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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E NATURAIS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA
DANIELLE CONSTNCIA FELICIO MACEDO
REPRESENTAES SOCIAIS DE CONJUGALIDADE E DE FIBROMIALGIA:
DESDOBRAMENTOS NA DINMICA CONJUGAL DO PROVEDOR E DA
RAINHA DO LAR
VITRIA
2014
DANIELLE CONSTNCIA FELICIO MACEDO
REPRESENTAES SOCIAIS DE CONJUGALIDADE E DE FIBROMIALGIA:
DESDOBRAMENTOS NA DINMICA CONJUGAL DO PROVEDOR E DA
RAINHA DO LAR
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Psicologia da Universidade Federal do
Esprito Santo sob orientao da Prof. Dr. Priscilla
de Oliveira Martins da Silva, como requisito parcial
para obteno do grau de Mestre em Psicologia.
VITRIA
2014
Dados Internacionais de Catalogao-na-publicao (CIP)
(Biblioteca Central da Universidade Federal do Esprito Santo, ES, Brasil)
Macedo, Danielle Constncia Felcio, 1985-
M141r Representaes sociais de conjugalidade e de fibromialgia : desdobramentos na dinmica conjugal do provedor e da rainha do lar /
Danielle Constncia Felcio Macedo. 2014.
269 f. : il.
Orientador: Priscilla de Oliveira Martins da Silva.
Dissertao (Mestrado em Psicologia) Universidade Federal do
Esprito Santo, Centro de Cincias Humanas e Naturais.
1. Fibromialgia. 2. Representaes sociais. 3. Relaes de gnero. I.
Silva, Priscilla de Oliveira Martins da. II. Universidade Federal do Esprito Santo. Centro de Cincias Humanas e Naturais. III. Ttulo.
CDU: 159.9
REPRESENTAES SOCIAIS DE CONJUGALIDADE E FIBROMIALGIA:
DESDOBRAMENTOS NA DINMICA CONJUGAL DO PROVEDOR E DA
RAINHA DO LAR
DANIELLE CONSTNCIA FELICIO MACEDO
Dissertao submetida ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia da Universidade Federal do Esprito Santo, como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Psicologia
Aprovada em 14 de maro de 2014, por:
Prof. Dr. Priscilla de Oliveira Martins da Silva
Orientadora, PPGP/UFES
Prof. Dr Maria Cristina Smith Menandro
PPGP/UFES
Prof. Dr Adriano Roberto Afonso do Nascimento PPGP/UFMG
Doena injusta e ingrata (...) que tirou um pedao dos meus sonhos (...). As pessoas
esperam muito mais do provedor do que da rainha do lar (...). a doena mais, a
coisa mais, invisvel mais presente que eu j vi (Isolda, M-CJ).
AGRADECIMENTOS
Vrias foram as pessoas que contriburam com essa dissertao, por isso gostaria de
agradec-las...
Aos pacientes que colaboraram para a realizao desse trabalho, por aceitarem dividir e,
por vezes, detalhar fragilidades vivenciadas em suas rotinas.
minha orientadora, Priscilla de Oliveira Martins da Silva, pela disponibilidade e
desprendimento em partilhar conhecimentos, pelo zelo e preciso em cumprir
compromissos, pela qualidade e clareza das orientaes, pela ateno dispensada frente s
minhas demandas pessoais ocorridas no decorrer do trabalho.
Ao corpo docente do Programa de Ps-Graduao em Psicologia da Universidade Federal
do Esprito Santo, especialmente ao professor Ldio de Souza, o maior responsvel por
meus primeiros entendimentos acerca do campo da Psicologia Social. Considero um
privilgio ter sido sua aluna.
Lcia e Camila, pela presteza, bom humor e pacincia no exerccio de suas funes na
secretaria.
Aos colegas do mestrado e doutorado, especialmente Renata Danielle pelas sugestes de
leitura e pelos materiais emprestados e doados! Roberta Rangel e Tammy pela
colaborao na reviso deste trabalho. Lvia Guimares e Aninha por tudo!
Principalmente pela amizade surgida.
Aos profissionais da Equipe de Reumatologia do HUCAM e do LACORE, pelo apoio e
convivncia calorosa nos primeiros momentos desse trabalho. Em especial, Mrcia e
Claudinha, pela extrema boa vontade para comigo e para com os pacientes; Dra Valria
Valim, grande inspiradora de prticas de cuidado em sade com excelncia; ao professor
Dr. Fabian Tadeu do Amaral, pelo incentivo, parceria e apoio constantes; toda equipe,
principalmente, Dra rica Serrano e Dra Ana Paula pela colaborao na seleo dos
pacientes, o que fizeram juntamente com a Dra Bernadete Gavi, grande defensora da
interdisciplinaridade e por quem tenho grande apreo e gratido.
Aos funcionrios, docentes e estudantes do Curso de Terapia Ocupacional da UFES, pelo
apoio e compreenso em momentos de presena restrita para possibilitar maior dedicao
esse trabalho.
Aos amigos que se fizeram presentes em desafios especficos dessa jornada, em especial:
Paulinha, Kelly Pratte, Juliana Gomes, Ana Lusa, Nilcilia, Graciana, Gabriela Queiroz.
Ao Filipe, pelo apoio e compreenso indescritveis, pelo amor que respeita, partilha e
constri projetos convergentes; por me apresentar a conjugalidade de maneira to doce e
intensa. famlia Oliveira, pelo acolhimento, fora e incentivo.
Aos meu pais Greice e Fernando, s minhas irms Fer e Nati, aos meus cunhados Diego e
Lucas, toda minha famlia - meu ouro de mina pelas oraes, pela constante presena,
incentivo e apoio; pela firmeza de nossa unio e bem querer que tornam mais leve e
possvel qualquer empreitada.
Deus, condutor de todos os meus projetos e sonhos
RESUMO
Macedo, D.C.F. (2014). Representaes sociais de conjugalidade e de fibromialgia:
desdobramentos na dinmica conjugal do provedor e da rainha do lar. Dissertao
de Mestrado. Programa de Ps-Graduao em Psicologia. Vitria: Universidade Federal do
Esprito Santo.
A fibromialgia (FM) se caracteriza por dor generalizada, fadiga, sono no reparador, entre
outros sintomas. Trata-se de uma doena de origem no determinada e com resposta
incerta ao tratamento, podendo provocar sentimentos de vulnerabilidade e desamparo alm
de potenciais impactos na rotina familiar e social dos que recebem esse diagnstico. Diante
disso, o presente trabalho objetivou, de modo geral, descrever e analisar as representaes
sociais (RS) de FM e de conjugalidade para casais em que um dos cnjuges foi
diagnosticado com a doena, levando em considerao a perspectiva da Psicologia Social e
a categoria de anlise gnero. Os objetivos especficos foram: investigar o grau de
conhecimento dos participantes sobre a FM e o grau de conhecimento que seus cnjuges
avaliam ter sobre a doena, bem como seus desdobramentos na dinmica conjugal;
investigar as RS de FM e de conjugalidade; verificar como so construdas as relaes
entre as RS de FM e de conjugalidade, bem como as prticas de manuteno ou alterao
da dinmica conjugal aps o diagnstico de um dos cnjuges; analisar os aspectos
identificados considerando a categoria de anlise gnero. Participaram do estudo 08 casais
em que um dos cnjuges foi diagnosticado com FM h pelo menos 12 meses, com
histrico de relacionamento estvel iniciado h pelo menos 01 ano antes do diagnstico.
Os 16 participantes responderam a um questionrio contendo dados sociodemogrficos e
informaes breves sobre seu histrico clnico e, em seguida, foram entrevistados
individualmente com base em um roteiro no estruturado (narrativa) e semiestruturado. As
transcries das entrevistas foram submetidas anlise de contedo e problematizadas
luz da Teoria das Representaes Sociais, tendo sido utilizado tambm o software Analyse
Lexicale par Contexte dum Ensemble de Segments de Texte (Alceste). Os resultados
evidenciaram aspectos das dimenses relacionais existentes entre as RS de conjugalidade e
de FM e as prticas conjugais estabelecidas pelos casais. O uso de dois mtodos, tanto na
coleta quanto na anlise dos dados, desvelou uma ampla rede de significaes amor,
papis masculinos e femininos, o que o adoecer e o cuidar, a fibromialgia e seus
desdobramentos na rotina do doente e de sua famlia acessada pelos participantes nos
processos de ancoragem e objetivao das representaes de FM e de conjugalidade. Por
fim, constatou-se a existncia de um campo de fragilidade dos doentes com fibromialgia e
das pessoas prximas a eles no seu processo de enfrentamento. Alm disso, os dados
apontam para a necessidade de que os servios de sade atuem precocemente no
esclarecimento sobre a doena e na identificao de conflitos no mbito familiar e
conjugal, que podem ser desencadeados tanto na investigao diagnstica como no
decorrer do tratamento e nas particularidades da convivncia diria com a doena.
