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  UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ DANIELLA DA CUNHA GRAMANI O APRENDIZADO E A PRÁTICA DA RABECA NO FANDANGO CAIÇARA: estudo de caso com os rabequistas da família Pereira da comunidade do Ariri CURITIBA 2009

Daniella Da Cunha Gramani

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dissertação sobre aprendizado de rabeca

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    DANIELLA DA CUNHA GRAMANI

    O APRENDIZADO E A PRTICA DA RABECA NO FANDANGO CAIARA:

    estudo de caso com os rabequistas da famlia Pereira da comunidade do Ariri

    CURITIBA

    2009

  • DANIELLA DA CUNHA GRAMANI

    O APRENDIZADO E A PRTICA DA RABECA NO FANDANGO CAIARA:

    estudo de caso com os rabequistas da famlia Pereira da comunidade do Ariri

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Msica, Departamento de Artes, Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paran, rea de concentrao Cognio e Filosofia da Msica, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Msica. Orientadora: Prof. Dr Beatriz Senoi Ilari

    CURITIBA

    2009

  • Agradecimentos

    Aos fandangueiros Z Pereira, Arnaldo Pereira e Laerte Pereira por dividirem comigo suas

    experincias e reflexes

    Beatriz Ilari pela orientao preciosa, pelo carinho e pela generosidade

    Prof. Dr. Elizabeth Travassos, Prof. Dr Rosane Arajo, ao Prof. Dr. Maurcio Dottori e

    ao Prof. Dr. Guilherme Romanelli pelas observaes e indicaes quando das bancas de qualificao e

    defesa

    coordenao e professores do programa de ps-graduao em msica que me ajudaram ao

    nesse processo

    Ao Mundaru e em especial Itaercio Rocha, pelas inquietaes que transformaram o rumo

    dessa pesquisa

    Associao Cultural Cabur e Associao dos Fandangueiros do Municpio de

    Guaraqueaba por me convidarem a participar dos projetos que me aproximaram ainda mais do

    fandango

    Faculdade de Artes do Paran, em especial meus colegas de Departamento, pela

    compreenso

    Rogrio Gulim, Eduardo Usui Schotten, Joana Correa, Alexandre Pimentel, Geraldo Pioli,

    Leco de Souza, Rodolfo Vidal, Jocema Lima,Gabriela Bruel, Louise Lopez e Jssica Pacheco por

    colaborarem para a realizao desse trabalho

    Ao Prof. Dr. Rogrio Budasz pelas contribuies trazidas na banca de qualificao

    Agradecimentos especiais

    Caroline Pacheco pelo amor, dedicao, companheirismo, leveza, conquistas e planos

    futuros

    Gloria Cunha por ser essa me incrvel e por estar sempre ao meu lado

    Clarinha, Daniel, Isadora, Isabella, Leonardo e Dora, crianas que tornam meu mundo cheio

    de alegria

    Jos Eduardo Gramani pela inspirao sempre

  • RESUMO

    Esta dissertao um estudo de caso sobre o aprendizado da rabeca no fandango caiara e teve como

    foco a experincia e as reflexes apresentadas por trs rabequistas da mesma famlia moradores da

    comunidade do Ariri, Canania, So Paulo: Z Pereira, Laerte Pereira e Arnaldo Pereira. Foi realizado

    um trabalho de campo na comunidade que teve como estratgia de coleta de dados a observao

    participante, o caderno de campo, as aulas de instrumento e entrevistas por pauta. Os dados coletados

    foram relacionados a categorias, conceitos e observaes levantados de estudos oriundos da

    etnomusicologia e cognio musical.

    Dos estudos da etnomusicologia buscou-se investigar indcios no fandango da existncia de

    observaes e situaes relacionadas ao aprendizado musical encontradas em outras manifestaes

    populares (PRASS, 1998/1999; ARROYO, 1998; QUEIROZ, 2005; BRAGA, 2005; NDER, 2006;

    ABIB, 2006). As questes abordadas foram: a aprendizagem musical tambm aprendizagem de uma

    identidade cultural; no l local e nem hora exclusiva para a aprendizagem musical; h uma integrao

    entre a msica e o corpo; a imitao dos sons e gestos corporais uma das principais tcnicas

    utilizadas na aprendizagem musical; a experimentao tambm momento de aprendizagem e as

    pessoas mais experientes so referncias no processo de aprendizado musical.

    Questes referentes ao processo de enculturao e treino, ao estudo deliberado, memorizao, aos

    processos de auto-regulao, ansiedade, criatividade e representaes mentais foram abordadas tendo

    como base os estudos da cognio musical sobre aprendizado do instrumento e sobre performance

    (SLOBODA, 2008; GALVO, 2006; SANTIAGO, 2006; ALENCAR; FLEITH 2003).

    PALAVRAS CHAVE: aprendizado musical, aprendizado instrumental, rabeca, fandango.

  • ABSTRACT

    This dissertation is a case study on the learning of the rabeca in the fandango caiara and it had as

    focal point experiences and reflections presented by three rabequistas (types of fiddlers) from a same

    family, that lived in the community of Ariri, Canania, So Paulo. The three rabequistas were Z,

    Arnaldo and Laerte Pereira. The field work was carried out in the Ariri community, and data collection

    tools included participant observation, field notes, interviews and instrumental lessons. The collected

    data were related to categories, concepts and observations yielded by previous studies in

    ethnomusicology and music cognition.

    From the viewpoint of ethnomusicology the aim was to investigate, in the fandango, traces of the

    existence of specific situations related to the learning process found in previous studies of other

    manifestations of popular culture (PRASS, 1998/1999; ARROYO, 1998; QUEIROZ, 2005; BRAGA,

    2005; NDER, 2006; ABIB, 2006). Previous studies suggested that musical learning is also one of

    cultural identity; it has no specific place and time to take place; there is an integration between music

    and body; the imitation of sounds and body gestures is one of the main techniques used in the music

    learning; experimentation is also a moment for learning, and the most experienced people are

    important references in the music learning process. These issues were investigated. In addition,

    questions pertaining to enculturation and training, deliberate practice, memorization, self-regulation

    process, anxiety, creativity and mental representations were approached based on previous studies on

    music cognition, especially those on instrumental learning and performance (SLOBODA, 2008;

    GALVO, 2006; SANTIAGO, 2006; ALENCAR; FLEITH 2003).

    KEYWORDS: music learning, instrument learning, rabeca, fandango.

  • LISTA DE FIGURAS

    Transcrio do dando Mulata Faceira ................................................................................. 48

    Afinao das cordas soltas da viola ........................................................................... 48

    O acorde de tnica................................................................................................................... 49

    Afinao das cordas no acorde de tnica ............................................................................... 49

    O acorde de dominante ........................................................................................................... 49

    Afinao das cordas no acorde de dominante ....................................................................... 49

    Extenso utilizada pelos cantadores ....................................................................................... 50

    Transcrio da chamarrita Moreninha ................................................................................... 50

    Transcrio da chamarrita da faixa 05 .................................................................................. 51

    Transcrio do dando Duas moas na janela ....................................................................... 52

    Transcrio do dando Avio no estrangeiro ....................................................................... 54

  • LISTA DE FOTOGRAFIAS

    Moda bailada: grupo Famlia Pereira em 2006 .......................................................... 25

    Moda batida: grupo Mestre Romo em 2005 ............................................................. 25

    Viola e rabeca ......................................................................................................................... 29

    Bandeira do Divino Esprito Santo de Paranagu em 2006 ....................................... 30

    Casa de Rio dos Patos ............................................................................................................ 37

    Apresentao da famlia Pereira em 1989 .............................................................................. 42

    Apresentao da famlia Pereira em 1989 .............................................................................. 42

    Diferentes rabecas brasileiras ................................................................................................. 57

    Diferentes rabecas brasileiras (lado) ...................................................................................... 58

    Vila de Ararapira .................................................................................................................... 91

    Posto de sade do Ariri .......................................................................................................... 92

    Centro comunitrio do Ariri ................................................................................................... 92

    Henrique, Joo e Eliel Alves .................................................................................................. 93

    Danadores do grupo Jovens do Ariri .................................................................................... 95

    Casa de Arnaldo Pereira ......................................................................................................... 96

    Crianas danando uma moda bailada ................................................................................... 105

    Laerte tocando rabeca no ensaio do grupo Jovens do Ariri ................................................... 114

    Z Pereira tocando rabeca e Arnaldo tocando viola ............................................................... 117

    Ensaio do grupo Jovens do Ariri: Laerte na rabeca, Z no cavaquinho e Arnaldo na viola 123

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Esquema coreogrfico do movimento oito ............................................................................ 26

    Esquema coreogrfico do movimento passo batido ............................................................... 26

  • LISTA DE MAPAS

    Lagamar: regio litornea que se encontra entre Iguape (SP) e Paranagu (PR) ................... 24

    Comunidades caiaras da regio do Lagamar ........................................................................ 89

  • LISTA DE TABELAS

    Modas valsadas e batidas ....................................................................................................... 27

    Posies utilizadas na viola .................................................................................................... 28

    Andamento das marcas valsadas ............................................................................................ 47

    Esquema de rimas da chamarrita da faixa 05 ........................................................................ 51

    Esquema de rimas da chamarrita Moreninha ........................................................................ 52

    Esquema de rimas da chamarrita Adeus, morena ................................................................. 52

    Esquema de rimas do dando Duas moas na janela ............................................................. 53

    Esquema de rimas do dando Duas moas na janela ............................................................. 53

    Esquema de refro e um verso do dando Avio no estrangeiro ......................................... 53

    Atividades no trabalho de campo ........................................................................................... 87

