar que há certa corrente de ar — disse o dr.

Burrows, tirando a cabeça do buraco. — Por que seria assim, simplesmente não sei... a não serque todo o terraço tenha sido construído com um sistema de ventilação entre cada casa. Mas nemem toda minha vida eu poderia imaginar por que fariam desse jeito. O mais curioso é que oduto... ele rolou de costas e apontou a lanterna para cima, no alto do buraco — ... parece subir,logo atrás da chaminé normal. Suponho que também se abre como parte da chaminé, no telhado?

O que o dr. Burrows não disse a eles — não ousou dizer, porque teria parecido esquisitodemais — é que tinha sentido de novo o cheiro peculiar de bolor: o mesmo cheiro que perceberaao se chocar com o homem-de-chapéu no dia anterior, na High Street.

No túnel, Will e Chester enfim faziam algum progresso. Estavam cavando a terra abaixo doarenito quando a picareta de Will atingiu alguma coisa sólida.

— Droga! Não me diga que a pedra desce por aqui também! — gritou ele, exasperado.Chester de imediato largou o carrinho de mão e veio correndo da câmara principal.

— Qual é o problema, Will? — perguntou ele, surpreso com a explosão do amigo.— Droga! Droga! Droga! — disse Will, golpeando violentamente o obstáculo com a

picareta.— Que foi? O que é? — gritou Chester. Ele estava chocado. Nunca vira Will perder a frieza

desse jeito; ele parecia estar possuído.Will aumentou o ataque com a picareta, trabalhando num ritmo febril ao atingir

desvairadamente a face rochosa. Chester foi obrigado a recuar para evitar os movimentos de Wille as torrentes de terra e pedra que ele atirava para trás.

De repente, Will parou e caiu em silêncio por um momento. Depois, atirando a picareta delado, ajoelhou-se para arranhar freneticamente alguma coisa diante dele.

— Bom, olha só isso!— Olhar o quê?— Veja você mesmo — disse Will, sem fôlego.Chester se agachou e viu o que empolgava tanto o amigo. De onde Will retirara a terra,

havia várias fileiras de tijolos visíveis sob a camada de arenito e ele já soltara uma das primeiras.— Mas e se for um túnel de esgoto ou da ferrovia, ou alguma coisa assim? Tem certeza de

que podemos fazer isso? — perguntou Chester, ansioso. — Pode ter alguma coisa a ver com o

abastecimento de água. Não estou gostando!— Calma, Chester, não há nada nos mapas daqui. Estamos nos limites da cidade velha, não

é?— É — respondeu Chester hesitante e inseguro das intenções do amigo.— Bom, não construíram nada nos últimos cem ou cento e cinqüenta anos... Então, é

improvável que por aqui haja um túnel de trem, mesmo esquecido. Revisei todos os mapasantigos com meu pai. Acho que pode ser de esgoto, mas se você olhar a curvatura do tijolo noencontro com o arenito, então devemos estar no topo dele. Pode ser a parede do porão de umacasa antiga... Ou talvez algumas fundações, mas como é que foi construído debaixo do arenito?Muito estranho.

Chester deu alguns passos para trás e não disse nada, então, Will reassumiu os esforços poralguns minutos e depois parou. Ciente de que o amigo ainda vagava nervoso atrás dele, Will sevirou e soltou um suspiro resignado.

— Olha, Chester, se isso te deixa feliz, vamos parar por hoje e vou falar com meu pai estanoite. Ver o que ele acha.

— É, acho melhor mesmo, Will. Sabe como é... só por segurança.

Dr. Burrows se despediu de Joe Abacaxi e de sua filha, prometendo descobrir o que pudessesobre a casa e sua arquitetura no arquivo municipal. Ele olhou o relógio e fez uma careta. Sabiaque não tinha o direito de deixar o museu fechado por tanto tempo, mas queria ver uma coisaantes de voltar.

Ele andou pela praça várias vezes, examinando as casas com varanda dos quatro lados. Todaa praça fora construída na mesma época e as casas eram idênticas. Mas o que o interessava era aidéia de que todas pudessem ter dutos misteriosos correndo por elas. Ele atravessou a rua epassou pelo portão até o meio da praça, que tinha em seu centro uma área pavimentada, cercadade algumas roseiras esquecidas. Aqui ele teve uma visão melhor dos telhados e ele apontou aotentar contar exatamente quantas chaminés havia em cada uma delas.

— Isso não faz sentido. — Ele franziu a testa. — É mesmo muito peculiar.Ele se virou, saiu da praça e, voltando ao museu, chegou a tempo de encerrar as atividades

do dia.

Capítulo Sete

De madrugada, Rebecca olhou de uma janela no segundo andar enquanto uma figura indistintavagava pela calçada na frente da casa dos Burrows. A figura, com as feições obscurecidas por umcapuz e um boné, comportava-se mais como uma raposa do que como gente. Satisfeito por nãoestar sendo observado, ele foi até os sacos de lixo e, segurando o mais volumoso, abriu umburaco e rapidamente começou a vasculhar o conteúdo com as duas mãos.

— Acha mesmo que sou tão idiota? — sussurrou Rebecca, o hálito embaçando o vidro dajanela do quarto. Ela não estava nem um pouco preocupada. Seguindo os alertas sobre ladrões deidentidade na área de Highfield, ela destruía incansavelmente qualquer carta oficial, cartão decrédito ou extratos bancários — na verdade tudo o que contivesse informações pessoais dafamília.

Na pressa de encontrar alguma coisa, o homem tirava o lixo do saco. Latas vazias,embalagens de comida e uma série de garrafas foram atiradas no gramado da frente. Ele pegouum punhado de papéis e os segurou perto do rosto, girando-os no punho ao examiná-los sob afraca luz da rua.

— Vai — ela desafiou o porcalhão. — Faça o pior que puder!Limpando com a mão a gordura e uma mancha de pó de café de uma folha, ele girou para

poder ver com mais clareza sob o poste.Rebecca observava enquanto ele lia febrilmente a carta, depois sorriu ao perceber que era

inútil. Ele tensionou o braço num gesto de nojo e o atirou no chão.Para Rebecca, já bastava. Estivera curvada no peitoril da janela, mas agora se endireitou,

puxando as cortinas.O homem percebeu o movimento e ergueu a cabeça. Ele a viu e ficou paralisado, e depois,

girando para verificar os dois lados da rua de novo, partiu, olhando para Rebecca como se adesafiasse a chamar a polícia.

Rebecca cerrou os pequenos punhos, furiosa, sabendo que seria ela quem teria que limpar asujeira de manhã. Mais uma tarefa tediosa a entrar para sua lista!

Ela fechou as cortinas, recuou da janela e foi para seu quarto. Ali, ela parou, escutando;havia vários roncos em staccato. Rebecca virou os pés com chinelos para a porta do quarto

principal, reconhecendo de imediato o som familiar. A sra. Burrows dormia. Na calmaria que seseguiu, ela escutou com mais atenção até poder discernir a respiração nasal e longa do dr.Burrows, depois tombou a cabeça para o quarto de Will, atenta novamente até ouvir o ritmo darespiração mais superficial e mais rápida do irmão.

— Sim — sussurrou ela, atirando exultante a cabeça para trás. Todos estavam em sonoprofundo. Ela se tranqüilizou de imediato. Agora era a hora dela, quando tinha a casa só para si epodia fazer o que ela quisesse. Uma hora de calma antes de eles acordarem e o caos recomeçar.Ela atirou os ombros para trás e foi silenciosamente até a soleira da porta do quarto de Will paraolhar.

Nada se mexia. Como uma sombra flutuando pelo quarto ela andou rapidamente até o ladoda cama dele. Ali, ela parou, fitando-o. Ele dormia de costas, os braços esparramados de qualquerjeito acima da cabeça. Sob a fraca luz da lua filtrada pelas cortinas semifechadas, ela analisou seurosto. Chegou mais perto até se curvar sobre ele.

“Bom, olhe só para ele, nenhuma preocupação no mundo”, pensou ela, e inclinou-se aindamais sobre a cama. Ao fazer isso, percebeu uma mancha fraca sob o nariz de Will.

Seus olhos varreram o rapaz inconsciente até que pararam nas mãos.“Lama!”, estavam cobertas de lama. Ele não se dera o trabalho de lavar-se antes de ir para a

cama e, ainda mais revoltante, deve ter coçado o nariz dormindo.— Seu porco imundo — sibilou ela. Foi o suficiente para perturbá-lo, e ele esticou os

braços e flexionou os dedos. Ditosamente inconsciente da presença da irmã, ele soltou um ruídogutural baixo e contido, mexendo um pouco o corpo ao se acomodar novamente.

— Você é um desperdício total de espaço — sussurrou ela por fim, depois, se virou paraonde ele atirara as roupas sujas no chão. Ela as reuniu nos braços e saiu do quarto, indo para ocesto de vime que abrigava a roupa suja num canto do patamar da escada. Procurando dentro detodos os bolsos enquanto enfiava as roupas em trouxa no cesto, ela encontrou um pedaço depapel no jeans, que desdobrou, mas não conseguiu ler na luz fraca. Talvez seja só lixo, pensou ela,colocando-o na camisola. Ao retirar a mão do bolso, ela prendeu a unha no material acolchoado.Rebecca roeu pensativamente a ponta áspera e foi para o quarto principal. Lá dentro, certificou-sede colocar os pés exatamente nas áreas em que o piso sob o carpete velho e puído não estalava,para não trair sua presença.

Assim como havia observado Will, ela observou a sra. e o dr. Burrows, como se tentasseadivinhar seus pensamentos. Mas depois de vários minutos, Rebecca já vira o suficiente e pegou acaneca vazia na mesa-de-cabeceira da sra. Burrows, dando uma fungadela exploratória.Achocolatado de novo, com um toque de conhaque. Com a caneca na mão, Rebecca saiu doquarto na ponta dos pés e desceu até a cozinha, andando com facilidade no escuro. Colocando acaneca na pia, ela se virou e voltou ao corredor. Ali parou novamente, a cabeça inclinada umpouco de lado, os olhos fechados, escutando.

“Tão calmo... e tranqüilo”, pensou ela. “Devia ser sempre assim.” Como alguém em transe,ela continuou parada ali, sem se mexer, até que, por fim, respirou fundo pelo nariz, prendeu arespiração por alguns segundos, depois soltou o ar pela boca.

Ouviu uma tosse abafada no segundo andar. Rebecca olhou ressentida para a escada. Seumomento fora perturbado, os pensamentos desintegrados.

— Estou tão cansada de tudo isso — disse ela, amargurada.

Foi até a porta da frente, puxou a corrente de segurança e entrou na sala de estar. A cortinaestava totalmente aberta, dando-lhe uma visão clara do quintal, raiado de trechos alternantes deluar prateado. Seus olhos não deixaram o cenário enquanto ela se abaixava na poltrona da sra.Burrows, acomodando-se ao continuar a olhar o quintal e a cerca que o separava do terrenobaldio. E ali ela ficou, apreciando a solidão da noite, oculta pela escuridão de chocolate, atéamanhecer. Olhando.

Capítulo Oito

No dia seguinte, o dr. Burrows estava no museu, arrumando o armário de botões sob a janela.Estava curvado sobre o mostruário, acrescentando alguns botões de bronze esverdeado doexército, recém-adquiridos de vários regimentos, em filas erráticas de botões de plástico,madrepérola e esmalte. Estava ficando muito impaciente porque, graças às alças nas costas dosbotões, eles não ficavam deitados no quadro revestido de baeta, por mais que os apertasse parabaixo. Ele soltou o ar com ruído e frustração e, ouvindo a buzina de um carro na rua, olhou paracima.

Pelo canto do olho, viu um homem andando do outro lado da rua. Vestia um chapéuachatado, um sobretudo e, embora o dia estivesse nublado, com apenas alguns vislumbresintermitentes de sol, óculos escuros. Podia muito bem ter sido o homem em quem ele esbarrarana frente da banca de jornal, mas ele não podia ter certeza, porque todos eram muito parecidos.

O que havia de tão irresistível nesta gente? Bem no seu íntimo, o dr. Burrows sentia quehavia algo especial neles, algo decididamente incongruente. Era como se tivessem vindo direto deoutra época, talvez da era georgiana, dado o estilo de suas roupas. Para ele, equivalia à descobertade uma parte da história viva, como aqueles relatos que lia de pescadores asiáticos colhendocelacantos em redes, ou quem sabe algo ainda mais perturbador... A descoberta do “elo perdido”na evolução do homem. Estas eram as coisas que ocupavam seus devaneios e o distraíam de suavida monótona e rotineira.

Sem jamais ter sido um homem que refreia suas obsessões, o dr. Burrows estavaverdadeiramente fisgado. Deveria haver uma explicação racional para o fenômeno dos homens-de-chapéu e ele estava determinado a descobrir o que era.

— Muito bem — decidira ele —, esta é uma hora tão boa como qualquer outra.Ele baixou a caixa de botões e correu pelo museu até a porta principal, fechando-a depois de

passar. Ao sair à rua, localizou o homem à frente e, mantendo uma distância respeitável, seguiu-opela High Street.

Dr. Burrows mantinha o mesmo ritmo do homem enquanto ele saía da High Street, entravana Disraeli e atravessava a rua para pegar a primeira à direita, na Gladstone Street, passando peloantigo convento. Estava uns vinte metros atrás quando o homem parou de repente, virou-se e

olhou diretamente para ele.Dr. Burrows sentiu um tremor de medo ao ver o céu refletido nos óculos do homem e,

certo de que o jogo acabara, virou-se de pronto para a direção contrária. Sem saber o que faria aseguir, ele se abaixou e fingiu amarrar um cadarço imaginário no mocassim. Sem se levantar,olhou furtivamente por sobre o ombro, mas o homem desaparecera completamente.

Seus olhos procuraram frenéticos pela rua. Dr. Burrows começou a andar rapidamente,depois correu ao se aproximar do local em que tivera a última visão de sua presa. Chegando lá,descobriu que havia uma entrada estreita entre duas pequenas casas de caridade. Ficou meiosurpreso por jamais as ter percebido em todas as vezes que passou por ali. Tinha uma aberturaem arco que corria como um túnel estreito até passar por trás das casas, e depois continuava poruma curta distância, como uma travessa a céu aberto. Dr. Burrows espiou, mas com a pouca luzna passagem, era difícil ver muita coisa. Para além do trecho de escuridão, ele pôde distinguiralgo no final: era um muro cortando inteiramente a travessa. Um beco sem saída.

Verificando a rua uma última vez, ele sacudiu a cabeça, sem acreditar. Não conseguiaentender como o homem pôde ter sumido, desaparecendo abruptamente daquele jeito. Então,respirou fundo e partiu para a passagem. Andava com cautela, preocupado que o homem pudesseestar à espreita em uma soleira de porta que ele não via. À medida que seus olhos se adaptavamàs sombras, pôde ver que havia caixas de papelão encharcadas e garrafas de leite, a maioriaquebrada, espalhadas pelos paralelepípedos.

Ficou aliviado ao chegar à luz novamente e parou para ver o ambiente. O beco era formadopor muros de jardim à esquerda e à direita, e era bloqueado na extremidade pela parede de umafábrica de três andares. O pré-dio antigo não tinha janelas abaixo de seu andar mais alto e nãopodia ter proporcionado nenhuma rota de fuga ao homem.

Então, aonde diabos ele foi?, pensou o dr. Burrows ao se virar e olhar pelo beco, para a rua,onde um carro passava voando. À direita, o muro de jardim era encimado por uma treliça de ummetro de altura e seria quase impossível o homem pular por ali. O outro muro não tinha esseobstáculo, então o dr. Burrows foi até lá e olhou por cima. Era uma espécie de jardim,descuidado e estéril, com alguns arbustos murchos e um trecho de terra lamacenta onde deveriaestar o gramado. Este era pontilhado de pratos desbotados de plástico contendo uma água verde-escura.

Dr. Burrows olhou desamparado a aridez privativa e estava prestes a esquecer a históriatoda quando mudou de idéia subitamente. Passou a pasta sobre o muro e subiu desajeitado nele.A queda era maior do que ele esperava e ele pousou mal, sentado, na lama. Tentou se levantar,mas seus sapatos perderam o ponto de apoio e ele caiu sentado novamente, a mão esticadaconseguindo virar um dos pratos, espalhando seu conteúdo no braço e no pescoço. Ele xingouem silêncio, limpou-se como pôde e se levantou mais uma vez, cambaleando e oscilando comoum bêbado até recuperar o equilíbrio.

— Droga, droga e droga! — disse ele, entre dentes, ao ouvir uma porta se abrir atrás.— Olá! Quem está aí? — veio uma voz apreensiva.Dr. Burrows girou e ficou de frente para uma senhora que estava parada a menos de dois

metros, com três gatos a seus pés observando-o com uma indiferença felina. A visão da senhoraaparentemente não era boa, a julgar pelo modo como movia a cabeça de um lado a outro. Tinhacabelos brancos e finos e vestia um roupão florido. Dr. Burrows imaginou que ela devia estar no

final dos oitenta anos.— É... Roger Burrows, prazer em conhecê-la — disse o dr. Burrows, sem conseguir pensar

em nada que explicasse por que ou como viera parar ali. A expressão da senhora idosa setransformou de repente.

— Ah, dr. Burrows, que gentileza sua aparecer. Que surpresa agradável.O próprio dr. Burrows ficou surpreso, para não falar meio confuso.— Sim, é... bem... Por acaso eu estava passando por aqui.— Muita cortesia sua. É uma coisa que não se vê ultimamente. É muito gentil de sua parte

me visitar.— É... de forma alguma — respondeu ele, hesitante. — O prazer é inteiramente meu.— É meio solitário aqui, só com a companhia de meus gatos. Gostaria de tomar um chá? A

chaleira está no fogo.Dr. Burrows titubeou, tinha previsto uma saída rápida pelo muro quando viu a mulher. Esta

recepção, com tal hospitalidade e calor humano, era a última coisa que esperava. Sem palavras, elesimplesmente assentiu e avançou, o sapato pisando na beira de outro prato de plástico, que virouo conteúdo em sua perna. Ele parou para retirar uma gosma de algas da meia.

— Ah, tenha cuidado, dr. Burrows — disse a senhora. — Eu coloco estes aí para ospassarinhos. — Ela se virou, a comitiva de gatos disparando antes dela para a cozinha. — Leite eaçúcar?

— Por favor — disse o dr. Burrows, parando do lado de fora da cozinha enquanto ela seatarefava lá dentro, pegando um bule de chá na prateleira.

— Desculpe por aparecer assim, sem avisar — disse o dr. Burrows, numa tentativa depreencher o silêncio. — Tudo isso é muito gentil de sua parte.

— Não, a gentileza é toda sua. Eu é que agradeço.— É mesmo? — gaguejou ele, ainda tentando freneticamente deduzir quem exatamente era

esta senhora idosa.— Sim, por sua carta muito gentil. Não enxergo mais como antigamente, mas o sr. Embers

a leu para mim.De repente, tudo se encaixou e o dr. Burrows suspirou de alívio, a névoa de confusão

desaparecendo na brisa fria da compreensão.— A esfera cintilante! Sem dúvida é um objeto intrigante, sra. Tantrumi.— Ah, que bom, meu caro.— O sr. Embers deve ter lhe dito que preciso analisá-la.— Sim — disse ela. — Não queremos que alguém se torne teleguiado, não é mesmo?— Não — concordou o dr. Burrows, tentando não sorrir —, não queremos mesmo. Sra.

Tantrumi, o motivo de minha visita...Ela tombou a cabeça de lado, esperando ansiosa que ele continuasse, enquanto mexia o chá.— ...bem, eu na verdade esperava que a senhora pudesse me mostrar onde a encontrou —

terminou ele.— Ah, não, meu caro, não fui eu... Foram os gasistas. Um bolo ou um pudim? — disse ela,

erguendo uma lata de biscoitos amassada.— É... bolo, por favor. A senhora dizia que os gasistas a encontraram?

— Eles encontraram. Bem por dentro do porão.— Lá embaixo? — perguntou o dr. Burrows, olhando uma porta aberta para o porão, com

um pequeno lance de escada. — Importa-se de eu dar uma olhada? — disse ele, colocando o bolono bolso ao começar a andar pelos degraus de tijolos musgosos.

Do outro lado da porta, ele pôde ver que o porão era dividido em dois ambientes. Oprimeiro estava vazio, salvo por alguns pratos de comida de gato extremamente escura edessecada, e por entulho solto pelo chão. Ele se espremeu pelo segundo ambiente, que ficavaabaixo da frente da casa. Era muito parecido com o primeiro, só que a luz era mais fraca e haviavários móveis. Enquanto seus olhos percorriam o ambiente, ele viu um piano de parede numcanto, dando a impressão de estar desmontando de umidade e, enfiado em um recesso escuro, umantigo guarda-roupa com um espelho quebrado. Ele abriu uma de suas portas e paralisou deimediato.

Dr. Burrows fungou várias vezes, reconhecendo o odor bolorento que sentira no homem narua e mais recentemente no duto na casa de Penny Hanson. À medida que seus olhos seacostumavam com o escuro, ele pôde ver que o interior do guarda-roupa tinha vários sobretudos— pretos, pelo que podia dizer — e um sortimento de chapéus achatados e outros chapéusempilhados em um compartimento de um lado.

Extraordinariamente, o interior do armário não parecia arenoso ao toque, ao contrário detudo nos arredores, que estava coberto de uma fina camada de poeira. Além disso, quando ele oafastou da parede para ver se havia alguma coisa por trás, o guarda-roupa em si pareceu estarnuma boa forma surpreendente. Sem descobrir nada ali, ele voltou a atenção novamente para ointerior. Abaixo do compartimento de chapéus, encontrou uma gavetinha, que abriu. Dentro,havia cinco ou seis pares de óculos. Pegando um deles e tirando um sobretudo do cabide, elevoltou ao jardim.

— Sra. Tantrumi — gritou ele do pé da escada. Ela gingou até a porta da cozinha. — Sabiaque havia estas coisas em um guarda-roupa aqui embaixo?

— Havia, é?— Sim, alguns casacos e óculos de sol. Eles pertencem à senhora?— Não, eu mesma quase nunca desço lá. O chão é irregular demais. Poderia trazer aqui,

para eu poder ver?Ele foi até a porta da cozinha, ela estendeu a mão e passou os dedos no tecido do sobretudo

como se afagasse a cabeça de um gato desconhecido. Pesado e ceroso ao toque, o casaco lhepareceu estranho. O corte era antiquado, com uma ombreira de material pesado.

— Não posso dizer que tenha visto isto antes. Meu marido, que Deus o tenha, pode terdeixado lá embaixo — disse ela com desdém, e voltou à cozinha.

Dr. Burrows examinou os óculos escuros. Consistiam em duas lentes grossas eabsolutamente planas, quase opacas, semelhantes a óculos de proteção de soldadores, comcuriosos mecanismos de mola nas duas hastes, evidentemente para mantê-los presos na cabeça deseu usuário. Ele ficou desnorteado. Por que aquela gente estranha guardava seus pertences emum guarda-roupa esquecido de um porão vazio?

— Vem mais alguém aqui, sra. Tantrumi? — perguntou-lhe o dr. Burrows enquanto elacomeçava a servir o chá com a mão muito trêmula, o bico do bule batendo na xícara com tal

violência que ele pensou que ia quebrá-la no pires.Houve uma calmaria no matraquear enquanto ela parecia confusa.— Não sei o que quer dizer — disse ela, como se o dr. Burrows estivesse sugerindo que ela

fizera alguma coisa imprópria.— É só que vi uns sujeitos estranhos nesta parte da cidade... sempre vestindo sobretudos e

óculos de sol, como estes... — o dr. Burrows se interrompeu, já que a idosa parecia tãoangustiada.

— Ah, espero que não sejam aqueles criminosos de que ouvimos falar. Não me sinto maissegura aqui... Mas meu amigo Oscar é muito gentil. Ele me visita quase todas as tardes. Veja osenhor, não tenho mais ninguém perto de mim, ninguém da família. Meu filho foi para aAmérica. É um bom rapaz. Ele e a esposa foram transferidos pela empresa em que ele trabalha...

— Então a senhora não viu ninguém com estes sobretudos... Uns homens de cabelo branco?— Não, meu caro, não posso saber do que está falando. — Ela olhou inquisitivamente para

ele, depois voltou a servir o chá. — Venha para cá e sente-se.— Só vou colocar isso no lugar — disse o dr. Burrows, voltando ao porão. Antes de sair,

não pôde resistir a uma inspeção rápida no piano, levantando a tampa e batendo em algumasteclas, que produziram sons abafados ou metálicos, totalmente desafinados. Tentou afastá-lo daparede, mas o piano estalou e ameaçou desmontar, então ele parou. Depois, andou pelos doisambientes do porão e bateu os pés no chão, esperando encontrar um alçapão. Fez o mesmo nopequeno jardim, batendo os pés no gramado, tentando evitar os pratos de plástico, sempre sendoobservado com curiosidade pelos gatos da sra. Tantrumi.

Do outro lado da cidade, Chester e Will estavam de volta ao túnel das Quarenta Covas.— E aí, o que foi que seu pai disse? O que ele acha que encontramos? — perguntou

Chester enquanto Will usava uma marreta e um cinzel para soltar a argamassa entre os tijolos daestrutura desconhecida.

— Olhamos os mapas de novo e não havia nada neles. — Ele estava mentindo, porque o dr.Burrows não deixara o porão antes de Will ir para a cama e tinha saído de casa antes de Willacordar de manhã.

— Não tem dutos de água, nem de esgoto, nem nada neste lote — prosseguiu Will,tentando tranqüilizar Chester. — A parede de tijolos é muito sólida, sabe como é... Essa coisa foiconstruída para durar. — Will já havia removido duas camadas de tijolos, mas ainda nãoultrapassara a parede. — Olha, se eu estiver errado sobre isso e alguma coisa jorrar, trate de ficarno lado mais distante da câmara principal. O fluxo deve arrastar você para a entrada — disseWill, redobrando os esforços nos tijolos.

— Como é? — perguntou Chester rapidamente. — Um fluxo... Me arrastando para cima?Não gosto nem um pouco disso. Estou fora. — Ele se virou para sair, parou como se estivesseindeciso, depois se decidiu e começou a andar para a câmara principal, murmurando consigomesmo o tempo todo.

Will simplesmente deu de ombros. Não havia como parar, não com a possibilidade de poderesclarecer algum mistério fantástico, algo tão importante que desconcertaria seu pai e que eledescobrira sozinho. E ninguém ia impedi-lo, nem mesmo Chester. Ele imediatamente continuou

a cinzelar outro tijolo, lascando a beira da argamassa.De repente, parte da argamassa explodiu com um sibilo pneumático e um naco dela passou

direto pelas mãos enluvadas de Will, como um projétil de pedra, batendo na parede do túnel atrásdele. Ele largou as ferramentas e caiu de costas no chão, atordoado. Sacudindo a cabeça, ele serecompôs e começou a tarefa de retirar o tijolo, que foi realizada em segundos.

— Ei, Chester — chamou Will.— O que é? — gritou Chester, num rosnado, da câmara principal. — Que foi?— Não tem água! — gritou Will a ele, a voz ecoando estranhamente. — Venha ver.Chester refez, relutante, seus passos. Descobriu que Will na verdade penetrara na parede, e

agora mantinha a cabeça alta na pequena fenda que fizera e farejava o ar.— Sem dúvida não é um tubo de esgoto, mas estava sob pressão — disse Will.— Pode ser um cano de gás?— Não, não tem cheiro de gás e de qualquer forma nunca seria feito de tijolos. A julgar

pelo eco, é um espaço bem grande. — Seus olhos cintilaram de expectativa. — Eu sabia queíamos conseguir alguma coisa. Pegue uma vela e a haste de ferro na câmara principal, por favor?

Quando Chester voltou, Will acendeu a vela a uma boa distância do buraco e a levoudevagar até ele, aproximando-se aos poucos da abertura, observando a chama atentamente a cadapasso que dava.

— O que isso faz? — perguntou Chester, olhando fascinado.— Se houver gases, você vai perceber uma diferença no modo como queima — respondeu

Will categoricamente. — Fizeram isso quando abriram as pirâmides. — A chama não teve seubrilho alterado enquanto ele a aproximava, depois a segurou diretamente diante da abertura. —Parece que está tudo bem — disse ele enquanto soprava a chama e pegava a haste que Chesterencostara na parede do túnel. Alinhou a vara de três metros cuidadosamente com o buraco e emseguida a fez atravessar, empurrando-a o tempo todo até que só um pequeno pedaço se projetavapor entre os tijolos.

— Não bateu em nada... É bem grande — disse Will animado, grunhindo do esforço aoverificar a profundidade, deixando que a ponta da haste balançasse embaixo. — Mas acho queposso sentir o que pode ser o chão. Tudo bem, vamos abrir um pouco mais.

Eles trabalharam juntos e minutos depois tinham retirado tijolos suficientes para Willpassar de cabeça pela abertura. Ele pousou com um gemido abafado.

— Will, está tudo bem? — gritou Chester.— Está. Só caí um pouco — respondeu ele. — Passe os pés primeiro e vou te guiar para

baixo.Chester passou depois de uma luta tremenda, por ter os ombros mais largos do que Will.

Depois de entrar, os dois começaram a olhar em volta.Era uma câmara octogonal, com cada uma de suas oito paredes em arco até um ponto

central, a uns seis metros no alto. Em seu ápice, havia o que parecia ser uma pedra rosa entalhada.Eles apontaram as lanternas numa reverência silenciosa, vendo o filete gótico instalado numtrabalho de construção perfeito. O piso também era feito de tijolos unidos pelas pontas.

— Incrível! — sussurrou Chester. — Quem esperaria encontrar uma coisa dessas?— Parece a cripta de uma igreja, né? — disse Will. — Mas o estranho é que...

— Sim? — Chester apontou a lanterna para Will.— É completamente seca. E o ar é meio acre também. Não tenho certeza...— Já viu isso, Will? — interrompeu Chester, lançando a lanterna para o chão, depois para a

parede mais perto dele. — Tem alguma coisa escrita nos tijolos. Em todos eles!Will de imediato girou para analisar a parede mais próxima, lendo a elaborada escrita gótica

entalhada na face de cada tijolo.— Tem razão. São nomes: James Hobart, Andrew Kellogg, William Butts, John Cooper...— Simon Jennings, Daniel Lethbridge, Silas Samuels, Abe Winterbotham, Caryll

Pickering... Deve haver milhares aqui disse Chester.Will pegou a marreta no cinto e começou a bater nas paredes, atento ao som para saber se

havia algum sinal de buraco ou passagem contígua. Tinha batido metodicamente em duas dasoito paredes quando, por nenhum motivo aparente, de repente parou. Colocou a mão na testa eengoliu em seco.

— Sentiu isso? — perguntou a Chester.— É, meus ouvidos estalaram — concordou Chester, esticando um dedo enluvado

rudemente em uma das orelhas. — Como quando a gente levanta vôo num avião.Os dois ficaram em silêncio, como se esperassem que acontecesse alguma coisa. Depois,

sentiram um tremor, um tom inaudível, algo semelhante a uma nota grave tocada em um órgão;uma pulsação estava se formando, ao que parecia, dentro de seus crânios.

— Acho que devemos sair. — Chester olhou o amigo com uma expressão vaga, agoraengolindo em seco não por causa dos ouvidos, mas das ondas de náusea que subiam por dentrodele.

Pela primeira vez, Will não discordou. Soltou um rápido “sim”, piscando quando manchasapareceram diante de seus olhos.

Os dois subiram de volta pelo buraco no dobro do tempo, depois foram para as cadeiras nacaverna principal e ali desabaram. Embora não tenham dito nada um ao outro nesse período, assensações inexplicáveis cessaram quase de imediato quando entraram na câmara.

— Mas o que foi aquilo? — perguntou Chester, escancarando a boca para flexionar amandíbula e apertando as palmas das mãos nas orelhas.

— Não sei — respondeu Will. — Vou trazer meu pai aqui para ele ver... ele pode ter umaexplicação. Deve ser uma pressão embutida ou coisa assim.

— Acha realmente que é uma cripta, onde havia uma igreja... Com todos aqueles nomes?— Talvez — respondeu Will, imerso em pensamentos. — Mas alguém... artesãos,

entalhadores... construiu isso com muito cuidado, sem deixar entulho nem lixo, e depois lacroucom o mesmo cuidado. Por que é que tiveram esse trabalho todo?

— Não tinha pensado nisso. Você tem razão.— E não havia como entrar ou sair. Não consegui encontrar nenhum sinal de passagens de

conexão... Nem umazinha. Uma câmara autocontida com nomes, como uma espécie de memorialou coisa assim? — ponderou Will, completamente pasmo. — Mas o que é que nós achamos aqui?

Capítulo Nove

Sabendo que Rebecca podia ser muito implacável e que não valia a pena incorrer em sua ira —não pouco antes das refeições, de qualquer forma — Will se sacudiu e bateu os pés para tirar amaior parte da lama antes de entrar pela porta da frente. Atirando a mochila no chão, asferramentas dentro dela matraqueando uma na outra, ele ficou paralisado de pasmo.

Uma cena muito estranha o recebeu. A porta para a sala estava fechada e Rebecca estavaagachada ao lado dela, a orelha encostada na fechadura. Ela franziu a testa no momento em que oviu.

— O que... — a pergunta de Will foi interrompida quando Rebecca se levantourapidamente, fazendo-o se calar com o indicador em seus lábios. Ela pegou o irmão atordoadopelo braço e o puxou à força para a cozinha.

— O que está havendo? — perguntou Will num sussurro indignado.Isto era mesmo muito esquisito. Rebecca, a Srta. Perfeita em pessoa, flagrada no ato de

ouvir os pais pela fechadura, algo que ele nunca esperaria dela.Mas havia uma coisa ainda mais extraordinária do que isso: a porta da sala de estar. Estava

fechada. Will virou a cabeça para olhar novamente, sem crer nos próprios olhos.— Essa porta ficou escancarada por tanto tempo que nem consigo me lembrar — disse ele.

— Você sabe que ela odeia...— Eles estão brigando! — disse Rebecca gravemente.— Eles estão o quê? Sobre o quê?— Não sei bem. A primeira coisa que ouvi foi mamãe gritando com ele para fechar a porta,

e eu estava tentando ouvir mais quando você apareceu.— Você deve ter ouvido alguma coisa.Rebecca não respondeu de pronto.— Vamos lá — Will a pressionou. — O que você ouviu?— Bom — ela começou devagar —, ela estava gritando que ele era uma porcaria de fracasso... e

que ele devia parar de perder tempo com um completo lixo.— O que mais?— Não consegui ouvir o resto, mas os dois estavam com muita raiva. Eles meio que

rosnavam um para o outro. Deve ser realmente importante... Ela está perdendo Neighbours!Will abriu a geladeira e inspecionou preguiçosamente um iogurte antes de colocá-lo de

volta.— Então sobre o que pode ser? Não me lembro deles fazendo isso antes.Exatamente aí, a porta da sala se abriu, sobressaltando Rebecca e Will, e o dr. Burrows

irrompeu para fora, a cara vermelha e os olhos ameaçadores enquanto ia direto para o porão, naporta oposta. Atrapalhando-se com as chaves e murmurando incompreensivelmente, ele a abriu ea fechou num baque após passar.

Will e Rebecca ainda olhavam pelo canto da porta da cozinha quando ouviram a sra.Burrows gritar.

— VOCÊ NÃO SERVE PARA NADA, SEU FÓSSIL DESGRAÇADO! PODE FICARAí EMBAIXO E APODRECER QUE EU NEM LIGO, SUA RELÍQUIA VELHA EIDIOTA! — berrou ela a plenos pulmões, enquanto batia a porta da sala de estar com umestrondo poderoso.

— Isso não pode ser bom para a pintura da sala — disse Will, meio distante.Rebecca estava tão atenta ao que acontecia que nem pareceu ter ouvido o irmão.— Meu Deus, que coisa irritante. Eu preciso muito falar com ele sobre o que descobrimos

hoje — murmurou ele.Desta vez ela o ouviu.— Pode esquecer! Meu conselho é ficar fora do caminho até que as coisas se acalmem. —

Ela empinou o queixo com muita presunção. — Se é que vão se acalmar. De qualquer forma, acomida está pronta. Sirva-se. Na verdade, pode se servir de tudo... acho que ninguém mais vaiquerer comer mesmo.

Sem dizer mais uma palavra, Rebecca se virou e saiu da cozinha. Will passou os olhos dasoleira da porta vazia para o fogão, e deu de ombros.

Ele devorou duas refeições e meia e depois subiu a escada da casa, agora misteriosamentesilenciosa. Não havia sequer os sons habituais da televisão vindo da sala abaixo enquanto,sentando-se na cama, ele polia meticulosamente sua pá com um tecido até que brilhasse emandasse reflexos pelo teto. Depois se curvou para colocá-la gentilmente no chão, apagou a luzda mesa-de-cabeceira e deslizou para debaixo do cobertor.

Capítulo Dez

Will acordou com um bocejo de preguiça vendo o quarto com os olhos turvos até perceber a luzentrando pelas bordas da cortina. Ele se sentou atento quando lhe ocorreu que alguma coisa nãoestava certa. Havia uma surpreendente ausência do movimento matinal de sempre na casa. Olhouo relógio. Tinha dormido demais. Os acontecimentos da noite anterior o esgotaramcompletamente e ele se esquecera de colocar o despertador.

Ele encontrou peças relativamente limpas de seu uniforme no fundo do guarda-roupa e,vestindo-as rapidamente, foi ao banheiro para escovar os dentes.

Saindo de lá, viu a porta do quarto de Rebecca entreaberta e parou para escutar por ummomento. Sabia que não devia entrar de chofre; este era o santuário dela, e ela já bateu muitasvezes nele por entrar sem ser anunciado. Como não havia sinal de vida, decidiu dar uma olhada.Estava perfeito, como sempre — a cama imaculadamente arrumada e as roupas de casa colocadasde prontidão para quando ela voltasse da escola —, tudo limpo e ordenado, tudo no lugar. Elelocalizou o pequeno despertado preto da irmã na mesa-de-cabeceira. “Por que ela não meacordou?”, pensou ele consigo mesmo.

Depois, viu que a porta do quarto dos pais estava parcialmente aberta e não conseguiuresistir a meter a cabeça pelo canto. A cama não fora usada. Isso não estava nada bem.

Onde eles estavam? Will refletiu sobre a discussão entre os pais na noite anterior, cujagravidade agora começava a apreender. Ao contrário da impressão que geralmente dava, Willtinha um lado sensível. Não era que ele não ligasse, só achava difícil demonstrar emoções,preferindo esconder seus sentimentos por trás de um show de bravata impertinente no que diziarespeito a sua família, ou uma máscara de completa indiferença quando se tratava de outraspessoas. Era um mecanismo de defesa que ele desenvolvera com o passar dos anos para lidar comos insultos sobre sua aparência. Nunca demonstre seus sentimentos, nunca reaja às piadas estúpidas dosoutros, nunca lhes dê essa satisfação.

Embora não tivesse parado para pensar muito, Will estava ciente de que sua vida familiarera muito estranha, para dizer o mínimo. Todos os quatro membros da família eram tãodiferentes, como se tivessem sido atirados juntos sob circunstâncias que estavam além de seucontrole, como quatro estranhos completos que por acaso dividiam o mesmo carro ou o mesmo

trem. De certa forma isso os unia; cada um conhecia seu lugar e, como resultado, apesar de nãoserem inteiramente felizes, eles pareciam ter encontrado seu equilíbrio peculiar. Mas agora tudocorria o risco de desmoronar. Pelo menos era como se sentia Will nesta manhã.

Parado no meio do patamar da escada, ele ouviu o silêncio inquietante novamente, olhandode porta em porta entre os quartos. Isso era grave.

— Tinha que acontecer logo agora... Justamente quando descobri uma coisa tão incrível —murmurou ele consigo mesmo. Ele ansiava para falar com o dr. Burrows, contar-lhe sobre ostúneis das Covas e sobre a estranha câmara com que ele e Chester toparam. Era como se nadativesse significado algum sem a aprovação dele, seu “Muito bem, Will” e seu sorriso paternal deorgulho pelas realizações do filho.

Descendo a escada na ponta dos pés, Will teve a sensação estranhíssima de ser um intrusoem sua própria casa. Olhou a porta da sala de estar. Ainda estava fechada. Mamãe deve terdormido ali, pensou ele ao entrar na cozinha. Na mesa, havia uma única tigela; pelo pouco querestava de Rice Krispies presos ali, ele sabia que a irmã já havia tomado o café-da-manhã e forapara a escola. O fato de que ela não lavou a tigela depois, e a ausência da tigela de cereais e daxícara de chá do pai na mesa ou na pia fez com que um alarme vago tocasse em sua cabeça. Esteinstante congelado de atividade diária tornara-se a pista para um mistério, como as pequenasevidências em uma cena de crime que, se interpretadas da maneira certa, dar-lhe-iam a respostapara o que exatamente estava acontecendo.

Mas isso não era bom. Ele não conseguia encontrar respostas aqui e percebeu que tinha queseguir seu caminho.

— Parece um pesadelo — murmurou ele para si mesmo enquanto se servia apressadamentede Weetos numa tigela. — Desabamento total — acrescentou ele, mastigando melancólico ocereal.

Capítulo Onze

Chester estava refestelado em uma das cadeiras semidestruídas na câmara principal do túnel dasQuarenta Covas. Formara outra bolinha de argila entre as pontas dos dedos, aumentando a pilhacrescente na mesa ao lado. Depois começou a atirá-las sem muita vontade, uma após outra, nogargalo de uma garrafa vazia de água Volvic que ele equilibrara na borda de um carrinho de mãopróximo.

Will estava muito atrasado e Chester, enquanto atirava os pequenos projéteis, perguntava-seo que poderia ter atrapalhado a chegada do amigo. Ficar sozinho não era de grande preocupação,mas ele estava ansioso para contar a Will o que descobrira quando entrou no sítio de escavação.

Quando enfim apareceu, Will andava num passo de lesma pela rampa de entrada do túnel, apá pousada no ombro e a cabeça baixa.

— Oi, Will — disse Chester animado, enquanto atirava todo um punhado de bolas de argilana garrafa rebelde. Como previsto, todas erraram o alvo. Houve um momento de decepção antesque Chester se virasse para Will querendo uma resposta. Mas o garoto apenas grunhiu e, quandoele olhou, Chester ficou perturbado com a acentuada falta de brilho nos olhos do amigo. Chesterpercebera que alguma coisa não estava bem nos últimos dias na escola: parecia que Will o evitavae era retraído e pouco comunicativo quando o amigo se aproximava dele.

Um silêncio desagradável cresceu entre os dois na câmara, até que Chester, incapaz desuportar mais tempo, desabafou.

— Tem um bloque...— Meu pai foi embora — Will o interrompeu.— Como é?— Ele se trancou no porão, mas agora achamos que foi embora.De repente, ficou claro para Chester por que o comportamento do amigo fora tão mais

estranho do que o de costume. Ele abriu a boca e a fechou de novo. Não fazia nenhuma idéia doque dizer.

Como se estivesse exausto, Will desabou na cadeira mais próxima.— Quando foi que isso aconteceu? — perguntou Chester meio sem jeito.— Há alguns dias... ele teve uma briga com minha mãe.

— O que ela acha?— Ah, nada! Ela não falou uma palavra com a gente desde que ele foi embora -—respondeu

Will.Chester olhou o túnel que se ramificava da câmara e depois para Will, que esfregava

contemplativo uma mancha de lama seca no cabo da pá. Chester respirou fundo e falou,hesitante.

— Me desculpe, mas... tem outra coisa que você precisa saber.— O que é? — disse Will baixinho.— O túnel está bloqueado.— O quê? — disse Will. Num átimo, ele ficou animado de novo. Disparou da cadeira e

correu para a boca do túnel. Sem dúvida nenhuma a entrada para a peculiar sala de tijolos eraimpenetrável: na realidade, só restava metade da passagem de seis metros.

— Não acredito. — Will encarava impotente a barreira compacta de terra e pedra quechegava ao teto do túnel, fechando-o completamente. Ele testou as estacas e se postou diantedelas, cutucando-as com as duas mãos e chutando suas bases com a ponta de aço das botas. —Não há nada de errado com estas aqui — disse ele, abaixando-se para testar várias áreas da pilhacom as palmas das mãos. Pegou um punhado de terra com a mão em concha e examinou sob oolhar de Chester, que admirava como o amigo investigava a cena.

— Estranho.— O que é? — perguntou Chester.Will levou a terra ao nariz e cheirou intensamente. Depois, pegando uma pitada do solo,

descartou o resto. Continuou a esfregá-la devagar entre as pontas dos dedos por vários segundose se virou para Chester com o cenho franzido.

— O que é, Will?— As escoras mais além no túnel eram totalmente seguras... Eu fiz uma revisão antes de

irmos embora da última vez. E não choveu nada recentemente, não é?— Não, acho que não — respondeu Chester.— Não, e essa terra não parece úmida o bastante para provocar um deslizamento do teto...

Não há mais umidade do que se poderia esperar. Mas a coisa mais estranha de todas é isso. — Elese abaixou, escolheu um bloco de pedra da pilha e o atirou para Chester, que o pegou e examinoucom uma expressão confusa.

— Desculpe, eu não entendo. O que há de importante nisso?— É calcário. Este bloqueio tem pedaços de calcário. Sinta a superfície da pedra. Parece giz...

de textura totalmente errada para ser arenito. Esta é particulada.— Particulada? — perguntou Chester.— É, é muito mais granulosa. Peraí, vou ver se estou certo disse Will ao pegar o canivete e,

abrindo a lâmina maior, usá-la para perfurar a face limpa de outra pedra, falando o tempo todo.— Está vendo, as duas são rochas sedimentares e são muito parecidas. Às vezes é difícil saber adiferença. Os testes que você pode usar são jogar ácido nelas... o ácido faz o calcário chiar... ouolhar com uma lente de aumento para ver os grãos mais grossos de quartzo que só encontramosno calcário, mas este aqui é o melhor método de todos.

“Lá vamos nós”, anunciou Will, pegando um minúsculo floco da pedra que escolhera como

amostra e, para surpresa de Chester, passando-o da lâmina para a boca. Depois começou a roerentre os dentes da frente.

— O que está fazendo, Will?— Hummm — respondeu Will pensativamente, ainda roendo. — Sim, tenho certeza de que

é calcário... Está vendo, ele desmancha numa cola macia... Se fosse arenito, seria mais crocante eaté guincharia um pouco quando eu mordesse.

Chester estremeceu ao ouvir o som que vinha da boca do amigo.— Está falando a sério? Isso não estraga os seus dentes?— Até agora, não. — Will sorriu. Ele colocou a mão na boca para repor o floco e mastigou

por um tempo um pouco maior. — Sem dúvida é calcário — decretou por fim, cuspindo o querestara do floco de pedra. — Quer provar?

— Não, eu tô legal, de verdade — respondeu Chester sem hesitar. — Mas obrigado assimmesmo.

Will acenou para o teto da caverna.— Não acredito que haja um depósito... um bolsão isolado de calcário... em nenhum lugar

aqui perto. Conheço muito bem a geologia dessa região.— Então, qual é sua conclusão? — perguntou Chester, de cara amarrada. — Alguém desceu

aqui e bloqueou o túnel com todas essas coisas?— É... não... ah, sei lá — disse Will, chutando frustrado a beira da pilha enorme. — Só o

que eu sei é que tem alguma coisa muito estranha em tudo isso.— Pode ter sido uma das gangues? Pode ter sido a Clan? — sugeriu Chester, acrescentando:

— Ou até a Click?— Não, não é provável — disse Will, virando-se para inspecionar o túnel atrás dele. —

Haveria outros sinais de que estiveram aqui. E por que eles só bloqueariam este túnel? Você sabecomo eles são... Eles estragariam toda a escavação. Não, isso não faz sentido — acrescentou ele,bestificado.

— Não — Chester fez eco.— Mas quem quer que tenha sido, não queria que nós voltássemos lá, não é? — disse Will.

Rebecca estava na cozinha fazendo seus deveres quando Will voltou para casa. Ele acabara deencaixar a pá no porta-guarda-chuva e pendurara o capacete amarelo no cabo quando ela ochamou do canto.

— Voltou cedo.— É, tivemos uns problemas em um dos túneis e não estou com vontade de cavar mais —

disse ele enquanto desabava abatido na cadeira do outro lado da mesa.— Sem escavações? — disse Rebecca com uma preocupação fingida. — As coisas devem

estar piores do que eu pensava!— Tivemos um desabamento de teto.— Ah, sim... — disse ela, distante.— Nem imagino o que aconteceu. Não pode ser vazamento e a coisa estranha é que o

bloqueio... — ele se interrompeu enquanto Rebecca se levantava da mesa e se ocupava na pia dacozinha, claramente sem ouvir uma só palavra do que ele dizia. Will não se incomodou muito

com isso; estava acostumado a ser ignorado. Pousou, cansado, a cabeça nas mãos por ummomento, mas depois a ergueu com um sobressalto quando uma coisa lhe ocorreu.

— Não acha que ele está encrencado lá embaixo, acha? — disse ele.— Quem? — perguntou Rebecca enquanto enxaguava uma carola.— Papai. Porque ficou tão silencioso que todos nós achamos que ele foi a algum lugar, mas

é possível que ele ainda esteja no porão. Se ele não comeu por dois dias inteiros, pode terdesmaiado. — Will se levantou da cadeira. — Vou dar uma olhada — disse ele, decisivamente, àscostas de Rebecca.

— Não pode fazer isso. De jeito nenhum — disse ela, virando-se para encará-lo. — Sabeque ele não deixa a gente descer lá sem ele.

— Vou pegar a chave extra. — E assim Will correu da cozinha, deixando Rebecca paradaao lado da pia, cerrando e descerrando os punhos em suas luvas de borracha amarela.

Ele reapareceu segundos depois.— E aí, você vem ou não?Rebecca não se mexeu para segui-lo, virando a cabeça para olhar pela janela da cozinha,

como se meditasse sobre alguma coisa.— Vamos! — Um lampejo de raiva tingiu a cara de Will.— Tudo bem... que seja — concordou ela enquanto parecia voltar à vida, tirando as luvas e

colocando-as arrumadinhas no escorredor de pratos ao lado da pia.Eles foram até a porta do porão e a destrancaram no maior silêncio, para que a mãe não

ouvisse. Nem precisavam se preocupar, já que o som de uma saraivada de tiros vinha alto erápido da sala de estar.

Will acendeu a luz e eles desceram a escada de carvalho envernizada que ele ajudara o pai ainstalar. Parados no piso de concreto pintado de cinza, os dois olharam em volta, em silêncio.Não havia sinal do dr. Burrows. O cômodo estava abarrotado dos pertences dele, mas nada estavadiferente da última vez em que Will o vira. A extensa biblioteca do pai cobria duas paredes, e emoutra havia prateleiras que abrigavam seus achados “pessoais”, inclusive uma lanterna deferroviário, a máquina de bilhetes da estação de trem abandonada e um arranjo cuidadoso deprimitivas cabecinhas de argila com feições rudes. Junto à quarta parede havia uma bancada detrabalho, na qual ficava o computador, com um chocolate Curly Wurly inacabado na frente.

Ao inspecionar o ambiente, a única coisa que parecia deslocada a Will era um carrinho demão cheio de terra e pedras pequenas perto da porta para o jardim.

— O que será que isso está fazendo aqui? — disse ele.Rebecca deu de ombros.— Engraçado... eu o vi carregando um carrinho cheio para o terreno baldio.— Quando foi isso? — perguntou Rebecca, franzindo a testa pensativamente.— Algumas semanas atrás... no meio da noite. Acho que ele pode ter trazido isso para

análise ou coisa assim. — Ele estendeu a mão para o carrinho, pegou um pouco da terra solta e aexaminou de perto, rolando-a com o indicador. Depois a levou ao nariz e respirou fundo. —Alto conteúdo de argila — declarou ele, e afundou as duas mãos na terra, erguendo dois grandespunhados, que espremeu e depois soltou, espalhando-os devagar pelo carrinho. Ele se virou paraRebecca com uma expressão inquisitiva.

— Que foi? — disse ela, impaciente.— Só estava me perguntando de onde pode ter vindo essa terra — disse ele. — É que...— E o que é que você vai fazer? É óbvio que ele não está aqui e nada disso vai nos ajudar a

encontrá-lo — disse Rebecca com tal veemência desnecessária que Will ficou sem fala. — Vem,vamos voltar lá para cima — ela o instou. Sem esperar pela resposta de Will, Rebecca marchouescada acima, deixando-o sozinho no porão.

— Mulheres! — murmurou Will, fazendo eco a um sentimento que seu pai sempretransmitia a ele. — Nunca se sabe em que pé está com elas! — Rebecca, em particular, sempre foium mistério completo para Will: ele não conseguia decidir se ela lhe dizia aquelas coisas porquelhe dava na veneta, ou se havia realmente algo muito mais profundo e mais complexoacontecendo naquela cabecinha bem cuidada dela, algo que ele sequer podia começar a entender.

O que quer que fosse, não tinha sentido se preocupar com isso agora, não quando haviacoisas mais importantes a considerar. Ele bufou com desdém e esfregou as mãos para se livrar daterra, depois ficou parado imóvel no meio da sala até que sua curiosidade o dominasse. Foi até abancada, mexendo casualmente na papelada que estava ali. Havia artigos fotocopiados sobreHighfield, fotos de casas antigas em tons desbotados de sépia e pedaços esfarrapados de mapas.Um deles chamou sua atenção: havia comentários rabiscados a lápis. Ele reconheceu a letracomprida do pai.

Martineau Square — a chave? Ventilação para quê?, Will leu, franzindo o cenho ao acompanhara rede de linhas traçadas a lápis pelas casas e de cada lado da praça.

— O que ele estava aprontando? — perguntou a si mesmo em voz alta.Olhando debaixo da bancada, ele encontrou a pasta do pai e esvaziou seu conteúdo no chão,

principalmente revistas e jornais. Em um bolso lateral, encontrou alguns trocados num saquinhode papel pardo e embalagens amassadas de chocolate. Depois, agachando-se, começou a olhar ascaixas de arquivo guardadas sob a bancada, puxando cada uma delas para fora e vasculhando seuconteúdo.

Sua pesquisa foi interrompida pela insistência da irmã de que ele devia ir jantar se não acomida esfriaria demais. Mas antes de subir, Will olhou atrás da porta para verificar os casacospendurados ali. O capacete e o macacão do pai tinham desaparecido.

De volta ao corredor, seguindo para a cozinha, ele passou por uma cacofonia de aplausos erisos de trás da porta fechada da sala.

Os dois comeram em silêncio até que Will olhou para Rebecca. Ela estava com o garfonuma mão e um lápis na outra e fazia o dever de matemática.

— Rebecca, você viu o capacete e o macacão do papai? — perguntou ele.— Não, ele sempre guarda no porão. Por quê?— Bom, não estão lá — disse Will.— Talvez ele tenha deixado em alguma escavação.— Outra escavação? Não... ele não me contou sobre isso. E além de tudo, quando é que ele

teria a oportunidade de sair para fazer isso? Ele sempre estava aqui ou no museu... nunca ia aoutro lugar, né? Não sem me contar... — Will se interrompeu enquanto Rebecca o olhavaintensamente.

— Conheço esse olhar. Você pensou em alguma coisa, não foi? — disse ela desconfiada.

— Não, não é nada — respondeu ele. — Sério.

Capítulo Doze

No dia seguinte, Will acordou cedo e, querendo esquecer o desaparecimento do pai, vestiu asroupas de trabalho e correu cheio de energia para o térreo, pensando que tomaria um café-da-manhã rápido e talvez ligasse para Chester para escavar o túnel bloqueado no sítio das QuarentaCovas. Rebecca já andava pela cozinha; pela maneira como a irmã o agarrou pela gola nomomento em que ele virou o corredor, era óbvio que ela esperava por ele.

— Cabe a nós fazer alguma coisa sobre o papai, você sabe disso — disse ela, enquanto Willa olhava com uma expressão meio assustada. — A mamãe não vai fazer nada... Está atônitademais.

Will só queria sair da casa; tentava desesperadamente fingir para si mesmo que tudo estavanormal. Desde a noite da discussão entre os pais, ele e Rebecca preparavam-se para ir para aescola, como sempre. A única quebra da norma era que eles tinham que fazer as refeições nacozinha sem a mãe. Ela vinha servindo-se escondida do que quer que estivesse na geladeira, comose estivesse roubando, e vinha comendo diante da televisão, o que era bem previsível. Estavaclaro que não deixava de comer, porque faltavam pedaços de torta e de queijo, junto com fatiasinteiras de pão e potes de margarina.

Eles se encontraram em algumas ocasiões no corredor, enquanto ela bamboleava para obanheiro de camisola e chinelos com as costas arqueadas. Mas o único reconhecimento que Will eRebecca receberam nestes encontros ao acaso foi um vago aceno de cabeça.

— Decidi uma coisa. Vou chamar a polícia — disse Rebecca, parada diante da lava-louças.— Acha mesmo que precisamos fazer isso? Talvez a gente deva esperar mais um pouco —

disse Will. Ele sabia que a situação não era boa, mas certamente isto estava indo longe demais eele ainda não estava preparado para tomar essa atitude. — De qualquer forma, aonde você achaque papai pode ter ido? — perguntou ele.

— Seus palpites são tão bons quanto os meus — respondeu Rebecca asperamente.— Fui ao museu ontem e ainda estava tudo fechado. — Agora não era aberto há dias, mas

ninguém aparecera para reclamar.— Talvez ele tenha decidido que já estava cheio... de tudo sugeriu Rebecca.— Mas por quê?

— Desaparece gente o tempo todo. Quem sabe o porquê? — Rebecca deu de ombros. —Mas, agora, vamos ter que assumir o problema — disse ela resolutamente. — E temos que contarà mamãe o que vamos fazer.

— Tudo bem — concordou Will com relutância. Ele olhou a pá, desejoso, quando elesentraram no corredor. Só queria sair da casa e voltar a alguma coisa que entendia.

Rebecca bateu na porta da sala de estar e os dois entraram. A sra. Burrows não pareceu darpela presença deles; seu olhar não se desviou da TV nem por um segundo. Os dois ficaramparados ali, sem saber o que fazer, até que Rebecca se aproximou da poltrona da mãe, pegou ocontrole remoto no braço e desligou a televisão.

Os olhos da sra. Burrows continuaram exatamente onde estavam, na tela, agora escura. Willpôde ver o reflexo dos três, figurinhas imóveis presas nos limites do retângulo escurecido. Elerespirou fundo, dizendo a si mesmo que era ele quem devia assumir o controle da situação, e nãoa irmã, como costumava acontecer.

— Mãe — disse Will, nervoso. — Mãe, não encontramos o papai em lugar nenhum e...agora já faz quatro dias.

— Achamos que devemos chamar a polícia... — disse Rebecca, acrescentando rapidamente:— ...a não ser que saiba onde ele está.

Os olhos da sra. Burrows caíram da tela para os gravadores de vídeo abaixo, mas os doisperceberam que ela não estava focalizando em nada e que sua expressão era terrivelmente triste.De repente, ela parecia muito desamparada; Will só queria lhe perguntar o que havia de errado, oque acontecera, mas não conseguia criar coragem para tanto.

— Sim — respondeu a sra. Burrows delicadamente. — Como quiserem. — E foi tudo. Elasilenciou, os olhos ainda baços, e os dois saíram da sala.

Pela primeira vez, Will tomou consciência de todas as implicações do desaparecimento dopai. O que ia acontecer com eles sem o pai? Estavam com problemas graves. Todos eles.Especialmente a mãe.

Rebecca ligou para a delegacia e dois policiais chegaram várias horas depois, um homem euma mulher, os dois uniformizados. Will os fez entrar.

— Rebecca Burrows? — perguntou o policial, desviando os olhos de Will e vendo a casaenquanto tirava o quepe, depois pegando um bloquinho no bolso da camisa e abrindo-o.Exatamente nessa hora, o rádio em sua lapela lançou uma fala em arroto ininteligível e eledeslizou o controle de lado para desligá-lo. — Desculpe por isso — disse ele.

A policial falou com Rebecca:— Foi você quem telefonou?Rebecca assentiu uma resposta e a policial lhe abriu um sorriso reconfortante.— Você disse que sua mãe estava aqui. Podemos conversar com ela, por favor?— Ela está ali — disse Rebecca, levando-os à sala de estar e batendo de leve na porta. —

Mãe — chamou Rebecca com delicadeza, abrindo a porta para os dois policiais e parando de ladopara que eles entrassem. Will começou a segui-los, mas o policial se virou para ele.

— Sabe de uma coisa, filho, eu adoraria uma xícara de café.Enquanto o policial entrava e fechava a porta, Will virou-se para Rebecca com expectativa

nos olhos.

— Ah, tudo bem, eu faço — disse ela, irritada, e foi pegar a chaleira.Esperando na cozinha, eles podiam ouvir o ruído baixo da conversa dos adultos vindo de

trás da porta até que, várias xícaras de café e o que pareceu uma eternidade depois, o policialapareceu sozinho. Ele entrou e colocou a xícara e o pires na mesa ao lado dos dois.

— Vou ter que dar uma busca rápida na casa — disse ele. Procurar pistas — acrescentouele com uma piscadela e saiu da cozinha, subindo antes que qualquer um dos dois pudesse reagir.Eles ficaram sentados ali, olhando o teto ao ouvirem os passos abafados que seguiam de umquarto para outro no segundo andar.

— O que ele acha que vai encontrar? — disse Will. Eles o ouviram descer novamente eperambular pelo primeiro andar, e em seguida o policial reapareceu à porta da cozinha. Ele olhoufixa e inquisitivamente para Will.

— Tem um porão aqui, não é, filho?Will levou o policial ao porão e ficou parado ao pé da escada de carvalho enquanto o

homem dava uma olhada no cômodo. Parecia estar particularmente interessado nas peças àmostra do dr. Burrows.

— Coisas incomuns, essas que o seu pai tem. Imagino que tenha nota fiscal para tudo isso,não tem? — disse ele, pegando uma das cabeças de argila empoeirada. Percebendo a expressãoassustada de Will, ele continuou: — Só estou brincando. Sei que ele trabalha no museu da cidade,não é?

Will assentiu.— Fui lá uma vez... acho que numa excursão da escola. — Ele viu a terra no carrinho de

mão. — E o que significa tudo isso?— Não sei. Pode ser de uma escavação que papai andou fazendo. Em geral, fazemos isso

juntos.— Escavação? — perguntou ele, e Will assentiu em resposta.— Acho que agora gostaria de dar uma olhada lá fora — anunciou o policial, os olhos se

estreitando ao examinar Will atentamente, sua postura assumindo uma severidade que o garotonão vira antes.

No quintal, Will o observou procurar sistematicamente pelos limites. Depois ele voltou aatenção para o gramado, agachando-se de vez em quando para examinar os trechos nus em queum dos gatos do vizinho estava acostumado a se aliviar, destruindo a grama. Passou umtempinho olhando o terreno baldio do outro lado da sebe, no final do quintal, antes de voltarpara a casa. Will o seguiu e, assim que eles entraram, o policial pôs a mão no ombro dele.

— Diga, filho, ninguém andou cavando por aqui recentemente, não é? — perguntou ele emvoz baixa, como se houvesse algum segredo sombrio que Will estava morrendo de vontade decontar.

O garoto se limitou a sacudir a cabeça e eles foram para o hall, onde os olhos do policial seiluminaram para a pá reluzente no porta-guarda-chuva. Percebendo isso, Will tentou se colocardiante dele e bloquear sua visão.

— E tem certeza de que você... ou qualquer outro membro de sua família... não andoucavando no jardim? — perguntou o policial novamente, encarando Will com desconfiança.

— Não, eu não, não há anos — respondeu Will. — Cavei alguns buracos no terreno baldio

quando era mais novo, mas papai me fez parar... disse que alguém podia cair neles.— No terreno, hein? Buracos grandes, é?— Bem grandes. Mas não achei grande coisa por lá.O policial olhou para Will com estranheza e escreveu alguma coisa no bloco.— O quê, por exemplo? — perguntou ele, franzindo a testa de incompreensão.— Ah, só umas garrafas e lixo velho.A essa altura, a policial saiu da sala e se juntou ao colega perto da porta da frente.— Tudo bem? — disse o policial a ela, devolvendo o bloco ao bolso da camisa. Ele lançou

um último olhar penetrante a Will.— Peguei tudo — respondeu a policial, virando-se depois para Will e a irmã. — Olha,

tenho certeza de que não há motivo de preocupação mas, como rotina, vamos fazer umainvestigação sobre seu pai. Se souberem de alguma coisa ou precisarem falar conosco, sobrequalquer assunto, podem entrar em contato neste número. — Ela passou um cartão impresso aRebecca. — Em muitos casos assim, a pessoa simplesmente volta... só precisam se afastar umpouco, tirar algum tempo para pensar nas coisas. — Ela lhes abriu um sorriso tranqüilizador edepois acrescentou: — Ou se acalmar.

— Se acalmar do quê? — arriscou-se Rebecca. — Por que nosso pai precisaria se acalmar?O policial e a mulher pareceram meio surpresos, olhando-se e fitando Rebecca.— Bom, depois da discussão com sua mãe — disse a policial. Will esperava que ela dissesse

mais, explicasse exatamente do que se tratou a briga, mas ela se virou para o outro policial. —Muito bem, é melhor irmos.

— Ridículo! — disse Rebecca num tom de voz exasperado, depois de fechar a porta. — Éóbvio que eles não têm a mais remota idéia de para onde ele foi, nem do que vão fazer. Idiotas!

Capítulo Treze

– Will? É você? — disse Chester, protegendo os olhos do sol enquanto o amigo saía pela portada cozinha e entrava no quintal apertado atrás da casa dos Rawl. Ele estivera matando o temponaquela manhã de domingo esmagando moscas-varejeiras e vespas com a raquete velha debadminton, alvos fáceis porque elas ficavam preguiçosas no calor do meio-dia. Chester era umafigura cômica de chinelos e gorro, o corpo enorme acentuado pelos shorts largos e os ombrosavermelhados do sol.

Will parou com as mãos nos bolsos de trás do jeans, parecendo um tanto preocupado.— Preciso de ajuda numa coisa — disse ele, olhando para trás para ver se os pais do amigo

não estariam ouvindo.— Claro, o que é? — respondeu Chester, sacudindo das cordas puídas da raquete os restos

mutilados de uma mosca.— Quero dar uma olhada rápida no museu hoje à noite — respondeu Will. — Nas coisas

do meu pai.Ele agora tinha a atenção exclusiva de Chester.— Para ver se tem alguma pista... na sala dele — continuou Will.— Como é, quer dizer invadir? — disse Chester em voz baixa. — Eu não...Will o interrompeu.— Eu tenho as chaves. — Tirando a mão do bolso, ele as ergueu para Chester ver. — Só

quero dar uma olhada rápida e preciso de alguém para vigiar minha retaguarda.Will estivera completamente preparado para ir sozinho, mas, quando parou para pensar no

assunto, pareceu-lhe natural arregimentar a ajuda do amigo. Era a única pessoa a quem recorrer,agora que o pai desaparecera. Ele e Chester trabalharam juntos com muita eficácia no túnel dasQuarenta Covas, como uma verdadeira equipe; e, além disso, Chester parecia genuinamentepreocupado com o paradeiro do pai de Will.

Deixando a raquete de lado, Chester pensou por um instante enquanto olhava a casa evoltava a fitar Will.

— Tudo bem — concordou ele —, mas é melhor não sermos pegos.Will sorriu. Era bom ter um amigo de verdade, alguém em quem ele podia confiar, além de

seu pai, pela primeira vez na vida.

Depois do anoitecer, os garotos chegaram de mansinho à escada do museu. Will abriu a porta eeles entraram rapidamente. O interior era visível nas sombras em ziguezague lançadas pelosfracos feixes entrelaçados do luar e do néon amarelo dos postes da rua.

— Siga-me — sussurrou Will a Chester e, agora se agachando, eles atravessaram o salãoprincipal e foram para o corredor, esquivando-se dos armários de vidro e fazendo uma caretaquando os tênis guinchavam no piso de taco.

— Cuidado com...— Ai! — gritou Chester, ao tropeçar na madeira de pântano deitada no chão bem no

corredor, e ficou estatelado. — O que é que isso está fazendo aqui? — disse ele, irritado, aoesfregar o tornozelo.

— Vem — sussurrou Will com urgência.Perto do final do corredor, eles acharam a sala do dr. Burrows.— Podemos usar as lanternas aqui, mas mantenha a luz baixa.— O que estamos procurando? — sussurrou Chester.— Ainda não sei. Primeiro vamos dar uma olhada na mesa dele — disse Will numa voz

rouca.Enquanto Chester segurava a lanterna para ele, Will vasculhou a pilha de papéis e

documentos. Não era uma tarefa fácil; o dr. Burrows claramente era tão desorganizado notrabalho como era em casa, e havia uma papelada enorme espalhada no escuro em pilhasarbitrárias. A tela do computador também estava obscurecida por uma proliferação de bilhetesem papel amarelo enrascado. Na busca, Will concentrou seus esforços em qualquer coisa queestivesse escrita em folhas soltas no garrancho pouco legível do pai.

Terminando a última pilha de papéis, eles nada encontraram que fosse digno de nota. Entãocada um assumiu um lado da mesa e começou a vasculhar as gavetas.

— Caramba, olha isso aqui. — Chester mostrou o que parecia ser uma pata de cachorroempalhada, presa a uma vareta de ébano, em meio a um monte de latas vazias de tabaco. Willsimplesmente olhou para ele e fez uma careta curta antes de reassumir a busca.

— Aqui tem uma coisa! — disse Chester todo animado ao investigar a gaveta do meio. Willnão se incomodou em tirar os olhos da papelada que tinha nas mãos, pensando que era outroobjeto obscuro.

— Não, olha, tem uma etiqueta com alguma coisa escrita. — Ele passou a Will. Era umlivrinho com capa marmorizada em roxo e marrom e uma etiqueta na frente que dizia Ex Librisnuma letra acobreada e elaborada, com a imagem de uma coruja usando enormes óculosredondos.

— Diário — leu Will. — Sem dúvida nenhuma é a letra do meu pai. — Abriu a capa. —Bingo! Parece uma espécie de diário mesmo. — E o folheou. — Ele escreveu bastante neste aqui.— Colocando-o em sua bolsa, perguntou: — Tem mais algum?

Eles deram uma busca apressada no restante da gaveta e, sem nada encontrar, concluíramque estava na hora de ir embora. Will trancou o museu e os garotos foram para as QuarentaCovas, por ficar mais perto e por saberem que lá não seriam interrompidos. À medida que se

esquivavam pelas ruas, enfiando-se atrás de carros quando alguém aparecia, eles sentiram-se vivosde emoção pela missão proibida no museu e estavam loucos para ver o diário que desencavaram.Ao chegar às Covas, desceram à câmara principal, onde arrumaram as luzes de inspeção e sesentaram confortavelmente nas cadeiras. Will começou a estudar as páginas.

— A primeira nota é de pouco tempo depois de termos descoberto a estação de tremperdida — disse ele, olhando para Chester.

— Que estação de trem?Mas Will estava envolvido demais no diário para explicar. Ele recitou lentamente as frases

interrompidas enquanto lutava para decifrar a letra do pai.— Recentemente me tornei ciente de um grupo pequeno e in... incongruente de intrusos que andam em

meio à população geral de Highfield. Um grupo de pessoas com uma aparência que as distingue. Ainda não estoucerto de onde elas vieram ou que propósito têm mas, segundo minhas observações limitadas, acredito quenenhuma delas é o que parece. Dado seu aparente número (5=?) homogeneidade de sua aparência (racial?)...suspeito de que podem coabitar ou no mínimo... — ele se interrompeu ao varrer o resto da página. —Não vejo sentido nenhum no resto — disse ele, olhando para Chester. — Aqui tem uma coisa —comentou, virando a página. — Isto está mais claro.

“Hoje um artefato muito intrigante e perturbador chegou a minhas mãos por intermédio do sr. Embers.Pode estar relacionado com estas pessoas, embora eu ainda tenha que... consubstanciar isso. 0 objeto é umpequeno globo protegido por uma grade de uma espécie de metal que, até o momento em que escrevo estas linhas,ainda não consegui identificar. O globo emite uma luz de intensidade variável, dependendo do grau de iluminaçãodo ambiente. O que me confunde é que a relação é diametralmente oposta: quanto mais escuro o ambiente, maisluz ele emite. Isso desafia qualquer lei da física ou da química com que estou familiarizado.”

Will estendeu a página para que Chester pudesse ver o esboço aproximado que o pai fizera.— Você já viu isso? — perguntou Chester. — Essa coisa que brilha?— Não, ele guardou tudo para si mesmo — respondeu Will pensativamente. Virando a

página, recomeçou a ler. — Hoje tive a oportunidade de... examinar, embora por um breve momento, umdos homens pálidos mais de perto.

— Pálidos? Quer dizer brancos? — disse Chester.— Acho que sim — respondeu Will, e depois leu a descrição que o pai fizera do homem

misterioso. Ele prosseguiu até o episódio com Joe Abacaxi e o duto inexplicável na casa, e ospensamentos e observações do pai sobre a Martineau Square. A isto se seguiu um grande númerode páginas debatendo a provável estrutura dentro das casas com terraço que ladeavam a praça;Will continuou folheando até chegar a um extrato fotocopiado de um livro, grampeado no diário.

— Diz aqui “História de Highfield” no alto da página e parece ser sobre alguém chamadoSir Gabriel Martineau — disse Will. — Nascido em 1673, era filho e herdeiro de um bem-sucedidotintureiro de Highfield. Em 1699, herdou do pai os negócios, a Martineau, Long &Co., e os expandiuconsideravelmente, acrescentando mais duas fábricas às instalações originais na Heath Street. Era conhecido comoinventor entusiasmado e amplamente reconhecido por sua perícia nos campos da química, da física e daengenharia. Com efeito, embora Hooke (1635-1703) em geral tenha o crédito por ser o arquiteto por trás do queessencialmente é a bomba de ar moderna, vários historiadores acreditam que ele construiu seu primeiro protótipousando os desenhos de Martineau.

“Em 1710, durante um período de desemprego em massa, Martineau, um homem profundamente religioso,

reconhecido por sua atitude filantrópica e paternal com relação a sua força de trabalho, começou a empregar umnúmero substancial de trabalhadores para construir casas para os operários da fábrica, e projetou e supervisionoupessoalmente a construção da Martineau Square, que ainda permanece hoje, e havia boatos de que os Homens deMartineau (como eram conhecidos) se envolveram nas escavações de uma considerável rede subterrânea de túneis,embora não haja evidências de seus restos hoje em dia.

“Em 1718, a esposa de Martineau contraiu tuberculose e morreu, aos 32 anos. Em seguida, Martineauprocurou consolo filiando-se a uma seita religiosa obscura e raras vezes foi visto em público nos anos que restaramde sua vida. Sua casa, a Martineau House, que antes se destacava nos limites da antiga cidade de Highfield, foidestruída por um incêndio em 1733 em que, segundo se acredita, pereceram Martineau e suas duas filhas.”

Abaixo do recorte, o dr. Burrows havia escrito:“Por que não há vestígios destes túneis agora? Para que eles serviam? Não consegui encontrar nenhuma

menção a eles nos registros da prefeitura ou nos arquivos do distrito, nem em lugar nenhum. Por que, por que,por quê?”

Depois, escrito de forma tão tempestuosa que o papel enrugou e até se rasgou em algumaspartes, havia letras de forma enormes e rudes em esferográfica azul:

“MITO OU REALIDADE?”Will franziu o cenho e se virou para Chester.— Isso é inacreditável. Já ouviu falar desse Martineau?Chester sacudiu a cabeça.— Muito estranho — disse Will, relendo devagar o trecho fotocopiado. — Meu pai nunca

falou de nada disso, nem uma vez. Por que ele guardaria segredo de uma coisa dessas, e paramim?

Will mordeu o lábio, a expressão passando da exasperação para uma preocupação profunda.Depois ergueu a cabeça de súbito, como se tivesse levado uma cotovelada nas costelas.

— Que foi? — disse Chester.— Papai estava metido em alguma coisa que não queria que ninguém roubasse dele. Não de

novo. É isso! — gritou Will, lembrando-se da vez em que o professor da Universidade deLondres havia humilhado o pai e tomado dele as escavações na villa romana.

Chester estava prestes a perguntar do que o amigo estava falando quando, agitado, Willcomeçou a folhear o diário.

— Mais coisas sobre esses homens pálidos — disse o garoto, continuando até chegar a umaparte do caderno onde só havia as pontas de páginas que faltavam. — Estas foram arrancadasdaqui!

Ele folheou mais um pouco até a última nota. Chester o viu hesitar.— Olha essa data — disse Will.— Onde? — Chester se inclinou.— É da última quarta-feira... o dia em que ele brigou com a mamãe — disse Will em voz

baixa, depois respirou fundo e leu em voz alta: — A noite é esta. Descobri uma maneira de entrar. Sefor o que penso que seja, minha hipótese, embora pareça louca, se provará correta. Pode ser isso! Minha chance,minha última chance de deixar minha marca. O meu momento! Tenho que seguir meus instintos. Tenho quedescer lá. Tenho que atravessar.

— Não entendo... — começou Chester.Will ergueu a mão para silenciar o amigo e continuou:

— Pode ser perigoso, mas é algo que preciso fazer. Tenho que mostrar a eles; se minha teoria estiver certa,eles verão! Terão de ver. Não sou só um maldito curador de museu.

E então, Will leu a última frase, que estava sublinhada várias vezes.“Eu serei lembrado!”— Caramba! — exclamou o garoto, recostando-se de novo na cadeira úmida. — É

inacreditável.— É — concordou Chester sem entusiasmo nenhum. Estava começando a pensar que o pai

de Will talvez não fosse totalmente são. Parecia-lhe suspeito como as divagações de alguém queestava enlouquecendo, e muito.

— Então, no que ele se meteu? Qual era essa teoria de que ele estava falando? — disse Will,voltando às páginas arrancadas. — Aposto que estava aqui. Ele não queria que ninguém roubassesuas idéias. — Agora Will murmurava.