Palavras-chave: Fibromialgia, representao social, conjugalidade, relaes de gnero.
ABSTRACT
Macedo, D.C.F. (2014). Social Representation of conjugality and fibromyalgia:
developments in marital dynamics of "provider" and household's queen ". Masters
Degree Thesis. Psychology Post Graduation Program. Vitria: Federal University of
Esprito Santo.
Fibromyalgia (FM) is characterized by widespread pain, fatigue, non-restorative sleep,
among other symptoms. It is a disease of undetermined origin and uncertain response to
treatment, which can cause feelings of vulnerability and helplessness as well as potential
impacts on family and social routine of receiving this diagnosis. Therefore, this study
aimed, generally, to describe and analyze the social representations (SR) of FM on couples
where one spouse has been diagnosed, taking into account the perspective of social
psychology and gender category of analysis. The specific objectives were to investigate the
extent of participants' understanding of the FM and the degree of knowledge that their
spouses think they have about the disease and its impacts on marital dynamics; investigate
the SR of FM and conjugality; verify how relationships between SR and FM marital are
built, as well as maintenance practices or change of marital dynamics after the diagnosis of
a spouse; analyze the aspects identified considering the gender category of analysis. The
study included 08 couples in which one spouse has been diagnosed with FM for at least 12
months before the interview, with a history of stable relationship that began at least 01
years before the diagnosis. The 16 participants answered a questionnaire on
sociodemographic characteristics and brief information about their medical history, then
they were interviewed individually, based on an unstructured (narrative) and
semistructured script. The interview transcripts were subjected to Content Analysis and
problematized in light of the social representation theory, having also been used the
Analyse d' Lexicale software Contexte one pair Ensemble Segments of Texte (Alceste). The
results showed aspects of existing relational dimensions between the RS and FM conjugal
and marital practices established by couples. Using two methods, in gathering and in the
analysis of the data, unveiled a broad network of meanings - love, gender roles, what it
means to become ill and to care, fibromyalgia and its consequences in the routine of the
patient and his family - accessed by the participants in the processes of anchoring and
objectification of representations of FM and conjugality. Finally, it was found the
existence of a field of fragility of patients with fibromyalgia and those around him in the
process of coping. Furthermore, this data point to the need for health services to act early
in information about the disease and identifying conflicts in family and marital context,
which can be triggered both in the diagnostic investigation and in the course of treatment
and particular characteristics of daily living with the disease.
Keywords: Fibromyalgia, social representation, conjugality, gender relations.
SUMRIO
1. INTRODUO ............................................................................................... 11
1.1 Fibromialgia: sinais e sintomas, epidemiologia e prognstico .................. 14
1.2 Particularidades do gnero: complexidades para alm da prevalncia ....... 17
1.2.1 Estudos comparativos: mulheres e homens com FM...................... 17
1.2.2 Gnero como categoria de anlise ................................................ 21
1.2.3 Sade feminina e masculina .......................................................... 27
1.3 Processos de incerteza e impactos da fibromialgia na dinmica familiar e
conjugal ......................................................................................................... 33
1.4 Conjugalidade e a transversalidade das questes de gnero ....................... 39
1.5 Teoria das representaes sociais e a questo de pesquisa ......................... 43
1.5.1 A contribuio da abordagem pragmtica da linguagem no estudo
das RS ................................................................................................... 47
1.5.2 Teoria das Representaes Sociais e o Gnero ............................. 54
2. OBJETIVOS .................................................................................................... 58
2.1 Objetivos gerais ........................................................................................ 58
2.2 Objetivos especficos ................................................................................ 58
3. METODOLOGIA............................................................................................ 59
3.1 Participantes ............................................................................................. 59
3.2 Procedimento de coleta de dados .............................................................. 60
3.3 Procedimento de anlise dos dados ........................................................... 64
4. RESULTADOS ............................................................................................... 73
4.1 Anlise de Contedo: Eixos temticos ...................................................... 77
4.1.1 Eixo temtico 1: Fibromialgia, primeiros sintomas e convivncia
com a doena ........................................................................................ 82
4.1.2 Eixo temtico 2: Modelo ideal de conjugalidade ........................... 110
4.1.3 Eixo temtico 3: Impactos da FM na dinmica conjugal ............... 117
4.1.4 Eixo temtico 4: Fibromialgia na mulher e no homem .................. 155
4.2 As representaes sociais de conjugalidade, fibromialgia e gnero ........... 168
4.3 Alceste ..................................................................................................... 170
4.3.1 Corpus M ...................................................................................... 172
4.3.2 Corpus H ...................................................................................... 178
4.3.3 Anlise fatorial ............................................................................. 185
4.3.4 A integrao das Classes do Alceste com as categorias da AC ...... 188
5. DISCUSSO .................................................................................................... 191
5.1 A FM no cotidiano conjugal ..................................................................... 192
5.2 A estrutura dos servios de sade: conhecimento da FM no restrito
presena de interesse por conhecer a doena................................................... 202
5.3 A FM: o conhecimento sobre a doena e o tratamento .............................. 205
5.4 A dinmica da formao e das relaes entre as RS de conjugalidade e de
FM no cotidiano conjugal ............................................................................... 212
6. CONSIDERAES FINAIS .......................................................................... 228
REFERNCIAS .................................................................................................. 231
ANEXO ................................................................................................................ 241
APNDICE .......................................................................................................... 242
LISTA DE TABELAS
Tabela 1. Caracterizao do Grupo M-FM (Mulheres com FM e seus parceiros) ... 75
Tabela 2. Caracterizao do Grupo H-FM (Homens com FM e suas parceiras) ...... 76
Tabela 3. Eixos temticos, categorias e subcategorias da Anlise de Contedo ...... 80
Tabela 4. Representaes sociais de Conjugalidade, FM e de gnero ..................... 169
Tabela 5. Unidades de Contexto Elementar da Classe 1 do Corpus M .................... 174
Tabela 6. Unidades de Contexto Elementar da Classe 3 do Corpus M .................... 175
Tabela 7. Unidades de Contexto Elementar da Classe 5 do Corpus M .................... 176
Tabela 8. Unidades de Contexto Elementar da Classe 2 Corpus M......................... 177
Tabela 9. Unidades de Contexto Elementar da Classe 4 do Corpus M .................... 177
Tabela 10. Unidades de Contexto Elementar da Classe 1 do Corpus H .................. 180
Tabela 11. Unidades de Contexto Elementar da Classe 4 do Corpus H .................. 181
Tabela 12. Unidades de Contexto Elementar da Classe 6 do Corpus H .................. 182
Tabela 13. Unidades de Contexto Elementar da Classe 2 do Corpus H .................. 183
Tabela 14. Unidades de Contexto Elementar da Classe 3 do Corpus H .................. 183
Tabela 15. Unidades de Contexto Elementar da Classe 5 do Corpus H .................. 185
Tabela 16: Thematas dos Corpus M e H .................................................................. 224
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Direo de anlise entre dados apresentados pelo Alceste e RS............... 69
Figura 2: Dendrograma do Corpus M e presenas significativas das variveis:
grupo de entrevistadas; mulher entrevistada; renda ................................ 173
Figura 3: Dendrograma do Corpus H e presenas significativas das variveis
grupo de entrevistados; homem entrevistado; renda ............................... 179
Figura 4: Anlise Fatorial de Correspondncias do Corpus M ................................ 186
Figura 5: Anlise Fatorial de Correspondncias do Corpus H ................................ 188
Figura 6: Integrao dos resultados do Alceste e da AC ......................................... 190
Figura 7: Elementos Constituintes e o Modelo de Produo da Representao
(modificada) .......................................................................................................... 221
Figura 8: Articulao do conceito de themata aos Elementos Constituintes e o
Modelo de Produo da Representao (modificada) ............................. 225
LISTA DE ABREVIATURAS
AC Anlise de Contedo
ACR American College of Rheumatology
AFC Anlise Fatorial de Correspondncia
AVE Acidente Vascular Enceflico
CHD Classificao Hierrquica Descendente
CIS Cnjuges de indivduos saudveis
EN Entrevista narrativa
FM Fibromialgia
H-FM Agrupamento: homems com FM
H-CJ Agrupamento: homens cnjuges de mulheres com FM
M-FM Agrupamento: mulheres com FM
M-CJ Agrupamento: mulheres cnjuges de homens com FM
OA Osteoartrose
RS Representaes Sociais
TRS Teoria das Representaes Sociais
UCI Unidades de Contexto Iniciais
UCE Unidades de Contexto Elementares
11
1. INTRODUO
A fibromialgia (FM), uma das doenas reumatolgicas mais frequentes na
populao geral (Castro, Kitanishi & Share, 2011), caracteriza-se por sintomas como dor
crnica e generalizada, fadiga, distrbios do sono, entre outros (Heymann et al., 2010).