  • SUMRIO

    INTRODUO ............................................................................................................................ 13 1 ESTUDOS SOBRE O FANDANGO CAIARA ................................................................... 18 1.1 Histrico do fandango ............................................................................................................ 18 1.2 O fandango do litoral de So Paulo e Paran no sculo XX .............................................. 23 1.3 Estudos sobre fandango e o aspecto musical ....................................................................... 32 1.4 O fandango em Rio dos Patos, o caso da famlia Pereira ................................................... 36 1.5 Breve estudo sobre as marcas dando e chamarrita na famlia Pereira ............................ 44 2 ESTUDOS SOBRE A RABECA BRASILEIRA ................................................................. 55 3 ESTUDOS SOBRE APRENDIZADO E PRTICA INSTRUMENTAL ............................ 67 3.1 Estudos da etnomusicologia .................................................................................................. 67 3.2 Estudos da cognio musical ................................................................................................. 73 4 METODOLOGIA ..................................................................................................................... 79 4. 1 A escolha do caso ................................................................................................................... 80 4.2 Estratgias de coleta de dados ............................................................................................... 81 4.2.1 Observao participante e caderno de campo ....................................................................... 82 4.2.2 Aulas de instrumento ............................................................................................................ 83 4.2.3 Entrevista por pautas ............................................................................................................. 84 4.3 Realizao da pesquisa de campo......................................................................................... 86 4.3.1 Questes ticas.......................................................................................................... 86 4.3.2 O trabalho de campo ............................................................................................................. 86 4.4 Organizao do material coletado ........................................................................................ 88 5 ANLISE DE DADOS E DISCUSSO .................................................................................. 89 5.1 A comunidade do Ariri .......................................................................................................... 89 5.2 O fandango na comunidade do Ariri .................................................................................... 93 5.3 Os Pereiras: Arnaldo, Z e Laerte ........................................................................................ 95 5.3.1 Arnaldo Leo Pereira ............................................................................................................ 95 5.3.2 Z Pereira .............................................................................................................................. 96 5.3.3 Laerte Camilo Pereira ........................................................................................................... 99 5.4 Consideraes sobre o aprendizado musical no fandango .............................................. 99 5.4.1 Infncia .................................................................................................................................. 100 5.4.2 Juventude .............................................................................................................................. 106 5.5 Consideraes sobre o aprendizado da rabeca no fandango .......................................... 111 5.5.1 Z Pereira .............................................................................................................................. 116 CONCLUSES ............................................................................................................................ 124 REFERNCIAS ........................................................................................................................... 127

  • 13

    INTRODUO

    Quando criana meu sonho era estudar violino, mas me disseram que eu ainda era

    pequena, e que ento estudasse flauta doce um tempo, o que fiz sem problema algum,

    aguardando ansiosa pelo dia de estudar violino. Meu pai era violinista e isso certamente me

    influenciou, mas nunca houve uma presso familiar para que eu escolhesse estudar o mesmo

    instrumento que ele. Quando finalmente j estava pronta para o violino, minha professora

    me fez prometer que eu estudaria dois anos no mnimo e eu empolgada, prometi! Que

    decepo! Definitivamente o violino do mtodo Suzuki no era o violino da minha

    expectativa e com seis meses de estudo eu j no agentava mais. Porm, como havia

    prometido, estudei os dois anos... Estudei modo de dizer, pois o maior desafio da minha me

    era me colocar para praticar. Como eu enrolava! Estudava deitada na cama, desmontava o

    arco do violino para no estudar, desafinava as cordas para passar o tempo afinando, enfim,

    mil e uma estratgias para fugir da prtica repetitiva e maante do estudo. Acabaram-se os

    dois anos e eu abandonei o violino. Nem pegar para brincar em casa eu pegava, nem estudar

    outro instrumento de cordas friccionadas eu quis. Passei por vrios instrumentos, mas na

    adolescncia, durante o perodo que corresponde ao atual ensino mdio, minha nica

    atividade musical era o canto coral, pois decidi me dedicar ao magistrio. A msica, que todos

    pregavam que seria a base de minha profisso dado os pais msicos que tenho, era para um

    momento de descontrao e a educao passou a ocupar a minha mente. Fiz o antigo curso de

    Magistrio e ministrei aulas regulares durante seis anos como professora regente de 1 a 4

    sries do ensino fundamental. Entrei na faculdade de Pedagogia, que cursei durante dois anos

    e, mais uma vez houve um descompasso com o que eu pensava e o que encontrava.

    Definitivamente percebi que faltava algo, mas no sabia exatamente o que era.

    Assim, abandonei a Pedagogia, voltei para a Msica e me formei em Educao

    Artstica com habilitao em Msica. Na poca da faculdade, fundei com alguns colegas o

    grupo artstico Mundaru que veio a se tornar o alicerce da minha atuao musical. No

    Mundaru1 encontrei a forma da msica que me completava, que eu acreditava, no incio

    1 Grupo Artstico, fundado em 1998 em Curitiba, que se dedica criao de espetculos, CDs e oficinas baseados em pesquisa sobre a Arte do Povo do Brasil.

  • 14

    achando que o caminho seria estudar a msica caipira, mais tarde ampliando para o universo

    da cultura popular.

    Em paralelo com a poca em que cursei a minha faculdade, meu pai havia se

    encantado pela beleza e complexidade das rabecas do Brasil, dedicando seus ltimos anos de

    vida a tocar, pesquisar e compor para esse instrumento. Quando ele faleceu fiquei com sua

    coleo de 30 instrumentos e, sem dvida, com responsabilidades em relao divulgao de

    seu trabalho de pesquisa; ao mesmo tempo em que iniciava com o grupo Mundaru uma

    pesquisa sobre cultura popular. Dois rios da minha vida confluam para uma mesma direo e

    assim voltei a tocar um instrumento de corda friccionada: a rabeca. Dessa vez, vrias coisas

    foram diferentes e uma delas foi a forma de aprender a tocar, pois, decidi, de maneira

    intuitiva, que aprenderia a tocar rabeca de ouvidopois no queria pensar em notas, mas em

    som. Atrs da sonoridade que ouvia dos rabequeiros tradicionais e daquela que me agradava

    comecei a tocar rabeca, feliz!

    Hoje, com 11 anos de existncia, o Mundaru tornou-se um grupo artstico com um

    repertrio de espetculos baseados na arte do povo do Brasil, porm no decorrer desse

    processo, atrs do que chamamos de fundamentos dessa arte, nos deparamos com inmeras

    questes educacionais provenientes da cultura popular. Percebemos em nossas oficinas, que

    sempre foram coordenadas por Itaercio Rocha2, que ao tratar do popular no poderamos

    apenas focar no contedo ou na forma das brincadeiras. Para uma compreenso mais

    completa da arte popular era necessrio que os alunos vivenciassem tambm os

    procedimentos metodolgicos utilizados no ensino-aprendizado das manifestaes. Dessa

    forma, em conjunto com a pesquisa artstica, retornei questo educacional, feliz!

    Este pequeno memorial uma justificativa pessoal para a escolha do tema de minha

    dissertao, para onde, ao que parece, todos os caminhos convergiam: o aprendizado da

    rabeca no fandango caiara.

    Meu interesse pelo fandango surgiu j na poca da elaborao de minha monografia de

    concluso de curso de graduao, mas foi a partir de 2005 que meu envolvimento com essa

    manifestao se intensificou e se tornou regular atravs de dois projetos com atuao na

    regio litornea: o Museu Vivo do Fandango e o Encontro de Fandango e Cultura Caiara. J

    a rabeca no fandango sempre me intrigou, principalmente quando eu me deparava com a arte

    de excelentes rabequistas.

    2 Arte-educador, bonequeiro, ator, bailarino e diretor que integra o grupo Mundaru e responsvel pela coordenao das oficinas do grupo.

  • 15

    A rabeca um instrumento que recebe destaque no fandango caiara3. Para um

    fandango acontecer a viola o instrumento primordial, no a rabeca, mas sempre que existe

    um rabequista, ele includo no grupo musical. interessante notar que, de certa forma, o

    rabequista um msico que possui uma viso bem completa do fandango, pois, nessa

    manifestao, a maioria dos rabequistas sabe tocar todos os instrumentos presentes no

    fandango - o que no acontece com os outros msicos, pois nem todo violeiro, por exemplo,

    sabe tocar rabeca. Este instrumento descrito por alguns fandangueiros como muito difcil de

    aprender, pois no possui ponto, que so os trastes de indicaes da posio dos dedos da

    mo esquerda. Outro fato que torna interessante o foco nos rabequistas do fandango que a

    prtica da rabeca exige conhecimentos musicais mais amplos que a prtica dos outros

    instrumentos. A rabeca acompanha a melodia das vozes, mas nos momentos de pausa entre

    um verso e outro, o rabequista toca pequenas melodias que parecem variar de instrumentista

    para instrumentista. Como me relatou um rabequista recentemente: cada um tem uma

    melodia na cabea.

    Desde o incio da pesquisa tive conscincia de que me propunha a pesquisar um

    fenmeno cheio de complexidades. O processo de aprendizagem musical foco de muitos

    estudos, bem como o aprendizado de um instrumento, mas o aprendizado de um instrumento

    em cultura popular um tema menos freqente nas pesquisas. Por isso tomei como base

    alguns estudos sobre aprendizado musical na cultura popular, voltados para a etnomusicologia

    e algumas categorias estudada pela cognio musical para poder compreender melhor como

    se d o aprendizado da rabeca no fandango caiara.

    Por ser um tema to amplo, eu necessitava de uma metodologia em pudesse fazer um

    recorte, por isso escolhi realizar um estudo de caso, com cinco dias de trabalho de campo,

    focalizado em trs rabequistas que pertencem a uma famlia tradicional do fandango caiara: a

    famlia Pereira. At a dcada de 1990, a famlia Pereira vivia em Rio dos Patos, comunidade

    rural da cidade de Guaraqueaba, Paran, e l a prtica do fandango era intimamente ligada ao

    cotidiano rural, atravs dos mutires e dos acontecimentos sociais. Atualmente, por conta das

    restries caa e ao roado das leis ambientais que os fizeram abandonar Rio dos Patos, e

    algumas vezes por motivos pessoais, os membros da famlia Pereira se encontram dispersos

    pelo litoral do Paran e de So Paulo e possuem forte atuao no fandango da regio. o caso

    dos rabequistas escolhidos como foco desta pesquisa: Arnaldo, Z e Laerte Pereira. Os trs

    moram na comunidade do Ariri, um bairro da cidade de Canania, So Paulo, e pertencem ao

    3 Fandango danado no litoral sul de So Paulo e norte do Paran.

  • 16

    grupo Jovens do Ariri. Z Pereira o destaque do estudo de caso, pois um excelente msico,

    e foi o instrumentista com o qual pude passar mais tempo.

    A coleta de dados deu-se atravs de observao participante, aulas de instrumento,

    dirio de campo e entrevistas. Foi nessas ltimas que me baseei para a realizao da maior

    parte das consideraes levantadas nesse trabalho.

    Eu no poderia registrar o processo de algum aprendendo a tocar rabeca, pois isso

    demoraria muito tempo, ento, inspirada no trabalho de Bosi (1994) optei por trabalhar, de

    maneira bem mais modesta do que a psicloga social, com a memria oral. Bosi (1994)

    realizou um dos mais completos estudos no Brasil sobre a resistncia da memria oral atravs

    da narrao. Entrevistando vrias vezes oito idosos com mais de setenta anos que viveram em

    So Paulo, Bosi (1994) reflete sobre a situao do velho em nossa sociedade, e por

    conseqncia, a desvalorizao da narrao e da memria oral.