— É, mas aonde você acha que ele realmente foi? — perguntou Chester. — O que ele quisdizer com atravessar, Will?

Foi um balde de água fria para Will. Ele olhou, sem expressão, para Chester.— Bom — começou ele, devagar —, duas coisas estão me incomodando. Primeira, eu o vi

trabalhando numa coisa em casa de manhã cedinho... Uns quinze dias antes de ele desaparecer.Calculei que estivesse escavando no terreno baldio... Mas isso não faz sentido.

— Por quê?— Bom, quando eu vi, tenho certeza de que estava empurrando um carrinho de mão de

entulho para o terreno, e não tirando dele. A segunda coisa é que não consegui encontrar omacacão e o capacete dele em lugar nenhum.

Capítulo Quatorze

– Aí, Floco de Neve, soube que seu velho fugiu — gritou uma voz para Will assim que eleentrou na sala de aula. Houve um silêncio imediato na sala enquanto todos se viravam para orecém-chegado que, trincando os dentes, sentou-se a sua carteira e começou a tirar os livros damochila.

Speed, um garoto magrela e cruel de cabelos pretos e sebosos, era o líder autonomeado deuma gangue de sujeitinhos igualmente desagradáveis chamada “os Cinzas”. Sempre eram vistosreunidos como um enxame de mosquitos atrás do abrigo de bicicletas, aonde escapuliam parafumar uns cigarros quando o professor dava as costas para a turma. Seu nome vinha das nuvensescuras de fumaça que pairavam sobre suas cabeças quando eles se agrupavam, tossindo etentando terminar os cigarros antes que fossem flagrados.

Todos tinham o uniforme num estado semelhante de desordem, com os nós de gravataimpossivelmente grandes, suéteres de tricô e camisas amarrotadas meio enfiadas nas calças largas.Tinham a aparência de um bando de órfãos desnutridos que foram retirados do canal e deixadosao vento para secar. E eram desbocados e desagradáveis com qualquer um da escola que tivesse ainfelicidade de atravessar seu caminho.

Uma de suas manias mais revoltantes era cercar um aluno insuspeito e, como um bando dehienas, conduzi-lo à força para o meio do pátio, onde o insultariam e zombariam dele até que eletivesse um colapso. Will tivera o infortúnio de testemunhar um desses eventos, um alunoapavorado da sétima série que, cercado por Speed e sua gangue, fora obrigado a cantar sem parar“Boi da Cara Preta” a plenos pulmões. Quando o menino, petrificado, tropeçava nas palavras e aspronunciava sem emitir som algum, Speed o espetava sem piedade nas costelas para obrigá-lo acantar. Uma multidão de espectadores ria constrangida e se cutucava com um alívio maldisfarçado por ter sido poupada do mesmo destino. Will nunca se esqueceu do rapaz sufocandonas palavras ao chorar de medo. Agora era Will o foco da atenção indesejada de Speed.

— Não pode culpar o velho, né? Deve ter ficado de saco cheio de você! — zombou Speed,o desprezo gotejando de sua voz.

Curvado obstinadamente em sua carteira, Will fez o máximo que pôde para fingir queprocurava por uma página no livro.

— Se encheu do anormal do filho dele! — gritou Speed, meio que guinchando, daquele jeitohorrivelmente gutural que só podia partir de alguém cuja voz estava prestes a mudar.

A fúria brotou por dentro de Will. Sua pulsação se acelerou e o rosto ficou quente; eleodiou que isso traísse sua raiva. Enquanto continuava com os olhos fixos na página semsignificado nenhum a sua frente, Will viveu, só por uma fração de segundo, um momento dedúvida pessoal e culpa incríveis. Talvez Speed tivesse razão. Talvez fosse por culpa dele... talvezele tivesse parte da culpa pelo afastamento do pai.

Ele desprezou o pensamento quase de imediato, dizendo a si mesmo que não podia ser porcausa dele. Qualquer que fosse o motivo, seu pai não teria simplesmente ido embora. Deve tersido algo sério... alguma coisa mortalmente séria.

— E se irritou pra valer com sua mãe doente mental! — berrou Speed ainda mais alto. Comessa, Will ouviu algumas arfadas e o riso esporádico em volta, na sala que antes estivera emcompleto silêncio. Então, o estado de sua mãe já era de conhecimento geral.

Will agarrou o livro com tal força que a capa começou a vergar. Ainda não olhou para cima,mas sacudiu a cabeça devagar. Só havia uma saída... Ele não queria brigar, mas o nojentinhoestava indo longe demais. E agora era uma questão de orgulho.

— Aí, Pudim de Claras, estou falando com você! Você está ou não sem pai? Você é ou nãoé um...

Chega! Will de repente se levantou, atirando a cadeira para trás. Ela raspou no piso demadeira e virou. Ele olhou fixamente para Speed, que também se levantou da carteira, a caracontorcida de um prazer rancoroso ao perceber que suas gozações acertaram na mosca. Aomesmo tempo, três dos Cinzas sentados atrás de Speed pularam animados das cadeiras, com umaalegria de predadores.

— O Garoto Galak já não teve o bastante? — zombou Speed, avançando com arrogânciaentre as carteiras na direção de Will, a comitiva a reboque dando risadinhas.

Chegando perto de Will, Speed parou, os punhos cerrados ao lado do corpo. Emboraquisesse dar um passo para trás, Will sabia que tinha que manter posição.

Speed colocou o rosto ainda mais próximo, para que estivesse a centímetros da cara de Will,depois arqueou as costas como um boxeador de segunda classe.

— Bom... você... teve? — disse ele, destacando cada palavra com uma cutucada no peito deWill.

— Deixe-o em paz. Já aturamos o bastante de você. — Subitamente, o corpanzil imponentede Chester entrou no campo de visão enquanto ele se posicionava atrás de Will.

Speed olhou inquieto para ele, depois para Will.Ciente de que toda a turma o observava, e de que esperavam que ele desse o próximo passo,

Speed só conseguiu pensar em sibilar entre dentes com desdém. Foi uma tentativa estropiada desalvar sua honra e todos sabiam disso. Dois da comitiva de Speed desertaram, esquivando-se devolta a suas carteiras e deixando só o menor dos Cinzas como assistente. Embora fosse baixinho,o garoto magro e rijo, que ainda parecia usar calças curtas, gingava de um pé para o outro,claramente preparando-se para uma briga.

— Bom, o que vai fazer agora, apoiado só por um anão? — Chester sorriu friamente paraSpeed.

Felizmente, naquele exato momento entrou o professor e, percebendo o que acontecia, deuum pigarro alto para que todos soubessem que ele estava na sala. De nada adiantou para diminuiro impasse entre Will, Chester e Speed, e ele teve que avançar e mandar que se sentassem em alto ebom som.

Will e Chester tomaram seus lugares, deixando Speed ainda e pé com seu capangademorando-se atrás dele. O professor fez a carranca para os dois e, depois de alguns segundos,eles escaparam para as carteiras. Will recostou-se na cadeira e sorriu para Chester. Chester era umamigo de verdade.

Voltando da escola naquele dia, Will entrou de fininho em casa, com todo o cuidado paranão alertar a irmã de que tinha chegado. Antes de abrir a porta do porão, parou no corredor paraescutar. Ouviu a melodia de “You are my sunshine”; Rebecca cantava sozinha enquanto fazia odever de casa no segundo andar. Ele desceu rapidamente ao porão e destrancou a porta para ojardim, onde Chester esperava.

— Tem certeza de que não tem problema eu entrar aí? — perguntou ele. — Parece meio...bom... errado.

— Não seja bobo, é claro que pode — insistiu Will. — Agora, vamos ver o que podemosachar aqui.

Eles deram uma busca por tudo o que havia nas prateleiras e nas caixas de arquivo em queWill começara a dar uma olhada antes. Seus esforços foram infrutíferos.

— Então, de onde acha que a terra veio? — perguntou Chester, indo até o carrinho de mãopara examiná-lo mais de perto.

— Ainda não descobri. Acho que a gente pode dar uma olhada no terreno. Ver se ele estavaaprontando alguma coisa por lá.

— É uma área grande — disse Chester, sem se convencer. — De qualquer forma, por queele traria isso para cá?

— Não sei — respondeu Will ao passar os olhos nas prateleiras pela última vez. Ele franziua testa ao perceber uma coisa ao lado de uma das estantes.

— Peraí um minutinho, isso é estranho — disse ele enquanto Chester andava.— O que é?— Bom, tem uma tomada ali, mas não consigo ver aonde vai o fio. — Ele puxou o plugue

da tomada e os dois olharam em volta; não pareceu ter efeito nenhum.— Então, para que serve isso? — disse Chester. — Sem dúvida não é uma lâmpada externa.— Por quê? — perguntou Chester.— Porque não temos nenhuma — respondeu Will indo para o outro extremo da estante,

espiando no canto escuro entre duas prateleiras, depois recuando e fitando o móvelpensativamente. — Que esquisito. Não parece sair deste lado.

Pegando a escadinha próxima à porta do quintal, ele a colocou diante da estante e subiupara inspecionar o alto da prateleira.

— Nenhum sinal dele aqui também — disse Will. — Isso simplesmente não faz sentido. —Ele estava prestes a descer quando parou e passou a mão no alto da estante.

— Alguma coisa? — perguntou Chester.— Um monte de pó de tijolo — respondeu Will. Ele pulou da cada e de imediato tentou

puxar a ponta da prateleira para longe da parede.— Definitivamente ela cede um pouco. Vem cá, me dê uma mão — disse ele.— Talvez só esteja mal instalada — sugeriu Chester.— Mal instalada? — disse Will, indignado. — Eu ajudei a colocar isso aqui.Os dois puxaram juntos com toda a força e, embora uma fenda fina tenha se aberto atrás da

prateleira, a estante parecia firme no alto.— Me deixa ver uma coisa — disse Will ao subir na escadinha de novo. — Parece que tem

um prego frouxo alojado nessa bucha. — Ele o puxou e deixou cair no chão de concreto aos pésde Chester. — Usamos parafusos para fixar isto na parede, e não pregos — acrescentou ele,olhando para Chester com uma expressão confusa.

Will desceu da escada e os dois puxaram a estante novamente. Desta vez, tremendo eestalando, ela balançou da parede e revelou uma dobradiça de um lado.

— Então o fio é para isso! — exclamou Will, enquanto os dois olhavam a abertura grosseirano meio da base da parede. Os tijolos foram removidos, formando um buraco deaproximadamente um metro quadrado. Dentro dele, podia-se ver uma passagem, iluminada pelomosaico de uma tira antiga de néon, ardendo em toda sua extensão.

Will sorriu para Chester.— Muito bem, vamos dar uma olhada nisso. — Antes que Chester tivesse tempo de dizer

alguma coisa, Will mergulhou na passagem e estava engatinhando por ela a toda. — Tem umacurva aqui — veio sua voz abafada.

Sob o olhar de Chester, Will começou a virar a curva e depois, bem lentamente, voltou aocampo de visão. Ele se sentou e virou a cabeça para Chester, o rosto desconsolado no brilho dasluzes.

— Que foi? — perguntou Chester.— O túnel está bloqueado. Desmoronou — disse Will.Will se arrastou devagar para fora da passagem, depois subiu pelo buraco na parede,

voltando ao porão. Endireitou-se e tirou o blazer da escola, largando-o onde estava. Só entãopercebeu a expressão melancólica do amigo.

— Que foi?— O desmoronamento... não acha que seu pai esteja aí embaixo, acha? — disse Chester

quase num sussurro, mal conseguindo conter o tremor ao imaginar a terrível possibilidade. —Ele pode ter sido... esmagado — acrescentou ele agourentamente.

Preocupado, Will desviou os olhos do amigo e pensou por um momento.— Bom, só há um jeito de descobrir.— A gente não devia contar a alguém? — gaguejou Chester, desnorteado com o aparente

alheamento do amigo. Mas Will não estava ouvindo. Seus olhos se estreitaram com apreocupação que indicava que sua mente revirava, formulando um plano de ação.

— Sabe de uma coisa, o bloqueio é exatamente igual ao do túnel das Covas... Não temsentido. Há lascas de calcário de novo — disse ele, afrouxando a gravata e tirando-a pela cabeçaantes de descartá-la ao lado do blazer amarfanhado no chão. — É coincidência demais. — Elevoltou à boca da passagem e se inclinou nela. — E você percebeu os suportes? — perguntou ele,passando a mão em uma estaca que estava ao alcance. — Isto não é acidental. Esta aqui foicortada e empurrada de propósito.

Chester se juntou ao amigo na abertura e examinou as estacas, que tinham cortes fundos.Foram seccionadas quase retas em determinados lugares, como se alguém as tivesse golpeadocom um machado.

— Meu Deus, tem razão — disse ele.Will rolou as mangas para cima.— Então, é melhor começar. Não deixe para amanhã o que pode fazer hoje. — Ele se

enfiou pela passagem, arrastando atrás um balde que encontrara do lado de fora da abertura.Chester olhou seu uniforme escolar. Abriu a boca para dizer alguma coisa, mas pensou

melhor; tirou o blazer e o pendurou com esmero nas costas de uma cadeira.

Capítulo Quinze

– Vai! — disse Will num sussurro urgente, ao se abaixar nas sombras da sebe que fazia limitecom o terreno baldio nos fundos do quintal.

Chester gemia do esforço de colocar em movimento o carrinho de mão pesado e depoisoscilou precariamente entre as árvores e arbustos. Chegando em terreno aberto, ele virou para adireita, indo para o barranco que estavam usando para despejar o entulho. Pelos montes de terrafresca e de pedra já depositados ali, era evidente para Will que o pai andara usando o barrancocom o mesmo propósito.

Will estava atento a qualquer um que passasse por ali enquanto Chester esvaziavarapidamente o carrinho no alto do barranco. Ele girou com habilidade para a viagem de volta, aopasso que Will ficou para trás, a fim de recuperar qualquer pedra grande ou montes de terra eargila que caísse.

Depois de terminar, Will alcançou Chester. Ao refazerem a já traçada rota de volta aoquintal, a roda do velho carrinho começou a soltar um guincho penetrante, como se protestassecontra as incontáveis viagens que fora obrigada a fazer. O barulho perturbou a calma pacífica darefrescante noite de verão.

Os dois garotos ficaram paralisados, olhando em volta para ver se o ruído atraíra a atençãodas casas vizinhas.

Tentando tomar fôlego, Chester se curvou com as mãos nos joelhos enquanto Will seabaixava para examinar a roda ofensiva.

— Vamos ter que lubrificar essa porcaria de novo.— Dãããã, você acha mesmo? — Chester bufou de sarcasmo.— Acho que é melhor você carregar o carrinho — respondeu Will friamente ao se

endireitar.— Tenho que fazer isso? — gemeu Chester.— Vamos, eu te dou uma ajuda — disse Will ao pegar a parte da frente do carrinho de mão.Eles o arrastaram pela distância que restava, grunhindo e xingando em voz baixa, mas

mantendo estrito silêncio ao atravessarem o quintal. Andaram de leve ao descer a pequena rampapara a entrada dos fundos do porão.

— Minha vez de encarar, imagino — grunhiu Will enquanto os dois desabavam de exaustãono chão de concreto. Chester não respondeu.

— Você está bem? — perguntou-lhe Will.Chester assentiu meio grogue, depois semicerrou os olhos para o relógio.— Acho que preciso ir para casa.— Acho que sim — disse Will, enquanto Chester lentamente colocava de pé e começava a

pegar suas coisas. Will não disse nada, mas ficou aliviado por Chester ter decidido encerrar o diade trabalho. Os dois estavam mortos de cansaço depois de escavar e despejar entulho, a tal pontoque ele via que Chester estava meio desequilibrado de fadiga ao ficar de pé.

— Na mesma hora amanhã, então — disse Will em voz baixa flexionando os dedos ealongando um dos ombros numa tentativa de reduzir a rigidez.

— Tá — resmungou Chester em resposta, sem sequer olhar para Will ao cambalear parafora do porão, saindo no quintal.

Eles passaram pelo mesmo ritual toda noite depois da escola. Will abria com muito cuidado aporta para o quintal, sem produzir um som, para que Chester entrasse. Eles trocavam de roupa erapidamente começavam a trabalhar por duas ou três horas seguidas. A escavação eraparticularmente lenta e tortuosa, não só devido ao espaço limitado acima deles, mas tambémporque só podiam largar o material cavado no terreno baldio sob a cobertura da noite. No finalde cada noite, depois que Chester ia embora, Will se certificava de que a estante estava empurradapara seu lugar e segura, e que o chão fosse varrido.

Desta vez, ele tinha outra tarefa; enquanto saturava de óleo o eixo da roda barulhenta, ele seperguntou quanto mais teria que cavar para chegar ao fim do túnel e, não pela primeira vez, sehaveria alguma coisa lá. Estava preocupado com a possibilidade de ficarem sem suprimentos; sema ajuda do pai com o material, ele fora obrigado a fazer uso da maior quantidade possível demadeira das Quarenta Covas e assim, enquanto o túnel embaixo de sua casa avançava, o outroficava cada vez mais precário.

Mais tarde, ao se sentar à mesa da cozinha, comendo outro jantar que ficara frio comopedra, Rebecca apareceu na soleira da porta como se tivesse vindo do nada. Will tomou um sustoe engoliu com ruído.

— Olha só o seu estado! Seu uniforme está sujo... Você espera mesmo que eu lave tudo denovo? — disse ela, cruzando os braços agressivamente.

— Não, não mesmo — respondeu ele, evitando os olhos dela.— Will, o que exatamente você está aprontando? — perguntou ela.— Não sei o que quer dizer — disse ele, socando na boca outra porção de comida.— Você anda escapulindo para algum lugar depois da aula, não é?Will deu de ombros, fingindo examinar uma fatia seca de bife role na ponta do garfo.— Sei que está aprontando alguma, tudo bem, porque eu vi aquele boi andando de fininho

no quintal.— Quem?— Ah, sem essa, você e o Chester andaram cavando túneis em algum lugar, né?

— Tem razão — admitiu Will. Ele terminou a porção de comida e, respirando, tentoumentir da forma mais convincente que pôde. — Lá no aterro sanitário da cidade — disse ele.

— Eu sabia! — anunciou Rebecca, triunfante. — Como pode até pensar em cavar outro deseus buracos inúteis num momento como esse?

— Eu também tenho saudade do papai, sabe disso — disse ele ao dar outra dentada emuma batata assada fria —, mas não vai ajudar a nenhum de nós se só ficarmos zanzando pela casa,cheios de autopiedade... Como a mamãe.

Rebecca o encarou desconfiada, os olhos brilhando de raiva, depois girou nos calcanhares esaiu da cozinha.

Will terminou a refeição congelada, fitando o vazio ao mastigar devagar cada porção,ruminando sobre os acontecimentos do último mês.

Depois disso, já em seu quarto, ele pegou um mapa geológico de Highfield, marcando oslocais onde pensava que a casa ficava e a direção que calculou que tomava o túnel do pai noporão e, já que estava com a mão na massa, a Martineau Square e a casa da sra. Tantrumi. Willolhou longa e fixamente o mapa, como se fosse um quebra-cabeça que precisava resolver, antesde finalmente colocá-lo de lado e subir na cama. Minutos depois caíra num cochilo intranqüilo eespasmódico, em que sonhou com as pessoas sinistras descritas pelo pai no diário.

No sonho, ele usava o uniforme da escola, mas coberto de lama, esfarrapado e rasgado noscotovelos e nos joelhos. Tinha perdido as meias e os sapatos, e andava descalço por uma ruadeserta e comprida, que parecia familiar embora ele não conseguisse situar de onde a conhecia.Ao olhar o céu baixo, que era cinza-amarelado e sem forma, ele remexia ansioso o tecido roto dasmangas da camisa. Não sabia se estava atrasado para a escola ou para o jantar, mas tinha certezade que precisava chegar a algum lugar, ou fazer alguma coisa; algo de importância vital.

Ele ficou no meio da rua, preocupado com as casas dos dois lados. Pareciam agourentas esombrias; nenhuma luz brilhava por trás de suas janelas empoeiradas, nem subia nenhumafumaça de suas chaminés precariamente altas, pretas e retorcidas.

Ele se sentia demasiado perdido e sozinho quando, ao longe, viu alguém atravessando a rua.Soube de imediato que era o pai e seu coração pulou de alegria. Ele começou a acenar, masdepois parou ao sentir que as casas o observavam. Havia uma malignidade incubada nelas, comose abrigassem uma força do mal, feito uma mola espremida, prendendo a respiração e preparandouma emboscada para ele.

O medo de Will aumentou a um grau insuportável e ele disparou num trote atrás do pai.Tentou chamar por ele, mas sua voz era fina e fraca, como se o próprio ar estivesse engolindosuas palavras no momento em que saíam de seus lábios.

Agora, ele corria a toda e a cada passo a rua ficava mais estreita, de modo que as casas dosdois lados se fechavam sobre ele. Podia ver com clareza que havia figuras sombrias espreitandode forma ameaçadora nas soleiras escuras das portas e que elas começavam a sair para a rua àmedida que ele passava.

Completamente apavorado, ele tropeçava e derrapava nos paralelepípedos escorregadiosenquanto as figuras se agrupavam atrás dele em tal número que ficaram indiscerníveis uma daoutra, abolindo-se num único manto de escuridão. Seus dedos se estendiam como filetes de umafumaça preta viva, agarrando-o enquanto ele tentava desesperadamente escapar deles. Mas as

figuras sombrias o alcançaram; cutucavam-no nas costas com seus tentáculos negros até que elefoi obrigado a parar completamente. Tendo um breve vislumbre do pai ao longe, Will soltou umgrito silencioso. O manto negro se dobrou sobre ele; Will de repente ficou leve e caiu em umacova. Bateu no fundo com tal impacto que o ar foi expulso de seus pulmões e, arfando pararespirar, rolou de costas e viu pela primeira vez as faces severas e reprovadoras de seusperseguidores olhando para ele.

Ele abriu a boca, mas antes de saber o que estava acontecendo, ela se encheu de terra; podiasentir seu gosto enquanto sufocava sua língua e as pedras batiam e arranhavam em seus dentes.Estava sendo enterrado vivo; não conseguia respirar.

Nauseado e com ânsia de vômito, Will acordou, a boca seca e o corpo molhado de um suorfrio enquanto ele se sentava. Em pânico, tateou para acender a luz da mesa-de-cabeceira. Com umclique, seu brilho amarelo reconfortante banhou o quarto numa normalidade tranqüilizadora eele olhou o despertador. Ainda era o meio da noite. Caiu de costas no travesseiro, olhando o tetoe respirando mal, o corpo ainda trêmulo. A lembrança da terra entupindo sua garganta estavafresca e nítida em sua mente, como se de fato tivesse acontecido. E, enquanto estava deitado ali,normalizando a respiração, Will foi tomado por uma sensação renovada e ainda mais aguda deperda do pai. Por mais que tentasse, não conseguia se livrar do vazio dominador e, por fim,desistiu de qualquer pretensão de dormir, vendo a luz fria do amanhecer começar a lamber asbordas das cortinas e finalmente entrar furtiva no quarto.

Capítulo Dezesseis

As semanas se passaram e finalmente um inspetor de polícia apareceu para falar com a sra.Burrows sobre o desaparecimento do marido. Vestia um sobretudo azul-escuro sobre um ternocinza-claro e era bem falante, embora meio brusco, ao se apresentar a Will e Rebecca e pedir paraver a mãe deles. Os irmãos o conduziram à sala de estar, onde ela estava sentada, esperando.

Ao acompanharem o policial, eles arfaram, pensando que de algum jeito tinham entrado nasala errada. A televisão, a chama eterna que ardia no canto, estava silenciosa e escura, e — o quetambém era extraordinário — a sala estava incrivelmente arrumada e organizada. No tempo emque a sra. Burrows levou sua existência de eremita e nem Will nem Rebecca colocaram os pés alidentro, os dois supuseram que a sala degenerara numa bagunça terrível e a imaginaram cheia decomida semiconsumida, pacotes vazios e pratos e xícaras sujos. Mas não poderiam estar maisequivocados. Agora estava imaculada; mas o mais surpreendente era a mãe deles. Em vez doenfadonho traje de ver TV, camisola e chinelos, ela pusera um de seus melhores vestidos,arrumara o cabelo e até se maquiara um pouco.

Will a encarou sem acreditar, perguntando-se que diabos podia ter provocado umatransformação tão repentina. Só conseguiu pensar que ela imaginava participar de uma das sériespoliciais que adorava, mas isso não era suficiente para explicar a cena diante dele.

— Mãe, este é... este é... — gaguejou ele.— Inspetor detetive chefe Beatty — a irmã o ajudou.— Entre, por favor — disse a sra. Burrows, levantando-se da poltrona e sorrindo com

simpatia.— Obrigado, sra. Burrows... sei que é um momento difícil.— Não, absolutamente — disse a sra. Burrows, radiante. Rebecca, poderia colocar a chaleira

no fogo e nos preparar uma boa xícara de chá?— É muita gentileza sua, obrigado, senhora — disse o detetive Beatty, pairando desajeitado

no meio da sala.— Por favor. — A sra. Burrows apontou o sofá. — Fique à vontade, por favor.— Will, você podia me ajudar — disse Rebecca, pegando o irmão pelo braço enquanto

tentava conduzi-lo para a porta. Ele não se mexeu, ainda arraigado ao lugar pela visão da mãe

que, ao que parecia, mais uma vez era a mulher que não foi durante anos.— Hã... é... ah, sim... — ele conseguiu dizer.— Com açúcar? — perguntou Rebecca ao detetive, ainda puxando o braço de Will.— Não, leite e sem açúcar, por favor — respondeu ele.— Tudo bem, leite, sem açúcar... e, mãe, com dois adoçantes?A mãe sorriu e assentiu para ela, depois para Will, como se estivesse se divertindo com a

surpresa dos dois.— E quem sabe um bolo, Will?Will foi arrancado de seu transe, virou-se e acompanhou Rebecca para a cozinha, onde ficou

parado de boca escancarada, sem acreditar, sacudindo a cabeça.

Enquanto Will e Rebecca estavam fora da sala, o detetive falou com a sra. Burrows num tombaixo e sério. Disse que fizeram tudo o que podiam para localizar o dr. Burrows mas, como nãohavia notícia nenhuma de seu paradeiro, decidiram intensificar a investigação. Isto acarretariadivulgar a foto do dr. Burrows de forma mais ampla e realizar um “interrogatório detalhado” dasra. Burrows, como colocou o detetive, na delegacia. Eles também queriam falar com qualquerpessoa que tenha tido contato com o dr. Burrows pouco antes de seu desaparecimento.

— Gostaria de lhe fazer algumas perguntas agora, se não for incômodo. Vamos começarpelo emprego de seu marido — disse o detetive, olhando a porta e perguntando-se quando o cháia chegar. — Ele mencionou alguém em particular do museu?

— Não — respondeu a sra. Burrows.— Quero dizer, há alguém lá em quem ele possa ter confiado?— Com relação ao destino dele? — A sra. Burrows completou a frase para ele e riu

friamente. — Receio que não terá nenhum sucesso nesta linha de investigação. É um beco semsaída.

O detetive sentou-se reto na cadeira, meio frustrado com a resposta da sra. Burrows.— Ele cuida daquele lugar sozinho — continuou ela —; não há nenhum outro funcionário.

Pode pensar em interrogar os velhos esquisitões que andam com ele, mas não me surpreenderiase a memória deles não for mais a mesma.

— Não? — disse o detetive, um sorrisinho aparecendo nos cantos da boca enquantoescrevia no bloco.

— Não, a maioria deles tem uns oitenta anos. E por quê, posso perguntar, quer interrogar amim e a meus filhos? Já disse ao policial uniformizado tudo o que eu sabia. Não deviam estarlançando um alerta geral?

— Um alerta geral? — O detetive abriu um largo sorriso. — Não usamos este termo poraqui. Nós anunciamos emergências pelo rádio...

— E meu marido não é uma emergência, imagino?Neste momento, Will e Rebecca apareceram com o chá e a sala ficou em silêncio enquanto a

menina colocava a bandeja na mesa de centro e passava as xícaras. Will, agarrado a um prato debiscoitos, também entrou na sala e, como o detetive não parecia fazer objeção à permanência delee da irmã ali, os dois se sentaram. O silêncio ficou desagradável. A sra. Burrows olhava o policial,que olhava o próprio chá.

— Acho que estamos nos adiantando aqui, sra. Burrows. Podemos nos concentrar em seumarido de novo? — disse ele.

— Acredito que vá descobrir que estamos todos muito concentrados nele. É com o senhorque me preocupo — disse a sra. Burrows, sucinta.

— Sra. Burrows, precisa entender que algumas pessoas não... — começou o detetive —...não querem ser encontradas. Elas querem escapulir porque, talvez, a vida e seus prazeres tenhampassado a ser demasiados para elas.

— Demasiados? — a sra. Burrows fez eco, furiosamente.— Sim, temos que levar em consideração esta possibilidade.— Meu marido não suportou a pressão? Que pressão, exatamente? O problema era que ele

jamais tinha nenhuma pressão, nem ímpeto, aliás.— Sra. B... — O detetive tentou interromper, olhando desamparado para Will e Rebecca,

que olhavam do detetive para a mãe, como se fossem espectadores de um rali numa partida detênis particularmente bem disputada.

— Não pense que não sei que a maioria dos assassinatos é cometida por membros dafamília — proclamou a mãe.

— Sra. Burr...— É por isso que quer me interrogar na delegacia, não é? Para descobrir o que nós fizemos.— Sra. Burrows — recomeçou o detetive em voz baixa —, ninguém aqui está sugerindo

que foi cometido um assassinato. Será que podemos recomeçar e ver se desta vez partimos com opé direito? — propôs ele, valentemente tentando recuperar o controle da situação.

— Desculpe. Sei que só está fazendo seu trabalho — disse a sra. Burrows numa voz maiscalma, e bebericou o chá.

O detetive assentiu, grato por ela ter interrompido o discurso, e respirou fundo ao olhar obloco.

— Sei que é uma coisa difícil de pensar — disse ele —, mas seu marido tem algum inimigo?Talvez do trabalho?

Com essa, para grande surpresa de Will, a sra. Burrows jogou a cabeça para trás e riu alto. Odetetive murmurou alguma coisa sobre tomar isso como um “não” e escreveu em seu bloquinhopreto. Parecia ter recuperado parte de sua compostura.

— Tenho que fazer estas perguntas — disse o detetive, olhando direta-mente para a sra.Burrows. — Tem conhecimento de ele beber excessivamente ou usar drogas?

Novamente a sra. Burrows sol-tou uma gargalhada alta.— Ele? — disse ela. — Deve estar brincando!— Muito bem. Então o que ele fazia em seu tempo livre? — perguntou o detetive numa

voz monótona, tentando acabar com as perguntas com a maior rapidez possível. — Ele temalgum passatempo?

Rebecca de imediato olhou para Will.— Ele costumava fazer escavações... arqueológicas — respondeu a sra. Burrows.— Ah, sim. — O detetive virou-se para Will. — Pelo que sei, você o ajudava, não é, filho?

— Will assentiu. — E onde vocês faziam todas essas escavações?Will deu um pigarro e olhou para a mãe, depois para o detetive que aguardava por uma

resposta, a caneta suspensa na mão em expectativa.— Bom, na verdade, em toda parte — disse Will. — Nos limites da cidade, em aterros

sanitários e lugares assim.— Ah, pensei que fossem coisas adequadas — disse o detetive.— Elas eram escavações adequadas — disse Will firmemente. — Certa vez descobrimos um

sítio de uma villa romana, mas procurávamos principalmente por coisas dos séculos XVIII e XIX.— A que extensão... digo, que profundidade tinham os buracos que vocês cavavam?— Ah, na verdade eram só umas covas — disse Will evasivamente, querendo que ele não

seguisse essa linha de interrogatório.— E em que estavam trabalhando nessas atividades na época de seu desaparecimento?— Não estávamos — disse Will, muito ciente dos olhos de Rebecca ardendo nele.— Tem certeza de que ele não estava trabalhando em nada, talvez sem seu conhecimento?— Não, eu acho que não.— Muito bem — disse o detetive, guardando o bloco. — Já basta, por ora.

No dia seguinte, Chester e Will não se demoraram muito do lado de fora da escola. LocalizaramSpeed e um de seus fiéis seguidores, Bloggsy, vadiando a pouca distância dos portões. Speedolhava para eles ao se encostar às grades com as mãos nos bolsos, enquanto Bloggsy, umespecimezinho desagradável de cabelo louro-avermelhado e crespo que deixava sua cabeçaparecida com uma almofada estourada, deleitava-se em atirar pedrinhas, que ele pegava no bolsode sua parca, em qualquer menina que por acaso passasse a seu alcance. Isto produzia gritinhos epalavrões indignados que faziam Bloggsy rir com um prazer demoníaco.

— Acho que ele quer uma revanche — disse Will, olhando Speed, que o encaravadiretamente até Chester chamar sua atenção. A esta altura, Speed lhes deu as costas com desdém,murmurando alguma coisa a Bloggsy, que simplesmente zombou deles e soltou uma risada ásperae irônica.

— Dupla de babacas — grunhiu Chester, enquanto ele e Will partiam, decidindo pegar oatalho para casa.

Deixando a escola para trás, um prédio moderno, de tijolinhos amarelos e vidro, que seesparramava pelo terreno, eles andaram pela rua e entraram no conjunto habitacional adjacente.Construído na década de 1970, o conjunto era conhecido pelos moradores como Cidade dasBaratas, por motivos óbvios, e os prédios infestados que o compunham encontravam-se numestado perpétuo de abandono, com muitos de seus apartamentos vazios ou incendiados. Isto emsi não provocou nenhuma hesitação nos meninos; o problema era que o caminho os fazia passardiretamente pelo território dos Clicks, que faziam Speed e sua gangue parecerem umasbandeirantes.

Enquanto eles andavam lado a lado pelo condomínio, os raios fracos de sol cintilando noscacos de vidro no asfalto e na sarjeta, Will reduziu o passo quase imperceptivelmente, mas osuficiente para que Chester notasse.

— O que foi?— Não sei — disse Will, olhando os dois lados da rua e espiando apreensivo uma rua

transversal ao passar por ela.

— Vamos lá, me conte — pediu Chester, olhando em volta rapidamente. — Não me agradanada ser atacado por aqui.

— É só uma sensação, não é nada — insistiu Will.— O Speed está te deixando paranóico, não é? — respondeu Chester com um sorriso, mas

assim mesmo acelerou o passo, obrigando Will a fazer o mesmo.Ao deixarem o conjunto habitacional para trás, eles reassumiram um ritmo mais

despreocupado. Logo chegaram ao começo da High Street, marcado pelo museu. Como faziatodo final de tarde, Will olhou o prédio numa esperança vã de que as luzes estivessem acesas, asportas abertas e o pai de volta ao serviço. Will só queria que tudo voltasse ao normal — o quequer que fosse — mas novamente o museu estava fechado, suas janelas escuras e hostis. Oconselho administrativo evidentemente decidira que, por hora era mais barato simplesmentefechar do que procurar por um substituto temporário para o dr. Burrows.

Will olhou o céu; nuvens pesadas começavam a avançar e obscurecer o sol.— Hoje, a noite deve caminhar bem — disse ele, seu estado de espírito melhorando. —

Está escurecendo mais cedo, então não temos que esperar para começar a despejar o entulho.Chester começara a falar de como os procedimentos seriam mais rápidos se eles pudessem

se livrar da necessidade de todo aquele subterfúgio de filme de espionagem, quando Willmurmurou alguma coisa.

— Não entendi, Will.— Eu disse: não olhe agora, mas acho que alguém está seguindo a gente.— Você o quê? — respondeu Chester e, sem conseguir se reprimir, virou-se de imediato

para olhar atrás.— Chester, seu pateta! — rebateu Will.Com certeza, a uns vinte metros atrás dele havia um homem atarracado com óculos escuros,

chapéu de feltro e um sobretudo preto que parecia uma tenda e chegava aos tornozelos. A cabeçaestava voltada para eles, embora fosse difícil dizer se ele realmente olhava para os dois.

— Droga! — sussurrou Chester. — Acho que tem razão. É um daqueles caras sobre quemseu pai escreveu no diário.

Apesar da instrução anterior para Chester não se virar para o homem, agora ele não pôdedeixar de dar mais uma olhada.

— Um “homem-de-chapéu”? — concluiu Will com um misto e surpresa e apreensão.— Mas ele não está atrás da gente, está? — perguntou Chester. Por que estaria?— Vamos um pouco mais devagar para ver o que ele faz — sugeriu Will. Quando eles

reduziram o passo, o homem misterioso fez a mesma coisa.— Tá legal — disse Will —, e se a gente atravessar a rua?De novo o homem espelhou os atos dos garotos e, quando aumentaram o ritmo de novo,

ele acelerou o dele, para manter a distância.— Ele sem dúvida está nos seguindo — disse Chester, o pânico audível pela primeira vez

em sua voz. — Mas por quê? O que ele quer? Não estou gostando disso... acho que a gente deviapegar a próxima à direita e dar no pé.

— Não sei não — disse Will, imerso em pensamentos. — Acho que devemos confrontar ohomem.

— Você deve estar brincando! O seu pai sumiu da face da Terra pouco depois de ver essagente e, pelo que eu sei, este homem pode ter sido o responsável. Ele pode fazer parte de umagangue ou coisa assim. Insisto que a gente dê o fora daqui e chame a polícia. Ou peça ajuda aalguém.

Eles ficaram em silêncio por um momento enquanto olhavam em volta.— Não, tive uma idéia melhor. E se a gente virar o jogo? Armar para cima dele — disse

Will. — Se nos separarmos, ele só poderá seguir um de nós e, quando ele fizer isso, o outro podevir por trás e...

— E o quê?— Tipo duas frentes de ataque... a gente chega de fininho por trás e derruba o cara. —

Agora Will estava calmo enquanto o plano de ação se firmava em sua mente.— Ele pode ser perigoso, totalmente biruta, pelo que sabemos E com o que vamos derrubá-

lo? Com a mochila da escola?— Sem essa, nós somos dois e ele é só um — disse Will enquanto as lojas da High Street

entravam em seu campo de visão. — Vou distraí-lo enquanto você cai em cima dele... pode fazerisso, não pode?

— Ah, que ótimo, obrigado — disse Chester, sacudindo a cabeça. — Ele é mesmo imenso...Vai fazer picadinho de mim!

Will olhou nos olhos de Chester e deu um sorriso malicioso.— Tá legal, tudo bem. — Chester suspirou. — As coisas que tenho que fazer... — disse ele

ao olhar rapidamente para trás e atravessar a rua.— Caramba! Mudança de planos — disse Will. — Acho que eles é que vão nos atacar!— Eles? — Chester arfou ao se juntar ao amigo de novo. — Como assim, eles? —

perguntou Chester, seguindo o olhar de Will a um ponto mais além na rua.Ali, diante deles, a alguns passos de distância, havia outro dos homens. Era quase idêntico

ao primeiro, a não ser por exibir um chapéu achatado puxado sobre a testa de modo que osóculos escuros só eram visíveis sob a aba. Ele também vestia um longo casaco volumoso, quebatia delicadamente ao vento enquanto ele ficava parado no meio da calçada.

Agora não havia dúvidas para Will de que os dois homens estavam atrás deles.Enquanto ele e Chester alcançavam a primeira loja da High Street, os dois pararam e

olharam em volta. Na calçada oposta, duas senhoras conversavam ao empurrar seus carrinhos devime de rodas rangentes. Uma arrastava um Scottish Terrier recalcitrante, enfeitado com umaroupinha xadrez. Além disso, só havia mais algumas pessoas, longe.

A mente dos dois disparava com a idéia de pedir socorro ao gritos, ou parar um carro, sepor acaso passasse um, quando o homem da frente partiu para eles. Com a aproximação dos doishomens, os meninos perceberam que estavam ficando rapidamente sem alternativas.

— Isso é muito esquisito, nós estamos numa bela sinuca... mas quem são esses caras? —disse Chester, as palavras se atropelando enquanto ele olhava por sobre o ombro para o homemde chapéu de feltro. À medida que o estranho avançava, suas botas na calçada pareciam bate-estacas. — Alguma idéia brilhante? — perguntou Chester desesperadamente.

— Tudo bem, olha só, vamos atravessar a rua direto para o cara do chapéu, dar uma finta,depois virar à esquerda e entrar na loja dos Clarke. Entendeu? — disse Will sem fôlego enquanto

o homem de chapéu achatado diante deles se aproximava cada vez mais. Chester não fazia a maisremota idéia do que ele estava propondo mas, sob as circunstâncias, estava pronto para concordarcom qualquer coisa.

O Clarke Bros. era o principal mercadinho na High Street. Administrado por dois irmãosconhecidos na cidade como “Júnior” e “Médio”, a loja tinha um toldo listrado em cores vivas ebancas imaculadamente arrumadas de frutas e verduras dos dois lados da entrada. Agora que aluz começava a diminuir, o brilho que saía das janelas da loja acenava convidativo para eles, comoum farol. O homem de chapéu achatado foi pego por sua luz, o corpo musculoso e largo quasebloqueando toda a extensão da calçada.

— Agora! — gritou Will, e eles partiram para a rua. Os dois homens arrancaram parainterceptar os garotos, que dispararam pelo asfalto a toda, as mochilas da escola quicandodesvairadamente nas costas. Os homens eram muito mais rápidos do que Will e Chester previrame logo o plano foi por água abaixo, transformando-se num jogo caótico de pega-pega enquanto osdois garotos se esquivavam e costuravam entre os homens pesadões, que tentavam pegá-los,esticando as mãos enormes.

Will gritou quando um dos homens o segurou pela nuca. Depois, mais por acaso do que porintenção, Chester se atirou no homem. O impacto derrubou os óculos escuros do sujeito,revelando as pupilas brilhantes, reluzindo diabolicamente como duas pérolas negras sob a aba dochapéu. Enquanto ele se virava, surpreso, Will aproveitou a oportunidade para afastá-lo, com asduas mãos no peito dele. A gola do blazer de Will rasgou-se e se soltou neste momento.

O homem, distraído por um momento pelo impacto com Chester, grunhiu e se virourapidamente para Will. Jogando fora a gola solta, ele se lançou num esforço renovado paraagarrá-lo.

Num pânico cego, Chester, de cabeça baixa e os ombros projetados para cima, e Will, meiocaído e meio girando como um dervixe descoordenado, de algum jeito chegaram à porta doClarke enquanto os dois homens de chapéu se lançavam para frente, faziam uma última investidae sumiam.

O impulso de Will e Chester os levou diretamente pela porta, espremendo-os pelo batente,enquanto o sino no alto tocava como um dançarino biruta. Eles acabaram como um montedesordenado no chão da loja e Chester, recuperando a razão, de imediato girou e fechou a portanum baque, mantendo-a obstruída com os pés.

— Garotos, garotos, garotos! — disse o sr. Clarke Júnior, balançando perigosamente emuma escada ao arrumar um mostruário de bonecas de palha de milho em uma prateleira. — Porque todo esse pandemônio? Um desejo desesperado e súbito por minhas frutas exóticas?

— É... não exatamente — disse Will, tentando recuperar o fôlego enquanto se levantava dochão e tentava agir naturalmente, apesar do fato de que Chester agora estava de pé, meiodesajeitado, com os ombros colocados contra a porta atrás dele.

A esta altura, o sr. Clarke Médio saiu de trás do balcão como um periscópio humano.— Por que essa algazarra terrível? — perguntou ele, segurando papéis e recibos com as

duas mãos.— Nada com que se preocupar, meu caro. — O sr. Clarke Júnior sorriu para ele. — Não

queremos distraí-lo de sua papelada. São só dois arruaceiros procurando uma fruta especial,posso apostar.

— Bem, espero que não queiram fortunelas, no momento estamos em falta de fortunelas —disse o sr. Clarke Médio numa voz dura, enquanto voltava a se retirar devagar por trás do balcão.

— Então podem ser fortunelas. — O sr. Clarke Júnior riu num voz cantarolada, ao que osr. Clarke Médio gemeu de trás do balcão.

— Não liguem para o Médio; ele sempre fica numa agitação danada quando está cuidandoda contabilidade. Papel, papel por toda parte, e nem uma gota de tinta — declamou o sr. ClarkeJúnior, adotando uma pose teatral diante de um público imaginário.

Os irmãos Clarke eram uma instituição da cidade. Herdaram a loja do pai, como esteherdou do pai antes deles. Pelo que todos sabiam, provavelmente havia um Clarke nos negóciosna época da invasão romana, vendendo nabos ou qualquer legume que estivesse na moda. O sr.Clarke Júnior estava em seus quarenta anos e tinha uma personalidade extravagante, com umatendência a usar horríveis blazers berrantes, que ele fazia num alfaiate local. Deslumbranteslistras de amarelo-limão, rosa-arroxeado e azul-pólvora dançavam entre as bancas de tomatesvermelhos e o verde completamente sóbrio dos repolhos. Com seu bom humor contagiante erepertório aparentemente interminável de sátiras e trocadilhos, era disparado o preferido entre assenhoras da cidade, jovens ou velhas, e no entanto, estranhamente, ainda era um perfeitosolteirão.

Por outro lado, o sr. Clarke Médio, o irmão mais velho, não podia ser mais diferente. Umtradicionalista devotado, ele olhava com desagrado a exuberância do irmão, tanto na aparênciacomo nas maneiras, insistindo no código de vestimenta convencional: o velho capote de armazémque os antepassados exibiam. Era dolorosamente limpo e arrumadinho; suas roupas podiam tersido passadas a ferro enquanto ele as vestia, tal era o frescor do capote marrom-cogumelo, acamisa branca e a gravata preta. Os sapatos eram lindamente engraxados e os cabelos, cortadoscurtos atrás e dos lados como os de um recruta, eram gomalinados com tal brilho que de trásteríamos dificuldade para saber de que lado ele estava.

Os dois irmãos, no interior verde e sombreado da loja, não eram diferentes de uma lagarta euma borboleta presas em um casulo. E com as brigas constantes, o piadista e o certinho pareciamum teatro de variedades em ensaio constante para uma apresentação que nunca aconteceria.

— Esperando uma demanda por minhas lindas groselhas, não é? — disse o sr. Clarke Júniornum sotaque escocês de brincadeira, e sorriu descaradamente para Chester que, ainda encostadona porta, não fez nenhum esforço para responder, como se tivesse ficado surdo com toda asituação. — Ah, do tipo fortão e caladão — balbuciou ele enquanto descia da escada e girava emum floreio para ficar cara a cara com Will.

— É o jovem mestre Burrows, não é? — disse ele, a expressão de repente ficando séria. —Lamento muito saber de seu querido pai. Vocês estão em nossos pensamentos e nossas orações— acrescentou, colocando a mão direita delicadamente no coração. Como sua mãe estásuportando? E sua maravilhosa irmã...

— Bem, bem, as duas estão bem — disse Will, distraído.— Ela vem constantemente aqui, sabia? Uma cliente valiosa.— Sim — soltou Will meio rápido demais, tentando prestar atenção ao sr. Clarke Júnior ao

mesmo tempo em que Chester continuava escorado, como se sua vida dependesse disso.— Uma cliente de muito valor — ecoou o invisível sr. Clarke Médio detrás do balcão,

acompanhado do farfalhar de papéis.O sr. Clarke Júnior assentiu e sorriu.— Deveras, deveras. Agora, estacione seu adorável ser ali enquanto pego alguma coisa para

você levar para casa, para sua mãe e sua irmã. — Antes que Will pudesse pronunciar uma palavraque fosse, ele girou graciosamente nos calcanhares e praticamente dançou para o depósito nosfundos da loja. Will aproveitou a oportunidade para ir até a janela ver o paradeiro de seusperseguidores e recuou de surpresa.

— Eles ainda estão ali! — disse ele.Os dois homens estavam na calçada, bem em frente de cada janela, olhando as bancas de

frutas e legumes. Agora escurecia rapidamente na rua e seus rostos brilhavam como balõesbrancos espectrais sob a iluminação do interior da loja. Os dois ainda estavam com aquelesóculos impenetráveis e Will pôde distinguir os chapéus esquisitos e o brilho ceroso de seuscasacos angulosos de ombreiras incomuns. Seus rostos escarpados e oblíquos e as bocas apertadaspareciam inflexíveis e brutais.

Chester falou numa voz baixa e tensa.— Vamos pedir para eles chamarem a polícia. — Ele gesticulou com a cabeça para o balcão,

onde podiam ouvir o sr. Clarke Médio murmurando ao bater um grampeador com tanta forçaque parecia estar usando uma britadeira.

Exatamente neste momento, o sr. Clarke Júnior entrou flutuando na loja, carregando umcesto com uma pilha alta de uma gama impressionante de frutas, com uma grande fita rosaamarrada na alça. Ele ofereceu a Will com as duas mãos estendidas, como se estivesse prestes acantar uma ária.

— Para sua mãe e sua irmã e, é claro, camaradinha, para você. Uma lembrancinha minha edo velho esquisito ali, como uma prova de nossa solidariedade por suas dificuldades.

— Antes um esquisito do que um pretensioso — veio a voz abafada do sr. Clarke Médio.Apontando as janelas, Will abriu a boca para explicar sobre os homens misteriosos.— Barra limpa — disse Chester em voz alta.— O que foi, meu caro rapaz? — perguntou o sr. Clarke Júnior, olhando de Will para

Chester, que agora estava parado diante de uma das janelas e espiava a rua.— Que barra está limpa? — O sr. Clarke Médio saltou como um boneco de mola

desconjuntado.— Papelada! — ordenou o sr. Clarke Júnior na voz de um professor de escola colérico, mas

o irmão continuou acima do balcão.— É... são só umas crianças — mentiu Will. — Estavam nos perseguindo.— Meninos serão sempre meninos. — O sr. Clarke Júnior riu. — Agora, por favor, dê

lembranças minhas a sua querida irmã, a srta. Rebecca. Sabe de uma coisa, ela realmente tem umbom olho para produtos de qualidade. Uma mocinha prendada.

— Vou dar — Will assentiu e forçou-se a um sorriso. — E obrigado por isso, sr. Clarke.— Ah, não foi nada — disse ele.— Esperamos que seu pai volte para casa logo — disse o sr. Clarke Médio sombriamente.

— Não precisam se preocupar; estas coisas acontecem de vez em quando.— Bem... é como aquele rapaz, o Gregson... uma coisa terrível — disse o sr. Clarke Júnior

com um olhar astuto e um suspiro. — E depois houve a família Watkins, no ano passado. —

Will e Chester o olharam enquanto ele parecia focalizar em algum ponto entre as filas deabobrinhas e pepinos. — Muito boas pessoas também. Ninguém viu nem um fio de cabelo delesdesde que...

— Não é a mesma coisa, não é a mesma coisa de forma alguma — interrompeu o sr. ClarkeMédio asperamente, depois tossiu, pouco à vontade. — Não penso que esta seja hora e lugar paralevantar esse assunto, Júnior. É meio insensível, não acha, dada a situação?

Mas “Júnior” não ouvia; agora estava em pleno fluxo e não ia parar. Cruzando os braços ecom a cabeça tombada de lado, ele assumiu a aura de um dos velhos com quem costumavafofocar.

— Como o navio Marie Celeste, quando a polícia chegou lá. Camas vazias, os uniformes dosmeninos dispostos para a escola no dia seguinte, mas eles não estavam em lugar nenhum, nenhumdeles. A sra. W. comprara meio quilo de nossas vagens naquele dia, se bem me recordo, e umpedaço de melancia. De qualquer modo, nenhum sinal de nada, em lugar nenhum.

— Do que... das melancias? — perguntou o sr. Clarke numa voz inexpressiva.— Não, da família, sua salsicha idiota — disse o sr. Clarke Júnior, revirando os olhos.No silêncio que se seguiu, Will olhou do sr. Clarke Júnior para o sr. Clarke Médio, que

fuzilava com os olhos o irmão tristonho. Ele começava a se sentir como Alice quando atravessouo espelho.

— Muito bem, é melhor continuar — proclamou o sr. Clarke Júnior, com um último olharsolidário para Will, e andou delicadamente para a escada, cantando: “Beterraba para mim, monpetit chou...”

O sr. Clarke Médio sumiu de vista de novo e o som do farfalhar de papéis reapareceu,acompanhado do zumbido de uma calculadora antiquada. Will e Chester abriram com cuidado aporta da loja e espiaram nervosos a rua.

— Alguma coisa? — perguntou Chester.Will saiu para a calçada diante da loja.— Nada — respondeu ele. — Nem sinal deles.— A gente devia chamar a polícia, sabe disso.— E contar o que a eles? — disse Will. — Que fomos perseguidos por dois sujeitos

esquisitos de óculos de sol e chapéu idiota e depois eles simplesmente sumiram?— É, exatamente isso — disse Chester, irritado. — Quem sabe o que eles estão

procurando? — De repente ele olhou para cima ao lhe ocorrer de novo um pensamento. — E seeles são mesmo da gangue que pegou seu pai?

— Esquece... não sabemos disso.— Mas a polícia... — disse Chester.— Quer realmente passar por toda aquela porcaria, quando temos um trabalho a fazer? —

Will o interrompeu asperamente, olhando os dois lados da High Street e sentindo-se maistranqüilo, agora que havia mais gente por perto. Pelo menos assim eles poderiam pedir ajuda seos dois homens aparecessem de novo. — A polícia ia pensar que somos só dois garotos fazendoarruaça. E não temos testemunha nenhuma.

— Talvez — concordou Chester de má vontade, enquanto eles partiam para a casa dosBurrows. — Não vai faltar torta de frutas por aqui — disse ele, olhando a loja dos Clarke —,

disso posso ter certeza.— É seguro agora, de qualquer forma. Eles foram embora e, se voltarem, estaremos prontos

— disse Will com confiança.Estranhamente, o incidente não o intimidou nem um pouco. Ao pensar no assunto, era bem

verdade o contrário; confirmava que o pai tinha mesmo se metido em alguma coisa e agora eleestava no caminho certo. Embora não falasse de nada disso com Chester, sua decisão decontinuar com o túnel e sua investigação ficaram ainda mais sólidas.

Will começou a pegar as uvas no cesto espalhafatoso e a fita rosa, agora desfeita, batia nabrisa atrás dele. Chester parecia ter superado seus receios e olhava com expectativa o cesto, a mãopostada para se servir.

— Então, você quer pular fora? Ou ainda vai me ajudar? — perguntou Will a ele num tomde zombaria, colocando o cesto torturantemente fora de seu alcance.

— Ah, tá legal, me dá uma banana — respondeu o amigo com um sorriso.

Capítulo Dezessete

– Todas as evidências apontam para um desmoronamento proposital — disse Will, agachando-seao lado de Chester numa pilha de entulho nos confins abarrotados do túnel fechado.

Eles agora haviam recuperado uns dez metros da cavidade, que começava a descer numarampa inclinada, e descobriram que estavam ficando perigosamente sem madeira. Will esperavapoder usar parte das estacas e tábuas originais do próprio túnel. O que confundia os dois era queo pouco que havia dela ainda estava ali e grande parte da madeira que eles encontraram estavadanificada demais. Eles já haviam retirado cada pedaço que puderam do outro túnel dasQuarenta Covas, bem como as estacas Stillson, sem deixar toda a escavação a desmoronar.

Will deu uns tapinhas no deslizamento, olhando para ele com o cenho franzido.— Eu simplesmente não entendo — disse ele.— Então, o que acha que aconteceu realmente? Que seu pai provocou isso depois de

passar? — perguntou Chester, enquanto também olhava o tampão de terra e pedra solidamentecompactado que ainda tinham que remover.

— Se ele preencheu o túnel? Não, é impossível. E mesmo que tivesse feito isso de algumjeito, cadê os suportes? Teríamos encontrado mais. Não, nada disso faz sentido algum — disseWill. Inclinando-se para a frente, ele pegou um punhado de pedregulhos. — A maior parte dissoaqui é desabamento virgem. Foi trazido para cá de outro lugar... Exatamente a mesma coisa queaconteceu nas Covas.

— Mas por que todo esse trabalho de encher o túnel quando se pode simplesmentedesmoronar a coisa toda? — perguntou Chester, ainda aturdido.

— Porque então você abriria trincheiras debaixo das casas das pessoas ou em seus jardins— respondeu Will, sem esperança.

— Ah, é — concordou Chester.Os dois estavam exaustos. A última parte fora particularmente difícil, composta

principalmente de uns nacos de pedra de bom tamanho e algumas que até Chester achou difícilcarregar sozinho no carrinho de mão.

— Só espero que não tenhamos que avançar muito mais do que isso — Chester suspirou.— Está começando a me irritar de verdade.

— Nem me fale. — Will pousou a cabeça nas mãos, encarando vaga-mente a parede opostado túnel. — Já pensou que pode não haver nada no final disso tudo? Um beco sem saída?

Chester olhou para ele, mas estava cansado demais para dizer alguma coisa. Então, elesficaram sentados ali, em silêncio, imersos em seus próprios pensamentos, e depois de um tempoWill falou:

— O que papai pensou, fazendo tudo isso sem nos dizer o que estava aprontando? Paramim, especialmente — disse ele, com um olhar de pura exasperação. — Por que ele faria isso?

— Ele deve ter tido um bom motivo — propôs Chester.— Mas todo esse segredo; mantendo um diário secreto. Eu não entendo. Nunca fomos uma

família que guarda as coisas dos outros... as coisas importantes... desse jeito. Então, por que ele nãome disse o que estava aprontando?

— Bom, você tinha o túnel das Covas — aparteou Chester.— Papai sabia dele. Mas você tem razão. Nunca me incomodei em contar à mamãe, porque

ela simplesmente não está interessada. Quer dizer, não éramos exatamente uma família... — Willhesitou, procurando pela palavra certa — ...perfeita, mas todos nos damos bem e todos de certomodo sabíamos o que os outros estavam fazendo. Agora tudo está uma confusão só.

Chester tirou um pouco de terra da orelha. Olhou para Will pensativamente.— Minha mãe acha que as pessoas não deviam guardar segredos das outras. Diz que os

segredos sempre dão um jeito de aparecer e só criam problemas. Diz que é o mesmo que umamentira. É o que ela diz a meu pai, sei lá.

— E agora estou fazendo exatamente isso com a mamãe e a Rebecca — disse Will,tombando a cabeça.

Depois que Chester foi embora, Will finalmente saiu do porão e foi direto para a cozinha, comosempre fazia. Rebecca estava sentada à mesa abrindo a correspondência. Will percebeu logo que omonte de vidros de café vazios do pai, que abarrotavam a mesa havia meses, tinha desaparecido.

— O que você fez com eles? — perguntou Will, olhando o cômodo. — Com os vidros dopapai?

Rebecca o ignorou deliberadamente enquanto examinava o carimbo postal em um envelope.— Você jogou fora, não foi? — disse ele. — Como pôde fazer isso?Ela olhou para ele rapidamente, como se fosse um mosquito cansativo que ela não se daria o

trabalho de enxotar, e continuou com a correspondência.— Estou morrendo de fome. Tem alguma coisa para comer? — disse ele, concluindo que

não era sensato provocar Rebecca insistindo no assunto, não tão perto do horário de umarefeição. Ao passar por ela a caminho da geladeira, ele parou para examinar uma coisa deixada delado. — O que é isso?

Era um pacote muito bem embrulhado em papel pardo.— É endereçado a papai. Acho que devemos abrir — disse ele sem um momento de

hesitação, pegando a faca de manteiga que estava em um prato na pia. Cortando o papel pardo,ele rasgou animadamente o papelão por dentro, depois rasgou um casulo de papel bolha,revelando a esfera luminosa, cintilando do tempo que passou no escuro.

Ele a segurou diante de si, os olhos reluzindo de empolgação e da luz minguante queemanava da esfera. Era o objeto sobre o qual lera no diário do pai.

Rebecca tinha parado de ler a conta do telefone e se colocara de pé. Olhava a esferaintensamente.

— Tem uma carta aqui também — disse Will, estendendo a mão para a caixa de papelão.— Me dá, deixa eu ver — disse Rebecca, a mão indo para a caixa. Will deu um passo para

trás, segurando a esfera em uma das mãos enquanto abria a carta com a outra. Rebecca recolheu amão e se sentou, observando com cuidado a cara do irmão enquanto ele se curvava na bancada dapia e começava a ler a carta em voz alta. Era do Departamento de Física da University College.

Prezado Roger,

É maravilhoso saber de você novamente, depois de todos esses anos — trouxe-me lembranças calorosas denossa época na universidade. Também é bom ter notícias suas — Steph e eu adoraríamos fazer uma visita,quando for conveniente.

Com relação ao objeto, desculpe-me por levar tanto tempo para responder, mas queria me certificar de terrecolhido os resultados de todos os envolvidos. A conclusão é que ficamos completamente perplexos.

Como você especificou, não rompemos nem penetramos o envoltório de vidro da esfera, e assim nossos testesnão foram de natureza invasiva.

Com relação à radioatividade, nenhuma emissão prejudicial foi registrada — assim, posso tranqüilizá-lopelo menos com relação a isso.

Um especialista em metalurgia realizou um teste de saturação magnética em um raspado microscópico dabase da grade de metal e concordou com nossa opinião de que é georgiano. Ele acredita que a grade é feita depechisbeque, uma liga de cobre e zinco inventada por Christopher Pinchbeck (1670-1732). Era utilizada comosubstituto para o ouro e só foi produzida por um curto período de tempo. Aparentemente, a fórmula para estaliga se perdeu quando morreu o filho do inventor, Edward. Ele também me disse que são raros os exemplaresautênticos deste material e é difícil encontrar um especialista que possa nos fazer uma identificação inequívoca.Infelizmente, ainda não pude fazer a datação de carbono da grade para confirmar sua idade exata — quem sabeda próxima vez?

Particularmente interessante é que o raio X revelou uma partícula pequena e flutuante no meio da esfera,que não altera sua posição mesmo depois de uma agitação vigorosa — isto é desnorteante, para dizer o mínimo.Além disso, a partir do exame físico, concordamos com você que a esfera parece ser preenchida com duas fraçõesfluidas distintas, de densidades diferentes. A turbulência que observou nestas frações não corresponde às variaçõesde temperatura, interna ou externa, mas é inquestionavelmente fotorreativa — só parece ser afetada pela falta deluz!

Eis aqui a dificuldade: os rapazes do Departamento de Química nunca viram nada parecido na vida. Tiveque lutar muito para recuperá-la — eles estavam loucos para abrir a coisa sob condições controladas e fazer umaanálise completa. Tentaram a espectroscopia quando a esfera estava em seu ponto mais brilhante (à excitaçãomáxima, suas emissões estão no espectro do visível — em termos leigos, quase como a luz do dia, com umaemissão de UV dentro dos níveis de segurança aceitáveis), e o “líquido” parecia ser predominantemente hélio —e baseado em prata. Não podemos fazer mais nenhum progresso até que você nos permita abri-la.

Uma hipótese é de que a partícula sólida no centro possa agir como catalisadora para uma reação impelidapela ausência de luz. Não conseguimos pensar como, nesta conjuntura, nem associar com qualquer reação

comparável que nos ocorresse por um longo período de tempo, supondo-se que a esfera realmente date da épocageorgiana. Lembre-se, o hélio só foi descoberto em 1895 — isto não se coaduna com nossa estimativa para a datada grade de metal.

Em resumo, o que temos aqui é um verdadeiro enigma. Todos adora-ríamos ter uma visita sua para umareunião multidisciplinar, para que possamos organizar um programa de análise posterior do objeto. Pode até serútil se alguns de nossa equipe forem a Highfield para uma investigação rápida no ambiente.

Anseio por saber notícias suas. Com a maior consideração, TomProfessor Thomas Dee Will colocou a carta na mesa e encontrou o olhar fixo de Rebecca. Ele examinou a esfera

por um momento, depois foi até o interruptor e, fechando a porta da cozinha, apagou a luz. Osdois olharam a luminosidade da esfera aumentar de uma luminescência esverdeada e fraca paraalgo que se aproximava verdadeiramente da luz do dia, tudo em questão de segundos.

— Caramba — disse ele, maravilhado. — E eles têm razão, não ficou nem um poucoquente.

— Você sabia disso, não é? Posso ler em você, fácil como leio um gibi — disse Rebecca,encarando fixamente o rosto de Will, iluminado pelo brilho estranho.

Will não respondeu ao acender a luz, deixando a porta fechada. Eles olharam a esferaescurecer de novo.

— Sabe quando você disse que ninguém estava fazendo nada para encontrar o papai? —disse ele por fim.

— E daí?— Chester e eu topamos com uma coisa dele e andamos... humm, fazendo nossas próprias

investigações.— Eu sabia — disse ela em voz alta. — O que descobriram?— Shhh — sibilou Will, olhando a porta fechada. — Fale baixo. Eu é que não vou

incomodar a mamãe com nada disso. A última coisa que quero é dar esperanças a ela. Concorda?— Concordo — disse Rebecca.— Achamos um livro em que papai tomava notas... Uma espécie de diário — disse Will,

devagar.— Sim, e...?Sentados à mesa da cozinha, Will contou o que tinha lido no diário e também de seu

encontro com os homens estranhos e pálidos na loja dos Clarke. Ele parou antes de lhe contarsobre o túnel debaixo da casa porque, para ele, este era só um segredo pequeno.

Capítulo Dezoito

Foi uma semana depois que Will e Chester enfim fizeram a descoberta. Desidratados de calor naescavação, e com os músculos doloridos e fatigados pelo ciclo interminável de cavar e despejar oentulho, eles estavam prestes a encerrar o dia quando a picareta de Will bateu em um bloco depedra grande, que caiu para trás. Um buraco preto como breu se abriu diante deles.

Os olhos se fecharam no local, que exalava uma brisa úmida e nevoenta em seus rostoscansados e sujos. Os instintos de Chester gritaram para ele recuar, como se estivesse prestes a sersugado para a abertura. Nenhum dos dois disse uma palavra; não houve gritos de alegria nemexultação ao fitarem a escuridão impenetrável, com a calma inerte da terra em volta deles. FoiChester quem quebrou o feitiço.

— Imagino que seja melhor eu ir tomar meu chá.Will se virou e olhou para ele com incredulidade, depois viu o tremor de um sorriso na cara

de Chester. Cheio de um alívio e uma realização enormes, Will não pôde deixar de explodir numagargalhada histérica. Ele pegou um torrão de terra e atirou no amigo sorridente, que se abaixou,com um risinho abafado vindo de sob o capacete amarelo.

— Você... você... — disse Will, procurando pela palavra certa.— Sim, o quê? — Chester estava radiante. — Então vem, vamos dar uma olhada — disse

ele, inclinando-se para o buraco ao lado de Will.Will apontou a lanterna pela abertura. —É uma caverna... não consigo ver muito lá... deve ser bem grande. Acho que posso ver

umas estalactites e estalagmites. — Depois ele parou. — Escute!— O que é? — sussurrou Chester.— Acho que é água. Estou ouvindo água pingando. — Ele se virou para Chester.— Tá brincando — disse Chester, o rosto cheio de preocupação.— Não estou não. Pode ser um regato neolítico...— Peraí, me deixa ver — disse Chester, pegando a lanterna da mão de Will.Embora fosse uma tortura, eles decidiram contra qualquer escavação a mais naquele

momento. Reassumiriam no dia seguinte, quando estivessem renovados e mais preparados.Chester foi para casa; estava cansado, mas silenciosamente orgulhoso pelo fato de o trabalho dos

dois ter gerado frutos. Era verdade que precisavam desesperadamente dormir e Will até pensouem tomar um banho ao recolocar a estante em sua posição. Ele fez a limpeza de sempre com avassoura e subiu, letárgico, a escada para o quarto.

Ao passar pela porta de Rebecca, ela o chamou. Will fez uma careta e ficou imóvel comouma estátua.

— Will, eu sei que está aí.Will suspirou e abriu a porta. Rebecca estava deitada na cama, onde andara lendo um livro.— Que foi? — perguntou Will, olhando o quarto. Ele nunca deixava de ficar surpreso com

o fato de Rebecca mantê-lo furiosamente limpo e ar-rumado.— A mamãe disse que precisa conversar uma coisa com a gente.— Quando?— Assim que você chegasse, ela disse.— Meu Deus, essa agora?A sra. Burrows estava em sua posição habitual quando eles entraram. Afundada de lado na

poltrona como um manequim murcho, ela ergueu a cabeça sonolenta quando Rebecca tossiu parachamar sua atenção.

— Ah, que bom — disse ela, elevando-se para uma posição mais normal e, nesse meio-tempo, jogando alguns controles remotos no chão. — Ah, droga! — exclamou ela.

Will e Rebecca se sentaram no sofá enquanto a sra. Burrows vasculhava febrilmente omonte de fitas de vídeo na base da poltrona. Por fim, levantando-se com os controles, os cabeloscaindo, errantes, na frente e o rosto corado do esforço, ela os posicionou com muita precisão nobraço da poltrona. Depois deu um pigarro e começou.

— Acho que está na hora de encararmos a possibilidade de que seu pai não voltará, e istosignifica que precisamos tomar algumas decisões fundamentais. — Ela parou e olhou a televisão.Uma modelo num vestido de noite cheio de lantejoulas revelava uma grande letra “V” na pareded e Catchphrase, que já possuía várias outra letras. A sra. Burrows murmurou “O HomemInvisível” ao se virar para Will e Rebecca. — O salário de seu pai foi suspenso há algumassemanas e, como Rebecca me contou, já estamos ficando desprovidos.

Will virou-se para Rebecca, que simplesmente assentiu e a mãe continuou.— Todas as economias se foram e, com a hipoteca e todas as outras contas, vamos ter que

apertar os cintos...— Apertar os cintos? — perguntou Rebecca.— Receio que sim — disse a mãe, distante. — Não vai entrar dinheiro por algum tempo,

então vamos ter que reduzir os gastos e... vender o que pudermos... inclusive a casa.— O quê? — disse Rebecca.— E vocês terão que entender isso. Não vou ficar muito tempo por aqui. Fui aconselhada a

passar um tempinho em um... bem... uma espécie de hospital; um lugar onde posso descansar erecuperar a forma.

Com isso, Will ergueu as sobrancelhas, perguntando-se a que “forma” a mãe estava sereferindo. Ela estava em sua forma atual há tanto tempo que ele não se lembrava de outra.

A mãe continuou:— Então, enquanto eu estiver fora, os dois terão que ficar com a tia Jean. Ela concordou

em cuidar de vocês.

Will e Rebecca se olharam. Uma avalanche de imagens passou pela cabeça de Will: o edifícioalto em que morava a tia Jean, com os espaços públicos apinhados de sacos de lixo e fraldasdescartáveis, e os elevadores pichados, fedendo a urina. As ruas cheias de carros incendiados escooters das gangues gritando interminavelmente, e os pequenos traficantes de drogas, e osgrupos lamentáveis de bêbados que ficavam sentados nos bancos, brigando sem qualquerresultado enquanto entornavam suas latas roxas de cerveja barata.

— De jeito nenhum! — disse ele, de repente, como se estivesse acordando de um pesadelo,fazendo Rebecca pular e a mãe se sentar ereta, mais uma vez derrubando os controles do braçoda poltrona.

— Mas que droga! — disse ela, esticando o pescoço para ver onde eles haviam caído.— Eu não vou morar lá. Não suportaria, nem por um segundo. E a escola, e os meus

amigos? — disse Will.— Que amigos? — respondeu a sra. Burrows com rancor.— Não pode esperar que a gente vá para lá, mãe. É medonho, fede, o lugar é um chiqueiro

— gemeu Rebecca.— E a tia Jean fede também — acrescentou Will.— Bem, não há nada que eu possa fazer. Preciso de algum descanso; o médico disse que

estou muito estressada, então, não discutam. Vamos vender a casa e vocês vão ter que ficar com atia Jean até que...

— Até o quê? Você conseguir um emprego ou coisa assim? — disse Will asperamente.A sra. Burrows olhou para ele.— Isso não é bom para mim. O médico disse que devo evitar discussões. Esta conversa

acabou — rebateu ela, de repente, voltando a se virar de lado.No corredor, Will se sentou no primeiro degrau da escada, entorpecido, enquanto Rebecca

ficou de pé e braços cruzados, encostada na parede.— Bom, isso é o fim de tudo — disse ela. — Pelo menos vou ter a semana que vem de

folga...— Não, não, não... agora não! — berrou Will para ela, erguendo a mão. — Não com tudo

isso acontecendo!— Não, talvez tenha razão — disse ela, sacudindo a cabeça. Os dois caíram em silêncio.Depois de um instante, Will se levantou decisivamente.— Mas eu sei o que tenho que fazer.— O quê?— Tomar um banho.— Precisa mesmo de um — disse Rebecca, vendo-o subir cansado a escada.

Capítulo Dezenove

— Fósforos.— OK.— Velas.— OK.— Canivete suíço.— OK.— Lanterna reserva.— OK.— Rolos de barbante.— OK.— Giz e corda.— Tá.— Bússola.— Hã... tá.— Pilhas extra para as lanternas de capacete.— OK.— Câmera e bloco de notas.— OK, OK.— Lápis.— OK.— Água e sanduíches.— O... estamos planejando uma estada longa? — perguntou Chester ao olhar o pacote

absurdamente grande embrulhado em papel de alumínio. Estavam fazendo a verificação deúltima hora o equipamento no porão dos Burrows, usando uma lista que Will preparara naescola, mais cedo, durante a aula de economia doméstica. Depois de verificar tudo, eles colocaramcada item nas mochilas. Quando terminaram, Will fechou a mochila dele e a pendurou nas costas.

— Tudo bem, vamos nessa — disse ele com um olhar de mera determinação ao pegar a páenferrujada.

Will arrastou a estante para trás e, depois que ele e Chester entraram, puxou-a e a prendeucom uma tranca improvisada que tinha preparado. Depois, espremeu-se por Chester para ir nafrente, avançando rapidamente de quatro.

— Ei, espere por mim — chamou Chester atrás dele, muito surpreso com o entusiasmoimpetuoso do amigo.

Na face, eles desalojaram os blocos restantes de pedra, que caíram na escuridão e pousaramcom um espadanar surdo. Chester estava prestes a falar quando Will o deteve.

— Eu sei, eu sei, você acha que vamos ser tragados num jato de esgoto ou coisa assim. —Will olhou pela abertura ampliada. — Estou vendo onde as pedras caíram... elas estão seprojetando da água. Só pode ser da altura do tornozelo.

Ele se virou e começou a descer de costas pelo buraco. Parou na beira para sorrir paraChester, depois mergulhou para fora de vista, deixando o amigo desnorteado por um instante, atéque ouviu os pés de Will pousarem na água com um esguicho alto.

Era uma queda de uns dois metros.— Ei, é bem fria — disse Will, enquanto Chester passava depois dele. A voz do garoto

ecoou sinistramente na caverna, que tinha uns sete metros de altura e pelo menos trinta metrosde extensão e, na extremidade mais distante, pelo que eles podiam distinguir, tinha o formato delua crescente com grande parte do piso submerso. Eles entraram perto de uma das extremidades,e assim só podiam ver até onde a curva da parede permitia.

Saindo da água, eles apontaram as lanternas pelo ambiente por uns segundos mas, quandoos feixes pararam na lateral da caverna mais próxima, os dois, de imediato, ficaram petrificados.Will apontou firme a lanterna para as filas complexas de estalactites e estalagmites, de tamanhosvariados, de umas da altura de lápis a outras muitos maiores, grossas como troncos de árvoresnovas. As estalactites desciam como suas contrapartes subiam, algumas se reunindo e formandocolunas, e o chão era coberto de inchaços sobrepostos da calcita incrustada.

— É uma gruta — disse Will baixinho, estendendo a mão para sentir a superfície de umacoluna leitosa quase translúcida. — Não é lindo? Parece o glacê de um bolo ou coisa assim.

— Acho que mais parece catarro congelado — disse Chester num sussurro, tambémtocando uma pequena coluna como se não acreditasse no que via. Ele retirou a mão e esfregou osdedos com uma expressão de desprazer.

Will riu, batendo, com um baque suave, a base da mão numa estalactite.— É difícil acreditar que seja mesmo pedra, não é?— E todo o lugar é feito disso — disse Chester, virando-se para olhar mais além na parede.

Ele estremeceu um pouco por causa do ar frio e franziu o nariz. Toda a câmara tinha um cheiroúmido e envelhecido, não era nada agradável. Mas, para Will, era o cheiro doce do sucesso. Elesempre sonhou encontrar uma coisa importante, mas esta gruta superava suas expectativas maisdesvairadas. A alegria era tão intensa que Will quase ficou inebriado.

— É isso! — disse ele, socando o ar em triunfo. Nesse instante, parado ali na gruta, ele era ogrande aventureiro que sempre sonhou ser, como Howard Carter na tumba de Tutancâmon. Elevirava a cabeça rapidamente de um lado para outro, tentando apreender tudo a um só tempo.

— Sabe de uma coisa, deve ter levado milhares de anos para que isso tudo se formasse... —balbuciou Will ao dar alguns passos para trás, parando assim que seu pé prendeu em alguma

coisa. Ele se abaixou e viu o que era: um pequeno objeto projetando-se da rocha fluente. Escuroe escamoso, sua cor penetrava na alvura em volta. Ele tentou soltá-lo, mas seus dedosescorregavam. Estava bem preso.

— Aponte a lanterna para cá, Chester. Parece um parafuso enferrujado ou coisa assim. Masnão pode ser.

— É, Will... talvez queira ver isso... — respondeu Chester, a voz meio trêmula.No meio da gruta, na parte mais funda do poço opaco que havia ali, estavam os restos do

que parecia uma máquina imensa. As luzes dos meninos revelaram fileiras de rodas dentadasmarrom-avermelhadas que ainda se uniam ao que parecia uma estrutura espalhada de ferrobatido, tão alta que em certos pontos as estalactites que cresciam do teto de pedra tocavam nela.Era como se uma locomotiva tivesse sido impiedosamente estripada e largada ali para morrer.

— Mas o que é isso? — perguntou Chester, enquanto Will ficava em silêncio atrás dele,examinando o cenário.