Trata-se de uma doena de etiologia complexa e ainda no suficientemente esclarecida
(Alambert et al., 2009). A resposta ao tratamento , em geral, incerta (Asbring &
Narvanen, 2004), o que pode provocar sentimentos de vulnerabilidade e desamparo
(Berber, Kupek, & Berber, 2005) de modo a influenciar o cotidiano familiar e social dos
que recebem esse diagnstico.
Neste cenrio, o fenmeno que ser abordado no presente trabalho permeia o
entendimento de aspectos da dinmica conjugal de pessoas com fibromialgia (FM).
Pretende-se explorar de que forma as alteraes na dinmica conjugal de casais em que um
dos cnjuges tem FM esto articuladas com as representaes sociais que esse grupo tem
de conjugalidade e da prpria condio de adoecimento, considerando tambm
particularidades relativas ao gnero.
A questo tem sua relevncia desvelada nos dados da literatura que descrevem o
cnjuge do doente com FM como importante membro da sua rede de suporte social1, mas
apontam tambm que o processo de adoecimento pode configurar condies de risco e
fragilidade sade fsica e mental do cnjuge saudvel (Sderberg, Strand, Haapla &
1Seguem algumas das definies clssicas de suporte social apresentadas em um estudo destinado
construo de uma Escala de Satisfao com o Suporte Social, disponvel em:
http://www.fpce.up.pt/docentes/paisribeiro/testes/soCIALf.htm.
(a) Suporte social a existncia ou disponibilidade de pessoas em quem se pode confiar, que mostram que se
preocupam conosco, nos valorizam e gostam de ns. (Fonte: Sarason, I.G., Levine, H.M., Basham, R.B., & Sarason, B.R. (1983). Assessing social support: the social support questionnaire. Journal of Personality and
Social Psychology, 44(1), 127-139).
(b) Refere-se aos recursos ao dispor dos indivduos e unidades sociais (tais como a famlia) em resposta aos
pedidos de ajuda e assistncia (Dunst, C., & Trivette, C. (1990). Assessment of social support in early
intervention programs. In:S.Meisels e J.Shonkoff (Edts.) Handbook of early childhood intervention. (pp326-
349). New York: Cambridge University Press.
12
Ludman, 2003; Bigatti & Cronan, 2002), sendo necessrio o aprofundamento de
investigaes que abarquem fragilidades psicossociais e aspectos da sade desses
indivduos. Destaca-se ainda o grau de incerteza2 associado frequncia e intensidade dos
sintomas como um fator perturbador para o doente com FM e para os que com ele
convivem (Asbring & Narvanen, 2004; Reich, Olmsted, & van Puymbroeck, 2006). Frente
a isso, pesquisas tm mostrado que o nvel de conhecimento acerca da doena desvela-se
como fator determinante na convivncia com a doena e com o doente (Carvalho &
Noordhoek, 2006; Albano, Quintrec, Crozet & DIvernoisc, 2010). Sabe-se ainda que
aspectos relacionados ao conviver com os sinais e sintomas da FM podem precipitar
processos de separao conjugal (Bernard, Prince & Edsall, 2000).
Apesar da FM ser prevalente na populao feminina (Castro et al., 2011) e de a
maioria dos estudos contemplarem esse segmento em suas investigaes (Mir, Diener,
Martnez, Snchez & Valenza, 2012), considera-se imprescindvel incluir homens e
mulheres entre os participantes na presente pesquisa, contemplando o gnero como uma
categoria de anlise, de forma a favorecer a explorao dos dados a partir de referenciais
da Psicologia Social. O alcance dessa discusso potencializado pela incluso do cnjuge
do doente com FM como participante desse estudo contemplando, assim, os principais
atores envolvidos diretamente na dinmica conjugal, palco profcuo de questes tangentes
ao gnero. Ademais, trata-se de pessoas que convivem rotineiramente com o doente e s
quais so atribudas maior responsabilidade e encargo familiar (Sderberg et al., 2003).
Assim, o desenho desse trabalho contempla dades de entrevistados que ora
podero desvelar expoentes de um feminino submisso e de um masculino provedor,
expostos em seus limites arraigados em tradies patriarcais (Strey, 2011); ora do feminino
2Esclarece-se que a incerteza em relao ocorrncia dos sintomas ocorre pela sua manifestao dar-se sem
seguir uma linha regular. Desse modo no possvel prever quando ocorrer eventos de piora importante da
dor, da fadiga ou outros sinais da FM, sendo sua intensidade tambm varivel.
13
reflexo de mudanas histricas como da maior insero da mulher no mercado de trabalho
(Scott, 1995; Wagner, Predebon, Mosmann, & Verza, 2005; Strey, 2011; Galinkin &
Ismael, 2011); tambm da masculinidade colocada em situao de conflitos e contradies
diante de um corpo limitado pela dor (Gomes, Nascimento & Arajo, 2007; Burille, 2012);
ou ainda, podero retratar situaes em que as concepes tangentes aos papis de marido
e mulher, mesmo quando se pretende que sejam estanques, podem no se sustentar diante
das mudanas suscitadas pela convivncia com a doena (Sderberg et al., 2003; Burille,
2012).
Para tanto, os aspectos introdutrios deste trabalho estruturam-se em cinco eixos
centrais: o primeiro caracteriza a fibromialgia em seus aspectos clnicos e epidemiolgicos;
o segundo aponta a relevncia de se discutirem particularidades referentes ao doente com
FM ser homem ou ser mulher, o que no ocorre via de regra pela doena ser prevalente em
mulheres e, fundamenta ainda, o gnero como uma categoria de anlise selecionada para
problematizao dos resultados; o terceiro apresenta desdobramentos de algumas
caractersticas clnicas da FM e do grau de conhecimento que se tem sobre a doena, que
impacta sobre a dinmica conjugal e familiar do doente; o quarto detm-se,
especificamente, dimenso histrica da conjugalidade e sua relao com as concepes
tangentes a papis conjugais do homem e da mulher; por ltimo, expem-se os
pressupostos e as bases tericas da Teoria das Representaes Sociais que nortearam o
desenvolvimento desta pesquisa.
Os aspectos metodolgicos contemplaram duplas estratgias tanto na coleta como
na anlise dos dados, visando ampliar o alcance dessa investigao. Os resultados e as
discusses desse trabalho buscaram apropriar-se dos elementos presentes no referencial
terico apresentado na introduo e contou-se ainda com uma tentativa da pesquisadora de
14
integrar modelos e conceitos considerados clssicos na TRS. O trabalho encerrado com
consideraes que procuram retomar os desdobramentos prticos que justificam a
conduo de investigaes sobre as relaes conjugais na FM e suas especificidades de
gnero como um eixo analtico importante para o aprimoramento constante das aes de
cuidado ofertado s pessoas com FM e suas famlias.
O estudo da conjugalidade de pessoas com FM e a investigao de como as
concepes que o doente e seu cnjuge tm acerca da doena e de como compreendem
aspectos tangentes a conjugalidade, pode nortear o delineamento de intervenes voltadas
para viabilizar processos de enfrentamento frente a essa situao de adoecimento crnico,
de modo a abarcar o doente com FM, seu cnjuge e, por conseguinte, seu contexto
familiar.
1.1 Fibromialgia: sinais e sintomas, epidemiologia e prognstico
As doenas reumticas podem ser definidas como doenas e alteraes funcionais
do sistema musculoesqueltico de causa no traumtica, constituindo um grupo com mais
de uma centena de doenas, que podem ser agudas, recorrentes ou crnicas, atingindo
pessoas de todas as idades (Moreira, Pinheiro & Neto, 2009). Sendo causa frequente de
incapacidade e afastamento do trabalho, as doenas reumticas, especialmente quando
diagnosticadas tardiamente ou no tratadas de forma adequada, podem ocasionar
repercusses fsicas, psicolgicas, familiares, sociais e econmicas, muitas vezes graves e
permanentes (Provenza et al., 2004).