    Ao refletir sobre memria e socializao Bosi (1994) diz que a relao entre netos e

    avs se estabelece entre iguais, pois no h preocupao com o que prprio para a criana.

    O que emerge dessa relao so os ensinamentos de que mesmo com a vivncia de grandes

    mudanas, a vida a mesma. Essa relao outra socializao pouco estudada. Ela tambm

    torna presente, por exemplo, os que se ausentaram. a essncia da cultura que atinge a

    criana atravs da fidelidade da memria (BOSI, 1994, p.75).

    No entanto Bosi (1994) relata que a sociedade industrial rejeita o velho e no oferece

    sobrevivncia a sua obra. A moral prega respeito aos mais velhos, e ao mesmo tempo, o

    sistema prega a substituio do velho atravs da privao da liberdade de escolha, da

    supresso do confronto e do afrontamento.

    A lembrana um trabalho por excelncia do ancio, que necessita de mecanismos de

    reflexo e localizao. Sua funo unir o comeo ao fim, tranqilizar as guas revoltas do

    presente alargando suas margens (BOSI, 1994, p.82). A competncia do ancio vem do

    vnculo com a outra poca, do fato de ter suportado e compreendido muitas coisas. A

    memria dos velhos desalienadora pois contrasta a riqueza e a potencialidade do homem

    criador de cultura com a msera figura do consumidor atual (BOSI, 1994, p.83).

    Acredito que essa desvalorizao da memria oral tambm afeta a cultura popular. Os

    rabequeiros escolhidos, em especial Z Pereira no so velhos, mas so representantes de uma

    socializao que, no sendo valorizada pela sociedade industrial, busca formas de

    sobrevivncia e utiliza a memria oral para isso.

    Os trs primeiros captulos da dissertao constituem-se em revises de literatura. No

    primeiro abordo questes relativas ao fandango que vo desde um pequeno histrico at a sua

  • 17

    caracterizao. O segundo captulo focalizado nas pesquisas realizadas sobre as rabecas

    brasileiras. No terceiro apresento os estudos de etnomusicologia e cognio musical que sero

    a base da minha anlise dos dados recolhidos. A metodologia utilizada tratada no quarto

    captulo. O quinto captulo constitui-se da apresentao dos dados recolhidos e integrados

    discusso terica levantada nos captulos anteriores. O sexto captulo a concluso, onde

    retomo as questes discutidas de maneira resumida.

  • 18

    1 ESTUDOS SOBRE O FANDANGO CAIARA

    A presente dissertao tem como foco o fandango caiara, manifestao popular que

    integra dana e msica encontrada no litoral sul de So Paulo e norte do Paran. Este captulo

    composto de um breve histrico da palavra fandango e da manifestao em si, seguido de

    uma descrio da prtica do fandango em que abordo aspectos artsticos e sociais atravs de

    uma anlise da literatura produzida sobre este tema. Vale ressaltar que o fandango uma

    manifestao complexa, diversa e dinmica, e sua descrio detalhada seria por si s uma

    outra pesquisa, por isso esse captulo traz apenas informaes suficientes para embasar,

    ilustrar e contextualizar a pesquisa que apresento nessa dissertao. Aps a descrio do

    fandango apresento uma reviso dos estudos realizados sobre esta manifestao a partir das

    informaes musicais mencionadas. Por fim, focalizo na descrio das pesquisas realizadas

    com a famlia Pereira, a qual integram os informantes deste estudo de caso e finalizo o

    captulo com uma anlise das modas4 dando e chamarrita, as modas mais tocadas em um

    fandango.

    1.1 Histrico do fandango

    A palavra fandango um vocbulo da lngua portuguesa, espanhola e francesa que tem

    significados variados. No Brasil, atualmente, fandango o nome de diferentes manifestaes

    populares encontradas pelo pas. No nordeste, por exemplo, o fandango um auto martimo

    que ocorre no ciclo natalino e na regio sudeste e sul do pas assume a forma de baile

    constitudo por um conjunto de danas (CASCUDO, 1988).

    Em Portugal h danas chamadas de fandango na regio do Ribaltejo, Estremeadura e

    na regio norte, fronteira com a Espanha; j na Espanha danado em Andaluzia e possui

    relao com o flamenco (MUSEU VIVO DO FANDANGO, 2006).

    4 Termo utilizado pelos fandangueiros para designar as msicas do fandango.

  • 19

    Na Amrica Latina h descries de manifestaes populares denominadas de

    fandango, como na Argentina e Mxico, onde significa um baile com a presena do

    sapateado. Na Bolvia a palavra sinnimo de baile com canto, mas na Colmbia o termo

    pode indicar alm de um baile, um gnero musical e um ritmo especfico. Por sua vez, no

    Equador a presena do fandango registrada por censuras e proibies que datam do perodo

    colonial e hoje a palavra utilizada genericamente como sinnimo de festa (GOTTFRIED,

    2005).

    A origem do fandango entendido como um baile formado por um conjunto de danas,

    como ele aparece no Sul do Brasil, parece no ter sido o foco especfico de pesquisa principal

    de nenhum historiador. As informaes existentes nos estudos realizados anteriormente

    encontram-se em passagens curtas que levantam algumas hipteses, muitas das quais

    contraditrias (BURKE, 1989; SARDINHA, 2004; ARAJO, 1967; RODERJAN, 1981;

    RANDO, 2003; PINTO, 1983). O historiador Burke (1989), por exemplo, ao discorrer sobre

    as danas populares correntes na Europa no incio da Idade Moderna citou rapidamente que o

    fandango veio da Amrica para a Espanha por volta de 1700, porm esse argumento no

    aprofundado em seu trabalho. A maioria dos pesquisadores brasileiros, porm, discordou de

    Burke, apontando para a influncia ibrica do fandango no Brasil (ARAJO, 1967;

    RODERJAN, 1981; RANDO, 2003; PINTO, 1983). Segundo Gottfried (2005), tendo origem

    no fado portugus com terminao africana ou tendo nascido na Amrica e levado Europa, o

    termo fandango parece ser fruto das mestiagens culturais caractersticas da poca. No sculo

    XVII o fandango era apreciado em Portugal por todas as camadas sociais, considerado de

    representatividade nacional (SARDINHA, 2004), como podemos perceber na seguinte

    descrio:

    dana que invadiu, galgou, ondulou, saracoteou do pao dos reis s vielas da Mouraria, dos conventos de freiras do teatro do Bairro Alto, e que, apesar de ser originariamente espanhola, se aclimatou to rapidamente em Portugal, que muitos viajantes estrangeiros a consideravam portuguesa. (DANTAS apud ALMEIDA, 1942, p.174).

    Arajo (1967) no descartou a possibilidade de esta dana ter sua origem nas camadas

    populares portuguesas, depois ter subido aos palcios e, como prprio da dinmica da

    cultura popular, ter novamente sado entre as portas da cozinha, infiltrando-se entre o povo.

    (ARAJO, 1967, p.185).

  • 20

    No Brasil Colonial o fandango era aceito nas casas decentes (RANDO, 2003) e

    descrito nas festas das altas classes do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul at 1840, quando

    se recolhe s zonas rurais (RODERJAN, 1981).

    A origem, bem como a histria do fandango praticado atualmente no litoral sul de So

    Paulo e norte do Paran sempre intrigou os pesquisadores. Budasz (2002) levantou a

    possibilidade da introduo do fandango no litoral datar de meados do sculo XVIII, poca do

    auge do fandango espanhol em Portugal. Esta data aparece como um consenso entre os

    pesquisadores do assunto. No entanto, percebe-se pelos estudos que no h uma preciso

    referente aos percursos histricos de como o fandango chegou regio do Lagamar5. No

    Paran, h uma verso de que ele teria sido trazido por imigrantes aorianos que chegaram ao

    litoral entre os anos de 1748 a 1752 (PINTO, 1983). Esta verso contestada por Roderjan

    (1981) que apresentou como argumento o fato de que a primeira tentativa de estabelecer

    colonos aorianos no Paran, foi feita em 1816 (RODERJAN, 1981, p.31) e que os aorianos

    que vieram para o Brasil, foram levados Santa Catarina onde, atualmente, restam poucos

    vestgios de fandango (RODERJAN, 1980). A autora defendeu a tese de que o fandango

    chegou ao Paran trazido pelos portugueses e pelos luso-brasileiros, mais propriamente pelo

    paulista (RODERJAN, 1981, p.31). No entanto, vale ressaltar, que nenhum dos autores

    supracitados teve como tema de pesquisa a questo da origem do fandango e sim o estudo da

    manifestao. Durante estes dois sculos de existncia o fandango sofreu uma srie de

    transformaes oriundas principalmente de alteraes no seu contexto de realizao. O

    presente captulo tem como objetivo uma breve descrio dessa manifestao, suas

    transformaes, e dos estudos j realizados, fundamentando assim, a atual realidade do

    fandango.

    Existem duas descries do fandango no estado do Paran realizadas por dois

    cronistas do sculo XIX. Nessa poca, houve no Paran um aumento da populao residente

    nas vilas e, com isso, criou-se uma vida social mais intensa. Havia um extenso calendrio de

    festividades religiosas e o fandango, assim como a capoeira, batuques e congadas, era tambm

    ocasio de comemoraes e encontro da populao (TRINDADE, 2001). Os viajantes August

    Saint Hilaire e Thomas Bigg-Wither, em viagem pelo Paran, presenciaram e descreveram a

    prtica de danas que se assemelham ao fandango em duas casas no territrio que mais tarde

    se tornou o Estado do Paran.

    5 Regio compreendida entre os municpios de Paranagu (PR) e Iguape (SP), atualmente formada, em grande parte, por reas de proteo ambiental (APA).

  • 21

    Hilaire presenciou em 1820, em Castro, municpio do estado do Paran, uma pequena

    festa ocorrida na casa do sargento-mor Jos Carneiro, onde o viajante estava hospedado.

    Hilaire descreveu que os msicos presentes eram um violonista e outro que tocava com

    grande habilidade o machete6. Descreveu tambm que naquela noite danou-se a chula e o

    anu (HILAIRE, 1995). Apesar de no citar a palavra fandango, pode-se concluir pelas

    descries e nomenclatura das danas que se trata dessa manifestao. Essa citao refora a

    verso de que o fandango no era somente danado no litoral, como atualmente, mas que sua

    prtica se estendia tambm aos Campos Gerais, dado o fato que Castro um municpio do

    interior.

    Outra citao de fandango no Paran do sculo XIX de Bigg-Wither (1980), e data

    entre os anos de 1872 e 1875. Ele presenciou um baile acontecido na sala de uma casa, em

    uma localidade descrita como uma pequena aldeia sertaneja (BIGG-WHITER, 1980, p.36).

