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João Dal Poz A Etnia E A Terra Notas Para Uma Etnologia Dos Índios Arara (Aripuanã - MT) Série Antropologia, 4 Universidade Federal de Mato Grosso Instituto de Ciências Humanas e Sociais

DalPoz1995-Etnia Terra Arara

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A Etnia E A Terra

Joo Dal Poz

A Etnia E A Terra

Notas Para Uma Etnologia Dos ndios Arara (Aripuan - MT)

Srie Antropologia, 4

Universidade Federal de Mato Grosso

Instituto de Cincias Humanas e Sociais

Departamento de Antropologia

Editora Universitria da UFMT

A Etnia E A Terra

Notas Para Uma Etnologia Dos ndios Arara (Aripuan - MT)

Joo Dal Poz

Departamento de Antropologia

ICHS/UFMT

Srie Antropologia, 4

Etnohistria

1995

EdUFMT

ndiceIntroduo

So ndios?3

Captulo 1

O xodo: Do Seringal Cidade8

Captulo 2

Uma Etnia Insolvel 25

Captulo 3

A Voz da Memria33

Captulo 4

A Terra, A Estrada e o Progresso43

Bibliografia51

Apndices

1. Vocabulrios55

2. Dados Demogrficos59

3. Mapas60

Introduo

So ndios?

Ainda hoje se mantm o mito de que os aborgenes, nesta parte da Amrica, limitaram-se a assistir ocupao da terra pelos portugueses e a sofrer, passivamente, os efeitos da colonizao.

Florestan Fernandes, 1975

Esta uma coletnea de artigos e entrevistas sobre os ndios Arara que vivem no municpio de Aripuan, a noroeste do Estado de Mato Grosso. Trata-se aqui, principalmente, de passar a limpo uma certa questo que, desde que os conheo, a eles colocam sem cessar: no seriam apenas seringueiros, apenas caboclos miscigenados, beiradeiros? ndios? Se me disponho a respond-la, no me engano porm com as intenes que esto a embutidas. Sei muito bem que no a fazem num desprendido exerccio intelectual ou mera curiosidade. No se trata, com efeito, de alguma especulao desinteressada sobre a formao tnica ou o processo histrico que caracterizou aquela populao regional: os que negam a indianidade aos Arara, sem sofismas, no pretendem mais que lhes negar o direito posse e ao usufruto das terras tradicionais.

negao, portanto, conjuga-se a obstinao sem disfarces de consolidar a apropriao e a explorao do territrio Arara, entre os rios Branco e Guariba. Uma campanha bem urdida que, das palavras s aes, tem cristalizado naquele municpio um panorama maniqueista, onde a simples afirmao da identidade indgena , de imediato, tomada como uma ttica conspiratria dos que se oporiam ao progresso da regio. Tal retrica pseudo-desenvolvimentista tem fomentado sobremaneira as agresses verbais e fsicas aos ndios e seus aliados. Ilustrativo a este respeito, numa espcie de manifesto assinado pelo sr. Policarpio Mestrinho Rondon de S e direcionado ao senador Jonas Pinheiro, temos a posio de um autoproclamado Grupo de Defesa da Amaznia (?):

Forjaram a tribo e os ndios, inventaram a aldeia e fabricaram a reserva indgena e tomaram posse usando violncia, invadindo as fazendas.

E logo adiante, uma exposio inequvoca dos motivos que orientam suas invectivas:

A populao de Aripuan sabe que precisa urgente da estrada. Sabe que no pode continuar sendo fim de linha e coberto de reservas indgenas, ecolgicas e extrativistas por todos os lados (...). Aripuan sabe, que a BR-174 a redeno de todo o Noroeste do Estado (Rondon de S, 1995).

No hei de perguntar aqui, por desnecessrio, a quem serve este discurso acusatrio ou mesmo acerca da concepo messinica (e predatria) de desenvolvimento que veicula. Cabe interrogar, todavia, sua realidade emprica, histrica e etnogrfica. E combater, isto sim, a manipulao ideolgica que faz dos conceitos e dos preconceitos, esta apologia etnocntrica do progresso que aqui e ali ressoa como um solerte e anacrnico neo-bandeirantismo.

Contudo devo confessar, para que fiquem assentadas as bases epistemolgicas desta investigao - pois assim est colocado o problema no campo das cincias sociais, se no de todo e qualquer conhecimento - que a reflexo antropolgica no se faz tampouco com o olhar vago e desinteressado. Os antroplogos, definitivamente, em nada se parecem com algum desalmado colecionador de relquias e variedades bizarras ou uma espcie acadmica do personagem Indiana Jones. No somente no sentido que polemicamente defendeu Darcy Ribeiro (1979), para quem a Antropologia, para no ser simplesmente intil ou colonialista, teria como obrigao se interessar pelo destino daqueles a quem estuda. Mas fundamentalmente porque, como nos ensina Roberto Da Matta (1981), ao tomar como ponto de partida a posio e o ponto de vista do outro, a Antropologia se realiza como um profundo exerccio de comutao e de mediao, como uma experincia genuna de relativizao de conceitos e de valores. E deste ngulo, ao buscarmos significados que extrapolam nossos prprios quadros culturais, nada do que humano pode nos deixar insensveis, nem alheios ou descompromissados.

As descobertas antropolgicas, basicamente a constatao da rica diversidade cultural que caracteriza a humanidade, tm significado sobretudo um aprimoramento intelectual e moral da prpria civilizao ocidental, notadamente porque nos permitiu v-la como uma entre tantas outras escolhas possveis - e por isto mesmo, sujeita a toda sorte de deslocamentos e mutaes. No h, desta perspectiva, nenhuma hierarquia absoluta, nem qualquer esquema evolutivo ou destino histrico inexorvel ao qual as sociedades humanas estariam a priori vinculadas ou submetidas. Demasiadamente humanos em tudo, somos portanto de alguma maneira os espritos livres - embora talvez no agradasse a Nietzche este jeito de enunciar o porvir incessante de conceitos e de valores.

E aqui voltamos ao caso dos Arara. A rigor, a denegao da identidade tnica por seus inquisidores tem se apoiado particularmente no seguinte pressuposto: uma vez aculturados e a servio dos seringais, os ndios no seriam mais ndios, pois j se civilizaram. Ao que parece, cobram destes ndios, que sempre foram louvados por mansos e pacficos, cuja propenso civilizao encantou a muitos, uma feio diferente, um modo de ser original e extico. moda kafkiana, se me permitem a expresso, as mudanas sociais e culturais, que no passado foram impostas aos Arara a todo custo, esto no presente sendo argidas como contraprovas de sua identidade. Inconvenientes antes, os costumes indgenas se tornaram agora indispensveis para que os Arara no sejam declarados extintos, sua revelia.

Uma mudana arbitrria e paradoxal nas regras do jogo? A ambigidade entretanto apenas a aparncia das coisas, uma vez que o jogo das regras atende primordialmente s prprias regras da conquista civilizatria. Como neste discurso arrogante de um socilogo da FUNAI, que tentava pressionar os Arara a desistir de suas reivindicaes territoriais (entre elas a rea onde est um cemitrio), para quem a sujeio cultural demonstraria a condio inequvoca de povo definitivamente conquistado e dominado:

Mas vocs dizem: no, a terra foi nossa. Mas o Brasil todo foi dos ndios. (...) Tem que ver isso tambm, gente. A lgica do branco. O branco o vencedor, ou a gente esqueceu isso? Est na histria, no adianta ignorar. Os ndios foram vencidos, gente. O que se faz agora tentar resgatar esse respeito a uma cultura que tem a. Mas os ndios foram vencidos pelos brancos. Foram vencidos no sentido de perderem o domnio sobre tudo isso que est a. Isso a tudo era domnio dos nativos daqui. E perderam o domnio, como que no foram vencidos? Vocs [os Arara] foram obrigados a aprender a falar portugus. O que isso? Isso uma demonstrao de vencidos. Porque quem vitorioso no tem que aprender a falar a lngua de ningum. Quem vencido obrigado a se adaptar ao vencedor (apud Silva, D. L. da).

De nenhuma forma elptico, os argumentos acima desvendam antes de tudo quem os enuncia e a posio de seu autor nas relaes de poder constitudas, portanto suas convices e seu autoritarismo - analisarei isto adiante, no Captulo 2. Detenho-me a examinar, neste momento, estas outras questes que ele tambm suscita, cuja importncia se pode aquilatar pelo grau de seu enraizamento na opinio pblica mediana. Em primeiro lugar, se o fato de aprender a falar portugus (e andar vestido, usar dinheiro, possuir carro etc) denota uma dissoluo, um desaparecimento de todas e quaisquer diferenas culturais e tnicas. Segundo, se as relaes entre ndios e brasileiros, como h quinhentos anos, devem estar hoje e sempre determinadas pela lgica colonial, de conquista e destruio do Outro.

Comeando por esta ltima, prefiro acreditar que no, e que a existncia de tantos povos indgenas no Brasil signifique um valor positivo a nos engrandecer diante da humanidade. E vale notar a este respeito que no se conhece, em toda a tradio legislativa brasileira, qualquer referncia, mesmo remota, a um suposto direito dos vencedores... Mesmo porque, veremos no Captulo que encerra esta coletnea, a histria ainda no chegou ao seu final.

Quanto segunda questo, h que se observar, j nos dizia sabiamente Lvi-Strauss (1976) em seu ensaio Raa e Histria, que a diversidade das culturas humanas no deve ser concebida de maneira esttica, porm como uma funo das relaes que as sociedades mantm umas com as outras, num perptuo movimento de distanciamentos e de aproximaes. E porque a cultura, ao contrrio do que supe o senso comum, no sendo um mero aglomerado de traos inertes, antes se traduz como um sistema sujeito a alteraes em contextos mais abrangentes e plurais. E que no caso das sociedades multitnicas, a exemplo da brasileira, as referncias culturais dos grupos e segmentos sociais em disputa econmica ou poltica estaro continuamente sendo reelaborados, reordenados e mobilizados. No podia ser de outra forma, j que nenhuma sociedade ou pretende ser uma ilha ou uma mnada impenetrvel.

Mas se no a cultura, algum talvez pergunte, ento o que fica, o que permanece como garantia de uma identidade indgena? Responderia com as palavras de Manuela Carneiro da Cunha (1994), para quem pode-se entender a identidade [tnica] como sendo simplesmente a percepo de uma continuidade, de um processo, de um fluxo, em suma, uma memria.

So estes os termos pelos quais procurei, o mais amplamente possvel, inventariar os dados histricos e etnogrficos existentes sobre os Arara, no sentido de rastrear e ilustrar um processo necessariamente contraditrio: de incio, a desarticulao social promovida pela sua insero nos seringais; e mais recentemente, o revival tnico em torno da reconquista e retorno a seu territrio.

Conheci Jos Rodrigo e Ana Anita Vela e seus filhos em Aripuan, em fins de 1980. Quando chegaram cidade, expulsos do rio Branco, em condies muito ruins (alguns deles com tuberculose), foram acolhidos pela gente simples que ali vivia, com generosidade: alimentos, tbuas para construir a casa, internao hospitalar... E por uns poucos anos tentaram, neste novo ambiente, reconstruir sua vida. Algumas outras famlias Arara j moravam em Aripuan. Mas nos anos seguintes, a estas vieram se juntar mais famlias igualmente enxotadas do beirado do rio Aripuan pelos latifundirios. O sonho de uma vida melhor na cidade, deles e de tantos outros seringueiros, no passava de iluso: vivendo de biscates, passando dificuldades, discriminados. Restava-lhes como alternativa lutar por seus direitos. Acompanhei este processo, s vezes mais outras vezes menos prximo, e assim fui percebendo uma certa costura sutil entre,de um lado, as lembranas de outrora e de outro, a disposio e a fora de vontade que animava Anita, Rodrigo e alguns poucos. Despojados de tudo, exceto da memria e das palavras - e foi justamente em torno delas que os Arara se reuniriam para retornarem s suas terras.