Nesse contexto, vlido destacar a complexidade dos sinais e sintomas da chamada
sndrome fibromilgica ou fibromialgia (FM), entidade nosolgica em que a dor crnica
assume a centralidade do espectro clnico, com impactos potenciais na rotina familiar e
15
social dos que recebem esse diagnstico. Alm desses sintomas, pode tambm ocorrer
fadiga, distrbios do sono, rigidez matinal3, parestesias de extremidades
4, sensao
subjetiva de edema5 e distrbios cognitivos
6 (Heymann et al., 2010).
A FM, conhecida como fibrosite desde 1904 (Gowers, 1904 citado por Besset
Gaspard, Doucet, Veras & Cohen, 2010), tem denominao bastante recente. Em 1992, foi
inserida pela Organizao Mundial da Sade na Classificao Internacional das Doenas
(Smythe & Moldofsky, 1977 citado por Besset et al., 2010). Em 1990, o American College
of Rheumatology (ACR) definiu os critrios diagnsticos da FM (Wolfe et al., 1990) e
estes foram validados para a populao brasileira em 1999 (Atallah-haun, Ferraz & Pollak,
1999). Esses critrios so: dor generalizada em pelo menos trs dos quatro quadrantes
corporais nos ltimos 3 meses e dor localizada a palpao em pelo menos 11 dos 18 tender
points, que so locais dolorosos preestabelecidos7. Embora existam proposies recentes
para o uso de novos critrios de classificao e diagnstico de FM, sua aplicabilidade ainda
incipiente e pouco difundida (Oliveira, Petean & Louzada-Jnior, 2010).
A FM, uma das doenas reumticas mais frequentes, apresenta expressivos dados
epidemiolgicos que apontam a relevncia de investigaes acerca dessa temtica. Possui
alta prevalncia na populao em geral, variando de 0,66% a 4,4% e, utilizando os critrios
diagnsticos estabelecidos pelo ACR, prevalente em mulheres, sendo a proporo
mulher-homem de 8:1, especialmente na faixa etria entre 35 e 60 anos (Cavalcante et al.,
2006; Castro et al., 2011).
3Rigidez matinal: sensao de travamento do corpo que ocorre principalmente pela manh ao acordar. 4Parestesias de extremidade: sensao anormal e desagradvel sobre a pele que assume diversas formas
(coceira, fisgada, formigamento, sensaes de frio ou calor) que so vivenciadas espontaneamente na ausncia de estimulao nas regies dos braos, mos, pernas ou ps. 5Sensao subjetiva de edema: sensao de que as mos esto inchadas. 6Principais distrbios cognitivos apontados na literatura: diminuio da concentrao e perda da
memria, sendo que esses prejuzos cognitivos da ateno esto diretamente ligados aos dficits de memria
operacional e de funo executiva. 7Os critrios completos estabelecidos pelo ACR encontram-se no Anexo I.
16
No entanto, somente h trs dcadas a FM passou a ser alvo de estudos mais
consistentes (Heymann et al., 2010). Assim, pouco se sabe sobre sua etiopatogenia, que
pode ser caracterizada como obscura e complexa. Estudos acerca da fisiopatologia da FM
reconhecem sua caracterstica multifatorial e apontam sua relao com alteraes na
funo autonmica, sistema endcrino, influncia gentica e exposio a fatores
estressantes (Alambert et al., 2009). Essas alteraes esto, geralmente, associadas a
distrbios que podem sobrepor-se FM, como transtorno depressivo maior, sndrome do
intestino irritvel e distrbio temporomandibular (Bradley, 2009). Bradley (2009) descreve
ainda que alteraes no processamento central da parte sensorial e dficits na inibio
endgena da dor em pacientes com FM podem contribuir para intensificao da
sensibilidade dor e persistncia da dor difusa. Martinez (2006) ressalta que a teoria
fisiopatolgica, segundo ele aceita como a mais provvel, considera a FM como uma
disfuno no processamento da dor, ou seja, uma sndrome de dor crnica caracterizada
por amplificao dolorosa central. Este autor argumenta que, apesar de tal teoria no
contemplar todo o espectro da FM, trata-se do ponto de partida mais plausvel para
avanos em sua compreenso.
Heymann et al. (2010) afirmam que at o momento no existem tratamentos que
possam ser considerados eficazes. Por se tratar de uma sndrome pouco pesquisada e que
envolve um quadro crnico de dor musculoesqueltica, seu tratamento requer um
acompanhamento multidisciplinar com o objetivo de alcanar uma abordagem ampla e
mais completa de seus sintomas e comorbidades (Heymann et al., 2010). A complexidade
de variveis tangentes tanto questo do diagnstico quanto abordagem adequada pelos
profissionais de sade, mostra a necessidade de mais estudos que se proponham a ampliar
o entendimento das temticas vivenciadas por esses pacientes (Saltareli, Pedrosa, Hortense,
17
& Sousa, 2008). Assim, destaca-se a importncia de novas investigaes que englobem
variveis ainda no suficientemente estudadas nesse contexto, a exemplo de processos
relacionados dinmica conjugal de homens e mulheres com FM, fenmeno que se
pretende explorar no presente trabalho.
1.2 Particularidades do gnero: complexidades para alm da prevalncia
1.2.1 Estudos comparativos: mulheres e homens com FM
Sabe-se que homens e mulheres sentem, percebem, relatam e se comportam frente
dor de maneira diferente, devido s diferenas biolgicas de sexo e diferenas dos papis
de gnero (Fillingim et al., 2003; Myers, Riley & Robinson, 2003). Alm destas
diferenas, vale pontuar que as concepes de sade e doena tambm variam entre
pessoas, famlias, grupos e classes sociais (Helman, 2010).
Estudos em populao saudvel com queixas de dor tm observado que as mulheres
tendem a mostrar mais comportamentos de catastrofizao frente dor do que os homens,
o que parece surgir em uma idade muito jovem e pode estar relacionado a distintos padres
de socializao de formas de expresso e de relato da dor de homens e mulheres (Snchez,
Martnez, Mir & Medina, 2011). Tambm deve ser destacado que fatores biolgicos
relacionados a ao dos hormnios sexuais podem corroborar para as diferenas entre os
sexos observadas na sensibilidade dor ou fatores a ela relacionados (Pamuk, Dnmez &
Cakir, 2009).
A prevalncia da fibromialgia (FM) em mulheres tem sido um ponto basilar na
construo do conhecimento atual referente a essa a sndrome, sendo a grande maioria das
pesquisas no campo realizadas com mulheres (Mir et al., 2012). Prez et al. (2007)
18
chamam a ateno para preconceitos existentes em cuidados de sade em FM, ao ser
assumida como "Doena de mulher".
Embora estudos ressaltem a importncia da anlise da relao entre os papis
socioculturais de gnero da mulher e o desencadeamento e manuteno da FM (Fernandes,
2003), tambm se faz necessrio investigar aspectos de seu desenvolvimento e impactos
em homens que desenvolvem a doena. A formao de subgrupos de doentes, levando-se
em conta esses fatores, pode otimizar aspectos do tratamento da FM (Robinson et al.,
2001).
Poucos estudos investigaram particularidades de homens e mulheres com a doena,
abarcando aspectos referentes intensidade de sintomas da doena em sua maioria, alm
de diferirem quanto ao rigor metodolgico e aspectos culturais da amostra, o que pode
estar relacionado a achados controversos (Mir et al., 2012). Embora parte desses estudos
sugira que as mulheres com FM experimentam alguns sintomas mais graves do que os
homens (Wolfe, Ross, Anderson & Russell, 1995; Yunus, Inanici, Aldag & Mangold,
2000), os resultados de outros trabalhos apontaram maiores fragilidades em homens com a
doena (Buskila, Neumann, Abu-Shakra & Alhoashle, 2000; Hooten, Townsend & Decker,
2007). Alguns estudos, no entanto, identificaram poucas diferenas significativas entre
mulheres e homens com FM (Yunus, Aldag & Celiker, 2004; Mir et al., 2012). Assim,
apesar de resultados variados, esses estudos evidenciam a existncia de diferenas entre
homens e mulheres com FM que ainda necessitam ser aclaradas na literatura. Castro et al.
(2011) afirmam que o reconhecimento das diferenas especficas entre os gneros pode
estimular a melhor compreenso dos mecanismos fisiopatolgicos da doena, bem como
permitir uma melhor abordagem s pessoas com essa sndrome.
19
Wolfe et al. (1995) e Yunus et al. (2000) descobriram que as mulheres com FM
tm um menor limiar de dor, dor mais difusa e maior nmero de pontos de gatilho, mais
fadiga e maior comorbidade com sndrome do intestino irritvel que homens. Em
contraste, no foram encontradas diferenas significativas entre os sexos referentes a mal-
estar emocional ou nvel da patologia. Por outro lado, Wolfe et al. (1995) encontraram
maior ocorrncia de distrbios do sono em mulheres e Yunus et al. (2000) no
encontraram nenhuma diferena nesse aspecto entre os sexos. Entretanto, diferentemente
desses estudos, que empregaram uma escala Likert sem adequadas garantias psicomtricas,
Mir et al. (2012), atravs do uso de instrumentos padronizados, no observaram
diferenas em relao ao sono e fadiga relacionadas ao gnero.