    Segundo Bigg-Wither (1980), neste baile os nicos instrumentos eram duas violas,

    acompanhadas do som do bater dos ps no cho, das palmas e do canto individual de cada um

    dos danarinos seguido do coro.

    proporo que a dana continuava, a agitao ficava mais forte, a voz se transformava em grito, o menear do corpo, antes gracioso, tendia para as contores violentas, entrando em cena todos os movimentos caractersticos de uma dana guerreira de ndios norte-americanos. (BIGG-WITHER, 1980, p.36).

    Bigg-Wither (1980) descreveu tambm com estranhamento a relao entre os homens

    e mulheres que, durante a dana no conversavam e, quando esta era finda, separavam-se sem

    nenhum sinal de cortesia, procedimento que pode ser observado at hoje nos bailes de

    fandango.

    Da primeira metade do sculo XIX h ainda o cdice Cifras de msica para saltrio

    de Antonio Vieira Santos7 que pode ser utilizado como fonte de estudos do fandango nessa

    poca. O cdice composto por uma srie de msicas presentes nos sales de Paranagu e

    Morretes, dentre as quais sete marcas8 de fandango: anu, chico, recortado, tonta, tirana, chula

    e vilo. Roderjan (1980) destacou a importncia desse documento, pois atravs dele pode-se

    6Instrumento de cordas dedilhadas de tamanho semelhante ao cavaquinho, utilizado no sculo passado normalmente pelas crianas no aprendizado da viola de fandango. Hoje um instrumento raro. 7 Obra pioneira no registro musical do Paran. 8 Marca, ou moda, so palavras utilizadas pelos fandangueiros que equivalem a msica ou dana. Assim um baile de fandango formado por vrias marcas diferentes, ou modas diferentes. Cada marca possui caractersticas coreogrficas e musicais especficas. O estudo dessas categorias ser aprofundado no captulo seis da presente dissertao.

  • 22

    supor que o fandango j era danado no incio do sculo XIX pelas sociedades de Paranagu e

    Morretes, e Budasz (2002) ressaltou que os fandangos provavelmente fossem tambm

    apreciados a essa altura por pessoas de classes mais elevadas (BUDASZ, 2002, p.26), como

    o prprio Antonio Vieira, que exerceu cargos militares e religiosos alm de trabalhar com

    comrcio.

    Alm das descries dos viajantes e do cdice, outra fonte importante de dados sobre a

    prtica do fandango so as proibies legais que datam ainda do sculo XVIII. Por propiciar o

    ajuntamento de escravos algumas destas manifestaes foram reprimidas pelas Cmaras

    Municipais. Em 1792 o Capito da Comarca de Curitiba proibiu a realizao de fandangos

    que tinham relao devocional e permitiu a realizao da festa somente em casas e entre os

    membros de uma mesma famlia com parentesco at o 4 Grau (PEREIRA, 1996, p.161).

    No incio do sculo XIX houve uma intensa perseguio ao fandango. Durante o

    sculo XVIII a maioria da populao paranaense era analfabeta, incluindo os membros da

    elite. Alis, os hbitos da oligarquia e dos comerciantes e artesos eram bastante semelhantes.

    No h evidncias de que existissem formas de lazer, de higiene ou de gestual especficas de

    um ou de outro setor da populao. (PEREIRA, 1996, p.136). Essa realidade s se reverteu

    na virada do sculo quando fazendeiros, comerciantes e industriais do mate foram buscar

    exemplos no hbito da burguesia europia, negando os velhos costumes coloniais. Iniciou-se

    assim um processo civilizatrio. Uma das facetas desta mudana foi criao, pela Cmara

    de Vereadores de Curitiba, de um cdigo de posturas. Mais do que por raciocnios

    econmicos a ao dos vereadores parece ser pautada por uma forte rejeio a cultura do

    povo (PEREIRA, 1996, p.137), caracterizada dentre outras aes, pelo combate aos

    fandangos e batuques. No houve um municpio paranaense que no criasse algum entrave

    legal realizao dessas manifestaes. (PEREIRA, 1996, p.160).

    Na legislao da poca, o termo fandango aparece ao lado de batuque, sugerindo que

    no haveria uma distino entre os dois. Nem o fandango to ibrico, nem o batuque, ao

    menos no Paran, era uma manifestao exclusiva dos negros (PEREIRA, 1996, p. 163). Os

    escravos, seus descendentes e os brancos de poucas posses formavam um grupo social

    culturalmente semelhante que se divertiam nos fandangos e batuques, enquanto as famlias da

    alta classe promoviam bailes onde eram danadas valsas, xotes e quadrilha. Ressalta-se o fato

    de que o fandango, pelas descries da poca, possua um forte carter libidinoso e lascivo,

    que ia contra a nova moral burguesa adotada (PEREIRA, 1996).

    Em 1839, a Assemblia de Curitiba proibiu o fandango em todo o municpio e no

    somente na rea urbana como ocorria anteriormente a esse decreto. Permitia-se apenas o

  • 23

    fandango nos casamentos em casas de pessoas de reconhecida probidade (PEREIRA, 1996,

    p.168). Restries impostas s manifestaes populares como esta ilustram, de forma

    exemplar, o impacto da opo das classes dominantes paranaenses por um certo

    cosmopolismo urbanizante. (PEREIRA, 2004, p.64).

    Na segunda metade do sculo XIX, o fandango se transformou em uma festa

    exclusivamente rural e litornea (RANDO, 2003). A partir de 1860, as proibies tornaram-se

    mais amenas, sendo preciso apenas a obteno de uma licena, normalmente paga (PEREIRA,

    1996, p.168), procedimento que se manteve at o sculo XX.

    No sculo XX, principalmente a partir de sua segunda metade, muitos estudos sobre o

    fandango danado no Lagamar foram publicados, possibilitando uma compreenso mais

    profunda da conotao social do fandango bem como o conhecimento de detalhes sobre sua

    msica e dana.

    1.2 O fandango do litoral de So Paulo e Paran no sculo XX

    O fandango encontrado no sculo XX na regio do Lagamar uma manifestao

    popular sofisticada, com regras estticas bem definidas que guiam a msica, a dana e o

    comportamento dos participantes. Em cada localidade existem caractersticas especficas,

    criando assim uma realidade artstica muito rica, variada e peculiar. A idia de

    confraternizao e de alegria est intimamente associada ao fandango. Esta manifestao

    artstica se d, de fato, sob forma de festa, de divertimento coletivo, e assim como a maioria

    das manifestaes populares, envolve uma parcela da comunidade. (CORRA; GRAMANI,

    2006).

  • 24

    Mapa 1 Lagamar: regio litornea que se encontra entre Iguape (SP) e Paranagu (PR)

    Fonte: Google Earth

    Em um fandango acontece uma grande variao de estruturas musicais e

    coreogrficas. Na realidade, em um baile de fandango ou em uma apresentao, vrias modas

    ou marcas, como os fandangueiros chamam as msicas, so tocadas e danadas. Cada uma

    delas se diferencia das outras, ora pela temtica abordada, ora pela estrutura rtmica, ora pela

    estrutura dos versos, ora pelos elementos de dana ou pelo nome que recebe (CORRA &

    GRAMANI, 2006).

    Existem muitas pesquisas sobre o fandango no sculo XX, principalmente a partir da

    dcada de 1940, e uma breve anlise desses estudos com foco na questo musical ser

    realizada a seguir. No entanto, com o objetivo de concluir o panorama histrico do fandango,

    algumas caractersticas que so consenso entre as pesquisas so levantadas.

    O fandango sempre danado em pares. Algumas coreografias so para rodas com um

    nmero fixo de pares, outras no, mas sempre h a presena do casal. Cada membro do casal

    possui uma funo diferente na coreografia. O par no fixo, podendo mudar entre uma

    dana e outra ou at mesmo na mesma dana se assim determinar a coreografia (CORRA;

    GRAMANI, 2006).

    Como existe uma grande variedade de marcas, ou modas, estudiosos do fandango

    costumam propor formas possveis de classificao normalmente baseadas nos movimentos

    coreogrficos e em algumas questes musicais. Dentre as classificaes, h uma separao

    entre as modas bailadas (tambm chamadas de valsadas) e as modas batidas. Na moda bailada

    os pares danam espalhados pelo salo, no h uma coreografia especfica, apenas a conduo

  • 25

    da dama pelo cavalheiro. As modas que acompanham o bailado so sempre o dando e a

    chamarrita.

    Fotografia 1 Moda bailada: grupo Famlia Pereira em 2006

    Fonte: Acervo da Associao Cultural Cabur

    J nas modas batidas h uma rigidez coreogrfica. Normalmente os pares se dispem

    em roda e realizam movimentos demarcados conforme o momento da msica. Os homens

    batem o tamanco executando frases rtmicas especficas diferentes em cada moda.

    Fotografia 2 - Moda batida: grupo Mestre Romo em 2005

    Fonte: Acervo da Associao Cultural Cabur

  • 26

    Alguns estudiosos registraram as coreografias das marcas batidas (AZEVEDO, 1973,

    1978; PINTO, 1983, 1992, 2003, 2004). A ilustrao 1 denota o registro do passo do oito

    feito por Azevedo (1978). importante notar que a roda gira em sentido anti-horrio,

    indicado pelas flechas e que homens, representados pela letra H, e mulheres, letra M, se

    intercalam. O movimento do oito realizado quando segue a linha pontilhada, indo de D para

    A para E, retornando ao seu lugar.

    Ilustrao 1 - Esquema coreogrfico do movimento oito

    Fonte: AZEVEDO, 1978, p.08

    Essa outra ilustrao, retirada da cartilha Fandango na Escola (2008), mostra outro

    movimento coreogrfico importante no fandango, chamado aqui de passeado batido. Nesse

    movimento mulheres e homens andam em direo opostas sendo que a mulher segura a mo

    esquerda do homem, passa por debaixo de seu brao e se encontra com outro homem. Nesse

    passo os homens normalmente esto tamanqueando.

    Ilustrao 2 - Esquema coreogrfico do movimento passo batido

    Fonte: Fandango na escola, 2008, p.12

  • 27

    A tabela 1 abaixo resume as principais especificidades das modas bailadas e batidas,

    caracterizao realizada a partir dos elementos coreogrficos e musicais descritos nos estudos

    de Andrade e Arantes (2000), Brito (2003), Corra e Gramani (2006) e Pinto (1992).