No Captulo 1 disponho as fontes e os dados sobre o relacionamento dos ndios com os seringais da regio. Procuro mostrar que, sob a denominao Arara, foram designados pelo menos trs grupos que se acercaram dos seringueiros. No Captulo 2 discuto os resultados de um Grupo de Trabalho da FUNAI, cuja concluso foi que estas etnias estariam extintas e que seus remanescentes, miscigenados, aculturados e dispersos, numa frmula deveras maquiavlica - mas pouco sociolgica -, seriam apenas os rfos de uma nao. O Captulo 3 traz transcries de algumas entrevistas, enfocando aspectos variados da histria dos Arara, seus personagens principais, seus deslocamentos, suas idiossincrasias. E por fim, o Captulo 4 descreve sucintamente o processo de retomada das terras pelos Arara e comenta os problemas mais recentes.

Uma advertncia aos leitores: incoerncias e contradies h e muitas, e podem ser facilmente constatadas pois no me investi a suprimi-las. Tal inconsistncia nos dados, quando no devido totalmente a mim, parece resultar do prprio material com o qual trabalhei: a memria social e individual, somos obrigados a reconhecer, percorre na verdade atalhos tortuosos quando no aleatrios. O que se conserva responde a funes complexas que, de fato, no se encaixam perfeio s demandas presentes, uma vez que, por definio, tem sua origem em um tempo que se foi - e do qual , simultaneamente, seu portador. Todavia, embora descontnuas, atadas a paixes e sujeitas aos melindres do tempo, por isso mesmo as recordaes nos revelam facetas por vezes inesperadas dos acontecimentos passados que interpretam - e a isto devem propriamente seu inigualvel poder de seduo.

Captulo 1

O xodo: Do Seringal Cidade

Uma investigao etnolgica sobre os chamados ndios Arara, cujo habitat est delimitado pelos rios Branco e Guariba, no municpio de Aripuan (MT), requer, sobretudo, uma leitura cautelosa das fontes histricas, de maneira a interrogar numa perspectiva ampla as relaes tnicas a envolvidas. Pois sob tal etnnimo, ao que tudo indica, vieram abrigar-se diversos grupos indgenas que, a partir do incio do sculo XX, passaram a conviver e a trabalhar nos seringais que se instalaram nos vales do rio Aripuan e seus afluentes.

A denominao Arara, devo salientar, j era de uso corrente nesta zona do mdio Aripuan e ao longo do Madeira desde a segunda metade do sculo passado, sendo ento empregada para, notadamente, designar ndios aguerridos que hostilizavam feitorias e vilas, redutos missionrios e aldeias Mura. A alcunha da em diante foi atribuda a vrios outros povos encontrados na regio, o que poderia ocasionar controvrsias, por vezes insanveis, para uma identificao unvoca das etnias que a habitavam. Por esta razo, um inventrio histrico, isto , a consulta abrangente tanto das fontes documentais como da memria que se transmitiu de uma gerao outra (uma vez que os fatos aqui tratados so, por assim dizer, ainda recentes, pois concernem, sem nenhuma exceo, ao presente sculo), parece ser de alguma valia para a compreenso do estado atual daquela populao indgena.

As primeiras notcias

J em 1914, por ocasio da Expedio Roosevelt-Rondon que explorou o atual rio Roosevelt, afluente do rio Aripuan que at aquela data os seringueiros conheciam por Castanha ou Castanho, o ento coronel Cndido Rondon soube da existncia de ndios chamados Araras que viviam no rio Guariba. Estes, diversamente dos grupos hostis que habitavam o alto Aripuan, teriam permitido o estabelecimento de civilizados no seu territrio. Acerca destes Arara, apresentou o coronel Rondon os seguintes comentrios durante as Conferncias que pronunciou no Rio de Janeiro em 1915:

Ha, porm, abaixo da mencionada cachoeira (Inferno), um affluente, o Guariba, regularmente povoado pela nossa gente, no obstante existirem nelle tambem muitos indios. Segundo informaes do Sr. Carip, que o maior proprietario do Roosevelt, os selvicolas desse affluente pertencem a uma tribu differente da que hostilisa os seringueiros no rio principal; aquelles so os denominados Araras, e os outros sero, provavelmente, de alguma tribu da grande nao dos Mras (Rondon, 1916: 108-109).

Conforme os relatos que Rondon (op cit, pg. 104) recolheu dos moradores do Roosevelt, sabe-se ainda que os seringueiros, vidos por ltex abundante, teriam comeado a subir o rio Aripuan e seus afluentes a partir de 1879. Do que sucedeu nestes trinta e tantos anos, at que viesse a expedio de Rondon, nada ainda se apurou, seja porque se extraviaram os documentos relativos a tais acontecimentos seja porque destes, mais provavelmente, os primeiros conquistadores no pretenderam nenhum registro. Certo que, a exemplo do mdio Madeira e outras zonas extrativistas na Amaznia, fatalmente esta frente pioneira no deixaria de desencadear conflitos e violncias incalculveis pois toda aquela imensa regio, como se depreende das notcias que de l vieram nos anos seguintes, estava ainda densamente povoada por inmeros e numerosos grupos indgenas.

E neste ponto uma primeira distino deve ser feita, a saber, entre os Arara do Guariba, que no hostilizavam os seringueiros, e as outras etnias que viviam nos lados do Aripuan. Tal assertiva j a havia feito Rondon, por ocasio de sua passagem pela regio. O Mapa Etno-Histrico de Curt Nimuendaju (1981), por sua vez, traz a este respeito dados que confirmam a existncia de pelo menos duas etnias na rea: uma primeira referncia, datada de 1918, sobre os Arara no alto Guariba; e outra, de 1929, assinalando um grupo sob a denominao genrica de ndios margem direita do rio Aripuan, na altura da divisa dos Estados do Mato Grosso e Amazonas.

As referncias no Mapa de Nimuendaju, provavelmente fornecidas por Agesilo Carvalho Guilhon e Henrique Magnani, servidores do ento Servio de Proteo aos ndios - SPI, nos conduzem s primeiras evidncias etnogrficas. Veremos adiante quais outros indcios podem ser apresentados, de modo a certificar as origens mltiplas desta populao que hoje identificada e se identifica como Arara.

Seringais e seringueiros

A frente extrativista, que passou a explorar os ricos seringais e castanhais nativos, se espalhou rapidamente e ocupou tanto os rios principais como seus tributrios. Estava composta, em sua maior parte, por peruanos, bolivianos, venezuelanos, cearenses e alguns amazonenses - e, pouco tempo depois, tambm por ndios oriundos dos povos que ali viviam.

A firma J. Negreiros & Cia., uma das maiores empresas envolvidas na produo e na comercializao da borracha por toda a Amaznia, a estava com um grande nmero de aviados (ou fregueses) e bateles (barcos) para o transporte fluvial at Manaus. Sua atuao envolveu, direta ou indiretamente, vrios grupos indgenas que viviam nos rios Roosevelt e Guariba. J no rio Aripuan e suas adjacncias, a ao do peruano Alejandro Lopes que merece maior ateno. Ele se tornou proprietrio de todos os seringais compreendidos entre o salto de Dardanellos e a cachoeira de Samama, reinando como um senhor absoluto da vida e da morte, de seringueiros e de ndios.

Sob as ordens de dom Alejandro, bandos armados dizimaram sistematicamente os grupos indgenas que resistiam ocupao de seus territrios. Alguns destes fatos chegaram a ser denunciados Inspetoria do SPI, sediada em Manaus, a exemplo do massacre em 1927 de ndios Iam (os atuais Cinta Larga) no alto Aripuan, a montante da cachoeira de Dardanellos, no qual foram barbaramente mortos dezenas de ndios. O inqurito policial, mesmo aps a oitiva das testemunhas, no teve todavia seguimento em razo das injunes que fez Caetano Cabral, scio e amigo do seringalista Lopes. Ele solicitou a interveno de polticos junto ao presidente do Estado do Amazonas e, ao mesmo tempo, dissuadiu as principais testemunhas atravs de ameaas, intimidao e suborno. Como constatou o inspetor do SPI Bento Lemos, o poder do peruano dinheiroso e perverso se estendia muito alm do longnquo Aripuan (SPI, 1929: 180-183).

Convm observar, contudo, que a vrios grupos indgenas parece ter surgido como alternativa, provavelmente uma escolha estratgica diante do avano contnuo dos seringueiros sobre seu territrio, a aproximao amistosa e, de uma ou outra forma, sua prpria incorporao empresa extrativista. Este seria o caso tanto dos ndios Vela, sobrenome que identifica os atuais Arara do rio Branco, como tambm de ao menos dois outros grupos no Guariba, um do igarap Novo e outro do Moacir, os quais buscaram deliberada ou forosamente o convvio com os seringueiros. Para descrever o processo histrico de sua insero nos seringais, pois esta a tarefa que aqui pretendo, alm da consulta aos poucos documentos existentes, ser necessrio interpret-lo luz da memria viva dos ndios e dos antigos seringueiros.

Uma primeira observao. A vida econmica e social nos seringais teria atravessado dois perodos bastante distintos: uma poca urea, de grande fartura; e outra, de derrocada do extrativismo, quando comearam a arruinar e a abandonar as colocaes mais distantes. Este processo teria se intensificado com a venda das terras ao comendador Manuel Pedro de Oliveira em meados da dcada de 50 (Santos, V. L. dos, 1987: 11).

Se tal trajetria de decadncia em nada parece diferir do prprio ciclo produtivo da borracha na Amaznia (cf. Arnaud & Cortez, 1976: 24); esta no foi a opinio que dela fizeram ndios e seringueiros, que antes atriburam seu empobrecimento s prticas extorsivas impostas pelo novo proprietrio do alto Aripuan. No depoimento aos padres Jlio Hebinck, fransciscano americano, e Jlio Vitte, secular francs, por ocasio de uma viagem de desobriga que realizaram em 1971 (subindo o rio desde a cidade de Novo Aripuan (AM) ao salto de Dardanellos), dois velhos moradores assinalaram que havia no tempo de Alejandro Lopes cerca de 1.000 facas (seringueiros) e 500 machados (derrubadores da rvore caucho). Tendo chegado quela regio em 1919, estes moradores acrescentaram:

Naquela poca vivia-se muito melhor do que hoje. Nada faltava, estiva farta, manteiga, queijo etc... de 1930 para c dizia o velho Antnio, chamado Paraiba, nunca mais vi a cor do queijo, nem por sonho! (Hebinck & Vitte, 1971: 2)

De Jacaretinga ao salto de Dardanellos, o alto Aripuan era ento referido pelos prprios seringueiros como rio do cativeiro pois, devido aos preos exorbitantes que vigoravam no seringal de Manuel Pedro de Oliveira, eles no conseguiam tirar saldo e ficavam merc do patro Pedro de Oliveira. Sem assistncia mdica, sem escolas, sem mantimentos, foi assim que os padres Hebinck e Vitte os encontraram em 1971:

Neste trecho do rio existem 60 casas, das quais 31 abandonadas e 29 habitadas. O sonho dos moradores dessas 29 casas sair o quanto antes! At um patro que dizia ganhar um bom dinheiro, pois tudo falta: mais de ano sem arroz, mses sem caf, sem medicamentos, sem fazenda. Aqui dizia uma patroa, a pior coisa do mundo, quando se chega aqui, s falta morrer, aqui no tem uma chicara de caf! Como sair do cativeiro? Os patres, dizem os seringueiros, no do conduo nos seus bateles. O jeito fazer uma canoa, e arriscar a vida nas 22 cachoeiras (idem, pg. 8).

O estado de submisso em que se viviam os seringueiros iria, inclusive, surpreender vivamente o ento recm nomeado prefeito de Aripuan, Sebastio Otoni Sobrinho. Havendo visitado a sede municipal em meados de 1971, em seu primeiro relatrio ao governador do Estado, do qual extra o trecho abaixo, ele se detm numa descrio pormenorizada do esquema montado pelo seringalista, situao que intitula de escravatura feudal:

vez por outra ramos inquiridos com a seguinte pergunta: Ser Prefeito que o senhor agora ir conseguir derrubar a escravatura branca implantada pelo Manoel Pedro de Oliveira do Amazonas? Ento ao chegarmos ao Salto dos Dardanelos e abaixo dste, era o que mais ouvamos dos infelicitados escravisados (...).

