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Novelas nada exemplares e a antecipação de processos narrativos em Dalton Trevisan Roberto Nicolato 1 Introdução O primeiro livro de Dalton Trevisan, Novelas Nada Exemplares, é uma obra singular, diria imprescindível para aqueles que se arriscam no tortuoso caminho de desvendar o espaço, a composição dos procedimentos narrativos e a rica simbologia que caracterizam a produção literária do autor curitibano. Novelas Nada Exemplares 1 deve ser lida não como a obra de um jovem autor, pois quando chegou ao mercado editorial, nos idos de 1959, reunia a produção de duas décadas do escritor curitibano. E o mais importante: 1 Roberto Nicolato é jornalista diplomado e professor do Curso de Jornalismo do Centro Universitário Uninter, em Curitiba. É mestre e doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná. 1 TREVISAN, Dalton. Novelas Nada Exemplares. 6ª ed. Rev. Rio de Janeiro, Record, 1979. - 1 -

Dalton novelas nada exemplares

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Novelas nada exemplares e a antecipação

de processos narrativos em Dalton Trevisan

Roberto Nicolato1

Introdução

O primeiro livro de Dalton Trevisan, Novelas Nada

Exemplares, é uma obra singular, diria imprescindível

para aqueles que se arriscam no tortuoso caminho de

desvendar o espaço, a composição dos procedimentos

narrativos e a rica simbologia que caracterizam a

produção literária do autor curitibano.

Novelas Nada Exemplares1 deve ser lida não como a

obra de um jovem autor, pois quando chegou ao mercado

editorial, nos idos de 1959, reunia a produção de duas

décadas do escritor curitibano. E o mais importante:

em Novelas Nada Exemplares o autor irá antecipar

muitos dos temas e dos processos narrativos que

estarão presentes em suas obras posteriores.

1 Roberto Nicolato é jornalista diplomado e professor do Curso de Jornalismo do Centro Universitário Uninter, em Curitiba. É mestre e doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná.1 TREVISAN, Dalton. Novelas Nada Exemplares. 6ª ed. Rev. Rio de Janeiro, Record, 1979.

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Neste ensaio, pretendo justamente lançar algumas

luzes para melhor compreensão desses elementos, a

começar pela tematização do discurso que se encaminha

para a degradação, o desencontro e a solidão dos

personagens.

Por fim, esse trabalho terá como objetivo

analisar a simbologia contida em Novelas Nada

Exemplares, que é sustentada em parte pelas citações

bíblicas e pela presença de animais, principalmente

alados, que entram na narrativa como um motivo

importante, anunciador de aspectos trágicos no

decorrer da ação, ou para revelar metaforicamente os

personagens.

Vozes e sinfonias

Alguns temas são recorrentes nas obras de Dalton

Trevisan: o marido traído, a passagem de uma vida

moralmente correta para o mundo da prostituição, a

loucura, a solidão, o desencontro e a morte.

São histórias que se repetem, que se cruzam,

cujos fios são retomados noutros contextos, numa

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urdidura de silêncio como Penélope a tecer o seu

inacabado bordado.

Se por um lado a tessitura presente na narrativa

épica se realiza na obra de Dalton pela temática das

mulheres, que estão sempre a espera dos maridos, por

outro não se convalida pois que no interior desse

mesmo discurso não há a superação do mal pelo bem;

tampouco seus heróis reproduzem o arcabouço de

Ulisses, herói destemido e inteligente, pronto a

superar os obstáculos e lançar por terra os inimigos

pretendentes da sua incansável e paciente esposa.

Para seguir esse percurso, urdido pelo silêncio

de uma narrativa minimalista, sincopada, o escritor

terá como ferramenta ao seu dispor o poder da palavra,

na melhor acepção proposta por Ezra Pound2 que define a

grande literatura simplesmente “como linguagem

carregada de significados até o máximo grau possível”.