    Bailadas

    Batidas

    Nome das modas

    Dando Chamarrita

    Anu, Queromana, Sinsar, Tiraninha,

    Tonta, Sinsar Caloado, Feliz, Serrana, Andorinha, Pega-Fogo, Graciosa etc

    Msica

    H duas estruturas musicais distintas, dando e

    chamarrita.9

    Presena do tamanqueado realizado pelos homens

    Coreografia

    Dana em par pelo salo

    livremente

    Normalmente danada em roda, com coreografia

    especfica para cada moda com a presena do

    tamanqueado dos homens Tabela 1 - Modas valsadas e batidas

    H ainda uma classificao mais especfica das modas:

    1. Marcas batidas ou rufadas - Pinto (1992) divide estas em batidas simples com oito,

    e batidas repinicadas, de difcil execuo.

    2. Marcas valsadas ou bailadas.

    3. Batidas e valsadas - em algumas modas estes elementos se alternam.

    4. Outras formas coreogrficas diferentes em que so acrescidos novos elementos

    como o cordo, o uso de leno, etc.

    Brito (2003) mencionou trs movimentos que aparecem em quase todas as marcas: o

    oito (realizado pelo casal), o meio giro (o casal est com braos levantados e o cavalheiro

    roda a dama e a entrega ao prximo cavalheiro) e o vaivm (passo realizado pelas mulheres

    que juntam e separam os ps e assim demarcam o tamanho e forma da roda).

    As marcas, mesmo as de nome igual, apresentam variaes de um grupo para outro e

    podem, mesmo que raramente, apresentar mais de uma forma em um mesmo grupo. Cada

    uma das famlias que preservam a tradio do fandango mantm suas prprias caractersticas,

    seu prprio tom, o que estabelece entre elas diferenas na forma de dan-lo e toc-lo.

    (BRITO, 2003, p.32). Alguns grupos possuem tambm uma marca que inicia o fandango (

    9 Uma descrio mais aprofundada dessas modas ser realizada na ltima parte deste captulo.

  • 28

    muito citada no Paran a chamarrita da louvao e o anu) e uma que termina o baile (o

    recortado, por exemplo).

    Musicalmente o fandango tambm apresenta variaes. O grupo musical do fandango

    normalmente constitudo por duas violas, rabeca e pandeiro, mas pode apresentar acrscimo

    de outros instrumentos. A viola o instrumento presente em todas as localidades em que o

    fandango acontece. Ela possui peculiaridades locais atravs da variao do nmero de cordas,

    da forma de construo e do nome pelo qual chamada. So encontradas trs formas

    diferentes de tocar a viola, chamadas pelos fandangueiros de intaivada, pelo meio e pelas trs,

    que se diferenciam uma das outras principalmente pela posio dos dedos do violeiro no

    brao do instrumento. No fandango h a utilizao basicamente dos acordes de tnica e

    dominante. A tabela 2 apresenta um esquema da posio dos dedos nas trs afinaes.

    Pelas trs Intaivada Pelo Meio

    Tabela 2 - Posies utilizadas na viola

    O canto normalmente realizado pelos prprios violeiros e na maioria das vezes, uma

    moda executada a duas vozes: a melodia, normalmente chamada de primeira voz, e uma

    tera paralela, a segunda voz ou baixo, como chamam os fandangueiros.

    A rabeca outro instrumento de corda que aparece em vrias localidades.

    Normalmente utilizada para tocar a melodia ou uma voz paralela melodia, a rabeca tambm

    tem como funo ornamentar os momentos de pausa ou do tamanqueado. Na regio do

    Lagamar, a maioria das rabecas possui trs cordas, com exceo das rabecas de Iguape e

    Morretes, que possuem quatro. Em um fandango pode haver ainda a presena de outros

    instrumentos de corda como o cavaquinho, o bandolim e o violo. Dos instrumentos de

    percusso, alm do tamanco, o que aparece com maior freqncia o adufo e o pandeiro.

    Esses dois instrumentos so semelhantes, porm o adufo no industrializado.

  • 29

    Fotografia 3 - Viola e rabeca

    Fonte: Acervo da Associao Cultural Cabur

    Os estudos sobre o fandango no sculo XX apontam que este foi, at a dcada de

    1980, a principal forma de entretenimento das comunidades litorneas. Alm dos momentos

    de conotao social como comemoraes de casamentos e aniversrios, o fandango era

    tambm realizado conjuntamente com a prtica do mutiro10. H indcios que essa prtica j

    existia desde o sculo XIX em toda a regio do Lagamar. O mutiro uma forma de trabalho

    coletiva entre vizinhos, que, nessa regio se uniam para a derrubada da mata, para a limpeza

    de uma trilha, para o plantio e colheita do arroz, mandioca, milho, feijo e outros alimentos,

    para a puxada ou varao de canoa. (CORRA; GRAMANI, 2006, p. 28). Depois de um dia

    de trabalho coletivo um fandango era oferecido pelo dono da casa ou da terra que havia sido

    trabalhada aos que o haviam ajudado. O fandango iniciava de noite e s terminava de manh,

    isto , amanhecia, expresso muito utilizada pelos prprios fandangueiros. O baile - no qual

    era indispensvel haver muita bebida comida e alegria - comemorava muito mais que o

    plantio ou colheita: ele comemorava, na verdade, a camaradagem e solidariedade. (RANDO,

    2003, p.21).

    O fandango era uma espcie de pagamento pelo dia de trabalho. A comida era

    fornecida pelo beneficiado, no somente aquela servida durante o baile, mas tambm a

    consumida durante o dia. Pode-se perceber, em depoimentos dos fandangueiros mais velhos,

    que existiam vrias formas de realizao de um mutiro que dependiam basicamente da tarefa

    a ser cumprida. Existia, por exemplo, o ajuntrio ou sapo, um mutiro de apenas meio dia.

    10 Outras palavras que aparecem no Brasil para designar esta mesma atividade: putirum, mutiro, mutirom, mutirum, putiro, putirom, putirum, adjutrio, adjunto, ajuda, arrelia, faxina, putiro, pixirum, pixiro, pixilho e batalho.

  • 30

    Recebia tambm um nome especial o mutiro organizado para a colheita e descascagem do

    arroz: era o gamb (CORRA; GRAMANI, 2006).

    Outra ocasio em que era danado o fandango era durante o entrudo. Pinto (2004)

    sugere que entrudo pronncia adornada por sonncia de intrito, que degenerou no

    carnaval de hoje em dia (PINTO, 2004, p.481). O fandango era danado durante quatro dias

    do carnaval sempre acompanhado do barreado11. Comea a bateo na boca da noite de

    sbado, terminando pela manh; descansam durante o dia e assim por diante, at a zero hora

    da quarta-feira de cinzas. (PINTO, 2004, p. 481).

    Apesar de todas as proibies ocorridas no sculo anterior, no sculo XX, o fandango

    e principalmente os fandangueiros mantinham conexo com algumas festas e costumes de

    conotao religiosa, porm a brincadeira propriamente dita no estava ligada devoo de

    nenhum santo. A maioria dos fandangueiros obedecia a um calendrio religioso catlico e a

    prtica do fandango era influenciada por este. Por exemplo, durante o perodo da quaresma

    no se brincava fandango. Durante as romarias da folia de reis e de divino, costumava-se

    brincar o fandango assim que as obrigaes religiosas eram cumpridas (CORRA;

    GRAMANI, 2006).

    Fotografia 4 - Bandeira do Divino Esprito Santo de Paranagu em 2006

    Fonte: Acervo da Associao Cultural Cabur

    As bandeiras do divino esprito santo, muito comuns na regio, visitavam as casas dos

    fiis, pedindo doaes para a festa do divino que iria ocorrer meses depois. Cantando e

    tocando os membros da bandeira levavam a beno do divino e recebiam, alm das doaes,

    comida e pouso. Muitas vezes realizava-se o fandango na casa anfitri (RODERJAN, 1980). 11 Barreado: prato tpico do litoral do Paran, preparado com carne e uma grande variedade de temperos.

  • 31

    As bandeiras do divino percorriam antigamente, o imenso litoral do Paran e suas ilhas,

    durante o ano todo, no havendo data nem poca certa para cada regio. (AZEVEDO, 1973,

    p.87).

    Joo Buso, violeiro de romaria de divino lembrou que na poca em que cantava para o

    divino, o fandango tambm era mal visto pelas autoridades eclesisticas e apontou isso como

    um dos motivos para a extino das bandeiras (MARCHI; SAENGER; CORREA, 2002).

    Menos numerosas do que no sculo XX, as bandeiras ainda existem no litoral do Paran e So

    Paulo (CORRA; GRAMANI, 2006).

    A partir da segunda metade do sculo XX, o modo de vida caiara sofreu drsticas

    mudanas. Houve uma migrao de parte da populao que antes morava nas ilhas ou na

    Mata Atlntica, para as grandes cidades litorneas da regio. Em muitas cidades litorneas,

    h bairros de predominncia caiara, onde os indivduos procuram manter certa solidariedade

    inter-familiar e um certo grau de contato com moradores que permanecem no stio.

    (DIEGUES, 2006, p.15).

    A criao, na dcada de 1980, de diversas unidades de conservao ambiental

    proibindo a caa, a pesca e a agricultura, somando-se ao processo de especulao imobiliria,

    so os principais causadores dessa migrao (CORRA; GRAMANI, 2006). Com isso a

    prtica do fandango sofreu alteraes. Se no incio do sculo XX o fandango era realizado

    principalmente depois de um mutiro (trabalho coletivo no roado), com a migrao para a

    cidade o fandango passou a ser menos praticado. Outros fatores tambm contriburam para a

    aparente decadncia dessa manifestao tais como a instalao e fortalecimento de algumas

    religies que no permitem a prtica do fandango, condenando danadores e msicos. Com

    isso, muitos fandangueiros deixaram de tocar. A forte influncia dos meios de comunicao

    de massa e dos turistas que impem normas estticas do mercado cultural tambm citada

    como um fator que abalou a prtica do fandango (CORRA; GRAMANI, 2006).

    Hermano Vianna (2000), afirmou que a manuteno de uma brincadeira popular est

    diretamente ligada s transformaes pelas quais esta passa. Segundo ele, os mestres e

    brincantes brasileiros no esto presos a frmulas e maneiras de brincar.

    Seu papel mais de um DJ, ou de qualquer outro produtor musical ciberntico, que faz suas prprias colagens a partir de determinado repertrio: o gigantesco e multiforme banco de dados da biodiversidade brincante brasileira. (VIANNA, 2000).

    Desta forma, apresentou as brincadeiras como obras abertas.