— Não me pergunte — respondeu Will. — E tem pedaços de metal em toda parte. Olha!Ele apontava a lanterna para as margens da água, seguindo até onde podia, aos recessos mais

distantes da caverna. O primeiro pensamento de Will tinha sido de que a margem era raiada deminerais ou coisa parecida, mas, num exame mais atento, ele descobriu que eram cobertas de maisparafusos de porca, como o que acabara de encontrar, todos com cabeças hexagonais grossas.Além disso, havia eixos e incontáveis estilhaços de ferro batido denteado. O oxido vermelhodestes se entrelaçava com as faixas mais escuras que, devido a sua aparência, Will tomou comovazamentos de óleo.

Parados ali num silêncio pasmo e inspecionando seu tesouro sem valor, eles ouviram umarranhar fraco.

— Ouviu isso? — sussurrou Chester ao apontarem as lanternas na direção do som. Willavançou um pouco pela caverna, andando com cuidado no chão desigual, agora invisível sob aágua.

— O que era? — Chester arfou.— Shh! — Will parou e os dois escutaram, olhando em volta.Um movimento repentino e um pequeno jorro os fizeram pular. Depois alguma coisa

branca e brilhante pulou da água ondulante e percorreu um dos membros de metal, parandoimóvel no alto de uma enorme engrenagem. Era uma ratazana com uma pelagem reluzente ecompletamente branca, e orelhas grandes e cor-de-rosa. Ela passou as patas no focinho e sacudiua cabeça, espalhando gotinhas no ar. Depois se ergueu nas pernas traseiras, os bigodes seretorcendo e vibrando na luz das lanternas, e farejou o ar.

— Mas que coisa! Não tem olho nenhum — sibilou Will empolgado.Chester estremeceu. Certamente, onde deveria haver olhos, não havia sequer o mais leve

intervalo no pêlo macio de neve.— Eca, que nojo! — exclamou Chester ao dar um passo para trás.— Evolução adaptativa — respondeu Will.— Pouco me importa o que é!O animal virou e arqueou a cabeça na direção da voz de Chester. Depois, no segundo

seguinte, ele se foi, mergulhando na água e nadando para a margem oposta, onde fugiu.— Que ótimo! Ele deve ter ido encontrar os companheiros — disse Chester. — Daqui a

pouco este lugar estará infestado deles.Will deu uma risada.— É só uma porcaria de rato!— Não era um rato normal... Quem já ouviu falar em ratos sem olhos?— Sem essa, Chester, sua mulherzinha. Não se lembra dos Três Ratinhos Cegos? — disse

Will com um sorriso torto enquanto eles começavam a andar para a margem em crescente,lançando a luz das lanternas nos recantos das paredes e no teto. Chester andava apreensivo entreas pedras e restos de ferro, olhando constantemente para trás em busca de um exército imagináriode ratos cegos.

— Ai, meu Deus, eu odeio isso — grunhiu ele.Ao se aproximarem das sombras na extremidade mais distante da gruta, Will apertou o

passo. Chester fez o mesmo, decidido a não ficar para trás.— Caramba! — Will parou de repente, Chester esbarrando nele. — Olha só isso!Instalada na pedra, havia uma porta.A lanterna de Will se agitou pela superfície opaca e marcada — parecia antiga, mas sólida,

com rebites feito metades de bolas de golfe espaçados em sua moldura, e três alavancas enormesde um lado. Ele estendeu a mão para tocar nelas.

— Ei! Não! — Chester se encrespou.Mas Will não lhe deu nenhuma atenção e bateu de leve na porta com os nós dos dedos.— É de metal — disse ele, passando a palma da mão pela superfície — era brilhante, preta e

irregular, como melado queimado.— E daí? Você não está pensando em entrar, está?Will virou-se para ele, a mão ainda encostada na porta.— Este é o único caminho que meu pai pode ter tomado. É claro que eu vou, droga!Com essa, ele estendeu o braço, segurou a alavanca de cima e tentou puxar para baixo. Ela

se recusou a se mexer. Ele passou a lanterna a Chester e depois, usando as duas mãos, tentou denovo, descendo com todo seu peso. Nada aconteceu.

— Tente para o outro lado — sugeriu Chester, resignado.Will tentou novamente, desta vez empurrando para cima. Ela estalou um pouco no começo

e então, para surpresa dele, girou suavemente até bater decisivamente no que ele achou que era aposição aberta. Ele fez o mesmo com as outras duas alavancas, depois deu um passo para trás.Pegando a lanterna com Chester, Will colocou uma das mãos no meio da porta, pronto paraempurrá-la.

— Bom, lá vamos nós — disse ele a Chester, que desta vez não levantou nenhuma objeção.

PARTE DOIS

A Colônia

Capítulo Vinte

A porta se abriu com um fraco gemido metálico. Will e Chester pararam por um momento, aadrenalina correndo pelas veias enquanto eles dirigiam as lanternas para o espaço escuro à frente.Os dois estavam preparados para se virar e fugir num instante mas, sem ouvir nem ver nada,pisaram com cuidado no rebordo de metal da soleira da porta, prendendo a respiração enquantoo coração martelava nas orelhas.

A luz das lanternas varreu instável o interior. Estavam parados em uma câmara quasecilíndrica, com não mais de dez metros de largura e sulcos pronunciados em toda sua extensão.Na frente, havia outra porta, idêntica à que haviam acabado de usar para entrar, a não ser por umpequeno painel de vidro embaçado sustentado por uma moldura de rebites, como uma pequenavigia de navio.

— Olha como parece uma espécie de câmara de compressão — observou Will ao avançarpara a câmara, as botas batendo no chão de ferro sulcado. — Ande — disse ele a Chesterdesnecessariamente, pois o amigo o havia seguido e, sem ser solicitado, estava fechando a porta àscostas dos dois, puxando as alavancas para que as três voltassem a ficar unidas.

— É melhor deixar tudo como encontramos — disse Chester. — Só por precaução.Sem ter tido sucesso algum ao tentar ver através da vigia opaca, Will abriu as três alavancas

na segunda porta e a empurrou para fora. Houve um sibilar curto, como se o ar estivesse vazandode uma válvula de pneu. Chester lançou a Will um olhar inquisitivo, que ele ignorou enquanto searriscava a entrar na pequena sala adjacente. Com uns três metros quadrados, tinha paredes comoa quilha de um barco velho, uma colcha de retalhos de placas de metal enferrujado unidas poruma solda grosseira.

— Tem um número aqui — observou Chester ao fechar as alavancas da segunda porta.Descascando e amarelado pelo tempo, havia um grande número 5 pintado na porta abaixo davigia embaçada.

Enquanto eles avançavam cautelosamente, as luzes pegavam os primeiros detalhes de algoque havia diante deles. Era uma treliça de barras de metal, correndo do chão ao teto ebloqueando completamente o caminho. A luz de Will projetou sombras espasmódicas na

superfície mais além, enquanto ele empurrava a treliça com a mão. Era sólida e não cedia. Eleenfiou a lanterna por ela e, segurando o metal úmido, içou-se para o mais perto que pôde.

— Estou vendo as paredes e acho que posso ver o teto, mas... — disse ele, girando a cabeça—, mas o chão é...

— Uma longa descida — interrompeu Chester, a aba do capacete arranhando a treliça aobuscar uma visão melhor.

— Posso lhe dizer que não há nada nem remotamente parecido com isso nas plantas dacidade. Acha que eu deixaria passar uma coisa dessas? — disse Will, como que para dispersarqualquer dúvida pessoal que pudesse ter de não ver algo tão extraordinário nos mapas.

— Não, peraí, Will! Olha os cabos! — disse Chester em voz alta ao espiar os fios grossoscobertos pela treliça. — É um poço de elevador — acrescentou ele com entusiasmo, o estado deespírito de repente alegre pela i-déia de que, longe de ser algo inexplicável e ameaçador, o queeles encontraram era reconhecível e familiar. Era um poço de elevador. Pela primeira vez desde quedeixaram a relativa normalidade do porão dos Burrows, ele se sentiu seguro, imaginando que opoço devia descer a algo muito banal, como um túnel de metrô. Ele até se permitiu pensar queisto podia significar o final de sua expedição inacabada.

Ele olhou para baixo, à direita, localizou uma alavanca e, girando-a, deslizou o painel, queraspou horrivelmente nas calhas. Will deu um passo para trás, surpreso: na pressa, deixou deperceber que a barreira era na verdade um portão deslizante e agora o via abrir-se diante deles.Depois de Chester ter empurrado tudo para trás, eles tiveram uma visão desimpedida do poçoescuro. As lanternas dos capacetes brincaram nos cabos pesados e oleosos que corriam no meiodo poço para a escuridão abaixo, entrando no abismo.

— É uma queda dos infernos. — Chester estremeceu, agarrando a beira do velho portão deelevador enquanto seu olhar era engolido pela profundidade vertiginosa. Will desviou a atençãodo poço e começou a olhar a câmara de ferro atrás deles. Ali, preso à parede a seu lado,encontrou uma pequena caixa de madeira escura com um botão de bronze manchado projetando-se do meio.

— É isso aí! — gritou ele, triunfante, e, sem dizer nada a Chester, apertou o botão, queparecia gorduroso sob a ponta de seu dedo.

Nada aconteceu.Ele tentou novamente.E outra vez, nada.— Chester, feche o portão, feche! — gritou ele, incapaz de conter a empolgação.Chester o bateu e Will martelou o botão novamente. Houve uma vibração distante e um

fragor reverberou do fundo do poço. E depois, os cabos ganharam vida num solavanco ecomeçaram a se mexer, o poço se enchendo de um gemido alto do equipamento suspenso, quedevia estar alojado não muito acima deles. Os dois escutaram os ecos estridentes do elevador quese aproximava.

— Aposto que desce a uma estação do metrô. — Chester se virou para Will com uma carade expectativa.

Will franziu o cenho, aborrecido.— De jeito nenhum. Eu disse a você que não tem nada aqui. Isto é algo completamente

diferente.

O otimismo de Chester evaporou, seu rosto desabando enquanto os dois se aproximaramdo portão do elevador de novo, encostando a cabeça nele para que as lanternas dos capacetesapontassem para o poço escuro.

— Bom, se não sabemos o que é isso... — disse Chester — ainda dá tempo de voltar.— Vamos lá, não vamos desistir. Não agora.Os dois ficaram parados por alguns minutos, escutando a aproximação do elevador, até que

Chester falou.— E se houver alguma coisa nele? — disse, recuando do portão e começando a entrar em

pânico de novo.Mas Will não podia sair dali.— Peraí, não consigo... ainda está escuro demais... espera! Já dá para ver, dá para ver! É

como um elevador de mina! — Olhando fixamente o elevador enquanto ele se aproximavacautelosamente, Will descobriu que era capaz de ver através da grade que formava seu teto. Ele sevirou para Chester. — Relaxa, tá bom? Não tem ninguém ali.

— Eu não pensei que tivesse mesmo — retorquiu Chester, na defensiva.— Ah, tá, seu molengão.Satisfeito por estar vazio, Chester sacudiu a cabeça e suspirou de alívio enquanto o elevador

chegava ao nível deles. Ele estremeceu numa parada clangorosa e Will não perdeu tempo, puxoua porta e avançou alguns passos. Depois se virou para Chester, que adejava na beira, parecendodecididamente pouco à vontade.

— Não sei não, Will, parece bem frágil — disse ele, o olhar vagando pelo interior doelevador. Tinha paredes de grade e um piso de placas de aço arranhadas, e toda a coisa eracoberta do que pareciam anos de sujeira gordurosa e poeira.

— Vamos, Chester, este é o grande momento! — Nem por um segundo Will parou parapensar que só havia um caminho: para baixo. Se antes estava cheio de alegria pela descoberta dagruta, agora isto superava todas as suas expectativas mais doidas. —Vamos ficar famosos! — Eleriu.

— Ah, claro, estou até vendo... Dois mortos em desastre de elevador! — Chester replicousombriamente, esticando as mãos diante de si para indicar a manchete de jornal. — É só que nãoparece seguro... não deve ter sido usado por décadas.

Sem hesitar nem por um momento, Will pulou algumas vezes, as botas soando no piso demetal. Chester olhou, apavorado, enquanto o elevador se sacudia.

— Seguro como uma casa. — Will sorriu diabolicamente e, pousando a mão na alavanca debronze dentro do elevador, olhou nos olhos de Chester. — Então, você vem... ou vai voltar parabrigar com o rato?

Foi o que bastou para Chester, que de imediato entrou no elevador. Will fechou a portadeslizante às costas dele, empurrando e segurando a alavanca para baixo, o elevador novamenteentrando em movimento com um tremor e começando a descer. Pela grade, interrompida commuita freqüência pelas bocas escuras de outros níveis, eles viram a face da rocha lentamentesumindo em sombras opacas de marrons, pretos e cinzas, ocres e amarelos.

Uma brisa úmida soprava no alto e, a certa altura, Chester apontou a lanterna pela grade doteto, para o poço e os cabos, que pareciam um par de feixes de laser sujos desaparecendo no

espaço sideral.— Até que ponto você acha que ele vai? — perguntou Chester.— Como é que vou saber? — respondeu Will rudemente.Na verdade, quase cinco minutos se passaram até que o elevador finalmente parou com um

baque abrupto de sacudir os ossos, que fez com que os dois caíssem pelas laterais da grade.— Talvez eu devesse ter soltado a alavanca um pouco antes disse Will timidamente.Chester olhou confuso para o amigo, como se nada mais importasse de fato, e depois os

dois ficaram parados ali, as luzes lançando nas paredes do outro lado as silhuetas gigantescas elosangulares da grade da gaiola.

— Lá vamos nós de novo. — Chester suspirou ao deslizar a porta, ver Will passar por eleimpaciente e entrar em outra sala de placas de metal, correndo para a porta na outra extremidade.

— É igual à de cima — observou Will ao se ocupar das três alavancas do lado da porta.Esta tinha um 0 grande pintado no alto.

Eles deram alguns passos inseguros na sala cilíndrica, as botas soando no piso de metalondulado e a luz das lanternas iluminando outra porta diante deles.

— Parece que temos um caminho a seguir — disse Will, andando para ela.— Essas coisas parecem ter saído de um submarino — murmurou Chester. — Como

câmaras de compressão mesmo.Na ponta dos pés, Will olhou pela pequena vigia de vidro, mas não conseguiu ver nada do

outro lado. E quando tentou acender a lanterna por ela, a gordura e os arranhões no vidro antigorefrataram o feixe, então, ele ficou ainda mais opaco.

— Não adianta — disse ele a si mesmo.Passando a lanterna a Chester, ele girou as três alavancas e empurrou a porta.— Está emperrada! — grunhiu. Ele tentou de novo, sem sucesso. — Pode me dar uma

ajuda?Chester se uniu a ele e, com os ombros colados na porta, os dois empurraram com toda a

força. De repente, ela se abriu com um sibilar alto e uma golfada de ar, e eles tropeçaram para odesconhecido.

Agora as botas pisavam em paralelepípedos enquanto os garotos recuperavam o equilíbrio ese endireitavam. Diante deles, havia uma cena que ambos conheciam e, pelo tempo que vivessem,jamais se esqueceriam.

Era uma rua.Eles se viram em um espaço enorme, quase tão largo quanto uma estrada, que fazia uma

curva ao longe, à esquerda e à direita. E, do outro lado, viram que era iluminada por uma fila delampiões altos de rua.

Mas o que realmente lhes tirou o fôlego ficava além dessas luzes, do lado mais distante dacaverna. Estendendo-se até onde eles podiam ver, nas duas direções, havia casas.

Como que num transe, Will e Chester avançaram para esta aparição. Ao fazerem isso, aporta bateu atrás deles com tal força que os dois giraram.

— Uma brisa? — perguntou Chester ao amigo, com uma expressão confusa.Will deu de ombros em resposta; podia mesmo sentir no rosto uma corrente de ar fraca. Ele

deitou a cabeça para trás e cheirou, sentindo a umidade bolorenta do ar. Chester apontava alanterna para a porta e depois começou a olhar a parede acima, iluminando os enormes blocos de

pedra que a formavam. Ele elevou o círculo de luz, cada vez mais, e os olhos dos dois foramcompelidos a seguir a parede até as sombras no alto, onde ela se encontrava com a parede opostanum grande arco, como o teto de uma catedral imensa.

— O que é tudo isso, Will? Que lugar é esse? — perguntou Chester, pegando-o pelo braço.— Não sei... nunca soube de nada parecido — respondeu Will, olhando, arregalado, a rua

enorme. — É verdadeiramente impressionante.— O que vamos fazer agora?— Acho que vamos... temos que dar uma olhada por aí, não é? Isso é simplesmente incrível

— maravilhou-se Will. Ele lutou para organizar os pensamentos, infundido da primeira lufadainebriante da descoberta e consumido pelo impulso irresistível de explorar e saber mais. — Deviaregistrar isso — murmurou ele ao pegar a câmera e começar a tirar fotos.

— Will, não! O flash!— Epa, desculpe. — Ele pendurou a câmera no pescoço. — Tem uma calçadinha ali. —

Sem dizer mais nada a Chester, ele de repente andou pelos paralelepípedos na direção das casas.Chester seguiu o companheiro explorador, meio agachado e murmurando ao olhar a rua de cimaa baixo em busca de algum sinal de vida.

Os prédios pareciam ser esculpidos nas próprias paredes, como fósseis arquitetônicos semi-escavados. Seus telhados se fundiam com as paredes de arco suave atrás e, onde se esperaria verchaminés, havia uma rede complexa de dutos de tijolos brotando de cima dos telhados, quecorriam pelas paredes e desapareciam no alto, como fumaça petrificada. Ao chegarem à calçada, oúnico som além de seus passos era um zumbido baixo, que parecia vir do próprio chão. Elespararam brevemente para examinar uma das luzes da rua.

— Parece o...— É — interrompeu Will, tocando inconscientemente o bolso, onde o globo luminescente

do pai fora cuidadosamente embrulhado num lenço. A esfera de vidro do poste de rua era umaversão muito maior desta, quase do tamanho de uma bola de futebol, e era sustentada por umtipo de garra com quatro unhas no alto de um poste de ferro batido. Duas mariposas brancascomo a neve circundavam as luzes erraticamente, tais quais luas epiléticas, as asas secas batendona superfície do vidro.

Will enrijeceu repentinamente e, erguendo a cabeça para trás, farejou — não muito diferentedo rato sem olhos na engrenagem.

— Que foi? — perguntou Chester com ansiedade. — Mais problemas não, né?— Não, só pensei... ter sentido o cheiro de alguma coisa. Meio parecido com... amônia... algo

acre. Não percebeu?— Não. — Chester fungou várias vezes. — Espero que não seja venenoso.— Bom, agora passou, o que quer que fosse. E estamos bem, não estamos?— Parece que sim. Mas você acha que alguém realmente vive aqui? — respondeu Chester,

ao olhar as janelas das casas. Eles voltaram a atenção para a casa mais próxima, silenciosa eagourenta, como se os desafiasse a se aproximar.

— Não sei.— O que estamos fazendo aqui, então?— Só há um jeito de descobrir — disse Will enquanto eles seguiam cuidadosamente para a

casa. Era simples e elegante, construída de alvenaria em arenito, quase de estilo georgiano. Eles sópuderam distinguir cortinas de brocado pesado atrás das janelas de duas folhas de cada lado daporta da frente, que era pintada de um verde brilhante e grosso feito melaço e tinha uma aldravae um sino de bronze tremendamente polido.

— Cento e sessenta e sete — disse Will maravilhado ao ver os dígitos acima da aldrava.— O que é este lugar? — Chester sussurrava enquanto Will via uma luz fraca em uma fresta

entre as cortinas. A luz tremia, como se viesse de uma lareira.— Shhh! — disse ele, ao se aproximar e se agachar abaixo da janela, depois erguer-se

lentamente acima do peitoril e espiar com um olho só pelo pequeno espaço. Sua boca se abriunum pasmo silencioso. Ele podia ver o fogo ardendo numa lareira. Acima dela, havia um consoloescuro com vá-rios ornamentos de vidro. E com a luz do fogo dançando pela sala, ele pôdedistinguir algumas cadeiras e um sofá, e as paredes, cobertas de quadros emoldurados detamanhos variados.

— Vamos lá, o que tem aí? — disse Chester, nervoso, sem parar de olhar a rua vazia atrás,enquanto Will espremia a cara no vidro sujo.

— Não vai acreditar nisso! — respondeu ele, movendo-se de lado para deixar o amigo verpor si mesmo. Chester apertou ansiosamente o nariz na janela.

— Minha nossa! É uma sala de verdade! — disse ele, virando-se para olhar para Will,descobrindo que ele já estava em movimento, andando pela frente da casa. Ele parou ao chegar àesquina da construção.

— Ei! Espere por mim — sibilou Chester, apavorado por ser deixado para trás.Entre esta construção e a seguinte na fila, um beco curto ia até a parede do túnel. Will

colocou a cabeça na esquina e, satisfeito por não haver ninguém, acenou para Chester que elesdeviam passar à casa seguinte.

— O número desta é 166 — disse Will ao examinar a porta da frente, quase idêntica à daprimeira casa. Ele foi até a janela na ponta dos pés, mas não conseguiu ver nada através davidraça escura.

— O que tem aí? — perguntou Chester.Will levou um dedo aos lábios, depois voltou à porta da frente. Examinando-a mais de

perto, ocorreu-lhe uma idéia e seus olhos se estreitaram. Reconhecendo aquele olhar, Chesterestendeu a mão para tentar impedi-lo, gaguejando:

— Will, não!Mas era tarde demais. Will mal havia tocado a porta quando ela girou para dentro. Eles

trocaram olhares e os dois entraram bem devagar, um formigamento de excitação e medosurgindo em seu corpo.

O hall era espaçoso e quente, e os dois sentiram um potpourri de cheiros — comida,fumaça da lareira — e de habitação humana. Dispunha-se como qualquer casa normal; umaescada ampla começava no meio do cor-redor, com fixadores de bronze para o carpete na base decada degrau. Painéis de madeira encerada iam até um corrimão, acima do qual havia um papel deparede de listras verde-claras e escuras. Quadros em molduras douradas e ornamentadas pendiamnas paredes, retratando pessoas de aparência robusta com ombros enormes e a face pálida.Chester olhava um deles quando lhe ocorreu uma idéia terrível.

— Eles são iguaizinhos aos homens que perseguiram a gente — disse ele. — Ah, que

ótimo, estamos numa casa que pertence a um daqueles malucos, não é? Esta é a porcaria dacidade daqueles malucos! — acrescentou ele ao ter esta percepção medonha.

— Escute! — sibilou Will. Chester ficou parado onde estava enquanto o outro virava umaorelha na direção da escada, mas não havia nada, só um silêncio opressivo.

— Pensei ter ouvido... não... — disse ele, e avançou para a porta aberta à esquerda deles,depois virou cautelosamente no canto. — Isso é incrível! — Ele não conseguia se reprimir, tinhaque entrar. E, desta vez, Chester também foi levado pela necessidade de saber mais.

Um fogo animado crepitava na lareira. Nas paredes, havia pequenas pinturas e silhuetas emmolduras de bronze e douradas. Uma em particular chamou a atenção de Will: A Casa Martineau,dizia na inscrição embaixo. Era um pequeno quadro a óleo do que parecia ser uma casaimponente cercada de gramados ondulados.

Junto à lareira, havia cadeiras estofadas de um material vermelho escuro com um brilhofraco. Havia uma mesa de jantar em um canto, e, em outro, um instrumento musical que Willreconheceu ser uma espineta. Além da luz da lareira, a sala era iluminada por duas esferas dotamanho de bolas de tênis, suspensas do teto em grades de pechisbeque ornamentadas. Toda acoisa lembrou a Will um museu a que seu pai o levara, com uma exposição chamada Comovivíamos antigamente. Ao olhar em volta, ele refletiu que esta sala não ficaria deslocada lá.

Chester deslizou até a mesa de jantar, onde duas xícaras de porcelana branca estavam emseus pires.

— Tem coisa aqui — disse ele com uma expressão de surpresa. — Parece chá!Ele tocou hesitante a lateral de uma das xícaras e olhou para Will, ainda mais sobressaltado.— Ainda está quente. O que está havendo? Onde está todo mundo?— Não sei — respondeu Will. — Parece... parece...Eles se olharam com uma expressão confusa.— Sinceramente não sei o que parece — admitiu Will.— Vamos tratar de sair daqui — disse Chester, e os dois foram para a porta. Ao voltarem à

calçada, Chester se chocou com Will quando ele parou de repente.— É... a... parede — tagarelou Chester confuso, lutando para colocar os pensamentos em

palavras. Por um momento, eles se demoraram, indecisos, sob a sublime radiância de uma luz derua. Depois, Chester percebeu, desanimado, que Will estava olhando atentamente para a via, quefazia uma curva ao longe. — Vamos, Will, vamos para casa. — Chester tremeu ao olharnovamente a casa e as janelas, certo de que havia alguém ali. — Este lugar me dá arrepios.

— Não — respondeu Will, sem sequer olhar o amigo. — Vamos seguir mais um pouco arua. Ver onde vai dar. Depois podemos ir embora. Eu prometo... tudo bem? — disse ele, jáandando.

Chester ficou parado por um momento, olhando ansiosamente a porta de metal do outrolado da rua, pela qual eles chegaram. Depois, com um gemido resignado, seguiu Will pela fila decasas. Muitas tinham luzes nas janelas mas, pelo que eles podiam dizer, não havia sinal de seusocupantes.

Ao se aproximarem da última casa da fila, onde a rua fazia uma curva para a esquerda, Willparou por um momento, deliberando se continuaria ou encerraria o dia. Com a voz aguda dedesespero, Chester implorava que já era suficiente e que eles deviam voltar, até que ficaram

cientes de um som atrás deles.Começou como um farfalhar de folhas, mas rapidamente aumentou de intensidade até uma

cacofonia seca e agitada.— O que...! — exclamou Will.Lançando-se do telhado, um bando de aves do tamanho de pardais mergulhou na direção

deles, como traçantes balas vivas. Will e Chester se abaixaram por instinto, levantando os braçospara proteger o rosto enquanto as aves de um branco puro rodopiavam em volta deles.

Will começou a rir.— Passarinhos! São só passarinhos! — disse ele, enxotando o bando travesso, mas sem fazer

contato. Chester abaixou os braços e começou a rir também, meio nervoso, enquanto as avesdisparavam entre os dois. Em seguida, com a mesma rapidez com que apareceram, as avessubiram e desapareceram na curva do túnel. Will se endireitou e cambaleou alguns passos nadireção delas, mas ficou paralisado.

— Lojas! — anunciou ele com uma voz assustada.— Hein? — disse Chester.Sem nenhuma dúvida, de um lado da rua estendia-se um desfile de lojas de fachada em arco.

Mudos, os dois começaram a andar para elas.— Isso é irreal — murmurou Chester ao chegarem à primeira loja, com uma vitrine de

vidro artesanal que distorcia as mercadorias como lentes malfeitas.— Trajes Jacobson — Chester leu a placa da loja, depois olhou os rolos de tecido dispostos

no interior sinistro e iluminado de verde.— Um mercadinho — disse Will, ao avançarem.— E esta é uma espécie de loja de ferragens — observou Chester.Will olhou o teto arqueado na caverna acima deles.— Sabe de uma coisa, agora a gente deve estar quase debaixo da High Street.Olhando as vitrines e embebendo-se da estranheza das lojas antigas, eles continuaram

andando, impelidos pela curiosidade despreocupada, até que chegaram a um lugar onde o túnel sedividia em três. A confluência no meio parecia descer à terra numa inclinação acentuada.

— Tudo bem, então chega — disse Chester, resoluto. — Agora vamos embora. Eu não vouficar perdido aqui. — Todos os seus instintos gritavam que eles deviam voltar.

Ele estava saindo da calçada e pegando a rua de paralelepípedos quando houve uma batidaensurdecedora de ferro em pedra. Numa rapidez de cegar, quatro cavalos brancos aproximaram-se dele, as faíscas se espalhando dos cascos, arfando e puxando um coche preto e sinistro. Willnão teve tempo de reagir, porque naquele mesmo instante os dois foram arrancados do chão eiçados ao ar pelo pescoço.

Um único homem segurava os dois, que balançavam impotentes em suas mãos enormes enodosas.

— Intrusos! — gritou o homem, a voz feroz e grave ao erguer a dupla até seu rosto eexaminá-los com uma expressão de repugnância. Will tentou pegar a pá para bater nele, mas foiarrancada de sua mão.

O homem vestia um capacete ridiculamente pequeno e um uniforme azul-escuro de tecidogrosseiro que raspava quando ele se mexia. Ao lado de uma fila de botões opacos, Will pôde veruma estrela de cinco pontas de um material alaranjado preso no casaco. Seu captor enorme e

ameaçador claramente era uma espécie de policial.— Socorro — murmurou Chester para o amigo, a voz abandonando-o enquanto eles

lutavam para se livrar das garras do homem.— Estávamos esperando por vocês — trovejou o homem.— Como é? — Will o olhou com uma expressão vaga.— Seu pai disse que se uniriam a nós em breve.— Meu pai? Onde está o meu pai? O que vocês fizeram com ele? Me coloca no chão! —

Will tentou girar o corpo, chutando o homem.— Não adianta se contorcer. — O homem ergueu os dois meninos que lutavam ainda mais

no ar e os farejou. — Povo da Crosta. Repugnante!Will farejou também.— Você aí não cheira muito bem.O homem olhou para Will com um desprezo fulminante, depois ergueu Chester e o cheirou

também. De puro desespero, Chester tentou dar uma cabeçada no homem. Ele afastou o rostorapidamente, mas não antes de Chester ter arrancado seu capacete com um giro louco do braço.O objeto rodou da cabeça do homem, expondo o couro cabeludo pálido, coberto de tufos curtosde cabelo branco.

O homem sacudiu Chester violentamente pela gola e depois, com um rosnado horrível,bateu as cabeças dos meninos uma na outra. Embora os capacetes duros os tenham protegido dequalquer lesão quando se esbarraram com barulho, eles ficaram tão chocados com a ferocidadedo homem que de imediato abandonaram qualquer idéia de resistir.

— Basta! — gritou o homem, e os meninos atordoados ouviram um coro de risos amargosatrás, tornando-se cientes pela primeira vez de outros homens que os fitavam com os olhos clarose inamistosos.

— Pensam que podem descer aqui e invadir nossas casas? — rosnou o homem enquanto oslevava para a confluência no meio, onde a rua descia.

— Cárcere para os dois — grunhiu alguém atrás deles.Eles foram arrastados sem a menor cerimônia pelas ruas, que agora se enchia de gente

saindo de várias portas e becos para ver a infeliz dupla de estranhos. Meio arrastados e meiocambaleando, a cada vez que perdiam o passo, os garotos eram puxados para cima com selvageriapelo policial imenso. Era como se ele estivesse se exibindo para a platéia e dando um show decontrole completo da situação.

Em toda a confusão e pânico, Will e Chester olharam freneticamente em volta na esperançavã de encontrar uma oportunidade de escapar, ou que alguém viesse em seu socorro. Mas seusrostos perderam o sangue à medida que a esperança diminuía e eles perceberam a gravidade desua situação. Estavam sendo arrastados cada vez mais para o fundo das entranhas da terra e nãohavia absolutamente nada que pudessem fazer.

Antes que tivessem se dado conta, os dois foram conduzidos a uma curva no túnel e oespaço em volta se abriu. Ficaram atordoados por uma confusão estonteante de pontes,aquedutos e passarelas elevadas que cruzavam um emaranhado de ruas, avenidas e calçadas, todasladeadas por construções.

Arrastados pelo policial a uma velocidade impossível, eles eram observados por amontoados

de gente, as caras largas curiosas porém impassíveis. Mas nem todos os rostos eram como os deseu captor ou dos homens que os perseguiram na Highfield de cima, com a pele lívida e olhosdescoloridos. Se não fosse por seus trajes antiquados, alguns teriam parecido bem normais emuito facilmente passariam despercebidos em qualquer rua inglesa.

— Socorro, socorro! — gritava Chester inutilmente enquanto reassumia sem entusiasmosuas tentativas de se livrar do aperto do policial. Mas Will mal percebia isso. Sua atenção foracapturada por um sujeito alto e magro ao lado de um poste, cuja expressão dura era encimadapor uma gola totalmente branca e um casaco escuro e comprido que refletia a luz como se fossefeito de couro polido. Destacava-se notadamente das pessoas atarracadas perto dele, os ombrosmeio recurvados, como uma mesura muito tensa. Todo seu ser emanava maldade e seus olhosescuros não deixaram os de Will, que foi dominado por uma onda de pavor.

— Acho que temos um problema sério, Chester — disse ele, incapaz de afastar os olhos dohomem sinistro, cujos lábios se retorciam num sorriso sardônico.

Capítulo Vinte e Um

Will e Chester foram arrastados aos tropeços até um pequeno lance de escada, entrando em umaconstrução térrea aninhada em meio ao que, para Will, eram escritórios ou fábricas comuns. Ládentro, o policial os puxou abruptamente para os fazer parar e, girando-os, arrancou rudementeas mochilas das costas. Depois, literalmente atirou os dois meninos em um banco de carvalhoescorregadio, a superfície marcada aqui e ali por reentrâncias polidas, como se os anos demalfeitores tivessem esfregado toda sua extensão. Will e Chester arfaram quando suas costasbateram na parede e a respiração lhes foi arrebatada.

— Não se movam! — rugiu o policial, posicionando-se entre eles e a entrada. Esticando opescoço para frente, só o que Will podia ver além do homem eram as portas-janelas que davampara a rua, onde se formara uma multidão. Muitos se empurravam para poder ver, e algunscomeçaram a gritar coléricos e agitar os punhos ao terem um vislumbre de Will. Ele rapidamentese recostou e tentou ver os olhos de Chester, mas o amigo, completamente apavorado, encarava ochão.

Ao lado da porta, Will viu um quadro de avisos em que estava preso um grande número depapéis de bordas enegrecidas. A maior parte da escrita era pequena demais para ser decifrada deonde ele estava, mas ele conseguiu distinguir títulos manuscritos como Ordem ou Édito, seguidospor filas de números.

As paredes da delegacia eram pintadas de preto do chão ao corrimão, acima do qual eram deum branco amarelado, descascando em alguns lugares e manchadas de sujeira. O teto em si era deum amarelo nicotina desagradável com rachaduras fundas que iam para todo lado, como ummapa rodoviário de um país desconhecido. Na parede diretamente acima de Will, havia umquadro de um prédio que parecia ameaçador, com fendas à guisa de janelas e uma grade enormeatravessando a entrada principal. Will só conseguiu entender as palavras “Prisão de Newgate”escritas embaixo da imagem.

Do outro lado dos meninos havia um balcão comprido, em que o policial colocara asmochilas e a pá de Will, e além dele havia uma espécie de escritório em que três mesas eramcercadas por uma floresta de arquivos estreitos. Esta sala principal dava em várias salas menores

e, de uma delas, vinha o bater rápido do que poderia ser uma máquina de escrever.Quando Will estava olhando o canto mais distante da sala, onde uma profusão de canos de

bronze percorria as paredes como os caules de uma videira antiga, ouviu-se um guincho queterminou numa pancada forte. O barulho foi tão repentino que Chester se sentou reto e piscoucomo um coelhinho nervoso, arrancado de seu torpor angustiado.

Outro policial saiu de uma sala lateral e correu até os canos de bronze. Ali, ele olhou umpainel de mostradores antiquados, dos quais caía uma cascata de fios retorcidos que espiralavampara uma caixa de madeira. Depois, ele abriu uma portinhola em um dos canos, tirando dali umcilindro em formato de bala de revólver, do tamanho de um rolinho de pastel. Desenroscando atampa em uma ponta, extraiu um rolo de papel que estalou quando ele o esticou para ler.

— Os Styx estão a caminho — rosnou ele, andando para o balcão e abrindo um livro deregistros grande, sem olhar nem uma vez na direção dos garotos. Ele também tinha uma estrelaalaranjada presa no casaco e, embora fosse muito parecido com o outro policial, era mais novo ea cabeça era coberta de cabelos brancos bem curtinhos.

— Chester — sussurrou Will. Como o amigo não reagiu, ele esticou a mão para cutucá-lo.Num átimo, um cassetete chicoteou, batendo rapidamente nos nós de seus dedos.

— Desista! — ladrou o policial ao lado deles.— Ai! — Will pulou do banco, os punhos cerrados. — Desgraçado... — gritou ele, o corpo

tremendo, tentando se controlar. Chester estendeu a mão e pegou seu braço.— Fica quieto, Will!Will afastou a mão de Chester com raiva e encarou os olhos frios do policial.— Quero saber por que estamos sendo presos — exigiu ele.Por um momento terrível eles pensaram que a cara do policial ia explodir, tal o vermelho

vivo que adquiriu. Mas, depois, seus ombros enormes começaram a se erguer e ressoou um risobaixo e áspero, que ficava cada vez mais alto. Will olhou de lado para Chester, que fitava opolicial com alarme.

— BASTA! — A voz do homem atrás do balcão estalou feito um chicote quando eledesviou a cara do livro, o olhar caindo no policial risonho, que de imediato se calou. — VOCÊ!— O homem fez uma carranca para Will. — SENTE-SE! — Sua voz tinha tal autoridade queWill não hesitou nem por um segundo, assumindo seu lugar rapidamente ao lado de Chester. —Eu... — continuou o homem, estufando com arrogância o peito de barril — sou o PrimeiroOficial. Vocês já travaram conhecimento com o Segundo Oficial. — Ele assentiu na direção dopolicial parado ao lado deles.

O Primeiro Oficial olhou para o rolo de papel do tubo de mensagem.— Por meio desta, vocês são acusados de entrada ilegal e violação do Inciso Quarto do

Estatuto Doze, Subseção Dois — leu ele com a voz monótona.— Mas... — começou Will humildemente.O Primeiro Oficial o ignorou e leu.— Ademais, entraram sem permissão em uma propriedade com intenção de furtar,

contrariando o Estatuto Seis, Subseção Seis — continuou ele categoricamente. — Compreendemestas acusações?

Will e Chester trocaram um olhar confuso e Will estava prestes a responder quando oPrimeiro Oficial o interrompeu.

— Agora, o que temos aqui? — disse ele, abrindo as mochilas dos dois e esvaziando oconteúdo no balcão. Ele pegou os sanduíches em papel de alumínio que Will preparara e, sem seincomodar em abri-los, apenas os cheirou. — Ah, porco — acrescentou ele com uma sugestão desorriso. E pelo modo como lambeu os lábios brevemente e entortou a boca, Will sabia que tinhavisto o fim de seu lanche embrulhado.

Depois, o Primeiro Oficial voltou sua atenção para os outros itens, examinando-osmetodicamente. Demorou-se na bússola, mas ficou mais fascinado com o canivete suíço, puxandocada uma de suas oito lâminas e apertando a tesourinha com os dedos grossos antes definalmente baixá-lo. Rolando casualmente urna das bolas de barbante no balcão com uma dasmãos, ele usou a outra para abrir o mapa geológico dobrado que estava na mochila de Will,fazendo uma inspeção apressada. Por fim, inclinou-se e cheirou o mapa, franzindo a cara comnojo, antes de passar para a câmera.

— Hammm — murmurou ele pensativamente, virando-a em seus dedos de banana paraconsiderá-la de vários ângulos.

— É minha — disse Will.O Primeiro Oficial o ignorou totalmente e, baixando a câmera, pegou uma caneta e a

mergulhou em um tinteiro no balcão. Com a caneta posicionada sobre uma página do livroaberto, ele deu um pigarro.

— NOME! — berrou ele, lançando um olhar para Chester.— É, humm, Chester... Chester Rawls — gaguejou o menino.O Primeiro Oficial escreveu no livro de registro. O ruído da ponta da caneta na página era

o único som na sala e Will de repente se sentiu completamente desamparado, como se entrar noregistro colocasse em movimento um processo irreversível, cujo funcionamento estava muitoalém de sua compreensão.

— E VOCÊ? — ele rebateu para Will.— Ele me disse que meu pai está aqui — disse Will, apontando corajosamente o dedo para

o Segundo Oficial. — Onde ele está? Quero vê-lo agora!O Primeiro Oficial olhou o colega do outro lado da sala e depois se voltou para Will.— Não verá ninguém, a não ser que lhe seja ordenado. — Ele lançou outro olhar ao

Segundo Oficial e franziu o cenho com indisfarçada censura. O Segundo Oficial evitou seusolhos e se remexeu inquieto de um pé para outro.

— NOME!— Will Burrows — respondeu Will lentamente.O Primeiro Oficial pegou o rolo e o consultou de novo.— Não é o nome que tenho aqui — disse ele, sacudindo a cabeça e fixando os olhos de aço

em Will.— Não ligo para o que diz aí. Sei qual é o meu nome.Houve um silêncio ensurdecedor enquanto o Primeiro Oficial continuava a encarar Will.

Depois, ele fechou abruptamente o livro num baque, levantando uma nuvem de poeira nasuperfície do balcão.

— LEVE-OS PARA O CÁRCERE! — ladrou ele apopleticamente.Eles foram colocados de pé com um puxão e, no momento em que eram arrastados

rudemente por uma grande porta de carvalho no final da recepção, ouviram outro sibilar seguidode uma pancada surda, quando mais uma mensagem chegava pelo sistema de tubos.

O corredor de ligação para o Cárcere tinha uns vinte metros e era mal iluminado por umúnico globo na extremidade, abaixo do qual havia uma mesa e uma cadeira de madeira. Umaparede nua ocupava todo o lado direito e na oposta havia quatro portas de ferro fosco afundadasnos tijolos sólidos. Os meninos foram empurrados para a porta mais distante, em que havia onúmero quatro pintado em algarismos romanos.

O Segundo Oficial a abriu com sua chave, que girou silenciosa para dentro nas dobradiçaslubrificadas. Ele deu um passo para o lado. Olhando os garotos, inclinou a cabeça para a cela ecomo eles estacaram inseguros na soleira, perdeu a paciência e os empurrou com as mãosenormes, batendo a porta às costas deles

Dentro da cela, a batida da porta reverberou de forma nauseante nas paredes e seusestômagos reviraram enquanto a chave era girada na fechadura. Os amigos tentaram distinguir osdetalhes da cela escura e úmida pelo tato e Chester conseguiu derrubar um balde com estrondoao andar. Descobriram que havia uma saliência revestida de chumbo, com um metro de extensão,correndo pela parede diretamente de frente para a porta e, sem trocar uma palavra, os dois sesentaram. Sentiram a superfície áspera, fria e pegajosa sob as palmas das mãos enquanto os olhosaos poucos se adaptavam à única fonte de luz na cela, a fraca iluminação que entrava por umajanelinha de observação na porta. Por fim, Chester quebrou o silêncio, fungando alto.

— Cara, mas que cheiro é esse?— Não sei bem — disse Will enquanto também farejava. — Vômito? Suor? — Depois ele

cheirou novamente e declarou, com o ar de um especialista: — Ácido carbólico e... — Farejandomais uma vez, acrescentou: — Será enxofre?

— Hein? — murmurou o amigo.— Não, repolho! Repolho cozido!— Não ligo para o que é, isso fede — disse Chester, franzindo a cara. — Este lugar é muito

tosco. — Ele se virou para olhar o amigo no escuro. — Como vamos sair daqui, Will?Will trouxe os joelhos ao queixo e pousou os pés na beira da saliência. Cocou a panturrilha,

mas não disse nada. Estava furioso consigo mesmo e não queria que o amigo percebesse nada doque sentia. Talvez Chester, com sua abordagem cautelosa e seus alertas freqüentes, estivesse certoo tempo todo. Ele trincou os dentes e cerrou os punhos no escuro. Idiota, idiota, idiota! Os doisvacilaram como uma dupla de amadores. Ele se permitiu ficar empolgado demais. E como iaencontrar o pai agora?

— Tenho uma sensação supermedonha com tudo isso — continuou Chester, desolado,agora olhando o chão. — Nunca mais vamos ver a nossa casa de novo, não é?

— Olha, não se preocupe. Achamos um jeito de entrar aqui e tenho certeza de que vamosencontrar uma droga de saída — disse Will com confiança, numa tentativa de tranqüilizar oamigo, embora ele mesmo se sentisse tremendamente desconfortável com a situação atual.

Nenhum dos dois estava com muita vontade de falar e a sala se encheu do invariávelzumbido e o movimento apressado e errático de insetos que eles não viam.

Will acordou sobressaltado, tomando fôlego como se estivesse sem ar. Ficou surpreso ao

descobrir que na verdade cochilara meio sentado na saliência de chumbo. Quanto tempo dormiu?Viu, com os olhos baços, a sala escura. Chester estava de pé com as costas na parede, encarandoarregalado a porta da cela. Will quase podia sentir o medo que emanava dele. Automaticamente,seguiu o olhar de Chester para a janelinha de observação: emoldurada na abertura, estava a carado Segundo Oficial, olhando de banda mas, devido ao tamanho de sua cabeça, só os olhos e onariz eram visíveis.

Ouvindo a chave chiar na fechadura, Will observou os olhos do homem se estreitarem edepois a porta se abriu, revelando a silhueta do policial na soleira da porta, como um cartummonstruoso.

— VOCÊ! — disse ele a Will. — PARA FORA, AGORA!— Por quê? Para quê?— ANDANDO! — ladrou o policial.— Will? — chamou Chester com ansiedade.— Não se preocupe, Chester, vai ficar tudo bem — disse Will numa voz fraca ao se

levantar, as pernas com cãibras e rígidas da umidade. Ele as esticou ao sair desajeitado da cela eentrar no corredor. Depois, sem ser solicitado, começou a seguir para a porta principal doCárcere.

— Parado! — gritou o Segundo Oficial ao trancar a porta de novo. Depois, pegando obraço de Will num aperto doloroso, conduziu-o para fora do Cárcere, percorrendo uma sucessãode corredores escuros, os passos ecoando ocos nas paredes caiadas e lascadas e no piso de pedracrua. Por fim, viraram num canto e chegaram a uma escada estreita que levava a uma passagemcurta e sem saída. Tinha cheiro de umidade e terra, como um porão antigo.

Uma luz forte saía de uma porta aberta a meio caminho dali. Ao se aproximarem de lá, umpavor cresceu na boca do estômago de Will, ele foi empurrado para a sala bem iluminada por seuacompanhante e foi parado abruptamente. Tonto pela luz, o garoto semicerrou os olhos para vero ambiente.

Não havia nada na sala, a não ser uma estranha cadeira e uma mesa de metal, atrás da qualduas figuras altas estavam de pé, os corpos magros re-curvados de modo que as cabeças quase setocavam ao trocarem sussurros urgentes e conspiratórios. Will se esforçou para entender o quediziam, mas não parecia ser uma língua que ele reconhecesse, pontuada por uma série alarmantede ruídos agudos, irregulares e muito peculiares. Por mais que tentasse, não conseguiu distinguiruma só palavra; era completamente ininteligível para ele.

Assim, com o braço ainda firme na garra do policial, Will ficou de pé e esperou, o estômagodando nós de tensão nervosa enquanto seus olhos se acostumavam com a claridade. De vez emquando, os homens estranhos o olhavam fugazmente, mas Will não se atreveu a dizer nada napresença desta autoridade nova e sinistra.

Eles se vestiam de forma idêntica, com golas brancas e imaculadas no pescoço. Estas eramtão grandes que caíam pelos ombros de seus casacos de couro duro e compridos, que estalavamquando os homens gesticulavam entre eles. A pele de seus rostos esqueléticos, da cor de massa devidraceiro fresca, só servia para destacar os olhos negros. O cabelo, raspado alto nas têmporas,era esticado para trás, e assim eles pareciam usar solidéus brilhantes.

Inesperadamente, eles pararam o que faziam e se viraram para Will.

— Estes cavalheiros são os Styx — disse o Segundo Oficial atrás dele — e você responderáàs perguntas deles.

— Cadeira — disse o Styx da direita, os olhos negros fixos e resolutos em Will.Ele apontou a mão de dedos longos para a cadeira estranha que estava entre a mesa e Will.

Tomado por um pressentimento, Will não protestou quando o policial o sentou. Uma barra demetal ajustável se ergueu das costas da cadeira, com dois grampos acolchoados no alto paraprender a cabeça de seu ocupante. O policial ajustou a altura da barra, depois apertou osgrampos, pressionando-os firmemente nas têmporas de Will. Ele tentou virar a cabeça para olharo policial, mas as amarras o contiveram rapidamente. Enquanto era preso, Will percebeu que nãotinha alternativa nenhuma a não ser encarar os Styx, que estavam postados atrás da mesa comopadres avarentos.

O policial parou. Pelo canto do olho, Will o viu pegar alguma coisa de baixo da cadeira,depois ouviu velhas tiras de couro estalarem e fivelas grandes matraquearem quando os doispulsos foram presos a cada coxa correspondente.

— Para que isso? — Will ousou perguntar.— Para sua própria proteção — disse o policial que, agachando-se, prendia outras tiras nas

pernas de Will, pouco abaixo dos joelhos, passando-as pelas pernas da cadeira. Os tornozelosforam então presos de forma semelhante, o policial puxando as amarras com tanta força quemorderam impiedosamente e Will se retorceu de desconforto. Ele percebeu, com certo desânimo,que isto parecia divertir os Styx. Por fim, uma tira de uns dez centímetros de largura foi passadapor seu peito e pelos braços, e amarrada atrás da cadeira. O policial, em seguida, postou-se atentoaté que um dos Styx assentiu silenciosamente e ele saiu da sala, fechando a porta.

Sozinho com os dois, Will observou num silêncio apavorado enquanto um dos Styx pegavauma lamparina de aparência estranha e a colocava no meio da mesa, de frente para Will. Tinhauma base sólida e um braço curto e curvo encimado por um quebra-luz cônico e raso. Esteprotegia o que parecia ser uma lâmpada roxa; lembrou a Will de uma lâmpada ultravioleta antigaque vira no museu do pai. Uma caixinha preta, com mostradores e comutadores, foi colocada aolado dela e o Styx conectou a lamparina à caixa por meio de um cabo marrom retorcido. O dedopálido ligou um comutador e a caixa começou a zumbir suavemente.

Um Styx recuou da mesa enquanto o outro continuou curvado sobre a lamparina,manipulando os controles atrás do quebra-luz. Com um estalo alto, por um instante a lâmpadaassumiu uma luminosidade laranja e fraca, e depois pareceu se apagar de novo.

— Vai tirar minha foto? — perguntou Will num esforço malsucedido de fazer graça,enquanto tentava estabilizar o tremor em sua voz. Ignorando-o, o Styx girou o controle da caixapreta como se estivesse sintonizando um rádio.

De forma alarmante, uma pressão desagradável começou a subir por trás dos olhos de Will.Ele abriu a boca num grito mudo, tentando aliviar a estranha tensão nas têmporas, quando a salacomeçou a escurecer, como se o dispositivo estivesse literalmente sugando toda a luz que haviaali. Pensando que estava ficando cego, Will piscou várias vezes e abriu os olhos o máximo quepôde. Com a maior dificuldade, só conseguiu distinguir os dois Styx em silhueta na fraca luzrefletida na parede atrás deles.

Ele sentiu um zumbido pulsante, mas nem que sua vida dependesse disso ia conseguir

localizar sua origem. À medida que ficava mais intenso, a cabeça ficava decididamente estranha,como se cada osso e nervo estivesse vibrando. Era como se um avião sobrevoasse sua cabeçabaixo demais. A ressonância pareceu se transformar numa bola eriçada de energia no meio dacabeça. Agora ele realmente começou a entrar em pânico mas, sem conseguir mover um músculoque fosse, Will nada pôde fazer para resistir.

Enquanto os Styx manipulavam os controles, a bola pareceu mudar, afundando lentamentepor seu corpo, indo até o peito e circundando o coração, tirando-lhe o fôlego e provocando urnatosse involuntária. Depois entrava e saía, às vezes parando um pouco e adejando a poucadistância atrás dele. Era como se um ser vivo estivesse se alojando, procurando por alguma coisa.Ela mudou outra vez e agora oscilava metade dentro, metade fora de seu corpo, na altura danuca.

— O que está havendo? — perguntou Will, tentando reunir alguma coragem, mas nãohouve resposta das figuras cada vez mais escuras. — Não estão me assustando com isso, sabiam?

Eles continuaram em silêncio.Will fechou os olhos por um segundo, mas quando os abriu novamente, não conseguiu

sequer distinguir os contornos dos Styx na total escuridão que confrontava. Ele começou a lutarcom suas amarras.

— A ausência de luz o incomoda? — perguntou o Styx da esquerda.— Não, por que incomodaria?— Qual é o seu nome? — As palavras entraram na cabeça de Will como uma faca saída das

sombras.— Eu já disse, é Will. Will Burrows.— Seu nome verdadeiro! — Novamente a voz provocou um estremecimento de dor em

Will, como se cada palavra criasse choques elétricos em suas têmporas.— Não sei o que quer dizer — respondeu ele através dos dentes trincados.A bola de energia começou a vagar para o meio de seu crânio, o zumbido agora se tornando

mais intenso, a pulsação envolvendo-o em um manto espesso de pressão.— Você está com o homem chamado Burrows?A cabeça de Will girava e ondas de dor passavam por ele. Seus pés e mãos formigavam de

um jeito desagradável, com alfinetadas e agulhadas intensas. Aos poucos, esta sensação horrívelfoi envolvendo seu corpo.

— Ele é meu pai! — gritou ele.— Qual é seu propósito aqui? — Agora a voz clara e apocopada estava mais próxima.— O que vocês fizeram com ele? — perguntou Will numa voz sufocada, engolindo o jato

de saliva que inundava a boca. Sentiu que ia vomitar a qualquer momento.— Onde está a sua mãe? — A voz cadenciada e insistente agora parecia emanar da bola em

sua cabeça. Era como se os dois Styx tivessem entrado em seu crânio e procurassem febris porsua mente, como ladrões saqueando gavetas e armários em busca de objetos valiosos.

— Qual é o seu propósito? — repetiram eles.Will tentou se livrar das amarras, mas percebeu que não conseguia mais sentir o próprio

corpo. Na realidade, parecia que tinha sido reduzido apenas a uma cabeça flutuante, à derivanuma névoa de escuridão, e ele perdeu completamente o senso de orientação.

— NOME? PROPÓSITO? — As perguntas chegaram guturais e rápidas enquanto Will

sentiu toda a energia que lhe restava se esvair dele. Depois, a voz incessante ficou mais fraca,como se Will estivesse se afastando. De uma grande distância, as palavras eram gritadas atrás delee cada palavra, quando finalmente chegava, criava alfinetadas de luz à margem de sua visão,alfinetadas que deslizavam e se agitavam até que a escuridão diante dele se encheu de um marfervilhante de pontos brancos, tão claros e tão intensos que seus olhos doeram. E, o tempo todo,os sussurros ásperos moviam-se por ele e a sala girava e se arremessava. Outra onda funda denáusea o dominou. Branco, branco, um branco ofuscante, enchendo a cabeça até parecer que elaia explodir.

— Eu vou vomitar... por favor... eu vou... me sinto fraco... por favor. — E a luz do espaçobranco chamuscou dentro dele e ele se sentiu cada vez menor, até que era uma manchinhaminúscula no imenso espaço branco. Depois, a luz começou a recuar e a sensação de ardência foidiminuindo, então tudo ficou negro e silencioso, como se o próprio universo tivessedesaparecido.

Ele voltou a si quando o Segundo Oficial, segurando-o sob um dos braços, girou a chave naporta da cela. Will estava trêmulo e fraco. A frente de suas roupas estava suja de vômito e a bocaestava seca, com um travo metálico acre que lhe dava náuseas. A cabeça martelava de dor e, aotentar olhar para cima, foi como se parte de sua visão tivesse desaparecido. Não conseguiureprimir um gemido quando a porta foi aberta.

— Não está tão presunçoso agora, hein? — disse o policial, soltando o braço de Will. Eletentou andar, mas as pernas pareciam gelatina. — Não depois de sua primeira prova da LuzNegra zombou o policial.

Depois de alguns passos, as pernas de Will cederam e ele tombou de joelhos. Chesterapressou-se até ele, em pânico ao ver o estado do amigo.

— Will, Will, o que fizeram com você? — Chester estava frenético ao ajudá-lo a subir nasaliência. — Você ficou fora por horas.

— Só cansado... — Will conseguiu murmurar ao desabar na saliência e se enrascar feito umabola, grato pela frieza do revestimento de chumbo em sua cabeça dolorida. Ele fechou os olhos...só queria dormir... mas a cabeça ainda girava e ondas de náusea irrompiam por seu corpo.

— VOCÊ! — berrou o policial. Chester deu um pulo ao lado de Will e se virou para opolicial, que acenou com o indicador grosso.

— Sua vez.Chester olhou para Will, que agora estava inconsciente.— Ah, não.— AGORA! — ordenou o policial. — Não me faça pedir novamente.Chester foi relutante para o corredor. Depois de trancar a porta, o policial o pegou pelo

braço e o fez andar.— O que é uma Luz Negra? — disse Chester, os olhos vidrados de medo.— Só perguntas. — O policial sorriu. — Não há nada com que se preocupar.— Mas eu não sei de nada...

Will foi despertado pelo som de uma abertura sendo puxada na base da porta.

— Comida — anunciou, friamente, uma voz.Ele estava faminto. Ergueu-se sobre um braço só, o corpo doendo tremendamente, como se

ele estivesse gripado. Cada osso e cada músculo reclamavam quando ele tentava se mexer.— Ah, meu Deus — gemeu ele, e depois de repente pensou em Chester. A janelinha aberta

da comida iluminava a cela um pouco mais do que o habitual e, ao olhar em volta, ali no chão,abaixo da saliência revestida de chumbo, estava seu amigo, deitado em posição fetal. A respiraçãode Chester era superficial e seu rosto, lívido e febril.

Will cambaleou e, com dificuldade, levou as duas bandejas para a saliência. Examinou oconteúdo brevemente. Havia duas tigelas com alguma coisa e um líquido em canecas amassadasde estanho. Tudo parecia terrivelmente insosso, mas pelo menos era quente e o cheiro não era tãoruim.

— Chester? — disse ele, agachando-se ao lado do amigo. Will se sentia péssimo, ele, e sóele, era o responsável por tudo o que vinha acontecendo aos dois. Começou a sacudir Chesterdelicadamente pelo ombro. — Ei, está tudo bem?

— Argh... o q...? — gemeu o garoto, e tentou levantar a cabeça. Will pôde ver que o narizdele estivera sangrando; o sangue tinha coagulado e sujava seu rosto.

— Comida, Chester. Vamos, vai se sentir melhor depois que comer alguma coisa.Will colocou Chester sentado, apoiando suas costas na parede. Ele umedeceu a manga com

o líquido de um dos copos e começou a tirar o sangue do rosto de Chester.— Me deixa em paz! — objetou Chester fraquinho, tentando empurrá-lo.— Bom, isso é um começo. Toma, come alguma coisa — disse Will, passando uma tigela a

Chester, que de imediato a afastou.— Não estou com fome. Me sinto péssimo.— Pelo menos beba um pouco disso. Acho que é uma espécie de chá de ervas. — Will

passou a bebida a Chester, que fechou as mãos em concha na caneca quente. — O que elesperguntaram a você? — murmurou Will comendo um bocado de papa cinzenta.

— Tudo. Nome... endereço... seu nome... todas essas coisas. Não consigo me lembrar damaior parte delas. Acho que desmaiei... na verdade pensei que ia morrer — disse Chester numavoz monocórdia, encarando à meia distância.

Will começou a rir baixinho. Embora parecesse estranho, de algum modo parecia encontraralívio para o próprio sofrimento ao ouvir as queixas do amigo.

— Qual é a graça? — perguntou Chester, a voz ultrajada. — Não é nada engraçado.— Não. — Will deu uma risadinha. — Eu sei. Desculpe. Toma, experimente um pouco

disso. Na verdade é muito bom.Chester estremeceu de nojo para a lama cinzenta na tigela. Entretanto, pegou a colher e a

colocou na papa, um tanto desconfiado no começo. Depois, a cheirou.— Não tem um cheiro tão ruim — disse ele, tentando se convencer.— Só coma essa porcaria, está bem? — disse Will, enchendo a boca de novo. Ele sentiu as

forças começarem a voltar a cada bocado. — Continuo achando que disse a eles alguma coisasobre a mamãe e a Rebecca, mas não tenho certeza se não foi um sonho. — Ele engoliu, depoisficou em silêncio por vários segundos, mordendo o interior da boca enquanto algo começava aperturbá-lo. — Só espero que não tenha metido as duas em nenhuma enrascada também. — Ele

pegou outra colherada e, ainda mastigando, continuou a falar ao lhe ocorrer outra lembrança. —E o diário do papai... eu o fico vendo em minha mente, com toda clareza... como se eu estivesselá, observando, enquanto aqueles dedos brancos e compridos o abriam e viravam as páginas, umapor uma. Mas não pode ter acontecido, pode? Está tudo tão confuso. E você?

Chester se remexeu um pouco.— Não sei. Posso ter falado do porão da sua casa... E de sua família... sua mãe... e Rebecca...

sim... e posso ter dito alguma coisa sobre ela... mas... ah, meu Deus, sei lá... é muito confuso. Écomo se eu não conseguisse me lembrar se eu disse, ou se pensei. — Ele baixou a caneca eaninhou a cabeça nas mãos enquanto Will se recostava, olhando o teto escuro.

— Que horas serão — ele suspirou — lá em cima?

Pelo que deve ter sido a semana seguinte, houve outros interrogatórios com os Styx, a Luz Negradeixando os mesmos efeitos colaterais medonhos de antes: exaustão, uma incerteza tonta sobreexatamente o que tinham contado aos torturadores e as apavorantes crises de náusea que seseguiam.

Então, chegou o dia em que os garotos foram deixados em paz. Embora não pudessem tercerteza, os dois achavam que, àquela altura, os Styx deviam ter conseguido tudo o que queriam, eeles esperavam fervorosamente que as sessões enfim tivessem acabado.

E, assim, as horas passaram e os dois dormiam espasmodicamente, as refeições iam evinham, e eles dividiam o tempo entre andar pelo chão, quando se sentiam fortes para isso, edescansar na saliência, e até de vez em quando gritar na porta, mas sem proveito algum. E na luzconstante e imutável, eles perderam o senso de tempo, e do dia ou da noite.

Para além das paredes da cela, os tortuosos processos estavam em andamento: investigações,reuniões e tagarelices decidiam seu destino, tudo na linguagem secreta e áspera dos Styx.

Ignorando isso, os garotos se esforçaram ao máximo para manter o moral alto. Aossussurros, conversaram muito sobre como podiam escapar e se Rebecca acabaria juntando aspeças e levando as autoridades ao túnel do porão. Como se xingaram por não terem deixado umbilhete! Ou talvez o pai de Will fosse a resposta a seus problemas — será que ele de algum modoos tiraria dali? E que dia da semana era? E, mais importante, como não se lavavam há algumtempo, suas roupas deviam ter adquirido um aroma decididamente pavoroso e, sendo este o caso,por que eles não achavam que estavam fedendo?

Foi durante um debate particularmente animado, sobre quem eram estas pessoas e de ondeelas vinham, que a janelinha de inspeção se abriu e o Segundo Oficial olhou de banda. Os doisimediatamente silenciaram enquanto a porta foi destrancada e a figura familiar e horrendaeclipsou toda a luz do corredor. Qual deles seria desta vez?

— Visitas.Eles se olharam, sem acreditar.— Visitas? Para nós? — perguntou Chester, incrédulo.O policial sacudiu a cabeça enorme, depois olhou para Will.— Você.— E o Ches...?— Você, venha. AGORA! — gritou o policial.

— Não se preocupe, Chester. Não vou a lugar nenhum sem você — disse Will, comconfiança, ao amigo, que se sentou com um sorriso magoado e assentiu silenciosamente.

Will se levantou e tropeçou para fora da cela. Chester observou a porta se fechar. Vendo-semais uma vez sozinho, ele olhou as mãos, rudes e entranhadas de terra, e ansiou pela casa e porconforto. Sentia a pontada cada vez mais freqüente de frustração e desamparo, e seus olhos seencheram de lágrimas quentes. Não, ele não ia chorar, não daria essa satisfação a eles. Sabia queWill ia conseguir alguma coisa e que ele estaria pronto quando a hora chegasse.

— Vamos lá, idiota — disse ele baixinho a si mesmo, esfregando a manga da camisa nosolhos. — Baixe aí e me faça vinte — ele imitou a voz do treinador de futebol enquanto se jogavano chão e começava a fazer flexões, contando em voz alta.

Will foi levado a uma sala caiada com um piso polido e algumas cadeiras arrumadas emvolta de uma grande mesa de carvalho. Sentadas atrás dela havia duas figuras, meio turvas porquesua visão ainda se adaptava depois da escuridão do Cárcere. Ele esfregou os olhos e se olhou. Suacamisa estava suja e, pior, salpicada de vestígios secos de vômito. Ele a esfregou fracamente antesde sua atenção ser atraída a uma abertura ou janela estranha na parede à esquerda. A superfíciedo vidro, se é que era vidro, tinha uma profundidade peculiar preta-azulada. E esta superfíciefosca e mosqueada não parecia refletir a luz dos globos na sala.

Por algum motivo, Will não conseguia tirar os olhos da superfície. Sentiu uma pontadasúbita de reconhecimento. Foi inundado por uma sensação nova e no entanto conhecida: elesestavam ali atrás. Eles estavam observando tudo. E, quanto mais ele olhava, mais a escuridão oenchia, como acontecera com a Luz Negra. Sentiu um súbito espasmo na cabeça. Inclinou-se parafrente como se estivesse prestes a desmaiar; a mão esquerda tateou desvairada e encontrou oencosto da cadeira diante dele. O policial, vendo isso, pegou-o pelo outro braço e o ajudou a sesentar, de frente para os dois estranhos.

Will respirou fundo algumas vezes e a vertigem passou. Ele olhou quando alguém tossiu.Diante dele, sentava-se um homem grandalhão e, ao lado, mas um pouco para trás, um jovem. Ohomem era muito parecido com todos os outros que Will havia visto — podia muito bem ser oSegundo Oficial à paisana. Olhava fixamente para Will com um desdém mal disfarçado. Will sesentia extenuado demais para se importar com aquilo e retribuiu num torpor o olhar do estranho.

Depois, enquanto as pernas da cadeira raspavam no chão fazendo barulho e o garoto seaproximava da mesa, Will concentrou sua atenção nele. O menino olhava para Will comadmiração. Tinha a cara franca e simpática, o primeiro semblante amistoso que ele via aquiembaixo desde que fora preso. Will estimava que o menino devia ser alguns anos mais novo doque ele. O cabelo era quase branco e cortado baixo, e os suaves olhos azuis brilhavam de malícia.Enquanto os cantos da sua boca se curvavam num sorriso, Will pensou que ele parecia meioconhecido. Tentou desesperadamente se lembrar de onde o vira antes, mas sua mente ainda estavatoldada e obscura demais. Semicerrou os olhos para o menino e tentou novamente deduzir deonde o conhecia, mas foi em vão. Era como se ele tivesse sido atirado em um poço escuro,tentando encontrar alguma preciosidade com apenas o tato lhe servindo de guia. Sua cabeçacomeçou a girar, ele cerrou os olhos e os manteve assim.

Ouviu o homem dar um pigarro.— Eu sou o sr. Jerome — disse ele num tom de voz monótono e superficial. Pela voz, era

claro que a situação o contrariava e ele estava muito ressentido por estar ali. — Este é meu filho...— Cal — Will ouviu o menino dizer.— Caleb — corrigiu o homem rapidamente.Houve uma pausa longa e desagradável, mas Will ainda não abrira os olhos. Sentia-se

isolado e seguro com eles fechados. Era estranhamente reconfortante.O sr. Jerome olhou de mau humor o Segundo Oficial.— Isto é inútil — grunhiu ele. — É uma maldita perda de tempo.O policial se inclinou para a frente e espicaçou bruscamente o ombro de Will.— Sente-se direito e seja civilizado com sua família. Demonstre algum respeito.Sobressaltado, os olhos de Will se abriram de repente. Ele se virou na cadeira e olhou

surpreso o policial.— O quê?— Eu disse para ser civilizado — ele assentiu para o sr. Jerome — com sua família, com os

seus.Will voltou a olhar o homem e o menino.— Qual é a de vocês?O sr. Jerome deu de ombros e olhou para baixo, e o menino franziu a testa, o olhar

passando entre Will, o policial e o pai, como se não entendes-se o que estava acontecendo.— Chester tem razão, vocês todos são malucos aqui embaixo! — exclamou Will, e se

encolheu quando o Segundo Oficial deu um passo para ele com a mão erguida. Mas a situação seacalmou quando o menino falou.

— Deve se lembrar disso — disse ele, cavando em uma velha bolsa de lona no colo. Todosos olhos estavam nele quando, finalmente, pegou um pequeno objeto e colocou na mesa diantede Will. Era um brinquedo entalhado em madeira, um rato ou camundongo. A cara pintada debranco estava lascada e desbotada e a pelagem estava puída, e no entanto os olhos brilhavamsinistramente. Cal olhou cheio de expectativa para Will.

— A vovó disse que era o seu preferido — continuou ele, porque Will demorava a reagir.— Deram a mim depois que você foi embora.

— O que você está...? — perguntou Will, perplexo. — Depois que eu fui embora?— Não se lembra de nada? — perguntou Cal. Ele olhou com deferência para o pai, que

agora estava recostado na cadeira, de braços cruzados.Will estendeu a mão e pegou o brinquedinho para examiná-lo mais de perto. Ao passar a

ponta dos dedos no dorso, percebeu que os olhos se fechavam, uma persiana minúsculaequilibrada na cabeça para extinguir a luz. Ele percebeu que devia haver um globo em miniaturadentro da cabeça do objeto, que lhe conferia luz através das contas de vidro, os olhos do bicho.

— Está dormindo — disse Cal, depois acrescentou: — você tinha esse mesmo brinquedo...No seu berço.

Will o largou na mesa repentinamente, como se ele o tivesse mordido.— Do que você está falando? — disse ele ao menino.Houve um momento de incerteza por parte de todos e mais uma vez um silêncio enervante

caiu na sala, quebrado somente pelo Segundo Oficial, que começou a murmurar baixinhoconsigo mesmo. Cal abriu a boca como se fosse falar, mas pareceu ter dificuldade para encontraras palavras. Will ficou sentado olhando o bicho de brinquedo, até que Cal o tirou da mesa e o

guardou. Depois, olhando para Will, ele franziu o cenho.— Seu nome é Seth — disse ele, quase ressentido. — Você é meu irmão.— Rá! -—Will deu uma risada seca na cara de Cal e depois, à medida que toda a amargura

pelo tratamento que recebeu nas mãos dos Styx fervia dentro dele, sacudiu a cabeça e falouasperamente. — Ah, tá. Como quiser. — Will já estava cansado dessa charada. Sabia quem erasua família e não era a dupla de piadistas diante dele.

— É verdade. Sua mãe era a minha mãe. Ela tentou fugir com nós dois. Ela levou você paraa Crosta, mas me deixou com a vovó e o papai.

Will revirou os olhos e girou para encarar o Segundo Oficial.— Muito esperto. Bom truque, mas não vou cair nessa.O policial franziu os lábios, mas não disse nada.— Você foi recolhido por uma família de Pessoas da Crosta... — disse Cal, elevando a voz.— Claro, e não estou disposto a ser recolhido por uma família de doidos delirantes aqui

embaixo! — respondeu Will com raiva, começando realmente a perder as estribeiras.— Não desperdice seu fôlego, Caleb — disse o sr. Jerome, colocando a mão no ombro do

filho. Mas Cal a afastou e continuou, a voz começando a falhar de desespero.— Eles não são a sua família verdadeira. Nós somos. Nós somos a sua carne e o seu sangue.Will encarou o sr. Jerome, cujo rosto rubro só transparecia aversão. Depois, olhou

novamente para Cal, que agora se recostara desesperado, de cabeça baixa. Mas Will não ficouimpressionado. Era alguma piada doentia. Será que eles realmente pensam que sou idiota para serenganado por isso?, disse ele a si mesmo.

Abotoando o paletó, o sr. Jerome se levantou rapidamente.— Isto não vai dar em nada — disse ele.E Cal, levantando-se com ele, falou baixinho.— A vovó sempre disse que você ia voltar.— Não tenho avô nem avó nenhuma. Estão todos mortos! — gritou Will, pulando da

cadeira, os olhos agora ardendo de raiva e transbordando de lágrimas. Ele disparou para a janelade vidro na parede e apertou a cara na superfície.

— Muito espertos! — gritou ele para o vidro. — Quase me pegaram! — Ele protegeu osolhos da luz da sala numa tentativa de ver do outro lado do vidro, mas não havia nada, só umaescuridão inexorável. O Segundo Oficial pegou seu braço e o afastou. Will não ofereceuresistência, por ora, a briga tinha se apagado nele.

Capítulo Vinte e Dois

Rebecca estava deitada na cama, encarando o teto. Tinha acabado de tomar um banho quente eestava com a camisola verde-limão, o cabelo no alto em um turbante de toalha. Cantarolavasuavemente junto com a emissora de música clássica no rádio de sua mesa-de-cabeceira enquantomeditava sobre os acontecimentos dos últimos três dias.

Tudo começou quando ela foi acordada tarde da noite por uma batida frenética e acampainha na porta da frente. Teve que se levantar para atender porque a sra. Burrows, sob oefeito dos fortes comprimidos que lhe foram receitados recentemente, estava morta para omundo. Nem uma banda de música de bêbados teria conseguido acordá-la, mesmo que tentasse.

Ao abrir a porta, Rebecca quase foi derrubada pelo pai de Chester, que irrompeu halladentro e de imediato começou a bombardeada de perguntas.

— O Chester ainda está aqui? Ele não voltou para casa. Tentamos telefonar, mas ninguématendeu. — Seu rosto era lívido e ele vestia uma capa de chuva bege e amarrotada, com a golavirada para dentro, como se a tivesse colocado com muita pressa. — Achamos que ele deve terdecidido ficar. Ele está aqui, não está?

— Eu não... — ela começou a dizer, enquanto por acaso olhava a cozinha e percebia que oprato de comida que deixara do lado de fora para Will não fora tocado.

— Ele disse que estava ajudando Will em um projeto, mas... ele está aqui? Onde está o seuirmão... pode chamá-lo, por favor? — As palavras do sr. Rawls tropeçavam enquanto ele olhavaansioso pelo corredor e no segundo andar.

Deixando o homem se desgastando sozinho, Rebecca correu até o quarto de Will. Não seincomodou em bater; já sabia o que encontraria. Ela abriu a porta e acendeu a luz. Sem nenhumadúvida Will não estava lá e sua cama não fora usada. Ela apagou a luz e fechou a porta ao sair,voltando ao térreo e ao sr. Rawls.

— Não, nenhum sinal dele — disse ela. — Acho que Chester esteve aqui, ontem à noite; masnão sei aonde eles possam ter ido. Talvez...

Ao ouvir isso, o sr. Rawls ficou quase incoerente, balbuciando alguma coisa sobre verificaros refúgios de sempre e envolver a polícia enquanto partia para a porta da frente, deixando-a

aberta depois de sair.Rebecca continuou no corredor, mordendo o lábio. Estava furiosa consigo mesma por não

ter sido mais atenta. Com todo o comportamento secreto dele e o novo amigo escondido noporão, Will andou aprontando alguma coisa durante semanas — não havia dúvida nenhumadisso. Mas o quê?

Ela bateu na porta da sala de estar e, sem obter resposta, entrou. A sala estava escura esufocante, e ela ouviu um ronco incessante.

— Mãe — disse ela com uma insistência delicada.— Urff?— Mãe — disse ela mais alto, sacudindo o ombro da sra. Burrows.— Quê? Nnnããã... Unff?— Vamos, mãe, acorde, é importante.— Nããão, — disse uma voz sonolenta e relutante.— Acorde. Will está desaparecido! — disse Rebecca com insistência.— Me... deixa... em... paz... — grunhiu a sra. Burrows com um bocejo indolente, girando o

braço para enxotar Rebecca.— Sabe aonde ele foi? E Chester...— Ah, vá embooooraaaaa! — gritou a mãe, virando de lado na poltrona e puxando a velha

manta de viagem para a cabeça. O ronco superficial reapareceu quando ela retornou ao estado dehibernação. Rebecca suspirou de frustração, parada ao lado do corpo amorfo.

Ela foi à cozinha e se sentou. Com o número do detetive na mão e o telefone sem fiopousado na mesa diante dela, Rebecca pensou por um longo tempo no que ia fazer. Foi só aoamanhecer que realmente deu o telefonema e, como caiu na secretária eletrônica, deixou umrecado. Ela voltou ao quarto e tentou ler um livro enquanto esperava por uma resposta.

A polícia apareceu precisamente às 7:06. Depois disso, os acontecimentos ganharam vidaprópria. A casa se encheu de policiais uniformizados dando buscas em cada canto, vasculhandocada armário e cômoda. Com luvas de látex, eles começaram pelo quarto de Will e seguiram parao resto da casa, terminando no porão, mas aparentemente não descobriram nada de grandeinteresse. Ela quase se divertiu ao ver que eles estavam pegando peças de roupa de Will no cestode roupa suja do patamar da escada e selando cada item meticulosamente em seu saco de politenopara levar para fora. Ela se perguntou o que as camisetas sujas de Will poderiam dizer a eles.

No começo, Rebecca se ocupou arrumando a bagunça que os policiais deixavam, usando aatividade como desculpa para andar pela casa e ver se podia pegar qualquer coisa das váriasconversas que estavam acontecendo. Depois, como ninguém parecia estar dando a mínima paraela, Rebecca abandonou a pretensão de arrumar e só andou por onde queria, passando a maiorparte do tempo no corredor junto à sala de estar, onde o detetive e a policial interrogavam a sra.Burrows. Pelo que Rebecca conseguiu entender, ela parecia estar ao mesmo tempo desinteressadae perturbada, e não lançou nenhuma luz no paradeiro atual de Will.