Trata-se segundo informaes, de um todo poderoso seringalista de Manaus, que se diz proprietrio at acima do Salto dos Dardanelos, desde o rio Madeira. Os coitados foram trazidos, a maior parte do Nordeste, influenciados via de falsas propagandas de enriquecimento rpido, atravs da extrao do leite da seringueira e outros. Ao solt-los nos seringais, o fornecimento no vai alm de um pouco de farinha dgua, sal, algum quilo de acar, plvora e chumbo, algum anti-malrico e alguma coisinha a mais e de menor significncia.

Quando vem o capataz recolher o fruto da explorao (...) no ato do recebimento j vai descontado 30% sbre o valor da borracha como arrendamento do seringal, no falando o pso de suas balanas que so bastante discutveis. Nste ponto o miservel com sua famlia, j se encontram nus e valendo-se de uma qualidade de cco que por l existe em abundncia para alimentao, quando no logra pescar algum peixe, j que mais nada tm para se comer. A agora vem a segunda parte do drama: a sua produo vai levada a preos de misria, enquanto que o reabastecimento de roupas e gneros, aquele acima numerados o so preos de ouro. Resultado: da primeira entrega j fica o arrendatrio atingido por saldo negativo, s que desta feita ainda comprou alguma coisa em maior quantidade, mas da outra em diante o que o todo poderoso Manoel Pedro de Oliveira determinar. Da em diante nunca mais o infelicitado conseguir saldo. E se algum ousado vier a atingi-lo, a agora que...Vale a lei da selva! (Sobrinho, S.O. de C., 1971: 6).

As descries acima, ainda que excessivamente impressionistas, parecem todavia suficientes para o que se pretende, a saber, uma contextualizao do sistema extrativista que ento vigorava na regio do alto Aripuan, sistema no qual vieram os ndios a se inserir. Em quase tudo semelhante a tantos outros exemplos por toda a Amaznia - a no ser, talvez, pela presena proeminente de tantos peruanos, venezuelanos e bolivianos, como aqui se verificou -, a empresa seringalista, caracterizada pelo mecanismo do aviamento e pelas relaes de extrema submisso dos chamados fregueses ao patro do seringal ou ao marreteiro do rio (comerciante), iria moldar social e economicamente a vida regional, marcando de forma indelvel as populaes a ela submetidas, sejam os migrantes nordestinos ou as comunidades indgenas.

Os Arara do rio Guariba

Vejamos agora a procedncia dos grupos indgenas que foram incorporados a este sistema extrativista. Sob a denominao Arara, como se disse acima, o ento coronel Rondon j havia recebido em 1914 notcias de um grupo indgena no Guariba, que no hostilizava os seringueiros. Ouvindo o relato de antigos moradores deste rio, ainda que no seja possvel datar ou descrever com muita preciso os contatos iniciais entre ndios e seringueiros, encontrei fortes evidncias de ao menos dois grupos indgenas que, nesta rea, vieram a gravitar em torno dos barraces dos seringais: um proveniente do igarap Novo e outro do igarap Moacir.

Provavelmente na segunda dcada deste sculo um grande nmero de ndios se aproximou de um seringueiro no rio Novo, afluente da margem direita do Guariba. Cerca de trezentos foram ento levados para a colocao Alegria (local da atual ponte na estrada para o Projeto Filinto Mller) e ali utilizados pelo seringalista Pedro Adolfo, cuja rea de explorao de borracha se estendia da colocao Soledade (na atual divisa MT/AM) at o igarap Poo. Segundo o missionrio Valdez, haveria duas verses para estes acontecimentos:

Os primeiros contatos no Guariba teriam sido realizados pelo seringalista Pedro Adolfo, atravs de presentes deixados nas trilhas utilizadas pelos ndios. A velha Guilhermina, ndia Arara que saiu do Guariba ainda menina pequena, afirmou no entanto que teriam sido os prprios ndios que procuraram os seringueiros, pois estavam sendo atacados pelos Cinta Larga e Cabea Seca. Os ndios, em grande nmero, chegaram na casa de um seringueiro, os mais velhos na frente carregando suas flechas com a ponta para baixo (Valdez, 1984: 2).

Liderados por Caetano, Tibrcio e Chico Velho, que so os nomes que ento receberam, construram suas malocas e fizeram seus roados, espalhados em cerca de dez aldeias entremeadas s colocaes dos seringueiros. Caetano se tornaria uma espcie de patro junto aos seus patrcios, adquirindo inclusive um batelo para transportar a borracha e trazer de Manaus as mercadorias (Valdez, M., 1984: 2; Santos, V. L., 1987: 16-17). Saindo da colocao Alegria, estes Arara foram trabalhar no igarap Moacir com o seringalista Jernimo Marinho. Com a morte do seringalista, no entanto, teriam sido expulsos pelo novo proprietrio do seringal, Antnio Aleixo Moura, quando ento alguns se deslocaram para seringais prximos e outros retornaram aos locais das antigas aldeias. Mas o sarampo e a varicela, pelo que se sabe, teriam se encarregado de dizimar a maior parte deste contingente indgena.

Outras verses assinalam o igarap Moacir como habitat original deste grupo. Numa interessante pesquisa a cabo do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Aripuan, ao tratar especificamente da ocupao indgena da regio, foram registradas passagens da histria do patro indgena Caetano, que abaixo transcrevo:

Aproximadamente a 65 anos, no alto do Rio Guariba, localizada em suas margens, havia uma tribo de ndios conhecida por Araras. Na poca houve muitos atritos entre ndios e seringueiros que entraram para extrair borracha nos seringais da regio, houve casos de ndios matar seringueiros e seringueiros matar ndios. Na poca a situao era de vida ou morte.

Aconteceu ento que uma famlia de ndio Arara tinha um menino que na tribo recebia o nome primitivo de Gavio e este menino encontrou-se com um senhor conhecido por Manuel Macrio e passou a viver com os seringueiros. Os encontros entre Manoel Macrio e o menino Gavio se deram no Igarap Moacir, um afluente do rio Guariba. Manoel Macrio tinha vocao para civilizar ndios, e este menino, Gavio, foi mais tarde batizado, e levou o nome de Manoel Caetano. Com isto o menino Manoel foi motivo de aproximao de toda a tribo, que passou a viver em paz com os seringueiros. Casou-se e com sua gente colhia borracha... Ainda hoje existem descendentes de Manoel Caetano na regio.

Conforme contam os ndios e seringueiros, o primeiro encontro pacfico em grande escala entre ndios e os seringueiros, se deu no ano de 1938, quando um grande nmero de ndios Araras saiu em um campo onde havia uma sede de seringueiros. Pegos de surpresa, os seringueiros lanaram as mos nas armas. Os ndios, no entanto, jogaram as armas no cho, e os seringueiros, vendo isso, largaram tambm as armas, e houve a aproximao entre eles, e Manoel Caetano acompanhado do tuchaua (chefe) Maran Kati, achavam-se na frente da tribo. E Manoel Caetano, falando um portugus meio atrapalhado servia de intrprete. Os ndios gesticulavam e pronunciavam muitas vezes a palavra papai. O chefe Maran Kati vendo uma situao pacfica entre ndios e seringueiros distribuiu o seu povo em diversas malocas nas margens do rio Guariba, entre os seringais.

E Manoel Caetano continuou servindo de intermedirio entre ndios e brancos. Mais tarde tornou-se o tuchaua da tribo. Manoel Caetano, o Gavio, morreu de morte natural. No decorrer da vida teve duas mulheres e muitos filhos.

O seu povo, no entanto, foi mais tarde acometido de um surto de gripe. Em uma poca e local sem recursos medicinais, a tribo foi quase dizimada. Os sobreviventes esto dispersos na regio (Malthezo, J., 1990a).

Em fins da dcada de 40 um segundo grupo indgena teria se aproximado dos seringais no Guariba. Desta vez mais de cem ndios saram no barraco do patro Jernimo Lopes Marinho, localizado no referido igarap Moacir, margem direita do Guariba. De acordo com as informaes etnogrficas e lingsticas disponveis, eles seriam componentes de um dos grupos Tupi-Mond que estariam buscando refgio devido a conflitos com grupos inimigos, mas que foram chamados Arara como os anteriores. Vestidos tudo de vermelho e batizados pelo patro Jernimo, logo comearam a trabalhar na seringa. Porm pouco tempo depois, teriam contrado uma forte epidemia de gripe, uma gripe doida segundo a expresso da informante dona Mocinha, da qual muitos vieram a falecer.

Na pesquisa realizada pelo Sindicato, acima aludida, surgiram outras informaes preciosas a respeito deste grupo do igarap Moacir, que complementam o relato que me fez dona Mocinha:

Seringalista que vivia no vale do Igarap Moacir, [Jernimo Marinho] dirigiu turmas de seringueiros, aproximadamente entre os anos de 1945 a 1954. Possua uma sede organizada, onde havia plantao de mandioca, cana e milho, alm de rvores frutferas, havia tambm na sede gado, mulas, galinhas e porcos.

Na dita poca, os ndios Arara j bastante civilizados, moravam em grande nmero em casebres, ao redor da sede de Jernimo Marinho, e trabalhavam na extrao de borracha (...) a troco de comida, roupa, armas, munio, calados e despesas de viagem para Manaus. Esta ajuda aos ndios Arara fez com que Jernimo Marinho e seus companheiros ficassem muito ricos.

Uma observao (...) que o Igarap Moacir, afluente do Rio Guariba, foi terra natal dos ndios Arara. L existem Campos Santos [cemitrios], onde esto enterrados muitos Arara e que os atuais sobreviventes lembram com muito respeito (Malthezo, J., 1990b).

O missionrio Vtor Hugo (1959: 266), por sua vez, que subiu o rio Guariba em 1958, informa to-somente que encontrou um grupo de ndios mansos nas cabeceiras, dos quais o padre Bento de Sousa, proco de Borba, haveria colecionado uma lista de vocbulos.

Os Arara do rio Branco

Acerca destes ndios os dados se mostram mais abundantes e precisos. O servidor do SPI Agesilo Carvalho Guilhon, que chefiava o posto do rio Madeirinha, notificaria em 1919 um ataque aos seringueiros no rio Branco, confluente do Aripuan, assinalando a existncia ali de grupos indgenas nos seguintes termos:

houve ainda ataque dos indios Nhambyquara, ou Suruy - como so cognominados por seus parceiros ja domesticados - no tendo, porem, havido victimas a lamentar. Convem salientar que os ataques levados a effeito por esses indios, no tm outro intuito seno o de apoderarem-se das ferramentas de trabalho - de que elles fazem grande cabedal - e que no conseguem obter por outros meios (Guilhon, 1919: 1).

Estes seringueiros, muito provavelmente, eram aviados de um dos dois barraces que o seringalista Lopes havia mandado instalar no rio Branco - um nas proximidades do igarap Veadinho, sob a gerncia de Olegrio Vela, e o outro na cachoeira Palmeirinha, administrado por dom Geraldo (Santos, V.L., 1987: 8). Os ndios passaram a acompanhar os movimentos dos seringueiros, no se importando em deixar sinais de suas andanas ao redor das colocaes - e mesmo, como noticiado acima, chegando a saque-las algumas vezes.

