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Pensamento retorcido, Escrita retorcida Entrevista com Daniel Lins Por Miguel Ângelo Oliveira do Carmo* Daniel Lins, filósofo e psicanalista, é doutor em Sociologia pela Sorbonne, Universidade de Paris VII. Atualmente como professor do Departamento de Ciências Sociais e Filosofia da Universidade Federal do Ceará, realiza pesquisas no campo da subjetividade. Dono de um estilo excitante, marcante pela forma explosiva e inquietante de pensar, nesta entrevista, nos fala sobre Antonin Artaud, objeto de suas pesquisas há um bom tempo. Miguel Ângelo Oliveira do Carmo - Podemos começar por uma singular pergunta, e me vejo obrigado a fazê-la no presente: Quem é (e não quem foi) Antonin Artaud? Daniel Lins - "Quem sou? De onde venho? Eu sou Antonin Artaud e basta dizê-lo (...)" Artaud é um gênio... Quer dizer: UM DEFEITO DE FABRICAÇÃO! MA - Seu novo livro traz uma seleção de textos sobre Artaud (Antonin Artaud, o artesão do corpo sem órgãos, Relume Dumará, 1999). Sua estratégia, parece-me, não era escrever um livro sobre ele, mas experimentá-lo em vários campos do saber: teatro, linguagem, poesia, escrita, cinema, etc. Fale- me sobre esta experimentação. DL - Não creio ser possível falar sobre Artaud sem perpetrar, uma vez mais, o rapto de Artaud. Como falar sobre Artaud, autor por excelência da vida e de uma escrita "ilisível". Como ler o ilisível sem se deixar atingir pela dose de angústia presente em toda incompreensão textual? Evoca-se, às vezes, a respeito da escrita contemporânea um verdadeiro trabalho de "desligação" ou contra-ligação, um ataque contra os laços psíquicos do leitor. Como a pintura não figurativa, ou a música serial, a escrita moderna parece repelir com desdém ou violência alguém que pousa sobre a obra de arte um olhar amoroso. Não é, contudo, um pacto amoroso secreto que nos liga a Artaud e a sua escrita reputada ilisível? Não é

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Pensamento retorcido,Escrita retorcida

Entrevista com Daniel Lins

Por Miguel Ângelo Oliveira do Carmo*

Daniel Lins, filósofo e psicanalista, é doutor em Sociologia pela Sorbonne, Universidade de Paris VII. Atualmente como professor do Departamento de Ciências Sociais e Filosofia da Universidade Federal do Ceará, realiza pesquisas no campo da subjetividade. Dono de um estilo excitante, marcante pela forma explosiva e inquietante de pensar, nesta entrevista, nos fala sobre Antonin Artaud, objeto de suas pesquisas há um bom tempo.

Miguel Ângelo Oliveira do Carmo - Podemos começar por uma singular pergunta, e me vejo obrigado a fazê-la no presente: Quem é (e não quem foi) Antonin Artaud?

Daniel Lins - "Quem sou? De onde venho? Eu sou Antonin Artaud e basta dizê-lo (...)" Artaud é um gênio... Quer dizer: UM DEFEITO DE FABRICAÇÃO!

MA - Seu novo livro traz uma seleção de textos sobre Artaud (Antonin Artaud, o artesão do corpo sem órgãos, Relume Dumará, 1999). Sua estratégia, parece-me, não era escrever um livro sobre ele, mas experimentá-lo em vários campos do saber: teatro, linguagem, poesia, escrita, cinema, etc. Fale-me sobre esta experimentação.

DL - Não creio ser possível falar sobre Artaud sem perpetrar, uma vez mais, o rapto de Artaud. Como falar sobre Artaud, autor por excelência da vida e de uma escrita "ilisível". Como ler o ilisível sem se deixar atingir pela dose de angústia presente em toda incompreensão textual? Evoca-se, às vezes, a respeito da escrita contemporânea um verdadeiro trabalho de "desligação" ou contra-ligação, um ataque contra os laços psíquicos do leitor. Como a pintura não figurativa, ou a música serial, a escrita moderna parece repelir com desdém ou violência alguém que pousa sobre a obra de arte um olhar amoroso. Não é, contudo, um pacto amoroso secreto que nos liga a Artaud e a sua escrita reputada ilisível? Não é uma relação de leitura mais complexa e labiríntica, sem cessar pronta a se romper e, recomeçar, sempre? E sempre experimentar ao invés de falar sobre? O que nos promete, finalmente, a leitura de autores ilisíveis como Artaud, por exemplo? Um arrebatamento, quando não uma comoção de nossas lógicas, ofuscante transbordamento de sentido, leituras infinitas, gravidezes não desejadas. Como assim? Por que? Porque este contato é doloroso, louco; contato com uma escrita dolorosa, louca; uma escrita-outra que abre um espaço de leitura diferente e impede a interpretação que tanto mata quanto salva. Experimentar, eis a que Artaud nos condena...

MA - Artaud, muitas vezes se disse, "o suicidado pela sociedade". A este, no campo da literatura, é possível ver também o suicídio da palavra?