Os policiais por fim retiraram-se para a frente da casa, onde ficaram agrupados, fumando erindo. Logo depois, o detetive e a policial saíram da sala de estar e Rebecca os seguiu até a porta.Enquanto o detetive andava até a fila de viaturas estacionadas, ela não conseguiu deixar de ouviras palavras dele.

— Essa aí está a poucos volts de uma carga total — disse ele à colega.

— É muito triste — disse a policial.— Sabe de uma coisa... — disse o detetive, parando para olhar a casa —, perder um

membro da família já é uma infelicidade... — A colega assentiu.— ...mas perder dois, é problemático — continuou o detetive. — Muito problemático, na

minha opinião.A policial assentiu de novo com um sorriso triste.— É melhor darmos uma olhada no terreno baldio, só por precaução. — Rebecca o escutou

dizer antes de ele finalmente ficar fora do alcance de seus ouvidos.

No dia seguinte, a polícia mandou um carro buscar as duas e a sra. Burrows foi interrogada porvárias horas, enquanto Rebecca foi solicitadas esperar em outra sala com uma moça da assistênciasocial.

Agora, três dias depois, a cabeça de Rebecca repassava a cadeia de eventos. Fechando os olhos, elase lembrou das caras inexpressivas na delegacia e as conversas que ouviu.

— Isso não vai dar certo — disse ela, olhando o relógio e vendo a hora. Ela se levantou dacama, tirou a toalha da cabeça e se vestiu rapidamente.

No térreo, a sra. Burrows estava abrigada na poltrona, enrascada e totalmente vestida sob amanta de viagem que a envolvia como um casulo de lã xadrez. A única luz na sala vinha de umprograma emudecido da Open University, a luz azul e fria pulsando intermitente e fazendo comque as sombras pulassem e se movessem, conferindo uma espécie de animação à mobília e aosobjetos. Ela dormia profundamente quando um barulho a acordou. Um murmúrio grave, comode um vento forte passando pelos galhos das árvores no jardim. Ela abriu um pouquinho osolhos. No canto mais distante da sala, pelas cortinas entreabertas das janelas, distinguiu umaforma grande e vaga. Por um momento, perguntou-se se estava sonhando, enquanto a sombramudava e se mexia sob a luz da televisão. Ela se esforçou para ver o que era. Perguntou-se sepodia ser um invasor. O que devia fazer? Fingir estar dormindo? Ou ficar deitada imóvel para que o invasornão a incomodasse?

Ela prendeu a respiração, tentando controlar o pânico crescente. Os segundos pareceramhoras enquanto a forma continuava estacionaria. Ela começou a pensar que, afinal, talvez fosse sóuma sombra inocente. Um truque da luz e uma imaginação hiperativa. Ela soltou o ar dospulmões, abrindo totalmente os olhos.

De repente houve uma fungada e, para horror da sra. Burrows, a sombra se dividiu em doisborrões distintos e espectrais que se aproximavam dela numa velocidade ofuscante. Com ossentidos girando de choque e terror, uma voz calma e controlada em sua cabeça lhe disse comabsoluta convicção, “ELES NÃO SÃO FANTASMAS”.

Num átimo, as figuras estavam em cima dela. Ela tentou gritar, mas não saiu nenhum som.Um tecido rude roçou seu rosto enquanto ela sentia um bolor peculiar, parecido com roupasmofadas. Depois, uma mão poderosa a golpeou e ela se enroscou de dor, sem fôlego, lutandopara respirar, até que, como um recém-nascido, ela tossiu e soltou um grito terrível.

Foi incapaz de resistir ao ser retirada da poltrona e ser suspensa no hall. Agora, berrandocomo uma banshee, dando pinotes e lutando, ela viu outra figura assomando na porta do porão euma mão úmida e enorme se fechou em sua boca, abafando seus gritos.

Quem eram eles? O que procuravam? Depois uma idéia terrível passou por sua mente. Sua TV eo vídeo preciosos! Era isso! Era o que eles queriam! Mas era muita injustiça. Era simplesmentedemais para suportar, acima de todo o resto que teve que agüentar. O mundo ficou vermelhopara a sra. Burrows.

Tirando energia do nada, ela reuniu a força sobre-humana do desespero. Conseguiu libertaruma das pernas e de imediato chutou. Isto provocou um frenesi de atividade enquanto seusatacantes tentavam agarrar as pernas, mas ela chutou repetidas vezes enquanto se retorcia. A carade um dos atacantes apareceu em seu alcance; ela viu a oportunidade e se lançou para frente,mordendo com a maior força que pôde. Descobriu que tinha atingido o nariz e sacudiu a cabeçacomo um terrier abocanhando um rato.

Houve um gemido de gelar os ossos e o aperto nela relaxou por um momento. Foi osuficiente para a sra. Burrows. Enquanto a figura a soltava e caía por cima de outra, ela pôdecolocar os pés no chão e agitou os braços para trás como um esquiador descendo a colina. Comum berro, fugiu deles e entrou na cozinha, deixando-os arfando só com a manta que a enrolava,como o rabo descartado de uma lagartixa em fuga.

Num piscar de olhos, a sra. Burrows estava de volta. Ela se atirou no meio das três formasgrosseiras. E foi o pandemônio.

Rebecca, no alto da escada, estava perfeitamente posicionada para ver tudo o que sedesenrolava. Na meia-luz do corredor abaixo, uma coisa metálica brilhou para frente e para trás, ede um lado a outro, e ela viu uma cara louca. A cara da sra. Burrows. Rebecca percebeu que elamanejava uma frigideira, girando-a para os lados como um cutelo. Era a frigideira nova, com baseextralarga e a superfície especial antiaderente.

As formas vagas renovavam o ataque sem parar, mas a sra. Burrows ficou firme, repelindo-os com golpes múltiplos, a frigideira soando satisfatoriamente ao entrar em contato com umcrânio aqui e um cotovelo ali. Em toda a confusão, Rebecca pôde ver as manchas de movimentoenquanto a saraivada de golpes continuava a uma velocidade inacreditável, criando um coro degrunhidos e gemidos.

— MORTE! — gritava a sra. Burrows. — MORRAM, MORRAM!Uma das figuras vagas estendeu a mão numa tentativa de pegar a frigideira da sra. Burrows,

que girava num oito, e acabou espancada por um golpe de estremecer os ossos. Ele soltou umuivo grave, como de um cão ferido, e cambaleou para trás, os outros caindo com ele. Depois, aum só tempo, eles giraram nos calcanhares e os três escapuliram pela porta aberta da frente.Correram a uma velocidade assustadora, como baratas pegas na luz, e desapareceram. Naquietude que se seguiu, Rebecca desceu a escada de mansinho e acendeu a luz do corredor. A sra.Burrows, o cabelo sujo pendendo em mechas escuras como chifres moles pela cara branca, deimediato voltou seu olhar maníaco para Rebecca.

— Mãe — disse Rebecca delicadamente.A sra. Burrows ergueu a panela no alto e partiu para ela. O olhar de animal furioso fez

Rebecca dar um passo para trás, pensando que a mãe estava prestes a se virar contra ela.

— Mãe! Mãe, sou eu, está tudo bem, eles foram embora... Eles agora foram embora!Uma estranha presunção atravessou o rosto da sra. Burrows enquanto ela se olhava e

assentia lentamente, parecendo reconhecer a filha.— Está tudo bem, mãe, de verdade. — Rebecca tentou tranqüilizá-la. Ela se aventurou para

mais perto da mulher que arfava e gentilmente soltou a frigideira de sua mão. A sra. Burrows nãoopôs nenhuma resistência.

Rebecca suspirou de alívio e, olhando em volta, percebeu algumas manchas escuras nocarpete do hall. Podia ser lama ou ela olhou mais de perto e franziu a testa — sangue.

— Se eles sangraram — entoou a sra. Burrows, seguindo o olhar de Rebecca —, talvez euos tenha matado. — Ela recuou os lábios, revelando os dentes ao soltar um grunhido baixo,depois começou a rir horrivelmente, uma risada artificial e áspera.

— Que tal uma xícara de chá? — perguntou Rebecca, dando um sorriso forçado enquanto asra. Burrows se aquietava novamente. Passando o braço em sua cintura, ela a conduziu para a salade estar.

Capítulo Vinte e Três

Will foi grosseiramente acordado pela porta da cela batendo na parede e o Primeiro Oficialpuxando-o para colocado de pé. Ainda tonto de sono, foi expulso do Cárcere, passando pelarecepção da delegacia, saindo pela entrada principal e levado ao alto da escada de pedra.

O policial o soltou e ele cambaleou um pouco até se equilibrar. Ali, parou, grogue ebastante desorientado. Ouviu um baque ao lado quando a mochila foi atirada a seus pés e, semdizer uma palavra, o policial deu as costas e entrou na delegacia.

Era uma sensação estranha, estar parado ali, banhado pela luz da rua, depois de ficarconfinado naquela cela tenebrosa por tanto tempo. Havia uma leve brisa em seu rosto — eraúmida e bolorenta, mas mesmo assim, era um alívio depois da falta de ar do Cárcere.

“E agora, o que vai ser?”, pensou ele consigo mesmo, cocando o pescoço por baixo da golada camisa grossa que lhe foi dada por um dos policiais. Com a mente ainda tonta, começou abocejar, mas enrijeceu ao ouvir um barulho: um cavalo inquieto relinchava e batia o casco nocalçamento molhado. Will olhou de imediato e viu uma carruagem escura a pouca distância dooutro lado da rua, à qual estavam atrelados dois cavalos branquíssimos. Na frente, sentava-se umcocheiro, segurando as rédeas. A porta da carruagem se abriu e Cal pulou para fora, atravessandoa rua na direção dele.

— O que é isso? — perguntou Will desconfiado, recuando um passo com a aproximação deCal.

— Vamos levar você para casa — respondeu Cal.— Casa? Como assim, casa? Com você? Não vou a lugar nenhum sem o Chester! — disse

ele, resoluto.— Shhhh, não. Ouça! — Cal agora estava perto dele e falava com urgência. — Eles estão

nos observando. — Ele inclinou a cabeça para a rua, os olhos jamais deixando os de Will.Na esquina havia uma única figura, imóvel, escura como uma sombra sem corpo. Will só

conseguia distinguir a gola branca.— Não vou embora sem o Chester — sibilou Will.— O que acha que vai acontecer com ele se você não vier conosco? Pense nisso.— Mas...

— Eles podem facilitar para ele, ou não. Você decide. — Cal olhou suplicante nos olhos deWill.

Will olhou a delegacia uma última vez, depois suspirou e sacudiu a cabeça.— Tudo bem.Cal sorriu e, pegando a mochila de Will, seguiu na frente até a carruagem que esperava.

Manteve a porta aberta para o irmão, que o seguiu de má vontade, as mãos nos bolsos e a cabeçabaixa. Não estava gostando nada daquilo.

Enquanto a carruagem arrancava, Will examinou o interior austero. Certamente não foraconstruída para proporcionar conforto. Os assentos, como os painéis laterais, eram de umamadeira dura e laqueada de preto, e toda a coisa tinha cheiro de verniz com um toque fraco dealvejante, lembrando o ginásio da escola no primeiro dia de aula. Ainda assim, qualquer coisa eramelhor do que a cela em que estivera trancafiado por tantos dias com Chester. Will sentiu umterror súbito ao pensar no amigo, ainda encarcerado e agora sozinho no Cárcere. Ele seperguntou se Chester saberia que ele fora libertado e jurou a si mesmo que encontraria um jeitode tirar o amigo de lá, mesmo que fosse a última coisa que fizesse na vida.

Ele afundou abatido no assento e pôs os pés no banco oposto, depois puxou a cortinacoriácea e olhou pela janela aberta da carruagem. Enquanto o coche se sacudia pelas ruas desertase cavernosas, casas desoladas e escuras fachadas de lojas passavam com uma regularidademonótona. Imitando Will, Cal também se acomodou e pousou os pés no banco na frente dele, devez em quando olhando longamente para o irmão e sorrindo satisfeito consigo mesmo.

Os dois garotos ficaram em silêncio, perdidos nos próprios pensa-mentos, mas nãodemorou muito para que a curiosidade natural de Will despertasse um pouco. Ele fez um esforçopara apreender a paisagem sombria pela qual passava mas, depois de pouco tempo, suas pálpebrasficaram cada vez mais pesadas à medida que o extremo cansaço e o subterrâneo aparentementeinterminável levavam a melhor sobre ele. Por fim, aquietado pelo bater ritmado dos cascos docavalo, tombou a cabeça, acordando de vez em quando, com um sobressalto, quando o balançoda carruagem o despertava. Com uma expressão um tanto assustada, ele olhava semiconsciente,para diversão de Cal, e depois a cabeça tombava novamente e ele voltava a sucumbir à fadiga.

Ele não sabia se tinha dormido por minutos ou mesmo horas quando o cocheiro estalou ochicote, acordando-o mais uma vez. A carruagem sacolejou para frente e os postes de ruabrilhavam pela janela a intervalos menos regulares. Will imaginou que eles deviam estar chegandoaos arredores da cidade. Áreas mais amplas se abriam entre as construções, atapetadas de um leitoescuro, verde e quase preto de liquens ou coisa parecida.

Depois vieram faixas de terra dos dois lados da rua, divididas em lotes por cercas raquíticas,contendo uma camada do que parecia uma espécie de fungo grande.

A certa altura, a velocidade diminuiu quando eles atravessaram uma pequena ponte sobreum canal de aparência escura. Will olhou para baixo, para a água lenta e inerte, fluindo comopetróleo bruto, e por algum motivo isso o encheu de um pavor inexplicável.

Ele havia acabado de se acomodar de novo no assento e estava recomeçando a cochilarquando a estrada de repente caiu numa ladeira íngreme e a carruagem guinou para a esquerda.Depois, como a rua se aplainou mais uma vez, o condutor gritou “Ôôaaaa!” e os cavalosreduziram a um trote.

Will agora estava bem acordado e colocou a cabeça para fora da janela a fim de ver o queestava acontecendo. Havia um enorme portão de metal bloqueando o caminho e, ao lado dele,um grupo de homens se espremia em volta de um braseiro para aquecer as mãos. Destacadodeles, no meio da rua, uma figura encapuzada erguia uma lanterna no alto e acenava de um lado aoutro, como um sinal para o cocheiro parar. À medida que a carruagem estacava, para pavor deWill, viu a figura instantaneamente reconhecível do Styx surgindo das sombras. Ele fechou acortina num puxão e afundou na carruagem. Olhou para Cal de um jeito inquisitivo.

— É o Portão da Caveira. É o portal principal para a Colônia — explicou Cal num tomtranqüilizador.

— Pensei que já estivéssemos na Colônia.— Não — respondeu Cal, incrédulo —, aquele era só o Quartel. É uma espécie de... é como

um posto avançado... nossa cidade da fronteira.— Então há mais além disso?— Mais? Meu Deus, há quilômetros!Will ficou sem fala. Olhou temeroso para a porta à aproximação do som entrecortado de

saltos de botas nos paralelepípedos. Cal pegou seu braço.— Não se preocupe, eles verificam todo mundo que passa por aqui. É só não dizer nada. Se

houver problemas, eu falarei com eles.Naquele exato momento, a porta do lado de Will foi aberta e o Styx enfiou uma lanterna de

bronze em seu interior. Balançou o feixe em seus rostos, depois deu um passo para trás e olançou ao cocheiro, que lhe passou uma folha de papel. Ele leu de um jeito apressado.Aparentemente satisfeito, voltou mais uma vez aos garotos, dirigiu a luz estonteante direto nosolhos de Will e, com uma expressão de desdém, bateu a porta. Passou a folha de papel aocondutor, fez um sinal para o porteiro, girou nos calcanhares e se afastou.

Ouvindo uma pancada alta, Will ergueu cauteloso a bainha da cortina e espiou novamente.À medida que o guarda lhes dava passagem, a luz de sua lanterna revelava que o portão narealidade era uma grade levadiça. Ele ficou olhando a grade se erguer aos solavancos em umaestrutura que o fez pestanejar de surpresa. Escavada em uma pedra mais leve e destacando-se daparede acima da grade, havia um crânio enorme e sem dentes.

— Isso é de dar arrepios — murmurou Will.— É para dar. É um alerta — respondeu Cal com indiferença enquanto o cocheiro estalava

o chicote e a carruagem se lançava na boca da aparição temível e entrava na caverna além dela.Curvando-se para fora da janela, Will viu a grade levadiça baixar até que a curva do túnel a

ocultou de vista. Os cavalos ganharam velocidade, a carruagem virou uma esquina e disparou poruma ladeira, entrando em um túnel gigantesco, cortado em arenito vermelho escuro. Eracompletamente desprovido de construções e casas. Enquanto o túnel continuava a descer, o arcomeçou a mudar — começou a ter um cheiro de fumaça — e, por um momento, o eternozumbido aumentou de intensidade, até que agitou o tecido da própria carruagem.

Eles deram uma última guinada, o zumbido diminuiu e o ar ficou mais limpo de novo. Calse juntou a Will na janela enquanto um espaço enorme abria-se diante deles. Dos dois lados darua, havia filas de construções, uma floresta complexa de dutos de tijolos correndo pelas paredesno alto da caverna, como veias varicosas inchadas. Ao longe, amontoados escuros lançavam

chamas azuladas e frias e vertiam uma fumaça vertical que, sem ser perturbada por correntes dear, erguia-se até o teto da caverna. Ali a fumaça se acumulava, ondulando lentamente e seassemelhando a uma marola suave na superfície de um mar marrom invertido.

— Esta é a Colônia, Will — disse Cal, o rosto ao lado do de Will na janela estreita. — Aquié nossa...

Will só encarava maravilhado e mal ousava respirar.— ...casa.

Capítulo Vinte e Quatro

Mais ou menos na mesma hora em que Will e Cal chegavam à casa de Jerome, Rebecca estavaparada pacientemente ao lado de uma mulher do Serviço Social no décimo terceiro andar doMandela Heights, um prédio alto, melancólico e arruinado no lado mais desagradável deWandsworth. A assistente social tocava a campainha do número 65 pela terceira vez sem obterresposta, enquanto Rebecca olhava dela para o chão sujo. Com um gemido baixo e cheio deremorso, o vento soprava pelas janelas quebradas da escada e agitava os sacos de lixo meio cheios,empilhados num canto.

A menina estremeceu. Não só por causa do vento frio, mas porque estava prestes a serdespachada ao que considerava um dos piores lugares do planeta.

Agora, a assistente social desistira de apertar a campainha encardida e começava a bater comforça na porta. Ainda não houve resposta, mas o som da televisão podia ser ouvido com clarezade dentro do apartamento. Ela bateu novamente, desta vez com mais insistência, e parou aofinalmente ouvir uma tosse e uma voz estridente de mulher do outro lado da porta.

— Tudo bem, tudo bem, pelo amor de Deus, dá uma chance pra gente!A assistente social virou-se para Rebecca e tentou sorrir de forma tranqüilizadora. Só o que

conseguiu foi uma coisa parecida com um esgar compadecido.— Parece que ela está aí.— Ah, que ótimo — disse Rebecca com sarcasmo, pegando as duas malinhas.Elas esperaram num silêncio sem jeito enquanto, com muito estardalhaço, a porta foi

destrancada e a corrente retirada, acompanhada de murmúrios e palavrões e pontuada por umatosse intermitente. A porta por fim se abriu e uma mulher de meia-idade muito desmazelada,com um cigarro pendurado do lábio inferior, olhou de cima a baixo e, com desconfiança, aassistente social.

— Do que se trata tudo isso? — perguntou ela, um olho semicerrado da fumaça do cigarro,que se remexia com o vigor da batuta de um maestro quando ela falava.

— Trouxe sua sobrinha, srta. Boswell — anunciou a assistente social, indicando Rebecca aolado dela.

— Você o quê? — disse a mulher asperamente, derrubando a cinza no sapato imaculado daassistente social. Rebecca se encolheu.

— Não se lembra?... Conversamos ao telefone ontem.Seu olhar lacrimoso caiu em Rebecca, que sorriu e inclinou-se um pouco para entrar no

campo de visão limitado da tia.— Oi, tia Jean — disse ela, fazendo o máximo para sorrir.— Rebecca, querida, é claro, sim, olhe só você, como cresceu! Já é uma mocinha. — Tia

Jean tossiu e abriu totalmente a porta. — Sim, entrem, entrem, tenho uma coisa no fogão. — Elase virou e se arrastou pelo pequeno corredor, deixando Rebecca e a assistente socialinspecionando as pilhas de jornais enrolados junto às paredes e o número enorme de cartas aindafechadas e folhetos que tomavam o carpete sujo. Tudo era coberto de uma fina camada de poeirae os cantos do corredor eram adornados de teias de aranha. Todo o lugar fedia aos cigarros da tiaJean. A assistente social e Rebecca ficaram paradas em silêncio até que a mulher, como quem saíade um transe, despediu-se de Rebecca e lhe desejou boa sorte. Parecia ter uma pressa louca para irembora e a menina a observou seguindo para a escada, parando no caminho para olhar a porta doelevador como se esperasse que, por milagre, ele voltasse a funcionar e ela não tivesse queenfrentar o longo trajeto de descida.

Rebecca entrou com cuidado no apartamento e seguiu a tia até a cozinha.— Eu bem que podia ter uma ajuda aqui — disse tia Jean, pegando um maço de cigarros

em meio ao lixo da mesa.A menina examinou o cenário de mau gosto diante dela. Flechas de luz do sol atravessavam

a perpétua névoa de fumaça de cigarro que pairava em volta da tia como uma nuvem pessoal detempestade. Ela franziu o nariz ao sentir o cheiro acre da comida queimada da véspera preso noar.

— Se vai ficar aqui no meu cafofo — disse a tia em meio a um acesso de tosse —, vai terque fazer a sua parte.

Rebecca não se mexeu; temia que qualquer movimento, mesmo lento, a fizesse ser tragadapela porcaria que cobria cada superfície.

— Vamo lá, Beca, baixa as malas aí e arregaça as mangas. Pode começar colocando achaleira no fogo. — Tia Jean sorriu ao se sentar à mesa da cozinha. Acendeu um novo cigarrocom o velho antes de apagar este último diretamente no tampo de fórmica, errandocompletamente o cinzeiro abarrotado.

O interior da casa de Jerome era acolhedor e confortável, com tapetes de padronagem sutil,superfícies de madeira polidas e paredes de um verde e um vinho profundos. Cal pegou a mochilade Will e a colocou em uma mesinha, em que um lampião a óleo com um quebra-luz de vidroestava em um paninho de mesa de linho creme.

— Aqui — disse Cal, indicando que Will devia segui-lo pela primeira porta, que saía dohall. — Esta é a sala de visitas — anunciou ele com orgulho.

A atmosfera na sala era quente e mormacenta, com pequenas rajadas de ar fresco vindo deuma grade incrustada de poeira, acima do ponto onde agora estavam parados. O teto era baixo,

com frisos ornamentados, que ganharam um tom acinzentado da fumaça e da fuligem do fogoque mesmo agora rugia na lareira ampla. Na frente da lareira, esparramado num tapete persasurrado, havia um animal grande que parecia sarnento, dormindo de costas com as pernas no ar,exibindo sem o menor pudor um par de testículos pendentes.

— Um cachorro! — Will ficou meio surpreso ao ver um animal doméstico lá embaixo. Oanimal era da cor de ardósia polida; era quase completamente pelado, com um trecho estranho derestolho escuro ou tufo de pêlos surgindo aqui e ali na pele mole, que cedia como um ternofolgado.

— Cachorro? Esse é Bartleby e ele é um gato, uma variante de Rex. Um excelente caçador.Atordoado, Will olhou novamente. Um gato? Era do tamanho de um Dobermann bem

alimentado e raspado. Não havia nada de remotamente felino no animal, cuja caixa torácicaimensa subia e descia devagar com a respiração regular. Enquanto Will se curvava para examiná-lo mais de perto, ele bufou alto em seu sono e as patas enormes se mexeram.

— Cuidado, ele vai arrancar seu rosto.Will girou e viu uma velha em uma das grandes poltronas de estofado de couro

posicionadas de cada lado da lareira. Estava sentada ali quando ele entrou e ele não a havia visto.— Eu não ia tocar nele — respondeu ele na defensiva, endireitando-se.Os olhos cinza-claros da velha cintilaram e não deixaram o rosto de Will.— Ele não precisa ser tocado — disse ela, e acrescentou: — É muito instintivo, esse nosso

Bartleby. — Seu rosto reluziu de afeto ao olhar o animal luxuriante e gigantesco.— Vovó, este é o Will — disse Cal.Mais uma vez o olhar astuto da velha caiu em Will e ela assentiu.— Disso estou bem ciente. Ele é um Macaulay da cabeça aos pés e tem os olhos da mãe, não

há dúvida. Olá, Will.Will ficou emudecido, petrificado por suas maneiras gentis e a luz vibrante que dançava nos

olhos idosos. Era como se uma parte dele, uma vaga lembrança, tivesse sido ativada, assim comouma brasa dormida é reavivada por uma brisa fraca. Ele se sentiu imediatamente à vontade napresença dela. Mas por quê? Ele era naturalmente cauteloso quando conhecia adultos e aqui, nomais estranho dos lugares, não conseguia deixar de baixar a guarda. Decidiu se entender bem comestas pessoas, fazer o jogo delas, mas não estava disposto a confiar em ninguém. Contudo, comesta senhora, era diferente. Era como se ele a conhecesse...

— Venha se sentar, converse comigo. Tenho certeza de que há muitas histórias fascinantesque pode me contar sobre sua vida lá em cima. — Ela ergueu o rosto por um momento para oteto. Caleb, coloque a chaleira no fogo e traga algumas gostosuras. Will vai me contar tudo sobreele — disse ela, acenando para a outra poltrona de couro com a mão delicada, porém forte. Era amão de uma mulher que trabalhou arduamente a vida toda.

Will se empoleirou na beira da cadeira, o fogo intenso da lareira aquecendo-o e relaxando-o.Embora não pudesse explicar o fato, ele sentia como se enfim tivesse chegado a um lugar seguro,a um santuário.

A velha o olhava atentamente e ele, sem se deixar constranger, olhava-a diretamente, o calorde sua atenção tão plenamente reconfortante quanto o fogo da lareira. Todo o pavor e astribulações da última semana foram esquecidos naquele momento, e ele suspirou e se recostou,avaliando a senhora com uma curiosidade crescente.

O cabelo dela era fino e branco como a neve e ela o usava num coque elaborado no alto dacabeça, mantido no lugar por um prendedor de tartaruga. Estava com um vestido azul simples demangas compridas, com uma gola de babados branca e alta.

— Por que eu sinto que conheço a senhora? — perguntou ele de repente. Will tinha aestanha sensação de que podia dizer a esta completa estranha o que lhe passasse pela cabeça.

— Porque conhece. — Ela sorriu. — Eu o segurei quando era um bebê, cantei cantigas deninar para você.

Ele abriu a boca, prestes a protestar, porque o que ela disse não podia ser verdade, mas sedeteve. Franziu o cenho. Mais uma vez, do seu íntimo, veio um lampejo de reconhecimento. Eracomo se cada fibra de seu corpo lhe dissesse que ela falava a verdade. Havia algo de muitofamiliar naquela senhora. Sua garganta se estreitou e ele engoliu em seco várias vezes, tentandocontrolar as emoções. A velha viu a emoção encher os olhos de Will.

— Ela teria ficado orgulhosa de você — disse a vovó Macaulay. — Você é o primogênito.— Ela inclinou a cabeça para o consolo da lareira. — Pode me passar aquela fotografia... ali, nomeio?

Will se levantou para examinar as muitas fotos em porta-retratos de diferentes formatos etamanhos. Não reconheceu de imediato nenhum dos fotografados; alguns sorriam grotescamentee outros tinham faces muito solenes. Todos tinham a mesma propriedade etérea dosdaguerreótipos, as antigas fotografias que mostravam imagens fantasmagóricas de pessoas dopassado distante, que ele vira no museu do pai, em Highfield. Como a senhora havia solicitado,ele pegou a maior das fotos, que ocupava com orgulho o centro do consolo da lareira. Vendo queera do sr. Jerome e de uma versão mais nova de Cal, ele hesitou.

— Sim, esta mesma — confirmou a velha senhora.Will lhe entregou a foto, observando enquanto ela a virava no colo, abria as lingüetas e

levantava o fundo do porta-retrato. Havia outra foto escondida ali, que ela suspendeu com a unhado indicador e passou a ele sem comentar nada.

Virando-a para a luz, ele examinou a imagem de perto. Mostrava uma jovem de blusa brancae uma saia preta e longa. Nos braços, a mulher segurava um pequeno fardo. O cabelo era do maisalvo dos brancos, idêntico ao de Will, e seu rosto era lindo, uma face forte com olhos gentis eestrutura óssea delicada, a boca cheia e o queixo quadrado... O queixo dele, que agora ele tocouinvoluntariamente.

— Sim — disse a velha delicadamente —, esta é Sarah, sua mãe. Você é muito parecidocom ela. Esta foi tirada poucas semanas depois de seu nascimento.

— Hein? — Will arfou, quase deixando cair a foto.— Seu nome verdadeiro é Seth... Assim você foi batizado. É você que ela está segurando.Ele sentiu o coração parar. Olhou o fardo. Pôde ver que era um bebê, mas não distinguiu

seu rosto com clareza por causa do pano. Sua mente disparou e as mãos tremeram, enquanto seussentimentos e pensamentos se derramaram. Mas, de tudo isso, surgiu algo definido e conectado,como se ele estivesse lutando com um problema até agora insolúvel e de repente descobrisse aresposta. Como se enterrada no fundo do subconsciente se escondesse uma dúvida ínfima, umasuspeita rejeitada por ele de que sua família, o dr. e a sra. Burrows e Rebecca, que ele conhecia avida toda, fosse meio diferente dele.

Teve problemas para focalizar a foto e se obrigou a olhá-la novamente, demorando-se nelapara obter detalhes.

— Sim — disse a vovó Macaulay numa voz gentil, e ele se viu assentindo. Embora pudesseparecer irracional, ele sabia, sabia com absoluta certeza que o que ela dizia era verdade. Que estamulher na foto, com o rosto monocromático e meio borrado, era sua mãe verdadeira, e que todasestas pessoas que ele conhecera recentemente eram sua verdadeira família. Will não conseguiaexplicar, simplesmente sabia.

Suas suspeitas de que eles estavam tentando enganá-lo e de que este era algum truquemeticuloso evaporaram e uma lágrima correu por seu rosto, traçando uma linha clara e delicadana face suja. Ele a esfregou apressadamente com a mão. Ao passar a foto de volta à vovóMacaulay, ele sentiu o rubor no próprio rosto.

— Conte-me como é lá em cima... Na Crosta — disse ela, para livrá-lo do constrangimento.Ele ficou grato, ainda parado, sem graça, na poltrona enquanto ela recolocava a fotografia noporta-retrato, depois o estendia para que Will o colocasse em seu lugar no consolo.

— Bom... — titubeou ele.— Sabe, filho, nunca vi a luz do dia, nem senti o sol em meu rosto. Como é isso? Dizem

que queima.Will, agora recostado na poltrona, olhou para ela. Estava tonto.— Nunca viu o sol?— Muito poucos aqui viram — disse Cal, voltando à sala e se agachando no tapete da

lareira aos pés da avó. Começou a afagar delicadamente a dobra de pele frouxa e sarnenta doqueixo do gato; quase de imediato um ronronar alto e palpitante encheu a sala.

— Conte-nos, Will, conte-nos como é — disse a vovó Macaulay, a mão pousada na cabeçade Cal enquanto ele se encostava no braço da poltrona.

Então, Will começou a lhes contar, primeiro hesitante, mas depois, como se uma torrentefosse desencadeada, ele descobriu que estava quase tagarelando ao falar da vida lá em cima.Surpreendeu-o a facilidade de tudo aquilo e como lhe parecia natural falar com aquelas pessoasque só conhecia há pouco tempo. Ele lhes contou sobre sua família e a escola, deleitando-os comhistórias de escavações com o pai — ou melhor, a pessoa que ele acreditava ser seu pai até aquelemomento — e sobre a mãe e a irmã.

— Você ama muito sua família da Crosta, não é? — disse a vovó Macaulay, e Will sóconseguiu assentir em resposta. Ele sabia que nada disso, nenhuma das revelações que pudesse terde uma família verdadeira aqui na Colônia, mudaria os sentimentos que tinha pelo pai. E pormaior que fosse a dificuldade que Rebecca criava para sua vida, Will tinha que admitir para simesmo que sentia muita falta dela. Ele sentiu um surto tremendo de culpa, sabendo que agora elaestaria torturada de preocupação pelo que teria acontecido com ele. Seu mundo pequeno eordenado estaria desmoronando em volta dela. Ele engoliu em seco. Desculpe, Rebecca, eu devia tercontado a você, devia ter deixado um bilhete! Ele se perguntou se ela ligou para a polícia ao descobrirque ele desaparecera, a mesma medida ineficaz que eles tomaram quando o pai foi embora. Mastudo isso foi deixado de lado em um instante, quando lampejou diante dele a imagem de Chestersozinho e ainda encarcerado naquela cela medonha.

— O que vai acontecer com o meu amigo? — disse ele, de repente.

A vovó Macaulay não disse nada, olhando distraída o fogo, mas Cal apressou-se emresponder.

— Não vão deixá-lo voltar... nem você.— Mas por quê? — perguntou Will. — Vamos prometer não contar nada a ninguém...

sobre isto aqui.Houve alguns segundos de silêncio e depois a vovó Macaulay tossiu delicadamente.— Seria rejeitado pelos Styx — disse ela. — Eles não poderiam permitir que ninguém

contasse sobre nós ao povo da Crosta. Isto poderia provocar a Revelação.— A Revelação?— É o que aprendemos no Livro das Catástrofes. É o fim de todas as coisas, quando as

pessoas são postas às claras e perecem nas mãos dos que estão no alto — disse Cal, monótono,como se recitasse um versículo.

— Deus nos livre — murmurou a velha, desviando os olhos e fitando as chamasnovamente.

— Então, o que vão fazer com o Chester? — perguntou Will, temendo a resposta.— Ou será colocado para trabalhar, ou poderá ser condenado ao Desterro... mandado de

trem para as Profundezas, para que se defenda sozinho por lá — respondeu Cal.Will estava prestes a perguntar o que eram as Profundezas quando, no hall, a porta da frente

se abriu com um baque. O fogo se agitou e lançou uma chuva de faíscas para o alto, quecintilaram brevemente ao serem atraídas para a chaminé. A vovó Macaulay olhou pelo lado dapoltrona, sorrindo, enquanto Cal e Bartleby se colocavam de pé. Uma voz masculina poderosaberrou: “OLÁ, AÍ DENTRO!”

Ainda tonto de sono, o gato esbarrou de lado na parte de baixo de uma mesinha, que caiuno chão no mesmo instante em que se abria a porta da sala de visitas. Um homem enorme entrouna sala como um trovão tempestuoso, o rosto pálido, mas de bochechas avermelhadas, luzindocom uma empolgação indisfarçada.

— ONDE ELE ESTÁ? ONDE ELE ESTÁ? — gritou, e seu olhar feroz caiu em Will, quese levantou apreensivo da poltrona, sem saber o que fazer com esta explosão humana. Em duaspernadas, o homem atravessou a sala e apertou Will num abraço de urso, erguendo-o no ar comose ele não pesasse mais do que um saco de plumas. Soltando uma risada num rugidoensurdecedor, ele manteve Will nos braços, com seus pés pendurados inutilmente no meio donada.

— Deixe-me ver você. Sim... sim, é o menino de sua mãe, não há dúvida; está nos olhos, nãoé, mãe? Ele tem os olhos e o queixo dela... o formato do lindo rosto, por Deus, rá, rá, rá! —berrou ele.

— Baixe-o, Tam — disse a vovó Macaulay.O homem baixou Will ao chão, ainda olhando intensamente nos olhos assustados do

garoto, sorrindo e sacudindo a cabeça.— Este é um grande dia, é deveras um grande dia. — Ele estendeu a mão imensa para Will.

— Sou seu tio Tam.Will automaticamente estendeu a mão e Tam a pegou na palma gigantesca, sacudiu-a em um

aperto de ferro, e puxou o sobrinho para ele, afagando seu cabelo com a outra mão e cheirando

ruidosa e exageradamente o alto da cabeça.— É inundado do sangue dos Macaulay, este aqui — trovejou ele. — Não diria isso, mãe?— Sem dúvida — disse ela delicadamente. — Mas não o assuste com suas brincadeiras

rudes, Tam.Bartleby esfregava a cabeça imensa nas pernas de calças pretas e gordurosas do tio Tam,

insinuando o corpo longo entre ele e o de Will, enquanto ronronava e emitia um gemido baixo,de outro mundo. Tam olhou para a criatura brevemente e depois para Cal, que ainda estava aolado da poltrona da avó, desfrutando do espetáculo.

— Cal, o aprendiz de mágico, como está você, garoto? O que acha de tudo isso, hein? —Ele olhou de um menino para outro. — Por Deus, é bom ver vocês dois sob o mesmo tetonovamente. — Ele sacudiu a cabeça, descrente. — Irmãos, ah, irmãos, meus sobrinhos. Isto pedeuma bebida. Uma bebida de verdade.

— Estávamos mesmo preparando um chá — interveio a vovó Macaulay rapidamente. —Gostaria de uma xícara, Tam?

Ele girou para a mãe e deu um sorriso largo com uma faísca arrebatadora nos olhos.— E por que não? Vamos tomar uma xícara de chá e colocar tudo em dia.Nisso, a velha desapareceu no corredor e o tio Tam se sentou na poltrona vaga, que gemeu

sob seu peso. Esticando as pernas, pegou um cachimbo curto de dentro do sobretudo enorme e oencheu de tabaco. Depois, usou uma brasa da lareira para acender o cachimbo, recostou-se esoprou uma nuvem de fumaça azulada no teto ornamentado, ao mesmo tempo em que olhava osdois garotos.

Por algum tempo, só o que se pôde ouvir foi o estalo do carvão em brasa, o ronronarinvasivo de Bartleby e os sons distantes da velha ocupada na cozinha. Ninguém sentia anecessidade de falar, com a luz bruxuleante brincando em seus rostos, lançando sombras trêmulasnas paredes. Por fim, tio Tam falou.

— Sabe que seu pai da Crosta passou por aqui?— O senhor viu? — Will se inclinou para o tio.— Não, mas falei com gente que o viu.— Onde ele está? O policial disse que estava em segurança.— Segurança? — Tam se sentou mais para a frente, tirando o cachimbo da boca, o rosto

tornando-se mortalmente sério. — Ouça, não acredite numa palavra do que aquela escória semcaráter lhe diz; são todos umas cascavéis que não valem nada. Eles são os capachos dos Styx.

— Já basta, Tam — disse a vovó Macaulay ao entrar na sala sacudindo nas mãos instáveisuma badeja de chá e um prato cheio de “gostosuras”, como ela chamou, uns montes disformesencimados por um glacê branco. Cal se levantou e a ajudou, entregando xícaras a Will e ao tioTam. Depois, Will cedeu a poltrona à vovó Macaulay e se sentou ao lado de Cal no tapete dalareira.

— E então, e o meu pai? — perguntou Will, meio áspero, incapaz de se conter por maistempo.

Tam assentiu e reacendeu o cachimbo, soltando nuvens volumosas de fumaça, queenvolveram sua cabeça numa névoa.

— Só o perdemos por mais ou menos uma semana. Ele foi para as Profundezas.— O Desterro? — Will se sentou reto, a cara cheia de preocupação ao se lembrar do termo

usado por Cal.— Não, não! — exclamou Tam, gesticulando com o cachimbo. — Ele quis ir! Coisa curiosa,

segundo dizem, ele foi de boa vontade... sem proclamações... nem manifestações públicas... nadada ostentação costumeira dos Styx. — Ele puxou um pouco da fumaça e a soprou lentamente, detesta franzida. — Imagino que não deve ter sido um grande espetáculo para as pessoas, sem opalavrório e os gemidos dos condenados. — Fitou a lareira, a testa ainda franzida como seestivesse profundamente confuso com toda a história. — Nas semanas antes de partir, ele ficouvagando por aqui, escrevendo em seu livro... incomodando o povo com suas perguntas tolas.Imagino que os Styx tenham pensado que ele era meio... — Tam bateu na lateral da cabeça.

A vovó Macaulay deu um pigarro e olhou para ele severamente.— ...inofensivo — disse ele, corrigindo-se. — Calculo que seja por isso que o deixaram

andar por aí daquele jeito, mas pode apostar que vigiaram cada movimento dele.Will se remexeu pouco à vontade onde estava sentado, no tapete persa; parecia errado exigir

respostas deste homem afável e simpático, este homem que passava por seu tio, mas ele nãoconseguia se reprimir.

— O que exatamente são as Profundezas? — perguntou ele.— Os círculos internos, o Interior. — Tam apontou a haste do cachimbo para o chão. —

Abaixo de nós. As Profundezas.— É um lugar ruim, não é? — intrometeu-se Cal.— Nunca estive lá. Não é um lugar que você queria conhecer — disse o tio com um olhar

ponderado para Will.— Mas o que tem lá? — perguntou Will, morrendo de vontade de saber sobre o paradeiro

do pai.— Bem, uns oito quilômetros para baixo, há outro... imagino que você chamaria de

povoamento. É lá que pára o Trem dos Mineradores, onde vivem os Coprólitos. — Ele sugou ocachimbo com ruído. — O ar é azedo lá embaixo. É o fim da linha, mas os túneis continuam, porquilômetros e quilômetros, segundo dizem. As lendas até falam de um mundo interior bem láembaixo, no centro, cidades mais antigas, maiores do que a Colônia. — Tam riu com desdém. —Para mim, não passa de um monte de bobagens.

— Mas alguém já desceu por estes túneis? — perguntou Will, esperando, no fundo, quealguém tivesse descido.

— Bem, existem umas histórias. No ano 220, mais ou menos, dizem que um colono voltoudepois de anos de Desterro. Qual era mesmo o nome dele... Abraham qualquer coisa?

— Abraham de Jaybo — disse a vovó Macaulay, baixinho.Tam olhou a porta e baixou a voz.— Quando o encontraram na Estação dos Mineradores, ele estava péssimo, coberto de

cortes e hematomas, sem língua... Cortada, segundo dizem. Estava quase morto de fome, feito umcadáver ambulante. Não durou muito tempo; morreu uma semana depois de uma doençadesconhecida que fez seu sangue ferver pelas orelhas e pela boca. É claro que ele não conseguiafalar, mas alguns dizem que fez desenhos, um monte deles, enquanto estava no leito de morte,com medo de dormir.

— Que tipos de desenhos? — Will estava de olhos arregalados.

— De todo tipo, aparentemente, máquinas do inferno, animais estranhos e paisagensimpossíveis, e coisas que ninguém consegue entender. Os Styx disseram que era tudo fruto deuma mente doente, mas outros dizem que as coisas que ele desenhou realmente existem. Atéhoje, os desenhos são guardados a sete chaves nos cofres do Governo... mas ninguém que euconheça chegou a vê-los.

— Meu Deus, eu daria qualquer coisa por um deles — disse Will, enfeitiçado pelo queacabara de ouvir.

Tio Tam soltou uma risada grave.— Que foi? — perguntou Will.— Bom, ao que parece, esse camarada Burrows disse a mesma coisa quando soube da

história... e usou as mesmíssimas palavras.

Capítulo Vinte e Cinco

Depois de toda a conversa, do chá, do bolo e das revelações, tio Tam enfim se levantou com umbocejo cavernoso e esticou o corpo possante com vários estalos de arrepiar. Ele se virou paravovó Macaulay.

— Bem, vamos andando, mãe, já passa da hora de levá-la para casa.E assim, fizeram suas despedidas e foram embora. Sem a voz de trovão e as gargalhadas

contagiantes de Tam para encher o ambiente, a casa de repente parecia um lugar muito diferente.— Vou lhe mostrar onde você vai dormir — disse Cal a Will, que se limitou a murmurar

em resposta. Era como se estivesse sob uma espécie de feitiço, a mente inundada de novospensamentos e sensações que, por mais que ele tentasse, não conseguia evitar que viessem à tonacomo um cardume de peixes famintos.

Eles entraram no corredor e, ali, Will se recuperou um pouco. Começou a examinar asucessão de retratos pendurados na parede, andando lentamente.

— Pensei que sua avó morasse nesta casa — disse ele a Cal numa voz distante.— Ela tem permissão para me visitar aqui. — De imediato, Cal desviou o rosto de Will, que

não demorou a perceber que havia mais na história do que Cal revelava.— Como assim, tem permissão?— Ah, ela tem a casa dela, onde mamãe e o tio Tam nasceram — disse Cal evasivamente,

com um sacudir de cabeça. — Venha, vamos! — Ele estava no meio da escada com a mochilaenganchada no braço quando, para sua exasperação, descobriu que Will não o seguia. Olhandopor sobre o corrimão, Cal viu que Will ainda se demorava nos retratos, a curiosidade espicaçadapor algo no final do corredor.

A fome de descoberta e aventura de Will voltou a dominá-lo, afastando a fadiga e suapreocupação com tudo o que soubera recentemente.

— O que tem do outro lado? — perguntou ele, apontando para uma porta escura commaçaneta de bronze.

— Ah, não é nada. Só a cozinha — respondeu Cal com impaciência.— Posso dar uma olhada rápida? — disse Will, já indo para a porta.

Cal suspirou.— Ah, tudo bem, mas não há nada para ver — disse ele num tom resignado, e desceu a

escada, alojando a mochila embaixo. É só uma cozinha!Empurrando a porta, Will se viu em um cômodo de teto baixo que parecia saído de um

hospital vitoriano. E não só parecia como tinha o mesmo cheiro, uma subcorrente forte de ácidocarbólico misturada com o cheiro indistinto de comida. As paredes eram de uma cor decogumelo opaca, e o piso e as superfícies de madeira eram cobertos de ladrilhos brancos egrandes, com uma miríade de arranhões e fissuras. Em certos lugares, tinham sido gastos emburacos raiados pelos anos de limpeza.

Sua atenção foi atraída ao canto, onde uma tampa batia delicadamente em uma de váriaspanelas aquecidas em uma espécie de fogão antiquado, a pesada estrutura, inchada e vítrea, degordura queimada. Ele se inclinou para mais perto da panela, mas seu conteúdo fervente estavaobscurecido por fiapos de vapor que liberavam um aroma vagamente saboroso. À direita de Will,depois de um cepo de açougueiro de aparência sólida com um cutelo de lâmina larga pendendode um gancho no alto, Will viu outra porta que saía da cozinha.

— Onde esta vai dar?— Olha, não seria melhor você...? — A voz de Cal falhou quando ele percebeu que era

inútil discutir com o irmão, que já estava fuçando o cômodo adjacente.Os olhos de Will se iluminaram quando viram o que havia ali; parecia o depósito de um

alquimista, com prateleira após prateleira de vidros atarracados contendo conservasirreconhecíveis, todos horrivelmente distorcidos pela curvatura do vidro grosso e descoloridospelo fluido oleoso em que estavam imersos. Pareciam espécimes anatômicos preservados emformaldeído.

Na prateleira de baixo, em bandejas de metal opacas, Will percebeu um monte de objetos dotamanho de bolas de futebol pequenas, dos quais brotava uma poeira cinza-amarronzada.

— O que é isso?— É porcini... Nós cultivamos em toda parte, mas principalmente aqui nas câmaras

inferiores.— E vocês usam para quê? — Will estava agachado, examinando as superfícies aveludadas e

mosqueadas.— São cogumelos, para comer. Você deve ter comido algum no Cárcere.— Ah, sim — disse Will, fazendo uma careta ao se levantar. E isso? — acrescentou ele,

apontando para algumas tiras do que parecia ser carne seca penduradas em uma grade no alto.Cal deu um sorriso largo.— Você deve mesmo saber o que são.Will hesitou por um momento e depois se inclinou para mais perto de uma das tiras;

definitivamente era uma espécie de carne. Pareciam nervos alongados e eram da cor de casca deferida nova. Ele cheirou, inseguro, depois sacudiu a cabeça.

— Não faço idéia.— Ora... O cheiro?Will fechou os olhos e cheirou de novo.— Não, não tem cheiro de nada que eu... — Seus olhos se arregalaram e ele olhou para Cal.

— É rato, não é? — disse ele, satisfeito por ter conseguido identificá-la e, ao mesmo tempo,apavorado com a descoberta. — Vocês comem rato?

— É uma delícia... não há nada de errado nisso. Agora, me diga de que espécie é — disse Cal,divertindo-se com o nojo patente de Will. — Do deserto, de esgoto ou cego?

— Eu não gosto de ratos, e muito menos os como. Não faço a mais re-mota idéia.Cal sacudiu a cabeça devagar, com uma expressão de decepção fingida.— É fácil, este é cego — disse ele, erguendo a ponta de uma das tiras com o dedo e

cheirando ele mesmo. — É mais selvagem dos que os outros... é meio especial. Nós costumamoscomer aos domingos.

Eles foram interrompidos por um barulho alto de metralhadora atrás e os dois giraram aomesmo tempo. Ali, ronronando com todo seu poder, estava sentado Bartleby, os enormes olhosâmbar fixos nas tiras de carne e esperançosas gotas de saliva pingando do queixo careca.

— Fora! — gritou-lhe Cal, apontando a porta da cozinha. O gato não se mexeu nem umcentímetro, mas ficou sentado resolutamente no piso ladrilhado, completamente hipnotizado pelavisão da carne.

“Bart, eu disse fora!”, gritou Cal novamente, começando a fechar a porta enquanto ele eWill voltavam à cozinha. O gato grunhiu de forma ameaçadora e arreganhou os dentes, umapaliçada perolada de presas malévolas e afiadas, enquanto sua pele era tomada por uma onda dearrepio.

“Seu vira-lata insolente!”, disse Cal. “Sabe que não deve fazer isso!”Cal mirou um chute brincalhão no animal desobediente, que andou de lado, evitando

facilmente o golpe. Virando-se devagar, Bartleby olhou os dois com desprezo por sobre o ombro,depois se afastou letargicamente batendo as patas, abanando o rabo pelado e delgado num gestode desafio.

— Ele venderia a alma por um rato, este aí — disse Cal, sacudindo a cabeça e sorrindo.Depois de um breve giro pela cozinha, Cal conduziu Will pela escada de madeira rangente

até o segundo andar.— Este é o quarto do pai — disse ele, abrindo uma porta escura no meio do patamar da

escada. — Não podemos entrar aqui. Se ele nos pegar, vai ser um horror.Will rapidamente olhou a escada para se tranqüilizar de que a retaguarda estava livre antes

de seguir. Uma cama enorme de baldaquino dominava o quarto do sr. Jerome, tão alta que quasetocava o teto dilapidado, que cedia agourentamente para baixo. O espaço em volta era desnudo edesinteressante, e uma única luz ardia em um canto.

— O que havia aqui? — perguntou Will, percebendo uma fila de trechos mais claros naparede cinza.

Cal olhou os quadrados espectrais e franziu o cenho.— Fotografias... antigamente havia muitas, antes de papai as tirar daí.— Por que ele fez isso?— Por causa da mamãe... ela mobiliou o cômodo, era na verdade o quarto dela —

respondeu Cal. — Depois que ela foi embora, o pai... — ele fez silêncio e, como não pareciainclinado a se estender no assunto, Will sentiu que não devia sondar mais, pelo menos porenquanto. Certamente não tinha se esquecido de como a foto de sua mãe, que a vovó Macaulaylhe mostrara, fora inexplicavelmente escondida. Nenhuma dessas pessoas, o tio Tam, a vovó

Macaulay ou Cal, estava contando a história toda. Quer eles fossem ou não sua verdadeira família(e Will não conseguia aceitar a idéia fantástica de que eram) havia evidentemente mais ali do queo que lhe disseram. E ele estava decidido a descobrir o que era.

De volta ao patamar da escada, Will parou para admirar um globo luminoso impressionantesustentado por uma mão de bronze fantasmagórica que se projetava da parede.

— Essas luzes, de onde elas vêm? — perguntou ele, tocando a superfície fria da esfera.— Não sei. Acho que são feitas na Caverna do Oeste.— Mas como funcionam? Meu pai pediu a uns especialistas para examinar uma delas, mas

não descobriram nada.Cal olhou a luz com um ar evasivo.— Eu realmente não sei. Sei que foram os cientistas de Sir Gabriel Martineau que

descobriram a fórmula...— Martineau? — interrompeu Will, lembrando-se do nome numa entrada do diário do pai.Cal continuou, apesar da interrupção.— Não, eu realmente não posso lhe dizer o que as faz funcionar... mas acho que eles usam

vidro da Antuérpia. Tem alguma coisa a ver com o modo como os elementos se misturam sobpressão.

— Deve haver milhares delas aqui embaixo.— Sem elas, não poderíamos sobreviver — respondeu Cal. Sua luz é como o sol para nós.— Como vocês as desligam?— Desligá-las? — Cal olhou para Will inquisitivamente, a iluminação banhando seu rosto

pálido. — Por que diabos alguém ia querer isso?Ele partiu pelo patamar da escada, mas Will ficou firme.— Então vai me falar desse Martineau? — perguntou ele.— Sir Gabriel Martineau — disse Cal com cuidado, como se Will estivesse demonstrando

uma distinta falta de respeito. — Ele é o Pai Fundador... nosso salvador... ele construiu a Colônia.— Mas li que ele morreu em um incêndio... é... bom, vários séculos atrás.— Isso é o que eles querem que vocês, da Crosta, acreditem. Houve um incêndio, mas ele

não morreu ali — respondeu Cal, retorcendo os lábios de desdém.— Então, o que aconteceu? — rebateu Will.— Ele desceu para cá com os Pais Fundadores para viver aqui, é claro.— Os Pais Fundadores?— Meu Deus! — disse Cal, exasperado. — Não vou passar por tudo isso agora. Pode ler

sobre isso no Livro das Catástrofes, se está tão interessado.— O Livro...— Ah, vamos — rebateu Cal. Ele encarou Will e cerrou os dentes com tal irritação que o

irmão se conteve e não perguntou mais nada. Eles continuaram pelo patamar da escada epassaram por uma porta.

— Este é o meu quarto. O pai arrumou outra cama quando soube que você ia ficarconosco.

— Soube? Por quem? — perguntou Will rapidamente.Cal ergueu as sobrancelhas como se ele devesse saber, enquanto Will acabava de olhar o

quarto simples, não muito maior do que seu próprio quarto. Duas camas estreitas e um armáriopraticamente o enchiam e havia muito pouco espaço entre os móveis. Ele se empoleirou na beirade uma das camas e, percebendo uma muda de roupas à esquerda do travesseiro, olhou para Cal.

— Sim, são suas — confirmou Cal.— Acho que devia mesmo me trocar — murmurou Will, olhando o jeans sujo que vestia.

Ele abriu a trouxa de roupas novas e sentiu o tecido das calças cerosas. Era rude, quase escamosoao toque; Will imaginou que era uma cobertura para proteger da umidade.

Enquanto Cal se deitava de costas na cama, Will começou a trocar as roupas. Pareciamestranhas e frias em sua pele. As calças eram duras e ásperas, e adornadas com botões de metal eum cinto. Ele lutou para entrar na camisa sem se incomodar em desabotoá-la, depois, mexeudevagar os ombros e os braços como se experimentasse uma nova pele. Por fim, colocou nosombros o casaco comprido com as conhecidas ombreiras que todos usavam. Embora satisfeitopor ter tirado as roupas sujas, as substitutas pareciam duras e restritivas.

— Não se preocupe, elas afrouxam depois que você estiver aquecido — disse Cal,percebendo o desconforto dele. Em seguida, o menino se levantou e passou por cima da cama deWill para alcançar o armário, onde se ajoelhou e pegou uma velha lata de biscoitos Peek Freansembaixo dele.

— Dê uma olhada nisto aqui. — Ele pôs a lata na cama de Will e abriu a tampa. — Esta éminha coleção — anunciou ele com orgulho. Ele remexeu na lata, tirando um celular amassadoque passou a Will, que de imediato tentou ligá-lo. Estava morto. Nem utilidade, nem ornamento:Will se lembrou da frase que o pai usava com freqüência nestas ocasiões, o que era irônico,considerando que a maioria das valiosas posses do dr. Burrows não se encaixava em nenhuma dasduas categorias.

— E isto. — Cal pegou um pequeno rádio azul e, segurando-o no alto para mostrar a Will,ligou o aparelho. Ele estalou de estática quando o menino girou um dos controles.

— Não ia pegar nada aqui embaixo — disse Will, mas Cal já estava tirando outra coisa dalata.

— Olhe isto aqui, é incrível.Ele retirou uns folhetos de carro enrolados, cheios de manchas brancas de mofo, e passou a

Will como se fossem pergaminhos inestimáveis. Will franziu a testa ao examiná-los.— São modelos muito antigos, sabia? — disse Will ao folhear as páginas de carros esporte e

vans de família. — O novo Capri — leu ele em voz alta e sorriu consigo mesmo.Ele fitou Cal e percebeu o olhar de completo enlevo no menino que arrumava uma seleção

de barras de chocolate e um saco de doces em celofane no fundo da lata. Era como se tentasseencontrar a composição perfeita.

— Para que todo esse chocolate? — perguntou Will, esperando na verdade que o irmão lheoferecesse um.

— Estou poupando para uma ocasião muito especial — disse Cal enquanto manipulavaamorosamente uma barra de Fruit and Nut. — Adoro o cheiro deles. — Ele colocou a barra sobo nariz e cheirou com extravagância. — Isso basta para mim... não preciso abri-las. — Elerevirou os olhos, em êxtase.

— Então, onde conseguiu tudo isso? — perguntou Will, baixando os folhetos de carros,que se enrascaram novamente num tubo desordenado. Cal olhou preocupado para a porta do

quarto e se aproximou um pouco de Will.— O tio Tam — disse ele em voz baixa. — Ele costuma ir além da Colônia... Mas você não

deve contar a ninguém. Seria o Desterro para ele. — Ele hesitou e olhou a porta de novo. — Eleaté já foi à Crosta.

— Ele foi mesmo? — disse Will, analisando intensamente o rosto de Cal. — E quando éque ele faz isso?

— De vez em quando. — Cal falava tão suavemente que Will tinha dificuldade para ouvi-lo.— Ele troca coisas que... — ele parou, percebendo que estava se excedendo — ...que encontra.

— Onde? — perguntou Will.— Na s viagens dele — disse Cal, obliquamente, ao guardar os objetos na lata, recolocar a

tampa e empurrá-la de novo para debaixo do armário. Ainda ajoelhado, ele se virou para Will.— Você vai sair, não vai? — perguntou ele com um sorriso tímido.— Hein? — disse Will, surpreso com a pergunta repentina.— Ora, pode me contar. Você vai fugir, não é? Eu sei que vai! — Cal estava literalmente

vibrando de empolgação ao esperar pela resposta de Will.— Quer dizer voltar a Highfield?Cal assentiu com vigor.— Talvez sim, talvez não. Ainda não sei — disse Will, de guarda erguida. Apesar de suas

emoções e tudo o que sentia pela família recém-desco-berta, por enquanto ia tomar certasprecauções; uma vozinha em sua cabeça ainda o alertava que isto podia fazer parte de um planometiculoso para seduzi-lo e mantê-lo aqui para sempre, e até esse garoto que afirmava ser seuirmão podia estar trabalhando para os Styx. Will ainda não estava pronto para confiar nele, nãointeiramente.

Cal olhava diretamente para Will.— Bem, quando você for, eu vou com você. — Ele estava sorrindo, mas seus olhos eram

mortalmente sérios. Will foi pego completamente desprevenido por esta sugestão e não sabiacomo responder, mas, a esta altura, foi salvo por um som insistente vindo de algum lugar da casa.

— É o jantar. O pai deve estar em casa. Vamos. — Cal pulou de pé e correu porta afora,descendo a escada até a sala de jantar, Will seguindo-o de perto. O sr. Jerome já estava sentado àcabeceira de uma mesa de madeira rústica. Enquanto eles entravam, o homem não se virou, osolhos fixos na mesa diante de si.

O cômodo não podia ser mais diferente da sala de visitas suntuosa que Will vira antes. Eraespartana e tinha móveis básicos, parecendo ser construída de uma madeira que suportara séculosde desgaste. Num exame mais atento, ele pôde ver que a mesa e as cadeiras tinham sido fabricadasde uma mixórdia de diferentes madeiras de tons conflitantes e com veios desiguais; algumaspartes eram enceradas ou envernizadas, enquanto outras eram rudes, com superfícies lascadas. Ascadeiras de jantar de encosto alto pareciam particularmente frágeis e arcaicas, com pernas finasque estalaram e gemeram quando os garotos tomaram seus lugares dos dois lados do mal-humorado sr. Jerome, que mal olhou para Will. Ele se remexeu na cadeira, tentando ficar àvontade e se perguntando em vão como as cadeiras podiam acomodar alguém com o corpoimpressionante do sr. Jerome sem desmoronar.

O homem deu um pigarro alto e, sem nenhum aviso, ele e Cal se inclinaram para frente, de

olhos fechados e mãos cruzadas na mesa. Um Will constrangido fez o mesmo.— O sol não mais se porá, nem a lua se retirará, pois o Senhor será sua eterna luz e cessarão

os dias sombrios de seus lamentos sussurrou o sr. Jerome.Will não conseguiu deixar de espiar o homem pelos olhos entreabertos. Achou tudo meio

estranho — ninguém sequer pensaria em rezar em sua casa. Na verdade, o mais perto que eleschegaram de algo parecido com uma oração foi quando a mãe gritou: “Pelo amor de Deus, cala aboca!”

— Assim no alto, como é embaixo — terminou o sr. Jerome.— Amém — ele e Cal disseram em uníssono, rápido demais para Will acompanhá-los. Eles

se endireitaram nas cadeiras e o sr. Jerome bateu uma colher no copo diante dele.Houve um momento de silêncio desagradável durante o qual ninguém na mesa olhou os

demais. Depois, um homem de cabelo grande e seboso entrou bamboleando na sala. Seu rosto eraprofundamente vincado e as bochechas eram encovadas. Vestia um avental de couro e os olhos,cansados e apáticos, como chamas moribundas de velas em buracos cavernosos, pararam porpouco tempo em Will e rapidamente se viraram.

Enquanto observava o homem fazer repetidas viagens para dentro e fora da sala e arrastar-se a cada um deles para servir a comida, Will chegou à conclusão de que ele deve ter suportadoum grande sofrimento, possivelmente uma doença grave.

O primeiro prato era um caldo ralo. Por seus vapores, Will pôde detectar tempero, como seuma quantidade copiosa de curry tivesse sido despejada ali. Este foi acompanhado de um pratode pequenos objetos brancos, parecidos com minipepinos descascados. Cal e o sr. Jerome nãoperderam tempo para começar a tomar a sopa e, entre exalações ruidosas, os dois faziam osruídos mais ultrajantes quando sugavam o líquido das colheres, espirrando uma grandequantidade dele nas roupas, que eles simplesmente ignoraram. A sinfonia dos dois sorvendo eengolindo alto chegou a um crescendo tão ridículo que Will não conseguiu deixar de encará-losnuma descrença completa.

Por fim, ele pegou sua própria colher e estava prestes a experimentar o primeiro bocadoquando, pelo canto do olho, viu um dos objetos brancos no pratinho ao lado se mexer. Pensandoter imaginado, ele esvaziou o conteúdo da colher na tigela e a usou para virar o objeto. Comchoque, Will descobriu que tinha uma fila de pernas pontudas marrom-escuras cuidadosamentedobradas por baixo. Era algum tipo de lagarta! Ele se sentou ereto e viu com pavor a coisaarquear as costas, as perninhas minúsculas se abrindo numa ola mexicana, como que paracumprimentado.

Seu primeiro pensamento foi que tinha que ser um engano, então, ele olhou para ospratinhos do sr. Jerome e de Cal, perguntando-se se devia dizer alguma coisa. Naquele exatomomento, Cal pegou um dos objetos brancos de seu próprio prato e o mordeu, mastigando comprazer. Entre o polegar e o indicador, a metade restante da lagarta se retorcia, soltando um fluidoclaro na ponta dos dedos dele. Will sentiu o estômago revirar e largou a colher no prato de sopacom tal barulho que o serviçal entrou e, achando que não era desejado ali, saiu prontamente.Enquanto tentava aquietar a náusea, Will viu o sr. Jerome olhando diretamente para ele. Era umolhar de tanto ódio que o garoto, de imediato, virou a cara. Cal, por sua vez, estava absorto emterminar a meia-lagarta que ainda se retorcia, sugando-a para sua boca como se devorasse um fiomuito gordo de espaguete. Will estremeceu; agora não havia como se obrigar a tomar a sopa,

então, ele ficou sentado ali, sentindo-se distintamente nervoso e deslocado até que o serviçalretirou as tigelas. Depois apareceu o prato principal, uma papa cinza e mole tão indefinidaquanto o caldo. Will cutucou desconfiado tudo o que havia no prato para ter certeza de que nãocontinha nada vivo. Parecia bem inofensivo, então ele começou a pegar a comida sem entusiasmo,cedendo involuntariamente a cada bocado, acompanhado pela cacofonia gastronômica de seuscompanheiros de jantar.

Embora o sr. Jerome não tenha dito uma só palavra a Will durante toda a refeição, oressentimento desenfreado que irradiava dele era dominador. Will não fazia idéia do motivo, masestava vagamente começando a se perguntar se tinha alguma coisa a ver com sua mãe verdadeira,a pessoa de quem ninguém parecia estar preparado para falar. Ou será que o homemsimplesmente desprezava gente da Crosta, como ele? O que quer que fosse, ele queria que ohomem dissesse alguma coisa, qualquer coisa, só para quebrar o silêncio angustiante. A julgarpelo comportamento do sr. Jerome, Will sabia muito bem que não seria agradável quando elefalasse; estava preparado para isso. Só queria acabar com tudo aquilo. Começou a transpirar etentou afrouxar a gola engomada da nova camisa, passando o dedo por dentro do colarinho. ParaWill, parecia que a sala era tomada por uma víbora gelada e venenosa; ele se sentiu sufocado porela.

Seu alívio finalmente chegou quando, terminado o prato de papa, o sr. Jerome bebeu umcopo de água escura e se levantou de repente. Dobrou o guardanapo duas vezes e o atiroudespreocupadamente na mesa. Ele chegou à porta assim que o infeliz do serviçal estava entrandocom uma tigela de cobre nas mãos. Para horror de Will, o sr. Jerome lhe deu uma cotoveladabrutal. Will pensou que o homem ia cair ao ser jogado na parede. Ele lutou para recuperar oequilíbrio enquanto o conteúdo da tigela se derramava, e maçãs e laranjas rolaram pelo chão epararam embaixo da mesa.

Como se o comportamento do sr. Jerome não fosse nada extraordinário, o serviçal não fezmais do que murmurar. Will pôde ver um corte em seu lábio e o sangue escorrendo pelo queixoenquanto o infeliz engatinhava na base de sua cadeira, pegando a fruta.

O garoto estava estupefato, mas Cal parecia ignorar completamente o incidente. Will olhouo homem patético até ele sair da sala e depois, concluindo que não podia fazer nada, voltou suaatenção para a tigela de frutas frescas: havia bananas, pêras e alguns figos, além das maçãs elaranjas. Ele se serviu, grato por alguma coisa familiar e reconhecível depois dos dois primeirospratos. Nesse momento, a porta da frente bateu com tal estrondo que os caixilhos das janelastremeram. Os garotos ouviram os passos do sr. Jerome afastando-se pelo caminho da frente. FoiWill quem quebrou o silêncio.

— Ele não gosta muito de mim, não é?Cal sacudiu a cabeça enquanto descascava uma laranja.— Por quê...? — Will se interrompeu quando o serviçal voltou e parou submisso atrás da

cadeira de Cal.— Pode ir — ordenou Cal rudemente, sem sequer se dar o trabalho de olhar o homem, que

deslizou em silêncio para fora da sala.— Quem era esse? — perguntou Will.— Ah, esse era só o Watkins.

Will não disse nada por um momento, depois perguntou:— Que nome disse que era o dele?— Watkins... Terry Watkins.Will repetiu o nome para si mesmo várias vezes.— Tenho certeza de que conheço de algum lugar. — Embora não reconhecesse a origem, o

nome lhe incitou um pressentimento.Cal continuou a comer, desfrutando da confusão de Will, e então o irmão se lembrou, com

um sobressalto.— Eles desapareceram, toda a família!— Sim, certamente desapareceram.Confuso, Will rapidamente olhou para Cal.— Eles foram raptados!— Tiveram que ser, houve um problema. Watkins acabou descobrindo um canal de ar e não

podíamos deixar que contasse a ninguém.— Mas esse não pode ser o sr. Watkins... Ele era um homem grandalhão. Eu o vi... os filhos

dele eram da minha escola — disse Will. — Não, não pode ser a mesma pessoa.— Ele e a família foram postos para trabalhar — disse Cal friamente.— Mas... — Will gaguejou ao fazer malabarismos com a imagem mental do sr. Watkins

como ele era e como ficou agora — ...ele parece ter uns cem anos. O que aconteceu com ele? —Will não pôde deixar de pensar em seus próprios apuros, e nos de Chester. Então, este seria seudestino: obrigados a se escravizar a essa gente?

— Como acabei de dizer, todos foram postos para trabalhar — repetiu Cal, erguendo umapêra para cheirar a casca. Percebendo que havia uma mancha de sangue do sr. Watkins nela, ele alimpou com a camisa antes de dar uma dentada.

Will agora considerava o irmão com um novo olhar, tentando entendê-lo. O calor quecomeçava a sentir em relação a ele tinha se evaporado completamente. Havia um sentimento devingança, até uma hostilidade evidente no menino mais novo que Will não entendia, mas não seimportava muito com isso. Em um momento, ele estava dizendo que queria fugir da Colônia, nooutro, agia como se estivesse completamente à vontade ali.

A linha de raciocínio de Will foi interrompida quando Cal olhou por sobre a cadeira vaziado pai e suspirou.

— Isto é muito difícil para o pai, mas você tem que lhe dar tempo. Imagino que você lhetraga muitas lembranças.

— Sobre o quê, exatamente? — rebateu Will, sem sentir uma ta de simpatia pelo velhorabugento. Era ali que sua idéia de uma a nova família se desmanchava; se ele visse o sr. Jeromede novo, desmancharia mais rápido.

— Sobre a mãe, é claro. O tio Tam diz que ela sempre foi meio rebelde. — Cal suspirou,depois fez silêncio.

— Mas... aconteceu alguma coisa ruim?— Nós tínhamos um irmão. Era só um bebê. Ele morreu de febre. Depois disso, ela fugiu.

— Os olhos de Cal assumiram um ar pensativo.— Um irmão — Will lhe fez eco.

Cal o fitou, qualquer sugestão de seu habitual sorriso estava ausente do rosto.— Ela estava tentando nos levar quando os Styx a alcançaram.— Então ela escapou?— Sim, mas foi por pouco, e é por isso que ainda estou aqui. — Cal deu outra dentada na

pêra e ainda mastigava quando falou de novo. — O tio Tam disse que ela era a única pessoa queele conhecia que saiu e ficou lá fora.

— Ela ainda está viva?Cal assentiu.— Até onde sabemos, sim. Mas ela quebrou as leis, e, se você quebrar a lei, os Styx jamais

vão desistir, mesmo que você chegue à Crosta. Não vai terminar lá. Um dia eles vão pegá-lo, edepois vão mesmo castigar você.

— Castigar? Como?— No caso da mãe, execução — disse ele sucintamente. — É por isso que você tem que

pisar com muito cuidado. — Em algum lugar ao longe um sino começou a tocar. Cal se levantoue olhou pela janela. — Sete badaladas. Precisamos ir.

Na rua, Cal seguiu à frente e Will teve dificuldade para acompanhá-lo com as novas calçasesfolando as coxas a cada passo. Era como se tivessem entrado num rio de gente. As ruasfervilhavam, todos disparando freneticamente para lados diferentes como se estivessem atrasadospara alguma coisa. Parecia, no som e no visual, um bando confuso de aves coriáceas alçando vôo.Will seguiu Cal e, depois de alguns giros, eles se uniram ao final de uma fila na calçada de umaconstrução simples, parecida com um depósito. Diante de cada uma das portas de madeira comtachão na entrada, havia dois Styx naquela pose característica, arqueados como diretores de escolavingativos prestes a atacar. Will baixou a cabeça, tentando se misturar à multidão e evitar aspupilas negras dos Styx, que sabia que cairiam nele.

Dentro do prédio, o salão era enganosamente grande — tinha cerca de metade do tamanhode um campo de futebol. Lajotas extensas e reluzentes com trechos escuros de umidadeformavam o piso. As paredes eram grosseiramente rebocadas e caiadas. Olhando em volta, ele viuplataformas elevadas nos quatro cantos do salão, púlpitos de madeira tosca, cada um deles comum Styx, perscrutando a reunião como falcões.

Havia dois grandes quadros a óleo entre as paredes esquerda e direita. Devido à massa depessoas no caminho, Will não tinha uma visão clara da pintura da direita, então se virou paraexaminar a que estava mais perto. Em primeiro plano, havia um homem de casaco preto eguarda-pó verde-escuro que exibia uma cartola no alto de um rosto um tanto lúgubre, comsuíças. Observava uma grande folha de papel, que podia ser uma planta, aberta em suas mãos. Eparecia estar no meio de uma espécie de canteiro de obras. Agrupados ao lado dele havia muitosoutros homens com picaretas e pás, todos olhando-o com uma admiração extasiada. Por nenhummotivo em particular, isso trouxe à mente de Will as imagens que ele vira de Jesus e seusdiscípulos.

— Quem é esse? — perguntou Will a Cal, aproximando-se do quadro enquanto as pessoasesbarravam neles.

— Sir Gabriel Martineau, é claro. Chama-se “O Início da Escavação”.Com a multidão sempre crescente movendo-se lentamente no salão, Will teve que lançar a

cabeça de um lado para outro para ver melhor a tela. Além da figura principal, que Will agorasabia que era o próprio Martineau, as faces espectrais dos trabalhadores o fascinaram. Raiosprateados do que podia ser o luar irradiavam de cima e caíam em seus rostos, que cintilavam comuma suave luminosidade de santos. E, para aumentar este efeito, muitos pareciam ter uma luzainda maior diretamente acima da cabeça, como se tivessem halos.

— Não — murmurou Will para si mesmo, percebendo com um sobressalto que não eramhalos, mas cabelos brancos.

— Os outros — disse ele a Cal. — Quem são eles?Cal estava prestes a responder quando um colono corpulento lhe deu um encontrão rude,

quase fazendo-o rodar completamente. O homem continuou decidido em seu caminho semsequer se desculpar, mas Cal não pareceu nem um pouco abalado com a conduta do sujeito. Willainda esperava por uma resposta quando Cal voltou a se virar de frente para ele. Falou como seestivesse se dirigindo a alguém irremediavelmente idiota.

— São nossos antepassados, Will — ele suspirou.— Ah.Apesar do fato de Will estar ardendo de curiosidade sobre o quadro, era inútil tentar ver

mais alguma coisa, sua visão agora estava quase completamente obstruída pela massa de pessoas.Em vez disso, ele se virou para a frente do salão, onde havia uns dez bancos de madeiraentalhada, apinhadas de colonos sentados muito próximos. Colocando-se na ponta dos pés paraver o que estava além deles, Will pôde distinguir um enorme crucifixo de ferro na parede, pareciaser feito de duas seções de trilho de trem, unidos por imensos rebites de cabeça redonda.

Cal o puxou pela manga e os dois abriram caminho pela reunião e se colocaram mais pertodos bancos. As portas se fecharam num baque e Will percebeu que o salão lotara em suacapacidade máxima no menor tempo possível. Era sufocante, ele estava espremido entre Cal deum lado e colo-nos parrudos do outro. O salão esquentava rapidamente e farrapos de vapor feitofantasmas começavam a se elevar das roupas úmidas da multidão, circundando as luzes do teto.

O rebuliço de conversa morreu quando um Styx subiu ao púlpito ao lado da cruz de metal.Vestia uma toga preta e comprida, e os olhos brilhantes perfuraram o ar abafado. Por um breveinstante, ele os fechou e inclinou a cabeça para a frente. Depois, a ergueu devagar, a toga preta seabrindo, deixando-o parecido com um morcego prestes a levantar vôo enquanto ele estendia osbraços para a congregação e começava a falar de um jeito monástico, sibilante e monótono. Nocomeço, Will não conseguiu entender o que dizia, embora, dos quatro cantos do salão, as vozesdos outros Styx reiterassem as palavras do orador em sussurros ásperos, um som não muitodiferente do rasgar de pergaminhos secos. Will ouviu com mais atenção quando o orador elevoua voz.

— Saibam, irmãos, saibam — disse, o olhar ceifando a congregação enquanto ele soltava arespiração melodramaticamente.

— A superfície da Terra é tomada de criaturas em constante estado de guerra. Milhõesperecem dos dois lados e não há limites para a brutalidade de sua vilania. As vastas florestasforam por eles derrubadas e os pastos corrompidos com seu veneno. — Em volta, Will ouvia

murmúrios de aquiescência. O orador Styx inclinou-se para a frente, segurando a beira do púlpitocom os dedos pálidos.

— Sua voracidade só tem par em seus apetites pela morte, pela doença, pelo terror e pelaruína de tudo o que vive. E, apesar de suas iniqüidades, eles aspiram a se elevar ao firmamento...mas, atentem para isto, o peso excessivo de seus pecados os prenderá embaixo. — Houve umapausa enquanto os olhos negros varriam a multidão e, levando o braço esquerdo acima da cabeça,com o indicador longo e ossudo apontando para o alto, ele continuou.

— Nada permanece no solo ou nos grandes oceanos que não venha a ser caçado,perturbado ou saqueado. Para os seres vivos abatidos aos bandos, tais corrompidos são a um sótempo o sepulcro e o meio de transição.