Essa busca obstinada pelo poder da síntese, de

procurar a “palavra-potência”, reduzida ao símbolo,

faz com que o escritor reescreva seus livros a cada

edição, fraturando o quanto pode a narrativa. Estudos

estudo comparativos das primeiras edições das obras de

2 Ezra Pound, em ABC da Literatura (São Paulo, Cultrix, 5ª ed, 86-90. P.40) escreve um compêndio de literatura, fazendo uma análise do que ele considera a melhor poesia de todos os tempos a partir dos seus cânones.

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Dalton Trevisan com as posteriores trazem revelações

de grande interesse.

O resultado desse procedimento “minimalista” é

obtido, em parte parte, pela presença das elipses, das

frases ritmadas de uma linguagem que dialoga com a

poesia, através de metáforas, e com uma complexa e

rica simbologia.

Em Novelas Nada Exemplares, o escritor curitibano

vai compor o universo de personagens de uma cidade

provinciana e periférica, inserida no modus vivendis

da década de 40 e 50, que a cada fio urdido na trama,

a cada passo, se encaminham para a degradação física e

moral. A narrativa deriva para o trágico, para a

reificação e a morte, diante do nosso olhar comovente,

embora o autor não demonstre veladamente qualquer

complacência para com seus personagens.

Quando não é pelas relações sociais , é pelas

condições impostas pelo meio que o herói nos contos de

Dalton se degrada, como é o caso de Pedrinho,

personagem principal do primeiro conto de Novelas Nada

Exemplares. Nesse conto, o autor retrata uma típica

família de origem rural, sem consciência dos seus

direitos de cidadania, ficando à mercê da opinião do

farmacêutico, representante único da ciência e da

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medicina. A história se passa provavelmente na década

de 50, época em que os avanços tecnológicos ainda não

haviam chegado ao interior do Brasil.

Por isso, a família de Pedrinho está fadada ao

conformismo; está menos sujeita às interferências

civilizatórias do que às ações inevitáveis do destino.

Uma grande distância a separa da liberdade de escolha

sartreana, da condição em que o homem estaria

condenado a ser livre, a decidir por caminhos

desconhecidos, ainda não vividos, instaurando a

existência no processo de angústia. Para que se

enganar se Pedrinho tem a sua sorte predestinada...

Não poderá ir contra à sua condição social. Pedrinho é

o herói que comove. Não só o espaço, mas também o

tempo em que se constrói a narrativa conspiram contra

ele.

O herói de Dalton não tem relevância social e

pode assumir muitas facetas. Tanto pode ser o homem

que se degrada pela precariedade dos recursos

materiais, como o tarado, o solteirão incorrigível, as

donzelas casadouras, as prostitutas, os deserdados.

Ele não é o herói mitológico, picaresco ou romântico.

O herói de Dalton é retirado do baixo imitativo,

embora não seja o anti-herói, crítico da realidade

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social. Vitimado pelas convenções sociais, a cada ato

ele se aproxima da tragédia, refém que está da

realidade e de suas ações.

O que difere Dalton dos novelistas clássicos é a

intenção de transformar a pessoa comum num herói,

mesmo que às avessas, do mesmo modo que a chamada

“imprensa marron” joga seu facho de luz nas mazelas do

cotidiano de pobres miseráveis, estampando seus nomes

e fotos nos jornais. Os boletins de ocorrência das

delegacias e o noticiário das publicações

sensacionalistas, inclusive, são fontes em que o autor

se nutre para compor algumas de suas narrativas:

“Noite de vinte e três de junho, Ritinha da

Luz, dezesseis anos, solteira, prenda doméstica

ao sair do emprego, dirigiu-se à casa de sua

irmã Julieta, atrás da Ponte Preta. Na Linha do

trem foi atacada por quatro ou cinco

indivíduos, aos quais se reuniram mais dois.