  • 32

    Desde meados dos anos 1960, os estudiosos alertavam para o fato de que o fandango

    paranaense estava sendo mantido apenas na memria dos mais velhos. Inami C. Pinto,

    reconhecido folclorista paranaense, citou em 1952 que o povo j no queria saber do

    fandango (PINTO, 2003, p.53) e por causa disso, iniciou juntamente com Romo Costa, um

    movimento de ressurgimento desta manifestao, com a fundao, em 1966, do chamado

    Grupo de Fandango Mestre Romo. Atualmente, em toda a regio pode-se encontrar grupos

    de fandango e muitos deles organizados legalmente em forma de associaes.

    Em resposta s mudanas relatadas acima, os fandangueiros encontraram outras

    formas de organizao e realizao dos fandangos, como a formao de grupos, a organizao

    de bailes e de aes educativas (CORRA; GRAMANI, 2006). Atualmente no se alardeia o

    fim da manifestao, mas so analisadas suas transformaes e adaptaes frente nova

    realidade.

    1.3 Estudos sobre fandango e o aspecto musical

    A maioria dos estudos sobre o fandango no foi realizada por msicos, no entanto

    alguns merecem destaque pelo contedo musical que apresentam.

    Nas dcadas de 1930-1940 pesquisas realizadas sobre o fandango foram divulgadas

    em publicaes que tratavam do folclore brasileiro e abrangiam outras manifestaes

    populares. H um grande nmero de publicaes desta poca que citaram o fandango, e no

    presente estudo sero destacadas apenas as pesquisas que trouxeram dados relevantes sobre a

    msica.

    Pode-se dizer que o populrio musical brasileiro desconhecido at de ns mesmos.

    Vivemos afirmando que riqussimo e bonito. Est certo. S que me parece mais rico e

    bonito do que se imagina. E sobretudo mais complexo.(ANDRADE, 1972, p.20). Foi assim

    que Mario de Andrade iniciou seu captulo sobre msica popular e msica artstica em seu

    Ensaio sobre msica popular, publicado pela primeira vez em 1928, e afirmando a grandeza

    musical do sudeste do pas, citou os fandangos paulistas, gnero ao qual dedicou seis pginas

    de descrio. Andrade (1972) apresentou melodias acompanhadas das letras de seis fandangos

    bailados denominados de: de manh, fandangos da madrugada, que moa bonita, no canto

    por cant, vamo dan e tenho um vestido. O autor esclareceu que os fandangos foram

    recolhidos em Canania de gente caipira dos stios do arredor da cidade, gente sem nenhum

  • 33

    contacto a no ser mesmo com outros caipiras brasileiros. (ANDRADE, 1972, p.100). Ele

    tambm apontou que os fandangos eram cantados pelos instrumentistas em falsobordo e

    ressaltou a tendncia para o hipoldio em duas melodias. No fandango vamo dana o autor

    destacou que algumas sncopas eram diludas em tercinas, estratgia segundo ele muito

    comum no cantar popular. A contribuio de Mario de Andrade, ainda que pequena se

    comparada ao universo de sua pesquisa, de sumria importncia, pois enfatizou a

    importncia do folclore do sudeste alm de ser o primeiro registro em partitura do que hoje

    chama-se de fandango caiara.

    Almeida (1942), em seu livro a Histria da Msica Brasileira, escreveu sobre o

    fandango e suas danas, onde descreveu marcas do fandango gacho e paranaense. O autor

    mencionou como principais danas do fandango parananense a chamarrita, cana-verde,

    dando, nho Chico, queromana, tonta e anu e apresentou na partitura a melodia das trs

    ltimas.

    Outro trabalho importante o de Lima [1954?] que descreveu seis marcas danadas

    em Iguape abordando aspectos coreogrficos e transcrevendo as melodias das vozes. O

    primeiro fandango transcrito por Lima [1954?], o bailado, merece destaque, pois uma das

    raras melodias em compasso ternrio encontrada na literatura, onde a grande maioria das

    marcas descritas em compasso binrio. Da Aldeia de Carapicuba o autor tambm

    transcreveu e descreveu mais trs marcas, dentre elas uma chamarrita e, nesse caso, o autor

    no limitou-se apenas a citar a melodia e letra, mas tambm indicou o ritmo batido pelos

    fandangueiro na palma.

    Arajo (1967) publicou um dos mais extensos estudos sobre o fandango da primeira

    metade do sculo XX, baseado em viagem que realizou nos anos de 1946 e 1947 ao litoral sul

    de So Paulo. O pesquisador descreveu fandangos ocorridos em Canania, Ubatuba, Itanham

    e Taubat e a nfase principal de seu trabalho recaiu sobre a descrio coreogrfica de cada

    marca, bem como a transcrio de muitos versos utilizados pelos fandangueiros. A pesquisa

    de Arajo (1967) vlida por mostrar o grande nmero de danas diferentes que existiam em

    um baile de fandango, no entanto as questes musicais so timidamente abordadas. Na parte

    correspondente ao fandango de Taubat h algumas transcries de melodias, realizadas por

    Manuel Antnio Franceshini e no restante da pesquisa aspectos da estrutura da msica que

    foram observados conforme influenciavam a coreografia.

    Publicada em 1978, a pesquisa de Azevedo apresentou a transcrio para partitura de

    23 melodias de marcas de fandango, e por isso se configura como o mais completo panorama

    da msica do fandango no Paran na primeira metade do sculo passado. As coletas foram

  • 34

    realizadas de 1948 a 1955 em trs locais diferentes do municpio de Paranagu: Costerinha,

    Pontal do Sul e Rio Medeiros. Arajo (1967), que tambm realizou um importante compndio

    musical, apresentou suas transcries reunidas por local de coleta, j Azevedo (1978), as

    organizou por marcas, colocando lado a lado as diferentes melodias recolhidas com o mesmo

    nome o que enriquece seu trabalho. Das 23 marcas documentadas, 15 apresentaram variaes

    conforme a localidade onda foram recolhidas.

    Como j esclarecido anteriormente, as pesquisas citadas at ento fazem parte de

    mapeamento do folclore almejado pelos autores, isto , no h uma dedicao exclusiva ao

    fandango como objeto de pesquisa, com a exceo da publicao acima citada de Azevedo

    (1978). Talvez por isso as informaes musicais contidas nesses trabalhos se limitem a

    denominar os instrumentos utilizados, seguido de breve descrio sobre as caractersticas

    fsicas de alguns deles e a transcrever a melodia das marcas, com as respectivas letras.

    Informaes sobre afinao da viola e da rabeca, toque da viola, melodias da rabeca, ritmo do

    tamanqueado, entre outras no so citadas.

    O mesmo no acontece no trabalho de Inami Custdio Pinto (1983; 1992; 2003; 2004),

    que , sem dvida, uma referncia sobre o fandango do Paran. Apesar de no possuir

    formao musical, o pesquisador, em parceria com os msicos Jos Nilo Valle (1983) e

    Sergio Deslandes (1992), teve transcritas oito marcas de seu acervo pessoal de gravaes

    recolhidas na dcada de 1960. Essas transcries so bem mais completas que as

    anteriormente citadas e incluram especificidades meldicas e rtmicas da prtica musical de

    cada instrumento (PINTO, 1983; 1992).

    Certamente um dos trabalhos pioneiros de anlise musical das marcas de fandango o

    de Zagonel, publicado em 1980 no Boletim da Comisso Paranaense de Folclore. A

    pesquisadora utilizou gravaes recolhidas por Fernando Correa de Azevedo em 1948 e por

    Inami Pinto em 1968 e ressaltou algumas peculiaridades das melodias das marcas. Segundo

    Zagonel (1980), a maioria das marcas de fandango em modo maior, mas algumas

    apresentam alteraes no quarto e stimo graus. A cana verde recolhida por Azevedo e a

    andorinha recolhida por Pinto apresentam o quarto grau aumentado, o vilo de leno possui

    em alguns momentos a stima menor. A autora alerta para o fato de que em gravaes e

    transcries muitas vezes essas alteraes foram corrigidas (ZAGONEL, 1980).

    Os estudos citados at agora mostram o fandango como uma dana popular. Sendo

    assim, a maioria das linhas escritas nesses estudos foi dedicada descrio da coreografia

    realizada nas marcas, bem como dos versos cantados pelos violeiros. Se as informaes

    especficas sobre a msica eram escassas, o modo de vida e o entendimento musical do ponto

  • 35

    de vista dos informantes foram aspectos superficialmente tratados. Alis, poucos so os

    estudos que do nome e voz aos seus informantes. Diferente deste panorama o trabalho que

    Setti (1985) desenvolveu em seu doutorado em Antropologia Social. Setti (1985) j

    pesquisava a msica produzida pelos caiaras da regio de Ubatuba desde 1959 e a partir de

    1977 comea a recolher, durante cinco anos, dados para a sua pesquisa de doutorado,

    acompanhando a atividade musical caiara. O projeto, que inicialmente visou levantar um

    inventrio do patrimnio musical da regio, transformou-se e assimilou as questes da vida do

    caiara, uma sondagem dos mltiplos aspectos da vida do msico: seus problemas de

    sobrevivncia e solues de subsistncia, os impasses religiosos e econmicos, as relaes de

    solidariedade, de sociabilidade, de hostilidade e tantos outros problemas. (SETTI, 1985, p.

    17). A pesquisadora trabalhou com todo o universo musical caiara, no apenas com o

    fandango, mas, mesmo assim, trouxe importantes contribuies principalmente no estudo

    sobre o contexto cultural da produo do fandango e sobre os instrumentos utilizados nessa

    manifestao.

    Pesquisa que deu voz e nome aos msicos fandangueiros foi a organizada por Marchi,

    Corra e Saenger, publicada em 2002 no livro Tocadores. Do litoral do Paran e So Paulo

    foram entrevistados 13 fandangueiros que contaram histrias e explicitaram a importncia do

    fandango e dos instrumentos para a sua vida. As entrevistas foram transcritas e os

    depoimentos esto publicados em primeira pessoa. Na introduo do livro alguns artigos

    falam sobre questes das manifestaes abordadas e entre eles, destaca-se o de Gulin (2002).

    O autor msico, violeiro, e desde a dcada de 1980 tem contato com o fandango do Paran,

    apesar de este artigo ser o nico material publicado por ele. Descreve caractersticas do

    fandango na famlia Pereira, tema que ser abordado no prximo item deste captulo.

    Nos estudos mais recentes sobre o tema, a monografia de concluso de curso de

    Zambonin (2006) merece destaque, pois, ao propor uma forma de transcrio do fandango, o

    autor expe singularidades musicais do fandango. Zambonin (2006) citou, por exemplo, que

    as violas so afinadas no com as cordas soltas, mas sim utilizando a posio do acorde de

    tnica, pois muitas vezes os trastes da viola no afinam no brao todo, somente na regio do

    instrumento que utilizada pelo fandango (ZAMBONIN, 2006).