“E quando chegar o Juízo”, agora ele baixou o braço e apontou agourentamente osmembros da congregação através do ar nevoento, “e atentem para estas palavras... eles serão,então, lançados ao abismo e se perderão para sempre do Senhor... e neste dia, os justos, oscorretos, nós, do caminho do bem, mais uma vez voltaremos para reclamar a superfície,recomeçar, construir um novo domínio... a nova Jerusalém. Pois isto, nos ensinaram e nos derama conhecer nossos antepassados, transmitido a nós ao longo dos tempos pelo Livro dasCatástrofes.”

Fez-se um silêncio no salão, um silêncio absoluto, sem ser rompido nem por uma tosse ouarrastar de pés. Depois, o orador voltou a falar numa voz mais calma, quase no tom de quemconversa.

— Então, que eles saibam, que compreendam. — Ele tombou a cabeça.Will pensou ter visto o sr. Jerome sentado nos bancos, mas não podia ter certeza porque ele

estava completamente cercado.Então, de repente, toda a congregação se uniu à ladainha do Styx:— A Terra é do Senhor, e de Seus seguidores, a Terra e tudo o que nela habita.

Manifestamos nossa eterna gratidão a nosso Salvador, Sir Gabriel, e aos Pais Fundadores por sualiderança e por fluírem um no outro, como tudo o que há na Terra de Deus também existe nomais alto nível, o Reino de Deus.

Houve uma pausa momentânea e o Styx falou novamente.— Assim no alto, como é embaixo.As vozes da congregação explodiram num amém enquanto o Styx dava um passo para trás e

Will o perdia de vista. Ele girou para fazer uma pergunta a Cal mas não houve tempo, porque acongregação de imediato começou a seguir para a porta, deixando o salão com a rapidez com quechegou. Os meninos foram arrastados pela maré de gente até que se viram de volta à rua, ondeficaram observando as pessoas partirem em diferentes direções.

— Não entendo essa história de “assim no alto, como é embaixo” — disse Will a Cal emvoz baixa. — Pensei que todo mundo odiasse o povo da Crosta.

— “No alto” não é a Crosta — respondeu Cal, tão alto e num tom tão petulante que várioshomens corpulentos ao alcance se viraram para olhar para Will com um esgar de repulsa. Eleestremeceu; estava começando a se perguntar se era tão bom assim ter um irmão mais novo.

— Mas com que freqüência vocês têm que fazer isso... ir à igreja? — arriscou-se Will,quando se recuperou da última resposta de Cal.

— Uma vez por dia — disse Cal. — Vocês vão à igreja na Crosta também, não é?

— Nossa família não vai.— Que estranho — disse Cal, olhando rapidamente em volta para ver se alguém podia

ouvir. — Mas é um monte de conversa fiada — zombou ele em voz baixa. — Vamos, precisamosver o Tam. Ele estará na taverna em Low Holborn.

Ao chegarem ao final da rua e virarem a esquina, um bando de estorninhos brancosespiralou acima deles e rodopiou para a área da caverna aonde iam os garotos. Aparecendo donada, Bartleby se juntou a eles, abanando o rabo e tremendo a base do queixo ao ver as aves,soltando um miado doce e melancólico que não combinava em nada com sua aparência.

— Vamos, seu bicho maluco, você nunca os pega mesmo — disse Cal enquanto o animalpassava por eles, a cabeça elevada, ansiando pelos passarinhos.

Ao seguirem em frente, os irmãos passaram por galpões e pequenas oficinas: uma ferrariaonde o ferreiro, um velho, iluminado de trás pela chama da fornalha, martelava incessantementeem uma bigorna, e lugares com nomes como Peças para Carroças e Carruagens Geo. Blueskin eProdutos Químicos Erasmus. Exercendo fascínio particular sobre Will, havia um jardim escurode aparência gordurosa, cheio de carruagens e maquina-ria quebrada.

— A gente não devia estar voltando? — perguntou Will, parando para olhar as engenhocasestranhas pela grade de ferro batido.

— Não, o pai vai demorar um pouco para chegar em casa disse Cal. — Depressa,precisamos andar.

Ao avançarem para o que Will supôs ser o meio da caverna, ele não conseguiu deixar deolhar tudo em volta, a paisagem incrível e as casas espremidas em filas aparentementeintermináveis. Até agora, Will não havia avaliado plenamente como este lugar era enorme. E,olhando para cima, viu uma névoa bruxuleante, uma coisa viva e móvel que pendia como umanuvem acima do caos de telhados, alimentada pelo brilho coletivo de todos os globos luminososde baixo.

Por um momento, Will se lembrou de Highfield durante a calmaria de verão, só que, ondedeveria haver o céu e a luz do sol, só havia vislumbres de uma enorme cobertura de pedra. Calacelerou o ritmo ao passarem por colonos que, pelos olhares demorados, evidentemente sabiamquem era Will. Vários atravessaram a rua para evitá-lo, murmurando, e outros pararam ondeestavam, fuzilando-o com os olhos. Alguns até cuspiram na direção dele.

Will ficou bastante perturbado.— Por que estão fazendo isso? — perguntou ele baixinho, colocando-se atrás do irmão.— Ignore-os — respondeu Cal com confiança.— Parece que eles me odeiam ou coisa assim.— É o que sempre acontece com os estranhos.— Mas... — começou Will.— Olha, não se preocupe com isso, é sério. Vai passar, você vai ver. É porque você é novo

e, não se esqueça, todos sabem quem é a sua mãe — disse Cal. — Eles não vão fazer nada comvocê. — De repente, ele parou e se virou para Will. — Mas por aqui, fique de cabeça baixa econtinue andando. Entendeu? Não pare para nada.

Will só entendeu do que Cal estava falando quando viu a entrada do outro lado do menino:era uma passagem pouco maior do que a largura do ombro. Cal entrou por ela e Will o seguiu

com relutância. Era escura e claustrofóbica, e pairava no ar o fedor de enxofre de esgoto antigo.Seus pés espadanavam em poças invisíveis de líquidos inidentificáveis. Ele teve o cuidado de nãotocar nas paredes, de onde escorria um limo escuro e gorduroso.

Will ficou agradecido quando finalmente chegaram à luz fraca, mas arfou ao ver uma cenasaída direto da Londres vitoriana. Construções assomavam dos dois lados do beco escuro,inclinando-se em ângulos tão precários que os andares superiores quase se uniam. Tinhamestrutura de madeira e encontravam-se num terrível estado de abandono. A maior parte dasjanelas ou estava quebrada, ou coberta de tábuas.

Embora não pudesse dizer de onde se originavam, Will ouviu vozes, gritos e risos vindo detodo lado. Havia uma citara estranha. Em algum lugar um bebê berrava insistentemente e cãeslatiam. Ao passarem apressados pelas fachadas deterioradas, Will sentiu cheiro de carvão efumaça de tabaco e, pelas portas abertas, pôde ver gente espremida junto a mesas. Homens emmanga de camisa penduravam-se para fora das janelas, olhando apaticamente o chão e fumandoseus cachimbos. Havia um valão aberto no meio do beco em que corria um regato lento deesgoto bruto, arrastando lixo vegetal e outros detritos. Will quase tropeçou nele e pulourapidamente para a beira do beco a fim de evitá-lo.

— Não! Cuidado! — Cal alertou rapidamente. — Continue na lateral!Enquanto eles se apressavam, Will mal piscava os olhos, que se rega-lavam com tudo o que

viam ali. Murmurou “é simplesmente incrível”, repetidas vezes para si mesmo, perguntando-se seo pai viera a este lugar, um pedaço vivo da história, quando sua atenção foi atraída por outracoisa. Havia gente nas passagens estreitas que se ramificavam dos dois lados. Silhuetas escuras emisteriosas se mexiam e ele ouviu vozes roucas, trechos de murmúrios histéricos e até, a certaaltura, o som distante de alguém gritando de agonia.

Uma figura escura se atirou de uma dessas passagens. Era um homem com um xale preto nacabeça, que ele puxou, revelando o rosto nodoso. Era coberto de uma camada repulsiva de suor ea pele era da cor de ossos velhos. Ele pegou o braço de Will, os olhos amarelos e remelentosolhando fundo os do garoto assustado.

— Ah, o que procura aqui, meu docinho? — ofegou ele asmaticamente, o sorriso tortorevelando uma fila de tocos de dentes marrons e desiguais. Bartleby rosnou enquanto Cal logo secolocava entre Will e o homem, arrancando o irmão do aperto do sujeito, e não largando maisnas várias voltas pelo beco até que enfim saíssem e voltassem à rua iluminada. Will soltou umsuspiro de alívio.

— Que lugar era aquele?— Os Cortiços. É ali que moram os pobres. E você só viu os arredores... não ia querer se

ver no meio deles — disse Cal, disparando à frente com tanta rapidez que Will se esforçou paraacompanhá-lo. Ainda sentia os efeitos colaterais das dificuldades que passou no Cárcere; seupeito doía e as pernas eram pesadas. Mas não ia deixar que Cal visse sua fraqueza, e se obrigou acontinuar.

Enquanto o gato quicava na distância, Will seguia obstinadamente Cal, que pulava as poçasmaiores de água e contornava o ocasional aguaceiro que esguichava. Caindo das sombras do tetoda caverna, estas torrentes pareciam vir de lugar nenhum, como gêiseres de cabeça para baixo.

Eles seguiram por uma série de ruas largas, apinhadas de casas estreitas com varanda atéque, ao longe, Will viu as luzes de uma taverna no alto de uma esquina íngreme, onde duas ruas

se encontravam. Havia pessoas reunidas na calçada em vários estados de embriaguez, rindo alto egritando, e de algum lugar vinha o canto estridente de uma mulher. Ao se aproximar, Will pôdedistinguir uma placa pintada, “The Buttock & File”, com a imagem de uma locomotiva, a maisestranha que ele vira na vida, que tinha, ao que parecia, um diabo arquetípico como condutor, depele vermelha e cheio de chifres, tridente e o rabo com ponta de flecha.

A fachada e até as janelas da taverna eram pintadas de preto e cobertas de uma camada defuligem cinza. As pessoas estavam tão espremidas ali que transbordavam para a calçada. Todasbebiam de canecos amassados de peltre, enquanto várias fumavam seus cachimbos compridos deargila ou objetos no formato de tulipa, que Will não reconheceu, mas que se assemelhavam aguardanapos sujos.

Grudado atrás de Cal, eles passaram por um homem de cartola parado a uma mesa pequenae dobrável. Gritava “Encontrem a dama pintada! Encontrem a dama pintada!” a algunsespectadores interessados enquanto cortava habilidosamente um baralho usando uma única mão.

— Meu bom senhor — proclamou o homem ao ver um dos espectadores avançar e colocaruma moeda na baeta verde da mesa. As cartas foram distribuídas e Will lamentou não poder vero resultado do jogo, mas de jeito nenhum se separaria do irmão enquanto se metiam no meio damultidão. Cercado por toda essa gente, ele se sentia vulnerável; e estava se questionando se podiaconvencer Cal a levá-lo para casa quando trovejou uma voz simpática.

— Cal! Traga Will aqui!Houve uma calmaria imediata na tagarelice em volta deles e, no silêncio, todas as cabeças se

viraram para Will. Tam surgiu de um grupo de pessoas e acenou com extravagância para os doisgarotos. As faces na multidão na calçada da taverna eram variadas: curiosas, sorridentes,inexpressivas — mas a maioria rinha um esgar de hostilidade descontrolada. Tam parecia não dara mínima para isso. Atirou os braços grossos nos ombros dos sobrinhos virou a cabeça paraenfrentar a multidão, encarando-os num desafio mudo.

A cacofonia continuou dentro da taverna, servindo apenas para aumentar o bocejo desilêncio do lado de fora e a crescente tensão que o acompanhava, ainda mais intensa. Este silênciohorrível encheu os ouvidos de Will, esmagando, inchando e cobrindo todo o resto.

Depois um arroto, o maior e mais alto que Will ouvira na vida, saiu de alguém na multidão.À medida que os últimos ecos voltavam dos prédios vizinhos, o encanto foi quebrado e toda amultidão explodiu numa gargalhada áspera, entremeada por gritos e o ocasional uivo de lobo.

Logo toda a algazarra diminuiu e as pessoas se acomodaram novamente, o ruído deconversa reaparecendo enquanto um baixinho era parabenizado por todos, recebendo tapinhasnas costas com tanta energia que teve que cobrir a bebida com a mão para evitar que sederramasse.

Ainda tremendamente constrangido, Will ficou de cabeça baixa. Não pôde deixar deperceber quando Bartleby, esticado sob o banco onde o homem se sentava, levantou-se derepente, como se um parasita ou outra coisa o tivesse mordido. Dobrando-se, o gato começou alamber as partes inferiores com uma perna traseira apontada para cima, ficandoextraordinariamente parecido com um peru mal depenado.

— Agora vai conhecer a ralé — disse tio Tam, os olhos passando brevemente pela multidão—, permita-me apresentá-lo à realeza, a crème de la crème. Este é Joe Waites — acrescentou,

colocando Will de frente para um velho enrugado. Sua cabeça era encimada por um barreteapertado que parecia comprimir a metade superior da cara, deixando os olhos esbugalhados eiçando as bochechas num sorriso involuntário. Um único dente se projetava da arcada superiorcomo uma presa de marfim. Ele ofereceu a mão a Will, que a apertou com relutância, um tantosurpreso por achá-la quente e seca.

— E este — Tam inclinou a cabeça para um homem garboso que vestia um vulgar ternoxadrez de três peças e óculos de aro preto — é Jesse Shingles. — O homem fez uma mesuraelegante e depois riu, erguendo as sobrancelhas grossas.

— E, não menos importante, o inigualável Imago Freebone. — Um homem de cabelomolhado e comprido, puxado num rabo-de-cavalo de motoqueiro, estendeu uma mão enluvada, ocasaco de couro volumoso se abrindo e revelando o corpo enorme de barril. Will ficou tãointimidado com a massa do homem que quase deu um passo para trás.

— É um grande prazer conhecer tal lenda sagrada, sendo nós tão humildes personagens —disse Imago, curvando o corpanzil para a frente e penteando um topete inexistente com a outramão.

— Hã... olá — disse Will, sem saber o que fazer dele.— Deixe disso. — Tam sorriu.Imago se endireitou, oferecendo a mão novamente e, num tom de voz normal, disse:— Will, é muito bom conhecer você. — O garoto apertou a mão nova-mente. — Eu não

devia brincar — acrescentou Imago com sinceridade. — Todos sabemos o que você passou,sabemos bem demais. — Seus olhos eram calorosos e simpáticos enquanto ele continuava asegurar a mão de Will entre as dele, soltando-a por fim com um aperto reconfortante. — Eumesmo tive o prazer da Luz Negra várias vezes, cortesia de nossos caros amigos.

— É, deu-lhe a azia mais medonha do mundo — disse Jesse Shingles com um sorrisinho.Will estava bastante amedrontado com os amigos do tio e sua aparência estranha, mas,

olhando em volta, ocorreu-lhe que eles não eram tão diferentes da maioria dos farristas nacalçada da taverna.

— Vou lhes pagar um trago de New London. — Tam entregou dois canecos aos garotos.— Vá com calma, Will, você não saboreou nada como isto na vida.

— Por quê? O que tem nela? — perguntou Will, olhando desconfiado o líquidoacinzentado encimado por uma espuma fina.

— Não vai querer saber, meu rapaz, não vai querer mesmo — disse Tam e os amigos riram;Joe Waites soltou piados peculiares de passarinho, enquanto Imago atirou a cabeça para trás edeu uma gargalhada extravagante mas completamente silenciosa, sacudindo com vigor os ombrosgrandes. Debaixo do banco, Bartleby grunhia e lambia os lábios com ruído.

— Então você foi a seu primeiro serviço religioso — quis saber o tio Tam. — O que achoudele?

— Foi, é... interessante — respondeu Will, sem querer se comprometer.— Depois de alguns anos, não será — afirmou o tio. — Ainda assim, mantém os Pescoços

Brancos à distância. — Ele tomou um longo gole da caneca, depois endireitou as costas e soltouum suspiro satisfeito. — É, se eu ganhasse um florim por cada “assim no alto, como é embaixo”que dissesse, seria hoje um homem rico.

— Assim o ontem, como é o amanhã — disse Joe Waites numa voz cansada e anasalada,

imitando um orador Styx. — “Assim declara o Livro das Catástrofes.” — Ele deu um bocejoexagerado, que permitiu a Will uma vi-são inquietante de sua gengiva rosada e o dente triste esolitário.

— E se você ouviu uma catástrofe, ouviu todas. — Imago cutucou as costelas de Will.— Amém — entoaram em coro Jesse Shingles e Joe Waites, batendo os canecos e rindo. —

Amém a isso!— Ora, ora, traz conforto a eles, que não pensam por si mesmos — disse Tam.Will olhou Cal pelo canto do olho e viu que ele havia se unido ao grupo e ria com os

outros. Isto deixou Will desnorteado; às vezes o irmão parecia estar cheio de zelo religioso, masem outras ocasiões não se furtava a demonstrar uma total falta de respeito, até desdém por isso.

— Então, Will, do que mais sente falta na vida lá em cima? — perguntou, de repente, JesseShingles, apontando o polegar para o teto rochoso. Will ficou inseguro e estava prestes a dizeralguma coisa quando o homenzinho continuou. — Sinto falta de peixe e fritas; mas não é que eutenha provado alguma vez. — Ele piscou para Imago como quem conspira.

— Já chega disso. — A testa de Tam se vincou de preocupação enquanto seus olhospercorriam as pessoas reunidas em volta deles. — Não é hora nem lugar.

Cal bebia satisfeito seu drinque, mas percebeu que Will estava meio reticente com o dele.Ele enxugou a boca com as costas da mão e se virou para o irmão, gesticulando para o caneco deWill, ainda intocado.

— Ande, experimente!Will tomou um gole inseguro do fluido esbranquiçado e o segurou na boca por um

momento antes de engolir.— E então? — perguntou Cal.Will passou a língua pelos lábios.— Nada mal — respondeu ele. Nesse momento a bebida fez efeito. Seus olhos se

arregalaram e encheram-se de água, e a garganta começou a arder. Ele ficou engrolado, tentandoem vão reprimir a tosse que se seguiu. Tam e Cal sorriram. — Não tenho idade para beber álcool— resmungou Will, colocando o caneco na beira da mesa.

— E quem é que vai impedi-lo? As regras são muito diferentes por aqui. Desde que fiquedentro da lei, faça sua parte e compareça aos serviços religiosos, ninguém se importa de vocêaliviar um pouco a tensão. Não é da conta de ninguém mesmo — disse Tam, dando-lhe tapinhasgentis nas costas.

Como que para mostrar sua concordância, o grupo reunido ergueu os canecos e os bateucom saudações de “Latrinas ao alto!”.

E assim continuou, bebida após bebida, até a quarta ou quinta rodada — Will perdeu aconta. Tam tinha acabado de contar uma piada enrolada e insondável sobre um policial flatulentoe a filha de um malabarista cego, em que Will não viu pé nem cabeça, embora todos os outros aachassem hilária.

Pegando o caneco e ainda rindo, de repente Tam olhou a bebida e, com o polegar e oindicador, tirou alguma coisa da espuma.

— Peguei a maldita lesma de novo — disse ele, enquanto os outros explodiam mais umavez numa gargalhada descontrolada.

— Neste caso...! — Tam riu e, para surpresa de Will, colocou o objeto cinza e mole nalíngua. Ele o moveu pela boca antes de mastigado e depois engolir, para uma explosão deaplausos dos amigos.

No silêncio que se seguiu, Will sentia-se suficientemente cheio da coragem de bêbado parafalar.

— Tam... tio Tam... preciso de sua ajuda.— O que quiser, garoto — disse Tam, pousando a mão no ombro de Will. — Só precisa

pedir.Mas por onde começar? Por onde ele ia começar? Tinha tantas preocupações girando pela cabeça

embriagada... encontrar o pai... e saber da irmã... e da mãe... mas que mãe? Em meio a esta névoa,cristalizou-se um pensamento premente — uma coisa, acima de todas as outras, que ele precisavafazer.

— Tenho que libertar o Chester — soltou Will.— Shhh! — Tam sibilou. Ele olhou nervoso em volta. Todos se aproximaram dele numa

roda estreita e reservada.— Tem alguma idéia do que está pedindo? — perguntou o tio em voz baixa.Will olhou confuso para ele, sem saber como responder.— E para onde você iria? Voltaria a Highfield? Acha que estaria seguro lá de novo, com os

Styx caçando você? Você não ia durar uma semana. Quem iria protegê-lo?— Posso procurar a polícia — sugeriu Will. — Eles iam...— Você não está ouvindo. Eles têm gente em toda parte — reiterou Tam vigorosamente.— E não só em Highfield — intrometeu-se Imago em voz baixa. — Não se pode confiar

em ninguém da Crosta, nem na polícia... em ninguém.Tam assentiu.— Precisa sumir em um lugar em que eles jamais pensariam em procurar por você. Sabe

aonde poderia ir?Will não sabia se era do cansaço ou do efeito do álcool, mas estava achando difícil conter as

lágrimas.— Mas não posso simplesmente não fazer nada. Quando precisei de ajuda para encontrar

meu pai — disse ele com a voz rouca, a garganta se fechando de emoção —, a única pessoa emque pude confiar foi Chester, e agora ele está no Cárcere... Por minha causa. Eu devo isso a ele.

— Tem alguma idéia do que é ser um fugitivo? — perguntou Tam. — Passar o resto davida correndo de cada sombra, sem um único amigo para ajudá-lo porque você é um risco paratodos que o cercam?

Will engoliu em seco ruidosamente enquanto apreendia as palavras de Tam, ciente de quetodos os olhos do pequeno grupo estavam nele.

— No seu lugar, eu me esqueceria de Chester — disse Tam severa-mente.— Eu... não... posso — disse Will com a voz tensa, olhando a própria bebida. — Não...— É assim que as coisas são aqui embaixo, Will... você vai se acostumar com elas — disse

Tam, sacudindo a cabeça enfaticamente.O bom humor de minutos atrás evaporou por completo e agora o rosto de Cal e dos

homens de Tam, reunidos em volta de Will, eram severos e pouco solidários. Ele não sabia se

tinha cometido uma gafe e disse a coisa totalmente errada, mas não podia deixar como estava —seus sentimentos eram fortes demais. Ele ergueu a cabeça e olhou diretamente nos olhos de Tam.

— Mas por que vocês todos ficam aqui embaixo? — perguntou ele. — Por que todomundo simplesmente não sai... não foge?

— Porque — começou Tam lentamente — apesar de tudo, aqui é o lar. Pode não ser grandecoisa, mas é só o que a maioria das pessoas conhece.

— Nossas famílias estão aqui — acrescentou Joe Waites com energia. — Acha quepodemos simplesmente desaparecer e deixá-los? Faz alguma idéia do que aconteceria sefizéssemos isso?

— Represálias — disse Imago numa voz que mal era audível. Os Styx sacrificariam muitosdeles.

— Rios de sangue — sussurrou Tam.Joe Waites se aproximou mais de Will.— Pensa realmente que ficaríamos felizes vivendo num lugar desconhecido, onde tudo é tão

completamente estranho para nós? Aonde iríamos? O que faríamos? — desabafou ele, tremendode agitação ao falar. Era evidente que estava muito aborrecido com as perguntas de Will e sócomeçou a recuperar a compostura quando Tam colocou a mão reconfortante em seu ombro.

— Ficaríamos deslocados... no tempo e no espaço — disse Jesse Shingles.Will só conseguiu assentir, intimidado pela intensidade de emoções que suscitou no grupo.

Ele suspirou, trêmulo.— Bom, seja o que for, tenho que tirar Chester de lá. Mesmo que faça isso sozinho — disse

ele.Tam olhou por um momento e depois sacudiu a cabeça.— Teimoso feito uma mula. É como dizem, tal mãe, tal filho — disse ele, um sorriso

voltando ao rosto. — Sabe, é um mistério como você se parece com ela. Depois que Sarahcismava com alguma coisa, não havia como demovê-la. — Ele afagou o cabelo de Will com amão enorme. — Teimoso feito uma maldita mula.

Imago deu um tapinha no braço de Tam.— É ele de novo.Aliviado por não ser mais o centro das atenções, Will foi meio lento para entender mas,

quando percebeu, observou que do outro lado da rua um Styx falava com um homem robusto decabelo branco e duro e costeletas compridas, vestido num casaco marrom brilhante, com umlenço vermelho e encardido enrolado no pescoço grosso. Enquanto ele observava, o Styxassentiu, virou-se e se afastou.

— Esse Styx anda caçando Tam há um bom tempo — sussurrou Cal a Will.— Quem é ele? — perguntou Will.— Ninguém sabe seu nome, mas nós chamamos de Mosca, porque dizem que é difícil se

livrar dele. Está envolvido numa vingança pessoal para derrubar o tio Tam.Will olhou a figura do Mosca se dissolver nas sombras.— Ele tem raiva de sua família desde que sua mãe deu uma rasteira nos Pescoços Brancos e

foi para a Crosta — disse Imago a Will Cal.— E eu vou jurar que ele acabou com meu pai até o dia de minha morte — disse Tam, a

voz uniforme e estranhamente desprovida de emoção. — A verdade é que ele o matou... aquilo

não foi acidente.Imago sacudiu a cabeça devagar.— Foi uma coisa horrível — concordou ele. — Uma coisa horrível.— E daí que ele esteja maquinando com aquela escória ali? — disse Tam, franzindo o

cenho ao se virar para Imago.— Com quem ele estava falando? — perguntou Will, olhando o outro homem que agora

atravessava a rua, seguindo para a multidão na calçada da taverna.— Não olhe para ele... esse é Heraldo Walsh. Um bandido... sujeitinho horrível — alertou

Cal.— Um ladrão, o mais baixo entre os inferiores — grunhiu Tam.— Mas então o que ele estava falando com um Styx? — disse Will, totalmente confuso.— Uma questão complexa — murmurou Tam. — Os Styx são um bando diabólico. Um

cinto vira cobra com eles. — Ele se virou para Will. — Escute, talvez eu possa ajudá-lo comChester, mas precisa me prometer uma coisa — cochichou ele.

— O que é?— Se você for pego, jamais implicará Cal, a mim ou a qualquer um de nós. Nossa vida e

nossas famílias estão aqui e, quer gostemos disso ou não, temos que ficar neste lugar com osPescoços Brancos... os Styx. Este é nosso quinhão. E vou repetir: eles jamais descansarão se vocêcruzar o caminho deles... vão fazer tudo o que puderem para pegá-lo... — De repente, Tam seinterrompeu.

Will viu o alarme nos olhos de Cal. Ele girou o corpo. Heraldo Walsh estava parado amenos de dois metros. E, atrás dele, um bando de bêbados se separara com temor para deixarpassar uma falange de colonos de aparência brutal. Eram claramente a gangue de Walsh — Willviu o ódio feroz em seus rostos. Seu sangue gelou. Tam de imediato se colocou ao lado de Will.

— O que você quer, Walsh? — disse Tam, os olhos como fendas e os punhos cerrados.— Ah, meu velho amigo Tamfoolery — disse Heraldo Walsh com um sorriso cruel e

desdentado. — Só queria ver o garoto da Crosta com meus próprios olhos.Will quis que o chão se abrisse e o engolisse.— Então, você é do tipo de escória que sufoca nossos canais de ar e polui nossas casas com

seu esgoto imundo. Minha filha morreu por culpa de sua espécie. — Ele deu um passo para maisperto de Will, erguendo a mão de forma ameaçadora, como se estivesse prestes a agarrar omenino petrificado. — Venha cá, seu lixo fedorento!

Will se acovardou. Seu primeiro impulso foi correr, mas ele sabia que o tio não ia deixarque lhe acontecesse alguma coisa.

— Já basta, Walsh. — Tam deu um passo para o homem, para impedir sua aproximação.— Está confraternizando com os ímpios, Macaulay — gritou Walsh, os olhos fixos na cara

de Will.— E o que você sabe de Deus? — retorquiu Tam, colocando-se total-mente na frente de

Will, para protegê-lo. — Agora, saia daqui! Ele é da família!Mas Heraldo era como um cachorro com um osso — não estava disposto a largar. Atrás

dele, seus acólitos o incitavam e xingavam.— Chama a isto de família? — Ele apontou um dedo sujo de terra para Will. — O vira-lata

de Sarah Jerome?Nisto vários de seus homens soltaram uivos e gritaram.— Ele é a cria bastarda de uma vagabunda traidora que fugiu para o sol — disse Heraldo.— Já basta — Tam sibilou entre dentes. Ele atirou o que restava da cerveja, atingindo-o em

cheio na cara, ensopando com o líquido cinza aguado o cabelo e as costeletas do homem. —Ninguém insulta minha família, Walsh. Prepare-se para a luta. — Tam fechou a cara.

A comitiva de Heraldo Walsh começou a entoar “Briga, briga, briga” e logo os gritosencheram o ar à medida que todos na calçada se juntaram a eles. Outros vieram correndo daporta da taverna para ver do que se tratava aquela comoção.

— O que está havendo? — perguntou Will a Cal, completamente apavorado enquanto amultidão enorme os cercava. Bem no meio da plebe fechada e excitada, Tam se postava resolutodiante do Heraldo Walsh gotejante, presos em uma encarada colérica.

— Uma briga de socos — disse Cal.O proprietário do lugar, um homem atarracado de avental azul, com uma cara vermelha e

suarenta, passou pelas portas da taverna e se enfiou pela multidão até chegar aos dois homens.Colocou-se entre Tam e Heraldo Walsh e se ajoelhou para fixar algemas nos tornozelos dos dois.Quando eles deram um passo para trás, Will viu que as algemas eram presas por uma correnteenferrujada, e assim os dois lutadores estavam unidos.

Então, o proprietário pegou um pedaço de giz no bolso do avental. Traçou uma linha nochão no meio dos dois homens.

— Conhecem as regras — trovejou a voz melodramaticamente, mais para a multidão doque para os dois lutadores. — Acima do cinto, sem armas, sem morder nem atingir os olhos.Terminará com um nocaute ou a morte.

— Morte?— cochichou Will trêmulo a Cal, que assentiu sombriamente.Depois o proprietário empurrou todos para trás até que se formasse um ringue de boxe

humano. Não foi uma tarefa fácil, uma vez que as pessoas se acotovelavam e competiam para veros dois homens.

— Coloquem-se em suas marcas — disse o homem em voz alta. Tam e Heraldo Walsh seposicionaram dos dois lados da linha de giz. O proprietário estendeu os braços para segurá-los.Soltou os lutadores com um grito de “Comecem!” e se retirou rapidamente.

Numa tentativa de tirar o equilíbrio de seu oponente, Walsh de imediato lançou o pé paratrás e toda a corrente — de mais ou menos dois metros — ficou retesada, puxando a perna deTam para a frente.

Mas Tam estava preparado para a manobra e usou o impulso em proveito próprio. Puloupara Walsh, o punho direito enorme voando na cara do homem mais baixo. O golpe raspou noqueixo de Walsh, arrancando da multidão um grito sufocado. Tam continuou com umacombinação rápida de golpes, mas seu oponente se esquivava com aparente facilidade, abaixando-se e mergulhando como um coelho demente, enquanto a corrente entre eles matraqueava alto nochão em meio aos gritos e berros.

— Por Deus, esse aí é rápido — observou Joe Waites.— Mas ele não tem o alcance de Tam, não é? — argumentou Jesse Shingles.E então Heraldo Walsh, agora agachado, lançou-se sob a guarda de Tam e mandou um

murro em seu queixo, um uppercut rápido que chocalhou a cabeça de Tam. O sangue jorrou de

sua boca, mas ele não hesitou em retaliar, descendo o punho no alto do crânio de Walsh.— O bate-estaca! — disse Joe animado e depois gritou: — Vai, Tam! Vai, beleza!Os joelhos de Heraldo Walsh se dobraram e ele cambaleou para trás, cuspindo de raiva,

voltando imediatamente com uma saraivada de murros frenéticos, atingindo Tam em volta daboca. Tam recuou ao máximo que os limites da corrente permitiam, chocando-se com a multidãoatrás dele. Enquanto as pessoas davam um passo para trás a fim de que os dois lutadores tivessemmais espaço, Walsh o perseguia. Tam usou o tempo para se recuperar e refazer a guarda. Àmedida que Walsh se aproximava com os punhos socando o ar, Tam se abaixou e partiu para ooponente numa combinação de golpes esmagadores na costela e na barriga. O barulho daspancadas surdas, como fardos de feno sendo atirados no chão, podia ser ouvido por sobre osgritos e zombarias dos espectadores.

— Ele o está amaciando — disse Cal alegremente.Escaramuças esporádicas irrompiam em meio à multidão enquanto as discussões

multiplicavam-se entre os torcedores dos dois combatentes. De onde estava, Will percebeu quecabeças subiam e desciam, punhos se agitavam e canecos voavam, a cerveja espirrando para todolado. Ele também percebeu que o dinheiro trocava de mãos, enquanto as apostas eram feitasfebrilmente — as pessoas estendiam um, dois ou três dedos e trocavam moedas. O clima eracarnavalesco.

De repente, a multidão soltou um “Ooooh!” grave quando, sem aviso, Heraldo Walshmeteu um poderoso gancho de direita no nariz de Tam. Fez-se um silêncio dramático na gritariae a multidão o viu cair sobre um joelho, a corrente se esticando entre os dois.

— Isso não é bom — disse Imago, preocupado.— Vamos, Tam! — gritou Cal com vontade. — Macaulay, Macaulay, Macaulay... — berrou

ele, e Will o acompanhou.Tam continuava caído. Cal e Will podiam ver o sangue escorrendo de seu rosto e pingando

nos paralelepípedos da rua. Depois, Tam olhou para eles e piscou maliciosamente.— O cachorro velho! — disse Imago em voz baixa. — Lá vem ele.E sem dúvida, enquanto Heraldo Walsh pairava acima dele, Tam saltou com a graça e a

velocidade de um jaguar, metendo um uppercut alarmante que esmagou o queixo de Walsh,provocando um choque horripilante em seus dentes. Heraldo Walsh cambaleou para trás e Tamestava em cima dele, esmurrando-o com uma precisão mortal, golpeando o rosto do homem maisbaixo com tal rapidez e força que ele não teve tempo de preparar nenhuma forma de defesa.

Uma coisa coberta de saliva e sangue saiu da boca de Heraldo Walsh e caiu nosparalelepípedos. Chocado, Will viu que era grande parte de um dente quebrado. Mãos seestenderam no ringue numa tentativa de pegá-lo. Um homem de chapéu de feltro devorado portraças foi mais rápido, arrebatando-o e desaparecendo na multidão atrás dele.

— Caçadores de suvenir — disse Cal. — Demônios!Will olhou no exato momento em que Tam se aproximava de seu oponente, que agora era

erguido por alguns seguidores, exausto e arfando. Cuspindo sangue, o olho esquerdo inchado efechado, Heraldo Walsh foi empurrado para a frente bem a tempo de ver o punho de Tam darum último golpe esmagador.

A cabeça do homem voou para trás enquanto ele caía na multidão, que desta vez se separou,

vendo-o fazer uma dança lenta por alguns momentos de agonia, as pernas tortas como de umbêbado. Depois, ele simplesmente se curvou no chão como uma boneca de trapos molhada e aturba caiu em silêncio.

Tam estava curvando para a frente, os nós dos dedos esfolados pousados nos joelhos,tentando recuperar o fôlego. O proprietário se aproximou e cutucou a cabeça de Heraldo Walshcom a bota. Ele não se mexia.

— Tam Macaulay! — gritou o homem para a turba silenciosa, que de repente explodiu numrugido que encheu a caverna e deve ter sacudido as janelas do outro lado dos Cortiços.

As algemas de Tam foram retiradas e seus amigos correram para ele e o ajudaram a ir atéum banco, onde ele desabou sentado, sentindo o queixo enquanto os dois garotos assumiam oslugares a seu lado.

— O canalha baixinho era mais rápido do que eu pensava disse ele, olhando os nós dosdedos ao flexioná-los dolorosamente. Ele recebeu uma caneca de alguém, que lhe deu um tapinhanas costas e desapareceu na taverna.

— O Mosca está decepcionado — disse Jesse e todos se viraram, vendo o Styx no final darua, afastando-se de costas, batendo uns óculos peculiares nas coxas ao andar.

— Mas conseguiu o que queria — disse Tam com desânimo. — Correrá por aí que eu memeti em outra briga.

— Não importa — disse Jesse Shingles. — Você estava coberto de razão. Todos sabem quefoi Walsh quem começou.

Tam olhou a figura lamentável e flácida de Heraldo Walsh, largada onde havia caído.Nenhum de seus companheiros se aproximou para tirá-lo da rua.

— De uma coisa eu tenho certeza... ele vai se sentir um jantar de Coprólito quando acordar— Imago riu enquanto um barman atirava um balde de água na figura e voltava rindo paradentro da taverna.

Tam assentiu pensativamente e tomou um longo gole de bebida, enxugando os lábios roxoscom o antebraço.

— Se ele acordar — disse ele baixinho.

Capítulo Vinte e Seis

O quarto de Rebecca se encheu do estrondo do trânsito da manhã de segunda, os carrosbuzinando impacientes nas ruas treze andares abaixo. Uma leve brisa agitava as cortinas. Elatorceu o nariz com desdém ao sentir o fedor dos cigarros que a tia Jean fumara sem parar nanoite anterior. Embora a porta do quarto estivesse bem fechada, a fumaça se intrometia por cadafresta, como uma névoa amarelada e insidiosa procurando por novos cantos para manchar.

Ela se levantou, tirou a camisola e fez a cama enquanto entoava os primeiros versos de“You Are My Sunshine”. Cantarolando em lá-lá-lás vagos pelo resto da música, ela arrumou comcuidado um vestido preto e uma blusa branca no alto do edredom.

Rebecca foi até a porta e, colocando a mão na maçaneta, ficou completamente imóvel, comose um pensamento a impedisse. Virou-se lentamente e voltou até a cama. Seus olhos seiluminaram ao ver duas fotografias em porta-retratos prateados na mesa ao lado.

Pegando-os nas mãos, ela se sentou, olhando de um para outro porta-retrato. Em um deles,havia uma foto meio fora de foco mostrando Will inclinado sobre uma pá. No outro, os jovensdr. e sra. Burrows sentavam-se em espreguiçadeiras listradas numa praia desconhecida. Na foto, asra. Burrows olhava um sorvete enorme, enquanto o dr. Burrows parecia tentar enxotar umamosca com a mão borrada.

Todos tinham tomado caminhos distintos — a família se dividira. Será que eles pensavamseriamente que ela ia ficar ali para servir de babá da tia Jean, alguém ainda mais preguiçosa eexigente do que a sra. Burrows?

— Não — disse Rebecca em voz alta. — Para mim, acabou. — Um sorrisinho brincoumomentaneamente em seu rosto. Ela olhou as fotos uma última vez e soltou um longo suspiro.

— Objetos de cena — disse ela, e as atirou com tanta veemência que bateram no rodapédesbotado com um tinido de vidro se quebrando.

Vinte minutos depois, ela estava vestida e pronta para sair. Colocou as malinhas ao lado daporta da frente e foi até a cozinha. Numa gaveta ao lado da pia, estava o “esconderijo decigarros” da tia Jean. Rebecca rasgou os cerca de dez maços e atirou o conteúdo na pia. Depois,partiu para as garrafas de vodca barata. Rebecca abriu as tampas e as esvaziou de novo na pia,

todas as cinco garrafas, ensopando os cigarros.Por fim, ela pegou a caixa de fósforos da cozinha, ao lado do fogão, e a abriu. Tirando um

único fósforo, ela o riscou e acendeu uma folha amassada de papel toalha.Recuou e atirou a bola de fogo na pia. Os cigarros e o álcool arderam com um silvo

satisfatório, as chamas saltando para as torneiras de plástico cromado e os ladrilhos baratos erachados de estampa floral atrás delas. Rebecca não ficou para saborear a cena. A porta da frentebateu e ela e suas malinhas se foram. Com o som do alarme de incêndio pelas costas, ela foi parao patamar e desceu a escada.

Desde que o amigo fora raptado, Chester já passara do ponto do desespero na permanente noitedo Cárcere.

— Urh. Dois. Três... — Ele tentou esticar os braços para completar as flexões, parte darotina de treinamento diário que começara na prisão.

— Trê... — Ele respirou fundo e tensionou os braços sem nenhum entusiasmo.— Trê... — Ele soltou o ar superficialmente e caiu derrotado, a cara pousando na sujeira

invisível no piso de pedra. Chester se virou devagar e se sentou, olhando a janelinha deobservação na porta para se certificar de que não estava sendo vigiado enquanto unia as mãos.Querido Deus...

Para Chester, rezar pertencia aos silêncios cheios de tosse constrangidas das reuniões daescola... algo que vinha depois dos hinos mal cantados que, para alegria de seus colegas risonhos,alguns meninos temperavam com letras obscenas.

Não, só os nerds rezavam com sinceridade....por favor, mande alguém...Ele apertou as mãos com mais força, sem sentir nenhum constrangimento. O que mais

podia fazer? Lembrou-se do tio-avô, que um dia apareceu no quarto de hóspedes de sua casa. Amãe puxara Chester de lado e lhe dissera que o homenzinho de peruca engraçada estava fazendoterapia de câncer em um hospital de Londres e, embora Chester nunca o tivesse visto antes, eladisse que era da “família” e que isso era importante.

Chester imaginou o homem, com seu jornal Racing Post e o rude “Não quero comer essaporcaria estranha”, quando ele recebeu um prato perfeitamente bom de espaguete. Ele selembrou da tosse áspera que pontuava os numerosos “rolinhos” que ele ainda insistia em fumar,deixando a mãe de Chester exasperada.

Na segunda semana de viagens de carro ao hospital, o homenzinho foi ficando mais fraco emais retraído, como uma folha amarelando num galho, até que não falava de “viver no Norte”nem tentava tomar o chá. Chester ouvira, mas sem entender o motivo, o homenzinho gritar paraDeus no quarto de hóspedes, numa horrível respiração ofegante, naqueles dia antes de morrer.Mas agora ele entendia.

...me ajude, por favor... por favor...Chester sentia-se solitário e abandonado e... e por que, ah, por que ele teve que acompanhar

Will nessa excursão ridícula? Por que não ficou em casa? Ele podia estar lá agora, aquecido eseguro, mas não estava, e tinha mesmo ido com Will... e agora não havia nada que pudesse fazer, anão ser marcar a passagem dos dias pelas duas tigelas deprimentemente iguais de papa que

chegavam a intervalos regulares e os períodos intermitentes de sono insatisfatório. Ele agora seacostumara ao zumbido contínuo que invadia sua cela — o Segundo Oficial lhe disse que sedevia à maquinaria nas “Estações de Ventilação”. Ele na verdade começava a achá-loreconfortante.

Ultimamente, o Segundo Oficial vinha amolecendo um pouco o tratamento que dava aChester e de vez em quando se dignava a responder a suas perguntas. Era quase como se nãoimportasse mais se o homem mantinha ou não os procedimentos oficiais, o que deixou emChester a sensação medonha de que podia ficar ali para sempre ou, por outro lado, que algumacoisa estava para acontecer; que as coisas estavam chegando a um ponto crítico — e não paramelhor, segundo suspeitava.

Esta suspeita foi ainda mais intensificada quando o Segundo Oficial abriu a porta e ordenouque Chester se limpasse, dando-lhe um balde de água escura e uma esponja. Apesar de seustemores, Chester ficou grato pela oportunidade de se lavar, embora tenha doído terrivelmentedevido a seu eczema, que grassava como nunca. Antigamente, se limitava aos braços, só muito devez em quando espalhando-se por seu rosto, mas agora tinha irrompido em toda parte, até queparecia que cada centímetro de seu corpo estava áspero e escamoso. O Segundo Oficial tambémlhe atirara algumas roupas para que ele vestisse, inclusive umas calças enormes que pareciam tersido feitas de aniagem e lhe deram ainda mais coceira, como se isso fosse possível.

Além disso, o tempo se arrastava. Chester perdera a noção do tempo em que estava sozinhono Cárcere; podia ser há um mês, mas ele não tinha certeza.

A certa altura, ele ficou muito animado quando descobriu que, sondando delicadamentecom a ponta dos dedos, pôde distinguir letras na pedra de uma das paredes da cela. Havia iniciaise nomes, alguns com números que podiam ser datas. E, na base da parede, alguém cinzelara emletras maiúsculas: EU MORRI AOS POUCOS AQUI. Depois de descobrir isso, Chester nãoteve vontade de ler mais nada.

Ele também descobriu que, se ficasse na ponta dos pés na saliência revestida de chumbo,podia alcançar as barras de uma janelinha estreita no alto da parede. Segurando-as, ele podia seiçar para cima e ver o quintal da cozinha descuidada da cadeia. Para além dele, havia um trechode rua que levava a um túnel, iluminado por alguns postes com os globos sempre acesos. Chesterolhava implacavelmente a rua no ponto em que desaparecia no túnel, na esperança aflita de quetalvez, só talvez, pudesse ver o amigo, Will, voltando para salvá-lo. Mas Will não vinha nunca eChester ficava pendurado ali, esperando e rezando com fervor, enquanto os nós dos dedosficavam brancos da tensão e até que os braços cediam e ele caía de costas na cela, nas sombras, devolta ao desespero.

Capítulo Vinte e Sete

– Acorde, acorde!Will foi rudemente despertado de um sono profundo e sem sonhos por Cal gritando e sacudindoseu ombro sem piedade.

A cabeça de Will latejou melancolicamente quando ele se sentou na cama estreita. Ele sesentia bastante fraco.

— Levante-se, Will, temos obrigações.Ele não fazia idéia de que horas eram, mas tinha certeza de que ainda era muito cedo. Ele

arrotou e, ao sentir o gosto da cerveja da noite anterior azedando a boca, gemeu e voltou a sedeitar na cama estreita.

— Eu disse levante-se!— Tenho que fazer isso? — protestou Will.— O sr. Tonypandy está esperando e ele não é um homem paciente.Como é que vim parar aqui? De olhos bem fechados, Will ficou deitado imóvel, ansiando por

voltar a dormir. Parecia-lhe exatamente o primeiro dia de aula de novo, tal era a sensaçãopavorosa que o inundava. Ele não fazia absolutamente nenhuma idéia do que tinham reservadopara ele e não estava com vontade de descobrir.

— Will! — gritou Cal.— Tá bom, tudo bem. — Com uma resignação nauseante, ele se levantou, vestiu-se e seguiu

Cal para o térreo, onde estava à soleira da porta um homem baixo e troncudo de expressãosevera. Ele olhou para Will com um ar de franca repulsa antes de dar as costas a ele.

— Pegue, vista isso rápido. — Cal lhe passou um fardo preto e pesado. Will o abriu e lutoucom o que só podia ser descrito como um oleado que não cabia nele, desagradavelmente apertadonas axilas e em volta da virilha. Ele se olhou e depois para Cal, que vestia a mesma roupa.

— Estamos ridículos — disse ele.— Vai precisar dela aonde você vai — respondeu Cal severamente.Will se apresentou ao sr. Tonypandy, que não pronunciou uma palavra sequer. Por um

instante, ele olhou inexpressivamente para Will, depois, mexeu a cabeça para indicar que devia

segui-lo.Na rua, Cal partiu numa direção totalmente diferente. Embora ele também fosse de um

grupo de trabalho, era em outro quadrante da Caverna Sul e Will foi tomado de uma agitaçãopor não acompanhá-lo. Embora às vezes Will achasse o irmão meio cansativo, Cal era sua pedrade toque, seu guardião neste lugar incompreensível com suas práticas primitivas. Sentia-seterrivelmente vulnerável sem Cal a seu lado.

Seguindo sem nenhum entusiasmo, Will olhava de vez em quando para o sr. Tonypandyenquanto ele andava devagar por uma ladeira acentuada, a perna esquerda erguendo-se instávelem sua órbita e o pé batendo nas pedras do calçamento com uma pancada suave a cada passo.Praticamente tão largo quanto alto, ele vestia o peculiar chapéu canelado preto que era quasetodo puxado para baixo, quase nas sobrancelhas. Parecia ser feito de lã, mas num exame maisatento, era tecido de um material fibroso, algo parecido com fibra de coco. O pescoço curto erada largura da cabeça e de repente ocorreu a Will que, detrás, toda a coisa parecia um polegargigante apontando para fora de um sobretudo.

Enquanto eles avançavam pela rua, outros colonos apareceram atrás até que a tropa tinhauma dezena de pessoas. Eram em grande parte jovens, entre os dez e os quinze anos, peloscálculos de Will. Ele viu que muitos portavam pás, ao passo que alguns tinham ferramentasestranhas de cabo comprido meio parecidas com picaretas, com uma ponta afiada de um lado,mas uma concha comprida e curva do outro. Pelo desgaste do cabo revestido de couro e o estadodo ferro, Will podia ver que as ferramentas foram muito utilizadas.

A curiosidade o dominou, ele se inclinou para um dos meninos que andavam atrás dele e lheperguntou em voz baixa:

— Com licença, o que é isso que tem aí?O menino virou-se com cautela para ele e murmurou:— É um cortador de piche, é claro.— Um cortador de piche — repetiu Will. — Hã, obrigado — acrescentou ele enquanto o

menino reduzia o passo de propósito, ficando para trás de Will. A esta altura, sentiu-se maissozinho do que podia se lembrar e de repente foi tomado pelo desejo mais forte possível de sevirar e voltar para a casa de Jerome. Mas ele sabia que não tinha alternativa a não ser fazer o quelhe mandassem neste lugar. Ele tinha que obedecer.

Por fim, eles entraram num túnel, o bater das botas ecoando ao redor. As paredes tinhamveios diagonais de rocha preta e brilhante, como estratos de obsidiana ou até, ao olhar mais deperto, carvão polido. O que é que eles iam fazer? A cabeça de Will se encheu de imagens demineradores nus até a cintura, agachando-se pelas suturas estreitas e golpeando o carvão negro epoeirento. Sua mente girou de apreensão.

Depois de alguns minutos, eles entraram em outra caverna, menor do que a que acabaramde deixar. A primeira coisa que Will percebeu foi que o ar ali era diferente; a umidade aumentaraao ponto de ele sentir a água se acumulando no rosto e misturando-se com o suor. Então, elepercebeu que as paredes da caverna eram escoradas por enormes lajes de calcário. Cal lhe disseraque a Colônia era composta de uma série interligada de câmaras, algumas de formação natural eoutras como esta, feita pelo homem, com paredes parcialmente reforçadas.

— Meu Deus, espero que papai tenha visto isso! — disse Will baixinho, ansiando para parare saborear os arredores, talvez até fazer um ou dois esboços para registrar o que viu. Mas ele teve

que se contentar em apreender o máximo que podia enquanto o grupo seguia rapidamente.Havia poucas construções nesta caverna, o que lhe dava uma aparência quase rural e, um

pouco mais adiante, eles andaram por uns celeiros de vigas de carvalho e casas térreas quepareciam pequenos bangalôs, algumas destacadas mas a maioria construída nas paredes. Quantoaos moradores da caverna, ele só viu algumas pessoas portando volumosas bolsas de lona nascostas ou empurrando carrinhos de mão lotados.

O grupo seguiu o sr. Tonypandy, que virou a rua e entrou em um fosso, cujo fundo estavacheio de argila molhada. Escorregadia e traiçoeira, ela grudava nas botas, estorvando seuprogresso enquanto eles teciam seu caminho por uma rota sinuosa. Logo a trincheira se abriu emuma cratera de bom tamanho na base da parede da caverna e o grupo de trabalhadores parou aolado de dois prédios toscos de pedra com telhados retos. Os garotos pareciam saber que deviamsimplesmente esperar, encostando as pás e cortadores de piche enquanto o sr. Tonypandycomeçava uma discussão animada com dois homens mais velhos que saíram de uma dasconstruções. Os garotos do grupo brincavam e conversavam ruidosamente, às vezes lançandoolhares de banda demorados para Will, que ficou separado deles.

Depois, o sr. Tonypandy foi embora mancando para a rua e um dos homens mais velhosgritou para Will.

— Você vem comigo, Jerome. Vá para as cabanas.O homem tinha uma cicatriz vermelha no formato de crescente lunar na cara. Começava

pouco abaixo da boca e subia pelo olho esquerdo, passando pela testa, dividindo o cabelo brancodo homem e terminando em algum lugar atrás da cabeça. Mas, para Will, o aspecto maisperturbador era o olho do homem, permanentemente lacrimejando e coberto de uma névoamosqueada. A pálpebra sobre ele era tão dilacerada que a cada vez que o homem piscava, pareciaum limpador de pára-brisa com defeito lutando para funcionar.

— Lá! Lá! — ladrou ele, já que Will não conseguiu entender a ordem.— Desculpe — respondeu ele rapidamente. Depois ele e outros dois jovens seguiram o

homem da cicatriz até à construção mais próxima.O interior era abafado e, a não ser por algum equipamento no canto, parecia estar vazio.

Eles pararam ociosamente enquanto o homem da cicatriz chutava o chão como se procurasse poralguma coisa que perdera. Começou a praguejar baixinho até que a bota enfim se prendeu emalguma coisa sólida. Era um aro de metal. Ele o puxou com as duas mãos e ouviu-se um estaloalto, uma placa de aço se ergueu e revelou uma abertura de um metro quadrado.

— Muito bem, vamos descer.Um por um, eles desceram em fila uma escada molhada e enferrujada e, depois que todos

chegaram ao fundo, o homem da cicatriz pegou a lanterna no cinto e lançou sua luz pelo túnelrevestido de tijolos. Não era alto o bastante para se ficar de pé e, a julgar pelo estado da alvenaria,claramente estava erodido e precisava que a argamassa fosse refeita, onde esfarelara como giz.Will imaginou que devia ter sido usado décadas antes, se não séculos.

Havia uns dez centímetros de água escurecida no fundo do túnel e logo as botas de Willmergulharam ao seguirem atrás dos outros. Eles chapinharam por mais dez minutos, quando ohomem da cicatriz parou e se virou para eles de novo.

— Aqui embaixo... — falou o homem com condescendência a Will, como se estivesse

explicando uma coisa a uma criancinha... são perfurações. Nós retiramos o sedimento... nós asdesbloqueamos. Sim?

O homem da cicatriz girou a lanterna e iluminou o chão do túnel, entupido de pequenasilhas de agregados de sílex e lascas de calcário elevando-se da água. Ele tirou vários rolos decorda do ombro e Will observou quando cada menino pegou uma ponta e a amarrou comfirmeza na cintura. O homem da cicatriz amarrou a outra ponta de cada corda em si mesmo, demodo que eles estavam ligados como um grupo de alpinistas.

— Garoto da Crosta — grunhiu o homem da cicatriz —, amarramos a corda em nós... nósamarramos bem. — Will não se atreveu a perguntar por que enquanto pegava a corda e a passavana cintura, dando o melhor nó que pôde. Ao puxar para testá-la, o homem lhe estendeu umcortador de piche amassado.

— Agora nós cavamos.Os dois meninos começaram a golpear o chão do túnel e Will entendeu que devia fazer o

mesmo. Sondando com a ferramenta desconhecida, ele andou pelo revestimento de tijolos sob aágua suja até que chegou a um trecho mais macio de sedimento e pedra compactados. Elehesitou, olhando os outros meninos para se certificar de estar agindo corretamente.

— Nós ficamos cavando, não paramos — gritou o homem da cicatriz ao lançar a luz dalanterna em Will, que de imediato começou a cavar. Foi difícil, tanto devido ao confinamento eporque a ferramenta que ele usava, o cortador de piche, era desconhecida. E a água não facilitou atarefa; por mais rápido que ele trabalhasse, ela continuava voltando ao buraco cada vez maisfundo após cada golpe.

Logo Will pegou o jeito da nova ferramenta e dominou sua técnica. Agora, com um bomritmo, era ótimo ficar cavando sem parar. Todas as suas preocupações pareceram ser esquecidas,mesmo que só por pouco tempo, enquanto ele atirava para fora do buraco uma carga após outrade pedra e terra ensopadas. Com a água escorrendo após cada levada, ele logo estava até a coxa naperfuração, e os outros meninos tiveram de trabalhar furiosamente para acompanhado. Depois,com um baque de sacudir os ossos, o cortador de piche de Will se chocou em alguma coisainamovível.

— Nós cavamos em volta! — rebateu o homem da cicatriz.Com o suor escorrendo pela cara suja e ardendo os olhos, Will olhou o homem da cicatriz e

depois a água que batia em seu oleado, tentando entender o motivo da tarefa. Ele sabia queestaria liquidado com o homem da cicatriz se perguntasse, mas sua curiosidade levava a melhor.Quando ia se voltar para fazer uma pergunta, houve um grito urgente, interrompido quase nomomento em que começou.

— SEGURE! — gritou o homem da cicatriz.Will se virou a tempo de ver um dos outros meninos sumir completamente com um

gorgolejar alto, enquanto a água vertia para o que agora parecia um ralo enorme, do tamanho deum poço. A corda se retesou, cortando a cintura de Will e sacudindo com os movimentosdesesperados do menino que caía. O homem da cicatriz se abaixou e meteu as botas no saibro eno entulho do chão do túnel. Will achou que ficaria pregado na beira de sua perfuração.

— Puxe seu corpo para cima! — gritou o homem da cicatriz na direção do buraco emredemoinho. Will olhou alarmado, até que viu dedos encardidos arrastando-se pela cordaenquanto o menino se içava contra a correnteza. Quando se colocou de pé de novo, Will viu a

expressão apavorada em seu rosto sujo de lama.— Um buraco já foi. Agora o resto de vocês tem que continuar — disse o homem da

cicatriz, recostando-se na parede de trás ao pegar um cachimbo e começar a limpar o fornilhocom uma faca de bolso.

Will golpeou às cegas o sedimento muito compactado em torno do objeto entalado noburaco, até que a maior parte dele foi removida. Ele não sabia o que era mas, quando espetou aobstrução, sentiu-a esponjosa, como se fosse uma madeira encharcada de água. Ao impelir ocalcanhar para baixo numa tentativa de afrouxá-la, houve um silvo súbito, ela se desalojou e asuperfície por baixo de seus pés literalmente cedeu. Não havia nada que ele pudesse fazer, eleestava em queda livre, a água jorrando em volta dele com uma cascata de cascalho e lama. Seucorpo bateu nas laterais do buraco, o cabelo e o rosto encharcados e cobertos de saibro.

Ele se retorcia feito uma marionete quando a corda interrompeu sua queda. Em menos deum segundo, recuperou o bom-senso; calculou que tinha caído pelo menos seis metros, mas nãofazia idéia do que estava abaixo dele na escuridão.

Agora é a minha chance, ocorreu-lhe num lampejo. Ele tateou desesperadamente por baixo dooleado, nos bolsos da calça, a mão se fechando no canivete.

...de fugir...Ele olhou para baixo, a escuridão absoluta do desconhecido, calculando as probabilidades, a

corda retesando enquanto os outros começavam a puxar....e papai está aqui embaixo... em algum lugar... A idéia passou por sua mente com a intensidade

de uma placa de néon....aqui embaixo, aqui embaixo, aqui embaixo ... Repetia, piscando com o zumbido maçante de

uma descarga elétrica....água, estou ouvindo água...— SUBA PELA CORDA, GAROTO! — ele ouviu o homem da cicatriz berrar de algum

lugar acima. — SUBA PELA CORDA!A mente de Will disparou enquanto ele tentava entender os sons abaixo; borrifos fracos e o

gorgolejar de água em movimento eram audíveis por sobre os rangidos pendulares da cordagrossa que mordia sua cintura, seu cabo salva-vidas de volta à Colônia.

...mas que profundidade terá?Havia água embaixo, isto era certo, mas ele não sabia se era suficiente para amortecer a

queda. Ele abriu o canivete e o apertou na corda, posicionando para cortá-la.Sim... Não?Se a água não fosse funda o suficiente, ele morreria da queda neste lugar lúgubre e solitário.

Ele imaginou lascas dentadas de pedra, afiadas feito navalhas e letais, como num gibi... no quadroseguinte era seu corpo sem vida, empalado e quebrado enquanto seu sangue era bombeado parafora, misturando-se com a escuridão.

Mas ele se sentia imprudente e ousado. Passou a lâmina na corda e a primeira trança defibras se separou.

Uma fuga audaz! passou por sua mente, ainda mais brilhante do que antes, como os créditosde uma aventura de Hollywood. As palavras traziam orgulho e coragem, mas a imagem da cara deChester, rindo e feliz, estilhaçou-a em um milhão de fragmentos. Will estremeceu de frio, o corpo

ensopado e colado de lama.A gritaria abafada do homem da cicatriz mais uma vez vagou do alto, indistinta e confusa

como um tirolês cantando por um cano, arrancando Will de seus pensamentos. Ele sabia quedevia começar a se içar para cima, voltando pela corda, mas não conseguia se decidir a fazer isso.Então ele suspirou e toda sua coragem e bravata desapareceram. Em seu lugar havia uma certezafria de que, se não fosse agora, haveria outra oportunidade de fugir e ele a aproveitaria da próximavez. Ele guardou o canivete, girou o corpo para cima e começou a subida laboriosa para juntodos outros.

Sete longas horas depois, ele tinha perdido a conta dos buracos que limparam enquantoavançavam sem parar pelo túnel. Por fim, olhando o relógio de bolso sob a luz da lanterna, ohomem da cicatriz disse-lhes que o dia de trabalho havia acabado. Eles marcharam de volta paraa escada e Will partiu sozinho na jornada para casa, as mãos e as costas doendo terrivelmente.

Ao sair da trincheira e seguir lentamente pela rua, ele localizou uma roda de colonos nacalçada de um prédio que tinha duas portas grandes, do tipo garagem. Eram cercados por umabarreira de engradados empilhados.

Enquanto um dos homens saía da reunião, Will ouviu uma risada aguda. Depois ele viu umacoisa que o fez piscar e esfregar os olhos. Um homem de blazer rosa-arroxeado e chapéu de palhasaracoteava no meio do grupo.

— Não pode ser! Não! É sim! É o sr. Clarke Júnior! — disse ele em voz alta, a ninguém emparticular.

— O quê? — veio uma voz de trás. Era um dos meninos que estivera trabalhando com Willno túnel. — Você o conhece?

— Sim! Mas... mas... o que é que ele está fazendo aqui? — Will ficou confuso ao pensar naloja dos Clarke na High Street e lutou com a aparição deslocada do sr. Clarke Júnior aquiembaixo, ainda dando pinotes com a roda de colonos atarracados. Enquanto olhava, Willobservou que ele pegava coisas das caixas com floreios meio teatrais e as exibia à platéia,passando-as pela manga da camisa como um vendedor de relógios ladino antes de colocadasdelicadamente numa mesa de armar. Depois as moedas caíam.

— Não me diga que ele está vendendo frutas! — disse Will.— E verduras. — O menino olhou curioso para Will. — Os Clarke vêm negociando

conosco há muito tempo...— Meu Deus, o que é isso? — interrompeu-o Will, apontando uma figura estranha que

entrara em seu campo de visão, vindo da sombra de uma pilha grande de caixas de frutas.Aparentemente ignorado, ele ficou do lado de fora do grupo de colonos e inspecionou umabacaxi como se fosse um artefato raro, enquanto o comércio continuava com os muitos gestossr. Clarke Júnior.

O menino seguiu o dedo de Will até a figura parada, que parecia ser humana, com braços epernas, mas era enfaixado numa espécie de traje de mergulho inchado, de uma cor de osso opaca.Era bulboso, como uma caricatura de um gordo, e a cabeça e o rosto eram completamenteobscurecidos por uma espécie de capuz. Seus grandes óculos de proteção cintilaram ao pegar aluz de um poste. Parecia uma lesma com forma humana, ou melhor, um homem com forma de

lesma.— Maldição, você não sabe de nada? — O menino riu com um desdém indisfarçado da

ignorância de Will. — É só um Coprólito.Will franziu a testa.— Ah, sim, um Coprólito.— De lá de baixo — disse o menino, lançando os olhos ao chão enquanto andava. Will

ficou para trás por um momento para ver o ser estranho, movimentava-se com tal lentidão que olembrou das sanguessugas que habitavam o lodo no fundo do tanque de peixes da escola. Erauma cena improvável, o sr Clarke Júnior com seu paletó rosa vendendo seus víveres à multidão,ao passo que o Coprólito examinava um abacaxi nas entranhas da Terra.

Ele estava pensando se devia falar com o sr. Clarke Júnior quando viu dois policiais na beirada multidão. Will saiu rapidamente e tomou seu caminho, importunado por uma dúvida quecolocou de lado todos os pensamentos: Se os Clarke sabiam da Colônia, quantos outros em Highfieldestavam levando uma vida dupla?

Com o passar das semanas, Will foi designado a outros locais de trabalho em outras partes daColônia. Isso lhe deu alguma noção do funcionamento desta cultura subterrânea e ele estavadecidido a documentar o máximo que pudesse em seu diário. Os Styx ocupavam o topo dahierarquia e eram a própria lei, e a seguir vinha a pequena elite governante dos colonos, à qual osr. Jerome tinha o privilégio de pertencer. Will não tinha idéia do que ele ou estes governantesrealmente faziam e, ao indagar por mais detalhes, parecia que Cal também não sabia. E depoisvinham os colonos comuns e por fim um estrato inferior de infelizes, que ou não podiamtrabalhar ou se recusavam a isto e eram deixados de lado para apodrecer em guetos, o maior delessendo os Cortiços.

Toda tarde, depois de Will ter escovado a terra e se livrado do suor usando as instalaçõesbásicas do suposto banheiro da casa dos Jerome, Cal o observava se sentar em sua cama e tomarnotas meticulosas, acrescentando o ocasional esboço onde acha que era justificado. Talvez fossede crianças trabalhando em um dos depósitos de lixo. Era uma cena e tanto: estes pequenoscolonos, pouco maiores do que bebês, tão versados em varrer os montes de lixo, com o máximocuidado para separar tudo em depósitos para processamento.

— Nada pode ser desperdiçado — disse-lhe Cal. — Sei disso porque costumava fazer omesmo!

Ou podia ser uma imagem da fortaleza severa no canto mais distante da Caverna Sul, ondemoravam os Styx, cercada por uma enorme paliçada de ferro. Este desenho fora de longe o maiordesafio para Will, já que ele não teve a oportunidade de ver o lugar de perto. Com sentinelaspatrulhando as ruas vizinhas, não era bom ser pego demonstrando interesse demais nela.

Cal não conseguia entender por que Will se esforçava tanto para escrever em seu diário. Eleimportunava Will constantemente, perguntando-lhe que sentido tinha tudo aquilo. Willrespondia que era algo que seu pai o ensinara a fazer sempre que encontrasse alguma coisadurante as escavações.

E lá estava ele de novo, seu pai. Dr. Burrows ainda era pai dele, no que dizia respeito a Will,

e o sr. Jerome, mesmo que fosse o pai verdadeiro — embora ele ainda não estivesse plenamenteconvencido disso — ocupava um lugar secundário na estima de Will. E sua mãe enlouquecida daCrosta e a irmã Rebecca ainda eram sua família. No entanto, ele sentia tal afeto por Cal, o tioTam e a vovó Macaulay que às vezes sua lealdade se agitava em sua cabeça com a ferocidade deum tornado arrolhado.

Enquanto dava os últimos toques em um desenho de uma casa da Colônia, sua mente vagoue ele voltou a devanear com a viagem do pai às Profundezas. Will estava ansioso para descobrir oque havia lá embaixo e sabia que um dia, em breve, ele também iria. Porém, toda vez que tentavaimaginar o que o futuro lhe reservava, era puxado de volta à realidade amarga com um solavanco,aos apuros de seu amigo Chester, ainda confinado naquele Cárcere abissal.

Will parou de desenhar e esfregou os calos que descascavam nas palmas das mãos.— Ferido? — perguntou Cal.— Não está mais tão ruim — respondeu Will. Sua mente voltou ao local de trabalho do

início daquele dia, limpando canais de pedra antes de drenar uma imensa fossa comunitária. Eleestremeceu. Foi a pior tarefa que teve até agora. Com os braços doloridos, ele reassumiu asanotações, mas sua concentração foi interrompida pelo gemido urgente de uma sirene, o som ocoe sinistro enchendo toda a casa. Will se levantou, tentando situar de onde vinha.

— O Vento Negro! — Cal pulou da cama e correu para perto da janela. Will se juntou a elee viu pessoas na rua correndo como loucas para todo lado, até que a rua ficou completamentedeserta. Cal apontou animado, depois retirou a mão, olhando os pêlos que se eriçavam no braçodevido à rápida formação de estática no ar.

— Lá vem ele! — Ele puxou a manga da camisa do irmão. — Eu adoro isso.Mas nada pareceu acontecer. O gemido obsessivo da sirene continuou enquanto Will, sem

saber o que procurar, olhou a rua vazia e não viu nada de extraordinário.— Ali! Ali! — gritou Cal, olhando para o interior da caverna.Will seguiu seu olhar, tentando distinguir o que era, mas parecia que havia alguma coisa

errada com sua visão. Era como se seus olhos não estivessem focalizando direito.E então ele entendeu o porquê.Uma nuvem densa ondulava na rua como tinta se difundindo pela água, rolando, agitando e

obscurecendo tudo em sua esteira. Ao olhar pela janela, Will pôde ver as luzes de rua tentandobravamente arder com um brilho ainda maior à medida que a névoa fuliginosa praticamente aseclipsava. Era como se ondas noturnas estivessem se fechando sobre as luzes submersas de umtransatlântico condenado.

— O que é isso? — perguntou Will. Ele apertou o nariz no vidro para ter uma visãomelhor da neblina escura que se espalhava rapidamente pelo resto da rua.

— É uma espécie de marola do Interior — disse-lhe Cal. — É chamado de Vento Levante.Vem das Profundezas inferiores... é meio como um arroto. — Ele riu.

— É perigosa?— Não, só poeira e essas coisas, mas as pessoas acham que traz má sorte respirá-la. Dizem

que contém germes. — Ele riu e adotou o tom monótono dos Styx. — Perniciosa para os que aencontram, ela cresta a carne. — Ele riu de novo. — Mas é ótima, não é?

Will olhou, petrificado. À medida que a rua abaixo sumia de vista, a janela ficou preta e elesentiu uma pressão desagradável nas orelhas. Seu corpo parecia estar zumbindo e todos os pêlos

ficaram de pé. Por vários minutos, a nuvem escura ondulou, enchendo o quarto do cheiro deozônio queimado e de um silêncio ensurdecedor. Por fim ela começou a se afinar e as luzes darua bruxulearam através do redemoinho de poeira como o sol irrompendo pelas nuvens, e ela sefora, deixando apenas manchas cinzentas e difusas pairando no ar, como se a cena tivesse sidovarrida pelo pincel de um aquarelista.

— Agora olhe isso!— Fogos de artifício? — perguntou Will, sem acreditar no que via.— É uma tempestade de estática. Sempre vêm depois de um Levante — disse Cal, tremendo

de empolgação. — Elas lhe dão uma chicotada danada se você estiver no caminho.Will observou num silêncio pasmo enquanto uma horda de bolas de fogo girou das nuvens

que se dispersavam em toda a rua. Algumas eram do tamanho de bolas de tênis, outras eramgrandes como bolas de praia, todas chiando furiosamente enquanto centelhas brilhantes partiamde suas margens, como se uma gangue de delinqüentes estivesse criando alvoroço com rodas deSanta Catarina.

Os dois meninos ficaram hipnotizados quando, bem diante deles, uma bola de fogo dotamanho de um melão, a luz vibrante iluminando suas faces jovens e refletindo-se em seus olhosarregalados, de repente partiu numa espiral descendente, girando e girando, lançando faíscas aomergulhar no chão, encolhendo ao tamanho de um ovo. Ao pairar pouco acima dosparalelepípedos, a bola de fogo moribunda pareceu cintilar com uma intensidade um poucomaior e, num piscar de olhos, apagou-se.

Will e Cal foram incapazes de se mexer, os vestígios dos últimos segundos ainda impressosem suas retinas em pequenos rastros de êxtase, como agulhas e alfinetes óticos.

Capítulo Vinte e Oito

Bem abaixo das ruas e casas da Colônia, uma figura solitária se mexia.No começo, o vento fora uma brisa suave, mas rapidamente formou-se uma ventania apavoranteque lançou saibro em seu rosto com a ferocidade de uma tempestade de areia. Ele colocou acamisa extra na cara e na boca à medida que ficava mais intensa, ameaçando derrubá-lo no chão.E a poeira era tão densa e impenetrável que ele não conseguiu enxergar as mãos diante de si.

Não havia nada a fazer além de esperar que passasse. Ele se deixou cair no chão e seenroscou numa bola, os olhos obstruídos e ardendo da poeira preta e fina. Ali, permaneceu, como uivo melancólico explodindo em seus pensamentos até que, fraco de fome, caiu num torporsemi-adormecido.

Algum tempo depois, acordou estremecido e, sem saber quanto tempo ficou enrascado nochão do túnel, levantou a cabeça para dar uma olhada insegura. A escuridão estranha do vento sefora, exceto por algumas nuvens que ainda se demoravam ali. Tossindo e cuspindo, ele se sentoue sacudiu a poeira das roupas. Passou um lenço sujo nos olhos lacrimejantes e limpou as lentesdos óculos.

Depois, de quatro, dr. Burrows engatinhou, raspando o saibro seco, usando a luz de umglobo luminoso para encontrar a pequena pilha de matéria orgânica que guardara para acenderantes da tempestade de poeira. Enfim localizando-a, ele pegou algo que parecia uma folhaenroscada de samambaia. Olhou-a com curiosidade — não fazia idéia do que era. Como tudo nosúltimos oito quilômetros de túnel, era seca e friável como pergaminho antigo.

Ele estava ficando cada vez mais preocupado com o suprimento de água. Ao ser embarcadono Trem dos Mineradores, os colonos lhe providenciaram um cantil cheio, uma maleta delegumes desidratados, algumas tiras de carne e um pacote de sal. Ele podia racionar a comida,mas o problema definitivamente era a água; já fazia dois dias que não conseguia encontrar umafonte de água fresca para encher o cantil e estava ficando perigosamente sem o que beber.

Depois de reorganizar a lenha, ele começou a bater duas lascas de sílex até que delas saltouuma faísca e uma chama pequena e bruxuleante tomou forma. Com a cabeça encostada no chãode saibro, ele soprou delicadamente a chama e a abanou com a mão, alimentando-a, até que o

fogo pegou, banhando-o com seu brilho. Depois, ele se agachou ao lado do diário aberto,limpando a poeira das páginas, e reassumiu seus desenhos.

Que descoberta! Um círculo de pedras regulares, cada uma do tamanho de uma porta, comuma escrita estranha entalhada na face. Ele não reconheceu a língua, apesar de todos os anos deestudos. Era diferente de qualquer coisa que vira na vida. Sua mente disparava enquanto eledevaneava com o povo que escrevera aquelas palavras, que vivera bem abaixo da superfície daTerra, possivelmente por milhares de anos, e no entanto tinha sofisticação suficiente paraconstruir este monumento subterrâneo. Pensando ter ouvido um barulho, de repente ele paroude desenhar e se sentou ereto. Controlando a respiração, ficou completamente imóvel, o coraçãomartelando no peito, espiando a escuridão para além da iluminação do fogo. Mas não era nada, sóo silêncio que a tudo impregnava e vinha sendo sua companhia desde o início da jornada.

— Está ficando nervoso, meu velho — disse ele, relaxando novamente. Ele se tranqüilizoucom o som da própria voz nos confins da passagem de pedra. — É só o seu estômagonovamente, seu tolo irritante — acrescentou, rindo alto.

Retirou a camisa da boca e do nariz. Seu rosto estava cortado e com hematomas, o cabeloembaraçado e uma barba desgrenhada pendia do queixo. As roupas estavam sujas e rasgadas emcertos lugares. Ele parecia um eremita louco. Com o crepitar do fogo, pegou o diário e seconcentrou mais uma vez no círculo de pedras.

— Isto é verdadeiramente excepcional... uma pequena Stonehenge. Que achadoinacreditável! — exclamou ele, esquecendo-se completa e momentaneamente da fome e da sedeque sentia. Seu rosto se animou e, feliz, continuou o desenho.

Em um dado momento, ele baixou o diário e o lápis, e se sentou imóvel por algunssegundos enquanto seus olhos assumiam uma expressão distante. Levantou-se e, pegando o globoluminoso, afastou-se do fogo até ficar fora do círculo de pedras. Começou a andar lentamente emvolta dele. Ao fazer isso, segurou o globo ao lado do rosto como um microfone. Franziu lábios ebaixou a voz um ou dois tons, tentando imitar um entrevistador de TV.

— Então, diga-me, dr. Burrows, recém-nomeado reitor de Estudos Subterrâneos, o que oprêmio Nobel significa para o senhor?

Andando agora mais rapidamente pelo círculo com um passo animado, sua voz voltou aotom normal e ele passou o globo luminoso para o outro lado do rosto. Ele assumiu um jeito umtanto surpreso, com uma pantomima de hesitação.

— Ah, eu... eu... devo dizer que... foi verdadeiramente uma grande honra e, em princípio,senti que não era digno de seguir os passos destes grandes homens e mulheres... — Nestemomento, os dedos dos pés bateram em um pedaço de pedra e ele girou às cegas, perdendo oequilíbrio por alguns passos. Recuperando a pose, ele recomeçou a andar, ao mesmo tempo quecontinuava com a resposta: — Os passos destes grandes homens e mulheres, esta sublime lista devencedores que me precederam.

Ele passou o globo para o outro lado do rosto.— Mas professor, as contribuições que o senhor fez a tantos campos... a medicina, a física, a

química, a biologia, a geologia e, sobretudo, a arqueologia... são inestimáveis. O senhor éconsiderado um dos maiores eruditos vivos do planeta. O senhor pensou que chegaria a isso nodia em que começou o túnel em seu porão?

Dr. Burrows soltou um “arre” melodramático enquanto o globo mudava de lado mais uma

vez.— Bem, eu sabia que havia mais reservado a mim... muito mais do que minha carreira no

museu em...A voz do dr. Burrows falhou e ele estacou. Seu rosto murchou e se despiu de toda emoção.