Por outro lado, reinava um estado de guerra com os demais grupos indgenas da regio, em particular os Cinta Larga, os Zor e os Rikbaktsa, e isto reforou a disposio dos Arara para tentar um relacionamento amistoso com os civilizados. Assim que, em 1923, ocorreu a Olegrio Vela convencer uma turma de ndios a trabalhar para ele. Integrados vida do seringal, estes ndios vieram a adotar o sobrenome do pacificador, depois transmitido a seus descendentes. O historiador Vtor Hugo, missionrio salesiano da Prelazia de Porto Velho que os encontrou em 1958 ainda vivendo na localidade de Trs Tombos, no rio Branco, recolheu o seguinte relato deste episdio:

Naquele ano, certo Olegrio Vela encontrava-se extraindo caucho no Alto Rio Branco, afluente da margem esquerda do Rio Aripuan, quando foi prso numa cilada, por certa maloca de ndios. Percebendo, entretanto, as intenes pacficas dos raptores, deixou-se conduzir at a maloca. Permaneceu no meio dles coisa de um ms, at convenc-los a acompanh-lo colocao para trabalharem na extrao do caucho e, posteriormente, da borracha(Hugo, 1959: 264).

Outras verses para estes fatos so tambm conhecidas. Um ex-seringueiro do rio Guariba, apelidado Par, que em 1992 quando o conheci trabalhava na balsa do rio Aripuan, contou que h cerca de cinqenta anos atrs um cearense teria ido maloca dos Arara e, no prazo de quatro luas (meses), de l vieram mais de uma centena de ndios para o Salto de Dardanellos (atual Aripuan). Haveria ento, segundo ele, trs agrupamentos no rio Branco: na cachoeira Pavorosa, na Palmeirinha (pouco acima de Trs Tombos) e no Capivara (ou Veados).

Os atuais Arara, no entanto, confirmam em linhas gerais o relato que foi obtido por Vtor Hugo em fins da dcada de 50. Dizem que antes havia uma nica e grande aldeia na cachoeira Pavorosa, da qual Miguel (pai de Rodrigo Vela) seria o cacique e Adeca o tuxaua. L, segundo eles, era s matando gente; no tinham patro nem trabalhavam na seringa. Numa ttica aparentemente para seduzi-los, o gerente Geraldo deixava-lhes na foz do igarap Encrenca algumas mercadorias (brindes), que apanhavam e levavam para sua aldeia. Numa ocasio, os ndios encontraram Olegrio (irmo de Geraldo, segundo os informantes Arara) neste local e o levaram para a Pavorosa (ele tremia de medo, sublinharam). Olegrio Vela teria da descido com os ndios at seu armazm, na foz do rio Branco. O grupo de Miguel veio depois a se instalar em Trs Tombos, onde comearam a trabalhar na seringa aviados pelo patro Geraldo. Ali, porm, eram ainda assediados pelos Cinta Larga, e alguns foram viver no Capivara, outros no Veados.

O peruano Olegrio Vela, que apadrinhara estes ndios e era por eles chamado de Delegado - lembram-no hoje como a nossa FUNAI antiga, ou seja, como se fosse um servidor do SPI -, morreu de febre possivelmente em fins da dcada de 30. Fragmentos destes tempos foram rememorados por dona Abigail, filha de venezuelano que poca dos contatos morava no rio Branco (tinha ento uns 15 anos de idade). No relato que fez antroploga Vera Lopes dos Santos:

[Ela] Conhecera as ltimas famlias de ndios Arara que ainda permaneciam nas suas malocas originais (duas malocas). Estas malocas localizavam-se prximas ao igarap Poraqu (margem esquerda do Aripuan). Refere-se a estes ndios como mansos e pacficos. Ao contrrio da afirmao de Vtor Hugo [ver abaixo], esta senhora nos relatou que os ndios Arara usavam de fato, penas de arara nas orelhas e no lbio inferior (da a denominao do grupo pelos brancos), alm de uma tanga feita de algodo. Somavam aproximadamente 10 famlias, que inicialmente vieram para a beira do rio Branco, fixando-se ao lado do barraco de Olegrio Vela (Santos, V.L. dos, 1987: 10).

A viva de Olegrio Vela, a peruana Ema, se casou ento com dom Geraldo, o gerente do Palmeirinha, e juntos passaram a administrar os barraces do rio Branco. Pouco depois, por motivo no esclarecido pelas fontes ou informantes, se suicidaria o desptico Alejandro Lopes, enforcado em Manaus. A viva dona Valentina, por sua vez, casou com dom Raul del Aguila, ento gerente em Samama, no rio Aripuan (idem, ibidem). Neste momento parte dos ndios do rio Branco j emigrara para as margens do Aripuan e alguns para o Guariba. a situao que o subajudante da Inspetoria do SPI Anastcio Cavalcante deparou em 1941, quando da expedio que fez bacia do Aripuan para verificar os ataques de ndios aos seringueiros da firma J. Negreiros nas proximidades de Campo Grande e do rio Mureru. O subajudante em seu relatrio designa aqueles como tribu dos Necads:

A tribu dos Ncads, que, ha tempos, foi disimada pela Gripe, quasi na sua totalidade, hoje encontra-se dividida em dois grupos: um desses habita o Aripuan e outro o Rio Guariba. O grupo residente no Aripuan consta de 26 pessas, 9 homens, 11 mulheres e 6 crianas. Os Ncads esto pacificados e vivem em promiscuidade com os civilisados. Ao grupo de Aripuan Don Raul del Aguila d toda assistencia. Tive oportunidade de vr e falar, em Vila Samahuma, com trs selvicolas, tipos fortes, de estatura regular, morenos, e expressando-se regularmente em portugus.

Os demais, do grupo, esto no lugar Bom Sucesso, 48 horas acima dos limites do Amazonas, propriedade de Don Raul del Aguila (apud SPI - Inspetoria do Amazonas e Acre, 1942: 5-6)

Em meados da dcada de 50 dom Raul faleceu e Valentina, viva pela segunda vez, partiu para Manaus levando consigo trs famlias Arara ( esta uma das razes para que existam hoje vrios descendentes Arara residindo naquela capital).

Quando o missionrio Vtor Hugo realizou em 1958 sua viagem de desobriga, verificou uma populao indgena de 45 pessoas vivendo na localidade de Trs Tombos, no rio Branco, todas com o mesmo sobrenome Vela. Entusiasmado com o grau de aproveitamento de nossa civilizao que estes ndios haviam alcanado, o missionrio louvaria em seus comentrios as vantagens do contacto inevitvel: os valores morais, os bens materiais adquiridos por meio do trabalho remunerado (na borracha, castanha e farinha) e, acima de tudo, a catequese religiosa, tais seriam os benefcios proporcionados aos ndios pelos moradores daqueles altos rios (pois, explica-nos o historiador-missionrio, at ento nenhum sacerdote houvera subido o rio Branco). Em seu dirio, Vtor Hugo anotou ento:

Encontrei todos aqules ndios batizados em casa, como se diz por aqui, com gua, sal, vela, Pai-Nosso, Ave-Maria e Creio em Deus Pai. Rebatizei-os na forma litrgica da Igreja, para tirar toda dvida, e foram les a pedir-me que abenoasse o casamento natural em que estavam vivendo.

inequvoco o intersse que algumas famlias de civilizados tomam por aqules ndios mansos. Os padrinhos que les tomaram no Batismo e na Crisma, no foram meras formalidades. Manoel Francisco da Silva, velho paraense, casado com uma das mais velhas ndias. Chamam-no Manuel Rapadura (...). o verdadeiro tuchua de tda aquela gente. Sabe de cor o lugar de nascimento, a idade (dia, ms e ano) de quase todos. o pai espiritual, o conselheiro, o amigo, o catequista de todos. respeitado e venerado. Seus conselhos so leis e ordens, poucos lhe desobedecem (Hugo, op cit, pg. 265).

Por ocasio desta visita aos Arara, alm de batizar uns seis a oito ndios, o salesiano trouxe dois deles para Porto Velho (RO), Jos Firmino, ento com 13 anos (que se engajou posteriormente no Exrcito) e seu irmo. Acerca do perodo anterior sua integrao no seringal, segundo Vtor Hugo, os ndios quase nada recordavam, ou talvez preferissem omitir tais lembranas fechando-se num mutismo exagerado para toda espcie de civilizado. A despeito desta atitude, o missionrio extrairia ainda algumas informaes relevantes:

Cam(u)i, parece mais um nome prprio ou coletivo feminino, no tribal. Hoje todos adotaram o sobrenome VELA. Outrora usavam furos nas orelhas e no lbio inferior: os mais velhos, no entanto, garantiram que nunca usaram nem brincos auriculares, nem outros enfeites no lbio. Dos seus antigos adornos conhece-se ainda a pretina, um cinturo feito de tecido silvestre. No usavam tatuagem, e sim apenas se pintavam de urucum (idem, pg. 266).

controversa, com efeito, a questo da denominao destes ndios. Para o subajudante do SPI Anastcio Cavalcante seriam a tribu dos Necads. J o historiador salesiano, como se v acima, descarta o coletivo Cam(u)i, e prefere design-los apenas por ndios Vela. Enquanto informantes atuais, por sua vez, afirmam que Yugapkat sua verdadeira autodenominao (cf. Valdez, 1985: 3). Por que, ento, nome-los Arara, como so hoje conhecidos? Minha hiptese, diante disto, que esta designao, muito freqente no sculo anterior e que havia sido, como notou Rondon, atribuda pelos primeiros seringueiros aos habitantes do Guariba, acabou por se estender, de uma maneira ou outra, tambm aos demais grupos da regio, inclusive quele que ocupava o rio Branco. Entrelaando seus descendentes por meio de migraes e de matrimnios, os do Guariba e os do rio Branco confundir-se-iam de fato numa nica unidade social, e seria portanto inevitvel que se lhes atribusse uma identidade tnica comum. Mesmo porque o termo Arara no tem sido historicamente, nesta regio, mais que um apelativo para quaisquer ndios, uma espcie de sinnimo de uma categoria por si genrica. Identidade portanto no especfica, de uso francamente polivalente e que serviu ocasio aos Arara.

Esta populao indgena j havia sido atingida por uma epidemia de varicela (ou gripe, como registrou o subajudante do SPI) no incio da dcada anterior; uma segunda epidemia em 1959 vitimou um grande nmero de pessoas que moravam no rio Branco, obrigando os sobreviventes a sair em busca de auxlio. Vejamos os depoimentos de Ezdio e de Anita Arara aos agentes do CIMI acerca destes fatos:

Ezdio: Lembro bem quando chegou um branco na aldeia com o corpo cheio de sinais de feridas secas de varicela e que no demorou o povo foi adoecendo e morrendo muitos. Quem pegou primeiro foi Manoel meu irmo e morreu. (...)

Anita: Durante a doena Alexandre (?) foi mandando o povo para Samama, Amazonas. Rodrigo e eu acompanhamos os doentes. Meu pai morreu na viagem, na colocao Tapinima beira do rio Aripuan. Foi enterrado no local. Mame tambm estava mal, morreu em Samama. Morreram tambm nossos filhos: Luzia de seis anos, Elizabete de oito anos, Lcia de treze anos, Lucinia de trs anos e Jair de cinco anos. Dentro de trs semanas, morreram estes todos e duas semanas depois morreu Alexandre de um ano e seis meses. Joo, meu filho mais velho, ficou doente primeiro, mas melhorou. ele que buscava gua pr ns. Manoel, Rodrigo e eu tambm pegamos a varicela. Na viagem de volta chegando no rio Branco, vieram dizer ao Rodrigo: Teu pai morreu. Nossa maloca grande ficou vazia. Tudo silncio. Tudo escuro. Acendia a lamparina. No gosto nem de falar disto. Que tristeza!. (...) [Nesta maloca] Morava o Deca e a Vicena e a filha Maria, o cacique Miguel e Raimunda, Or e Isabel e Raul, meu primo. Todos morreram (CIMI, 1991).

Posteriormente o filho de Valentina, Raul, venderia os seringais ao comendador Pedro Correa. Deteriorando-se as condies de vida dos seringueiros, algumas poucas famlias Arara, entretanto, ainda permaneceriam no rio Branco, porm comercializando sua produo com marreteiros ambulantes (Santos, V.L. dos, op cit, pp. 10-11). Os demais j haviam abandonado os lugares antigos, saindo em busca de trabalho no beirado do rio Aripuan ou no salto de Dardanellos:

Anita: Por causa da doena [saram do rio Branco] e no tinha mais condio. Rodrigo ficou trabalhando com Anastcio que tocava a seringa. Outros tambm trabalhavam com ele. O batelo ficava s no rio Aripuan. E quando ns pensou em voltar, tinha esse Marinho Brando (CIMI, 1991).