(…) Seu choro atraiu um guarda-civil, que a

conduziu até a delegacia.”3

3 TREVISAN, Dalton. O Vampiro de Curitiba. Rio de Janeiro, Record, 19ª ed. Rev. 1998. p.76.

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No conto “Debaixo da Ponte Preta”, a mesma

história vai se repetir indefinidamente, através de

micronarrativas que mantêm como elementos constantes

a ação e o objeto do desejo sexual, no caso a

“negrinha”.

A recorrência aos mesmos temas e até mesmo a

situações inteiras é uma das características marcantes

do universo de Dalton Trevisan. Em “O Noivo”, o pai

segue o filho Osvaldo que prefere trocar o conforto da

vida conjugal pela solidão do botequim, e por isso

nunca marca a data do seu casamento com a noiva

Glorinha:

“O velho o seguiu ao botequim. O tempo que lá

esteve, observando o filho, este não o olhou e,

na opinião do pai, nem o viu. O garçon trazia a

garrafa, enchia o cálice de Osvaldo, sem

qualquer palavra entre os dois. Mão no bolso,

espiando o cálice, certa mancha na parede,

simplesmente a parede. Não deu pela presença do

outro. Sempre só, na mesa do fundo, nem parecia

triste.”4

4 TREVISAN, Dalton. Novelas…p.60

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No conto “Botequins”, só que desta vez em Cemitério de

Elefantes, outro personagem segue a mesma linha de

conduta de Osvaldo, inclusive mantendo-se indiferente

ao suicídio de um desconhecido que ocorre

inesperadamente na sua frente:

“E nenhum espelho na parede. José não gostava

de se olhar. Descobriu aquele botequim e vinha,

toda noite, sentar-se à sua mesa, o jornal no

bolso. Sempre o mesmo, puído nas dobras. Lia

notícia completa antes de emborcar a primeira

dose. (…) O outro saudou José e, lívido, careta

de medo misturou o pó rosado no copo.”5

Do mesmo modo, a figura do vampiro, esse anti-

herói sem nenhuma moral e caráter, já é antevisto pelo

autor em pelo menos três contos de Novelas Nada

Exemplares. Um dos exemplos está em “A Velha Querida”,

onde prevalece também o grotesco das situações

inusitadas:

5 TREVISAN, Dalton. Cemitério de Elefantes. 13ª ed, Rio de Janeiro, Record, 1997. p. 55.

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“(…) pois pensava nela como “A sua velha”,

merecida e enfim conquistada na mais feroz caça

às velhinhas de Curitiba (…).”6

“Ela sorriu com a dentadura antiga, em que as

gengivas eram de qualquer tonalidade menos de

carne e os dentes alvares como dentes jamais

usados.”7

“(…)o rapaz percorria vagarosamente as costas

lisinhas com os dedos de quem acaricia um bicho

de estimação até que encontraram caroço ou

verruga(…).”8

A experiência sexual do personagem com a velha

prostituta já anteciparia as aventuras pitorescas e

degradadas de Nelsinho (vampiro de Curitiba) pelo

universo da terceira idade como ficará demonstrado em

“Visita à Professora” e “A Noite da Paixão”,

narrativas que fazem parte da obra O Vampiro de

Curitiba.

6 TREVISAN, Dalton. Novelas…p.88.7 Idem p.89.8 Ibidem p.91.

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Em Novelas Nada Exemplares, a metáfora do vampiro

também estará presente em “O Domingo” (“Me morda,

pernilongo. Morda Marta também”)9 e “No Beco”, em que

o narrador passa da terceira para primeira pessoa, se

transformando em personagem, e onde aparece pela

primeira vez a figura do vampiro (“Eu lhe apertava o

nariz, mordia a bochecha, meu dente ali no pescoço”).10

A recorrência na obra de Dalton Trevisan não se

limita a personagens ou enredos, às vezes uma simples

frase usada no seu livro de estréia pode habitar outro

conto, dar significação a um outro contexto. “Que fim

levou o doente”11, frase de “Pensão Nápoles”, serve de

inspiração para o título “Que fim levou o vampiro de

Curitiba?”12.