Mir et al. (2012) tambm compararam grupos de homens (H-FM) e mulheres (M-
FM) com FM com respectivos grupos controle saudveis e, os doentes com FMobtiveram
pior desempenho em todas as variveis analisadas. Nesse estudo foram avaliados nvel de
dor e fadiga, qualidade do sono, aspectos psicopatolgicos, mal-estar emocional e impacto
funcional da FM. A nica diferena significativa entre os grupos H-FM e M-FM foi um
menor limiar de dor e maior consumo de analgsicos no grupo M-FM, o que pode estar
associado a diferente percepo subjetiva da dor entre os sexos. Assim, os resultados
sugerem que no houveram diferenas significativas em importantes aspectos psicolgicos
entre mulheres e homens com FM. Vale destacar ainda que a dor do grupo H-FM mostrou-
se correlacionada qualidade do sono e ao sentimento de autoeficcia; j no grupo M-FM
foram o medo da dor, a ateno para a dor e o nvel de catastrofizao as variveis
correlacionadas a esse sintoma. Yunus et al. (2004) utilizando diferentes escalas para
avaliao da dor, fadiga, sono, ansiedade, depresso, estresse, deficincia e gravidade
20
global da FM, encontraram diferenas apenas em dois aspectos, sendo que as mulheres
apresentaram mais pontos de gatilho e fadiga do que os homens.
Buskila et al. (2000) observaram em uma amostra de israelenses que os homens
com FM relataram mais dor, rigidez, fadiga, distrbios do sono, sndrome do intestino
irritvel, depresso, irritabilidade e funcionamento dirio prejudicado do que mulheres,
sendo que os autores atriburam tais achados a variveis culturais. Prez et al. (2007)
verificaram que os homens demoram mais tempo para serem diagnosticados, esto em
maior proporo de afastamento do trabalho e tm pior sade percebida. No entanto, esses
estudos utilizaram-se, respectivamente, de escalas Likert e contato telefnico para coleta, o
que pode comprometer a acurcia dos resultados.
Hooten et al. (2007) encontraram que os homens com FM apresentam pior
avaliao do que as mulheres em dois domnios do SF-368: estado geral de sade e
capacidade funcional. Por outro lado, as mulheres experimentaram maior impacto nos
relacionamentos e nas atividades dirias em funo da dor (avalidado pela
Multidimensional Pain Inventory). No entanto, em ambos os grupos no houve diferena
significativa entre o nvel de dor e de estresse.
vlido pontuar que, conforme Mir et al. (2012), realizar estudos que
investiguem aspectos objetivos e tambm subjetivos que representem variveis
biopsicossociais um desafio para o campo no intuito de ampliar a compreenso do
impacto das diferenas de gnero na FM. Neste trabalho, consideram-se as lacunas
referentes explorao dos fenmenos que permeiam o adoecer e viver com FM de modo
8Trata-se de um instrumento genrico para avaliar sade e qualidade de vida. Avalia melhor a incapacidade
fsica e incapacidade para o trabalho. Contm 36 itens agrupados em 8 escalas: aspectos fsicos, capacidade
funcional, dor corporal, estado geral de sade, vitalidade, aspectos sociais, aspectos emocionais e sade
mental. Ver artigo de validao em: Ciconelli, R.; M.; Ferraz, M. B.; Santos, W.; Meino, I & Quaresma, M.
R. (1999). Traduo para a lngua portuguesa e validao do questionrio genrico de avaliao de qualidade
de vida SF-36 (Brasil SF-36). Revista Brasileira de Reumatologia, 39(3), p. 143-150.
21
a contemplar homens e mulheres em sua investigao, explorando dades com diferentes
configuraes conjugais. Desta forma, no prximo tpico analisam-se aspectos da
dimenso do gnero, que se considera uma categoria de anlise imprescindvel para o
enriquecimento das discusses sobre as experincias do conviver com a FM, para alm de
dados de prevalncia.
1.2.2 Gnero como categoria de anlise
Os movimentos feministas, assim denominados, surgiram no sculo XIX na Europa
e tambm nos Estados Unidos e ecoaram no Brasil no sculo XX, atingindo seu apogeu h
poucas dcadas (Strey, 2011). Estes tiveram papel central nas discusses sobre gnero,
sexualidade, relaes scio-histricas e culturais entre homens e mulheres (Galinkin &
Ismael, 2011).
Para Strey (2011), estudos de gnero e o campo da psicologia social histrico-
crtica apresentam como ponto convergente a relevncia que ambos atribuem anlise e ao
estudo das situaes e condies sociais geradoras de desigualdade e, em ltima instncia,
voltam-se para sua erradicao. Entretanto, Nuernberg (2008) reconhece que a Psicologia
Social no incio da discusso de questes tangentes ao sexo e ao gnero o fez sob grande
influncia do primado da razo e do empirismo e sob o prisma de pressupostos cientficos
positivistas. Desse modo, esclarece que, em sua origem, assumiu uma posio biologicista
e essencialista, abordando as diferenas de gnero como entidades psicolgicas internas
femininas e masculinas. Com o incio do movimento feminista na segunda metade do
sculo XX, algumas pesquisas em psicologia social passaram a ser dirigidas a essa
temtica, dentre as quais se destaca a produo de escalas para medir masculinidade e
feminilidade sob a tica da vertente empirista da dcada de 1970, sendo que as respostas
22
normativas eram consideradas como um sinal de sade psicolgica (Strey, 2011, p.194) e,
questes como a homossexualidade e problemas familiares eram ligadas aos desvios dos
escores da mdia. Strey (2011) e Nuernberg (2008) consideram que tal perspectiva pautada
nas mensuraes, mais que buscar a garantia da preciso e da objetividade, acabava por
legitimar as ideologias vigentes.
Atualmente, Galinkin e Ismael (2011) enfatizam que a Psicologia Social trata o
gnero como uma construo histrica, social e cultural e, sob esse prisma de anlise,
considera, para alm das diferenas ou semelhanas entre os sexos, a relevncia de se
investigar e transpor as relaes de poder entre eles que configurem desigualdades e
dominao (Strey, 2011).
Os termos sexo e gnero so, por vezes, utilizados sem distino ou critrio. No
entanto, na segunda metade do sculo XX essa diferenciao comea a ecoar no contexto
das discusses e teorizaes feministas referentes s relaes sociais entre os sexos,
especificamente no que tange as desigualdades e questiona sua suposta determinao
natural (Galinkin & Ismael, 2011). Strey (2011) tambm critica a tendncia predominante
de propor razes naturais para a ordem social nas civilizaes ocidentais. Tal como os
diferencia Burille (2012), no presente trabalho considera-se que o termo sexo refere-se s
caractersticas biolgicas pr-determinadas de homens e mulheres; e o termo gnero
compreende uma categoria utilizada para apontar as caractersticas que so construdas nas
diversas vivncias em sociedade e que esto ligadas ao que masculino e feminino, sendo
que tais caractersticas que definem o ser homem e o ser mulher variam ao longo da
histria e em cada sociedade, em um processo dinmico e constante de construo social
(Gomes, 2006).
23
Assim sendo, Strey (2011) pontua que o sexo biolgico com o qual se nasce no
determina, em si mesmo, o desenvolvimento posterior em relao a comportamentos,
estilos de vida, tendncias das mais diversas ndoles, responsabilidades ou papis a
desempenhar, tampouco determina o sentimento ou a conscincia de si mesmo(a), as
caractersticas da personalidade, do ponto de vista afetivo, intelectual ou emocional, ou
seja, psicolgico. Tudo isso seria determinado pelo processo de socializao e outros
aspectos da vida em sociedade e decorrentes da cultura que abrange homens e mulheres ao
longo de toda a vida, em estreita conexo com diferentes circunstncias socioculturais e
histricas (Strey, 2011, p.181).