Os silncios da histria

Reconstruir a trajetria dos sobreviventes, porque tal era a condio dos ndios do rio Branco e do Guariba aps tais epidemias e o engajamento quase compulsrio nas estafantes atividades extrativistas, talvez no seja, devo reconhecer, de todo possvel. Haver lacunas na memria, certos fragmentos que se perdem nos muitos percursos individuais. Estaria este passado condenado extino? Seria esta uma tarefa incua, reunir uns tantos dados incompletos e outros que se contradizem, vasculhar documentos escritos que pouco trazem alm de detalhes esparsos? Mas que no se diga estarmos diante da contingncia dos fatos, de um discurso disperso ou sem foco. Nesta histria sobram evidncias, bem como recordaes sufocadas e falas propositadamente obliteradas. Pois tambm estas tticas de esquecimento, entre as tantas outras formas de violncia, sempre dizem algo - mesmo que no se saiba o qu, mesmo que na sua opacidade no reste mais que um simples indcio da prpria violncia.

Dos ndios do igarap Moacir, alguns remanescentes - Maria Xapuri e seus filhos - mantm um firme silncio a respeito de qualquer fato relacionado s suas origens indgenas, a despeito das muitas evidncias. Recusando assim a identidade tnica, qui para evitar os preconceitos mais corriqueiros, tal atitude evasiva porm no capaz de livr-los dos desmandos e da violncia generalizada que atinge os despossudos em geral:

A ndia Arara do Guariba, mais velha, Maria Chapuri, recusou-se a falar do passado, e inclusive no assume claramente sua antecedncia. O pai de Maria Chapuri fora morto pelos ndios Cinta Larga e, aps as peregrinaes de sua famlia pelos rios Guariba e Aripuan, hoje vive na cidade de Aripuan, em condies precrias. Todos os seus parentes afirmam que ela ainda fala a lngua e tem a memria mais viva de seu povo. Seu filho Eduardo foi expulso, ano retrasado, juntamente com mais 5 famlias de seringueiros, da colocao que ocupava na boca do rio Canum, afluente da margem direita do Aripuan, negando-se a falar sobre qualquer assunto que diga respeito ao fato. (Santos, V.L. dos, 1987: 16)

Outros descendentes foram entrelaando suas vidas com indivduos de outros grupos indgenas, tanto os do rio Guariba como os do rio Branco, ou com seringueiros das mais diversas procedncias. Quando conheci a velha Nazar Arara em 1987, ento com cerca de setenta anos, estava h muitos anos casada com um seringueiro nascido no seringal Pajur (do Guariba) e residia em Aripuan h quase quinze anos. Nazar, no entanto, filha de Francisca Arara e um cearense, era viva de Raimundo, um dos filhos do chefe Caetano. Embora ela tivesse vivas lembranas de sua infncia no seringal, seu depoimento demonstra o processo de sobreposio dos grupos indgenas a que me referia acima. E Ezilda, de trinta e oito anos, que a antroploga Vera Lopes dos Santos (1987: 40) encontrou vivendo em Aripuan, casada com um filho de Nazar e Virglio, neta de Pedro Corob, um daqueles Arara que estiveram frente do grupo que procurou os seringueiros no Guariba.

Um outro exemplo consta do relatrio dos padres Hebinck e Vitte que em 1971 subiram o rio Aripuan. Eles encontraram na cachoeira dos Veados o velho Antnio Felipe de Souza, apelidado Paraba, casado com uma ndia do Guariba. Vivendo na regio desde 1919, foi um dos principais informantes sobre a histria e as condies dos habitantes deste rio:

O Senhor Antnio, chamado o Paraiba, casou com uma ndia legtima, da tribo dos Araras, no rio Guariba em 1935. Ela se chamava Ana, foi uma boa esposa, corajosa e trabalhadeira; Ana lhe deu 9 filhos, dos quais apenas dois sobreviveram (Hebinck & Vitte, 1971: 12).

E por fim a velha Guilhermina Arara, viva daquele Manuel Rapadura que o missionrio Vtor Hugo conhecera em Trs Tombos no rio Branco, vivendo entre os ndios Vela - tantos anos que, segundo estes, teria aprendido seus costumes (Valdez, 1985). Guilhermina porm era nascida no rio Guariba, donde saiu ainda criana pequena para viver com o outro grupo. E curiosamente foram ela e seu filho Z Rapadura os que mais resistiram no rio Branco, apenas abandonando sua colocao em 1986, quando a polcia e os jagunos queimaram sua casa e os expulsaram.

No beirado e nas cidades

Nas dcadas de 60 e 70 as condies de vida no alto Guariba e no rio Branco pioraram muito. Muitos ndios buscaram o beirado do rio Aripuan, outros se deslocaram em direo s cidades: Mat-mat, Humait, Aripuan, Ariquemes, Manaus, Cuiab... Fora de suas terras tradicionais, iriam enfrentar, nos anos seguintes, toda sorte de presses. O cenrio regional estava passando por transformaes abruptas: o governo do Estado estimulava a ao de agropecurias e colonizadoras e, de maneira acelerada e inconseqente, promovia a venda de grandes glebas de terras consideradas devolutas.

O sistema extrativista, com efeito, j no convinha aos novos interesses econmicos atrados para a regio. Os seringueiros e os ndios, em razo disto, seriam da desalojados de suas antigas colocaes. No ano de 1986 o missionrio Manoel Valdez, do CIMI, ao descer o rio Aripuan, encontrou-os desnorteados, temerosos diante dos novos patres que se assenhorearam brutalmente das terras do Aripuan:

O principal lder e representante do grupo, conhecido como Carioca, morreu no incio do ano em Vilhena (...). Sua esposa ainda na rea ocupada pela Colniza, est desesperada. So nove filhos e nenhum em condies de trabalhar.

Outro lder, o Sr. Osrio, que perdera um filho no garimpo recentemente acabava de perder outro (...). O acidente foi num caminho da colonizadora Colniza. Um tanto desnorteado e querendo abandonar o local o mais rpido possvel, assinara um documento para a firma cedendo a rea que morava e seringal por Cz$ 50.000,00. Porm os sete anos de trabalho ainda no foram pagos apesar das promessas (...).

Junto com Sr. Osrio saram as famlias de seus filhos e genros (...). Todos seringueiros com colocaes (...) que ficam dentro da rea de posse atualmente da colonizadora Colniza. Deixaram todos os seus pertences e benfeitorias no local, e sem a presena do Sr. Osrio esto com medo de retornar.

Contribuiu para esses temores, o modo violento com que foram despejadas algumas famlias no final do ano passado. Atravs da polcia de Aripuan e de Joaquim (capanga de Marinho Brando e outros grupos), foram queimadas cinco casas de seringueiros e ndios Arara forando-os a sarem do local com as mos totalmente vazias. Estes esto agora espalhados nos garimpos e outros lugares, sem condies de retornarem a suas colocaes e roados.

Os que ficaram esto em situao difcil e com muito medo pois continuam sofrendo fortes presses. Joo Damsio mora sozinho com a me e apesar de ter ficado a ermo est disposto a resistir. Alonso Garrido e toda a sua famlia esto doentes, e Euclides que teve seu barraco queimado, est pela cidade com a esposa enferma por causa de uma fratura. Ademar, Orig, Ocimir, Maranho, Ocimar e outros passam tambm por srios problemas e presso.

(...) A colonizadora Colniza com seus milhares de hectares est com uma cidade praticamente pronta e a estrada construda recentemente [Aripuan-Colniza-Bonsucesso], s trouxe at o momento prejuzos e doenas aos seringueiros (os nicos beneficiados continuam sendo os de fora) (Valdez, 1986: 2-3).

Desta maneira, ndios e seringueiros, mais uma vez, so lanados a um destino comum: uns e outros despojados, empurrados de l para c, mo de obra para as derrubadas das fazendas, tentando a vida nos garimpos, a caminho da misria na periferia das cidades. Tal o quadro vivido pelos Arara:

Alguns vivem em condies muito difceis, se locomovendo de um lugar para outro sem parar, procura de um lugar que lhes d mnimas condies de se fixar. Eduardo que teve seu barraco queimado est no garimpo novamente. Z Rapadura (filho de d. Guilhermina, que foi forada a sair de sua terra por Marinho Brando) est tambm no garimpo, depois de ter trabalhado com carteira assinada durante onze anos para o mesmo latifundirio. Porm, no recebeu absolutamente nada ao sair. (idem, pg. 4).

Captulo 2

Uma Etnia Insolvel

Remanescentes de grupos indgenas que habitavam o rio Aripuan e seus afluentes Branco e Guariba, os ndios Arara padeceram com a burocracia e a omisso governamental. Afastados de suas terras pela violncia de grileiros e de capatazes de madeireiras, as famlias Arara haviam se espalhado pelo beirado dos rios Aripuan e Guariba e pelas cidades de Aripuan (MT), Mat-mat (AM), Ariquemes (RO) e outras, empregando-se na extrao de seringa, na pesca artesanal e na fabricao de farinha, ou vivendo de biscates variados (faxina, capina, vigilncia etc.).

A partir de meados da dcada de 80, missionrios catlicos fizeram levantamentos e encaminharam as primeiras propostas para o reconhecimento da rea indgena. Alguns representantes indgenas viajaram para Cuiab e para Braslia. E vrios Grupos de Trabalho vistoriaram a rea presumidamente indgena. A FUNAI, no entanto, incapaz de reaver as terras dos Araracogitava, talvez por isto, declarar a extino oficial do grupo. Mediante a formulao de uma inusitada categoria sociolgica - ndios dessituacionados - um assessor da Superintendncia do rgo em Cuiab argumentava em seu laudo que os Arara no teriam direito a uma rea imemorial, j que estavam irremediavelmente miscigenados e dispersos. Uma Nova Sociologia ou o velho racismo?

A lgica dos vencedores

A dcada de 60 foi trgica para os grupos indgenas da bacia do Aripuan, acossados por seringalistas, grileiros e garimpeiros que invadiram seus territrios e promoveram inmeros massacres. Na dcada seguinte, contudo, foi o crime oficial que prevaleceu. A Comisso Parlamentar de Inqurito da Cmara dos Deputados que em 1979 investigou a situao fundiria brasileira registraria assim, em seus anais, que Mato Grosso estava sendo palco da maior invaso de terras indgenas do Pas, na sua maioria griladas e vendidas a grupos.

No municpio de Aripuan, notadamente, a Companhia de Desenvolvimento do Estado de Mato Grosso - CODEMAT alienou irregularmente em 1973 uma rea de dois milhes de hectares, adquirida por apenas quatro empresas. Segundo o relatrio da chamada CPI da Terra, teria sido o maior escndalo imobilirio de Mato Grosso. Concomitante s vendas, o Governo Estadual vinha tomando medidas para facilitar a ocupao da regio, construindo para isto estradas, instalando a sede municipal e favorecendo a apropriao das terras remanescentes.

Foi da que os seringais do comendador Pedro Correa, assentados em ttulos originrios do Estado do Amazonas (mas ocupados pelos ndios Arara e por outros seringueiros), foram vendidos ao empresrio paulista Mrio (Marinho) Brando. O empresrio, em seguida, tratou de tomar e validar junto ao Instituto de Terras do Estado de Mato Grosso - INTERMAT as posses que existiam nos interstcios das reas tituladas, aambarcando desta maneira um latifndio de mais de um milho de hectares, praticamente todas as terras entre o Guariba e o Aripuan ao norte do paralelo 10.