    O mesmo autor tambm o responsvel pela parte musical do material denominado

    Fandango na escola [200-] organizado pela Associao Cultural Mandicura e pela Secretaria

    de Estado da Educao do Paran. A publicao, distribuda em escolas estaduais de todo

    litoral paranaense, foi realizada com o intuito de ajudar o professor a introduzir o fandango no

    dia a dia escolar e inclui um CD com gravaes das marcas ensinadas no livro. Esse trabalho

  • 36

    mereceu destaque na presente reviso porque alm de trazer a transcrio de frases de rabeca,

    adufe, tamancos e viola das seis marcas ensinadas, apresentou sugestes de como se deve

    tocar os instrumentos, com indicao de arcadas da rabeca, direo da mo direita da viola e

    indicao dos ps no sapateado.

    Com essa breve reviso de literatura das pesquisas sobre o fandango com enfoque no

    aspecto musical pode-se notar que to diverso quanto o fandango so os estudos e abordagens

    realizadas. So oito dcadas de pesquisa em que uma quantidade razovel de material foi

    recolhida e sistematizada. Ainda faltam estudos que cruzem as informaes destas pesquisas,

    podendo assim encontrar semelhanas e peculiaridades entre os fandangos de localidades e

    pocas diferentes.

    1.4 O fandango em Rio dos Patos, o caso da famlia Pereira

    Como dito anteriormente, o fandango caiara possui caractersticas especficas em

    cada regio, que podem variar desde a afinao da viola at a ordem das marcas em um baile,

    por isso, na presente dissertao, optei por fazer um recorte e trabalhar com o fandango

    tocado pelos membros da famlia Pereira. Entre os anos de 1930 e 1940 membros da famlia

    Pereira que moravam em Araauba e Ariri (Canania-SP) migraram para Guaraqueaba (PR)

    e fundaram, prximo ao Rio dos Patos, uma comunidade que recebeu este mesmo nome. O

    acesso comunidade era extremamente difcil: da sede de Guaraqueaba12 era necessrio

    pegar uma embarcao em uma viagem que demorava, dependendo da velocidade do barco,

    de uma a quatro horas pela baa de Guaraqueaba em direo ao Norte at o Rio dos Patos.

    Para chegar comunidade era preciso ainda, com um pequeno barco ou a p, se o rio estivesse

    na vazante, chegar a um porto de areia, e andar duas horas pela mata em uma trilha na

    margem direita do rio (ANDRADE; ARANTES, 2003). Esse caminho foi percorrido, entre os

    anos de 1992 e 1999, pelas pesquisadoras Sandra Andrade e Joceli Arantes, pelo msico

    Rogrio Gulin e pelo fotgrafo Carlos Roberto Zanello de Aguiar, conhecido como

    Macaxeira, que realizaram uma extensa pesquisa de campo e que deu origem a vrios artigos

    e publicaes que sero utilizados como referncia para a descrio a seguir. Depoimentos de

    12 O termo sede de Guaraqueaba utilizado para referir-se ao centro da cidade, local onde se encontra a prefeitura e a maior parte do comrcio. Essa distino apontada tendo em vista que no municpio de Guaraqueaba existem cerca de 40 comunidades distribudas em uma grande extenso continental e uma srie de ilhas.

  • 37

    integrantes da famlia Pereira registrados nos livros Tocadores (2002) e Museu Vivo do

    Fandango (2006) tambm so utilizados para que se possa traar um panorama do fandango

    danado por esta famlia.

    Segundo Julino Pereira (apud ANDRADE; ARANTES, 2000), a famlia migrou para

    Rio dos Patos em busca de terras mais produtivas e nesta poca viviam cerca de 200 pessoas

    na comunidade. J em 1992, segundo descries de S. Andrade (1995) viviam cerca de 50

    pessoas entre adultos e crianas, pertencentes a nove famlias, divididas em 12 casas. Alm

    das casas havia uma escola (fechada), uma igreja e um campo de futebol, que era chamado

    pelos moradores de pracinha onde aconteciam as festividades locais. No havia posto de

    sade e nem estabelecimentos comerciais.

    As casas eram feitas de madeira retirada da mata, possuam de um a trs quartos e uma

    sala ampla, onde eram realizados os fandangos. A cozinha, separada da casa, tinha as paredes

    de madeira, o teto com cobertura de folha de guaricana e o cho batido. L o fogo de cho,

    utilizado para a preparao da comida, possua tambm a funo de esquentar as pessoas, por

    isso passava aceso a maior parte do tempo. Na comunidade no havia instalaes eltricas por

    isso todas as moradias eram iluminadas por velas ou por lampio a gs e no havia

    saneamento bsico, sendo utilizada a gua do rio para a higiene e limpeza de objetos

    (ANDRADE; ARANTES, 2000, 2003).

    Fotografia 5 Casa de Rio dos Patos

    Fonte: ANDRADE; ARANTES, 2000

    Todos os moradores de Rio dos Patos eram catlicos, fator que, segundo S. Andrade

    (1995), contribuiu para a manuteno do fandango na comunidade, pois em outras

    comunidades da regio onde houve a introduo de outras religies, principalmente as

    evanglicas, o fandango foi proibido e parou de ser danado. A igreja de Rio dos Patos era

  • 38

    utilizada pelos moradores que faziam suas prprias rezas, pois o padre de Guaraqueaba

    raramente ia ao local devido dificuldade de acesso, fato citado por Andrino Pereira (apud

    ANDRADE, 1995, p.19) em depoimento: Eu tambm sou cantador junto com meu irmo. E

    fui o iniciador do tero, porque o padre no vinha aqui..

    Na poca eram comuns os casamentos entre os primos, e os habitantes da comunidade

    que no fossem Pereira eram chamados de gente estranha. Era funo dos homens cuidar da

    roa, das armadilhas, limpar as trilhas e organizar os mutires, j mulher cabia cuidar da

    casa e acompanhar o marido nas festividades. (ANDRADE; ARANTES, 2000, 2003).

    Os moradores de Rio dos Patos eram agricultores, mas produziam em pequena escala,

    apenas para a sua subsistncia. Cultivavam arroz, milho, feijo e mandioca e produziam, na

    casa de farinha, a matria prima de uma espcie de panqueca de farinha de mandioca que

    chamavam de beiju, base de sua alimentao. O peixe de gua doce e algumas pequenas

    caas, apanhadas por armadilhas chamadas de mundus, como a paca, a cutia e o porco do

    mato tambm faziam parte dos hbitos de alimentao da comunidade. O extrativismo vegetal

    era tambm utilizado na construo de canoas, remos, instrumentos, para a fabricao de

    remdios feitos de ervas-medicinais e para a feitura de artesanatos que vendiam em

    Guaraqueaba. Quando precisavam de algum produto que no produziam, como cachaa,

    caf, macarro, compravam em Vila Ftima, povoado mais prximo, ou na sede de

    Guaraqueaba. Em Rio dos Patos era comum a prtica do mutiro para o plantio das terras,

    para a construo de casas, derrubada de mato e para a puxada de canoa13 (ANDRADE;

    ARANTES, 2000, 2003; ANDRADE, S., 1995).

    O mutiro era prtica comum em toda a regio litornea e normalmente o dono da

    terra trabalhada oferecia um fandango como forma de pagamento. O fandango tambm era

    danado nos finais de semana, no carnaval e em outras ocasies festivas, s deixando de ser

    brincado durante a quaresma ou em caso de luto. Em determinados casos de morte, o violeiro

    desencordoa, isto , tira as cordas da viola, e a deixa pendurada de boca virada para a parede

    at o final do luto, em sinal de tristeza e de respeito. (ANDRADE, 1995, p 24). Na

    publicao de 2000, Andrade e Arantes citaram que alguns fandangueiros no respeitavam

    mais a tradio de no danar na quaresma.

    Andrade e Arantes (2000) explicitam a funo social do fandango na comunidade:

    13 A canoa era feita na mata, onde era derrubada a rvore e, depois de pronta, para lev-la ao rio era necessrio um esforo comunitrio com vrios homens puxando a canoa da mata at a beira do rio. Esse processo denominado pelos caiaras de varao de canoa ou puxada de canoa.

  • 39

    Os Pereiras concebem o fandango como uma brincadeira, uma diverso. uma forma encontrada pelos homens e mulheres de expressarem seus sentimentos como amor, tristeza, alegria e saudade. o momento em que, atravs da msica, o cavalheiro declara sua dama paixo contida, canta os problemas de dia-a-dia, fala da natureza, do trabalho, das lembranas de famlia, dos antepassados e dos entes queridos j falecidos. (ANDRADE; ARANTES, 2000, p 36).

    No fandango em Rio dos Patos, sempre havia comida e bebida, oferecidas pela dona

    da casa onde estava sendo realizado o baile, sendo que, algumas vezes era ofertado um caf

    com bolinho de banana, em outras uma janta com peixe ou carne de caa. A cachaa era

    obrigatria e bebida por homens e mulheres: Em Rio dos Patos, quanto mais bebem, mais os

    fandangueiros danam e quanto mais danam, mais eles bebem. (ANDRADE, 1995, p. 19).

    Segundo descries de Andrade e Arantes (2000, 2003) e depoimentos dos integrantes

    da famlia Pereira, em Rio dos Patos o fandango era danado na sala das casas.

    Nossa sala era enorme, naquele tempo media de palmo, vinte palmo, quadrado, assoalho de canela preta, saa com tudo rachado, tamanco pesado era ali. (...) O tamanco era feito com canela, peroba. Aqueles ali, no tinha danador de fandango que no rachava a tbua mesmo... (Pedro Pereira citado por MARCHI; SAENGER; CORREA, 2002, p. 288).

    As mulheres geralmente ficavam em um quarto da casa esperando o convite dos

    homens para danar e, logo que a moda acabava, retornavam ao quarto. Como visto nas

    descries anteriores, em Rio dos Patos as modas valsadas e batidas eram alternadas, podendo

    ocorrer em algumas ocasies dois valsados seguidos. Existiam algumas regras para a

    formao dos pares, tal como: a mulher no podia recusar o convite de um cavalheiro, e, se

    isso acontecesse ningum mais danaria com ela (ANDRADE; ARANTES, 2000). Nas

    marcas batidas os homens faziam uma roda e as mulheres pouco a pouco iam entrando na

    frente de cada homem, assim a roda ficava intercalada. A mulher que ficava na frente do

    homem, ou que entrasse no porto do homem, como eles falam, seria obrigatoriamente seu

    par no valsado seguinte. A moa que saa no porto da gente na roda do batido, a gente tinha

    que danar com aquela moa ou mulher. Aquela que no sasse no porto da gente a gente no

    danava com ela. (Julino Pereira citado por MARCHI; SAENGER; CORREA, 2002, p.296).