Galinkin e Ismael (2011) argumentam que o conceito de gnero opera na direo de
desnaturalizar no somente a sexualidade, mas tambm as desigualdades sociais entre os
sexos, uma vez que revela diferenciaes relacionadas a construes scio-histricas, cuja
premissa de anlise ope-se ao determinismo biolgico. Vale destacar que, mesmo
identificando a variabilidade das diferenas sexuais nas diversas sociedades, antroplogas
e demais feministas observam traos da existncia de uma relao de subordinao da
mulher pelo homem, que classificavam como dominao universal (Galinkin & Ismael,
2011). Para Scott (1995) gnero um elemento constitutivo das relaes sociais fundado
sobre as diferenas percebidas entre os sexos e uma primeira forma de significar as
relaes de poder (Scott, 1995, s/p). De fato,
uma representao em que o masculino se confunde com o universal (Amncio,
1994) e o feminino transforma as mulheres numa comunidade de invisveis
(sobre)sexuados, irremediavelmente diferentes dos homens, confundindo a
diferena entre os sexos com a diferena em si mesma (...). A situao paradoxal de
seres da natureza e seres sociais, cujo espao de exerccio da razo se reduzia
24
funo reprodutora, no discurso poltico da modernidade, tornou as mulheres seres
relativos (Fraisse, 1995, p. 175) no plano da cidadania e dos direitos (Amncio,
2003, p. 703)
Galinkin e Ismael (2011) reportam aspectos scio-histricos referentes s
modificaes do papel da mulher nas sociedades ocidentais. Em relao ao contexto
brasileiro, pontuaram que a constituio dos estudos de gnero deu-se nos movimentos de
esquerda nas dcadas de 1960 e, principalmente, 1970, em meio as crticas s
desigualdades sociais e ao autoritarismo fortemente presente na realidade poltica da poca
(Galinkin e Ismael, 2011).
Nuernberg (2008) e Galinkin e Ismael (2011) afirmam que a academia teve papel
de destaque viabilizando pesquisas na rea, embora tenha ocorrido grande resistncia por
parte das instituies financiadoras que no enxergavam o feminismo como tema de
relevncia cientfica. No final da dcada de 70, a produo cientfica sobre a condio da
mulher ganha espao e repercusses crescentes, sendo que ao longo dos ltimos anos um
vasto conjunto de obras aliadas atuao do movimento feminista brasileiro tm
subsidiado projetos de lei e aes contra todo tipo de discriminao sexista, apoiando uma
legislao igualitria.
Galinkin e Ismael (2011) apontam que desde o final da primeira metade do sculo
XX avanos no sentido da promoo da equidade entre homens e mulheres foram
conquistados em maior amplitude. O processo de mudanas continua a ocorrer at a
atualidade, inclusive no mbito jurdico e, persiste seu intuito de, cada vez mais, alcanar o
cotidiano das prticas sociais e culturais.
Vale destacar que, especialmente no domnio dos movimentos feministas, o
conceito de gnero vem sendo cunhado em toda sua representatividade histrica, como
25
uma resposta terica na tentativa de refutar as desigualdades existentes (Scott, 1995). Os
atuais estudos feministas, mesmo em suas mais variadas correntes, no pretendem dar
definies acabadas sobre a condio da mulher, mas, mais que isso, objetivam precisar as
condies scio-histricas em que se constroem as diversas definies do masculino e do
feminino e suas consequncias nos processos de excluso social (Galinkin & Ismael,
2011).
Apesar dos progressos alcanados no sentido da equidade nas relaes de gnero
sabe-se que as mudanas no so lineares. No o so tambm imediatas ou dependentes
unicamente de melhorias no sistema legislativo para que se tornem, de fato, um valor para
a populao e sirvam de base para as relaes sociais (Galinkin e Ismael, 2011). A
exemplo de tal constatao, Strey (2011) afirma que at recentemente o patriarcado,
estrutura social na qual a autoridade efetiva sobre as mulheres exercida atravs dos
papis de pai e de marido, era a forma predominante na hierarquia de gnero no ocidente.
Atualmente, a autora identifica o poder social em atributos considerados masculinos, de
modo que homens e mulheres podem desempenhar papis por meio dos quais o poder pode
ser exercido, no entanto, eles permanecem simbolicamente como papis masculinos.
Destaca ento que, em virtude disso, a discriminao contra as mulheres gerada por esses
papis recebe reforo ideolgico.
Por outro lado, sob influncia recente de estudos e tendncias da Europa, Estados
Unidos e Canad, as discusses no Brasil avanam na considerao do carter histrico e
plural do gnero como categoria multidisciplinar de anlise, de modo que os homens
tambm passam a ser includos nas discusses referentes temtica, num cenrio mais
prximo da busca por igualdade de tratamento entre os gneros (Galinkin e Ismael, 2011).
Surgem ento os debates e estudos contemplando a subjetividade masculina, comeando-se
26
a discutir os papis e os lugares dos homens nesse contexto. Somente no incio da dcada
de 1970, os homens e o masculino comearam a configurar uma categoria contemplada em
estudos de gnero (Almeida, Santos, Vasconcellos & Coenga-Oliveira, 2011).
Trindade, Menandro, Nascimento, Cortez e Ceotto (2011) ao discorrerem sobre a
produo cientfica do campo da masculinidade e suas interfaces com a sade,
apresentaram o conceito de masculinidade hegemnica que, desde sua elaborao no fim
da dcada de 1990 pela cientista social Raewyn Connell, tem sido largamente usado em
estudos de gnero.
Os autores esclarecem que esse conceito fortalecido em um contexto scio-
histrico de afirmao do modelo tradicional de masculinidade configura-se como uma
forma de masculinidade dominante que rege estereotipias cujas normativas tendem a inibir
ou constranger quaisquer forma de comportamento que destoe do homem de verdade,
sustentando diversas formas de preconceito e discriminao (Trindade et al., 2011).
Galinkin e Ismael (2011) descrevem como os estudos passam a contemplar
questes da masculinidade, considerando os homens como sujeitos construdos pelos
mesmos mecanismos sociais que as mulheres. Assim, identificam que o gnero sai do
mbito das discusses sobre mulheres e direitos femininos e incorpora tambm a
problemtica referente ao papel e a construo ou reconstruo do homem e do masculino,
e de outros atores sociais que reivindicam identidades sexuais e de gnero fora dos
modelos tradicionais.
Foram apresentados aspectos gerais, conceituais e histricos referentes questo do
gnero e pode-se perceber um pano de fundo constitudo de facetas ideolgicas que, no
raro, legitimam relaes de excluso, subordinao e poder. Esse estudo pretende explorar
essas nuances analisando o processo de adoecimento pela FM no caso de casais em que um
27
dos cnjuges tem a doena. Segue-se, desse modo, alguns apontamentos tericos acerca da
sade feminina e masculina. Sero esses desdobramentos ocorridos nas relaes de gnero
no contexto do adoecimento de um cnjuge com FM que tambm subsidiaro a discusso
dos resultados encontrados neste trabalho.
1.2.3 Sude feminina e masculina
Os traos descritos por Powell (1993, citado por Nogueira, 2001) para o masculino
(independncia, agressividade e dominncia) e para o feminino (sensibilidade, emoo e
gentileza) ainda encontram, segundo Trindade et al (2011), eco nos dias atuais. Como
elementos das representaes sociais de gnero, cujos aspectos tericos sero ainda
apresentados na introduo desse trabalho, sabe-se que essas estereotipias apresentam
consequncias na qualidade de vida das pessoas por interferirem em suas prticas de sade.
Tonelli e Mller (2011), bem como Butler (2003), destacam a primazia do feminino como
sujeito universal do cuidado e o entendimento do adoecer relacionado linearmente falta
de sade e rodeado dos ideais de onipotncia e invulnerabilidade masculinas.
O Sistema nico de Sade (SUS) de Brasil possui polticas pblicas especficas
para cuidados sade da mulher e do homem. Atualmente, segue-se os parmetros da
Poltica Nacional de Ateno Integral Sade da Mulher (Ministrio da Sade, 2004) lanada
em 2004 e a Poltica Nacional de Ateno Integral Sade do Homem vigente desde 2008
(Ministrio da Sade, 2008).
Souto (2008) elenca aspectos que fundamentam e orientam essas polticas. O
primeiro deles afirma que o ser humano deve ser compreendido em suas mltiplas
dimenses (de indivduo e de grupo social) e em suas subjetividades e particularidades.
Outro ponto destacado a articulao entre as aes de promoo, preveno e assistncia
28
disponveis e acessveis na rede de servios de sade, favorecendo a configurao de linhas
de cuidado delineadas na perspectiva da transformao da determinao social do processo
de adoecimento dos grupos contemplados nas polticas. Por ltimo e o principal ponto
destacado pela autora foi o conceito de integralidade, um dos princpios do SUS. Segundo
Souto (2008) trata-se de uma definio polissmica e bem apresentada por Carvalho
(2006) citado por essa autora:
Costumo dizer que a integralidade tem duas dimenses: a vertical e a horizontal. A
vertical inclui a viso do ser humano como um todo, nico e indivisvel. E a
horizontal a dimenso da ao da sade em todos os campos e nveis (p.16).