Ele pôs o globo no bolso, metendo-se nas sombras lançadas pelas pedras ao pensar em suafamília e se perguntar como estavam se saindo sem ele. Sacudindo a cabeça enlameada, ele voltouao círculo devagar e tombou ao lado do diário, encarando inexpressivamente as chamasbruxuleantes, que se tornavam mais borradas à medida que as observava. Por fim, ele tirou osóculos e esfregou as lágrimas dos olhos com as costas da mão.

— Preciso fazer isso — disse ele a si mesmo ao recolocar os óculos e mais uma vez tomar olápis. — Eu preciso.

O fogo irradiava de entre as pedras do círculo, projetando raios móveis de luz suave nochão e nas paredes da passagem. No meio desta roda, totalmente absorto, a figura de pernascruzadas murmurava ao apagar um erro no diário.

Neste momento, não pensava em ninguém no mundo; era um homem tão obcecado quenada mais importava, absolutamente nada.

Capítulo Vinte e Nove

Com o fogo crepitando na lareira, o sr. Jerome reclinou-se em uma das poltronas, lendo o jornal.De tempos em tempos, as páginas cerosas e pesadas teimavam em se agitar e ele dobrava ospulsos por reflexo para endireitá-las. Will não conseguiu distinguir nem uma única manchete deonde estava à mesa; a impressão maciça derramava-se no papel a tal ponto que parecia que umenxame de formigas tinha colocado os pés em tinta preta e pisado nas páginas.

Cal jogou outra carta e esperou pacientemente pela reação do irmão, mas para Will eraimpossível manter a concentração no jogo. Era a primeira vez que ficava no mesmo cômodo dosr. Jerome sem estar na extremidade receptora de olhares hostis ou de um silêncio ressentido. Istoem si representava um marco no relacionamento dos dois.

Houve um estrondo súbito quando a porta da frente se abriu e os três olharam.— Cal, Will! — berrou o tio Tam do hall, abalando a cena de aparente beatitude doméstica.

Ele se retesou ao ver o olhar de adaga do sr. Jerome, lançado da poltrona que ocupava.— Ah, desculpe, eu...— Pensei que tivéssemos nos entendido — grunhiu o sr. Jerome enquanto se levantava e

dobrava o jornal sob o braço. — Você disse que não viria aqui... quando eu estivesse em casa. Elepassou rígido por Tam sem sequer olhar.

Tio Tam fez uma careta e se sentou ao lado de Will. Com um aceno de conspiração, eleindicou aos meninos para chegarem mais perto. Esperou até que os passos do sr. Jerome tivessemdesaparecido na distância antes de falar.

— Chegou a hora — sussurrou Tam, pegando uma caixa de metal amassado de dentro docasaco. Ele abriu a tampa por uma ponta e os meninos observaram-no tirar um mapa esfarrapadoe o colocar sobre as cartas na mesa, alisando os cantos para que ficasse plano. Depois, ele se viroupara Will.

— Chester irá para o Desterro no final da tarde de amanhã — disse ele.— Ah, meu Deus. — Will se sentou ereto como se tivesse tomado um choque elétrico. —

É meio repentino, não é?— Só descobri agora... está planejado para as seis — disse Tam. — Haverá uma boa

multidão. Os Styx gostam de fazer um espetáculo com estas coisas. Eles acreditam que umsacrifício faz bem à alma.

Ele se voltou para o mapa, murmurando suavemente ao procurar na grade complexa delinhas, até que finalmente seu dedo parou em um quadradinho escuro. Depois ele olhou paraWill como se tivesse acabado de se lembrar de uma coisa.

— Sabe, filho, não é difícil... conseguir que você saia, sozinho. Mas com Chester também, já éuma embrulhada muito diferente. É preciso mais reflexão, porém — ele parou e Will e Calolharam em seus olhos —, eu matei a charada. Pode haver um jeito de escapar para a Crosta...através da Cidade Eterna.

Will ouviu Cal arfar, mas por mais que quisesse perguntar ao tio sobre este lugar, nãoparecia adequado enquanto Tam prosseguia. Ele passou a falar com Will do plano de fuga,traçando a rota no mapa para os garotos, que ouviam extasiados, absorvendo cada detalhe. Ostúneis tinham nomes como Rua Watling, Grande Norte e Parque do Bispo. Will interrompeu otio apenas uma vez com uma sugestão que, depois de pensar consideravelmente, Tam incorporouao plano. Embora por fora estivesse controlado e pragmático, o garoto sentia a empolgação e omedo crescendo na boca do estômago.

— O problema com isto — Tam suspirou — é o desconhecido, são as variáveis, que nãoposso evitar. Se você der com algum obstáculo quando estiver lá fora, terá que improvisar... fazero melhor que puder. — A esta altura, Will percebeu que parte da centelha havia desaparecido dosolhos de Tam, ele não estava com seu jeito normal e confiante.

Tam repassou o plano do início ao fim e, quando terminou, pegou uma coisa no bolso eentregou a Will.

— Aqui está uma cópia das orientações para depois que sair da Colônia. Se a pegarem comvocê, Deus nos livre, coma a maldita coisa.

Will abriu a cópia com cuidado. Era um pedaço de tecido, do tamanho de um lenço quandocompletamente aberto. A superfície era coberta de uma massa de linhas infinitesimais em tintamarrom, como um labirinto louco, cada uma delas representando um túnel diferente. Embora arota de Will estivesse claramente marcada em vermelho, Tam explicou rapidamente a ele.

Tam observou Will dobrar o mapa de pano, depois falou em voz baixa.— Isto tem que funcionar como um relógio. Você colocará toda a sua família no pior perigo

se os Styx pensarem, mesmo que por um segundo, que meu dedo está nisso... e não vai se limitarmim; Cal, sua avó e seu pai ficarão na linha de fogo. — Ele pegou o braço de Will com força e oapertou para destacar a gravidade de seu alerta. — Mais uma coisa, quando estiver na Crosta,você e Chester terão de desaparecer. Não tive tempo de arrumar nada, então...

— E Sarah? — disse Will quando a idéia lhe ocorreu, embora o nome ainda parecesse meioestranho em seus lábios. — Minha mãe verdadeira? Ela não pode me ajudar?

Uma sugestão de sorriso apareceu no rosto de Tam.— Estava mesmo me perguntando quando você ia pensar nisso — disse ele. O sorriso

desapareceu e ele falou como se escolhesse as palavras com cuidado. — Se minha irmã aindaestiver viva, e ninguém tem certeza disso, ela estará bem e verdadeiramente escondida. — Eleolhou a palma da mão enquanto a esfregava com o polegar da outra. — Um mais um às vezespode dar zero.

— O que quer dizer? — perguntou Will.

— Bem, se por milagre você por acaso encontrá-la, pode levar os Styx até ela. E então osdois acabarão como comida de vermes. — Ele ergueu a cabeça novamente e a sacudiu uma vezenquanto fitava Will com um olhar pensativo. — Não, eu sinto muito, mas você está por contaprópria. Terá que correr muito e por um longo tempo, para o nosso bem, e não só o seu. Guardeminhas palavras, se os Styx colocarem as garras em vocês, vão obrigá-lo a vomitar tudo, mais cedoou mais tarde, e isso colocaria a todos nós em perigo — disse ele agourentamente.

— Então temos que ir também não é, tio Tam? — sugeriu Cal a voz cheia de bravata.— Deve estar brincando! — Tam virou-se rapidamente para ele. — Não teríamos esperança

nenhuma. Nem mesmo os veríamos chegar.— Mas... — começou Cal.— Veja bem, isto não é um jogo, Cal. Se você cruzar com eles com demasiada freqüência,

não durará tempo suficiente para se arrepender. Antes que perceba, estará fazendo a Dança deSatanás. — Ele parou. — Sabe o que é isso? — Tam não esperou por uma resposta. — É umpequeno número primoroso. Seus braços são presos às costas... — ele se ergueudesconfortavelmente da poltrona — ...com fios de cobre, as pálpebras são arrancadas e você élargado na câmara mais escura que pode imaginar, cheia de Vermelhos de Fogo.

— Vermelhos do quê? — perguntou Will.Tam deu de ombros e, ignorando a pergunta de Will, continuou.— Quanto tempo acha que vai durar? Quantos dias batendo nas paredes na escuridão de

breu, a terra ardendo em seus olhos arruinados, antes de você desmaiar de exaustão? Sentindo asprimeiras mordidas em sua pele quando eles começarem a se alimentar? Eu não desejaria issonem a meu pior... — ele não terminou a frase.

Os dois meninos engoliram em seco, mas a expressão de Tam se iluminou novamente.— Já chega disso — disse ele. — Você ainda tem aquela luz, não tem?Ainda atordoado com o que acabara de ouvir, Will olhou pasmo para Tam. Ele se recompôs

e assentiu.— Ótimo — disse Tam ao pegar uma trouxinha de pano do bolso do casaco e colocada na

mesa diante de Will. — E isto pode ser útil.Will tocou a trouxa, inseguro.— Vamos, dê uma olhada.Will desamarrou os cantos. Dentro dela, havia quatro pedras pretas amarronzadas e nodosas

do tamanho de bolas de gude.— Pedras de nó! — disse Cal.— Sim. São mais raras do que botas de lesma. —- Tam sorriu. — São descritas nos livros

antigos, mas ninguém viu uma na vida, a não ser eu e meus rapazes. Imago encontrou estaporção.

— O que elas fazem? — perguntou Will, olhando as pedras estranhas.— Aqui embaixo, você não poderá derrotar um colono ou, pior ainda, um Styx num

confronto direto. As únicas armas que terá são luz e fuga — disse Tam. — Se chegar a um cantoapertado, abra uma dessas coisas. Jogue em algo duro e fique de olhos fechados... haverá aexplosão da luz mais forte que pode imaginar. Espero que estas ainda estejam boas —acrescentou, pesando uma delas na mão. Ele olhou para Will. — Acha que está preparado para

isso?Will assentiu.— Muito bem — disse o homenzarrão.— Obrigado, tio Tam. Nem posso lhe dizer como... — disse Will, a voz lhe faltando.— Não precisa, meu rapaz. — Tam afagou seu cabelo. Ele olhou a mesa e nada disse por

alguns segundos. Foi totalmente inesperado; o silêncio e Tam não combinavam. Will nunca o viradesse jeito, este homem gregário e enorme. Só pôde pensar que ele estava aborrecido e tentavaesconder isso. Mas quando Tam ergueu a cabeça, o sorriso largo estava di e sua voz trovejoucomo sempre fazia.

— Eu vi tudo isso vindo... sabia que ia acontecer, mais cedo ou mais tarde. Os Macaulay sãoleais e lutaremos por aquilo que amamos e em que acreditamos, independente do preço. Vocêteria tentado fazer alguma coisa para salvar Chester e iria atrás de seu pai, quer eu o ajudasse ounão.

Will assentiu, sentindo os olhos se encherem de lágrimas.— Idéias demais! — trovejou Tam. — Como sua mãe... como Sarah... um Macaulay da

cabeça aos pés! — Ele segurou Will com firmeza pelos ombros. — Minha cabeça sabe que vocêtem que ir, mas meu coração diz o contrário. — Ele apertou Will e suspirou.

— É uma pena... que tenhamos passado poucos momentos aqui embaixo, nós três. Naverdade, alguns momentos ótimos.

Will, Cal e Tam conversaram até a madrugada e, quando finalmente foi para a cama, Will nãoconseguiu dormir nada.

De manhã bem cedo, antes que houvesse alguma agitação na casa, Will preparou a mochila ecolocou no cano da bota o mapa de pano que o tio lhe dera. Verificou se as pedras de nó e oglobo de luz estavam nos bolsos e foi até Cal, acordando-o com uma sacudida.

— Estou indo — disse Will em voz baixa enquanto os olhos do irmão se abriam. Cal sesentou, coçando a cabeça.

— Obrigado por tudo, Cal — sussurrou Will —, e diga adeus à vovó por mim, tá?— Claro que direi — respondeu o irmão, depois franziu o cenho. — Sabe que eu daria

qualquer coisa para ir também.— Eu sei, eu sei... mas você ouviu o que Tam disse, eu tenho mais chances sozinho. De

qualquer modo, sua família está aqui — disse ele por fim, e virou-se para a porta.Will desceu a escada na ponta dos pés. Sentia-se alegre por estar em movimento de novo,

mas a alegria era temperada por uma pontada inesperada de tristeza por estar partindo. É claroque ele podia ficar aqui, se quisesse, num lugar a que realmente pertencia, em vez de se aventurarno desconhecido e arriscar tudo. Seria tão fácil simplesmente voltar para a cama. Ao chegar aohall, ele ouviu Bartleby roncando em algum lugar nas sombras. Era um som reconfortante, o somdo lar. Se fosse embora agora, nunca mais ouviria esse som. Ele parou na porta da frente ehesitou. Não! Como poderia conviver consigo mesmo se optasse por deixar Chester com os Styx?Preferia morrer tentando libertá-lo. Will respirou fundo e, olhando a casa silenciosa, deslizou atranca pesada da porta. Ele a abriu, chegou à soleira e a fechou delicadamente às costas. Estavado lado de fora.

Ele sabia que tinha uma distância considerável a cobrir, então andou rapidamente, a mochilabatendo ritmada nas costas. Precisou de menos de quarenta minutos para chegar ao prédio nabeira da caverna, descrito por Tam. Não havia como confundir, uma vez que era tão diferente damaioria das estruturas na Colônia, por ter um telhado de lajotas em vez de ser de pedra.

Ele agora estava na rua que levava ao Portão da Caveira. Tam dissera que ele tinha que ficaratento enquanto os Styx mudavam de sentinelas a intervalos aleatórios, e não havia como saber seum deles estava prestes a aparecer por ali. Saindo da rua, Will subiu em um portão e disparoupelo pátio que se estendia diante da construção, uma propriedade rural em ruínas. Ouviu umgrunhido de porco vindo de um dos prédios em silhueta e localizou algumas galinhas numcercado em outra área. Eram magras e desnutridas, mas tinham penas completamente brancas.

Ele entrou no prédio de telhado de lajotas e viu as velhas vigas de madeira encostadas naparede, como Tam havia descrito. Ao se aproximar de mansinho delas, algo se mexeu atrás dele.

— O que...?Era Tam. De imediato ele silenciou Will, colocando um dedo em seus lábios. Will mal pôde

conter a surpresa. Olhou inquisitivamente para ele, mas a expressão do homem era sombria e elenão sorria.

Sob as vigas, mal havia espaço para os dois ali e Tam se abaixou desajeitado ao deslizar umalaje enorme pela parede. Depois inclinou-se para Will.

— Boa sorte — sussurrou ele em seu ouvido e literalmente o empurrou pela aberturairregular. Depois a laje se fechou num raspão atrás de Will e ele estava sozinho novamente.

Na escuridão de breu, ele procurou o globo luminoso no bolso, ao qual já havia prendidoum pedaço de barbante grosso. Ele passou o barbante pelo pescoço, deixando as mãos livres. Noinício, andou pela passagem com facilidade, mas depois de nove ou dez metros ela caía numa viaestreita. O teto do túnel era tão baixo que Will teve que ficar de quatro. A passagem inclinava-separa cima e, ao seguir dolorosamente sobre as placas irregulares de pedra quebrada, sua mochilaraspava no teto.

Ele percebeu um movimento à frente e ficou paralisado. Tremendo um pouco, ergueu oglobo luminoso e viu o que era. Will prendeu a respiração enquanto algo branco lampejava pelapassagem e caía com um baque suave a cerca de dois metros dele. Era um rato sem olhos, dotamanho de um filhote de gato bem nutrido, com o pêlo branco e bigodes que se agitavam comoasas de borboleta. Ficou de pé sobre as patas traseiras, o focinho se retorcendo e os grandesincisivos cintilando em plena vista. Não demonstrava o menor medo de Will.

Will encontrou uma pedra no chão do túnel e a atirou com a maior força que pôde. Eleerrou o alvo e a pedra bateu na parede ao lado do animal, que sequer vacilou. Will ficouindignado que um simples rato o estivesse impedindo de prosseguir e avançou para o animal comum grunhido. Em um único salto sem esforço, ele pulou em Will, caindo habilidosamente em seuombro, e por uma fração de segundo nem o menino nem o rato se mexeram. Will sentiu osbigodes, delicados como cílios, roçando em seu rosto. Ele sacudiu os ombros freneticamente e orato se atirou para fora, disparando pela perna de Will ao acelerar na direção contrária.

— Seu bos... — murmurou Will, tentando se recompor antes de partir novamente.Ele engatinhou pelo que pareceram horas, as mãos se cortando e ficando sensíveis das lascas

afiadas espalhadas pelo chão. Depois, para grande alívio dele, a altura da passagem aumentou e

ele quase foi capaz de ficar de pé. Agora que podia se deslocar rapidamente, Will ficou quaseeufórico e sentiu um impulso irresistível de cantar ao andar pelas curvas do túnel. Ele pensoumelhor quando lhe ocorreu que as sentinelas do Portão da Caveira não deviam estar muito longede sua posição atual e era possível que o ouvissem.

Por fim, chegou à extremidade da passagem, coberta de várias camadas de aniagem rígida,suja de terra para camuflada, junto às pedras. Ele as puxou de lado e prendeu a respiração ao verque o túnel dava bem debaixo do teto de uma caverna e que havia uma queda de pelo menostrinta metros até a rua abaixo. Ficou satisfeito por ter ido tão longe, passado pelo Portão daCaveira, mas tinha certeza de que isto não podia estar certo. A altitude era tão estonteante que deimediato Will supôs que devia estar no lugar errado. Então as palavras de Tam lhe voltaram:“Parecerá impossível, mas vá devagar. Cal conseguiu comigo quando era muito mais novo, então você tambémpode fazer.”

Ele se inclinou para olhar o leque de saliências e fendas no paredão rochoso. Depois subiucautelosamente na beira de uma aba do túnel e começou a descer, verificando sem parar a cadapasso trêmulo antes de fazer o movimento seguinte.

Havia escalado pouco mais de seis metros quando ouviu um barulho embaixo. Um gemidodesolado. Will ficou imóvel e escutou, o coração martelando nos ouvidos. E surgiu novamente.Ele estava com um dos pés numa pequena saliência e o outro pendia no meio do ar, enquanto asmãos agarravam-se a um afloramento rochoso na altura do peito. Will girou a cabeça devagar eolhou por sobre o ombro.

Balançando uma lanterna, um homem andava para o Portão da Caveira com duas vacasemaciadas a alguns passos à frente. Gritou alguma coisa para elas enquanto as conduzia, sem amenor consciência da presença de Will acima dele.

Will estava inteiramente exposto, mas não havia nada que pudesse fazer. Ficou imóvel,rezando para que o homem não parasse e olhasse para cima. Então, aconteceu exatamente o queWill temia: o homem parou de repente.

Ah, não, essa não!Com sua visão do alto, Will podia distinguir com clareza o couro cabeludo branco e

brilhante do homem enquanto ele pegava alguma coisa em um saco no ombro. Era um cachimbode argila com a haste longa, que ele carregou com o tabaco de uma algibeira e acendeu, soltandopequenas nuvens de fumaça. Will o ouviu dizer alguma coisa às vacas e ele recomeçou a andar.

O garoto soltou um suspiro silencioso de alívio e, vendo que não havia mais ninguém,terminou rapidamente a descida, passando de uma saliência para outra até estar seguro no chão.Depois, correu o mais rápido que pôde pela rua, em cujas laterais havia campos de cogumelosimpossivelmente grandes, os chapéus bulbosos e ovais destacando-se de caules grossos. Ele agorasabia que eram porcini e, enquanto prosseguia, a luz balançando em sua mão lançou umamultiplicidade de sombras móveis nas paredes da caverna atrás dele.

Will reduziu o passo ao sentir uma pontada na lateral do corpo. Respirou fundo váriasvezes para tentar atenuá-la, depois se obrigou a acelerar de novo, ciente de que cada segundo eraprecioso, se queria alcançar Chester a tempo. Deixando caverna atrás de caverna, os campos deporcini por fim deram lugar a tapetes escuros de liquens e ele ficou aliviado quando localizou oprimeiro dos postes e a silhueta nebulosa de um prédio ao longe. Estava chegando mais perto. Derepente ele se viu num arco enorme recortado na pedra. Passou pelo arco, entrando no corpo

principal do Quartel. Logo os moradores lotavam os dois lados da rua e ele foi ficando cada vezmais nervoso. Embora ninguém parecesse estar por perto, ele fez o menor barulho possível comas botas ao correr. Estava com medo de que alguém aparecesse de uma das casas e o visse.

Depois, ele viu o que procurava. Era o primeiro dos túneis que Tam mencionara.“Você deve pegar as ruas de trás”, ele se lembrou das palavras do tio. “É mais seguro por ali.”— Esquerda, esquerda, direita. — Enquanto continuava, Will repetia a seqüência que Tam

cantarolara para ele.Os túneis eram largos o suficiente para a passagem de um coche. “Atravesse-os rapidamente”,

disse o tio. “Se encontrar alguém, dispense-o e aja como se devesse estar ali.”Mas não havia sinal de ninguém enquanto Will corria com toda a força, a mochila batendo

nas costas a cada passo. Quando saiu da caverna principal, estava suando e sem fôlego. Elereconheceu a silhueta atarracada da delegacia entre as duas estruturas mais altas de cada lado ereduziu os passos para uma caminhada para ter a oportunidade de se acalmar.

— Até agora, tudo bem — murmurou ele para si mesmo. O plano lhe parecera tão fácilquando Tam o descreveu, mas, naquele momento, ele se perguntava se tinha cometido um erropavoroso. “Você não terá tempo para pensar”, dissera-lhe Tam, apontando-lhe o dedo para enfatizaras palavras. “Se você hesitar, o ímpeto terá se perdido — e toda a coisa desmoronará.”

Will enxugou o suor da testa e se preparou para a fase seguinte.À medida que se aproximava, a visão da entrada da delegacia lhe trouxe as lembranças da

primeira vez em que ele e Chester foram arrastados por seus degraus e dos interrogatórioshorrendos que se seguiram. Todas voltaram numa enxurrada e ele tentou afastá-las da mente aodeslizar pelas sombras ao lado do prédio e levantar a mochila. Pegou a câmera, verificando-arapidamente antes de colocada no bolso. Depois escondeu a mochila e foi para a escada. Aosubir, Will respirou fundo e passou pelas portas.

O Segundo Oficial estava recostado em uma cadeira com os pés no balcão. Seus olhosgiraram ao dar pela presença do recém-chegado, os movimentos lentos como se ele estivessecochilando. Precisou de quase um segundo para reconhecer quem estava de pé diante dele, entãouma expressão confusa apareceu em seu rosto carnudo.

— Ora, ora, ora, Jerome. Por que diabos voltou aqui?— Vim ver o meu amigo — respondeu Will, rezando para que a voz não falhasse. Parecia-

lhe que estava avançando pelo galho de uma árvore e, quanto mais prosseguia, mais fino e maisprecário ficava o galho. Se perdes-se o equilíbrio agora, a queda poderia ser fatal.

— Então quem deixou você voltar aqui? — disse o Segundo Oficial cheio de desconfiança.— Quem pensa que foi? — Will tentou sorrir com calma.O Segundo Oficial ponderou por um momento, olhando para ele de cima a baixo.— Bom, parece-me que... se deixaram você passar pelo Portão da Caveira, deve estar tudo

bem — raciocinou ele em voz alta ao se erguer devagar.— Me disseram que eu podia vê-lo — disse Will —, pela última vez.— Então sabe que será esta noite? — disse o Segundo Oficial com uma sugestão de sorriso.

Will assentiu e viu que isto dissipara quaisquer dúvidas na mente do homem. De repente, asmaneiras do policial se transformaram.

— Não veio a pé o caminho todo, não é? — perguntou ele. Um sorriso simpático e

generoso vincou seu rosto como um talho na barriga de um porco. Will não conhecia este ladodo policial e isto tornou ainda mais difícil para ele fazer o que tinha que fazer.

— Sim, tive que sair cedo.— Não me admira que pareça ter calor. Então é melhor vir comigo — disse o Segundo

Oficial ao erguer a aba no final do balcão e passar por ele, chocalhando as chaves. — Soube quevocê se adaptou muito bem — acrescentou ele. — Eu sabia que se adaptaria... no momento emque pus os olhos em você. No fundo, você é um de nós, eu disse ao Primeiro Oficial. É talhadopara isso, eu disse a ele.

Eles passaram pela antiga porta de carvalho e entraram na escuridão do Cárcere. O cheirofamiliar deu arrepios em Will, enquanto o Segundo Oficial girava a porta da cela e o conduziapara dentro. Will precisou de um momento para que os olhos se adaptassem, depois viu: Chestersentado no canto da saliência, as pernas puxadas sob o queixo. O amigo não reagiu de imediato,mas encarou Will com um olhar vago. Depois, com um lampejo de reconhecimento e descrença,ele ficou de pé.

— Will? — disse ele, o queixo caindo. — Will! Não acredito nisso!— Oi, Chester — disse Will, tentando afastar a empolgação da voz. Ele estava exultante por

vê-lo novamente, mas ao mesmo tempo todo seu corpo tremia de adrenalina.— Veio me tirar daqui, Will? Posso sair agora?— É... não é bem isso. — Will meio que se virou, ciente de que o Segundo Oficial estava

bem atrás e podia ouvir cada palavra.O Segundo Oficial tossiu, constrangido.— Tenho que trancar você aí dentro, Jerome. Espero que entenda... é o regulamento —

disse ele ao fechar a porta e passar a chave.— O que é, Will? — perguntou Chester, sentindo que alguma coisa estava errada. — Más

notícias? — Ele deu um passo para longe de Will.— Você está bem? — respondeu Will, preocupado demais em responder ao amigo

enquanto escutava o Segundo Oficial sair do Cárcere pela porta de carvalho e a fecharfirmemente. Depois, ele levou Chester a um canto da cela e os dois ficaram juntos, enquanto Willexplicava o que tinham de fazer.

Logo chegou o som que Will temia: o Segundo Oficial voltava ao Cárcere, na direção deles.— Acabou o tempo, cavalheiros — disse ele. Girou a chave e abriu a porta, e Will

caminhou para ela lentamente.— Tchau, Chester — disse ele.Quando o Segundo Oficial começou a fechar a porta, Will pôs a mão no braço do homem.— Só um minutinho, acho que deixei uma coisa lá — disse ele.— O que é? — perguntou o homem.O Segundo Oficial olhava diretamente para ele enquanto Will tirava a mão do bolso. Ele

viu a luzinha vermelha acesa: a câmera estava pronta. Empurrando-a para o homem, Will apertouo disparador. O flash pegou em cheio a cara do policial. Ele gemeu e largou as chaves, colocandoas mãos nos olhos ao tombar no chão. O flash fora tão forte, se comparado com o brilho sublimedos globos luminosos, que até Will e Chester, que haviam se protegido dele, sentiram o choque.

— Desculpe — disse Will ao homem que gemia.Chester estava imóvel na cela, com uma expressão estupefata.

— Anda logo, Chester! — gritou Will enquanto se inclinava e o puxava, passando peloSegundo Oficial, que começava a tatear até a parede, ainda gemendo terrivelmente.

Ao entrarem na recepção, Will por acaso deu uma olhada no balcão.— Minha pá! — exclamou ele ao se abaixar e pegá-la da parede. Estava voltando quando viu

o Segundo Oficial cambalear para fora do Cárcere. O homem agarrou Chester às cegas e, antesque entendesse o que estava acontecendo, Will sentiu a mão em seu pescoço.

Chester soltou um grito estrangulado e tentou se libertar.Will não parou para pensar. Girou a pá. Com um baque de esmagar os ossos, ela se chocou

na testa do Segundo Oficial e ele desabou no chão com um gemido.Desta vez, Chester não demorou tanto a entender. Estava bem atrás de Will quando eles se

atiraram para fora da delegacia, reduzindo o passo o bastante para Will pegar a mochila antes queos dois entrassem no trecho de rua que Chester passou tantas horas olhando da cela. Depois elescorreram por um túnel lateral.

— O caminho é esse mesmo? — disse Chester, respirando mal e tossindo.Will não respondeu e continuou correndo até que chegaram ao fim do túnel.Lá estavam elas, exatamente como Tam descrevera, três casas parcialmente demolidas no

perímetro de uma caverna circular grande como um anfiteatro. A superfície saturada e argilosaera elástica sob seus pés e o ar cheirava a estéreo velho. As paredes da caverna chamaram aatenção de Will. O que no início ele pensou que fossem aglomerados de estalagmites eram, narealidade, troncos de árvores petrificados, alguns quebrados pela metade e outros retorcidos eentrelaçados. Estes restos fossilizados se destacavam como uma floresta de pedra escavada nassombras.

Will se sentia cada vez mais inquieto, como se alguma coisa doentia e ameaçadora irradiassedas árvores antigas. Ficou aliviado quando chegaram à casa do meio e empurraram a porta dafrente, que se abriu lenta em uma única dobradiça.

“Atravesse o hall, siga direto em frente...”Chester fechou a porta com o ombro ao passar enquanto Will entrava na cozinha. Era mais

espaçosa do que a da casa de Jerome. Ao atravessarem o piso ladrilhado, agitou-se um tapetegrosso de poeira. A poeira chicoteou para cima numa minitempestade e, no brilho do globoluminoso, cada movimento que os dois faziam deixava um rastro de pó flutuando no ar.

“Localize o ladrilho da parede com a cruz pintada.”Will o encontrou e empurrou. Uma pequena abertura apareceu num estalo sob sua mão.

Dentro dela havia uma maçaneta. Ele a girou para a direita e toda uma seção da parede se abriupara fora — era uma porta bem disfarçada. Atrás dela, havia uma antecâmara com caixasempilhadas de cada lado, e mais além uma porta na parede mais distante. Mas não era uma portacomum — era feita de ferro pesado, incrustado de rebites, e havia uma manivela ao lado paraabri-la.

“É hermética — para impedir a entrada dos germes.”Havia uma portinhola de inspeção no alto, mas não se via nenhuma luz pelo vidro fosco.— Continue enquanto eu encontro o equipamento de respiração — ordenou Will a

Chester, apontando a manivela. O amigo se inclinou sobre a alavanca e houve um sibilar altoquando o grosso lacre de borracha, na base da porta, ergueu-se do chão. Will encontrou as

máscaras que Tam dissera que estariam ali, capuzes de lona antigos com tubos de borracha pretapresos a cilindros. Assemelhavam-se a uma espécie de equipamento de mergulho antigo.

Depois, do escuro do lado de fora, Will ouviu um miado melancólico. Ele sabia o que eraantes mesmo de se virar.

— Bartleby! — O gato pulou pelo corredor. Com as patas riscando excitadas a poeira, elefoi direto até a porta secreta, enfiando o focinho no espaço e farejando inquisitivamente.

— O que é isso? — Chester ficou tão confuso ao ver o gato gigantesco que soltou amanivela. Ela rodou livremente, a porta girou em seus trilhos e bateu. Bartleby deu um pulo paratrás.

— Pelo amor de Deus, Chester, continue abrindo esta porta! — gritou Will.Chester assentiu e começou novamente.— Precisa de ajuda? — perguntou Cal, entrando no campo de visão.— Não! Você também, não! O que é que está fazendo aqui? — Will arfou.— Eu vou com vocês — respondeu Cal, surpreso com a reação do irmão.Chester parou de girar a manivela e olhou rapidamente de um irmão para outro.— Ele é a sua cara!Will tinha chegado a um ponto em que toda a situação assumira uma insanidade própria,

fortuita e inauspiciosa. O plano de Tam desmoronava diante de seus olhos e ele teve a sensaçãomedonha de que todos iam ser pegos. Precisava recolocar as coisas nos trilhos... de algum jeito... erápido.

— PELO AMOR DE DEUS, ABRA ESSA PORTA, POR FAVOR — berrou ele aplenos pulmões e Chester humildemente reassumiu a manivela. A porta agora estava a meiometro do chão e Bartleby enfiou a cabeça por baixo para explorar, abaixou-se e deslizou pelaabertura, sumindo completamente de vista.

— Tam não sabe que está aqui, sabe? — Will pegou o irmão pela gola do casaco.— É claro que não. Eu decidi que estava na hora de ir para a Crosta, como você e a mamãe.— Você não irá — Will rosnou entre os dentes trincados. Depois, ao ver a mágoa no rosto

do irmão, largou seu casaco e suavizou a voz. — É sério, você não pode... Tio Tam mataria vocêpor estar aqui. Vá para casa agora... — Will não terminou a frase. Ele e Cal sentiram o cheiro deuma forte vibração de amônia ondulando no ar.

— O alarme! — disse Cal com os olhos tomados de pânico.Eles ouviram uma comoção do lado de fora, alguém gritando e depois o barulho de vidro

quebrado. Correram até a janela da cozinha e olharam pela vidraça rachada.— Os Styx! — Cal arfou.Will estimou que havia pelo menos trinta deles formando um semicírculo diante da casa e

estes eram só os que conseguia ver de sua posição limitada. Estremeceu só de pensar quantoshavia no total. Ele se abaixou e olhou para Chester, que girava freneticamente a manivela daporta, abrindo-a agora o suficiente para que eles passassem.

Will olhou o irmão e sabia que só havia uma coisa a fazer. Não podia deixado à mercê dosStyx.

— Anda! Passe por baixo da porta — sussurrou ele com urgência.A cara de Cal se iluminou e ele começava a agradecer a Will, que enfiou o equipamento de

respiração em suas mãos e o empurrou para a porta.

Enquanto Cal deslizava pelo espaço, Will virou-se novamente para a janela a tempo de veros Styx avançando para a casa. Foi o bastante — ele se atirou na porta, gritando freneticamentepara Chester pegar a máscara e segui-lo. Enquanto ouvia a porta da frente da casa se abrir, eleentendeu que havia tempo suficiente para que eles escapassem.

Então, aconteceu uma daquelas coisas horríveis.Um daqueles acontecimentos que, mais tarde, você repassa em sua mente sem parar... mas

internamente você sabe que não havia nada que pudesse ter feito.Foi quando eles ouviram.Uma voz que os dois conheciam.

Capítulo Trinta

– O velho Will de sempre — disse ela, deixando-os paralisados.Will estava com metade do corpo para dentro da abertura, a mão segurando o braço de Chesterpara puxá-lo, quando olhou a soleira da porta da cozinha e congelou.

Uma menina entrava no cômodo ladeada por dois Styx.— Rebecca? — Will arfou e sacudiu a cabeça como se seus olhos os estivessem traindo.— Rebecca! — disse ele novamente, incrédulo.— E aí, aonde você está indo? — disse ela friamente. Os dois Styx avançaram um pouco,

mas ela ergueu a mão e os deteve.Seria algum truque? Ela estava com as roupas deles, o uniforme deles — o casaco preto e a

camisa branca. E o cabelo preto era diferente — estava puxado com força para trás.— O que você está...? — foi o que Will conseguiu dizer antes de as palavras lhe faltarem.Ela foi capturada. Deve ser isso. Sofreu uma lavagem cerebral ou é refém deles.— Por que continua fazendo essas coisas? — ela suspirou teatralmente, erguendo uma

sobrancelha. Parecia relaxada e controlada. Tinha alguma coisa errada por aqui, algo não estavabatendo.

Não.Ela era um deles.— Você é... — ele ofegava.Rebecca riu.— Ele não é rápido?Atrás dela, os Styx entravam na cozinha. A mente de Will disparou, as lembranças voltando

a uma velocidade vertiginosa enquanto ele tentava conciliar Rebecca, a irmã, com a menina Styxdiante dele. Teria havido um sinal, alguma pista que ele deixara passar?

— Como? — gritou ele.Divertindo-se com a confusão, Rebecca falou.— É tudo muito simples. Fui colocada em sua família quando tinha dois anos. É assim que

nós... nos associamos com os Pagãos... é o treina-mento para a elite.

Ela avançou um passo.— Não! — disse Will, a mente recomeçando a trabalhar e a mão disfarçadamente entrando

no bolso do casaco. — Não acredito nisso!— É difícil aceitar, não é? Fui colocada lá para ficar de olho em você... e, se tivéssemos

sorte, fazer a sua mãe aparecer... a sua mãe verdadeira.— Não é verdade.— Não importa no que você acredita — respondeu ela asperamente. — Meu trabalho

chegou a seu termo, então aqui estou eu, em casa novamente. Não preciso mais fingir.— Não! — gritou Will enquanto fechava a mão no pequeno embrulho de pano que Tam

lhe dera.— Venha, acabou — disse Rebecca com impaciência. Depois que Rebecca assentiu

imperceptivelmente, os Styx dos dois lados avançaram, mas Will estava pronto. Ele atirou comtoda a força a pedra de nó na cozinha. Ela voou entre os dois Styx que avançavam e bateu nosladrilhos brancos e sujos, partindo-se numa nevasca de fragmentos minúsculos.

Tudo parou.Por uma fração de segundo Will pensou que nada ia acontecer, que não tinha funcionado.

Ele ouviu Rebecca rir, um riso seco, de zombaria.Depois, houve um silvo, como se o ar estivesse sendo sugado do cômodo. Ao cair no chão,

cada lasca minúscula lampejou com uma incandescência estonteante, lançando feixes queexplodiram na cozinha como um milhão de holofotes. Eram tão intensos que tudo adquiriu umbranco insuportável e ardente.

Mas não pareceu incomodar Rebecca em nada. Com a luz brilhando em volta, ela sedestacava como um anjo das trevas, os braços cruzados na pose característica enquanto cacarejavade desaprovação.

Mas os dois Styx que avançavam pararam de repente e soltaram guinchos como o som deunhas raspando um quadro-negro. Cambalearam às cegas, tentando cobrir os olhos.

Isso deu a Will a oportunidade que procurava. Ele deu um puxão em Chester, arrancando-oda manivela.

Mas a luz já estava diminuindo e outros dois Styx empurravam de lado os companheiroscegos. Eles se lançaram para Will, os dedos de garra procurando por ele. Enquanto o garotocontinuava a puxar um dos braços de Chester, os dois Styx tinham se fechado no outro braço.Houve um cabo-de-guerra entre Will e os Styx, com um Chester apavorado e lamuriento presono meio. Pior ainda, agora ninguém estava manipulando a manivela, que girava como loucaenquanto a porta enorme caía lentamente em seus trilhos. E Chester estava em seu caminho.

— Empurre os dois! — gritou Will.Chester tentou chutar, mas foi em vão; eles o seguravam com muita força. Will se colocou

contra a porta numa tentativa inútil de reduzir seu avanço, mas ela era pesada demais e quase odesequilibrou. Não havia como fazer alguma coisa e salvar Chester ao mesmo tempo.

Enquanto os Styx grunhiam e puxavam, e Chester tentava resistir com toda a força, Willentendeu que os Styx não podiam ser derrotados. Chester estava escorregando de suas mãos egritava de dor com as unhas dos Styx cravando-se em seu braço.

E então, enquanto a porta continuava sua descida implacável, Will entendeu subitamente:

Chester seria esmagado a não ser que ele o soltasse.A não ser que ele entregasse Chester aos Styx.A manivela girava loucamente. Agora a porta estava a pouco mais de um metro do chão e

Chester era curvado em dois — todo o peso da porta descia em suas costas. Will precisava fazeralguma coisa, e rápido.

— Chester, me desculpe! — gritou Will.Por um momento, Chester, com os olhos arregalados de pavor, encarou o amigo. Depois,

Will soltou seu braço e ele voou direto para os Styx, o impulso derrubando-os num trambolhãode braços e pernas. Chester gritou o nome de Will uma vez quando a porta bateu com umairrevogabilidade terrível. O garoto só pôde olhar entorpecido através do vidro leitoso daportinhola enquanto Chester e os Styx caíam numa pilha de encontro à parede. Um dos Styx serecuperou de pronto e correu para a porta.

— PRENDA A MANIVELA! — o grito de Cal reanimou Will. Enquanto Cal erguia oglobo luminoso, Will passou a trabalhar no mecanismo ao lado da porta. Ele abriu o canivete e,usando a lâmina maior, tentou travar as engrenagens.

— Por favor, tem que funcionar! — pediu Will. Ele tentou vários lugares antes de a lâminaescorregar entre duas das rodas maiores e ficar no lugar. Will afastou as mãos, rezando para quedesse certo. E deu, o canivete pequeno e vermelho tremendo enquanto o Styx aplicava pressão namanivela do outro lado.

Will olhou pela portinhola de novo. Como um filme mudo e macabro, não conseguiu deixarde ver a cara de desespero de Chester lutando valentemente com os Styx. De algum modo eleconseguiu pegar a pá de Will e tentava golpeá-los. Mas era superado em número pelos Styx, queenxameavam sobre Chester como gafanhotos famintos.

Mas então um rosto bloqueou todo o resto ao assomar na portinhola.O rosto de Rebecca. Ela franziu os lábios severamente e sacudiu a cabeça para Will, como

se o repreendesse, exatamente como fez em todos aqueles anos em Highfield. Dizia alguma coisa,mas era inaudível pela porta.

— Temos que ir, Will. Eles vão acabar abrindo — disse Cal com urgência. Will desviou osolhos com dificuldade. Ela ainda murmurava alguma coisa para ele. E com uma percepção súbitae arrepiante, ele entendeu o que era. Entendeu exatamente o que era. Ela estava cantando paraWill.

— “Sunshine...!” — disse ele com amargura. — “You are my sunshine!”Eles dispararam pela passagem de pedra com Bartleby guardando a retaguarda e por fim

chegaram a um átrio abobadado do qual saíam várias passagens. Tudo era redondo e liso, comoséculos de água corrente tivessem esfregado qualquer aresta afiada. Agora estava seco, cadasuperfície coberta de um limo abrasivo, como vidro em pó.

— Só temos uma máscara — disse Will de repente a Cal, quando se deu conta da situação.Ele pegou a lona e a engenhoca de borracha do irmão e as examinou.

— Ah, não! — A cara de Cal caiu. — E agora, o que vamos fazer? Não podemos voltar.— O ar na Cidade Eterna — disse Will —, qual é o problema dele?— Tio Tam disse que houve uma espécie de peste. Matou todas as pessoas...— Mas não existe mais, não é? — perguntou Will rapidamente, temendo a resposta.Cal assentiu lentamente.

— Tam disse que sim.— Então, você usa a máscara.— De jeito nenhum!Num átimo, Will colocou a máscara na cabeça de Cal, abafando seus protestos. Cal lutou,

tentando tirá-la, mas Will não permitiu.— É sério! Você tem que usar — insistiu Will. — Eu sou o mais velho, então sou eu quem

decido.Nisso, Cal parou de resistir, os olhos espiando ansiosos pela faixa de vidro enquanto Will se

certificava de que o capuz estava assestado corretamente nos ombros. Depois ele afivelou a tirade couro para segurar os tubos e o filtro no peito do irmão. Procurou não pensar nas implicaçõesque teria para si mesmo permitir que Cal usasse a máscara, e só esperou que a peste fosse outradas superstições dos colonos, que pareciam ser muitas. Depois, Will pegou o mapa que Tam lhedera de dentro da bota, contou os túneis diante dos dois e apontou para o que tinham de tomar.

— Como aquela garota Styx conhece você? — A voz de Cal era indistinta através do capuz.— Minha irmã. — Will baixou o mapa e olhou para ele. — Era a minha irmã... — ele

cuspiu de desdém — ...ou era o que eu pensava.Cal não demonstrou nenhum sinal de surpresa, mas Will pôde ver que ele estava assustado

pelo modo como ficava olhando o trecho de túnel atrás deles.— A porta não vai segurá-los por muito tempo — alertou o irmão, olhando nervoso para

Will.— Chester... — começou Will sem esperanças, depois se calou.— Não havia nada que pudéssemos ter feito para ajudá-lo. Tivemos sorte de sair dessa

vivos. — Talvez — disse Will ao verificar novamente o mapa. Ele sabia que não tinha tempo para

pensar em Chester, não neste momento mas, depois de todos os riscos que assumira para salvar oamigo, todo o exercício fracassara terrivelmente e ele estava achando difícil se concentrar no quefazer a seguir. Ele respirou fundo. — Então, acho que devemos ir.

E assim os dois meninos, com o gato atrás, partiram num trote constante, penetrando cadavez mais fundo no complexo de túneis subterrâneos que acabariam por levados à Cidade Eterna— e em seguida, esperava Will, à luz do sol outra vez.

PARTE TRÊS

A Cidade Eterna

Capítulo Trinta e Um

Um dois, um dois, um, um, um dois.A dupla corria e Will se acostumara ao ritmo fácil que antigamente usava nos turnos deescavação mais extenuantes em Highfield. Os túneis eram secos e silenciosos; não havia o maisleve sinal de que alguma coisa vivia ali. E à medida que seus pés pisoteavam o chão arenoso, emnenhum momento Will percebeu nenhuma poeira suspensa atrás deles no feixe de luz do globoluminoso. Era como se sua passagem ficasse completamente despercebida.

Mas logo começou a notar fracas cintilações diante dos olhos, manchas de luz que sematerializavam e depois, com a mesma subitaneidade, desapareciam de seu campo de visão. Eleolhou, fascinado, até que lhe ocorreu que devia haver alguma coisa errada. Ao mesmo tempo,uma dor surda tomou seu peito e um suor pegajoso surgiu em suas têmporas.

Um dois, um dois, um... um... um dois...Will reduziu o ritmo, sentindo a resistência ao tentar respirar. Era peculiar; ele não

conseguia localizar o problema. No início, pensou que era simples exaustão, mas não, era mais doque isso. Era como se o ar, depois de ficar imperturbável nestes túneis profundos, talvez atédesde a pré-história, estivesse se comportando como um fluido lento.

Um dois, um...Will parou de repente, afrouxando a gola e massageando os ombros sob as alças da mochila.

Teve o impulso quase irresistível de se livrar do peso nas costas — deixava-o contraído einquieto. E as paredes da passagem o perturbavam — eram próximas demais sufocavam-no. Elerecuou para o meio do túnel, onde se curvou sobre os joelhos e tomou várias golfadas de ar.Depois de um tempo, sentiu-se um pouco melhor e se obrigou a endireitar o corpo.

— O que foi? — perguntou Cal, olhando-o preocupado através da fenda de vidro damáscara.

— Nada — respondeu Will ao procurar o mapa no bolso. Não queria admitir sua fraqueza,certamente não ao irmão. — Eu... só preciso verificar nossa posição.

Ele se responsabilizou por identificar a rota pelas muitas voltas dos túneis, ciente de que omenor erro os deixaria perdidos neste emaranhado subterrâneo de complexidade tão

extraordinária. Lembrou-se de que Tam se referira ao lugar como “Labirinto” e o comparou auma pedra-pome com incontáveis poros conectados insinuando-se por ele. Na hora, Will nãopensou muito nas palavras do tio, mas agora sabia precisamente o que ele queria dizer. A meradimensão da área era assustadora e, embora eles tenham percorrido uma boa distância movendo-se rapidamente pelas passagens, Will calculou que ainda tinham um longo caminho pela frente.Eles eram consideravelmente auxiliados por um gradiente de descida suave, mas isto em si lhecausou certa consternação; estava consciente demais de que cada metro que desciam teria que sersubido novamente para que chegassem à superfície.

Ele olhou do mapa para as paredes. Tinham um matiz rosado provavelmente devido àpresença de depósitos de ferro, o que podia explicar por que a bússola era completamente inútilali embaixo. O ponteiro tremia lentamente pelo mostrador, sem jamais ficar na mesma posiçãopor tempo suficiente para proporcionar algum tipo de leitura. Ao olhar em volta, Will refletiuque as passagens deviam ter sido formadas por gás preso sob algum tipo de tampão solidificado,como se tentasse escapar pela rocha vulcânica der-retida. Sim, este poderia ser o motivo para quenão houvesse nenhum túnel vertical. Ou talvez tenham sido formadas pela água, que exploroulinhas de fraqueza no decorrer dos milênios depois que a rocha esfriou. “O que será que papaifaria com isso?”, pensou ele antes de se deter, o rosto murchando ao perceber que provavelmentenunca mais o veria de novo. Não agora. E por mais que tentasse, ele não conseguia deixar de selembrar do último vislumbre de Chester rolando inutilmente pelo chão e tentando se livrar doaperto dos Styx. Will o deixara na mão outra vez... E Rebecca! Lá estava, era inquestionável, elevira com os próprios olhos. Ela era uma Styx! Apesar de se sentir muito fraco, seu sangue ferveu.Teve vontade de soltar uma gargalhada ao pensar novamente em como se preocupou com ela.Mas agora não havia tempo para refletir, se eles queriam sair desta vivos, tinham que cuidar paranão perder o rumo. Ele deu uma última olhada no mapa e o dobrou antes de reassumirem ajornada.

Um dois, um dois, um, um, um dois.Com os pés esmagando a areia fina e vermelha, Will ansiou por uma mudança, um marco na

paisagem, qualquer coisa para quebrar a monotonia, para confirmar que eles ainda estavam natrilha certa. Ele começou a se desesperar, pensando que jamais iam chegar ao fim. Pelo que elesabia, os dois podiam estar andando em círculos.

Will ficou emocionado quando por fim deram no que parecia uma lápide pequena, comuma face plana e o alto arredondado, aninhada na parede da passagem. Cal o viu se agachar paraescovar a areia de sua superfície.

Um golpe da mão revelou um símbolo entalhado na rocha rosada mais ou menos no meioda face. Compreendia três linhas divergentes, que se abriam como raios ascendentes ou ossegmentos de um tridente. Abaixo, havia duas filas de letras angulosas. Os símbolos eramdesconhecidos e não faziam sentido nenhum para ele.

— O que é isso? Uma espécie de sinal ou marco? — Will olhou o irmão, que deu deombros, sem poder ajudar.

Várias horas depois, o trajeto se tornou lento e laborioso. Passavam por uma bifurcaçãoatrás de outra no túnel e Will tinha que consultar o mapa com uma freqüência cada vez maior. Jáhaviam virado numa curva errada; por sorte, Will percebera o erro antes que tivessem ido longedemais e eles refizeram dolorosamente seus passos, encontrando o caminho correto de novo.

Uma vez lá, deixaram-se cair no chão arenoso, parando por tempo suficiente para tomar fôlego.Apesar de sua luta, Will se sentia incomumente cansado, como se estivesse correndo no vazio Equando eles reassumiram a jornada, ele se sentia mais fraco do que nunca. Qualquer que fosse seuestado, Will não queria que Cal suspeitasse de que havia alguma coisa errada. Ele sabia quedeviam continuar; deviam ficar à frente dos Styx, precisavam sair dali. Ele se virou para o irmão.

— Então, o que é que Tam faz nessa Cidade Eterna? — disse ele, respirando mal. — Ele foimuito cauteloso quando perguntei sobre isso.

— Ele procura por moedas e coisas assim, ouro e prata — disse Cal, depois acrescentou: —Em geral, nos túmulos.

— Túmulos?— Nos cemitérios — Cal assentiu.— Então realmente vivia gente lá?— Há muito tempo. Ele imagina que várias raças ocuparam o lugar, uma depois da outra,

cada uma construindo por cima da anterior. Disse que existem fortunas esperando por quem asencontre.

— Mas quem eram essas pessoas?— Tam me disse que os bruteanos foram os primeiros, séculos atrás. Acho que ele disse que

eram troianos. Eles construíram o lugar como uma fortaleza ou coisa assim, enquanto a Londresda Crosta era construída em cima.

— Então as duas cidades estavam ligadas?A máscara de Cal assentiu gravemente.— No começo. Mais tarde, as entradas foram bloqueadas e as pedras que as marcavam se

perderam... a Cidade Eterna simplesmente foi esquecida — disse ele, bufando com ruído pelo filtrode ar. Ele olhou nervoso para trás, como se tivesse ouvido alguma coisa.

Will de imediato seguiu seu olhar, mas só o que pôde ver foi forma obscura de Bartlebysaltando impaciente de um lado outro do túnel. Estava claro que queria ir mais rápido do que osdois meninos e de vez em quando passava acelerado por eles, mas depois parava para farejar umafenda ou o chão à frente, em geral ficando visivelmente agitado e soltando um gemido baixo.

— Pelo menos os Styx nunca nos encontrarão neste lugar — disse Will com confiança.— Não conte com isso. Eles vão nos seguir o tempo todo disse Cal. — E ainda teremos a

Divisão diante de nós.— A o quê?— A Divisão Styx. São uma espécie de... bem... de guarda de fronteira — disse Cal,

procurando pelas palavras certas. — Eles patrulham a cidade velha.— Para quê? Pensei que estivesse desocupada.— Dizem que estão reconstruindo áreas inteiras e remendando paredes de cavernas. Dizem

que toda a Colônia pode se mudar para lá e há boatos de grupos de prisioneiros condenados,trabalhando como escravos. Mas são só boatos... ninguém tem certeza de nada.

— Tam nunca falou nada sobre outros Styx. — Will não tentou esconder o alarme em suavoz. — Mas que maravilha — disse ele com raiva, chutando uma pedra no caminho.

— Bem, talvez ele não tenha pensado que seria problema. Não saímos da Colôniaexatamente em silêncio, não é? Mas não se preocupe demais com isso; é uma área enorme a cobrir

e eles só terão alguns patrulheiros.— Ah, que ótimo! É muito tranqüilizador! — respondeu Will, enquanto imaginava o que

podia estar reservado para eles mais adiante. Eles andaram por várias horas, descendo por fimuma ladeira íngreme, os pés escorregando e derrapando na areia vermelha até que finalmentechegaram a uma área plana. Will sabia que, se o mapa foi lido corretamente, eles deviam estar seaproximando do final do Labirinto. Mas o túnel se estreitava diante deles e parecia dar num becosem saída.

Temendo o pior, Will correu à frente, inclinando-se à medida que o teto se abaixava. Paraalívio dele, descobriu que havia uma pequena passagem de um lado. Esperou até que Cal oalcançasse e os dois se olharam apreensivos enquanto Bartleby farejava o ar. Will hesitou,olhando repetidamente do mapa de Tam para a abertura e vice-versa. Depois encontrou os olhosde Cal e deu um largo sorriso ao se meter pela passagem estreita. Era banhada de uma luzesverdeada e suave.

— Cuidado — alertou Cal.Mas Will já estava no canto. Ele ouviu um som familiar: o bater de água caindo. Moveu a

cabeça até que só um dos olhos espiava pela beira. Ficou estarrecido com o que viu e se espremeulentamente pela abertura, para o brilho verde-garrafa, a fim de ver melhor. Pela descrição de Tame pelas imagens que sua mente conjurara, ele esperava alguma coisa fora do comum. Mas nadapodia tê-lo preparado para a visão que seus olhos encontraram.

— A Cidade Eterna — sussurrou ele consigo mesmo ao começar a descer a escarpa enorme.Olhou para cima e seus olhos perscrutaram o teto do imenso espaço em domo, a água espirrandoem seu rosto virado e fazendo-o vacilar.

— Chuva no subsolo? — murmurou ele, percebendo de imediato que isso era ridículo. Elepiscou quando a água caiu em seus olhos, fazendo-os arder.

— É infiltração de cima — disse Cal, parando atrás dele.Mas Will não estava ouvindo. Achava difícil acreditar no volume titânico da caverna, tão

imensa que seus cantos mais longínquos eram ocultos por uma neblina e as névoas da distância Ochuvisco continuava a cair em carreiras langorosas e lentas enquanto eles voltavam a descer aescarpa.

Era demais para assimilar. Colunas de basalto, como arranha-céus sem janelas, arqueavam-sedo teto agigantado no meio da cidade. Outras brotavam para cima, partindo do chão distante emcurvas vertiginosas, englobando a cidade em contrafortes embriagantes. O tamanho do lugarengolia qualquer uma das cavernas da Colônia e trouxe à mente de Will a imagem de um coraçãogargantuesco, as câmaras entrecruzadas por colunas imensas como cordas do coração.

Ele colocou o globo luminoso no bolso e instintivamente procurou pela fonte do brilhoverde-esmeralda que dava ao cenário uma propriedade onírica. Era como se estivesse vendo umacidade perdida nas profundezas do mar. Ele não tinha certeza, mas a luz parecia vir das própriasparedes — tão sutilmente que no início ele pensou que elas simplesmente a refletiam.

Ele atravessou para o lado da escarpa e examinou a parede da caverna mais de perto. Eracoberta de uma brotação desordenada de gavinhas, escuras e cintilantes de umidade. Era umaespécie de alga, composta de muitos brotos pendentes e em camadas espessas, como hera nummuro antigo. Ao erguer a palma da mão, ele sentiu o calor irradiando dela e sim, podia ver quehavia realmente um brilho fraco vindo da borda das folhas enrascadas.

— Bioluminescência — disse ele em voz alta.— Humm — foi a resposta vaga de Cal sob o capuz de lona, que girava absurdamente de

um lado a outro ao procurar pela Divisão Styx.Continuando a descer a ladeira, Will voltou sua atenção para a caverna, concentrando-se no

cenário mais maravilhoso de todos, a cidade em si. Mesmo desta distância, seus olhos devoraramfamintos as passagens em arco, os terraços impossíveis e as escadas curvas que se estendiam parasacadas de pedra. Colunas, dóricas e coríntias, sustentavam galerias e passadiços vertiginosos. Suaexcitação intensa era tingida de tristeza por Chester não estar vendo tudo isso com ele, comodeveria estar. E o pai, isso teria feito sua mente explodir! Era simplesmente demais para serabsorvido de uma vez só. Para cada lado que Will olhava, havia as estruturas mais incríveis:coliseus e catedrais antigas com abóbadas em pedra lindamente trabalhada.

E então, à medida que chegava à base da escarpa, ele sentiu o cheiro. No início foraenganosamente suave, como de água estagnada, mas a cada passo que desciam se tornava maispungente. Era rançoso, prendendo-se na garganta de Will como uma golfada de bile. Ele pôs amão em concha sobre o nariz e a boca, e olhou desesperado para Cal.

— Isso é horrível! — disse ele, nauseado com o fedor. — Não admira que a gente preciseusar uma dessas coisas!

— Eu sei — disse Cal monotonamente, a expressão oculta pela máscara respiratóriaenquanto ele apontava o barranco ao pé da escarpa. — Venha aqui.

— Para quê? — perguntou Will ao se juntar ao irmão. Ele ficou pasmo ao vê-lo enfiar asmãos na lama de melaço que se estendia estagnada ali. Cal ergueu dois punhados de algas pretas eas esfregou na máscara e nas roupas. Depois pegou Bartleby pelo pescoço. O gato soltou umrosnado baixo e tentou se libertar, mas Cal o esfregou da cabeça ao rabo. Com a sujeiragotejando de sua pele nua, Bartleby arqueou as costas e tremeu, fuzilando o dono com os olhos.

— Meu Deus, o fedor agora está pior do que nunca. O que é que está fazendo? —perguntou Will, pensando que o irmão havia perdido o juízo.

— A Divisão usa cães farejadores por aqui. Se houver o menor cheiro da Colônia em nós,estaremos mortos. Este lodo ajudará a disfarçar nosso cheiro — disse ele, pegando novospunhados da vegetação enegrecida. — Sua vez. — Will suportou Cal embeber seu cabelo, o peitoe os ombros, depois cada uma das pernas, nas algas fétidas.

— Como se pode sentir algum cheiro com isso? — perguntou Will colérico, olhando asmanchas gordurosas em suas roupas. O fedor era excessivo. — Esses cães devem ter um olfato etanto! — Ele fazia o máximo que podia para não ficar nauseado.

— Ah, e têm mesmo — disse Cal ao sacudir as mãos para se livrar das gavinhas, depois aslimpou no casaco. — Precisamos sair de vista.

Andando em fila, eles passaram rapidamente por um trecho de chão pantanoso e entraramna cidade. Passaram sob um arco de pedra alto com duas caras malévolas de gárgula olhando comdesprezo para eles, depois entraram num beco com paredes altas de cada lado. As dimensões dosprédios, as janelas boquiabertas, os arcos e portas eram imensos, como se tivessem sidoconstruídos por seres incrivelmente altos. Por sugestão de Cal, eles entraram por uma destasaberturas, na base de uma torre quadrada.

Agora fora da luz verde, Will precisou do globo luminoso para examinar o mapa. Ao tirado

de sob o casaco, ele iluminou a sala, uma câmara de pedra, com teto alto e vários centímetros deágua no chão. Bartleby correu para um canto e, descobrindo uma pilha de alguma coisa podre,investigou-a brevemente antes de erguer uma pata sobre ela.

— Ei — disse Cal, de repente. — Olhe só as paredes.Eles viram crânios — filas e mais filas de cabeças de mortos entalhadas cobriam as paredes,

todas com um esgar cheio de dentes e olhos ocos e sombrios. Enquanto Will movia o globo, assombras mudaram e os crânios pareceram estar encarando os dois.

— Meu pai ia adorar isso. Aposto que era uma...— É horrível — interrompeu Cal, tremendo.— Esse povo era bem mórbido, não é? — disse Will, incapaz de reprimir um sorriso largo.— Os ancestrais dos Styx.— Como é? — Will olhou para ele inquisitivamente.— Os antepassados deles. As pessoas acreditam que um grupo fugiu desta cidade na época

da Peste.— Para onde?— Para a Crosta — respondeu Cal. — Formaram uma espécie de sociedade secreta lá.

Dizem que os Styx deram a idéia da Colônia a Sir Gabriel.Will não teve a oportunidade de fazer mais perguntas a Cal, porque de repente as orelhas de

Bartleby se eriçaram e seus olhos se fixaram sem piscar na porta. Embora nenhum dos meninostenha ouvido nada, Cal ficou agitado.

— Vamos, rápido, verifique o mapa, Will.Eles saíram da câmara, pegando cautelosamente o caminho pelas ruas antigas. Com isso,

Will teve a oportunidade de examinar os prédios mais de perto. Em toda parte a pedra eraornamentada com entalhes e inscrições. E ele viu a decadência; a alvenaria esfarelava e tinharachaduras. Gritava de abandono e negligência. E, no entanto, as construções ainda exibiamorgulhosamente toda sua magnificência — tinham uma aura de poder imenso. Poder, e maisalguma coisa — uma ameaça antiga e decadente. Era um alívio para Will saber que os habitantesda cidade não moravam mais aqui.

Ao seguirem pelas ruas de pedra antiga, suas botas espalhavam a água escura no chão eagitavam as algas, deixando manchas com um brilho fraco em sua esteira, como passadeirasluminosas. Bartleby ficou agitado com a água e saltitava por ela com a precisão de um pôneinuma apresentação, tentando evitar que espirrasse nele.

Cruzando uma ponte de pedra estreita, Will parou brevemente e olhou por sobre abalaustrada marmórea e erodida, vendo o rio de correnteza lenta abaixo. Liso e oleoso,serpenteava preguiçosamente pela cidade, atravessado aqui e ali por outras pontes pequenas, aságuas batendo túrgidas nas partes maciças de alvenaria que formavam as margens. Nelas, estátuasclássicas se destacavam como sentinelas da água: velhos de cabelos ondulados e barbasincrivelmente longas e mulheres de vestidos esvoaçantes estendiam para a água conchas e globos— ou apenas os tocos que-brados de seus braços — como se oferecessem sacrifícios a deuses quenão existiam mais.

Eles chegaram a uma praça quadrada, cercada por construções imensas, mas evitaram entrar,refugiando-se atrás do parapeito baixo.

— O que é isso? — sussurrou Will. No meio da praça, erguia-se uma plataforma sustentada

por uma gama de colunas grossas. No alto da plataforma, havia formas humanas: estátuas brancascomo giz em poses retorcidas de agonia congelada, algumas com as feições destruídas e outrassem membros. Correntes enferrujadas cercavam as figuras retorcidas e os postes ao lado delas.Parecia a escultura de uma atrocidade esquecida.

— A Plataforma dos Condenados. Era ali que eles eram castigados.— Esculturas medonhas — disse Will, incapaz de tirar os olhos delas.— Não são esculturas, são gente de verdade. Tam disse que os corpos foram calcificados.— Não! — disse Will, olhando com uma atenção ainda maior as figuras e desejando ter

tempo para documentar a cena.— Shhhhh — alertou Cal. Ele pegou Bartleby e o puxou para o peito. O gato esperneou,

mas Cal não o deixou ir.Will olhou para ele em dúvida.— Abaixe-se — sussurrou Cal. Mergulhando para trás do parapeito, ele pôs a mão em

concha sobre os olhos do gato e abraçou o animal com uma força ainda maior.Depois de seguir seu exemplo, Will os viu. Na extremidade mais distante da praça,

silenciosas como fantasmas, quatro figuras pareciam flutuar na superfície do chão alagado.Usavam máscaras respiratórias sobre a boca e óculos de proteção com lentes circulares e grandesque os deixavam parecidos com insetos humanos de pesadelo. Pela silhueta das figuras, Willpercebeu que eram Styx. Usavam barretes e casacos longos de couro. Não os pretos lustrosos queWill vira na Colônia; estes eram foscos e camuflados com listras verdes e cinza de matiz clara eescura.

Com eficiência militar, eles avançavam em fila, enquanto um controlava um cão imensotrazido numa trela. O vapor soprava do focinho do animal incrivelmente grande e feroz — eradiferente de qualquer cachorro que Will vira na vida.

Os meninos ficaram agachados atrás do parapeito com a consciência aguda de que nãotinham para onde correr se os Styx aparecessem em seu caminho. O arfar áspero e o bufar do cãoestavam ficando mais altos — Will e Cal se olharam, os dois pensando que a qualquer momentoos Styx surgi-riam pela beira do parapeito. Eles inclinaram a cabeça, esforçando-se para pegar omenor som dos Styx se aproximando, mas só ouviram o gorgolejar baixo de água corrente e obater ininterrupto da chuva na caverna.

Os olhos de Will e Cal se encontraram. Todos os sinais indicavam que os Styx tinham idoembora, mas o que eles deveriam fazer? Será que a patrulha se afastou, ou estava ali, numa emboscadapara eles? Eles esperaram e, depois do que pareceu um século, Will deu um tapinha no ombro doirmão e apontou para cima, indicando que ia dar uma olhada.

Cal sacudiu a cabeça com vigor, os olhos cintilando de alarme atrás das lentes meioembaçadas; imploravam a Will para ficar parado. Mas Will o ignorou e ergueu a cabeça umafração sobre o parapeito. Os Styx tinham desaparecido. Ele mostrou o polegar para cima e Callevantou-se devagar para ver. Satisfeito que a patrulha tinha se afastado, Cal soltou Bartleby e eledisparou dali, sacudindo-se e olhando ressentido para os dois.

Eles contornaram com cuidado o lado da praça e escolheram uma rua na direção contrária àque os Styx haviam tomado. Will se sentia cada vez mais cansado e para ele era cada vez maisdifícil tomar fôlego. Seus pulmões se agitavam como o de um asmático e uma dor surda tomou

seu peito e as costelas. Ele reuniu toda a energia que tinha e os dois correram de uma sombrapara outra até que os prédios haviam passado e a caverna estava diante deles. Will e Cal correramjunto à parede por vários minutos, chegando a uma escada de pedra enorme entalhada na rocha.

— Essa foi por muito pouco. — Will ofegava, olhando par trás.— Nem me fale — concordou Cal, depois olhou a escada. — É esta?— Acho que sim. — Will deu de ombros. A esta altura, ele não ligava muito; só queria

impor a maior distância possível entre eles e a Divisão Styx.O pé da escada estava muito danificado por um pilar enorme que tinha caído e se espatifado

di, e no início os meninos foram obrigados a escalar várias partes quebradas. Depois de chegaremaos degraus, não ficou muito melhor; estavam escorregadios de lodo preto e, mais de uma vez,quase perderam o pé. Subiam cada vez mais alto na escada e, esquecendo-se por um momento decomo se sentia mal, Will parou para dar uma olhada, agora que estavam tão no alto. Pela neblina,ele viu um prédio encimado por um domo imenso.

— É a imagem cuspida e escarrada da catedral de St. Paul — bufou ele, recuperando ofôlego e olhando o magnífico telhado em abóbada ao longe. — Eu adoraria ver mais de perto —acrescentou ele.

— Deve estar brincando — respondeu Cal com severidade.Eles continuaram e a escada por fim desapareceu em um arco irregular na parede rochosa.

Will se virou para dar uma última olhada na estranheza esmeralda da Cidade Eterna mas, ao fazerisso, escorregou da beira do degrau, cambaleando para o abismo à frente dele. Por uma batida docoração, ele encarou a mera queda diante de si e gritou, pensando que estava prestes a mergulharnela. Ele se agarrou freneticamente às gavinhas pretas que cobriam a parede. Punhado apóspunhado se rompeu, depois ele finalmente conseguiu se agarrar e se equilibrar novamente.

— Meu Jesus, você está bem? — disse Cal, agora a seu lado. Como Will não respondeu, eleficou ainda mais preocupado. — Qual é o problema?

— Eu... eu só fiquei tonto — admitiu Will numa voz ofegante. Estava arfando em lufadascurtas e superficiais, era como se respirasse através de um canudinho entupido. Ele subiu algunsdegraus, mas teve que parar novamente ao irromper em um acesso torturante de tosse. Willpensou que a crise jamais pararia. Curvado, ele tossiu e depois cuspiu. Comprimiu a testa,ensopada de chuva e pegajosa de um suor frio e insalubre, e entendeu que não podia maisesconder seu estado do irmão.

— Preciso descansar — disse ele, rouco, usando Cal para se apoiar enquanto a tossediminuía.

— Agora não — disse Cal com urgência — e não aqui. — Pegando o braço de Will, ele oajudou a passar pelo arco e entrar na escada sombria mais adiante.

Capítulo Trinta e Dois

Há um ponto em que o corpo se esgota, quando os músculos e nervos não têm mais nada a dar,quando só o que resta é seu brio, sua recusa em ceder.

Will chegara a este ponto. O corpo parecia drenado e inútil, mas ele ainda caminhava,impelido pela responsabilidade que sentia pelo irmão e seu dever de colocá-lo em segurança. Aomesmo tempo, era corroído pela culpa insuportável por ter abandonado Chester para que caíssepela segunda vez nas mãos dos colonos.

Sou um inútil, uma porcaria imprestável. As palavras davam voltas na mente de Will, sem parar.Mas nem ele nem o irmão ralavam ao subir, mourejando pela interminável escada em espiral. Noslimites de sua resistência, Will se obrigava a avançar, passo após passo doloroso, degrau apósdegrau, as coxas ardendo tanto quanto os pulmões. Escorregando e derrapando nos lances depedra ensopados de água e nos fiapos de alga grudados neles, ele lutou para reprimir a percepçãopavorosa do que ainda tinham a andar.

— Gostaria de parar agora — ele ouviu Cal arfar.— Não posso... não acho... que vá poder... recomeçar — grunhiu Will no ritmo de seus

passos laboriosos.As horas excruciantes se arrastavam, até que ele perdeu a noção do tempo em que estiveram

subindo e nada no mundo existia ou importava para ele a não ser a idéia horrível de que tinhaque dar o passo seguinte, e o seguinte, e assim por diante... E justo quando pensou ter chegado aseus limites e não podia mais seguir em frente, Will sentiu uma brisa muito fraca no rosto. Porinstinto, soube que era ar puro. Ele parou e inspirou o frescor, esperando que o ar erguesse opeso de chumbo de seu peito e aliviasse o matraquear interminável dos pulmões.

— Não precisa mais disso — disse ele, apontando a máscara de Cal. Cal a retirou da cabeçae a enfiou no cinto, o suor escorrendo pelo rosto em re-gatos e os olhos margeados de vermelho.

— Ufa — ele expirou. — É meio quente debaixo dessa coisa.Reassumiram a subida, e logo os degraus terminaram e eles entraram em uma série de

passagens estreitas. De vez em quando eram obrigados a lutar com uma escada de ferroenferrujado, as mãos ficando laranja ao testarem cada degrau precário.

Por fim chegaram a uma saliência bem íngreme, de pouco mais de um metro de largura.Eles se arrastaram para cima de sua superfície deformada usando a corda grossa com nós quedescobriram pendurada ali (Cal tinha certeza de que tio Tam a havia preparado). Mão após mãoeles continuaram, os pés encontrando apoio nas rachaduras rasas e falhas. A inclinação tornava-secada vez mais íngreme e eles passaram o diabo para conseguir subir o trecho restante de pedracoberta de limo. Mas, apesar de perder o pé algumas vezes, enfim chegaram ao topo, içando-separa uma câmara circular. Ali havia uma pequena abertura no chão. Curvando-se para ela, Willpôde ver os restos de uma grade de ferro, há muito enferrujada.

— O que tem aí embaixo? — Cal ofegava.— Nada, não consigo ver droga nenhuma — disse Will desesperado, agachando-se sobre as

coxas. Ele limpou o suor do rosto com as mãos ásperas. — Precisamos fazer o que Tam disse.Vamos descer.

Cal olhou para trás e depois para o irmão, assentindo. Por vários minutos, nenhum dos doisfez movimento algum, imobilizados pela fadiga.

— Bom, não podemos ficar aqui para sempre — Will suspirou. Ele passou as pernas pelaabertura e, com as costas apoiadas em um lado e os pés firmes no outro, começou a descer.

— E o gato? — gritou Will depois de ter percorrido uma curta distância. — Será que vaiconseguir lidar com isso?

— Não se preocupe com ele. — Cal sorriu. — O que quer que a gente faça...Will não ouviu o resto da frase. Ele escorregou. As laterais da abertura passaram voando e

ele caiu com um espadanar — estava submerso num frio gelado. Ele bateu os braços, depois ospés encontraram o fundo e ele ficou de pé, soprando um pouco do líquido enregelante.Descobriu que estava com água até o peito e, depois de limpar os olhos e empurrar o cabelo paratrás, olhou em volta. Não podia ter certeza, mas parecia haver uma luz fraca ao longe.

Ele ouviu os gritos frenéticos de Cal acima.— Will! Will! Está tudo bem?— Foi só um mergulho rápido! — gritou Will, com uma risada fraca. — Fique aí, vou dar

uma olhada numa coisa. — Sua exaustão e desconforto foram ignorados no momento em que eleviu o brilho tênue, tentando distinguir os fracos pormenores do que havia à frente.Completamente ensopado, ele saiu da poça e, andando sob o teto baixo, rastejou lentamente paraa luz. Depois de algumas centenas de metros, pôde ver claramente a boca circular do túnel e, como coração disparado, acelerou para lá. Caindo mais de um metro de uma saliência que ele nãopercebera, ele pousou rudemente, vendo-se debaixo de uma espécie de píer. Por uma floresta depostes de madeira pesada orlada de algas, ele pôde ver os reflexos raiados de luz na água.

O cascalho foi esmagado sob seus pés enquanto ele entrava na abertura. Ele sentiu o friorevigorante do vento no rosto. Respirou fundo, puxando o ar fresco com os pulmões doloridos.Era tão doce. Devagar, ele avaliou os arredores.

Noite. As luzes eram refletidas em um rio diante dele. Era um rio largo. Um barco depasseio com dois deques passou com um barulho de descarga — lampejos brilhantes de corpulsavam de seus dois conveses enquanto uma música dançante e indistinta fazia a água vibrar.Depois ele viu as pontes ao lado e, ao longe, o domo banhado de luz da catedral de St. Paul. A St.Paul que ele conhecia. Um ônibus vermelho de dois andares atravessou a ponte perto dele. Não

era nenhum rio antigo. Ele se sentou na margem com surpresa e alívio.Era o Tâmisa.Will se deitou de costas na margem e fechou os olhos, ouvindo o tumulto monótono do

trânsito. Tentou se lembrar dos nomes das pontes, mas ele não ligava - tinha saído, tinhaescapado e nada mais importava. Ele conseguira. Estava em casa. De volta a seu próprio mundo.

— O céu — disse Cal, pasmo. — Então é assim. — Will abriu os olhos e viu o irmãoesticando o pescoço de um lado para outro, enquanto encarava os fiapos esparsos de nuvenspegos na radiação âmbar das luzes de rua. Embora Cal estivesse ensopado de sua imersão napoça, trazia um sorriso largo, mas depois ele franziu o nariz. — Ui, mas o que é isso? —perguntou ele em voz alta.

— O que quer dizer? — disse Will.— Todos esses cheiros!Will se apoiou no cotovelo e cheirou.— Que cheiros?— Comida... todo tipo de comida... e... — Cal fez uma careta. — Esgoto... um monte dele...

e substâncias químicas...Ao farejar o ar, pensando novamente em como era fresco, ocorreu a Will que ele não

pensou no que iam fazer a seguir. Para onde iriam? Ele ficou tão concentrado na fuga que nãopensou um segundo sequer no que viria depois. Ele se levantou e examinou as roupasencharcadas e sujas de colono e as do irmão, e o gato impossivelmente grande que agora fuçavapela margem como um porco procurando por trufas. Um vento vigoroso de inverno soprava eele estremeceu violentamente, batendo os dentes. Ocorreu-lhe que nem o irmão nem Bartleby,em sua vida subterrânea e protegida, tinham vivido os extremos do clima da Crosta. Ele precisavafazê-los andar. E rápido. Mas não tinha dinheiro algum, nem um centavo.

— Vamos ter que ir a pé para casa.— Tudo bem — respondeu Cal sem questionar, a cabeça para trás, olhando as estrelas,

perdendo-se no dossel do firmamento. — Até que enfim eu as vejo — sussurrou ele consigomesmo.

Um helicóptero vagou no horizonte.— Por que essa está se mexendo? — perguntou ele.Will estava cansado demais para explicar.— Elas fazem isso — disse ele num tom monocórdio.Eles partiram, mantendo-se próximos da margem para não serem percebidos, e quase de

imediato chegaram a um lance de escada que levava à calçada acima. Ficava ao lado de uma ponte.Will sabia aonde eles chegaram — era a ponte Blackfriars.

Um- portão bloqueava o alto da escada e, assim, eles escalaram apressadamente o murolargo para chegar à calçada. Pingando água no chão e congelando no ar da noite, eles olharam emvolta. Will foi tomado pelo pensamento apavorante de que mesmo aqui os Styx podiam terespiões de sobreaviso contra eles. Depois de ver um dos irmãos Clarke na Colônia, ele sentia quenão podia confiar em ninguém e observou as poucas pessoas nas imediações com uma suspeitacrescente. Mas não havia ninguém por perto, com exceção de um casal de jovens que andava demãos dadas. Eles passaram pelos dois, tão envolvidos um com o outro que não deram a menoratenção aos meninos ou ao gato imenso.