Outro elemento que vai constar em várias obras do

escritor paranaense são as citações13, o que demonstra

ser Dalton um grande leitor, e o seu diálogo com o

discurso canônico da “alta literatura”. O próprio

título do livro Novelas Nada Exemplares é uma citação

9 Ibidem idem p.101.10 Ibidem idem p.25.11 TREVISAN, Dalton. Novelas…p. 49.12 TREVISAN, Dalton. Em Busca…p. 7813 Quanto às citações, a professora de Literatura da UFPR, Ana Maria Filizola faz uma pesquisa abrangente sobre o tema na obra do Dalton, no ensaio Pessoa precursor de Dalton: a cidade revisitada, que integra o livro O Imaginário da Cidade (Brasília/São Paulo, Editora Universidade de Brasília/Imprensa Oficial do Estado, 1ª ed., 2000. p.120).

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da obra Novelas Exemplares, de Miguel de Cervantes.

“Em Busca de Curitiba Perdida” remete a “Em busca do

Tempo Perdido”, de Marcel Proust, e o conto “Noites de

Curitiba” a “Noites do Sertão”, de Guimarães Rosa,

entre outros exemplos.

No final da estrutura narrativa de “Curitiba

Revisitada”14, o autor nos faz lembrar inclusive Carlos

Drummond de Andrade, no poema “Confidência do

Itabirano”. Dalton: “Curitiba é apenas um assovio com

dois dedos na língua/Curitiba foi não é mais”.

Drummond: “Itabira é apenas uma fotografia na parede.

Mas como dói.”15

O lugar da cidade

A cidade, especificamente Curitiba, se traduz num

espaço simbólico, num universo dotado de ampla

significação, que acompanha toda a obra de Dalton

Trevisan e que permite engendrar o conceito desse

espaço como personagem na circularidade do discurso.

Em Novelas Nada Exemplares, as pegadas e os

signos da província, da Curitiba dos anos 40 e 50,

14 Idem p.9015 ANDRADE. Carlos Drumond de. Antologia Poética.12ª ed. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1978. p. 37.

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deixam suas marcas em quase todas as narrativas. Os

espaços gerais e públicos da cidade ainda não estão

plenamente delineados, como nas obras posteriores em

que praças, logradouros públicos podem ser

identificados.

Contudo, as referências desse universo periférico

podem ser percebidas nas imagens das casas de madeira,

onde o jardim disputa espaço com os pés de couve, nos

moldes de uma típica cidade do interior, e cujas

histórias de seus moradores são embaladas por antigas

vitrolas a tocar as valsinhas de Francisco Alves e

Orlando Silva.

Em “Valsa da Esquina”, o isolamento da província,

longe dos acontecimentos do mundo e a falta de mar,

reservam ao personagem uma vida comum e sem

perspectivas: “- Um moço em Curitiba devia se afogar…

(…) -… no último barril de rum!”16

A temática do isolamento, da província x

metrópole (onde se é possível ser testemunha dos

grandes acontecimentos da história), é analisada com

maior profundidade em “Pensão Nápoles”, conto em que

pela primeira vez o autor vai trabalhar com espaço

urbano plenamente identificável: as pensões baratas,

16 TREVISAN, Dalton. Novelas…p.66.

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que se proliferaram às margens do hoje canalizado Rio

Belém que corta o centro da cidade. Vivendo nesse

ambiente à margem do processo social, o herói sonha

com a Europa, mais especificamente com a Itália, mas

não conseguirá ir além das pensões com nomes que

remetem às cidades italianas, incapaz de se livrar de

sua condições social, mudando de pensões e se

definhando por causa do tifo.