Desse modo, Souto (2008) afirma que uma poltica de sade integral voltada para
grupos especficos da sociedade precisa considerar a totalidade do ser humano (fsico,
mental, afetivo e espiritual) como objeto do cuidado em sade, em meio aos saberes e
prticas de sade acumulados e organizados na totalidade das redes de servios que
produzem essas aes de sade cuidado. A autora considera ainda que as respostas
governamentais estruturadas mediante demandas sociais e que resultam em polticas
especficas para determinados grupos, como o caso das voltadas para a sade da mulher e
do homem, tem o seu alcance/ou limite como resultado de disputas conceituais, poltico-
ideolgicas e organizacionais. Nesse cenrio, o estabelecimento dessas polticas fruto de
histricas disputas entre o Governo e Sociedade Civil para fins da luta contnua por fazer
valer os preceitos constituicionais que asseguram a sade como um direito de todos e um dever
do Estado.
Ademais, Souto (2008) lembra que o fato de estarem voltadas para as mulheres ou
homens no garante que essas polticas incorporem a abordagem de gnero. Tal abordagem,
considerada no contexto da integralidade dessas polticas, suscita prismas de anlise que
tenham como norteadores o modo como homens e mulheres se relacionam no cotidiano de
29
suas vivncias evidenciadas em seus corpos e que marcam suas vidas, cujas ligaes com a
determinao social do processo sade/doena devem ser analisadas.
Especificamente abordando questes da sade feminina, Tavares, Andrade e Silva
(2009) destacam que a Poltica Nacional de Ateno Integral Sade da Mulher foi precedida
pelo Programa de Assistncia Integral Sade da Mulher (PAISM), cuja criao em 1983 foi
considerada um marco histrico. Tal fato ocorreu num contexto de reivindicaes do
movimento feminista e no decurso do processo de redemocratizao do Pas, junto a outros
movimentos sociais. Eles desempenharam um papel decisivo para a consolidao da
democracia e na incluso e para o reconhecimento da sade como uma questo de direito e
cidadania em nosso pas.
No aspecto concreto da sade feminina, o marco referencial do PAISM rompeu com o
modelo materno-infantil, que considerava a mulher como produtora e reprodutora de fora de
trabalho, ou seja, apenas na sua condio de me, nutriz e cuidadora da prole (Souto, 2008,
p.165) e cujas polticas eram voltadas primordialmente para garantir o bem-estar dos recm-
nascidos e crianas.
Outro aspecto relevante pontuado por Souto (2008) a viso historicamente arraigada
de o corpo feminino ser considerado um lcus privilegiado de instrumentao da mulher, de
sua submisso e de sua opresso. Desse modo, destaca-se que as as aes em sade da mulher
tambm esbarram nessa concepo, sendo as intervenes voltadas para esse corpo, muitas
vezes influenciadas pelo papel de me ou reprodutora que a sociedade de forma hegemnica
lhe resume. Foi assim, segundo a autora, sob esse olhar que se institucionalizaram os primeiros
cuidados sade feminina: sade materna e do ciclo gravdico-puerperal, no qual a
sexualidade da mulher tambm est restrita sua condio de reproduo.
Ainda na primeira metade da dcada de 1980, constantes debates em instncias sociais
e polticas de forma crescente contemplando as questes de gnero, resultaram em
30
modificaes dessa viso limitada (Souto, 2008). Assim, a introduo desse enfoque gnero
nas anlises sobre a condio da mulher, contribui com uma viso crtica do modo como as
intervenes sobre seu corpo a preteria e afastava-a de sua condio de cidad. Nesse cenrio
Souto (2008) destaca a incluso de direitos sexuais e reprodutivos na assistncia integral
sade da mulher em todos os ciclos de vida. Tambm pontua, tal como Tavares, Andrade e
Silva (2009), que no incio do sculo XX passou-se a considerar o perfil epidemiolgico das
mulheres brasileiras, cuja anlise considerou aspectos referentes ao gnero, contemplando
fatores e causas de adoecimento que ultrapassam a viso reducionista da mulher, o que foi um
grande avano para tratar os agravos sua sade.
Em 2004, foi formulada e proposta a Poltica Nacional de Ateno Integral Sade das
Mulheres, fruto da parceria de diversos departamentos e comisses do Ministrio da Sade,
alm da equipe tcnica da rea de Sade da Mulher (Tavares, Andrade & Silva, 2009). A
poltica explicita orientaes para a gesto na rea da sade que contemplem necessidades e
demandas das mulheres, considerando realidade locais e os determinantes sociais e culturais de
homens e mulheres (Souto, 2008).
O documento da poltica (Ministrio da Sade, 2004) apresenta um breve mapeamento
da sade da mulher no Brasil destacando a alta mortalidade da populao feminina por doenas
cardiovasculares. Souto (2008) alerta que, apesar desse dado, as principais aes em sade
concentram-se ainda no aspecto sexual e reprodutivo. Fica evidente que essa poltica consiste
em mais um passo na perspectiva da abordagem de gnero e da integralidade, entretanto traz
ainda algumas limitaes. Desse modo, temticas que fazem parte do cotidiano das mulheres,
no so abordadas com a mesma nfase ou ainda sob a perspectiva de gnero. Por exemplo,
questes como o crescimento da participao feminina no mercado de trabalho e em espaos
ditos masculinos; situaes de violncia domstica; ampliao de aes de preveno e
31
cuidado nos servios de sade, de modo a no investir de modo destoante apenas em
tratamento e recuperao (Souto, 2008).
De fato, h ainda, no cenrio atual, muitos desafios de origem muitifacetada e
desdobramentos complexos que dificultam a efetividade das aes em sade da mulher e
que suscitam discusses e investimentos multiprofissionais e intersetoriais constantes.
Tavares, Andrade e Silva (2009) enumeram alguns desses desafios: remunerao menor da
mo de obra feminina; as mulheres esto concentradas em profisses mais desvalorizadas;
tm menor acesso aos espaos de deciso no mundo poltico e econmico; sofrem mais
violncia (domstica, fsica, sexual e emocional); enfrentam dupla e/ ou tripla jornada de
trabalho; so as mais penalizadas com o sucateamento de servios e polticas sociais.
Pontuam ainda algumas variveis que agravam a situao de desigualdade das mulheres na
sociedade: classe social, raa, etnia, idade e orientao sexual.
Adentrando-se agora sobre aspectos gerais da sade masculina, destaca-se que
somente na dcada de 1970 se iniciaram os primeiros debates sobre o tema da sade do
homem no pas (Burille, 2012). Esta autora pondera que os homens permaneceram
praticamente invisveis para o setor sade por um longo tempo, sendo somente mais
recentemente contemplados como indivduos que adoecem, tal como mulheres e crianas.
Apontou ainda a importncia da incorporao de discusses acerca das relaes de gnero
como determinantes do processo de sade/doena e do reconhecimento da sade como um
direito dos homens brasileiros, o que culminou no lanamento, em agosto de 2008, da
Poltica Nacional de Ateno Integral Sade do Homem (Ministrio da Sade, 2008;
Burille, 2012), cuja instituio consiste em um avano e sua vigncia configura um desafio
para a sade pblica.
32
Esta poltica enfatiza que muitos dos agravos sade do homem poderiam ser
evitados caso utilizassem com regularidade os servios de ateno primria. Vale ressaltar
que consolidar a procura por aes de promoo e preveno sade do homem configura
um desafio por requerer, em geral, mudanas comportamentais. Tambm se destaca a
complexidade da adeso ao tratamento quando so diagnosticadas doenas crnicas ou de
longa durao. necessrio ponderar que tais circunstncias apresentam mltiplos
desdobramentos de modo que no observado apenas um aumento da sobrecarga
financeira da sociedade como tambm, e, sobretudo, a ocorrncia de sofrimento fsico e
emocional no apenas dos homens, como tambm de suas famlias (Ministrio da Sade,
2008).
As razes para a no procura masculina pelos servios de sade foram descritas por
Burille (2012) como barreiras institucionais e socioculturais. Dentre tais barreiras a autora
ressaltou a concepo de homem enquanto provedor, que prioriza o sustento da casa
considerando os cuidados com a prpria sade uma questo secundria; a crena na sua
invulnerabilidade versus o medo de descobrir fragilidades em sua sade; timidez e
vergonha de expor o corpo; concepo de que a busca por ajuda colocaria em risco a
masculinidade e aproximaria os homens das representaes de feminilidade (Burille,
2012, p.31; Gomes et al., 2007).