Com Will na liderança, eles subiram a escada para a ponte. Ao chegar no alto, Will percebeuque o cinema IMAX ficava à sua direita. De imediato entendeu que não devia estar deste lado dorio. Para ele, Londres era um mosaico de lugares que ele conhecera pelas visitas a museus com opai ou nas excursões da escola. O resto, as áreas que se interconectavam, eram um completomistério. Só havia uma coisa a fazer: confiar em seu senso de direção e tentar ir para o norte.

Ao virarem à esquerda e rapidamente atravessarem a ponte, Will localizou uma placa paraKing’s Cross e logo soube que estavam indo na direção certa. O trânsito passava por eles aochegarem ao final da ponte e Will parou para olhar Cal e o gato sob luz dos postes. Mas era semdúvida um trio de almas penadas de aparência suspeita — eles se destacavam a um quilômetro.Embora estivesse escuro, Will estava dolorosamente ciente de que dois meninos totalmenteensopados andando pelas ruas de Londres a esta hora da noite, com ou sem um gato gigante,deviam chamar atenção, e a última coisa de que precisava agora era ser pego pela polícia. Eletentou preparar uma história, ensaiando-a em sua mente, para o caso de isto acontecer.

Ora, ora, ora, disse a dupla de policiais fictícios. O que é que temos aqui, hein?É... só estamos levando para passear o... o... A resposta imaginada de Will chegou a uma

interrupção hesitante. Não, isso não daria certo, ele precisava se preparar melhor. Ele recomeçou:Boa-noite, policiais. Só estamos levando o bicho do vizinho para passear.

O primeiro policial inclinou-se com curiosidade para examinar Bartleby, os olhos seestreitando ao fazer uma careta de repulsa. Me parece perigoso, filho. Ele não deveria estar com uma trela?

O que é isto, exatamente?, intrometeu-se o segundo policial imaginário.É um... começou Will. O que ele diria? Ah, sim... É um híbrido muito raro, um cruzamento de gato

com cachorro chamado... chamado... gatorro, informou-lhes Will, todo prestativo.Ou quem sabe um cachato?, sugeriu o segundo policial secamente, o brilho nos olhos dizendo a

Will que ele não estava engolindo uma palavra daquilo.Seja lá o que for, é danado de feio, disse o parceiro.Shhhh! Vai ferir os sentimentos dele.De repente Will percebeu que estava perdendo tempo com tudo isso. A realidade era que os

policiais simplesmente perguntariam seus nomes e endereços e verificariam pelo rádio. E elesprovavelmente se dariam mal mesmo que tentassem dar nomes falsos. Então seria assim. Elesseriam levados à delegacia e detidos lá. Will desconfiava de que devia ser procurado peloseqüestro de Chester, ou coisa igualmente ridícula, e era provável que terminasse numainstituição para delinqüentes juvenis. Já no caso de Cal, ele seria um enigma completo — é claroque não haveria registro nenhum dele, nenhuma identidade na Crosta. Não, eles precisavamevitar a polícia a todo custo.

Perversamente, enquanto pensava no futuro, havia uma parte dele que quase queria que elesfossem detidos. Isso eliminaria o fardo pavoroso que no momento esmagava seus ombros; eleolhou a figura agachada do irmão. Cal era um estranho, uma anomalia neste lugar frio e nadahospitaleiro, e Will não fazia idéia de como ia protegê-lo.

Mas o garoto sabia que se procurasse as autoridades e tentasse fazer com que investigassema Colônia — isso, antes de tudo, se eles acreditassem num adolescente foragido — ele arriscaria avida de incontáveis pessoas, a vida de sua família. Quem sabe como terminaria? Ele estremeceuao pensar na Revelação, como a vovó Macaulay chamou, e tentou imaginá-la sendo levada para a

luz do dia depois de sua longa vida nos subterrâneos. Não podia fazer isso com ela — nãoconseguia nem suportar a idéia. Era uma decisão grande demais para ele tomar sozinho e Will sesentiu terrivelmente só e isolado.

Ele puxou o casaco molhado em torno do corpo, e apressou Cal e Bartleby para o metrô nofinal da ponte.

— Tem muito urina aqui embaixo — comentou o irmão. — Todas as pessoas da Crostamarcam seus territórios? — Ele se virou para Will inquisitivamente.

— É... nem todas. Mas esta é Londres.Enquanto eles saíam do metrô e voltavam à calçada, Cal pareceu ficar confuso com o

trânsito, olhando de um lado a outro. Chegando a uma rua principal, eles pararam junto ao meio-fio. Will pegou a manga da camisa do irmão com uma das mãos e o pescoço sem pêlos do gatocom a outra. Atravessando quando houve um intervalo, eles chegaram ao canteiro central.Podiam ver pessoas olhando curiosas para eles dos carros que passavam, e uma van brancareduziu e quase parou bem ao lado do trio, o motorista falando excitado ao celular. Para alívio deWill, ela acelerou novamente. Eles atravessaram as duas pistas restantes e, depois de uma curtadistância, Will os conduziu a uma rua lateral mal iluminada. O irmão parou com uma das mãosna parede de tijolinhos — parecia totalmente desorientado, como um cego em um lugardesconhecido.

— Que ar abominável! — disse ele com veemência.— É só escapamento de carro — respondeu Will ao desamarrar o barbante grosso do globo

luminoso e improvisar uma trela para o gato, que não pareceu se incomodar nem um pouco.— Tem um cheiro forte. Devia ser contra a lei — disse Cal com completa convicção.— Receio que não é — respondeu Will enquanto os levava pela rua. Ele queria evitar a rua

principal e se manter ao máximo nas secundárias, embora isso tornasse sua jornada ainda maisdifícil e tortuosa.

E assim começou a longa marcha para o norte. Ao saírem do centro de Londres, eles sóviram um carro da polícia, mas Will conseguiu levá-los para um canto bem a tempo.

— Eles são como os Styx? — perguntou Cd.— Nem tanto — respondeu Will.Com o gato de um lado e Cal do outro, retorcendo-se, nervoso, eles caminharam. De vez

em quando, o irmão parava de súbito, como se portas invisíveis estivessem sendo batidas na caradele.

— Que foi? — perguntou Will em uma destas ocasiões, quando o irmão se recusou a semexer.

— Parece... raiva... e medo — disse Cal numa voz tensa ao olhar nervosamente as janelasnos altos de uma loja. — É tão forte. Não gosto disso.

— Não estou vendo nada — disse Will, que não conseguiu distinguir o que perturbava oirmão. Eram só janelas comuns, com uma lasca de luz aparecendo entre as cortinas de uma delas.— Não é nada, é só imaginação sua.

— Não é, não. Posso sentir o cheiro — disse Cal enfaticamente. — E está ficando maisforte. Quero ir embora daqui.

Depois de vários quilômetros tortuosos, esgueirando-se como se estivessem fugindo, eleschegaram ao cume de um morro, em cujo sopé havia uma rua principal movimentada, com seis

pistas de trânsito acelerado.— Estou reconhecendo isso... agora não está longe. Talvez mais alguns quilômetros, e

acabou — disse Will com alívio.— Não vou chegar perto disso. Não posso... não com esse fedor. Vai nos matar — disse

Cal, afastando-se de Will.— Não seja tão idiota — disse Will. Ele estava cansado demais para ouvir esses absurdos e

sua frustração agora se transformou em raiva. — Estamos tão perto.— Não — disse Cal, cravando os calcanhares. — Eu vou ficar bem aqui.Will tentou puxar o braço do menino, mas ele o afastou num safanão. Will pelejava com sua

exaustão há quilômetros e ainda tinha dificuldade para respirar; não precisava disso. De repente,foi demais para ele. Pensou que ia de fato desabar e chorar. Não era justo. Imaginou a casa e suacama limpa e acolhedora. Só o que queria fazer era se deitar e dormir. Mesmo enquanto andava,seu corpo ia se afrouxando, como se estivesse caindo em um buraco, num lugar onde tudo erareconfortante e quente. Então ele se sacudia do devaneio, novamente desperto, e instava a simesmo a continuar.

— Tudo bem! — cuspiu Will. — Então, se vira! — Ele partiu morro abaixo, puxandoBartleby pela trela.

Ao chegar à rua, Will ouviu a voz do irmão por sobre o alarido do trânsito.— Will — gritou ele. — Espere por mim! Desculpe!Cal desceu correndo o morro — Will podia ver que ele estava genuinamente apavorado. Ele

sacudia a cabeça para olhar em volta, como se estivesse prestes a ser atacado por um assassinoimaginário.

Eles atravessaram a rua no sinal, mas Cal insistiu em colocar a mão na boca até queestivessem a uma boa distância da rua.

— Não consigo suportar isso — disse ele com uma carranca. — Eu gostava da idéia doscarros quando estava na Colônia... Mas os folhetos não falavam nada do cheiro que eles tinham.

— Tem fogo?Assustados com a voz, eles se viraram. Tinham parado para descansar por um minuto e,

como se surgisse do nada, um homem estava bem atrás deles com um sorriso torto na cara Nãoera terrivelmente alto, mas era bem vestido, com um terno azul-escuro ajustado, camisa e gravata.Tinha cabelo preto e comprido, que ele ficava afagando nas têmporas e enfiando atrás dasorelhas, como se o incomodasse. — Deixei meu isqueiro em casa — continuou o homem, a vozgrave e penetrante.

— Desculpe, não fumamos — respondeu Will, afastando-se rapidamente. Havia algumacoisa forçada e espalhafatosa no sorriso do homem e sinos de alarme tocaram na cabeça de Will.

— Vocês estão bem, meninos? Parecem arrasados. Tenho um lugar em que podem seaquecer. Não fica longe daqui — disse o homem de forma insinuante. — Pode levar seu cachorrotambém, é claro. — Ele estendeu a mão para Cal e Will viu que os dedos eram manchados denicotina e as unhas eram pretas de sujeira.

— Podemos ir mesmo? — disse Cal, retribuindo o sorriso do homem.

— Não... é muita gentileza sua, mas... — Will interrompeu, olhando o irmão sem conseguirchamar sua atenção. O homem deu um passo para Cal e se dirigiu a ele, ignorandocompletamente Will, como se ele não estivesse ali.

— Uma comida quente também? — ofereceu ele.Cal estava a ponto de responder quando Will falou.— Precisamos ir, nossos pais estão esperando por nós bem ali. Vamos, Cal — disse ele, um

tom de urgência rastejando em sua voz. Cal olhou perplexo para Will, que sacudiu a cabeça, ocenho franzido. Percebendo que havia alguma coisa errada, Cal seguiu ao lado do irmão.

— Que pena, quem sabe na próxima? — disse o homem, os olhos ainda fixos em Cal. Elenão fez nenhum movimento para segui-los, mas pegou um isqueiro no bolso do paletó e acendeuum cigarro. — A gente se vê! — gritou ele às costas dos dois.

— Não olhe para trás — sibilou Will entre dentes enquanto andava a passo acelerado comCal a reboque. — Não se atreva a olhar para trás.

Uma hora depois eles chegaram a Highfield. Will evitou a High Street para não ser reconhecido,pegando as ruas de trás e as transversais até que entraram na Avenida Broadlands.

Ali estava. A casa, completamente escura, com uma placa de imobiliária no jardim. Will oslevou para o lado e sob a garagem aberta no quintal. Ele chutou o topo de um tijolo, ondesempre ficava escondida uma chave extra da porta dos fundos, e murmurou uma oraçãosilenciosa de gratidão quando viu que ainda estava ali. Ele abriu a porta e deu alguns passoscautelosos para dentro do hall escuro.

— Colonos! — disse Cal de pronto, recuando enquanto continuava a cheirar o ar. — Elesestiveram aqui... E não faz muito tempo.

— Pelo amor de Deus. — Para Will, a casa só tinha o cheiro meio bolorento dedesocupada, mas ele não se incomodou em discutir. Sem querer alertar os vizinhos, deixou asluzes apagadas e usou o globo luminoso para verificar cada cômodo, enquanto Cal continuava nohall, os sentidos trabalhando o tempo todo.

— Não tem nada... não há ninguém aqui. Satisfeito? — disse Will ao voltar ao térreo. Comalguma consternação, o irmão avançou pela casa com Bartleby nos calcanhares, e Will fechou etrancou a porta. Ele os conduziu para a sala e, certificando-se de que as cortinas estavam bemfechadas, ligou a televisão. Depois foi até a cozinha.

A geladeira estava completamente vazia, a não ser por um tablete de margarina e um tomatevelho, que estava mofado e murcho. Por um momento, Will olhou sem compreender asprateleiras nuas. Para ele, isto não tinha precedentes, confirmando a que ponto as coisas tinhamchegado. Ele suspirou ao fechar a porta e viu uma tira de papel colada ali. Era a letra precisa deRebecca, uma das listas de compras que ela fazia.

Rebecca! A fúria de repente o dominou. A idéia daquela impostora mascarada de irmã portodos aqueles anos deixou-o rígido de raiva. Ela mudara tudo. Agora ele nem podia pensar emvoltar à vida confortável e previsível que levava antes de o pai desaparecer, porque ela estava lá,vigiando e espionando... Sua presença maculava todas as lembranças que tinha. A traição deRebecca era do pior tipo: ela era um Judas enviado pelos Styx.

— Vaca! — gritou ele, arrancando a lista, amassando-a e atirando-a no chão.Ela caiu no piso de linóleo impecável que Rebecca esfregava semana sim, semana não, com

uma regularidade perturbadora. Will olhou o relógio de parede e suspirou. Foi até a pia e encheucopos de água para ele e Cal, e uma tigela para Bartleby, depois voltou à sala. Cal e o gato jáestavam enrascados, dormindo no sofá, o menino com a cabeça pousada sonolenta no braço. Eleviu que os dois estavam tremendo, então pegou cobertores nas camas no segundo andar ecolocou-os sobre seus corpos adormecidos. A casa não tinha aquecimento central e estava fria,mas não tão fria assim. Will chegou à conclusão de que só não estavam acostumados atemperaturas tão mais baixas e fez uma anotação mental para escolher uma roupa quente paraeles pela manhã.

Will bebeu a água rapidamente e sentou-se na poltrona da mãe, enrolando-se na manta deviagem dela. Seus olhos mal registraram as acrobacias de snowboarding que desafiavam a morte natelevisão enquanto ele se enroscava, precisamente como a mãe fizera por tantos anos, e caía nomais profundo dos sonos.

Capítulo Trinta e Três

Tam postava-se em silêncio e desafiador. Estava decidido a não demonstrar nenhum sinal deapreensão enquanto ele e o sr. Jerome esperavam de frente para a mesa comprida, as mãosfechadas às costas como soldados de prontidão.

Atrás da mesa de carvalho muito polido sentava-se a Panóplia. Estes eram os membros maisantigos e mais poderosos do Conselho Styx. Em cada cabeceira da mesa sentavam-se algunscolonos de alta hierarquia: representantes do Conselho de Governadores, homens que o sr.Jerome conhecia a vida toda, homens que eram seus amigos. Ele grasnou de vergonha ao sentir adesgraça que se abatera sobre ele e não teve coragem de olhar para os demais. Nunca pensou quechegaria a esse ponto.

Tam estava menos intimidado; já levara reprimendas antes e sempre conseguira se livrar porum triz. Embora as alegações fossem graves, ele sabia que seu álibi passara pelo escrutínio deles.Imago e seus homens se certificaram disso. Tam ficou olhando enquanto o Mosca conferenciavacom um colega Styx e depois se recostou para falar com a criança Styx que estava meio ocultaatrás do encosto alto da cadeira. Ora essa, isto era irregular. Em geral os filhos dos Styx ficavambem fora de vista e afastados da Colônia; os recém-nascidos nunca eram vistos, ao passo que osdescendentes mais velhos, segundo diziam, eram trancafiados com seus mestres na atmosferararefeita de suas escolas privativas. Ele nunca ouvira falar de nenhum deles acompanhando osmais velhos em público, que dirá presente em reuniões como esta.

Os pensamentos de Tam foram interrompidos quando uma explosão áspera de debateintenso grassou na Panóplia. Sussurros em chinês ondulavam de uma ponta a outra e suas mãosmagras se comunicavam numa série de gestos rudes. Tam olhou rapidamente o sr. Jerome, cujacabeça estava baixa. Murmurava uma oração com o suor caindo de suas têmporas. Seu rostoestava inchado e a pele tinha um rosado pouco saudável. Tudo isso estava cobrando seu preçosobre ele.

A comoção cessou abruptamente entre assentimentos e curtas palavras de concordância, eos Styx se recostaram em suas cadeiras, um silêncio arrepiante caindo na sala. Tam se preparou.Estavam prestes a fazer um pronunciamento.

— Sr. Jerome — entoou o Styx à esquerda do Mosca. — Depois da devida consideração ede uma investigação completa e adequada — ele fixou as pupilas de conta no homem que tremia— permitiremos que o senhor vá embora.

Outro Styx prontamente assumiu.— Parece que as injustiças que lhe foram incorridas por determinados membros de sua

família, no passado e no presente, são infundadas e desventuradas. Sua honestidade não está emquestão e sua reputação não foi maculada. A não ser que prefira depor para os autos, estáincondicionalmente dispensado.

O sr. Jerome curvou-se pesaroso e se afastou da mesa. Tam ouviu suas botas raspando naslajotas, mas não ousou se virar para vê-lo partir. Em vez disso, seu olhar se agitou pelo teto dasala de pedra, depois nas antigas pinturas penduradas na parede atrás da Panóplia, exibindo umretrato dos Pais Fundadores cavando um túnel perfeitamente redondo ao lado de uma colinaverdejante.

Ele sabia que agora todos os olhos estavam nele.Outro Styx falou. Tam de imediato reconheceu a voz do Mosca e foi obrigado a encarar o

inimigo declarado. “Ele estava adorando cada minuto disto”, pensou Tam.— Macaulay. Você está numa trapalhada diferente. Embora ainda não tenha sido

comprovado, acreditamos que favoreceu e auxiliou seus sobrinhos, Seth e Caleb Jerome, em suatentativa frustrada de libertar o garoto da Crosta Chester Rawls e depois escapar para a CidadeEterna — disse o Mosca com um prazer evidente.

Um segundo Styx continuou.— A Panóplia registrou sua alegação de inocência e seus protestos contínuos. — Com um

único aceno condenatório de cabeça, ele se calou por um momento. — Analisamos as evidênciassubmetidas em sua defesa, mas a esta altura somos incapazes de chegar a uma resolução. Deacordo com isto, decretamos que a investigação permanecerá em aberto, o senhor seráencarcerado e seus privilégios serão revogados até segunda ordem. Compreendeu?

Tam assentiu sombriamente.— Repetimos, você compreendeu? — disse a criança Styx, avançando um passo.Um sorriso cruel apareceu no rosto de Rebecca enquanto seu olhar gelado perfurava Tam.

Houve uma agitação de pasmo silencioso dos colonos pelo fato de uma menor ter ousado falar,mas nem a mais leve indicação dos Styx de que estava havendo algo fora do normal.

Dizer que Tam ficou hesitante seria muito pouco. Deveria ele responder a uma meracriança? Como ele não respondeu de imediato, ela repetiu a pergunta, a vozinha severa afiadacomo uma chicotada.

— REPETIMOS, VOCÊ COMPREENDEU?— Compreendi — murmurou Tam-—, compreendi muito bem.É claro que isto não era de forma alguma uma decisão final, mas significava que ele viveria

no limbo até que eles decidissem que ele estava limpo, ou... bem... ele não suportava pensar naalternativa.

Enquanto um carrancudo policial colono o conduzia para fora, ele não pôde deixar deperceber o olhar astuto de felicitação que foi trocado entre Rebecca e o Mosca.

“Mas que surpresa!”, pensou Tam. “É a filha dele!”

Arrancado do sono pelo estrondo da televisão, Will se sentou assustado na poltrona.Automaticamente pegou o controle remoto e abaixou um pouco o volume; foi só então queolhou em volta, percebeu plenamente onde estava e se lembrou de como chegara lá. Estava emcasa, numa sala que conhecia tão bem. Embora estivesse cercado pela incerteza sobre o que iriaacontecer, pela primeira vez em muito tempo sentia que tinha algum controle de seu destino, eisso era bom.

Ele flexionou os membros enrijecidos e respirou fundo várias vezes, tossindo bruscamente.Apesar do fato de estar faminto, sentia-se um pouco melhor do que no dia anterior; o sono lhefizera algum bem. Ele se coçou, depois puxou vagamente o cabelo embaraçado, a brancura desempre descolorida de poeira. Cambaleando para fora da poltrona, foi até as cortinas e as abriualguns centímetros para que o sol da manhã entrasse na sala. Uma luz de verdade. Era uma visãotão bem-vinda que ele abriu ainda mais as cortinas.

— Forte demais! — guinchava Cal repetidamente, enterrando a cara em uma almofada.Bartleby, acordado pelos gritos de Cal, abriu os olhos trêmulos. De imediato recuou do brilho, aspernas compridas impelindo-o para trás enquanto ele se jogava atrás do sofá. Ali ele ficou,escondido da luz e soltando grunhidos em algum ponto entre um silvo e um miado baixo.

— Ah, meu Deus, me desculpe — gaguejou Will, xingando-se ao fechar as cortinas àspressas. — Eu me esqueci completamente.

Ele ajudou o irmão a se sentar direito. Ele gemia baixinho atrás da almofada e Will pôde verque ela já estava ensopada de lágrimas. O garoto se perguntou se os olhos de Cal e Bartleby umdia se adaptariam à luz natural. Era só mais um problema que ele teria que resolver.

— Isso foi tão idiota — disse ele, desamparado. — Eu vou... é... vou arrumar uns óculosescuros para você.

Ele começou a procurar numa cômoda no quarto dos pais e descobriu que estava vazia. Aoverificar a última gaveta, pegou um sachê de lavanda estendido no papel de presente de Natalbarato que a mãe usava como forro e o ergueu para sentir o aroma familiar. Ele fechou os olhosenquanto o cheiro conjurava uma imagem vivida da mãe. Aonde quer que a tivessem enviadopara se recuperar, agora ela devia estar mandando nos outros pacientes. Ele podia apostar que elatomara posse da melhor poltrona na sala de televisão e tinha convencido alguém a lhe trazerxícaras regulares de chá. Ele sorriu. De certa forma, ela devia estar mais feliz agora do que foidurante anos. E talvez também um pouco mais segura, se os Styx decidissem fazer uma visita.

Sem motivo especial, enquanto vasculhava a mesa-de-cabeceira, ele pensou em sua mãeverdadeira. Perguntou-se onde ela estava neste momento, se ainda estivesse viva. A única pessoana longa história da Colônia a fugir dos Styx e sobreviver. Ele trincou os dentes com um olhardecidido ao ver seu reflexo no espelho. Bem, agora haveria mais dois Jerome com essa distinção.

Numa prateleira alta no guarda-roupa da mãe, ele encontrou o que procurava, um par deóculos de sol de plástico curvo que ela usava nas raras ocasiões em que se aventurava a sair noverão. Ele voltou até Cal, que semicerrava os olhos para a televisão na sala escurecida e estavacompletamente absorto no programa de entrevistas do meio da manhã em que umaapresentadora obsequiosa e de bronzeado permanente, jorrando sinceridade, reconfortava a mãe

inconsolável de um adolescente viciado em drogas. Os olhos de Cal estavam um poucovermelhos e ainda molhado de lágrimas, mas ele nada disse e na verdade não os desviou nem umavez da tela enquanto Will colocava os óculos em sua cabeça, passando um elástico nas hastes paramantê-los firme no lugar.

— Melhor assim? — perguntou Will.— Sim, muito melhor — disse Cal, ajeitando os óculos. — Mas estou com muita fome —

acrescentou ele, afagando a barriga. — E estou com tanto frio. — Ele batia os dentesdramaticamente.

— Primeiro um chuveiro. Isso vai aquecer você — disse enquanto erguia o braço paraexperimentar o odor acumulado do suor de muitos dias. — E umas roupas limpas.

— Chuveiro? — Cal o olhou inexpressivamente através das lentes dos óculos escuros.Will conseguiu ligar o aquecedor e foi o primeiro, a água quente pinicando a pele com um

alívio doloroso enquanto nuvens de vapor o envolviam num êxtase de esquecimento. Depois foia vez de Cal. Will mostrou ao irmão fascinado como funcionava o potente chuveiro e o deixouentrar. No guarda-roupa de seu quarto, pegou mudas de roupa limpas para ele e para Cal, emboraas do irmão precisassem de um pouco de ajuste para caber nele.

— Agora sou um menino da Crosta de verdade — anunciou Cal, admirando os jeans largoscom as pernas enroladas e a camisa volumosa com dois suéteres por cima.

— É, bem na moda. — Will riu.Bartleby foi mais problemático. Foi preciso muita persuasão de Cal até para fazer com que o

animal trêmulo fosse à porta do banheiro, e depois eles tiveram que empurrá-lo pela traseira,como uma mula empacada, para que ele entrasse. Como se soubesse o que lhe estava reservadono cômodo vaporoso, ele pulou para fora e tentou se esconder debaixo da pia.

— Vamos, Bart, seu fedorento, para o banho! — ordenou Cal, finalmente perdendo apaciência, e o gato arrastou-se de má vontade para a banheira e olhou para eles com a expressãomais desprezível. Soltou um gemido baixo e gorgolejou quando a água bateu em sua pele frouxae, decidindo que já bastava para ele, tentou sair arranhando o plástico da banheira com as patas.Mas com Will segurando-o, eles conseguiram terminar a tarefa, embora os três ficassemcompletamente encharcados no final do exercício.

Uma vez fora da banheira, Bartleby ricocheteou pelos quartos como um dervixe em plenogiro, enquanto Will tinha um enorme prazer em saquear o quarto de Rebecca. Ao atirar todas assuas roupas incrivelmente dobradas no chão, ele se perguntava como diabos ia descobrir algumacoisa que fosse remotamente adequada para vestir um gato. Mas, no final, umas polainas foramcortadas no tamanho das pernas traseiras do animal e um velho blusão roxo da Benetton cobriu ametade superior do corpo. Will encontrou uns óculos de sol do Pernalonga na bolsa de viagemde Rebecca e estes foram colocados na cabeça do gato depois que um gorro tibetano listrado deamarelo e preto foi puxado firmemente para baixo. Bartleby ficou bem esquisito com os novostrajes. Do patamar da escada, os dois irmãos recuaram para admirar a obra, explodindoprontamente em gargalhadas histéricas.

— E quem é o bonitão? — Cal balbuciou entre explosões de riso sem fôlego.— Está mais bonito do que muita gente por aqui! — disse Will.— Não se preocupe, Bart — disse Cal suavemente, afagando o dorso do animal irritado. —

Está muito... é... admirável — ele conseguiu falar antes de os dois caírem mais uma vez numa

gargalhada descontrolada. Por trás das lentes cor-de-rosa, o indignado Bartleby os fitava de ladocom os olhos grandes.

Felizmente, Rebecca, por mais que Will a xingasse, deixara o freezer bem abastecido nadespensa. Ele leu as instruções do microondas e aqueceu três refeições completas de carne, combolinhos e feijão-fradinho. Eles as comeram na cozinha, Bartleby de pé com as patas na mesa, alíngua raspando o prato de estanho, e devorando faminto cada pedaço de carne. Cal pensou queesta era a melhor coisa que tinha comido na vida, mas afirmou que ainda estava com fome, entãoWill pegou mais três refeições no freezer. Desta vez, eles comeram porco com batatas assadas.Empurraram a comida para dentro com uma garrafa de Coca-Cola, que provocou ataques deêxtase em Cal.

— E agora? — disse ele, por fim, acompanhando com o dedo as bolhas que subiam pelocopo de vidro.

— Por que toda essa pressa? Vamos ficar bem por algum tempo — respondeu Will. Eleesperava que os dois pudessem ficar enfiados ali, mesmo que por alguns dias, para ele ter tempode pensar no movimento seguinte.

— Os Styx sabem deste lugar... alguém já esteve aqui e eles vão voltar. Não se esqueça doque o tio Tam disse. Não há com nós ficarmos aqui.

— Acho que sim — concordou Will com relutância — e podemos ser vistos peloscorretores da imobiliária, se mostrarem a casa a alguém. — Ele olhou de um jeito desfocado paraa cortina de renda acima da pia e falou decidido. — Mas ainda temos que tirar o Chester de lá.

O irmão o olhou espantado.— Quer dizer voltar? Não posso voltar, não agora, Will. Os Styx fariam coisas horríveis

comigo.Cal não era o único a temer a volta ao subterrâneo. Will mal conseguia conter o pavor com

a perspectiva de voltar a enfrentar os Styx. Sentia como se tivesse pressionado sua sorte aomáximo possível e era pura maluquice imaginar que podia fazer alguma tentativa de resgateaudaz.

Por outro lado, o que iam fazer se continuassem na Crosta? Fugir o tempo todo? Quandopensava bem no assunto, simplesmente não era realista. Mais cedo ou mais tarde eles seriamdetidos pela polícia, e ele e Cal provavelmente seriam separados e colocados em orfanatos. Piordo que isso, ele passaria o resto da vida sob a sombra da morte de Chester, sabendo, além detudo, que podia ter se unido ao pai em uma das maiores aventuras do século.

— Eu não quero morrer — disse Cal numa voz fraca. — Não desse jeito. — Ele afastou osóculos e olhou suplicante para Will.

A situação não estava melhorando. Will não podia lidar com mais pressão ainda. Elesacudiu a cabeça.

— O que devo fazer? Não posso deixar Chester lá. Não posso. E não vou.

Mais tarde, enquanto Cal e Bartleby vadiavam diante da televisão vendo programas infantis ecomendo fritas, Will não conseguiu resistir a uma ida ao porão. Exatamente como esperava,quando ele puxou a estante, não havia nenhum vestígio do túnel — eles tiveram o trabalho até de

colocar uma nova camada de tijolos para se misturar com o resto da parede. Ele sabia que portrás haveria o preenchimento habitual de pedra e terra. Eles fizeram bem o trabalho. Não tinhasentido perder mais tempo ali.

De volta à cozinha, ele se equilibrou num banco enquanto vasculhava vidros no alto dosarmários. Descobriu o dinheiro do vídeo da mãe num pote de porcelana para mel — havia umas20 libras em moedas.

Ele estava no corredor, a caminho da sala de estar, quando começou a ver pontinhos de luzdançando em seus olhos e em todo seu corpo surgiu um formigamento de calor. Depois, semaviso algum, suas pernas cederam. Ele largou o vidro, que bateu na beirada da mesa do corredore se estatelou, espalhando as moedas no chão. Era como se ele estivesse em câmera lenta aodesmaiar, uma dor feroz ardendo em sua cabeça até que tudo ficou preto e ele perdeu aconsciência.

Cal e Bartleby vieram correndo da sala ao ouvir barulho.— Will! O que foi? — gritou Cal, ajoelhando-se ao lado dele.Will voltou a si devagar, as têmporas latejando dolorosamente.— Não sei — disse ele com a voz fraca. — Só ficou esquisito de repente. — Ele começou a

tossir e teve que prender a respiração para que a tosse parasse.— Você está pegando fogo — disse Cal, sentindo a testa dele.— Congelando... — Will mal conseguia falar com os dentes batendo. Fez um esforço para

se levantar, mas não teve forças para isso.— Ah, meu Deus — o rosto de Cal se vincou de preocupação —, pode ser alguma coisa da

Cidade Eterna. A Peste!Will ficou em silêncio enquanto o irmão o puxava para o pé da escada e apoiava sua cabeça

nela. Ele pegou a manta de viagem e a colocou sobre Will. Depois de um tempo, Will pediu a Calque fosse ao banheiro para pegar uma aspirina. Ele a tomou com um gole de Coca-Cola e, apósum breve descanso, conseguiu se colocar de pé, trêmulo, com a ajuda de Cal.

Os olhos de Will ferviam e estavam desfocados, e sua voz tremia.— Acho que vamos precisar de ajuda — disse ele, esfregando o suor da testa.— Há algum lugar a que possamos ir? — perguntou Cal.Will fungou, engoliu em seco e assentiu, a cabeça parecendo que ia explodir.— Só consigo pensar em um lugar.

— Saia já daí! — berrou o Segundo Oficial na cela, a cabeça tão esticada para a frente que ostendões do pescoço grosso se destacavam arrogantes, como uma corda cheia de nós.

Das sombras vieram várias fungadelas enquanto Chester fazia o máximo para controlar ochoro de pavor. Desde que fora recapturado e levado de volta ao Cárcere, o Segundo Oficial ovinha tratando com brutalidade. O homem se dedicava a tornar a vida de Chester um inferno,retendo suas refeições e acordando-o com um balde de água gelada na cabeça se por acaso elecochilasse na saliência, ou gritando ameaças através da janelinha de inspeção. Tudo isso devia teralgo a ver com a atadura grossa em volta da cabeça do Segundo Oficial — o golpe de Will com apá o nocauteara — e, o que era pior, quando ele voltou a si, os Styx passaram grande parte do diainterrogando-o sob a acusação de que ele fora negligente em seus deveres. Assim, dizer que agora

o Segundo Oficial estava muito mais amargo e vingativo seria atenuar a verdade.Chester, meio faminto e exausto a ponto de desmaiar, não tinha certeza de quanto mais

desse tratamento poderia suportar Se a vida já estava difícil para ele antes da tentativa malogradade ruga, agora era muito pior.

— Não me faça entrar aí e pegar você! — gritou o Segundo Oficial. Antes que eleterminasse, Chester arrastou-se descalço para a luz fraca do corre-dor. Protegendo os olhos comuma das mãos, ele ergueu a cabeça. Estava suja de cinza, entranhada de terra, e a camisa estavarasgada.

— Sim, senhor — murmurou ele, subserviente.— Os Styx querem vê-lo. Eles têm algo a lhe dizer — disse o Segundo Oficial, a voz

distorcida de crueldade, depois começou a rir. — Algo que vai deixá-lo bom e correto. — Eleainda estava rindo e, espontaneamente, Chester andou pelo corredor na direção da portaprincipal do Cárcere, as solas dos pés raspando lentamente as lajotas arenosas.

— Mexa-se! — disse o Segundo Oficial, batendo nas costas de Chester com o molho dechaves.

— Ai — reclamou Chester numa voz miserável.Ao passarem pela porta principal, Chester precisou cobrir os olhos completamente, agora

que não estava mais acostumado com a luz. Ele continuou a se arrastar, tomando um rumo que ofaria passar pela mesa da recepção da delegacia se o Segundo Oficial não o detivesse.

— E aonde pensa que vai? Não acha que vai para casa, não é? — O homem começou agargalhar e voltou a ficar mortalmente sério. — Não, entre à direita, no corredor, ande.

Chester, abaixando as mãos e tentando ver através dos olhos semicerrados, girou lentamentee ficou paralisado, enraizado no chão.

— A Luz Negra? — perguntou ele temeroso, sem se atrever a virar a cara para o SegundoOficial.

— Não, já passamos desta fase. Agora receberá seu merecido castigo, seu borra-botasindigno.

Eles passaram por uma série de corredores, o Segundo Oficial acossando Chester comespetadas e empurrões, rindo consigo mesmo o tempo todo. Ele se aquietou quando viraram umaesquina e apareceu uma porta aberta. Dela, uma luz intensa jorrava para fora, iluminando aparede caiada do outro lado.

Embora os movimentos de Chester fossem lânguidos e sua expressão vazia, por dentro seusmedos grassavam. Freneticamente, ele debatia consigo mesmo se devia correr e se atirar nocorredor à frente. Não fazia a mais remota idéia de onde levava ou até que ponto ia, mas ocorredor, no mínimo, evitaria que ele enfrentasse o que quer que esperasse por ele naquela sala.Pelo menos por algum tempo.

Ele reduziu o passo ainda mais, os olhos doendo ao se obrigar a olhar diretamente a luz quefluía da porta. Estava chegando mais perto. Não sabia o que esperava lá dentro — outra dastorturas tremendamente horríveis deles? Ou talvez... Talvez um carrasco.

Todo seu corpo enrijeceu, cada músculo querendo fazer alguma coisa, exceto levá-lo paraaquela luz vertiginosa.

— Quase lá — disse o policial por sobre o ombro de Chester, e Chester entendeu que não

tinha alternativa a não ser cooperar. Não haveria uma moratória miraculosa, nem fugasoportunas.

Ele arrastava tanto os calcanhares que mal se mexia quando o Segundo Oficial lhe deu umempurrão tão forte que ele foi arrancado do chão e voou pela porta, entrando na luz. Deslizandode frente no piso de pedra, ele parou e ficou ali, meio atordoado.

A luz o cercava completamente e ele piscou rápido devido a seu brilho severo. Chesterouviu a porta bater e, por um farfalhar de papéis, sabia que havia mais alguém na sala. Deimediato imaginou quem eram — dois Styx altos, muito provavelmente assomando atrás de umamesa, assim como fizeram nas sessões da Luz Negra.

— Levante-se — ordenou uma voz anasalada e aguda.Chester se levantou e lentamente ergueu os olhos para a origem do som. Não podia ficar

mais pasmo com a visão que o recebeu.Era um único Styx e ele era seco e pequeno, o cabelo cinza e fino puxado para trás nas

têmporas e o rosto tomado de tantas rugas e linhas de expressão que parecia uma passaembranquecida. Curvado acentuadamente sobre uma mesa alta de tampo oblíquo, ele parecia umprofessor do passado.

Chester ficou completamente desarmado com esta aparição e aquela luz em volta de tudo.Não era o que ele esperava. Começou a se sentir aliviado, dizendo a si mesmo que, afinal, talvezas coisas ficassem melhores do que ele pensou, quando então seus olhos encontraram os do velhoStyx.

Eram os olhos mais frios e mais sombrios que Chester já vira. Eram como dois poços semfundo que o atraíam por algum poder sobrenatural e doentio, puxando-o para seu vazio. Chestersentiu um arrepio descer pelo corpo, como se a temperatura tivesse despencado na sala, e tremeuviolentamente.

O velho Styx baixou os olhos para a mesa e Chester se balançou instável nos pés, como setivesse sido repentinamente libertado de alguma coisa que o mantinha num aperto implacável.Ele soltou a respiração numa lufada, sem saber até agora que a estava prendendo. Depois, o Styxcomeçou a ler num tom cadenciado.

— Você foi considerado culpado — disse ele —, sob a Norma 42, Éditos 18, 24, 42...Os números continuaram, mas nada significavam para Chester até que o Styx parou e,

muito categoricamente, disse a palavra “sentença”. A esta altura, Chester começou a ouvir deverdade.

— O prisioneiro será retirado deste local e transportado por trem ao Interior, e lá será seuDesterro, entregue às forças da natureza. Assim será — concluiu o velho Styx, batendo palmas emantendo-as firmemente juntas, como se estivesse espremendo alguma coisa. Depois ergueu acabeça lentamente dos documentos e disse: — Talvez o Senhor tenha piedade de sua alma.

— O que... o que quer dizer? — perguntou Chester, a cabeça girando com o olhar gélidodo Styx e as implicações do que acabara de ouvir.

Sem precisar consultar os documentos diante de si, o Styx simplesmente reiterou a puniçãoe voltou a se calar. Chester lutou com as perguntas que disparavam por sua cabeça, movendo oslábios sem emitir som algum.

— Sim? — perguntou o velho Styx, de tal forma que sugeria que estivera nesta situaçãomuitas vezes e achava completamente tedioso ter que conversar com o prisioneiro inferior diante

dele.— O que... O que isso significa? — por fim Chester conseguiu falar.O Styx encarou Chester por vários segundos e, inteiramente impassível, disse:— O Desterro. Você será escoltado até a Estação dos Mineradores, muitas braças abaixo, e

lá ficará por conta própria.— Ainda mais fundo na terra?O Styx assentiu.— Não temos necessidade de sua espécie na Colônia. Você tentou fugir e a Panóplia faz fé

disto. Você não é digno de servir aqui. — Ele bateu palmas novamente. — O Desterro.Chester de repente sentiu o peso enorme de todos os milhões de toneladas de terra e pedra

acima dele, como se o pressionassem diretamente, espremendo seu sangue. Ele cambaleou paratrás.

— Mas eu não fiz nada. Não sou culpado de nada! — gritou ele, estendendo as mãos epleiteando ao homenzinho sem emoção. Parecia que estava sendo enterrado vivo e nunca maisveria sua casa, ou o céu azul, ou sua família... Tudo o que ele amava e desejava. A esperança a quese prendera desde que foi capturado e trancafiado naquela cela escura se esvaiu dele, como o arde um balão que explode.

Ele foi condenado.Este homenzinho odioso não dava a mínima... Chester viu isso na cara impassível do Styx e

em seus olhos medonhos: olhos de réptil, inumanos. E Chester sabia que não havia sentido algumem tentar convencê-lo, ou implorar por sua vida. Essa gente era selvagem e impiedosa, e eles ocondenaram arbitrariamente ao destino mais pavoroso. Um túmulo ainda mais fundo.

— Mas por quê? — perguntou Chester, as lágrimas molhando rosto ao chorar abertamente.— Porque assim é a lei — respondeu o velho Styx. — Porque estou sentado aqui e você

está de pé aí. — Ele sorriu sem o menor vestígio de calor humano.— Mas... — Chester objetou com um gemido.— Policial, leve-o de volta ao Cárcere — disse o velho Styx, reunindo sua papelada com os

dedos artríticos, e Chester ouviu a porta se abrir atrás dele.

Capítulo Trinta e Quatro

Will foi atirado para frente quando um punho caiu em cheio no meio de suas costas.Cambaleando feito bêbado por alguns passos, ele ricocheteou no corrimão e se virou devagarpara encarar seu atacante.

— Speed? — disse ele, reconhecendo a carranca do valentão da escola.— De onde você surgiu, floco de neve? Pensei que tivesse apagado. Disseram que estava

morto ou coisa assim.Will não respondeu. Estava imerso no casulo isolado da indisposição; parecia estar olhando

o mundo de trás de um vidro canelado. Só o que Will pôde fazer foi ficar ali, o corpo tremendoenquanto Speed colocava a cara rabugenta a centímetros da dele. Pelo canto do olho, Will viuBloggsy aproximando-se de Cal a pouca distância na ladeira.

Eles estavam a caminho do metrô e agora uma briga era a última coisa que Will queria.— E aí, cadê o gordão? — sussurrou Speed, a umidade de seu hálito formando nuvens no

ar frio. — É meio diferente sem seu protetor, não é, varapau?— Ei, Speed, dá uma olhada nisso, é o Mini Me! — disse Bloggsy, olhando de Cal para Will

e vice-versa. — O que tem nessa bolsa, espertinho?Por insistência de Will, Cal levava as roupas sujas dos colonos em uma das velhas mochilas

de expedição do dr. Burrows.— Hora da revanche — gritou Speed, e ao mesmo tempo deu um murro na barriga de Will.

Sem fôlego, o garoto caiu de joelhos e tombou, enroscando-se e protegendo a cabeça com osbraços ao cair no chão.

— Isso está fácil demais — gritou Speed e chutou Will nas costas várias vezes.Bloggsy soltava uivos ridículos e se agachava numa pose fingida de lutador de kung fu

enquanto espetava dois dedos nos óculos de sol de Cal.— Prepare-se para encontrar o criador — disse ele, trazendo o braço para trás, preparando-

se para um soco.Depois disso, tudo aconteceu rápido demais para Will. Houve um borrão de luz roxa e

marrom quando Bartleby se jogou num baque no meio dos ombros de Bloggsy. O impacto

afastou o garoto de Cal e o fez tropeçar desordenadamente ladeira abaixo, o gato ainda grudadoem suas costas. Ao cair de cara no chão, Bloggsy se retorceu e tentou usar os cotovelos para selivrar da agitação de caninos perolados e das garras que pareciam bárbaras, ao mesmo tempo emque soltava os gritos agudos mais pavorosos e pedia a ajuda de alguém.

— Não! — gritou Will, a voz fraca. — Chega!— Solte, Bart! — gritou Cal.O gato, ainda em cima de Bloggsy, girou a cabeça para olhar Cal, que gritava outro

comando.— Cuide dele! — Cal apontou para Speed, que continuava parado junto a Will esse tempo

todo, sem acreditar no que via O queixo de Speed caiu e uma expressão de puro pavor apareceuem seu rosto. Bartleby fixou os olhos na nova vítima através dos estranhos óculos escuros cor-de-rosa, o gorro tibetano agora meio torto na cabeça. Com um silvo alto, ele partiu pela ladeira nadireção do valentão assustado.

— Meu Deus! Mande ele parar! — gritou Speed, começando a correr como se sua vidadependesse disso. E dependia mesmo. Às vezes ao lado dele, às vezes bloqueando seu caminho,Bartleby saltitava em volta de Speed como um furacão brincalhão, atacando suas panturrilhas ecortando as pernas através das calças da escola, lacerando sua pele. O menino apavoradocambaleava numa dança espasmódica e cômica ao tentar escapar freneticamente, os pésescorregando desesperados no asfalto.

— Desculpe, Will, desculpe! Me livra dessa! Por favor! — tagarelava Speed, as calçasreduzidas a farrapos.

Com um olhar de Will, Cal colocou dois dedos na boca e assoviou. O gato parou deimediato e permitiu que Speed corresse. O menino não se virou para trás nem uma vez.

Will olhou de Cal para o pé da ladeira, onde Bloggsy tinha se levantado e meio que corria,meio que caía na pressa para conseguir fugir.

— Acho que nos livramos deles. — Cal riu.— Sim — concordou Will fraquinho ao se levantar lentamente. Uma onda de febre após

outra fluía por seu corpo e ele tinha a sensação de que ia desmaiar de novo. Podia muito bem sedeitar de costas, abrir o casaco para o frio e dormir bem ali, na calçada gelada. A única maneirade Will conseguir descer o que restava da ladeira era com Cal sustentando-o, mas, por fim, elesconseguiram chegar embaixo e entrar na estação do metrô.

— Então até as pessoas da Crosta vão para os subterrâneos disse Cal, olhando a estaçãoantiga e suja, precisando há muito de uma reforma. Suas maneiras se transformaram de imediato;ele parecia genuinamente à vontade pela primeira vez desde que apareceram nas margens doTâmisa, aliviado por haver um túnel em volta dele, e não o céu aberto.

— Na verdade, não — disse Will apaticamente ao começar a colocar moedas na máquina debilhetes, enquanto Bartleby babava sobre um pedaço de chiclete que parecia líquen, recém-depositado no piso de ladrilhos. Os dedos trêmulos de Will se atrapalharam com as moedas,depois ele parou e se encostou na máquina. — Isso não está bom — arfou ele. Cal pegou asmoedas e, enquanto Will lhe dizia o que fazer, terminou de pagar pelos bilhetes.

Na plataforma, não demorou muito para que o trem chegasse. Uma vez a bordo dacomposição para o sul, nenhum dos meninos falou ao partirem da estação. O trem ganhavavelocidade, Cal observava os cabos que ondulavam pelas laterais do túnel e brincava com seu

bilhete. Lambendo as patas, Bartleby estava escorado sobre as coxas no banco ao lado de Cal.Não havia muita gente no vagão, mas Cal estava consciente de que eles atraíam alguns olharesmuito curiosos.

De frente para Cal e Bartleby, Will estava afundado na lateral do vagão, acalmado pelo vidrofrio na têmpora enquanto sua cabeça tombava na janela. Entre as paradas, ele entrava e saía deum sono espasmódico e durante um período de vigília viu que duas senhoras tinham se sentadonos lugares do outro lado do corredor. Trechos de sua conversa vagavam para a consciência e semisturavam com os anúncios das plataformas como vozes num sonho confuso.

“Olhe só para ele... que desgraça... os pés em cima dos bancos... CUIDADO COM OVÃO... que criança estranha... O METRÔ DE LONDRES PEDE DESCULPAS...”

Will obrigou-se a abrir os olhos e fitou as duas mulheres. Percebeu de imediato que eraBartleby a causa de sua aparente aflição. A que estava falando tinha cabelo com rinsagem roxa eusava bifocais de aro branco e translúcido que pousavam tortos no nariz vermelho.

— Shhh! Eles vão ouvir você — sussurrou a companheira, olhando Cal. Ela usava umaperuca que já vira dias melhores. As duas tinham sacolas de compras idênticas no colo, como sefossem uma forma de defesa contra os patifes sentados do outro lado.

— Que absurdo! Aposto que não falam uma palavra de inglês. Devem ter vindo para cá nacaçamba de um caminhão. Quero dizer, olhe só o estado das roupas. E aquele ali... não parece lámuito inteligente para mim. Deve estar drogado ou coisa assim. — Will sentiu seus olhosremelentos pousarem nele.

— É como eu digo, precisamos mandar todos de volta.— Sim, sim — disseram as duas senhoras em uníssono e, com um assentir mútuo de

concordância, passaram a discutir, em detalhes mórbidos, a doença de uma amiga. Cal observavafuriosamente sua tagarelice e, agora, ao que parecia, elas estavam preocupadas demais para daratenção a qualquer outra pessoa. O trem parou e, enquanto as velhas se levantavam de seuslugares, Cal ergueu a aba do gorro tibetano de Bartleby e sussurrou alguma coisa no ouvido dele.Bartleby de repente se ergueu e sibilou na cara delas com tanta ferocidade que Will ficou chocadoem seu estupor de febre.

— Nunca vi uma coisa assim! — gritou a mulher de nariz vermelho, largando a sacola decompras. Enquanto a pegava, sua companheira se afobou e a puxou de lado, tentando apressá-la.

Num átimo, as duas mulheres saíram atrapalhadas do trem, gritando.— Malditos ciganos! — xingou a mulher de nariz vermelho da plataforma. — Seus animais

desgraçados! — gritou ela através das portas que se fechavam.O trem entrou em movimento e Bartleby manteve os olhos demoníacos nas duas, que

estavam paradas na plataforma, ainda gritando de indignação.Dominado pela curiosidade, Will inclinou-se para o irmão.— Me conta... O que você disse ao Bartleby? — perguntou ele.— Ah, nada demais — respondeu Cal cheio de inocência, sorrindo com orgulho para o gato

antes de olhar pela janela de novo.

Will andou apavorado o meio quilômetro que restava até o edifício. Cambaleava feito um

sonâmbulo, parando quando ficava demais para ele.Quando finalmente chegaram ao prédio alto, o elevador não estava funcionando. Will olhou

com um desespero mudo a parede cinza metralhada de pichações. Era a gota d’água. Ele suspiroue, preparando-se para a subida, tropeçou pela escada esquálida. Depois de parar em cada andarpara recuperar o fôlego, eles, por fim, chegaram ao andar certo e seguiram pela pista deobstáculos de sacos de lixo descartados.

Não houve resposta quando Cal tocou a campainha, então ele teve que recorrer a batidas naporta com o punho quando a tia Jean a abriu, de repente. Ela claramente não estava acordada hámuito tempo — parecia tão esgotada e amarfanhada quanto o sobretudo roído por traças comque evidentemente dormira.

— O que é? — disse ela indistintamente, esfregando a nuca e bocejando. — Não pedi nadae não vou comprar nada de vendedor nenhum.

— Tia Jean, sou eu... Will — disse ele, o sangue sumindo de sua cabeça e a imagem da tiaempalidecendo, como se todas as cores tivessem sido eliminadas dela.

— Will — disse ela vagamente, e interrompeu outro bocejo ao entender. — Will! — Elaergueu a cabeça e o olhou com descrença. — Pensei que estivesse desaparecido. — Olhou paraCal e Bartleby, e acrescentou: — E quem é esse?

— É... um primo... — Will ofegou enquanto o chão começava a se inclinar e oscilar, e elefoi obrigado a dar um passo para a frente a fim de se apoiar na soleira da porta. Estava ciente dosuor frio que escorria do couro cabeludo. — ...do Sul... um primo do Sul.

— Primo? Não sabia que você...— Do papai — disse Will com a voz rouca.Ela olhou Cal e Bartleby com suspeita e evidente desprazer.— A desgraçada da sua irmã esteve aqui, sabia? — Ela olhou para Will. — Ela está com

você?— Ela... — Will começou a dizer numa voz trêmula.— Porque a cretininha me deve dinheiro. Devia ter visto o que ela fez com meu...— Ela não é minha irmã, é uma... traidora... cruel... ela é uma... — Depois disso Will tombou

num desmaio de morto diante de uma tia Jean muito surpresa.

Cal estava à janela do quarto escurecido. Olhou as ruas abaixo, com as linhas pontilhadas deluzes âmbar e os cones majestosos dos faróis dos carros. Depois, com um pressentimento, ergueulentamente a cabeça e olhou a lua, seu brilho prateado se espalhando pelo céu gelado. Não era aprimeira vez que lutava para aprender, para entender o vasto espaço que se estendia diante dele,cujo aspecto ele nunca vira na vida. Agarrou-se ao peitoril, mal sendo capaz de controlar o pavorcrescente. As solas dos pés se encolheram involuntariamente e a vertigem foi quase dolorosa.

Ao ouvir o irmão gemer, ele tirou os olhos da janela e foi se sentar ao lado da formatrêmula que se estendia na cama, coberta por apenas um lençol.

— Como é que ele está? — Cal ouviu a voz ansiosa da tia Jean, que surgia na soleira daporta.

— Está um pouco melhor hoje. Acho que ele esfriou mais — disse ele ao mergulhar umaflanela numa tigela de água, que chocalhava de cubos de gelo, e passar na testa de Will.

— Quer que chame alguém pra ver o garoto? — perguntou tia Jean. — Ele tá assim hámuito tempo.

— Não — disse Cal com firmeza. — Ele disse que não quer.— Não culpo o moleque, não culpo mesmo. Nunca tive tempo para charlatães... ou

psicanalistas, nem te conto o que... — ela parou de repente quando Bartleby, que estiveraenrascado e dormindo no canto, acordou com um pequeno espirro, depois andou e começou alamber a água da tigela.

— Saia, seu gato idiota! — disse Cal, afastando-o.— Ele só tá com sede — disse tia Jean, depois assumiu a mais ridícula voz de bebê. —

Tadinho do bichinho, tá com sedinha? — Ela pegou o animal atordoado pela nuca e começou alevá-lo para a porta. — Vem com a mamãe, vou te dar um presente.

Um fluxo de lava se move portentoso ao longe, seu calor tão feroz na pele exposta de Will que ele mal conseguesuportar. Em uma silhueta na parede vertical de correnteza vermelha, dr. Burrows indica freneticamente algo quebrota de uma laje enorme de granito. Ele grita empolgado, como sempre acontece quando faz uma descoberta, masWill não consegue entender as palavras devido ao ruído ensurdecedor entrecortado pelo tagarelar cacofônico demuitas vozes, como se alguém estivesse percorrendo ao acaso as ondas sonoras de um rádio com defeito.

A cena muda para um close-up. Dr. Burrows está usando uma lente de aumento e examina um caule finode ponta bulbosa, que se ergue mais ou menos a meio metro da rocha sólida. Will vê os lábios do pai se mexendo,mas só consegue entender trechos curtos do que ele diz.

“...uma planta... literalmente rocha digerida... com base em silício... reage a estím... observe...”A imagem corta a um close extremo. Entre dois dedos, o dr. Burrows arranca o caule cinza da pedra. Will

se sente inquieto ao ver o caule se contorcer na mão do pai e lançar duas folhas feito agulhas que se entrelaçam emseus dedos.

“...prende-se a mim como ferro... meio obstinadas...”, diz o dr. Burrows, franzindo a testa.Não há mais palavras, elas são substituídas por risos, mas seu pai parece estar gritando ao tentar se livrar

da coisa, as folhas penetrando em sua mão e se enfiando pela carne da palma e do punho, subindo para o braço, apele se ferindo, ferindo-se, abrindo numa ferida e ficando manchada de sangue enquanto as folhas se retorcem,entrelaçam-se numa valsa de serpente. Elas cortam com mais força seu braço, como um cortador de queijopossuído. Will tenta chegar ao pai para ajudá-lo enquanto ele luta em vão contra o ataque terrível, enquanto lutacom o próprio braço.

— Não, não... pai... pai!— Está tudo bem, Will, está tudo bem — veio a voz do irmão de uma longa distância.O brilho de lava se fora. Em seu lugar, havia uma luz fraca e ele podia sentir a frieza

tranqüilizadora da flanela que Cal pressionava em sua testa. Will se sentou com um sobressalto.— É papai! O que há com meu pai? — gritou ele e olhou em volta desvairado, sem saber

onde estava.— Você está bem — disse Cal. — Estava sonhando.Will se deixou cair nos travesseiros, percebendo que estava deitado na cama de um quarto

estreito.— Eu o vi. Foi tudo tão claro, tão real — disse Will, a voz falhando. Ele não conseguiu

reprimir o jorro de lágrimas que subitamente encheram seus olhos. — Era papai. Ele estava comproblemas.

— Foi só um pesadelo — Cal falou delicadamente, evitando os olhos do irmão, que agorachorava em silêncio.

— Estamos na casa da tia Jean, não é? — disse Will, recompondo-se ao ver o papel deparede floral.

— Sim, já estamos aqui há quase três dias.— Hein? — Will tentou se sentar, mas foi demais e ele pousou a cabeça no travesseiro de

novo. — Me sinto tão fraco.— Não se preocupe, está tudo bem. Sua tia tem sido ótima. Na verdade tem uma queda

pelo Bart também.

Nos dias que se seguiram, Cal cuidou de Will, recuperando sua saúde com tigelas de sopa oufeijões cozidos com torrada, e xícaras aparentemente intermináveis de chá com muito açúcar. Aúnica contribuição de tia Jean a sua convalescença foi se empoleirar ao pé da cama e tagarelarincessantemente sobre os “velhos tempos”, embora Will estivesse tão exausto que caía no sonoantes de ela poder entediá-lo.

Quando finalmente se sentiu forte o bastante para ficar de pé, Will testou as pernas,tentando andar de um lado a outro do quarto pequeno.

Ao mancar com alguma dificuldade, ele percebeu uma coisa atrás de uma caixa de revistasvelhas.

Ele se abaixou e pegou os dois objetos. Cacos de vidro caíram no chão. Will logoreconheceu os dois porta-retratos de prata. Eram os que Rebecca mantinha na mesa-de-cabeceira.Olhando a foto de seus pais, e depois uma dele mesmo, jogou-se na cama, respirando mal. Estavaatormentado. Parecia que alguém enfiara uma faca nele e a torcia muito lentamente. Mas o que eleesperava dela? Rebecca não era sua irmã e nunca foi. Ele continuou na cama por algum tempo,fitando, confuso, a parede.

Pouco depois, ele se levantou de novo e tropeçou para o corredor, entrando na cozinha.Pratos sujos estavam na pia e a lixeira transbordava de latas vazias e embalagens rasgadas decomida de microondas. Era uma cena de tal massacre que ele mal deu pelas torneiras de plástico,derretidas e marrons, e os ladrilhos escurecidos pelo fogo atrás delas. Fez uma careta e voltoupara o corredor, onde ouviu a voz áspera da tia Jean. O tom era vagamente reconfortante,lembrando-o dos Natais em que ela aparecia na casa dele, conversando com sua mãe por horas afio. Ele parou do lado de fora da porta e ouviu as agulhas de tricô da tia Jean batendofuriosamente enquanto ela falava.

— O desgraçado do dr. Burrows... Assim que pus os olhos nele, avisei a minha irmã... Euavisei, sabia?... Não vai querer fica’marrada com um malandro todo cheio de instrução... Querdizer, eu te pergunto, que bem um homem que vive cavando buracos pode fazer quando se temcontas pra pagar?

Will olhou pelo canto enquanto as agulhas pararam seus estalos de metrônomo e tia Jean

tomou um gole de um copo. O gato olhava com adoração para ela, que retribuía seu olhar comum sorriso afetuoso e quase amoroso. Will nunca vira esse lado da tia. Ele sabia que devia dizeralguma coisa para anunciar sua presença, mas não conseguia se decidir a interromper o momento.

— Vou te contar, é bom ter vocês aqui. Quer dizer, depois que minha pequena Sophiemorreu... Ela era uma cadela e eu sei que você não gosta muito de cachorro... Mas pelo menos elaficou comigo... É mais do que posso dizer de qualquer homem que conheci.

Ela ergueu o tricô diante de si, um par de calças de cor espalhafatosa, que Bartleby farejoucom curiosidade.

— Tá quase pronta. Mais um pouco e vai poder experimentar para ver se cabe, meuqueridinho. — Ela se curvou e afagou Bartleby sob o queixo. Ele ergueu a cabeça e, fechando osolhos, começou a ronronar com a amplitude de um pequeno motor.

Will se virou para voltar ao quarto, estava encostado na parede do corredor, quando ouviuum estrondo atrás dele. Cal estava parado ao lado da porta da frente, duas sacolas de comprascaídas e cuspindo seu conteúdo diante dele. Tinha um cachecol enrolado na boca e usava osóculos de sol da sra. Burrows. Parecia o Homem Invisível.

— Não vou suportar muito mais disso — disse ele, agachando-se para pegar as compras.Bartleby saiu da sala de estar, seguido por tia Jean, um cigarro empoleirado na boca. O gatovestia as calças recém-tricotadas e um cardigã de pêlo de cabra, os dois uma mistura estridente deazuis e vermelhos, encimados por um gorro multicor do qual as orelhas sarnentas se projetavamcomicamente. Bartleby parecia o sobrevivente de uma explosão num bazar de caridade.

Cal olhou a figura estranha diante dele, apreendendo a exibição chocante de cores, mas nãofez comentário algum. Parecia estar nas profundezas do desespero.

— Este lugar está cheio de ódio... posso sentir o cheiro em toda parte. — Ele sacudiu acabeça devagar.

— Ah, deixe isso, meu amor — disse tia Jean baixinho. — Sempre foi assim.— A Crosta não é o que eu esperava — disse Cal. Ele pensou por um momento. — E não

posso ir para casa... posso?Will voltou-se para trás enquanto procurava por alguma coisa para dizer que consolasse o

irmão, algumas frases para amenizar a angústia do menino, mas foi incapaz de pronunciar umapalavra sequer.

A tia Jean deu um pigarro, dando um fim àquele momento.— Imagino que isso significa que vocês vão embora?Enquanto estava parada ali com o casaco velho e desmazelado, Will viu pela primeira vez

que ela era vulnerável e frágil.— Acho que vamos — admitiu ele.— Tá bom — concordou ela num tom falso. Pôs a mão no pescoço de Bartleby, acariciando

ternamente com o polegar as dobras frouxas de sua pele. — Sabe que são bem-vindos aqui... ahora que quiserem. — Sua voz ficou sufocada e ela se virou rapidamente para se afastar deles. —E tragam o gatinho com vocês. — Ela foi para a cozinha, onde eles podiam ouvir que ela tentavareprimir o choro ao bater uma garrafa num copo.

Nos dias que se seguiram, eles planejaram sem parar. Will sentia-se cada vez mais forte à medidaque se recuperava da doença, os pulmões se limpando e a respiração voltando ao normal. Elesforam a expedições de compras: uma loja de excedentes do exército lhes rendeu máscaras de gás,corda de alpinismo e um cantil para cada um deles; compraram unidades novas de flash para acâmera numa loja de penhores e, como era a semana depois da noite de Guy Fawkes, compraramvárias caixas grandes de fogos de artifício em uma banca de jornal. Will queria se certificar de queeles estivessem prontos para qualquer eventualidade e qualquer coisa que produzisse uma luzforte podia ser útil. Eles estocaram comida, preferindo provisões leves, mas energéticas de modoa não ter que carregar peso. Depois da gentileza que lhes demonstrara, Will se sentia mal pordispor do dinheiro da tia para pagar por tudo isso, mas não tinha alternativa.

Eles esperaram até a hora do almoço para sair de Highfield. Vestiram as roupas de colono,agora limpas, e se despediram da tia Jean, que deu um abraço lacrimoso em Bartleby. Depois, elespegaram o ônibus para o centro de Londres e andaram o resto do caminho até a entrada do rio.

Capítulo Trinta e Cinco

Cal ainda apertava um lenço na cara e murmurava sobre os ‘gases abomináveis” quando elessaíram da ponte Blackfriars e desceram a escada para o aterro. Tudo parecia tão diferente à luz dodia que por um momento Will teve dúvidas de que estavam no lugar certo. Com gente apressadaem volta deles na calçada, parecia demasiado fantasioso supor que em algum lugar ali embaixohavia uma Londres primitiva e abandonada, e que os três iam voltar lá para baixo.

Mas estavam no lugar certo e bastava uma curta caminhada para chegar à entrada daqueleoutro mundo estranho. Pararam junto ao portão e olharam para baixo, vendo a água amarronzadabater preguiçosamente.

— Parece fundo — observou Cal. — Por que está assim?— Dãããã! — gemeu Will, batendo com a palma na testa. — A maré! Eu não tinha pensado

na maré. Vamos ter que esperar que baixe.— Em quanto tempo vai baixar?Will deu de ombros, olhando o relógio.— Não sei. Pode levar horas.A única alternativa era matar o tempo andando pelas ruas em volta do museu Tate Modern

e voltar à margem de vez em quando para ver a água, tentando não atrair muita atenção. Lá pelahora do almoço, eles puderam ver o cascalho aparecendo.

Will concluiu que não podiam esperar mais tempo.— Tudo bem, força total! — anunciou ele.Estavam à plena vista de muitos transeuntes no intervalo do almoço, mas ninguém percebeu

o trio de bufões, vestidos de forma excêntrica e carregados de mochilas, que escalavam o muro eiam para a escada de pedra. Então, um velho de gorro e cachecol de lã os viu e começou a gritar“Seus moleques safados!”, agitando o punho furiosamente para eles. Uma ou duas pessoas sereuniram em volta para ver que balbúrdia era aquela, mas rapidamente perderam o interesse eforam embora. Isto pareceu aprofundar o ultraje do velho e ele também arrastou os pés dali,murmurando consigo mesmo.

No pé da escada, a água batia nas pernas dos meninos enquanto eles galopavam com todo

vigor pela margem parcialmente submersa, só relaxando quando estavam fora de vista, sob o píer.Sem nenhuma hesitação, Cal e Bartleby entraram na boca do túnel de drenagem.

Will parou por um instante antes de prosseguir. Deu uma demorada última olhada no céucinza-claro através das frestas das tábuas e respirou fundo, saboreando os últimos sopros de arfresco.

Agora que tinha recuperado as forças, ele se sentia uma pessoa total-mente diferente: estavapreparado para o que viesse. Como se a febre houvesse purgado dele todas as dúvidas oufraquezas, sentia a segurança resignada do aventureiro experiente. Mas ao baixar os olhos para orio lento, ele viveu a mais funda pontada de perda e melancolia, ciente de que talvez nunca maisvoltasse a ver este lugar. É claro que não precisava passar por isso, podia ficar aqui, se quisesse,mas ele sabia que a vida jamais seria a mesma. Houve muitas mudanças, coisas que não podiamser desfeitas.

— Vamos — disse, sacudindo-se de seus devaneios e entrando no túnel, onde Cal esperavapor ele, impaciente para continuar. Com um olhada rápida, Will pôde ver as emoções conflitantesno rosto do irmão: embora a ansiedade fosse evidente, também havia uma sugestão de algo mais,um alívio profundo criado pela promessa de um retorno iminente aos subterrâneos. Afinal, era olar dele.

Embora as circunstâncias o tivessem obrigado a isso, Will refletiu sobre o erro terrível quefora trazer Cal à superfície. Cal precisaria de tempo para se adaptar à vida da Crosta, e este eraum luxo que eles não tinham. Gostando ou não, o destino de Will estava no resgate de Chester eem encontrar o pai. E o destino de Cal ligava-se inextrincavelmente ao dele.

Incomodava-o ter perdido tantos dias com febre. Não fazia idéia se era tarde demais parasalvar Chester. Será que ele já foi exilado para as Profundezas, ou chegou a um fim inimaginávelnas mãos dos Styx? Qualquer que fosse a verdade, Will descobriria. Tinha que continuaracreditando que Chester ainda estava vivo; ele precisava voltar. Nunca viveria com essa questãopendente.

Eles encontraram a abertura vertical e Will desceu relutante para a água gelada. Cal subiunos ombros de Will para poder chegar à abertura, depois deu impulso para cima, arrastando umacorda com ele. Quando o irmão estava em segurança no alto, Will amarrou a outra ponta dacorda em volta do peito de Bartleby para içá-lo. Isto se mostrou totalmente desnecessário já que,ao chegar à abertura, o animal usou as pernas vigorosas para subir com uma agilidadeassustadora. Então, a corda foi jogada para Will, que se guindou para as sombras no alto. Aochegar lá, ele pulou várias vezes para se livrar da água e se aquecer.

Depois eles escorregaram pela rampa convexa sobre os fundilhos das calças, caindo com umbaque na saliência que marcava o começo da escada íngreme. Antes de continuar, retiraramcuidadosamente as roupas tricotadas de Bartleby e a deixaram na saliência alta; agora não podiamse dar ao trabalho de carregar nenhum peso morto. Will não tinha idéia alguma do que fazerdepois que voltassem à Colônia, mas sabia que tinha que ser completamente prático... eleprecisava ser como Tam.

Os meninos colocaram as máscaras de gás dos excedentes do exército, olharam-se por ummomento, assentiram numa aquiescência e, com Cal na frente, começaram a longa descida.

O início da jornada foi árduo, a escada perigosa pela água que vazava constantemente e, mais

abaixo, o tapete de algas pretas. Will descobriu que tinha poucas lembranças de sua passagem porali, percebendo que isto provavelmente se devia à doença misteriosa que já o havia afetado naépoca.

Num piscar de olhos eles chegaram à abertura na parede da caverna da Cidade Eterna.— Mas que diabos é isso?! — exclamou Cal no momento em que saíram no alto do enorme

lance de escada, os olhos rapidamente varrendo a escuridão. Algo estava muito errado.Aproximadamente trinta metros abaixo, a escada desaparecia de vista

— Mas é isso que se pode chamar de uma baita sopa de ervilha — disse Will em voz baixa,os óculos de vidro cintilando com o brilho verde-claro.

De seu ponto de observação, no alto da cidade, eles olharam o que parecia ser a superfícieondulante de um imenso lago opalino. A mais densa das neblinas cobria todo o cenário, inundadapor uma luz sinistra, como se fosse uma imensa nuvem radioativa. Era muito desanimador pensarque a ampla extensão da enorme cidade estava obscurecida por este manto opaco. Willautomaticamente procurou a bússola no bolso.

— Isso vai dificultar um pouco a vida — observou ele, franzindo o cenho por trás damáscara.

— Por quê? — retorquiu Cal. Seus olhos oscilavam atrás dos óculos enquanto um amplosorriso se espalhava pelo rosto. — Eles não vão conseguir nos ver com tudo isso, não é?

Mas Will continuava sombrio.— É verdade, mas nós também não podemos vê-los.Cal manteve Bartleby imóvel enquanto Will prendia uma corda em seu pescoço. Eles não

podiam se arriscar a que ele vagasse por ali nestas condições.— É melhor ficar segurando minha mochila, para não se perder. E seja lá por que motivo

for, não solte o gato — instou Will ao irmão enquanto eles davam os primeiros passos naneblina, descendo lentamente para ela, como mergulhadores afundando sob as ondas. Suavisibilidade imediatamente foi reduzida a não mais de meio metro. Eles sequer conseguiam ver asbotas, o que tornava necessário sentir a beira de cada degrau antes de se aventurar no seguinte.

Felizmente, chegaram ao pé da escada sem nenhum incidente e no início da planície de lodoeles repetiram o ritual das algas negras, esfregando a gosma fedorenta em todo o corpo, desta vezpara mascarar os cheiros de Crosta de Londres.

Passando pela beira do lodaçal, eles por fim esbarraram no muro da cidade e o contornaram.A visibilidade ficava cada vez pior e eles levaram um século para encontrar a entrada.

— Um arco — sussurrou Will, parando tão de repente que o irmão quase caiu sobre ele. Aestrutura antiga se solidificou brevemente diante dos dois e então a neblina se fechou,obscurecendo-a novamente.

— Ah, que ótimo — respondeu Cal, sem nem um pingo de entusiasmo.Do lado de dentro da muralha da cidade, eles tiveram que tatear o caminho pelas ruas,

bastante próximos um do outro para que não se separassem sob estas condições impossíveis. Anévoa era quase tangível, tragando e rolando como lençóis ao vento, às vezes separando-se epermitindo que eles tivessem o breve vislumbre de uma parte da muralha, um trecho de chão

alagado ou as pedras cintilantes sob os pés. O chapinhar das botas nas algas negras e suarespiração laboriosa pelas máscaras pareciam enervantemente altos para eles. Pelo jeito como aneblina se retorcia e brincava com seus sentidos, tudo parecia muito íntimo e, ao mesmo tempo,demasiado remoto.

Cal pegou o braço de Will e eles pararam, imóveis. Estavam começando a perceber outrosbarulhos em volta que não eram produzidos por eles. De início vagos e indistintos, estes sonsficavam mais altos. Enquanto eles escutavam, Will podia jurar que pegou um sussurro áspero, tãoperto que ele encolheu. Ele puxou Cal de volta alguns passos, convencido de que já haviamchegado ao que ele temia, que tinham deparado precipitadamente com a Divisão Styx. Porém, Caljurou que não tinha ouvido absolutamente nada e depois de um tempo eles reassumiramnervosos a jornada.

E então, de longe, veio o ladrar horripilante de um cachorro — desta vez não houve dúvidanenhuma. Cal segurou a trela de Bartleby com mais firmeza enquanto o gato levantava a cabeça,as orelhas eriçadas. Embora nenhum dos dois dissesse nada, eles pensavam a mesma coisa: anecessidade de atravessarem a cidade o mais rápido possível se tornava muito mais premente.

Ao se arrastarem pelo caminho, o coração dos dois martelava e Will se voltava ao mapa deTam, verificando a bússola repetidas vezes com as mãos trêmulas numa tentativa de corrigir suaposição. Na realidade, a visibilidade era tão ruim que ele só fazia uma idéia muito aproximada deonde estavam. Até onde sabia, eles podiam estar vagando em círculos. Não pareciam fazernenhum progresso e Will estava totalmente desnorteado. Que grande líder estava se tornando!

Finalmente, ele os fez parar e o trio se amontoou ao abrigo de uma parede esfarelenta. Aossussurros baixos, discutiram o que fazer a seguir.

— Se começarmos a correr, não importa passarmos por uma patrulha. Podemos facilmentenos livrar deles — sugeriu Cal em voz baixa, os olhos disparando para os lados sob as lentesmanchadas de umidade da máscara de gás. — Só temos que continuar correndo.

— Ah, tá legal — respondeu Will. — Então acha realmente que podemos correr mais do queum desses cães? Essa eu queria ver.

Cal bufou de raiva.Will continuou.— Olha, não fazemos a menor idéia de onde estamos e, se fizermos isso, podemos chegar a

um beco sem saída ou coisa assim...— Mas depois que estivermos no Labirinto, eles não vão poder nos pegar — insistiu Cal.—Tá, mas temos que passar por ali primeiro, e pelo que sabemos ainda é um longo

caminho. — Will não acreditava na sugestão absurda do irmão. Ocorreu-lhe que meses atrás elepodia ter sido o defensor de uma disparada louca pelas ruas e avenidas da cidade. De algummodo, imperceptivelmente, ele mudou. Agora era o sóbrio e Cal era o impulsivo, o cabeçudomais novo, cheio de confiança e disposição de arriscar tudo.

A furiosa troca de sussurros continuou, tornando-se cada vez mais colérica até que Calfinalmente cedeu. Avançariam bem de mansinho; seguiriam lentamente até o outro extremo dacidade, reduzindo ao mínimo o som dos passos na neblina se alguém, ou alguma coisa, seaproximasse.

Ao passarem por montes de entulho, a cabeça de Bartleby disparou para todo lado,farejando o ar e o chão, quando de repente ele parou. Apesar de todos os esforços de Cal para

puxar a trela, o gato se recusava a se mexer — abaixara o corpo como se estivesse caçandoalguma coisa, a cabeça grande perto do chão e rabo esquelético apontado para o alto. Suasorelhas estavam eretas e giravam como discos de radar.

— Onde eles estão? — sussurrou Cal freneticamente. Will não respondeu, mas meteu a mãonos bolsos laterais da mochila de Cal e pegou dois fogos de artifício grandes. Também pegou oisqueiro de plástico descartável da tia Jean em um bolso interno do casaco e o estendeu na mão,preparado.

— Vamos, Bart — Cal sussurrava na orelha do gato ao se ajoelhar ao lado dele —, estátudo bem.

O pouco pelo de Bartleby agora estava eriçado. Cal conseguiu arrastar o gato um pouco eeles foram na ponta dos pés na direção contrária, como se pisassem em ovos, Will atrás com osfogos de artifício posicionados nas mãos.

Seguiam a curvatura suave de uma parede, Cal sentindo a alvenaria grossa com a mão livrecomo se fosse uma forma incompreensível de Braille. Will andava de costas, verificando aretaguarda. Sem ver nada a não ser as nuvens proibitivas e chegando à conclusão de que era inútiltentar depender da visão sob estas condições, ele girou e tropeçou em um pedestal de granito.Will recuou enquanto a face de uma enorme cabeça de mármore surgiu da névoa que se separava,olhando-o de esguelha. Rindo consigo mesmo, ele a contornou cuidadosamente e encontrou oirmão esperando a cerca de um metro.

Tinham dado uns vinte passos quando a neblina misteriosamente se curvou para trás erevelou um trecho de rua com calçamento de pedra diante deles. Will limpou apressadamente aumidade dos óculos e deixou que seu olhar passeasse pela margem da névoa que recuava. Pouco apouco, a beira da rua e as fachadas de alguns prédios mais próximos entraram no campo de visão.Os dois garotos sentiram uma onda enorme de alívio quando os arredores se revelavam de formatorturante pela primeira vez desde que tinham entrado na cidade.