E em 1980, por fim, completava-se a retirada forada dos Arara do Rio Branco, quando a famlia de Jos Rodrigo e Anita Vela foi expulsa pelo grileiro Henrique Faveiro, para quem estavam ultimamente trabalhando na extrao de seringa, pouco ao sul do paralelo 10. O patro tomou-lhes todos os pertences, inclusive a borracha acumulada, e eles desceram a remo o rio Branco. Vieram fixar-se na vila de Aripuan onde foram abrigados por Durval Frana, ento diretor da Escola dos Seringueiros. Doentes e desnutridos, viveram por vrios meses de auxlios e doaes dos moradores da cidade.

No segundo semestre de 1984, uma equipe coordenada pelo padre Manoel Valdez, do Conselho Indigenista Missionrio - CIMI, realizou um levantamento da situao dos Arara, ao longo do rio Aripuan e na cidade de Ariquemes. No relatrio apresentado FUNAI solicitava-se ento a instalao de um posto de vigilncia na regio, tanto para proteo da populao indgena ameaada pelos latifundirios como para atendimento mdico, e a demarcao de uma rea no Guariba e outra no Aripuan. A equipe recenseou 22 famlias Arara, distribudas pelo beirado dos rios Aripuan e Guariba e nas cidades de Aripuan, Mat-mat e Ariquemes, indicando ainda a existncia de outras famlias dispersas.

De um modo geral, a populao Arara est inserida nas camadas mais pobres da populao do beirado e da vila de Aripuan. Trabalham como seringueiros, vendendo sua produo e adquirindo mercadorias dos marreteiros a preos aviltados. Os roados garantem a subsistncia bsica do grupo - mandioca, macaxeira, milho, cana, fava e frutas. A pesca, inclusive com arco e flecha, tem importncia fundamental na sua dieta alimentar.

As doenas comuns na regio, como tuberculose e malria, vm assolando estes ndios, causando mortes peridicas entre eles, uma vez que carecem de qualquer tipo de atendimento mdico, valendo-se exclusivamente dos remdios do mato que conhecem. Recentemente, o Arara Goncha, paj do grupo, faleceu vitimado pela tuberculose. Problemas de aborto entre as mulheres e convulso nas crianas pequenas, so tambm corriqueiros (Valdez, M., 1984).

O relatrio do missionrio alertava ainda que fazendas e colonizadoras - que tm sua origem em grilagens ou so propriedades com titulao irregular, sem exceo - estavam expulsando ndios e seringueiros do beirado, para o que vinham utilizando servios de jagunos, fazendo ameaas e, inclusive, tendo por vezes mandado queimar casas. Um dos jagunos mais conhecidos na regio, Joaquim Lima Gomes (vulgo Joaquinzo), estava ento arranchado na boca do rio Branco, exatamente para impedir o acesso dos Arara s suas terras.

No ano seguinte um novo relatrio foi encaminhado pelo CIMI ao rgo indigenista oficial, completando ali os dados do levantamento populacional e detalhando uma proposta de demarcao de quatro reas descontnuas para os vrios agrupamentos Arara. O missionrio Valdez relacionou 102 pessoas, distribudas nos seguintes locais:

Rio Aripuan: localidades de Campo Grande, Boca do Piranha, Boca do Pacutinga, Cachoeira dos Veados, Bom Sucesso e foz do rio Branco;

Rio Guariba: localidades de Ronca e igarap Pajur;

Cidades: Aripuan e Cuiab (MT), Manaus, Humait e Mat-mat (AM) e Ariquemes e Porto Velho (RO).

Conforme advertia o missionrio, a situao dos Arara agravava-se: duas famlias que moravam acima da boca do Canum, no rio Aripuan, haviam sido expulsas de sua colocao por pistoleiros e policiais, estes queimaram suas casas e todos os seus pertences (Valdez, 1985). E em maro de 1986 o CIMI enviou mais um relatrio FUNAI denunciando a violncia contra os ndios e os seringueiros e a ocupao acelerada de suas terras por latifundirios, aes estas que contavam com a cumplicidade do ento governador Jlio Campos (Valdez, 1986). E alertava que os Arara exigiam a demarcao de suas terras: Garantem que no vo sair para parte alguma, apesar das presses que sofrem.

A despeito da gravidade da situao local, somente em abril de 1987 foi lanado a campo um Grupo de Trabalho da FUNAI para estudo da rea dos Arara, com vistas sua identificao e delimitao (Portarias PS 1761/86 e 515/87/2SUER/FUNAI). Coordenado pela antroploga Vera Lopes dos Santos da 2 Superintendncia da FUNAI, o GT realizou um levantamento da populao Arara e um reconhecimento de seu territrio, reunindo dados histricos e scio-econmicos para fundamentar a proposta de interdio de 242 mil hectares situados entre os rios Aripuan e Guariba, englobando o rio Branco e os igaraps Moacir e Novo. Resguardando os stios tradicionais onde viveram at a poucos anos e no registrando qualquer ocupao de vulto por no-ndios, a rea ento denominada Arara Beirado estava apta a receber os Arara de volta, desde que houvesse o apoio institucional do rgo indigenista, segundo a proposta da antroploga (Santos, V.L. dos, 1987).

O levantamento fundirio, pea processual que obrigatoriamente deve complementar o trabalho de identificao de uma rea indgena, causou entretanto um verdadeiro espanto, pois encontrou um total de 68 ttulos de propriedade que incidiam na rea proposta. As terras, como se soube depois, haviam sido loteadas e vendidas pelo Instituto de Terras do Estado de Mato Grosso - INTERMAT em maro daquele mesmo ano, nos ltimos dias portanto do Governo Wilmar Peres, vice-governador que substituiu o renunciante Jlio Campos. Ficou evidenciado, alm de tudo, o favorecimento ilcito que comandou tais transaes: o antigo cemitrio dos Arara, na margem direita do rio Branco, restou dentro de um dos maiores lotes, entregue a Luiz de Almeida, um ex-advogado do prprio INTERMAT. Das terras do rio Branco, por sua vez, uma boa parte havia sido dividida diretamente pelo empresrio Marinho Brando (Organizao de Terras Brasil Norte) em glebas de mais de 20 mil hectares cada, e estavam agora nas mos de Esthil Mveis e Decoraes, da agropecuria Thomagran e de Antnio Dirceu Deboni.

Com sua rea totalmente retalhada, os Arara aguardavam, desolados, as iniciativas e promessas da FUNAI.

Longe da terra prometida

No ms de novembro daquele mesmo ano a FUNAI finalmente movimentou-se mas, infelizmente, de maneira bastante atabalhoada. Um funcionrio da Administrao Regional de Vilhena, Paulo Oliveira, lotado em Castanheira (MT), tramou a ocupao das margens do rio Branco, ao sul do paralelo 10, contando para isso com os Arara que moravam na cidade de Aripuan e com a ajuda dos Cinta Larga. A iniciativa, como se soube mais tarde, inclua tambm negcios com o garimpeiro Ben, que explorava o garimpo Ouro Preto em terras dos Cinta Larga, e com a Madeireira da Paz, de Antnio Filho, os quais ofereceram o apoio logstico para a movimentao. Alegando depois que se equivocara na leitura do mapa, ao confundir os pontos cardeais, o funcionrio da FUNAI conduziu os Arara a um conflito fora da rea proposta pelo GT. Aquele trecho de terras, a ser desmembrado da rea indgena Aripuan mas ainda resguardado pela Portaria 562/N (FUNAI, 14/03/79), estava sendo ocupado por posseiros e grileiros, alguns inclusive mancomunados com autoridades municipais.

A mando do funcionrio Oliveira, os Arara e os Cinta Larga foraram a retirada de 57 posseiros, provocando com isso a reao dos grileiros, entre os quais se destacava o delegado Jos Bento, da Polcia local. O fato ganhou ampla repercusso nos jornais de Cuiab, contudo com informaes desencontradas repassadas pela assessoria de imprensa da prpria FUNAI.

Com a confuso armada, o rgo indigenista promoveu mais uma de suas operaes, j que o novo superintendente regional, Nilson Campos Moreira, desejava ardentemente mostrar servio. No dia 20 de novembro a cidade de Aripuan estava em polvorosa: liderada por Campos e pelo indigenista Jos Eduardo, este da ADR de Vilhena, chegara a caravana da FUNAI composta por policiais federais fortemente armados, por representantes do INTERMAT, pelo delegado Ronaldo Osmar, de Juina, e por um ndio Nambikwara que vinha conversar com os parentes indgenas. A rpida vistoria que fizeram na rea ps a nu o processo de grilagem em curso: os policiais fizeram questo de trazer, como prova, um tronco de rvore onde se lia rea do Delegado.

Na noite seguinte as autoridades convidaram a populao para uma reunio na Cmara dos Vereadores, onde o superintendente da FUNAI afirmou que o rgo tinha por objetivo trazer a paz social e que, embora reconhecendo os erros do funcionrio Paulo Oliveira, seus atos teriam contudo permitido desvendar as transaes que envolviam a rea interditada. Comprometeu-se ento a estudar com o INTERMAT e a Secretaria de Assuntos Fundirios do Estado o assentamento de trabalhadores sem-terra na rea a ser liberada - cerca de 100 mil hectares. Por fim, os representantes da FUNAI sublinharam o direito dos Arara a terem acesso s terras do rio Branco, seu habitat tradicional. Encerrada a reunio, funcionrios e policiais foram participar de um churrasco no restaurante Panelo, regado a usque Natu Nobilis, como se ali estivessem selando, em clima festivo, o dito compromisso com a tranqilidade social - e aproveitaram para, ao mesmo tempo, comemorar o aniversrio naquele dia do superintendente da FUNAI...

Soube-se depois que o presidente da FUNAI, Romero Juc, havia assinado uma portaria de interdio da rea indgena Arara Beirado (PP 3.831, de 20/11/87, publicada no D.O.U. em 01/03/88). A situao dos Arara, porm, no melhorou, ao contrrio: contratado pela madeireira Esthil o capataz Joaquinzo passou a dirigir, como medida preventiva, seguidas ameaas principalmente famlia de Rodrigo e Anita Vela. Podem subir o rio Branco, mas vo descer de bubuia, isto , mortos, alardeava o pistoleiro. No beirado do rio Aripuan cerca de vinte famlias indgenas estavam dispostas a retornar ao rio Branco mas, amedrontadas, aguardavam um apoio efetivo da FUNAI: Oh, vocs que so grande, vocs que so metido a grande que devem tomar providncia aqui. Vocs tm fora, e eu no tenho, apelavam eles (Porantim, julho-agosto/88).

Mas as promessas se repetiam, monotonamente, solapando cada vez mais o nimo e as esperanas dos Arara. O superintendente da FUNAI retornou a Aripuan no dia 7 de setembro de 1987, desta vez acompanhado pelo secretrio de Assuntos Fundirios do Estado, Edgard Nogueira Borges, para mais uma reunio pblica acerca das terras que seriam liberadas ao sul do paralelo 10. A presena deles havia sido solicitada pelo prprio prefeito municipal para, segundo disse ento, esclarecer as acusaes que vinham recaindo sobre a Prefeitura. Tratava-se porm de um esforo, acima de tudo, para restaurar a credibilidade do PMDB local, tremendamente fraturado pela disputa entre faces, as denncias de corrupo e o envolvimento em conflitos de terra. Quanto aos Arara, o superintendente alegou falta de recursos para o deslocamento de um funcionrio e a instalao do posto da FUNAI na rea. Prometeu contudo a elaborao de um projeto de assentamento a ser efetivado no mximo dentro de trs meses.

A cartilha tnica da FUNAI

Mas os meses passaram enquanto os Arara esperavam pela FUNAI. Em julho de 1988, todavia, alguns portadores de ttulos concedidos pelo INTERMAT impetraram um mandado de segurana na 8 Vara da Justia Federal, em Braslia, pretendendo anular a Portaria que interditou a rea Arara Beirado, sob alegao de que a FUNAI no teria autoridade legal para obstruir o acesso a suas propriedades. Na prtica, eram apenas os prprios Arara que no conseguiam regressar ao rio Branco, pois os pretensos proprietrios j haviam iniciado a ocupao da rea, fazendo derrubadas, plantando capim e erguendo benfeitorias.