O personagem é um filho pródigo que sonha em

voltar para casa. O tema do filho e do marido pródigos

é muito bem analisado pelo crítico literário Miguel

Sanches Neto, no livro Biblioteca Trevisan.17, para

quem “as mulheres estão sendo esperando seus homens –

primeiro o marido, depois também o filho”. O crítico

cita como exemplos os contos “Ponto Crochê” e

“Penélope”. Nesse último, um casal de velhos começa a

receber cartas anônimas que colocam em dúvida a

fidelidade da mulher. “Abre-a, duas palavras

recortadas. “(…) a amiga desmancha um ponto errado na

toalhinha”.18 Essa atitude vai representar a construção

da própria vida da mulher que acabará, diante da

17 NETO, Miguel Sanches. Biblioteca Trevisan.1ª ed, Curitiba, Editora UFPR, 1996.p 15.18 TREVISAN, Dalton. Novelas…p.172.

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desconfiança do marido, tecendo a sua própria

mortalha.

“Para romper com este destino passivo de

Penélope, algumas mulheres enlouquecem, outras

arranjam amantes ou abandonam o lar.”19

Nesses contos de primeira leva, que integram

Novelas Nada Exemplares, a casa vai se constituir no

reduto sacrossanto ou ambiente de profanações (casas

boêmias e inferninhos). Na visão de Bachelard, esse

espaço tanto pode ser o ninho que evoca proteção e

segurança como também o ambiente da precariedade e da

fragilidade.

Em A Poética do Espaço, Gaston Bachelard, define

a casa como “(…)nosso canto do mundo. Ela é, como se

diz amiúde, o nosso primeiro universo”.20 A casa é

objeto dos nossos devaneios, está relacionada à mais

longínqua memória, associada que está ao processo de

imaginação.

Para Bachelard, a casa é o espaço de proteção e

segurança, a referência principal do eu: “(…) a casa

19 NETO, Miguel Sanches. Biblioteca…p.1620 BACHELARD, Gaston.A Poética do Espaço. 1ª ed. São Paulo, Martins Fontes, 1989. P.24

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abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa

permite sonhar em paz”21.

Em Dalton, a casa é o espaço da solidão, do

compromisso, das neuroses do cotidiano. Apesar disso,

é a esse ninho que o marido tenta se agarrar quando se

separa da mulher e vai morar num quarto de hotel:

“Agarra-se aos amigos, um por um se vão. Para todos

uma casa a que voltar”.22

Na narrativa de Dalton, casa se revelará como

ambiente de proteção contra o universo da rua, dos

botecos e da boemia. Ali se nasce, ali se morre,

completa-se o ciclo da vida.

Dalton nos revela a noção da casa como

referencial de totalidade, espaço de todas as

contradições, contrições, testemunha de todo percurso

da existência, do que surge e degrada. A casa, por

isso, é por excelência o reino da existência e da

morte, que carece de ritos e que, historicamente,

carregava consigo o status de acontecimento público.

Conforme Walter Benjamin, em Magia e Técnica,

Arte e Política, durante o século XIX a sociedade

burguesa produziu as instituições higiênicas e sociais

21 Idem p.2622 TREVISAN, Dalton. Novelas Nada Exemplares. _in Quarto de Hotel, p. 121.

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(leia-se hospitais e sanatórios) com o objetivo de

permitirem “aos homens evitarem o espetáculo da

morte”. Esse espetáculo que, segundo ele, estaria na

gênese do processo narrativo.

“Ora, é no momento da morte que o saber e a

sabedoria do homem e sobretudo sua existência

vivida – e é dessa substância que são feitas as

histórias – assumem pela primeira vez uma forma

transmissível”23.

Espaço de valores patriarcais, cenário do drama

familiar provinciano, a casa na obra Novelas Nada

Exemplares cumpre uma função bem determinada. Está

ancorada nos princípios da fé cristã. A sala é porta

de entrada e saída do ser.

Na hora da morte, ela ocupa o lugar central.