DL - Creio que sim, sobretudo quando a palavra é algo que não diz mais nada, é

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algo totalmente esvaziado de sentido, nutrida apenas pelos signos em forma de representação e repetição do mesmo. Criar outra palavra, era isso que queria Artaud: uma palavra regada pelo sangue e pela merda numa mescla de escatologia divina e estupro do sagrado. Criar, é disso que se trata: o suicídio da palavra anuncia o estupro... ora toda criação parte do nada... portanto, o estupro é parte integrante de toda criação. O suicídio da palavra aparece em Artaud como uma abertura de campos e pulsação vibrátil, lugar possível para a emergência de uma ética da crueldade engendrada por um pensamento constituído como uma terrível e inelutável necessidade...

MA - A escrita de Artaud é criativa, profunda, efervescente, enfim, uma escrita que atravessa o corpo (escrita-corpo) e o prazer (escrita-prazer). Como ler tal escrita?

DL - Como ler o ilísivel? Como dizer o indizível de tal escrita? É preciso inventar outro corpo, outro habitus... Tal é a herança da escrita da crueldade: existiria uma inocência da crueldade? Por que nosso maior desejo deseja sempre o que nos destrói? Não encontramos nos textos de Artaud pontos de apoio, suporte identitário, o conforto das leituras "típicas ": - Um dia, então, o pobre José, pedreiro devotado, que freqüentava o cais do porto e convivia com prostitutas e assistentes sociais, descobriu que era traído! A escrita romanesca tradicional repousa na transfiguração narrativa desse "romance familiar" sobre o qual Freud postula a existência no imaginário infantil e que ressurge nos textos narrativos sob a versão realista ou sonhada. Ora, nada de semelhante aparece nos textos de Artaud, sobretudo nas suas últimas obras as identificações edipianas do "romance familiar" voam em estilhaços. O texto de Artaud permanece letra morta, outro nome do ilisível, se o sujeito que os lê recusa de nele se perder, de abandonar provisoriamente suas referências subjetivas para entrar no processo de dissolução das identidades que tal texto impõe. Ninguém pode sair indene de tal leitura, se se lê realmente. Artaud não confunde nossas práticas de leituras mas propõe a mais, no seio mesmo de sua escrita, uma reflexão sobre a recepção de todo texto literário.

MA - Realmente Artaud propôs retorcer o pensamento, se livrar de uma escrita significante; com isto, quer se manter a folha em branco ou se criar novos sentidos?

DL - Não, não existe "folha branca" em Artaud, mas sempre toneladas de folhas escritas, não necessariamente com a tinta, mas com a merda, o esperma, a saliva, as lágrimas, os gritos líquidos e abafados da escrita-louca. Sua escrita, contudo, é marcada não apenas por "novos sentidos", mas por uma gramática de vida que sabe usar o perfume da morte para enganar os enganadores... Ou seja, em Artaud o vazio é sempre pleno: a morte, ao contrário da folha branca-morta, é sempre habitada por forças que encontram na vontade de potência seus significados móveis desconstruindo, assim, universos petrificados, "mumificados" e anunciando, por meio da crueldade, a potência do acontecimento: o rapto do espírito bem instalado.

MA - Deleuze dizia que é preciso ser estrangeiro em sua própria língua. Artaud não foi só estrangeiro em sua própria língua, mas em várias: a linguagem teatral,

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poética, etc. Com este processo, visava fazer-se estrangeiro de si próprio?

DL - Não diria simplesmente que ser estrangeiro na sua própria língua significa poder ir além de um sujeito historicamente instituído engendrando sujeitos e línguas segundo uma lógica dos fluxos e não da genealogia, da cartografia dos desejos e não da geografia que marca corpos e estratifica identidades construindo sujeitos próteses. Ser estrangeiro na sua própria língua é também recusar as palavras e a língua impostas como herança ou como "doença", como ferida da língua. É preciso gaguejar em sua própria língua... ou seja, recusar uma língua-prisão, recusando ao mesmo tempo uma "língua pensada para mim" que faz da palavra uma prisão.

MA - O corpo sem órgãos (CsO), sem organicidade. Como entender esta falta, a partir de Artaud, perante a vida?

DL - Leia meu livro acima citado, leia Deleuze, leia Artaud. Diria apenas, e no limite desta conversa virtual, que em Artaud não se trata jamais nem de falta nem de excesso. E a vida é uma invenção humana regida pela ética da crueldade que encontra sua energia positiva no "corpo sem órgãos", máquina para produzir o real. Apesar de seus sofrimentos, apesar de ter sido raptado pelo divino, Artaud sempre deu a impressão de acreditar no corpo. Sua revolta não era contra o corpo mas contra os órgãos colados, como uma doença, no corpo. Ele percebeu que nossos órgãos e nossa carne eram obstáculos essenciais contra o corpo. Para ele, o corpo não era uma evidência para o homem, ou uma "sabedoria", mas uma conquista, uma invenção possível. O corpo não está doente, mas os órgãos são uma doença. Construir um corpo sem órgãos é para Artaud uma maneira de escapar a ilusória identidade do sujeito, contra esta identidade e este sujeito Artaud quer acordar no seio do corpo uma crueldade viva e libertadora. Expulsar Deus de seu corpo e poder, assim, encontrar seu verdadeiro corpo, seu corpo bilíngüe, plural, seu corpo sem órgãos.

 

* Mestre em Filosofia pela UFRJ