Inconformados, Rodrigo e Anita viajaram para Braslia no final de julho e realizaram uma verdadeira peregrinao pelos rgos pblicos em busca de uma soluo para as terras do seu povo. Ouviram novas promessas, aceitaram novos prazos.

Afinal, a 2 Superintendncia da FUNAI constituiu um Grupo de Trabalho Especial (Portarias PS 551, de 14/07/88, e PS 557, de 26/07/88), coordenado pelo socilogo Jos Augusto Mafra dos Santos e composto tambm por representantes da Secretaria de Assuntos Fundirios e da Polcia Federal, com a finalidade especfica de elaborar o programa de assentamento da Comunidade Indgena Arara-Beirado. No ms de agosto o GTE percorreu, mais uma vez, as casas, os rios e as colocaes dos Arara. No dia 23 daquele ms seus componentes reuniram-se com os representantes da comunidade indgena - o cacique Jos Rodrigo e sua esposa Anita e duas outras famlias -, na presena ainda do proco pe. Dulio e da religiosa ir. Lourdes Christ, da Igreja catlica local. Na ata assinada pelos membros do GTE e pelos ndios consta que estes concordavam com o assentamento em uma rea do rio Branco calculada em 43.050 hectares.

Uma das componentes daquele Grupo de Trabalho, a antroploga Didi Luci da Silva, entretanto, se recusou a assinar a ata da reunio e elaborou um relatrio em separado, assinalando que a deciso foi imposta de forma autoritria aos Arara. Segundo ela, tal proposta teria vindo pronta da 2 Superintendncia, e a viagem do GTE seria apenas um subterfgio para fundamentar a reduo das terras dos Arara a duas pequenas reas, uma no rio Branco e outra no Guariba, que juntas no somariam 70 mil hectares. Mas como os ndios do Guariba no concordaram em sair de suas colocaes para a rea proposta, restou apenas o trecho do rio Branco para as gestes do coordenador do GTE (Silva, D. L. da, 1988). A antroploga denunciou ainda que aquela proposta desconsiderava a existncia comprovada, na rea interditada, de um grupo indgena ainda isolado - os chamados Baixinhos ou Cabea Vermelha - que ficariam desprotegidos com a reduo da rea.

Reduzir a rea, contudo, no seria o nico objetivo da FUNAI no caso. O relatrio elaborado pelo socilogo Mafra dos Santos representa, de fato, uma distoro temerria das finalidades originais do GTE: ao invs de um plano para reassentar os Arara, como requeriam as Portarias que constituram o Grupo de Trabalho, o dito socilogo veio propor porm a demarcao de uma reserva indgena. Ou seja, para Mafra dos Santos os ndios Arara j no teriam quaisquer direitos sobre as terras donde foram expulsos, e por esta razo a FUNAI deveria promover a desapropriao de uma rea para ento assent-los.

uma nova sociologia, como a denominei, tanto por seus objetivos como por seus mtodos: ao desconhecer as condies histricas concretas em que viveram e vivem os Arara, nada mais faz que demonstrar suas preferncias e, de maneira acrtica mas no desinteressada, acolher como legtimos os resultados sociais da grilagem violenta, da especulao imobiliria e das negociatas governamentais. Ou como justificou num rompante sincero o prprio socilogo da FUNAI aos ndios Arara, resumindo assim os postulados que a embasam: esta a lgica do branco; os ndios foram vencidos, gente!.

E assim teremos como corolrio concreto desta posio, que os parcos recursos da FUNAI, longe de apoiar o regresso dos Arara s suas terras, deveriam ser repassados para fins de desapropriao aos pretensos proprietrios da rea - grileiros, especuladores, madeireiros...

Para tanto o socilogo, atravs de inacreditveis malabarismos retricos, fez de tudo para desclassificar os Arara enquanto grupo tnico, lanando mo de argumentos substancialistas e sobretudo parciais: segundo ele, a miscigenao, a disperso e a dominao teriam rompido o elo tnico, e assim o exerccio da identidade tnica pelos seus membros ocorreria to-somente atravs da invocao do passado, uma vez que no compartilhariam mais valores culturais ou uma organizao social prpria. Fora de suas terras, mesclados e com hbitos culturais exgenos, como os descreve Mafra dos Santos, os Arara sequer teriam lugar na cartilha tnica da FUNAI: na falta de um conceito para caracteriz-los, o socilogo acaba por inventar at mesmo um neologismo - ndios dessituacionados, que traduz por ausentes de situao tnica. Melhor dizendo, no seriam mais ndios! Ou, na expresso coloquial daquele servidor da FUNAI, referida acima, a lgica do branco teria vencido e ponto final.

Mas esta no apenas, como se poderia pensar, uma sociologia a partir da tica dos vencedores. O acento dado situao de miscigenao ou a quase ausncia, como diz ele em seu relatrio, de famlias integrais entre os Arara acaba por revelar a identidade ideolgica entre os argumentos de Mafra dos Santos e as teses racistas esposadas pelo coronel Zanoni Hausen anos atrs, que na condio de diretor da FUNAI se empenhou em validar uns tais critrios de indianidade contra os povos indgenas no Nordeste. Vale lembrar, desta maneira, a crtica que os antroplogos fizeram na poca falsa cientificidade de tais critrios, crtica esta consolidada em vrios artigos e pareceres.

A professora Manuela Carneiro da Cunha, por exemplo, apoiada em formulaes do antroplogo noruegus Frederik Barth e de outros, mostrou que a identidade tnica no se sustenta em quaisquer critrios raciais e nem mesmo em formas culturais inalteradas: a antropologia social, diz ela, chegou concluso de que os grupos tnicos s podem ser caracterizados pela prpria distino que eles percebem entre eles prprios e os outros grupos com os quais interagem (Carneiro da Cunha, M., 1981).

Como j se evidenciou na ocasio, atitude que agora se repete, a nfase classificatria do indigenismo oficial - com seus graus de integrao, seus critrios de indianidade ou de situao tnica - responde antes de tudo s tentativas de descaracterizar os ndios enquanto ndios. O objetivo precpuo, na verdade, seria retirar a legitimidade dos seus direitos e de suas reivindicaes territoriais. E desta maneira, esta nova sociologia da FUNAI no faz aqui seno o velho jogo sujo dos espoliadores de terras indgenas de todos os tempos: a negao do outro, sua eliminao ideolgica, quando no fsica.

Os ndios Arara permaneceram, apesar de tudo, como um problema real, alheios aos malabarismos conceituais do socilogo de planto e de outros zeladores dos interesses anti-indgenas. Em maio de 1989 eles, mais uma vez, retornaram a Cuiab e foram bater na porta da FUNAI: vieram reclamar uma soluo pois queriam retornar para o rio Branco...

Captulo 3

A Voz da Memria

As entrevistas a seguir, de personagens variados (ndios, seringueiros, empreiteiro etc.), foram realizadas em momentos e circunstncias e por interlocutores diversos. Cada uma delas, assim me pareceu, pode ser apresentada como um desses retalhos da memria, ao mesmo tempo social e individual. Reunidas aqui, talvez possam compor, em cores e tons muito singulares, um quadro etnogrfico dos grupos indgenas do Guariba e do rio Branco, uma certa trajetria histrica e um perfil scio-econmico dos que ento foram designados e hoje se designam pelo etnnimo Arara.

Cada tribo tem um sistema

Conheci e entrevistei o ex-seringueiro Raimundo Santos em sua casa, na ponte do Guariba, por ocasio de uma viagem de pesquisa promovida pelo GERA/UFMT, no dia 1 de julho de 1991.

Raimundo: J vou fazer 71 anos no dia 12 de setembro. Estou com 52 anos s aqui no Guariba. Nasci no rio Roosevelt, acima de Vera Cruz - essa cachoeira muito grande, conhecida por Doze Tombos, so doze quedas dgua debaixo do cu. Acima dessa Doze Tombos... eu no sei o nome da colocao, no me lembro. mais ou menos uma hora de motor-rabeta acima dessa Doze Tombos. Esse Valter [Santos], meu irmo, nasceu na boca do rio Branco [do Roosevelt]. Eu vim primeiro que ele para o Guariba, mas depois eu sa, fui para Manaus. Foi o tempo que me casei. Casei j velho, quase pegando 40 anos. Nasceu o primeiro filho e fomos para Manaus. Passei 27 anos trabalhando em Manaus, isso numa nica firma, trabalhando de empregado. A com 27 anos eu fui indenizado, sa e comprei uma casa. Tenho uma casa em Manaus na Dom Pedro I, em frente ao Hospital Tropical. Vim para c, mas vim s, a famlia ficou. Trabalhei dois anos e baixei. Eu era aviado da firma... no-sei-qu Schuam, um turco. A baixei para Manaus, passei trs anos mais. Quando subi j vim com a famlia. A minha filha Socorro j tinha sado do colgio. Eu me coloquei no [lugar] Z Mulato, abaixo do Xib um pouco.

Pergunta: O senhor conheceu os Arara aqui no Guariba?

Raimundo: Quando eu cheguei os Arara no moravam mais aqui no Alegria [onde hoje est a ponte do Guariba], tinham sado. Eles estavam mais para cima, num igarap que chamam Moacir. Esse Moacir pertence aos Arara. A morava ndio Arara para danar. Alis, todo mundo gostava dos Arara, eles no eram perseguidores de ningum. Eles matavam gente sim, mas no era assim. s vezes matavam porque eram obrigados a matar, mas nunca como esses Orelha de Pau, esses eram uns ndios perigosos. O Guariba era a regio deles. Parece que foram eliminados, no ouvi mais falar. Eles brigavam muito, os Orelha de Pau, esses Arara, esse Cinta Larga e um tal de Cabea Seca.

Pergunta: Quem era o tuxaua dos Arara quando estavam no Moacir?

Raimundo: Nesse tempo era Arim. Tinha ao menos sessenta a setenta pessoas. A vida deles era botar roa, comer... No cortavam seringa. Hoje que j tem alguns cortando seringa...

Pergunta: Mas me disseram que quando estava o tuxaua Caetano eles cortavam seringa...

Raimundo: Isso mesmo, Caetano cortou seringa. Foi da que eles saram e foram para o Moacir. Esse Caetano eu conheci pessoalmente, ele j era uma pessoa de idade. No estou lembrado se ele morreu no Moacir ou foi aqui mais para baixo. Ainda tem uma ndia velha, dona Jlia, mora aqui para baixo.

Pergunta: A filha de dona Nazar?

Raimundo: Isso mesmo. Era muito ndio Arara. Eu conheci aqui no Roosevelt os primeiros ndios que amansaram, eu convivi com eles. A primeira aldeia de ndios foi amansada a pelo finado meu pai, era dos Arara. O tuxaua chamava-se Paron. Eles se acharam perseguidos, esses Orelha de Pau perseguiam muito eles. A o tuxaua morreu, ficou a Cassirene, a mulher do tuxaua - ela ficou desorientada, no tinha a base do marido. Paron era filho do tuxaua, mas era pequeno. Ela ficou como tuxaua, e o jeito que teve foi amansar com meu pai. O nome de meu pai era Manoel Vicente dos Santos, era gacho. Depois deles amansarem, esse Paron estava grande, a Cassirene deu... Foi uma coisa linda, eu conto isso porque vi com meus olhos. Uma reunio medonha, tudo quanto era ndio, a bate palma e canta aquelas coisas. O Paron ia ser o tuxaua da maloca, a Cassirene estava comandando mas achou que tinha que entregar o capacete para o filho. Foi uma festa danada aquele dia, quando ela entregou o capacete para o filho.

Bom, so menino, pelo amor de Deus! O Paron matou muito ndio: ele tinha raiva de ndio, depois que ficou homem ele odiava porque tinham matado o pai dele. Ento esses tal de ... tinha Cuximiraba e esses Orelha de Pau. Ele botou para acabar com eles, entrava na aldeia, pegava criana assim pelo mocot, suspendia de cabea para baixo e cortava com o terado. Isso foi no rio Castanho, que o Rondon colocou o nome de Roosevelt.