Conto que inicia o discurso in media res, “O morto na

Sala” é um bom exemplo de ritual da morte que

predominou por muito tempo no Brasil e que hoje ficou

relegado a algumas cidades do interior. A morte do

pai, que está sendo velada na sala, é o mote para

incursões no passado, e ponto de sustentação para a

23 BENJAMIN, Walter. Magia..

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vingança da personagem Ivete que se concretiza no

final da narrativa. Ao trazer à tona a relação

tempestuosa e submissa de Ivete para com o pai e o

ritual da morte numa casa suburbana distanciado da

assepsia moderna, o discurso cumpre e resgata uma

importante função simbólica.

Dalton vai compor a geografia da cidade na imagem

das ruas enlameadas pela chuva, com cachorros latindo

na entrada das casas, em cujas paredes reinam quadros

de São Jorge e da Santa Ceia. Em Novelas Nada

Exemplares, a Curitiba representada ainda não é a

metrópole que aparece no conto “Uma Vela para Dario”,

de Cemitério dos Elefantes.

Tampouco remete à Curitiba da década de 90,

completamente transformada pelas reformas

urbanísticas. “Para as pessoas que viveram os anos 50

em Curitiba, não seria difícil perceber o quanto e

como a cidade foi transformada”, diz Antônio Cesar de

Almeida Santos, em Memórias e Cidade,24 livro que busca

resgatar através de pesquisas e depoimentos a história

o imaginário da cidade.

24 SANTOS, Antônio Cesar de Almeida. Memórias e Cidade. Depoimentos e transformação urbana de Curitiba (1930-1990)2ª ed,Curitiba, Aos Quatro Ventos, 1999.

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Da década de 60 para cá, a cidade se transformou,

perdeu a medida da província e nela o narrador do

poema em prosa “Curitiba Revisitada”, também não mais

se encontra, não mais se identifica:

“(…)não te reconheço Curitiba

a mim já não conheço

a mesma não é outro eu sou

nosso caso passional morreu de malamorte (…)”25

Em Novelas Nada Exemplares, o autor paranaense

vai descrever a cidade como uma extensão dos valores

campesinos. Elementos do universo rural povoam a

narrativa de “Outros Meninos” e a simbologia dos

animais surge como elemento de motivação para o

desenrolar da narrativa, constituindo-se na metáfora

da degradação, do rompimento com os valores

tradicionais ou da morte.

No imaginário popular do Brasil sertanejo, alguns

animais como gavião e corujas são tidos como

agourentos. Funcionam como mediadores entre Natureza e

Cultura, entre o céu e a terra, construindo a ponte

entre o homem e o destino.

25 TREVISAN, Dalton. Em Busca…p.88.

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Em “Boa Noite Senhor”26, o conteúdo temático é a

pederastia que, a exemplo da embriaguez e da traição,

serão alternativas encontradas pelos personagens

solitários frente ao “inferno conjugal”, como revela

Miguel Sanches, no livro Biblioteca Trevisan.27 O conto

trata da história de um homem casado (simbolizado pela

figura do morcego) que tenta seduzir um adolescente.

Quando não são os morcegos que atacam suas vítimas,

são os corvos empoleirados nos pinheiros a prenunciar

a morte ou a quebra dos padrões morais, como acontece

no conto “Chuva”28 que descreve a conflituosa e

primeira relação de uma mulher, com um homem sedutor.

A degradação ocorre no processo de transição dos

personagens do campo para a cidade. Está bem marcada

no conto “João Nicolau”, cuja narrativa relata a

história de um moço do interior. O percurso de sua

viagem é marcado pelo envolvimento sexual com três

mulheres, tentativa de homicídio e prisões. O corvo

novamente aparece na narrativa, desta vez como

metáfora da morte: “Sua distração, além da visita de

Cristina, era observar os corvos, imaginando onde se

abrigavam da chuva”.29 No final da narração, o anti-

26 TREVISAN, Dalton. Novelas…p.50.27 NETO, Miguel Sanches. Biblioteca…p.15.28 TREVISAN, Dalton. Novelas.p.5529 Idem p.117.