    Outras formalidades que eram observadas: primeiro danava-se com a me e depois com as

    filhas, se o homem queria danar com uma mulher casada, primeiro pedia permisso para o

    marido (Julino e Julio Pereira apud MARCHI; SAENGER; CORREA, 2002).

  • 40

    Andrade (1995) conta que nem todas as mulheres danavam o batido, pois tanto para o

    homem como para a mulher, era uma dana muito complexa devido aos detalhes da evoluo

    coreogrfica que exigia dos fandangueiros bastante concentrao. Quanto postura corporal

    dos fandangueiros no batido, as autoras observaram que os homens, que batiam o tamanco,

    ficavam curvados, e as mulheres numa postura ativa e sria (...) arrastando os ps, com os

    braos cruzados ou estendidos ao longo do corpo, quase no os movendo. (ANDRADE;

    ARANTES, 2003, p. 46). As marcas batidas citadas so: sinsar, sinsar-caloado,

    queromana, tonta, tiraninha, feliz, serrana, andorinha, pega-fogo, graciosa e anu.

    Andrade e Arantes (2000, 2003, 2006) descreveram o fandango de Rio dos Patos de

    maneira minuciosa no que diz respeito aos procedimentos e relaes que aconteciam durante

    as festas: o papel do homem e da mulher, caractersticas fsicas dos instrumentos, postura

    corporal dos fandangueiros entre outras. As duas autoras, provavelmente por no possurem

    formao musical, no fizeram em momento algum uma anlise musical mais tcnica,

    abordando forma e estrutura das msicas e afinao dos instrumentos, por exemplo, e muitas

    vezes descrevem procedimentos musicais de forma abstrata, levantando a possibilidade de

    uma interpretao questionvel. o caso de algumas afirmativas genricas, como por

    exemplo: No valsado as msicas so sempre as mesmas: chamarrita e dando, com

    alterao apenas de um verso ou outro. (ANDRADE, 1995, p. 18). Como ser visto

    posteriormente nesta pesquisa, existem vrias marcas valsadas diferentes que so reunidas em

    dois grandes grupos, dando e chamarrita, divididas pelas caractersticas do ritmo harmnico

    e pela utilizao ou no de refro. Outra descrio que no confere com o que foi observado

    em outras regies diz respeito s letras e diviso de vozes. Todas as letras, tanto as do

    valsado quanto as do batido, so geralmente inventadas na hora pelo mestre violeiro, que

    recebe acompanhamento dos outros msicos, que fazem a segunda e terceira vozes.

    (ANDRADE,1995, p. 18). O que pode ser percebido pelas gravaes de pesquisas j

    realizadas que o improviso sim presente, mas muitos versos, como os refres dos dando,

    por exemplo, so versos tradicionais, cantados inclusive, por vrios grupos de comunidades

    diferentes. Outra questo em aberto a diviso de vozes que, pelo observado at ento,

    realizada normalmente por apenas duas vozes e no por trs, como sugerido pela autora.

    Rogrio Gulin, msico que acompanhou Andrade e Arantes em vrias viagens de pesquisa de

    campo escreveu um pequeno artigo onde traou algumas caractersticas musicais especficas

    do fandango danado pela famlia Pereira em Rio dos Patos.

    Gulin (2002) descreveu a viola e a rabeca utilizada pelos integrantes da famlia

    Pereira. A afinao intaivada (ver tabela 2) utilizada na viola, com seis cordas, sendo a sexta

  • 41

    a cantadeira que vai somente at a metade do brao. Os Pereiras utilizam, no apenas os

    acordes de tnica e dominante, mas encerram as msicas com a subdominante. Em algumas

    modas h a presena de um dedilhado na regio grave da viola. A rabeca, ou rebeca, possui

    trs cordas afinadas normalmente em l3, r4 e l4. Uma questo interessante apresentada no

    artigo de Gulin (2002) a preocupao com a terminologia utilizada pelos fandangueiros.

    Segue abaixo algumas observaes feitas pelo autor:

    Temperar a viola,- expresso que significa afinar a viola;

    Moda - nome genrico dado s msicas;

    Cantadeira- sexta corda, chamada em alguns lugares de turina.

    Gulin (2002) trouxe ainda trs transcries, um batido an, um dando e uma

    chamarrita.

    Andrade e Arantes (2000, 2003) descreveram que, na poca de sua pesquisa de campo,

    os integrantes da famlia Pereira utilizavam a rabeca, a viola, o adufe e o tamanco,

    instrumentos confeccionados artesanalmente por eles. As madeiras utilizadas eram a caxeta,

    para a confeco do corpo da rabeca, viola e o aro do adufe e a canela, para detalhes dos

    instrumentos e para o tamanco. Outras madeiras utilizadas eram o guapuruvu, guanandi e a

    raiz de figueira. Para confeco dos instrumentos a melhor poca para se tirar a madeira era

    na lua minguante, correndo menos risco de rachar. As autoras citaram que as cordas da rabeca

    eram feitas de fio de nylon e no mencionaram o material das cordas das violas. O arco da

    rabeca era feito de madeira e timbopeva (uma espcie de cip). Na confeco dos

    instrumentos era utilizado tambm o couro de cotia (adufe) e de veado (tamanco).

    A partir da dcada de 1990 ocorreu um esvaziamento da comunidade e, pouco a

    pouco, os moradores foram deixando Rio dos Patos de modo que hoje ningum mora l.

    Alguns fatores so citados como causadores desse fenmeno dentre eles a questo da

    legislao ambiental. Em 1985 foi criado o Parque Nacional do Superagui, que em 1997 teve

    sua rea ampliada, abrangendo assim o Vale do Rio dos Patos. A criao do Parque, se por

    um lado forneceu mecanismos para viabilizar a preservao ambiental da regio, por outro

    implicou em restries ao modo de vida tradicional das populaes caiaras residentes.

    (PIMENTEL; GRAMANI; CORRA, 2006, p. 104). Outros fatores citados como causadores

    da migrao dos integrantes da famlia Pereira foram a falta de escola e posto de sade no

    local, dificuldade de acesso e isolamento, a presena de grileiros na regio e questes relativas

    a tormentos da natureza.

    Hoje os integrantes da famlia Pereira, pesquisados na dcada de 1990 moram em

    locais espalhados pela regio do Lagamar, como a Ilha de Valadares (Paranagu), Rio

  • 42

    Itimirim (Paranagu), centro de Guaraqueaba, Fazenda Santa Rita (Guaraqueaba),

    Abacateiro (Guaraqueaba), Ariri (Canania) e no centro de Canania. Mesmo estando em

    localidades distintas, os ex-moradores de Rio dos Patos formaram um grupo de fandango,

    chamado Grupo Famlia Pereira, que se apresentou pela primeira vez fora da regio litornea

    em 2000, no SESC da Esquina (Curitiba-PR) no projeto Fandango subindo a Serra,

    coordenado por Maria de Lordes Brito. A idia de grupo consolidou-se definitivamente em

    2002 quando, a convite de Rogrio Gulin e Oswaldo Rios, gravaram o CD Viola

    Fandangueira. (PIMENTEL; GRAMANI; CORRA, 2006, p. 106).

    Fotografias 6 e 7 - Apresentao da famlia Pereira em 1989

    Fonte: ANDRADE; ARANTES, 2000.

    Algumas apresentaes realizadas pelo Grupo Famlia Pereira ou por integrantes da

    famlia:

    1989, abril: Evento Guarakessaba agito cultural (Guaraqueaba, PR);

    2002, outubro: Centro Cultura Banco do Brasil, Projeto Rabequeiros (Rio de

    Janeiro, RJ);

    2003, maio: Projeto Fandango Subindo a Serra II (Curitiba, PR);

    2003, agosto: lanamento do livro Fandango de Mutiro (Curitiba, PR);

    2003, agosto: 2 Pixilho Pr Fandango (Paranagu, PR);

    2004, agosto a setembro: Os instrumentos do fandango e a arte popular de

    Guaraqueaba (Sala do artista Popular, Secretaria de Cultura do Estado do Paran

    Curitiba, PR);

    2005, julho: I Encontro Paranaense de Culturas Populares, depoimento e

    apresentao (Castro, PR);

    2006, junho: lanamento do livro Olhares (Teatro do HSBC, Curitiba, PR);

    2006, julho: 1 Encontro de Fandango e Cultura Caiara (Guaraqueaba, PR);

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    2006, agosto: Oficina Lutheria Caiara, Ansio Pereira (Paranagu, PR);

    2006, setembro: 1 Encontro Sul Brasil de Culturas Populares, aula-espetculo

    (Campo Largo, PR);

    2007, maio: 3 Semana de Letras: Cultura Popular Paranaense (UNIBRASIL,

    Curitiba, PR);

    2007, novembro: Projeto Artesania Sonora, Leonildo e Z Pereira (So Paulo, SP);

    2008, maio: Mostra Cultural de Integrao dos Povos Latino Americanos (MST e

    Via Campesina, Curitiba, PR)

    2008, julho: 2 Encontro de Fandango e Cultura Caiara, apresentao e baile

    (Guaraqueaba, PR);

    Alguns integrantes da famlia Pereira participam da Associao dos Fandangueiros do

    Municpio de Guaraqueaba, fundada em 2001 e que, depois de um perodo sem atividades,

    foi rearticulada em 2005 (PIMENTEL; GRAMANI; CORRA, 2006). A associao foi

    contemplada com o projeto Casa do fandango, na edio 2005 do Programa Cultura Viva do

    Ministrio da Cultura e com o projeto 2 Encontro de Fandango e Cultura Caiara,

    contemplado atravs da Lei Rouanet pelo prmio Avon Cultura de Vida, projeto nos quais

    Nilo Pereira, Heraldo Pereira e Leonildo Pereira trabalharam como professores e nos quais o

    Grupo Famlia Pereira se apresentou na regio de Guaraqueaba.

    O Grupo Famlia Pereira tambm foi contemplado com o Prmio Culturas Populares

    2007, atravs de Nilo Pereira, uma iniciativa da Secretaria da Identidade e da Diversidade

    Cultural do Ministrio da Cultura.

    Muitas pesquisas e publicaes foram realizadas tendo os fandangueiros da famlia

    Pereira como foco. Andrade, cientista social, e Arantes, historiadora, ambas formadas pela

    Universidade Federal do Paran tiveram a famlia Pereira como objeto de pesquisa entre 1992

    e 1999, trabalho cujos resultados foram escritos em suas monografias de final de cursos. Com

    essa pesquisa p