Pergunta: Esses Arara no Roosevelt tinham outra denominao?

Raimundo: Tem duas tribos de Arara que eu conheci. Tinha o Arara e o Ararabenis. Esse tinha uma listra assim [tatuagem facial], aquilo morre e no se acaba. Os Arara amansaram antes do Rondon passar. Teve uns a, uns trs, que o Rondon levou, ele achou muito inteligentes. Ele no matou ndios. Rondon falava tudo que era idioma, chegava e falava com os ndios, entrava na aldeia e falava com os ndios. Assim, domando para no mexer com os seringueiros. A mortandade era grande. Ento, dessa poca a eles fracassaram mais esse negcio de ficar matando gente. s vezes vinham roubar as coisas da casa, pertences. Roubaram uma vez, me lembro bem, aqui no Aripuan, eu fui dessa vez numa correria [expedio]. O ndio chamava-se Matias. Tinha o Matias, o Adeca e o Or. O Adeca e o Or eram os tuxauas dos Arara.

Pergunta: Quais Arara? Do Guariba ou do rio Branco?

Raimundo: Tranavam isso a tudo. Porque a gente via Arara aqui, via no Roosevelt...

Pergunta: Mas eram os mesmos?

Raimundo: Era o mesmo, s distinguia que tinha o Ararabenis e o Arara mesmo. Mas era uma coisa s, tudo unido. A ns fomos no igarap Natalzo, a aldeia deles era para l. O ndio falava tudo. O patro era dom Raul del Aguila, a mandou, foi muita gente. Chegou na aldeia, deram uma poro de tiros para o ar, mais de sessenta armas atirando - mas no atirava para ofender os ndios. O tuxaua disse: Aquele que matar ndio tambm cai junto com ndio, no tem que atirar no ndio Eu sei que deram um bocado de tiros, os ndios alertaram tudo. A entramos. Eu sei que traaram lngua para l, e tudo armado, os ndios tambm, mas no trocaram flecha nem bala. O Adeca mais o Or entraram na aldeia, a turma ficou de fora. Ficou tambm um peloto de ndios do lado de fora, tudo armado, com medo do ndio entrar e a gente aproveitar para fazer fogo. A eles ficaram de prontido tambm. Quando eles vieram de l trouxeram uma malazinha - eles tinham carregado sabe l de onde - quando foram abrir, arrombaram a mala, tinha um 38 duplo desse tamanho assim. ndio naquele tempo tinha medo de arma, no queria nem ver, se visse um cartucho saa assombrado. E quando viram o revlver, deixaram essa mala para l, no mexeram. A o Adeca trouxe, cheiinho de bala. Trouxeram esse revlver e parece que deram para o dom Raul. O Adeca cortou gria para l, aquela confuso. Que diabo entendia?

Pergunta: O senhor chegou a aprender alguma palavra?

Raimundo: No, no aprendi nada. A minha segunda mulher era filha desse tuxaua Adeca. Eles eram uns ndios bonitos.

Pergunta: Aonde morava o Adeca?

Raimundo: A aldeia deles era entre o Guariba e o Aripuan, era nesse meio. Eu me juntei com ela, morei trs anos. Mas cime assim s no inferno, qualquer coisinha ela dizia que matava... Eu j estava querendo escapulir das unhas dela. Tanto o Adeca como o Or gostavam muito de mim, da minha sogra, me dessa minha mulher, gostavam demais. A um dia eu falei com o Adeca. Ela chamava-se Derazinha, a me dela era Der. Eu contei o caso para ele, ele chamou ateno dela, deu uns conselhos... Ela era bonita, civilizada, mas tinha um sotaque de ndio.

Uns ndios asseados. Eu dei f, cada tribo tem um sistema, tem um tratar, tem um sistema de comida. Esses ndios Arara, a comida que eles faziam qualquer pessoa podia comer. Uma vez eu botei uma roa aqui no Aripuan, l em baixo. H muitos anos atrs aquilo j tinha sido capoeira de ndio. Ns plantando, eu e meu compadre, cavando, a achei um po deste tamanho. Bati nele, parecia uma borracha enterrada no cho. A ele disse: O que isso compadre? Respondi: Eu vejo dizer que isso po de ndio. Ainda lavei assim, pedra no . Isso no batata do mato? No , vejo dizer desde menino que isso po de ndio. Deixa para l. A passei aqui para o Guariba. O finado Jernimo Marinho que comandava os ndios. Trabalhavam com ele, cortavam seringa, esse Caetano. A baixaram, vinha o Z Brasil, Arim, tinha Mar, Marzinho e Mar Preto - este era meio moreno -, um tal de Pedro Corob, tudo ndio. A o compadre Zeca disse: Compadre, pergunta se isso po? Disse: T bem! A eu trouxe o po e disse: h Z, Z Brasil! Diga uma coisa, isso aqui po de ndio? Ele falava mas era ruim, algumas coisas a gente entendia. Ele olhou e disse que no sabia. Falei para o compadre Zeca: Eu no estou lhe dizendo que isso troo que nasce do cho, eu vejo desde menino. Um bocado deles [ndios] amansaram com papai e eu ouvia. A virou e mexeu, baixaram outros [ndios] com o finado Aleixo, Antnio Aleixo de Moura que era tambm patro. Eu perguntei para ele [um ndio]. Ele olhou: No sabe no. Passou-se, passou-se. A baixaram do Aripuan o Adeca, o Or, o Matias e eu mostrei para eles. Adeca falava bem portugus, ele no tinha sotaque de ndio, a gente notava que ele era ndio porque o jeito deles...Eu falei com ele, ele olhou e mostrou para o Or. Mas isso po de ndio? Ele disse: , po de ndio. Eu disse que tinha perguntado para uma poro, para aqueles do Guariba, para o Z Brasil, o Pedro Corob. Ele achou graa e disse: Ele no sabe falar direito, mas conhece, ele sabe que de ndio. Mas ele disse que no sabe porque cada tribo tem um sistema. Isso po de ndio, isso pertence a mim - e bateu no peito. Isso ns que fazemos. Uns fazem de milho, outros fazem de macaxeira, outros fazem de mandubi [amendoim] que chamam, outros fazem de car. Ento cada um tem sua qualidade. Ele sabia que era po de ndio, mas ele queria dizer que no era dele, era de outra tribo.

Pergunta: E esse tuxaua Caetano, ele aviava os outros ndios?

Raimundo: Isso mesmo, ele tinha barco, recebia mercadoria. Trabalhou a no [igarap] Moacir, era instrudo pelo finado Jernimo Marinho, que foi patro desse Vav [um seringueiro]. Vav conta isso muito bem, morou junto com eles. O barraco do Jernimo Marinho era dentro do Moacir. O Jernimo Marinho trazia mercadoria do J. Negreiros, e aqui aviava o Caetano e outros. O Caetano trabalhava com meia dzia de ndios e tambm civilizados. Quando conheci, ele j era meio idoso, ele era gordo, forte. Ele falava bem assim como eu estou falando, mas quando falava o idioma dele, por exemplo quando ia chamar um ndio acol - no tinha diabo que entendesse! Ele teve uma poro de filhos. Quando eu vim de Manaus, ultimamente, tinha dois: um era capito da Polcia Militar, o outro era cabo. Uma poro deles vive bem, por isso que eles no vieram mais para c. Eles so gente da farda, e aqueles que no so vivem bem empregado. O ndio tem um cartaz danado, e eles so um povo inteligente.

Pergunta: Do Moacir ento estes Arara foram dispersando?

Raimundo: Foi o tempo que o Jernimo Marinho morreu. Ele era tudo para eles, era o deus dos ndios. Como para esse Caetano, o Jernimo Marinho dava todo apoio aos ndios. O Jernimo Marinho morreu, acabou-se tudo. Foram tudo de guas abaixo. Foi o tempo que o Jernimo Marinho foi para So Paulo, doente, no tinha mais cura. Ele j tinha ido, depois voltou, veio aqui, balanceando, ele ia entregar isso tudo, consta que ele ia deixar esse Caetano, ia entregar tudo para o Caetano e ia embora. Mas eles estavam to acostumados, chamavam pai Jerome... Depois que o Jernimo morreu, desmantelou-se tudo. Esse Caetano estava de rebolada por a. Ficaram todos desorientados. Acabou-se tudo. Hoje tem alguns deles, ndios Arara, mas pouco. L no Aripuan eu vi um, j velho, a mulher do Matias, Maria Rodrigues. Tem alguns espalhados. Em Manaus tem um bocado deles.

Vestidos de vermelho

Entrevistei dona Mocinha, ex-moradora do Guariba, na minha casa em Aripuan, no dia 14 de janeiro de 1987. Dois dos seus filhos foram mortos pelos Cinta Larga em 1971, o que a levou a migrar para o rio Aripuan.

Mocinha: Eu fui nascida no Guariba e l me criei, num lugar chamado Cachoeira Seca. Meu pai, Teodoro Garrido da Silva, maranhense; minha me, Maria Lourival dos Santos. Meu nome: Francisca Lourival dos Santos. Desde menina meus pais me apelidaram Mocinha, e foi ficando. Ns trabalhava na Cachoeira, perto do Bacaba. L nasci, me criei e criei meus filhos. S no criei o Garcia porque ele acabou de se criar aqui [em Aripuan]. No tempo que eu era criana no tinha esse negcio de ndio [Cinta Larga], s tinha os Arara para baixo. Depois que me juntei, que subi, que fui trabalhar no Man Jos, com o velho Manoel [seu marido], pai do Chicuto, foi que comeou a aparecer. Ao lado que eu lavava roupa, ficavam jogando pau, pedra... Era eles [os Cinta Larga] com brincadeira.

Pergunta: A senhora conheceu os Arara no Guariba?

Mocinha: No, s ouvia falar. Mas teve um bando de Arara l para o lado do [igarap] Moacir [afluente do Guariba], e outra turma de Sucuru [Suru?], que foi que fez uma turma - dessa que tem ainda uma a, que a comadre Maria Xapuri e o compadre Eduardo. Foi desses que eles correram com medo dos Arara e dos Sucuru. A comadre Maria e o compadre Eduardo - nesse tempo ele era pequeno, s ia nas costas - eles correram com medo dos Arara e Sucuru que botaram neles para matar, eles correram com medo e se obrigaram a amansar. O finado Jernimo [Marinho] fazia assim: levava pente vermelho, pano vermelho, roupa vermelha, deixava l na beira do igarap para eles. A eles levavam aquilo e deixavam para o finado Jernimo: porco assado, macaco assado. A o finado Jernimo trazia tudinho, era o patro, ia l e trazia. A colocao era dentro do Moacir, no barraco dele.

Os parentes da comadre Maria Xapuri, esses que amansaram, eu vi tudinho. Eles usavam s uma cintazinha passada no cs, parece que era de envira, vermelha, com um palmo de largura, dura. S com a cinta assim, eles saram tudinho, as caboclas com os cunhzinhos nas costas, e os caboclos tudo na frente. Os colares deles no cheguei a ver. Vi eles quando chegaram no barraco, a o finado Jernimo vestiu tudo, pronto, ficaram tudo vestido. A batizaram eles tudo. porque morreram tudo. Desses caboclos s tem mesmo a comadre Maria Xapuri, o compadre Eduardo, o Antnio - que filho da comadre Maria com o Antnio Marques, que civilizado.

Pensei que a dona Nazar no fosse cabocla no. Eu sei que a dona Maria Xapuri , porque eu vi quando ela saiu l do mato e amansou, entrou dentro do barraco do finado Jernimo. Entraram tudo nu e ele vestiu tudinho. Tinha Apiac, tinha finada Nazar, tinha finado No, finado Arnio - esses morreram tudo, de gripe, pegaram uma gripe doida, matou eles. Em pouco tempo que eles amansaram, pegaram essa gri