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herói é morto após ingerir caco de vidro moído,

colocado na comida pela mulher e a filha.

Os animais, no livro Novelas Nada Exemplares,

também podem ser utilizados para caracterizar a

psicologia e as ações dos personagens ou demonstrar a

sua impotência diante da falta de recursos materiais

ou da miséria cotidiana, conforme está representado na

narrativa “O Domingo”: “Rolou de costas, besouro sem

poder se virar”.30

Mas é no conto “A Velha Querida” onde a

complexidade e a riqueza simbólica de Novelas Nada

Exemplares alcança maior significação. Logo no início

do discurso, o zumbido das moscas surge como metáfora

da morte, no relato de um enterro, e aparece outras

vezes para simbolizar o percurso do personagem - um

homem casado de conduta semelhante a Nelsinho, de O

Vampiro de Curitiba, que mantém relação sexual com a

velha do bordel.

A construção da narrativa instaura a voz do

discurso bíblico e rompe com os limites entre o

sagrado e o profano:

30 Ibidem p.106.

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“(…) todas elas, serenas ou entoando ladainha

em voz baixa e lamuriosa, repetiam o mesmo

gesto em que, as pontas unidas do polegar e

indicador em círculo perfeito, concebiam o

símbolo da inocência perdida (…)”.31

“(…) Deus louvado, tenho a minha velha, eu que

não mereço a última das mulheres, nenhuma é

suficientemente indigna para mim.”32

A relação sexual com a velha vai funcionar como uma

espécie de salvação: “Posso ir para casa”, pensou o

moço, “abraçar minha mulher e beijar meus filhos.

Agora me sinto bem”. Na realidade, o herói de Dalton

Trevisan precisa passar pelas piores provações, e é

pela via da degradação física e moral que se

concretiza essa passagem.

Como um Ulisses às avessas, ele vai encontrar a

expiação de seus pecados na própria luxúria, no

rebaixamento moral, na reificação, no nada e na

solidão. Assim como a personagem de A Polaquinha, que

na condição de prostituta “(…) se crucifica nos cravos

da luxúria”, o homem de “A velha querida” desce ao

31 Ibidem idem p.85.32 Ibidem idem p.89.

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degrau da baixeza humana, insere num ritual de morte e

ressurreição: “Tudo já passou. Não foi nada. Já

passou. Agora estou bem”, diz consolado o herói.

Conclusão

Ao apropriar-se do discurso que está à margem e

lhe conferir voz, tematizá-lo numa perspectiva

simbólica que alcança dimensões relacionadas com a

história, religião e com a mitologia clássica, Dalton

Trevisan traz, ainda que tardiamente, a modernidde

para a literatura paranaense.

Dalton não se intimida ao utilizar clichês,

ditados populares, temas bíblicos, frases de

fotonovelas, correio sentimental e a crônica policial

na narrativa e exemplos não faltam: “gatinha

crucificada nos cravos da luxúria”, “alegres mistérios

da carne”, “Não sabe de que recheios os sonhos são

feitos” ou “Maria fugiu com o amante e deixou um

recado preso em goma de mascar no espelho da

penteadeira…”,

Na realidade, Dalton se apropria tanto do

discurso popular e da cultura de massa como do

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discurso canônino, reelaborando-os em sua estrutura

narrativa para traduzir a visão de mundo do autor e

das personagens. Essa apropriação histórica,

intertextual, confere a obra de Trevisan não só um

caráter de atualidade como também de universalidade.

Os dramas vivenciados da província ganham

dimensão, status de grandeza, num corpus narrativo em

que a escrita é elaborada com maestria, plena de

significações. Em Dalton nada é por acaso, o inferno

somos nós. Não há salvação que mereça o seu nome.

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