E então seu sangue congelou. Ali, a menos de dez metros de distância, reais demais eterrivelmente nítidos, eles os viram. Uma patrulha de oito Styx se abria em leque na rua. Estavamimóveis como predadores, os óculos de proteção redondos observando os meninos, querecuavam emudecidos.

Eram como espectros de um pesadelo futuro, com seus casacos longos de listras verdes ecinza, barretes estranhos e máscaras respiratórias sinistras. Um deles segurava um farejador queparecia feroz em uma tira grossa de couro; estava esticada em sua coleira, a língua pendendoobscenamente do lado da boca monstruosa. Ele farejava intensamente e de imediato virou acabeça para os garotos. Os seixos pretos de seus olhos de conta os localizaram num instante.Com um rosnado fundo e trovejante, ele retraiu os lábios e revelou dentes amarelados e imensosgotejando saliva de excitação. A trela se afrouxou quando ele se agachou, preparando-se parasaltar.

Mas ninguém fez nenhum movimento. Como se o tempo tivesse parado, os dois gruposlimitaram-se a ficar parados e se encaravam numa expectativa muda e horrível.

Algo atingiu a cabeça de Will. Ele gritou e girou Cal, arrancando-o da inércia do choque.Depois eles correram, voando de volta à neblina, as pernas batendo freneticamente. Correramsem parar, incapazes de dizer o quanto tinham avançado pela mortalha de névoa. Atrás deles,

vinha o latido selvagem do farejador e os gritos ásperos dos Styx.Nenhum dos dois fazia a menor idéia de para onde ir, só sabiam que tinham que

desaparecer da área. Não tinham tempo para pensar, a mente congelada de pânico cego.E então Will recuperou o juízo. Gritou para Cal continuar enquanto reduzia o ritmo e

acendia o pavio azul de um pistolão enorme. Sem ter certeza se ia pegar ou não, ele rapidamenteo encostou em um naco de alvenaria, inclinando-o para seus perseguidores.

Will correu alguns metros e parou de novo. Acendeu o isqueiro, mas desta vez a chama serecusou a vir. Xingando, ele o riscava desesperadamente, sem parar. Nada, só faísca. Ele o sacudiucomo vira os Grey fazerem com tanta freqüência na escola quando acendiam seus cigarrosilícitos. Will respirou fundo e mais uma vez girou a roda do isqueiro. Isso! A chama era pequena,mas o suficiente para acender o pavio do fogo de artifício, uma bateria de bombas de ar. Masagora os rosnados, os latidos e as vozes estavam se aproximando dele. Ele perdeu a coragem esimplesmente jogou o fogo de artifício no chão.

— Will, Will! — ele ouviu mais à frente. Ao se voltar para os gritos, ficou furioso por Calfazer tanto barulho, embora soubesse que nunca o encontraria de outra forma. Will corria a todaquando alcançou o irmão e quase rolou sobre ele. Eles disparavam como loucos quando explodiuo primeiro fogo de artifício. Girou para todo lado, as cores primárias e vivas sangrando pelatextura da neblina, e terminou com dois trovões ensurdecedores.

— Continue — sibilou Will para Cal, que tinha batido a cabeça numa parede e agia como seestivesse meio tonto. — Vamos. Por aqui! — disse ele puxando o irmão pelo braço, sem permitirque ele tivesse tempo de se demorar em sua lesão.

Os fogos de artifício continuaram, explodindo bolas de fogo luminosas no alto da cavernaou em arcos baixos que terminavam na própria cidade, destacando por um momento a silhuetados prédios como o cenário de um jogo de sombras. Cada raio iridescente culminava em umlampejo estonteante e uma explosão de canhão, ecoando e trovejando pela cidade como umatempestade feroz.

De vez em quando Will parava para acender outro fogo de artifício, escolhendo pistolões,bombas de ar ou foguetes que posicionava em partes da alvenaria ou os atirava no chão naesperança de que a posição dos dois fosse indistinta para a patrulha. Os Styx, se ainda osestivessem seguindo, teriam de suportar a maior parte deste ataque violento e Will esperava que opróprio cheiro da fumaça confundisse o olfato do farejador.

Enquanto o último dos fogos explodia numa cavalgada de luz e som, Will rezava para queeles tivessem tempo suficiente para chegar ao Labirinto. Reduziram o passo a uma corrida lentapara recuperar o fôlego, depois pararam completamente para escutar algum sinal de seusperseguidores, mas agora não havia nada. Ao que parecia, eles afugentaram todos. Will se sentouem uma escada larga de um prédio que parecia ter sido um templo e pegou o mapa e a bússolaenquanto Cal ficou de vigia.

— Eu não faço idéia de onde estamos — admitiu ele, dobrando o mapa. — É inútil!— Podemos estar em qualquer lugar — concordou Cal.Will se levantou, olhando para os lados.— Acho que devemos seguir na mesma direção.Cal assentiu.— Mas e se acabarmos de volta ao começo?

— Não importa. Precisamos continuar em movimento — disse Will ao partir.Mais uma vez o silêncio os comprimiu, e as formas e sombras misteriosas apareciam e se

atenuavam, como se os prédios estivessem entrando e saindo de foco na cidade invisível. Elesfizeram um progresso torturante de tão lento, passando por uma sucessão de ruas, quando Cal osfez parar.

— Acho que está clareando um pouco — sussurrou ele.— Bom, já é alguma coisa — respondeu Will.Novamente Bartleby farejou e se agachou, sibilando enquanto as margens da névoa

recuavam diante deles. Os meninos ficaram paralisados, os olhos vasculhando febrilmente o arleitoso.

Como véus sendo erguidos para revelar o mundo, ali, a menos de seis metros, uma formaescura e vaga estava agachada numa pose ameaçadora. Os dois ouviram um rosnado gutural egrave.

— Ah, meu Deus, um farejador! — Cal engoliu em seco.O coração dos dois parou com uma percepção medonha. Só o que conseguiram fazer foi

ver o animal se levantar, as pernas traseiras musculosas tensionando-se ao entrar em movimentoenquanto batia as patas na terra, depois começou a se mexer, acelerando para frente numavelocidade desconcertante. Não havia absolutamente nada que eles pudessem fazer. Não tinhasentido correr; estava perto demais. Como um motor a vapor do inferno, o sabujo preto se atiroupara eles, a condensação vomitando de suas narinas infladas.

Will não teve tempo para pensar. Ao ver o animal, largou a mochila e tirou Cal do caminho.O farejador subiu no ar e caiu pesadamente no peito de Will. Suas patas como clavas o

achataram de costas, a cabeça espancando o chão coberto de algas com um baque duro. Meiotonto, Will estendeu os braços e agarrou o pescoço do monstro com as duas mãos. Seus dedosencontraram a coleira grossa e se seguraram nela, enquanto ele tentava afastar o brutamontes deseu rosto.

Mas o animal era poderoso demais. As mandíbulas se fechavam na máscara, depois apegaram e morderam. Will ouviu o guinchar de suas presas apertando a borracha enquanto amáscara era esmagada em seu rosto, em seguida um estalo quando um dos óculos se espatifou.Ele sentiu o cheiro do hálito pútrido do farejador, como carne azeda aquecida, enquanto oanimal continuava a torcer e girar a máscara, as tiras atrás da cabeça se esticando quase ao pontode ruptura.

Rezando para que a máscara ficasse no lugar, ele tentou com todas as forças afastar a cabeça.As mandíbulas do farejador escorregaram na borracha molhada, porém o sucesso de Will tevevida curta. O cão recuou um pouco, mas de imediato atacou de novo. Gritando, e aindasegurando a coleira grossa com toda a força, Will só conseguia mantê-lo afastado da cara, osbraços no limite de sua potência. A coleira cortava seus dedos; ele não conseguia acreditar nopeso da besta. Repetidas vezes Will afastava a cabeça, só para escapar de uma mordida rápida,como as mandíbulas de uma poderosa armadilha de mola se fechando.

E então o animal se contorceu e virou o corpo.Uma das mãos de Will se soltou e, sem nada que o estorvasse, o animal rapidamente

procurou um alvo recompensador. Atingiu o braço de Will e o mordeu com força. O garoto

gritou de dor, a outra mão involuntariamente abrindo-se e soltando a coleira.Agora nada poderia detê-lo.O bicho de imediato o arranhou e afundou os incisivos em seu ombro. Em meio aos

rosnados e mordidas, ele ouviu o tecido de seu casaco se rasgar quando os dentes enormes, comofilas idênticas de adagas, penetraram e dilaceraram sua carne. Will gemeu outra vez quando oanimal sacudiu a cabeça, rosnando alto. Ele estava impotente, uma boneca de trapos sacudidapara todo lado. Com o braço livre, ele esmurrou sem força o flanco e a cabeça do animal, mas foiem vão.

E então, de repente, o cachorro desgrudou de seu ombro e subiu nele, o peso enormeprendendo-o ainda ao chão, com os olhos frenéticos fixos nos de Will. O garoto pôde ver asmandíbulas imensas a centímetros de seu rosto, os fiapos de baba caindo nos óculos. Will sabiaque Cal fazia o possível para ajudar; lançava-se rapidamente aos socos e chutava a fera, depoisrecuava com a mesma rapidez. A cada vez que fazia isso, o cachorro somente se virava um poucopara rosnar para ele, como se soubesse que não representava ameaça alguma. Seu pequenocérebro selvagem estava fixo em apenas uma coisa, a presa que estava completa e definitivamentea sua mercê.

Will tentou desesperadamente rolar, mas a criatura o mantinha preso ao chão. Ele sabia quenão era páreo para esta fera diabólica e irreprimível que parecia ser feita de placas enormes demúsculos, duros e inflexíveis feito uma rocha.

— Vai! — gritou ele para Cal. — Sai daqui!E depois, de lugar nenhum, um raio de carne cinza foi catapultado na cabeça do farejador.Por um instante, foi como se Bartleby estivesse suspenso no ar, o dorso arqueado e as garras

estendidas como navalhas cortantes pouco acima da cabeça do cão. Em seguida, ele caiu e houveuma comoção frenética de movimento. Eles ouviram os cortes molhados na carne quando osdentes de Bartleby encontraram sua primeira meta. Uma fonte escura de sangue jorrava sobreWill, de um corte lívido onde antes estivera a orelha do cão. A fera soltou um ganido grave e deimediato deu pinotes e pulou de cima de Will, com Bartleby ainda grudado em sua cabeça e nopescoço, atacando com mordidas e golpes dilacerantes das patas dianteiras.

— Levante! Levante! — gritava Cal, ajudando Will a se colocar de pé com uma das mãos epegando a mochila dele com a outra.

Os meninos se retiraram para uma distância segura, depois pararam, compelidos a ficar eesperar. Permaneceram paralisados no chão, petrificados por esta batalha mortal entre gato ecachorro, que se contorciam num combate letal, as formas dos corpos se fundindo até que setornaram um redemoinho indistinguível de cinza e vermelho, pontuado por dentes e garrasfaiscantes.

— Não podemos ficar aqui — gritou Will. Ele podia ouvir os gritos da patrulha que seaproximava, que rapidamente partiu na direção da briga.

— Bart, larga! Vem!— Os Styx. — Will sacudiu o irmão. — Temos que ir!Cal se afastou com relutância, olhando para trás para ver se o gato os seguia pela neblina.

Mas não havia sinal de Bartleby, só os silvos, ganidos e guinchos distantes.Agora ecoavam gritos e passos em toda parte. Os meninos correram às cegas, Cal grunhindo

do esforço de carregar duas mochilas e Will tremendo de choque, todo o braço latejando de dor.

Podia sentir o sangue escorrendo pelo lado do corpo e ficou alarmado ao descobrir que jorravapelas costas de sua mão como um córrego e pingava da ponta dos dedos.

Sem fôlego, eles concordaram apressadamente com um rumo, esperando, no desespero, queeste os tirasse daquele lugar e não os levasse direto de volta aos braços dos Styx. Quandochegaram ao perímetro de lodo, eles contornariam os limites da Cidade até acharem a boca doLabirinto. E se o pior acontecesse e eles se perdessem totalmente, Will sabia que poderiam vir aesta escada de pedra de novo e voltar rapidamente à Crosta.

Pelos sons que ouviam, a patrulha parecia se dirigir a eles. Os meninos corriam a todavelocidade, mas depois deram com a cabeça numa parede. Será que inadvertidamente acabaramnum beco sem saída? A idéia terrível tomou os dois ao mesmo tempo. Eles a tatearamfreneticamente até que encontraram um arco, as laterais esfareladas e o marco ausente de seuápice.

— Graças a Deus — sussurrou Will, olhando com alívio para Cal. — Essa foi por pouco.Cal limitou-se a assentir, arfando fortemente. Eles deram um curto olhar para trás, depois

seguiram pelo arco em ruínas.E com a velocidade de um raio, mãos fortes os agarraram rudemente dos dois lados da

abertura, arrancando-os do chão.

Capítulo Trinta e Seis

Usando o braço bom, Will bateu com toda força que conseguiu reunir, mas as juntas da mãoapenas roçaram num capuz de lona sem nenhuma eficiência. O homem praguejou asperamenteenquanto Will dava outro golpe, mas desta vez seu punho foi apanhado e preso no aperto deferro de uma mão enorme, que o fez recuar sem nenhum esforço e o prendeu à parede.

— Já basta! — sibilou o homem. — Shhhh!De repente, Cal reconheceu a voz e começou a se interpor entre Will e o atacante

encapuzado. O garoto ficou completamente confuso. O que o irmão estava fazendo?Febrilmente, ele tentou bater de novo, mas o homem o segurou com rapidez.

— Tio Tam! — gritou Cal com alegria.— Fale baixo — repreendeu Tam.— Tam? — repetiu Will, sentindo-se ao mesmo tempo idiota e muito aliviado.— Mas... como... como você sabia que a gente...? — gaguejou Cal.— Ficamos de olho em vocês desde que a fuga saiu dos trilhos — interrompeu o tio.— Sim, mas como sabia que era a gente? — perguntou Cal de novo.— Só seguimos a luz e o barulho. Quem mais, além de vocês, usaria essa pirotecnia idiota?

Devem ter ouvido na Crosta, que dirá na Colônia.— Foi idéia de Will — respondeu Cal. — Funcionou mais ou menos.— Mais ou menos — disse Tam, olhando com preocupação para Will, que se apoiava na

parede, a borracha da máscara marcada por cortes profundos e um dos óculos espatifado e inútil.— Você está bem, Will?

— Acho que sim — murmurou ele, segurando o ombro ensopado de sangue. Sentia-semeio tonto e distante, mas não sabia se isto se devia aos ferimentos ou ao alívio dominador porTam tê-los encontrado.

— Eu sabia que você não teria sossego com Chester aqui.— O que aconteceu com ele? Ele está bem? — perguntou Will, eriçando-se à menção do

nome do amigo.— Está vivo, pelo menos por enquanto... Vou contar tudo a vocês depois. Agora, Imago, é

melhor darmos o fora daqui.A forma imensa de Imago entrou no campo de visão com uma ligeireza inesperada, a

máscara bojuda torcendo-se furtivamente para os lados, como um balão meio vazio pego pelovento enquanto ele examinava as sombras escuras. Ele colocou a mochila de Will no ombrocomo se não pesasse nada, depois partiu. Só o que os meninos puderam fazer foi acompanhá-lo.Sua fuga agora se transformara num jogo enervante de Siga o Líder, com a sombra de Imagoguiando-os pelo miasma e os obstáculos invisíveis, enquanto Tam protegia a retaguarda. Mas osmeninos estavam tão gratos por estar novamente sob a asa de Tam que quase se esqueceram deseus apuros. Sentiam-se seguros de novo.

Imago levava um globo luminoso na mão em concha, permitindo que dela saísse luzsuficiente para que conseguissem andar pelo terreno difícil. Eles correram por uma série depátios alagados, depois deixaram a neblina para trás ao entrarem em um prédio circular,disparando a um ritmo alucinante pelos corredores revestidos de esculturas e murais escamosos.Eles escorregaram na lama, no piso de mármore rachado de cômodos abandonados e corredoresrepletos de alvenaria quebrada, até que se viram subindo uma escada de granito preto.Ascendendo cada vez mais, de repente estavam outra vez em espaço aberto. Ao atravessarpassadiços de pedra fraturada em que faltavam longos trechos da balaustrada, Will conseguiuolhar para baixo, daquela altura vertiginosa, e ver a cidade em meio à malha de nuvens. Parte dopassadiço era tão estreita que Will temia que, se hesitasse por um segundo que fosse, pudessemergulhar para a morte na sopa nevoenta que mascarava a queda dos dois lados. Ele prosseguiu,confiando em Imago, que não vacilou nem por um instante, sua forma pesada avançandoimplacavelmente à frente, deixando pequenos redemoinhos de névoa em sua esteira.

Por fim, depois de descer várias escadas, eles entraram numa sala grande que ecoava o somde água gorgolejante. Imago parou. Parecia estar ouvindo alguma coisa.

— Onde está o Bartleby? — sussurrou Tam para Cal quando eles para-ram.— Ele nos salvou de um farejador — disse Cal num tom infeliz e tombou a cabeça. — Não

veio atrás de nós. Acho que pode estar morto.Tam pôs o braço no ombro de Cal e o abraçou.— Ele era um príncipe entre os animais — disse Tam. Ele afagou Cal nas costas para

consolá-lo antes de avançar para consultar Imago aos sussurros.— Acha que devemos nos esconder por um tempo?— Não, é melhor tentar escapar. — A voz de Imago era calma e sem pressa. — A Divisão

sabe que os meninos ainda estão em algum lugar por aqui e em breve isto ficará infestado depatrulheiros.

— Então vamos continuar — concordou Tam.Os quatro andaram em fila pela sala e passaram por uma colunata até que Imago saltou um

muro baixo e deslizou por um barranco viscoso, entrando em uma vala funda. Os meninos oseguiram na água estagnada que vinha até as coxas, e uma folhagem espessa de algas negras eviscosas estorvavam seus movimentos. Eles andaram laboriosamente por ali, as bolhas letárgicassubindo e estourando na superfície. Embora estivessem de máscara, chegava a sua garganta ofedor pútrido da vegetação há muito morta. A vala transformou-se num canal subterrâneo e elessubmergiram na escuridão, o espadanar dos corpos ecoando ao redor até que, depois do quepareceu uma eternidade, eles saíram em espaço aberto de novo. Imago sinalizou para que

parassem, depois se apressou à lateral do canal, espadanando na névoa.— Aqui é um pouco arriscado — alertou Tam a eles aos sussurros. — É terreno aberto.

Fiquem atentos e mantenham-se juntos.Logo Imago voltou e acenou. Eles saíram da água e, com as botas e as calças ensopadas,

atravessaram o terreno pantanoso, a cidade finalmente atrás do grupo. Subiram uma escarpa epareceram chegar a uma espécie de platô. O estado de espírito de Will se animou quando ele viuas aberturas na parede da caverna à frente e entendeu que tinham chegado à parte de trás doLabirinto. Eles conseguiram.

— Macaulay! — gritou uma voz aguda e ríspida.Todos pararam de imediato e giraram o corpo. A neblina estava mais esgarçada ali, no

terreno mais elevado, e através dos fiapos que afinavam eles viram uma única figura. Era um Styx,sozinho. Estava parado, altaneiro e arrogante, com os braços cruzados no peito estreito.

— Ora, ora, ora. É engraçado como os ratos sempre usam os mesmos percursos... — gritouele.

— Mosca — respondeu Tam friamente ao empurrar Cal e Will para I-mago.— ...deixando sua gordura e seu rastro fétido pelos lados. Eu sabia que um dia ia pegá-lo;

era só uma questão de tempo. — O Mosca descruzou os braços e os bateu como chicotes. Ocoração de Will parou uma batida ao ver duas lâminas brilhantes aparecerem nas mãos do Styx.Curvas e com uns quinze centímetros, elas pareciam pequenas foices.

— Você vem sendo uma pedra no meu sapato há muito tempo — gritou o Mosca.Will olhou para Tam e ficou surpreso ao ver que já estava armado, com um facão brutal que

ele parecia ter conjurado do nada.— Está na hora de eu corrigir alguns erros — disse Tam numa voz urgente e baixa para

Imago e os meninos. Eles viram a determinação feroz em seus olhos. Tam virou-se para o Mosca.— Vocês vão andando. Eu os alcanço depois — gritou Tam para eles ao começar a avançar.

Mas a figura sombria, com feixes de névoa enroscando-se em volta dele, não se moveu umcentímetro. Brandindo as foices com um floreio de especialista e agachando-se um pouco, o Styxtinha a aparência de algo terrivelmente sobrenatural.

— Isto não está certo. O desgraçado está confiante demais murmurou Imago. —Precisamos sair daqui. — Ele arrastou os meninos protetoramente para uma das bocas de túneldo Labirinto enquanto Tam se aproximava do Mosca.

— Ah , não... não... — Imago parou de respirar.Will e Cal se viraram, procurando pela origem do alarme. Uma massa de Styx aparecera pela

névoa e se espalhava em um arco amplo. Mas o Mosca ergueu uma foice cintilante e eles pararamabruptamente a pouca distância dele, balançando-se e remexendo-se de impaciência.

Tam parou, interrompendo-se por um instante como se ponderasse sobre suas chances.Sacudiu a cabeça apenas uma vez, depois a ergueu, desafiador. Tirou o capuz e respirou fundo,enchendo os pulmões com o ar desagradável.

Como resposta, o Mosca arrancou os óculos de proteção e o aparato respiratório, largando-os a seus pés e chutando-os de lado. Tam e o Mosca se aproximaram um passo, depois pararam.Enquanto se encaravam como dois boxeadores adversários, Will estremeceu com o sorriso frio esardônico na cara magra do Styx.

Os meninos mal ousaram respirar. O lugar ficou mortalmente silencioso, como se todos ossons tivessem sido sugados do mundo.

O Mosca fez o primeiro movimento, os braços chicoteando um sobre o outro enquantoavançava. Tam recuou para evitar a barragem de aço e, pulando de lado, elevou o facão nummovimento defensivo. As lâminas dos dois homens se encontraram e rasparam com um guinchometálico de arrepiar.

Com uma destreza inacreditável, o Mosca girou como se realizasse algum ritual de dança,avançando e recuando para Tam, golpeando sem parar com as duas lâminas. Tam retaliava compunhaladas e movimentos de evasão e os dois oponentes atacavam, defendiam-se e atacavamalternadamente. Cada golpe era tão arrasadoramente rápido que Cal e Will não se atreviam apiscar. Enquanto olhavam, houve outra saraivada de prata e cinza e de repente os dois homensestavam tão perto que podiam se abraçar, as lâminas afiadas de suas armas moendo-se friamente.Quase com a mesma rapidez, eles recuaram, respirando mal. Houve uma trégua e os olhos dosdois homens continuaram fixos um no outro, mas Tam parecia adernar um pouco e apertava alateral do corpo.

— Isso não é bom — disse Imago em voz baixa.Will também entendeu. Entre os dedos de Tam e descendo por seu casaco, escorriam faixas

escuras de um líquido que parecia uma tinta preta e inofensiva sob a luz verde da cidade. Eleestava ferido e sangrava muito. Recuou devagar e, aparentemente recuperado, num átimo girou ofacão para o Mosca, que pulou de lado com facilidade e o atingiu no rosto.

Tam se encolheu e recuou. Imago e os meninos viram o trecho escuro que agora seespalhava pela bochecha esquerda.

— Ah, meu Deus — disse Imago baixinho, segurando com tanta força a gola dos doismeninos que Will podia sentir seus braços tensos durante o reinicio da luta.

Tam atacou outra vez, o Mosca rodopiando para trás e para frente, para um lado e outro,em sua dança leve e estilizada. Os golpes de Tam eram decisivos e habilidosos, mas o Mosca eraveloz demais e de vez em quando a lâmina do facão só encontrava o ar nevoento. Ao girar paraficar de frente para o adversário esquivo, Tam perdeu o pé. Tentando se endireitar, suas botasescorregaram inutilmente. Ele estava desequilibrado, numa posição vulnerável. O Mosca nãopodia perder a oportunidade. Partiu para o flanco exposto de Tam.

Mas Tam estava preparado. Estivera esperando por este momento. Ele mergulhou parafrente e se ergueu por dentro da guarda do opoente, subindo o facão como um raio, tãohabilidosamente que Will não conseguiu ver o golpe arrasador no pescoço do Mosca.

O ar entre os dois combatentes se encheu de uma espuma negra enquanto o Moscacambaleava para trás. O Styx largou as duas foices no chão e soltou um gorgolejar sangrento esibilante ao agarrar a veia cortada.

Como um matador dando o golpe de misericórdia, Tam avançou, usando as duas mãos nogolpe final. A lâmina afundou no meio do peito do Mosca. Ele soltou um silvo borbulhante eagarrou os ombros de Tam para se equilibrar. Olhou com descrença o punho de madeira toscaque se projetava de seu esterno, depois levantou a cabeça. Por um momento, os dois ficaram ali,absolutamente imóveis, como duas estátuas num trágico quadro vivo, encarando-se numreconhecimento mudo.

Depois Tam apoiou um pé no Mosca e recuperou o facão. O Styx balançou onde estava,como um boneco suspenso por fios invisíveis, a boca formando palavrões vazios e sem fôlego.

Imago e os meninos ficaram olhando o homem mortalmente ferido soltar um últimorosnado asfixiado para Tam e, cambaleando para trás, desabar no chão num monturo sem vida.Sussurros excitados passaram pelas fileiras de Styx, que pareciam paralisados, sem saber o quedeviam fazer.

Tam não perdeu tempo com tal hesitação. Segurando a lateral ferida do corpo e fazendouma careta de dor, ele disparou para se juntar a Imago e os garotos. Isto por sua vez mobilizouos Styx, que avançaram e formaram um círculo em torno do corpo do companheiro caído.

Tam já estava levando Imago e os meninos pela passagem do Labirinto. Mas mal tinhampercorrido alguma distância quando ele caiu de lado e procurou a parede para se apoiar.Respirava mal e o suor jorrava dele. Escorria por seu rosto, misturando-se ao sangue daslacerações e pingando no queixo eriçado.

— Eu vou segurá-los - arfou ele, olhando a abertura do túnel atrás. - Vou ganhar algumtempo para vocês.

— Não vai, não — disse Imago. — Você está ferido.— Estou acabado, de qualquer forma — disse Tam baixinho.Imago olhou o sangue que empoçava na aba aberta do peito de Tam e seus olhos se

encontraram por uma fração de segundo. Enquanto Imago lhe passava seu facão, ficou claro quea decisão já fora tomada.

— Não, tio Tam! Por favor, venha conosco — implorou Cal numa voz sufocada, sabendomuito bem o que isto significava

— Assim estaremos todos perdidos, Cal — disse Tam, sorrindo languidamente e pegando-ocom um braço. Ele colocou a mão na camisa, tirando alguma coisa do pescoço e apertando namão de Will. Era um pingente liso com um símbolo entalhado.

— Fique com isto — disse Tam rapidamente. — Pode vir a ser útil no lugar aonde vai. —Ele soltou Cal e se afastou um passo, mas depois se segurou em Will, os olhos sem deixar omenino mais novo. — E vai cuidar de Cal, não vai, Will? — Tam aumentou o aperto. —Prometa-me isto.

Will sentia-se tão entorpecido que antes que pudesse encontrar as palavras, Tam havia seafastado dele.

Cal começou a gritar freneticamente.— Tio Tam... venha... venha conosco...— Tire-os daqui, Imago — gritou Tam de volta à boca do túnel e, ao fazer isso, todo o

horror do exército Styx que se aproximava assomou ao longe.Cal ainda gritava o nome de Tam e não demonstrava a menor intenção de ir a lugar algum

quando Imago o agarrou pela gola e o despachou ferozmente antes de entrar no túnel. O meninoatormentado não teve alternativa a não ser fazer o que Imago queria, e seus gritos de imediatoderam lugar a uivos de angústia e a um choro incontrolável. Will recebeu um tratamentoigualmente rude enquanto Imago repetidamente lhe batia nas costas para impeli-lo a andar.Imago só os soltou por um breve momento, ao fazerem um curva acentuada, e pareceu hesitar.Os três, Will, Cal e Imago, viraram-se e tiveram um último vislumbre do homenzarrão, seu

contorno escuro contra o verde da cidade, sustentando dois facões de prontidão ao lado docorpo.

Depois Imago os empurrou novamente e Tam desapareceu de vista para sempre. Masardendo nas retinas estava esta última cena, este último quadro de Tam, parado orgulhoso edesafiador diante da maré que se aproximava. Uma figura solitária enfrentando um campoarrepiante de foices desembainhadas.

Mesmo enquanto escapavam, eles podiam ouvir as ofensas urgentes e altas e o choque daslâminas, que ficavam cada vez mais fracos a cada curva do túnel.

Capítulo Trinta e Sete

Eles corriam, e Will segurava o braço com força junto ao corpo, o ombro latejando de dor a cadapasso. Não fazia idéia de quantos quilômetros tinham percorrido quando, no final de uma longagaleria, Imago finalmente reduziu o ritmo para que eles pudessem recuperar o fôlego. Graças àlargura do túnel, eles podiam ter andado lado a lado, mas preferiram continuar em fila indiana —isso lhes dava alguma solidão, alguma privacidade. Embora não tivessem trocado uma só palavradesde que deixaram Tam para trás na cidade, cada um deles sabia muito bem o que os outrosestavam pensando no silêncio infeliz que pairava como uma mortalha sobre eles. Enquantomourejavam mecanicamente em sua pequena coluna pesarosa, Will pensou que o grupo pareciaum cortejo fúnebre.

Ele simplesmente não acreditava que Tam estivesse mesmo morto — a única pessoa naColônia que era de uma grandeza tal que o aceitara de volta à família sem hesitar nem por ummomento. Will tentou levar seus pensamentos a uma espécie de ordem e lidar com a sensação deperda e o vazio que o dominavam, mas as crises freqüentes de choro abafado de Cal nãoajudavam.

Eles viraram à esquerda e à direita incontáveis vezes, cada trecho novo de túnel tão idênticoe comum quanto o anterior. Imago não se voltou para o mapa nem uma vez, mas parecia saberprecisamente onde estavam indo, de vez em quando murmurando consigo mesmo sob a máscara,como se recitasse um poema interminável, ou mesmo uma oração. Em vários momentos Willpercebeu que ele sacudia uma esfera de metal opaca do tamanho de uma laranja quando elesviravam outra esquina, mas ele não fazia idéia do motivo para Imago fazer isto.

Ele ficou surpreso quando Imago os fez parar perto do que parecia ser uma fissura pequenano chão e olhou cuidadosamente para os dois lados do túnel. Depois começou a agitar com vigora esfera de metal pela abertura da fissura.

— Para que é isso? — perguntou Will a ele.— Mascara nosso odor — respondeu Imago bruscamente, e enfiou a esfera na mochila de

Will, que ele carregava, e a largou na abertura. Depois, ajoelhou e se espremeu primeiro de cabeçapela abertura. Ficou apertado, para dizer o mínimo.

Por uns seis metros a fissura descia quase verticalmente, depois começava a se aplainar,afinando mais adiante em um buraco estreito. O progresso era lento e Will e Cal seguiam atrás,os sons dos grunhidos erráticos de Imago chegando-lhes do alto enquanto ele lutavadesesperadamente para passar, empurrando a mochila de Will na frente. Will se perguntava o queeles fariam se Imago ficasse entalado quando chegaram ao final e conseguiram se colocar de pénovamente.

No início, o garoto não conseguiu distinguir muita coisa através da máscara arruinada, comum dos óculos quebrado e o outro fosco de condensação. Foi só quando Imago tirou a máscara edisse a eles para fazerem o mesmo que Will viu onde estavam.

Era uma câmara, com pouco mais de nove metros e num formato quase perfeito de sino,com paredes rudes da textura de carborundo. Várias estalactites pequenas e cinzentas pendiam domeio da câmara, diretamente sobre um círculo de metal enferrujado, que ficava no meio do chão.Ao se arrastarem pela beira da câmara, suas botas espalhavam montes de esferas lisas, que tinhamuma cor amarela suja e variavam de tamanho, de ervilhas a grandes bolas de gude.

— Pérolas das cavernas — murmurou Will, lembrando-se das imagens que vira em um doslivros acadêmicos do pai. Apesar de como se sentia, ele de imediato olhou em volta em busca dealgum sinal de água corrente, necessária para a formação destas pérolas. Mas o chão e as paredespareciam tão secos e áridos quanto o resto do Labirinto. E a única maneira de entrar ou sair queWill pôde ver era o buraco por onde acabaram de sair de gatinhas.

Imago o estivera observando e respondeu a sua pergunta muda.— Não se preocupe... vamos ficar seguros aqui, Will, por algum tempo — disse ele, a cara

larga sorrindo de forma tranqüilizadora. — Chamamos este lugar de Caldeirão.Enquanto Cal tropeçava cansado até o extremo da câmara e escorregava pela parede com a

cabeça tombada no peito, Imago se dirigiu novamente a Will.— Eu devia dar uma olhada nesse braço.— Não é nada demais — respondeu Will. Não só ele queria ficar sozinho, como também

morria de medo de descobrir a gravidade de seus ferimentos.— Vamos — disse Imago com firmeza, agitando a mão. — Pode infeccionar. Preciso fazer

um curativo.Trincando os dentes, Will respirou fundo e, rígida e desajeitadamente, retirou o casaco e o

deixou escorregar para o chão. O tecido da camisa estava firmemente preso nas feridas e Imagoteve que soltá-lo aos poucos, começando pela gola e descascando delicadamente. Will observavacom mal-estar, estremecendo enquanto eram arrancadas várias cascas úmidas e ele via o sanguefresco sair e escorrer pelo braço já sujo.

— Você se livrou por pouco — disse Imago. Will olhou a face séria de Imago,perguntando-se se ele realmente estava sendo sincero, enquanto ele assentia e continuava. - Deviase considerar um sujeito de sorte. Os fareja-dores costumam pegar as partes do corpo maisvulneráveis.

O antebraço de Will tinha alguns vergões lívidos e dois semicírculos de perfurações dosdois lados, mas agora estes praticamente não sangravam. Ele examinou a vermelhidão no peito eno abdome, depois sentiu as costelas, que só doíam se ele respirasse fundo. Também não havianenhum dano verdadeiro ali. Mas o ombro era um problema totalmente diferente. Os dentes do

animal tinham afundado ali e a carne fora muito maltratada pelo sacudir de cabeça do farejador.Em determinados lugares, estava tão crua e dilacerada que parecia ter sido atingida por um tirode espingarda.

— Aiiiishhh! — Will expirou alto, virando a cabeça rapidamente enquanto riachos desangue desciam pelo braço. — Está horrível. — Agora que realmente via, ele se retesou e nãoconseguiu reprimir o tremor, percebendo o quanto seus ferimentos lhe doíam. Por um momento,todas as forças o abandonaram e ele se sentiu muito fraco e vulnerável.

— Não se preocupe, parece pior do que realmente é — disse Imago num tomtranqüilizador ao verter um líquido claro de um frasco prateado em um pedaço de atadura. —Mas isto vai doer — avisou ele a Will e começou a limpar as feridas. Quando terminou, ele abriuo casaco e estendeu a mão por dentro para desafivelar uma das muitas algibeiras no cinto. Pegouum saco do que parecia tabaco de cachimbo e passou a espalhado amplamente nos ferimentos deWill, concentrando-se nas lacerações no ombro. As fibras secas e pequenas se prenderam àslesões, absorvendo o sangue. — Pode doer um pouco, mas estou quase acabando — acrescentouele enquanto colocava mais do material por cima, dando tapinhas para que formasse umacobertura grossa.

— O que é isso? — perguntou Will, atrevendo-se a olhar o ombro de novo.— Rizomas rasgados.— Rizomas o quê? — disse Will com alarme. — Espero que saiba o que está fazendo.— Sou filho de um boticário. Aprendi a fazer um curativo quando era pouco mais velho do

que você.Will relaxou novamente.— Não precisa se preocupar, Will... já faz tempo que perdi um paciente — disse Imago,

olhando de lado para ele.— Hein? — Meio lento para entender, Will olhou para Imago com alarme.— É só brincadeira — disse Imago, afagando o cabelo de Will e rindo. Mas apesar da

tentativa de aliviar o humor, o garoto viu a imensa tristeza nos olhos de Imago enquanto elecontinuava a tratar de seu ombro. — Há um anti-séptico neste cataplasma. Vai deter osangramento e amortecer os nervos — acrescentou ele, enquanto pegava outra algibeira e tiravaum rolo cinza de tecido, que começou a desenrolar. Ele passou o pano habilidosamente em voltado ombro e do braço de Will e, amarrando as pontas com firmeza, recuou para admirar seutrabalho.

— Como está?— Melhor — mentiu Will. — Obrigado.— Vai precisar trocar o curativo de vez em quando... precisa levar um pouco disto com

você.— Como assim, comigo? Aonde você vai? — perguntou Will, mas Imago sacudiu a cabeça.— Tudo em seu tempo. Você perdeu muito sangue e precisa de fluidos. E todos devemos

tentar comer alguma coisa. — Imago olhou a forma amarfanhada de Cal. — Vamos. Saia daí,garoto.

Cal se levantou obediente e andou enquanto Imago sentava o corpo enorme, as pernasesticadas na frente, e começava a pegar várias latas de metal opaco no saco de couro. Ele abriu atampa da primeira e ofereceu a Will, que olhou os pedaços cinzentos e sujos de fungo com uma

repulsa que não conseguiu esconder.— Espero que não se importe — disse Will —, mas trouxemos o nosso.Imago não pareceu se importar nem um pouco. Simplesmente fechou novamente a lata e

esperou Will tirar a comida da mochila. Imago caiu sobre ela com evidente alívio, chupando comruído as fatias de presunto assado no mel, que ele segurava delicadamente nos dedos sujos. Comose tentasse fazer com que a experiência durasse para sempre, ele rolou a carne ruidosamente naboca antes de mastigá-la. E quando finalmente engoliu, seus olhos se fecharam um pouco e elesoltou suspiros imensos de júbilo.

Cal, por outro lado, mal tocou na comida, futucando-a sem nenhum entusiasmo antes de seretirar novamente para o outro lado da câmara. Will também não tinha muito apetite, emparticular depois de testemunhar a performance de Imago. Ele pegou uma lata de Coca-Cola eestava começando a beber quando de repente pensou no pingente verde-jade que Tam lhe dera.Encontrou-o no casaco e o pegou para examinar a superfície opaca. Ainda estava sujo do sanguede Tam, que coagulara nas três marcas entalhadas em uma das faces. Ele a olhou e passou opolegar por ela de leve. Tinha certeza de já ter visto o mesmo símbolo de três dentes em algumlugar. Depois ele se lembrou. Estava naquele marco no Labirinto.

Enquanto Imago se dedicava a uma barra de chocolate, saboreando cada dentada, Cal faloudo outro lado da câmara, a voz monótona e indiferente.

— Quero ir para casa. Não me importo mais.Imago engasgou, cuspindo uma massa de chocolate meio mastigado. Ele girou a cabeça para

Cal, a trança do rabo-de-cavalo chicoteando o ar.— E os Styx?— Vou falar com eles, vou fazer com que me ouçam — respondeu Cal, fraquinho.— Eles vão ouvir mesmo, enquanto estiverem arrancando seu fígado ou decepando você

membro por membro — repreendeu Imago. — Seu idiotinha, acha que Tam deu a vida dele sópara você poder jogar a sua fora?

— Eu... não... — Cal piscava de susto enquanto Imago continuava a gritar.Ainda segurando firme o pingente, Will o apertou na testa, cobrindo a cara com a mão. Só

queria que todos se calassem; não precisava de nada disso. Queria que tudo parasse, pelo menospor um momento.

— Seu egoísta, estúpido... o que você vai fazer, pedir a seu pai ou à vovó Macaulay paraescondê-lo... e arriscar a vida deles também? Isto seria péssimo — Imago gritava.

— Eu só pensei...— Não, não pensou! — interrompeu-o Imago. — Nunca mais vai voltar, entendeu? Enfie

isso na sua cabeça dura! — Atirando de lado o resto da barra de chocolate, ele andou até o ladooposto da câmara.

— Mas eu... — Cal começou a dizer.— Durma um pouco! — grunhiu Imago, a cara rígida de raiva. Ele enrolou o casaco

firmemente em torno do corpo e, usando o saco como travesseiro, deitou-se de lado e de carapara a parede.

Ali eles ficaram pela maior parte do dia seguinte, comendo e dormindo alternadamente, quasesem se falarem. Depois de todo o horror e excitação das últimas 24 horas, Will ficou grato pelaoportunidade de se recuperar e passou a maior parte do tempo num sono pesado e sem sonhos.Por fim foi despertado pela voz de Imago e abriu letargicamente um olho, vendo o que aconteciaali.

— Venha me dar uma ajuda, sim, Cal?Cal rapidamente se levantou e se juntou a Imago, que estava ajoelhado no meio da câmara.— Pesa uma tonelada. — Imago arreganhou os dentes.Enquanto eles deslizavam para o lado a roda de metal no chão, ficou patente que Imago

podia ter feito isso sozinho e que este era o jeito dele de ajeitar as coisas com Cal. Will abriu ooutro olho e flexionou o braço. O ombro estava rígido, mas seus ferimentos não doíam quasenada perto do que sentira antes.

Cal e Imago agora estavam deitados no chão, olhando pela abertura circular enquanto ohomem lançava a luz por ela. Will engatinhou para ver o que olhavam. Havia um poço de ummetro e depois, a escuridão.

— Estou vendo uma coisa brilhando — disse Cal.— Sim, trilhos de trem — respondeu Imago.— O Trem dos Mineradores. — percebeu Will ao ver as duas linhas paralelas de ferro

polido cintilando na escuridão de breu.Eles se afastaram do buraco e se sentaram, em volta, esperando ansiosamente que Imago

falasse.— Vai ser uma dureza, porque não temos muito tempo disse ele. — Vocês têm duas

opções. Ou ficam por aqui mais um tempo e depois levo vocês à Crosta de novo, ou...— Não, lá não — disse Cal de imediato.— Não estou dizendo que vai ser fácil levar vocês lá — admitiu Imago. — Não os três

juntos.— De jeito nenhum! Não vou suportar isso! — Cal elevou a voz até quase gritar.— Não se precipite — alertou Imago. — Se conseguirmos chegar à Crosta, pelo menos

vocês poderão tentar sumir em algum lugar que os Styx não possam achar. Talvez.— Não — repetiu Cal com absoluta convicção.Imago agora olhava diretamente para Will.— Você deve estar ciente... — ele se calou, como se estivesse prestes a dizer alguma coisa

tão terrível que não sabia como continuar. — Tam acha... — ele rapidamente se corrigiu comuma careta — ...achava que a menina Styx que se passou por sua irmã da Crosta... — ele tossiupouco à vontade e enxugou a boca — ...é filha do Mosca. Então Tam simplesmente matou o paidela lá na cidade.

— O pai de Rebecca? — perguntou Will numa voz perplexa.— Ah, meu Jesus — resmungou Cal.— Por que isso é importante? O que... — disse Will, antes que Imago o interrompesse.— Os Styx não vão deixar passar em branco. Vão persegui-lo, aonde quer que vá. Qualquer

um que lhe der abrigo, na Crosta, na Colônia ou até nas Profundezas, também corre perigo. Sabeque eles têm gente em toda a superfície. — Imago coçou a barriga e franziu o cenho. — Mas se

Tam tinha razão, isso significa que por mais grave que sua situação estivesse antes, agora estápior. É você quem corre o maior risco. Agora você está marcado.

Will tentou absorver o que acabara de ouvir, sacudindo a cabeça com a injustiça e ainiqüidade de tudo aquilo.

— Então está dizendo que se eu for para a Crosta, vou ter que fugir sem parar. E se forpara a casa da tia Jean, então...

— Ela morrerá. — Imago se remexia pouco à vontade no chão de pedra poeirenta. — Éassim que as coisas são.

— Mas o que você vai fazer, Imago? — perguntou Will, achando impossível apreender asituação em que se encontrava.

— Não posso voltar para a Colônia, isto é certo. Mas não se preocupe comigo, são vocêsdois que precisam decidir.

— Mas o que eu devo fazer? — perguntou Will, olhando para Cal, que encarava a aberturano chão, e depois para Imago, que só dava de ombros inutilmente, fazendo com que Will sesentisse ainda pior. Ele estava total-mente perdido. Era como se estivesse participando de umjogo em que só se conheciam as regras depois de se cometer um erro. — Bom, acho que não hámais nada na Crosta para mim. Não agora — murmurou ele, tombando a cabeça. — E meu paiestá aí embaixo... em algum lugar.

Imago pegou o saco e vasculhou seu conteúdo, tirando alguma coisa embrulhada em umvelho pedaço de juta, que entregou a Will.

— O que é isso? — murmurou Will, desdobrando a juta. Com tantos pensamentosdisparando por sua cabeça, ele estava numa confusão tal que precisou de vários segundos paraavaliar o que Imago lhe dera.

Era um monte achatado e sólido de papel que cabia facilmente em seu punho. Com asbordas rasgadas e irregulares, evidentemente tinha sido imerso em água e depois colocado parasecar, os pedaços amontoados num papier mâché rude. Ele olhou inquisitivamente para Imago, quenão fez comentário nenhum, então Will começou a afastar as camadas mais externas, como quemtira as folhas dessecadas de uma cebola antiga. Enquanto arranhava as bordas peludas com aunha, não precisou de muito tempo para separar os pedaços de papel. Depois ele os deitou paraexaminar mais de perto sob a luz.

— Não! Não acredito nisso! É a letra do meu pai! — disse ele com surpresa e deleite aoreconhecer o garrancho característico do dr. Burrows em vários fragmentos. Eles estavam sujosde lama e a tinta azul tinha escorrido, deixando muito pouca coisa legível, mas Will aindaconseguia decifrar parte do que fora escrito.

— Vou retomar — recitou Will de um fragmento, passando rapidamente aos outros eexaminando um de cada vez. — Não, esse está manchado demais — murmurou ele. — Aquitambém, nada — continuou. — Não sei... umas palavras estranhas... não faz sentido nenhum...mas... Ah, aqui diz Dia 15! — Ele continuou a esfregar outros fragmentos até parar com umsobressalto. — Este pedaço — exclamou ele empolgado, segurando a tira de papel na luz — falaem mim! — Ele olhou para Imago, um leve tremor na voz. — Se meu filho, Will, tivesse, é o quediz! — Com uma expressão confusa, ele virou o fragmento para ver o verso, mas descobriu queestava em branco. — Mas o que meu pai quis dizer? O que eu deixei de fazer? O que eu devia terfeito? — Will olhou novamente para Imago, procurando a ajuda dele.

— Não pergunte a mim — disse o homem.O rosto de Will se iluminou.— O que quer que estivesse dizendo, ele ainda pensava em mim. Ele não se esqueceu de

mim. Talvez ele sempre tenha esperado que de um jeito ou de outro eu fosse atrás dele, que fosseencontrá-lo. — Ele assentia vigorosamente enquanto a idéia se formava num crescendo em suacabeça. — Sim, é isso... deve ser isso!

Algo mais lhe ocorreu naquele momento, desviando seus pensamentos.— Imago, isto veio do diário do meu pai. Onde conseguiu? — Will de imediato imaginou o

pior. — Ele está bem?Imago esfregou o queixo pensativamente.— Não sei. Como Tam lhe disse, ele tinha bilhete só de ida no Trem dos Mineradores. —

Esticando o polegar na direção do buraco no chão, ele continuou: — Seu pai está em algum lugaraí embaixo, nas Profundezas. Provavelmente.

— Sim, mas onde você conseguiu isso? — perguntou Will com impaciência, fechando amão nas tiras de papel e mantendo-as na palma.

— Mais ou menos uma semana depois de chegar à Colônia, ele vagou pelos arredores dosCortiços e foi atacado. — A voz de Imago ficou um tanto incrédula a esta altura. — Se a históriaé verdadeira, ele estava parando as pessoas e lhes fazendo perguntas. Rodar por aquelas bandasnão é bom para ninguém, e menos ainda para gente da Crosta, que fica se intrometendo, e elelevou uma boa surra. Pelo que dizem, ele só ficou lá, sem sequer tentar enfrentar uma briga. Istodeve ter salvado sua vida.

— Pai — disse Will, as lágrimas enchendo os olhos ao imaginar a cena. — Coitado dopapai.

— Bem, não deve ter sido tão ruim. Ele saiu andando de lá. Imago esfregou as mãos e otom de voz mudou, tornando-se mais pragmático. — Mas isso é irrelevante. Precisa me dizer oque quer fazer. Não podemos ficar aqui para sempre. — Ele olhou incisivamente para cada umdos garotos. — Will? Cal?

Os dois ficaram em silêncio por um tempo, até que Will falou.— Chester! — Ele nem acreditava que, com tudo o que tinha acontecido, esquecera-se

completamente do amigo. — Não importa o que você disser, eu tenho que voltar a ele — disseWill resoluto. — Eu devo isso a ele.

— O Chester vai ficar bem — disse Imago.— Como pode saber disso? — Will de imediato o olhou.Imago simplesmente sorriu.— Então, onde ele está? — perguntou Will. — Ele está bem mesmo?— Confie em mim — disse Imago enigmaticamente.Will olhou em seus olhos e viu que o homem falava a sério. Sentiu um alívio enorme, como

se um peso esmagador tivesse sido retirado dos ombros. Disse a si mesmo que se alguém podiasalvar o amigo, este alguém era Imago. Ele soltou o ar longamente e ergueu a cabeça.

— Bom, neste caso, as Profundezas.— E eu vou com você — intrometeu-se Cal rapidamente.— Os dois têm absoluta certeza disso? — perguntou Imago, olhando duro para Will. —

Parece o inferno por lá. Vocês ficariam melhor na Crosta, pelo menos você conhece o território.Will sacudiu a cabeça.— Só o que me resta é o meu pai.— Bem, se é o que você quer. — A voz de Imago era baixa e sombria.— Não há nada para nós na Crosta, não agora — respondeu Will, fitando o irmão.— Tudo bem, então está decidido — disse Imago, olhando o relógio. — Agora procurem

dormir um pouco. Vão precisar de toda a força que tiverem.Mas nenhum deles conseguiu dormir, e Imago e Cal acabaram conversando sobre Tam.

Imago regalava o menino com histórias das explorações do tio, até rindo às vezes, e Cal nãoconseguiu deixar de se juntar a ele. Imago claramente extraía conforto das lembranças dasproezas que ele, Tam e a irmã aprontaram na juventude, quando passavam a perna nos Styx.

— Tam e Sarah eram igualmente terríveis, posso lhe dizer. Uma dupla de felinos selvagens.— Imago sorriu com tristeza.

— Conte a Will sobre os Sapos de Taquara — disse Cal, cutucando-o.— Ah , meu Deus, sim... — Imago riu, lembrando do incidente. — Foi idéia da sua mãe,

sabia? Pegamos um barril cheio deles nos Cortiços... Os pervertidos de lá se drogam comendoessas coisas. É um hábito perigoso; toxina demais pode fritar seu cérebro. — Imago ergueu assobrancelhas. — Sarah e Tam levaram os sapos a uma igreja e os soltaram pouco antes decomeçar o serviço religioso. Devia ter visto... uns cem bichinhos viscosos saltando por todaparte... as pessoas pulando e gritando, e mal se podia ouvir o pregador com todo aquele coaxar...brup, brup, brup . — O homem rotundo se balançou numa risada silenciosa, depois sua testafranziu e ele foi incapaz de continuar.

Com toda aquela conversa sobre a mãe verdadeira, Will se esforçara ao máximo para ouvir,mas estava cansado e preocupado demais. A seriedade da situação ainda tinha prioridade em suamente e seus pensamentos eram pesados de apreensão sobre o que se comprometera a fazer. Umajornada ao desconhecido. Será que estava preparado para isto? Ia fazer a coisa certa, para simesmo e para seu irmão?

Ele saiu de sua introspecção ao ouvir Cal de repente interromper Imago, que tinhacomeçado outra história.

— Acha que Tam podia ter conseguido? — perguntou Cal. — Sabe como é... fugido?Imago desviou os olhos dele rapidamente e começou a desenhar distraído com o dedo na

poeira, claramente sem palavras. E, no silêncio que se seguiu, a tristeza intensa inundou a face deCal.

— Nem acredito que ele não está mais aqui. Ele era tudo para mim.— Ele lutou com todos eles por sua vida — disse Imago, a voz distante e tensa. — Ele não

era nenhum santo, isto é certo, mas nos deu uma coisa... esperança... e isso torna tudo suportávelpara nós. — Ele parou, os olhos fixos em um ponto distante para além da cabeça de Cal. — Como Mosca morto, haverá expurgos... e castigos do tipo que não vemos há anos. — Ele pegou umapérola das cavernas e a examinou. — Mas eu não voltaria à Colônia, nem que pudesse. Acho quetodos agora estamos sem um lar — acrescentou ele ao lançar a pérola no ar com o polegar e, comabsoluta precisão, ela caiu no meio do poço.

Capítulo Trinta e Oito

– Por favor! — Chester choramingava dentro do capuz pegajoso, que se grudava em sua cara eno pescoço com o suor frio. Depois de o terem arrastado da cela e levado pelo corredor até afrente da delegacia, eles enfiaram um saco rude em sua cabeça e amarraram seus pulsos. Emseguida deixaram-no parado ali, envolto na escuridão sufocante, com os sons abafados vindo detoda parte.

— Por favor! — gritou Chester em puro desespero.— Cale-se! — rebateu uma voz áspera a centímetros atrás de sua orelha.— O que está acontecendo? — pediu Chester.— Você vai fazer uma pequena viagem, meu filho, uma pequena viagem — disse a mesma

voz.— Mas eu não fiz nada! Por favor!Ele ouviu botas batendo em um piso de pedra enquanto era empurrado detrás. Ele

cambaleou e caiu de joelhos, incapaz de se levantar com as mãos amarradas às costas.— Levante-se!Chester foi içado de pé e parou vacilante, as pernas feito gelatina. Sabia que este momento ia

chegar, que seus dias estavam contados, mas não tinha como descobrir como seria quandoacontecesse. Ninguém falava com ele no Cárcere, nem ele fazia muito esforço para perguntar, tãopetrificado estava em não provocar qualquer retaliação do Segundo Oficial e seus guardas.

Então Chester viveu como um condenado que só podia imaginar como seria seufalecimento. Agarrava-se a cada segundo precioso que lhe restava, tentando fazer com que nãolhe escapassem e morrendo um pouco por dentro quando, um após outro, eles se esvaíam. Agoraa única coisa que podia lhe dar consolo era saber que tinha uma viagem de trem pela frente: entãopelo menos lhe restava algum tempo. Mas, e depois? E como eram essas Profundezas? O queacontece-ria com ele lá?

— Ande!Ele cambaleou alguns passos para frente, inseguro de seu andar e incapaz de ver alguma

coisa. Tropeçou em algo duro e o som em volta dele pareceu mudar. Ecos. Gritos, mas de longe,

de um espaço maior.De repente houve o clamor de muitas vozes.Ah, não!Ele sabia sem sombra de dúvida exatamente onde estava — estava na calçada da delegacia. E

o que estava ouvindo era o berro de uma turba. Se estava assustado antes, agora era muito pior.Uma turba. As zombarias e vaias ficaram mais altas, e ele se sentiu sendo erguido sob os braços eguindado. Estava na rua principal; sentiu a superfície irregular dos paralelepípedos quando seuspés puderam tocar o chão.

— Eu não fiz nada! Quero ir para casa!Ele ofegava muito, lutando para respirar através do tecido grosso do capuz, que, ensopado

da própria saliva e das lágrimas, era sugado para a boca a cada respiração.— Me ajude! Alguém! — Sua voz era tão angustiada e distorcida que quase lhe era

irreconhecível. Ainda assim, os gritos loucos vinham de todo lado.— LIXO DA CROSTA!— ENFORQUE-O!Tomou forma um grito repetido por muitas vozes. Ladrava sem parar.— LIXO! LIXO! LIXO!Estavam gritando para ele, essa gente toda gritava para ele! Seu estômago revirou com a

pura percepção. Ele não podia vê-los e isso tornava tudo pior. Estava tão apavorado que pensouque ia desmaiar.

— LIXO! LIXO! LIXO!— Por favor... parem. Por favor... me ajudem! Por favor... por favor, me ajudem... por

favor... — Ele estava hiperventilando e chorando ao mesmo tempo, não conseguia evitar.— LIXO! LIXO! LIXO!Eu vou morrer! Eu vou morrer! Eu vou morrer!O único pensamento pulsava em sua mente, um contraponto ao canto repetido da turba.

Estavam tão perto de Chester agora, perto o bastante para ele sentir o fedor coletivo e o cheiroabominável de seu ódio conjunto.

— LIXO! LIXO! LIXO!Parecia que ele estava no fundo de um poço, com um vórtice de barulhos, gritos e risos

cruéis girando em volta dele. Não conseguia suportar mais. Precisava fazer alguma coisa. Eletinha que fugir!

Num terror cego, ele tentou se libertar, lutando e retorcendo o corpo, em convulsão contraseus captores. Mas as mãos enormes só o agarraram com uma selvageria ainda maior e os gritos erisos coléricos chegaram a um tom febril com este novo espetáculo. Exausto e percebendo queera inútil, ele gemeu.

— Não... não... não... não...Uma voz nauseante e íntima veio de tão perto que ele sentiu os lábios do orador roçarem

em sua orelha.— Agora vamos, Chester, endireite-se! Não quer decepcionar todas essas damas e

cavalheiros, não é? — Chester percebeu que era o Segundo Oficial. Ele devia estar apreciandocada segundo disso.

— Deixe que eles dêem uma olhada em você! — disse mais alguém. — Deixe que eles o

vejam como você é!Chester sentia-se entorpecido... desolado. Não acredito nisso. Não acredito nisso.Por um momento foi como se toda a gritaria e as vaias tivessem parado. Como se ele

estivesse no olho de um furacão, como se o próprio tempo tivesse cessado. Então, mãos pegaram-no pelos tornozelos e pernas, guiando-os a uma espécie de escada.

E agora? Ele foi conduzido a um banco e atirado em seu encosto, sentado.— Levem-no! — berrou alguém. A multidão vaiou, e houve gritos arrebatados e uivos de

lobo.Onde quer que estivesse, avançou para a frente. Ele pensou ter ouvido o bater de cascos de

cavalos. Uma carruagem? Sim, uma carruagem!— Não me obriguem a ir! Isso não está certo! — implorou ele.Ele começou a tagarelar, as palavras sem sentido nenhum.— Vai receber exatamente o que merece, meu rapaz! — disse uma voz à direita dele, num

tom quase de confidente. Era o Segundo Oficial de novo.— E é bom demais para você — veio outra voz que ele não reconheceu, desta vez da

esquerda. Chester agora tremia incontrolavelmente.Então é assim! Ah, meu Deus! Ah, meu Deus! Então é assim!Ele pensou em sua casa, e as lembranças de ver televisão em tantas manhãs de sábado

estouraram em sua cabeça. Momentos felizes e acalentados de normalidade com a mãe na cozinhapreparando o café-da-manhã, o cheiro da comida no ar e o pai gritando do segundo andar parasaber se já estava pronto. Era como se ele estivesse se recordando de outra vida, a vida de outrapessoa, de outra época, em outro século.

Eu nunca mais os verei. Eles se foram... tudo se foi... acabado... para sempre!Sua cabeça afundou no peito. Ele ficou flácido enquanto se espalhava por todo o corpo a

percepção fria como pedra de que tudo se acabara.Eu estou ACABADO.Da sola dos pés ao alto da cabeça, ele estava tomado por um desespero esmagador. Como se

tivesse sido paralisado, sua respiração lentamente saiu dos lábios, pressionando com um somanimal involuntário, meio gemido, meio ganido. Um som medonho e cheio de pavor eresignação, de abandono.

Pelo que pareceu uma eternidade ele não respirou, a boca abrindo-se, fechando, abrindo-se,como a de um peixe encalhado. Seus pulmões vazios arderam da falta de ar até que finalmentetodo o corpo deu um solavanco. Ele respirou numa lufada dolorosa pelo tecido obstrutivo docapuz. Obrigando-se a levantar a cabeça, ele soltou um último grito de desespero total edefinitivo.

— WWWWWWWWWWWIIIIIILLLLLLLLLLLLLLL!

Will ficou surpreso ao descobrir que cochilara de novo. Ele acordou, desorientado e sem fazeridéia de quanto tempo realmente dormira, enquanto uma vibração surda e distante o agitou. Nãoconseguia situar o que era, e de qualquer forma ele foi inundado pela realidade fria e dura dadecisão de ir para as Profundezas. Era como se tivesse acordado de um pesadelo.

Ele viu Imago agachado junto ao poço, inclinando a cabeça para o som, escutando. Depoistodos eles ouviram muito bem; o trovão distante ficava cada vez mais alto a cada segundo, atéque começou a reverberar na câmara. Por orientação de Imago, Will e Cal aproximaram-sevacilantes da abertura e se prepararam. Enquanto os dois sentavam-se com as pernas penduradasna beira, ao lado deles Imago inclinava a cabeça e os ombros para o poço, pendurando-se aomáximo que podia.

— Vira a curva devagar — eles o ouviram gritar, e o barulho ficou cada vez mais intenso,até que toda a câmara vibrava em volta deles. — Lá vem ele. Bem no horário! — Ele se puxoupara fora, ainda observando os trilhos abaixo e se ajoelhando entre os meninos.

— Têm certeza de que é o que vocês querem? — perguntou-lhes Imago.Os meninos se olharam e assentiram.— Temos certeza — disse Will. — Mas Chester...?— Já lhe falei, não se preocupe com ele — disse Imago com um sorriso que encerrava o

assunto.A câmara agora tremia com o som do trem que se aproximava, como se milhares de

tambores estivessem batendo na cabeça dos três.— Façam exatamente o que eu disse... precisa ser cronometrado à perfeição, então quando

eu disser pulem, vocês pulam! — orientou Imago.A câmara se encheu do veneno acre de enxofre. Depois, enquanto o rugido do motor

chegava a um crescendo, um jato de fuligem saiu pela abertura como um gêiser preto. PegouImago direto na cara, borrifando-o com sujeira e fazendo-o piscar. Todos tossiram com a fumaçaespessa e pungente que inundava o Caldeirão, engolfando-os.

— PREPARAR... PREPARAR... — gritou Imago, atirando as mochilas no escuro abaixodeles. — CAL, PULE!

Por uma fração de segundo Cal hesitou e Imago de repente o empurrou. Ele caiu no poço,uivando de surpresa.

— VÁ, WILL! — gritou Imago de novo, e Will se jogou da beira do poço.As laterais passaram num raio e depois ele estava lá fora, caindo num vórtice de barulho,

fumaça e escuridão, os braços e pernas chocalhando e uma luz branca e pura explodiu em voltadele, uma luz que ele sequer podia compreender. Pontos luminosos pareciam saltar sobre elecomo estrelas cadentes e, por um momento muito curto, ele realmente se perguntou se tinhamorrido.

Estava deitado e imóvel, ouvindo a batida ritmada do motor em algum lugar acima e oritmo das rodas enquanto o trem ganhava velocidade. Sentiu o vento no rosto e observou aslongas tiras de fumaça passarem por ele. Não, isto não era um paraíso industrial, ele estava vivo!

Resolveu não se mexer por um momento, enquanto mentalmente checava a si mesmo,certificando-se de que não tinha quebrado nenhum osso além de sua lista já próspera de lesões.Inacreditavelmente, além de alguns poucos arranhões, tudo parecia estar intacto e funcionandobem.

Ficou deitado ali. Se não estava morto, não conseguia entender a luz forte e fluente queainda via ao redor, como uma pequena aurora. Ele se colocou sobre um cotovelo.

Incontáveis globos luminosos, do tamanho de bolas de gude grandes, rolavam em volta do

chão arenoso do trilho, chocando-se e quicando uns nos outros em trajetos ao acaso. Algunsficaram presos nos barriletes do chão e se escureciam um pouco ao serem tocados, até que sedesprendiam e pulavam em seu caminho de novo, lampejando mais uma vez.

Depois, Will olhou para trás e encontrou os restos do engradado e o envoltório de palha.Tudo ficou claro. Sua queda tinha quebrado uma caixa de globos luminosos, que se abriu quandoele pousou. Agradecendo por sua sorte, sentiu-se animado e serviu-se de vários punhados dasluzes, enfiando-as nos bolsos.

Ficou de pé, equilibrando-se contra o movimento do trem. Embora a fumaça fedorenta seespalhasse espessa em volta dele, os globos soltos iluminavam o vagão com tal efeito que eleconseguia vê-lo em detalhes. Era enorme. Devia ter quase trinta metros de extensão e metadedisso de largura, muito maior e mais sólido do que qualquer trem que vira na Crosta. Eraconstruído de placas de ferro feito lajes, rudemente unidas. Os painéis laterais estavam amassadose cobertos de ferrugem, e o chão era gasto e empenado, como se o vagão tivesse séculos de usointenso.

Ele caiu novamente e, com os joelhos ralando no saibro do chão e o movimento do vagãojogando-o para os lados, foi em busca de Cal. Atravessou vários outros engradados feitos damesma madeira fina daquele que tinha esmagado e então, perto da frente do vagão, localizou abota de Cal encostada em outra fila de caixas.

— Cal, Cal! — gritou ele, andando freneticamente de quatro para o irmão. No meio de umamassa de madeira lascada, o menino ainda estava imóvel, parado demais. Seu casaco estava sujode um líquido escuro e Will pôde ver que havia algo errado em seu rosto.

Temendo o pior, Will gritou mais alto. Sem querer esbarrar em Cal, caso ele estivessegravemente ferido, ele subiu, rápido, ao alto dos engradados. Com medo do que estava prestes aver, ergueu devagar um globo luminoso acima da cabeça de Cal. Não parecia bom. Seu rosto e ocabelo estavam pegajosos de uma polpa vermelha.

Will estendeu a mão com cuidado e estava tocando a vermelhidão úmida na face do irmãoquando percebeu as formas verdes e quebradas espalhadas em volta dele. E havia caroços presosna testa de Cal. Will retirou a mão e sentiu o gosto dos dedos. Era melancia! Ao lado de Cal, outroengradado quebrado. Enquanto Will o afastava para ganhar espaço, tangerinas, peras e maçãscuspiram para fora. O irmão evidentemente teve uma queda macia, esmagando engradados defrutas.

— Graças a Deus — repetia Will ao sacudir Cal delicadamente pelos ombros, tentandoagitar a forma flácida. Mas a cabeça dele tombava sem vida de um lado para outro. Sem saber oque fazer, Will pegou o punho do irmão para verificar a pulsação.

— Me solta, sim! — Cal puxou o braço para longe de Will enquanto abria lentamente osolhos e gemia, cheio de autopiedade. — Minha cabeça dói — reclamou ele, esfregando a testaternamente. Levantou o outro braço e olhou confuso para a banana em sua mão. Depois sentiuum cheiro fragrante de frutas em volta e olhou para Will sem compreender.

— O que aconteceu? — gritou ele por sobre o estrondo do trem.— Uma sorte do caramba, você caiu no vagão-restaurante! — Will ria.— Hein?— Não importa. Tente se sentar — sugeriu Will.— Daqui a pouco. — Cal estava grogue, mas parecia não estar ferido, a não ser por alguns

cortes e hematomas e um banho farto de suco de melancia. Então Will engatinhou de volta aosengradados e começou a investigar. Ele sabia que devia pegar as mochilas nos vagões na frente,mas não havia pressa. Imago disse que seria uma longa viagem e, de qualquer forma, suacuriosidade o estava dominando.

— Eu vou... — gritou ele para Cal.— Quê? — Cal colocou a mão em concha na orelha.— Explorar. — Will fez a mímica.— Tudo bem! — gritou Cal para ele.Will andou pelo mar desordenado de globos luminosos na traseira do vagão e subiu no

último painel. Espiou o engate entre os vagões e o brilho polido dos trilhos muito usadosdisparou hipnoticamente por baixo. Depois olhou o vagão seguinte, só a um metro de distância e,sem parar para pensar, guindou-se por sobre o espaço. Graças ao movimento do trem, foidesajeitado, mas ele conseguiu atravessar e se escarranchou nos dois últimos painéis, depois nãoteve alternativa a não ser pular.

Ele caiu no vagão seguinte e rolou sem controle no chão até parar junto a uma pilha desacos de lona. Não havia nada digno de nota a não ser mais algumas caixas a meio caminho dali.Então, engatinhou para a parte de trás e ficou de pé novamente. Tentou ver o final do trem, masa combinação de fumaça e escuridão tornava isto impossível.

— Quantos são? — gritou Will para si mesmo ao trepar no último obstáculo. À medida querepetia o processo ao longo de sucessivos vagões, ele finalmente pegou o jeito e descobriu quepodia pular e se equilibrar antes de cair. Estava consumido de uma curiosidade ardente paraencontrar o final do trem, mas ao mesmo tempo preocupado com o que podia achar. Ele foialertado por Imago de que era mais provável que houvesse um colono no vagão de segurança,então precisava seguir com cuidado.

Havia saltado para a beira do quarto vagão e engatinhava por um encerado frouxo quandoalguma coisa se agitou atrás dele.

— O que...? — Apavorado por ter sido flagrado, Will impeliu o calcanhar nas sombras coma maior força que pôde. Desequilibrado, o chute não foi tão eficaz quanto ele esperava, masdefinitivamente tinha atingido alguma coisa sob o encerado. Ele se preparou para golpearnovamente.

— Me deixa em paz! — reclamou uma voz fraca, e o encerado voou e revelou uma formaagachada no canto. Will de imediato ergueu o globo luminoso.

— Ei! — gritou a voz, tentando proteger o rosto da luz.Ele pestanejou para Will, as manchas de lágrimas delineadas na camada de sujeira e carvão

das bochechas. Houve uma pausa e um arfar de reconhecimento, e seu rosto se abriu no sorrisomais largo que se pode imaginar. Era um rosto cansado e tinha perdido grande parte de suagordura, mas era inconfundível.

— Oi, Chester — disse Will, pulando para o lado do amigo.— Will? — gritou Chester, sem acreditar no que estava vendo. Depois, a plenos pulmões,

ele gritou de novo: — Will!— Não achava que eu ia te deixar na mão, não é? — gritou Will. Will agora entendeu o que

Imago tinha em mente. Ele sabia que Chester ia para o Desterro, mandado às Profundezas neste

mesmo trem. O velhaco astuto sabia disso o tempo todo.Era impossível falar com todo o barulho do motor veloz acima deles, mas Will ficou

contente só por se reunir a Chester. O garoto abriu o maior dos sorrisos, deleitando-se numaonda de alívio pelo fato de o amigo estar seguro. Ele se encostou no último painel do vagão efechou os olhos, cheio da sensação mais intensa de exaltação porque, enfim, depois da agonia depesadelo em que se encontrara, acontecera uma coisa boa, algo tinha saído bem. Chester estavaseguro! Isso significava o mundo para ele.

E, acima dê tudo, ele estava sendo conduzido para o pai, para a maior aventura de sua vida,em uma jornada a terras desconhecidas. Em sua mente, o dr. Burrows era a única parte da vidapassada a que podia se agarrar. Will estava decidido a encontrá-lo, onde quer que estivesse. Edepois tudo ficaria bem de novo. Todos ficariam bem: ele, Chester e Cal, todos juntos, com seupai. A idéia brilhou em sua mente como o mais cintilante dos faróis.

De repente, o futuro não parecia tão assustador.Will abriu os olhos e se inclinou para a orelha de Chester.— Então amanhã não tem escola — gritou ele.Os dois deram uma gargalhada desamparada, tragada pelo trem que continuava a ganhar

velocidade, vomitando fumaça escura para trás, carregando-os da Colônia, para longe deHighfield e para longe de tudo o que eles conheciam, acelerando para o coração da Terra.

Epílogo

O suave calor do sol caía em um belo dia do início do Ano novo, tão balsâmico que podia serprimavera. Sem a obstrução de prédios altos, a perfeita tela azul do céu era marcada somentepelas partículas de gaivotas que caíam e subiam nas correntes termais de ar ao longe. Se não fossepela invasão ocasional do trânsito que passava na rua à margem do canal, podia-se ter imaginadoque era algum lugar no litoral, talvez uma aldeia de pescadores sonolenta.

Mas esta era Londres e as mesas de madeira do lado de fora do bar começavam a se encherenquanto o chamariz do clima bom tornava-se tentador demais. Três homens de terno escuro erostos anêmicos de trabalhadores de escritório saíram pelas portas e sentaram-se com suasbebidas. Inclinando-se por sobre a mesa, cada um tentava superar o outro ao falar alto demais erir com estridência, como gralhas numa rixa. Ao lado deles, estava um grupo diferente, estudantesde jeans e camisetas desbotadas que mal faziam um ruído que fosse. Estavam quase sussurrandoentre eles ao tomar as cervejas e enrolar o ocasional cigarro.

Sozinho no banco de madeira na sombra do prédio, Reggie tomou a cerveja, a quarta dahora do almoço. Sentia-se meio tonto, mas não tinha nada planejado para a tarde e decidira seregalar. Pegou um punhado de arenque frito na tigela ao lado e mastigou os pequenos pedaços depeixe pensativamente.

— Oi, Reggie — disse uma das garçonetes, os braços cheios de copos empilhadosprecariamente enquanto recolhia os vazios.

— Oi, e aí? — respondeu ele hesitante, já que nunca era muito bom para se lembrar donome dos empregados do bar.

Ela sorriu para ele com simpatia, depois abriu a porta com o quadril para entrar. Reggievinha de vez em quando há anos, mas recentemente tornara-se um freqüentador assíduo,aparecendo quase todo dia para seu prato preferido, uma tigela de arenque ou bacalhau e fritas.

Ele era um homem tranqüilo e reservado. Além do fato de ser muito generoso nas gorjetas,o que o destacava dos fregueses comuns era sua aparência. Tinha o cabelo incrivelmente branco.Às vezes o usava como um motoqueiro velho, trançado numa serpente alvejada que descia pelascostas, mas em outras ocasiões ele ficava solto, fofo como o pêlo de um poodle depois do banho.Nunca estava sem seus óculos de sol muito escuros, qualquer que fosse o clima, e suas roupaseram estranhas e antiquadas, como se as tivesse pego emprestadas de um figurinista de teatro.Dada sua aparência excêntrica, os empregados do bar chegaram à conclusão de que ele devia ser

um músico desempregado, um ator “aposentado” ou até um artista não descoberto, já que haviatantos naquela região.

Ele se encostou na parede, suspirando satisfeito quando apareceu uma jovem magra de carasimpática e um cachecol de algo dão florido na cabeça. Portando um cesto de vime, ela ia de mesaem mesa, tentando vender pequenos galhos de urze com o caule embrulhado em papel dealumínio. Era uma cena que podia ter saído de filmes vitorianos. Ele sorriu, pensando em comoera estranho que estes ciganos de rua ainda vendessem suas mercadorias inocentes, quando emvolta as grandes empresas promoviam implacavelmente suas marcas nos outdoors.

— Imago.O nome vagou para ele enquanto uma brisa soprava e um carro batido acelerava o motor

sem parar na esquina, as rodas guinchando. Ele estremeceu e olhou desconfiado para um velhoque lutava pela calçada com sua bengala. As bochechas do homem eram cobertas de um restolhocinza e espigado, como se ele tivesse se esquecido de fazer a barba pela manhã.

Enquanto a menina que vendia a urze passava roçando por ele com seu cesto, Imagodesviou os olhos do homem e voltou a examinar as pessoas na mesa. Não, ele só estava meioassustadiço. Não era nada. Deve ter sido imaginação.

Ele pôs a tigela de arenque no colo e se serviu de outro punhado, engolindo com um poucode cerveja. Isto é que era a vida! Ele sorriu consigo mesmo e esticou as pernas.

Ninguém viu quando ele se lançou na parede com um espasmo súbito e depois foi atiradopara fora do banco, a cara numa contorção grotesca. Ao cair no chão, seus olhos giraram nasórbitas e a boca se abriu, só por um instante, depois se fechou pela última vez.

Passou-se um longo tempo até que a ambulância chegasse. Como ele podia rolar da maca, osdois homens da ambulância decidiram carregar o cadáver rígido, um em cada ponta. A multidãode espectadores arfou com o espetáculo, murmurando enquanto o corpo de Imago, paralisadocomo uma estátua sentada, era levado à traseira da ambulância. E não havia absolutamente nadaque os homens da ambulância pudessem fazer quanto à tigela ainda agarrada na mão do cadáver,tão apertada que não conseguiram soltá-la.

Coitado do Reggie. Bastante insensíveis quando se tratava do bem-estar da clientela, osempregados do bar ficaram genuinamente perturbados com sua morte. Em particular porque acozinha ficou fechada e vários perderam o emprego. Mais tarde eles souberam que havia umcomposto obscuro de chumbo em sua comida; era uma ocorrência anormal, um peixeenvenenado em um milhão. Seu corpo simplesmente se apagou, o sangue coagulando comocimento de secagem rápida devido ao choque tóxico arrasador.

Na investigação, o legista não foi tão longe quanto à natureza do veneno. Na verdade ficoubastante desnorteado com os vestígios de substâncias complexas, das quais não tinham registronenhum.

Só uma pessoa, a garota que observava a ambulância do outro lado da rua, sabia a verdade.Ela tirou o cachecol e o jogou na sarjeta, sacudindo o cabelo preto com um sorriso de satisfaçãoenquanto colocava os óculos escuros e inclinava a cabeça, cantando suavemente: “Sunshine... Youare my sunshine...”

Ela ainda não tinha terminado...

Dedicamos este livro a nossos familiares e amigos, que sofrem há muito, e nos suportaram em toda nossa prolongadaobsessão, e a Barry Cunningham e Imogen Cooper, da Chicken House, por seu estímulo interminável e por nosmanter na linha, e a Peter Straus, da Rogers, Coleridge and White, por ajudar dois caras que por acaso vagavam pelachuva, e a Kate Egan e Stuart Webb, e a nosso amigo Mike Parsons, que mostrou uma bravura inacreditável.