Burille (2012) pontua que a procura por cuidado consiste em uma atitude que no
parece desmerecer as mulheres, ao contrrio dos homens. Dessa forma, evidencia-se que o
gnero influencia na conduta e nos hbitos masculinos, produz no somente modos de
vida, como tambm, modos de adoecer e morrer (Braz, 2005, p.101).
Com relao s barreiras institucionais, segundo Burille (2012), os servios de
sade so percebidos em geral como espaos feminilizados, por serem frequentados
33
principalmente por mulheres e tendo tambm mulheres como a maior parcela de
trabalhadores desses servios (Gomes et al., 2007). Ao observar os servios oferecidos em
Unidades Bsicas de Sade, evidencia-se a inexistncia de programas ou atividades
direcionadas especificamente para a populao masculina (Laurenti et al., 2005;
Figueiredo, 2005). Tais constataes justificam a sensao de no pertencimento aos
espaos de sade demonstrada pelos homens. Alm disso, as estratgias de comunicao
ali estabelecidas privilegiam as aes de sade voltadas tradicionalmente para crianas,
mulheres e idosos (Ministrio da Sade, 2008).
Perdura, entretanto, o desafio de transformar as aes propostas nas polticas pblicas
acima citadas em prticas de sade no cotidiano dos servios e dos processos de trabalho dos
profissionais de sade comprometidos com a produo de prticas humanizadas e de qualidade
(Souto, 2008). Tanto as conquistas acumuladas como os desafios que persistem,
paulatinamente, reafirmam a necessidade de se reconhecer as desigualdades existentes nas
relaes de gnero e o seu papel diferenciado no processo sade/doena.
Ao discorrer sobre aspectos que desvelam facetas histricas e ideolgicas referentes
ao gnero, percebe-se que, muitas vezes, elas podem configurar fortes barreiras no
processo de adaptao a situaes de adoecimento de homens e mulheres e, por
conseguinte, em seu cotidiano conjugal e familiar. Adentrando agora especificamente no
contexto da conjugalidade de pessoas com FM, revisam-se na prxima sesso aspectos do
adoecimento que ampliam os desafios de seu enfrentamento, bem como seus reflexos na
dinmica conjugal.
1.3 Processos de incerteza e impactos na dinmica familiar e conjugal
Como muitas doenas crnicas, a FM se distingue por incertezas acerca do
diagnstico, do prognstico e do aparecimento dos sintomas, em sua intensidade e
34
frequncia (Asbring & Narvanen, 2004). Por ser uma doena de origem no determinada e
tratamento incerto, a FM pode provocar sentimentos de vulnerabilidade e desamparo
(Berber, Kupek, & Berber, 2005).
O conhecimento acerca da doena um elemento destacado na literatura como
favorecedor de condies necessrias para que o paciente faa escolhas informadas, alm
de influenciar na interao do paciente com os prestadores de cuidados de sade (Pierce,
1996). Pesquisas demonstram que a aquisio de conhecimento importante para
pacientes que tm afeces com trajetrias incertas, por reduzir a ansiedade e favorecer o
controle da doena (Weingarten et al., 2002; Burckhardt, 2005; Carvalho & Noordhoek,
2006; Albano et al., 2010).
Uma vez que a doena crnica geralmente dolorosa e de longo prazo, pode
resultar em mudanas no cotidiano da pessoa, na famlia e no ambiente domstico
(Sderberg et al., 2003; Burille, 2012).
No que se refere ao nvel mais privado, Palmeira (2009) chama a ateno para as
alteraes nas rotinas de vida da pessoa com uma doena crnica, sendo tambm
necessrio a ocorrncia de adaptaes no mbito familiar. A autora lembra que a partir do
diagnstico, no s quem adoeceu, mas tambm a sua famlia e seu grupo social sero
favorecidos por esclarecimentos e informaes acerca da doena e de suas repercusses.
Ser necessrio rever rotinas, crenas e comportamentos que habitualmente organizavam a
famlia, mas que, pela ocorrncia do adoecimento de um de seus membros, tm a sua
funo questionada frente as mudanas que a doena impe.
O papel da famlia no acompanhamento a essas pessoas e das reaes de amigos,
familiares e pessoas do convvio social primordial no enfrentamento desse processo de
mudanas (Palmeira, 2009). Nesse sentido, que transcende a esfera orgnica, h a
35
necessidade de abordar esse tema tambm em uma perspectiva social, ou seja, que
considere quem adoeceu, sua famlia, seu grupo de amigos, na constituio da cronicidade
de uma doena. Palmeira (2009) afirma que a Psicologia Social tem grande propriedade
para contribuir com a pesquisa nesse campo, uma vez que dispe de recursos tericos-
metodolgicos para identificar as repercusses subjetivas que a doena traz para quem
adoece, compreender os sentidos individuais relacionados ao adoecimento e os articular s
construes sociais e culturais sobre a doena.
A caracterstica mais evidente da dor crnica, sintoma marcante da FM, sua
onipresena, cujas consequncias podem ser devastadoras na vida do doente, acarretando
desfechos como a interrupo de projetos pessoais e profissionais e, muitas vezes,
mudanas permanentes nas funes corporais (Fernandes, 2003). Assim, refora-se que o
enfrentamento/impacto da doena no fica restrito ao indivduo adoecido, e este trabalho
dar destaque figura do cnjuge no convvio familiar do doente, qual, via de regra, so
atribudos maior responsabilidade e encargo familiar (Sderberg et al., 2003).
Saltareli et al. (2008) entrevistaram 30 mulheres com FM, sendo 70,3%
casadas/amasiadas, 13,3% divorciadas/separadas, 10% solteiras e 3% vivas, visando
investigar temticas referentes vivncia do processo de adoecimento no contexto
familiar, social e no relacionamento com os profissionais da sade. A anlise temtica
revelou que o apoio familiar, de amigos e no trabalho, apresentou-se de maneira bastante
variada na percepo das pacientes, mostrando, em muitos casos, a existncia de apoio, e,
em outros, um total descaso, dificultando o manejo. Quanto aos sentimentos na relao
familiar e na relao conjugal as autoras analisaram que essas expressam o reflexo do
amparo recebido, variando bastante, de acordo com o tipo de apoio percebido, quando
percebido.
36
Ainda explorando os resultados desse estudo ressalta-se que a categoria
repercusses na qualidade de vida mostrou os prejuzos impostos no mbito familiar (com
alteraes na dinmica e nas relaes familiares), pessoal (relacionado principalmente a
dependncia gerada pelas limitaes e mudanas no estado de humor), sociais e de
trabalho (com diminuio da produtividade e das atividades de lazer) e sexuais
(interferindo no apetite sexual das pacientes). As autoras enfatizaram ainda que para a
eficcia do tratamento as intervenes devem envolver a equipe de sade, o paciente e a
famlia, de modo a favorecer que o fenmeno seja compreendido de maneira completa,
trazendo a famlia para a realidade da doena, esclarecendo dvidas, fazendo trabalho de
orientao e busca pela reorganizao e fortalecimento das relaes familiares em funo
da otimizao no manejo da dor.
Gianordoli-Nascimento e Trindade (2002), analisando a dinmica das relaes
conjugais aps ocorrncia de Infarto Agudo do Miocrdio9 em um dos cnjuges,
identificaram modificaes na dinmica conjugal e familiar em funo do ocorrido. As
autoras pontuam que quando situaes de crise como essa ocorrem em uma famlia nuclear
os papis desempenhados por cada um dos familiares so revistos, podendo haver acmulo
ou alteraes no desempenho das tarefas e dos papis. No entanto, consideram que um
processo de crise ao acarretar alteraes pessoais e conjugais, pode ou no culminar em
reaes de adaptao por parte do casal (Gianordoli-Nascimento & Trindade, 2002).
Vrias podem ser as reaes do cnjuge diante da incapacidade experimentada pelo
seu parceiro, desde comportamentos de suporte, superproteo ou de desencorajamento
(Reich et al., 2006). importante ressaltar que comportamentos de apoio por parte de
9Embora aborde uma condio clnica diferente da estudada nesta pesquisa, considerou-se pertinente citar
esse trabalho dado sua qualidade metodolgica, bem como os objetivos da investigao guardarem
similaridade com os desse trabalho ao explorarem as alteraes na dinmica conjugal em funo de um
processo de adoecimento de um cnjuge.
37
parceiros de pessoas com FM esto relacionados a uma melhor adaptao do paciente a
doena e maior satisfao conjugal (Flor, Kerns & Turk, 1987). Sderberg et al. (2003)
ressalta que o apoio dos familiares, com destaque para os cnjuges, importante fonte de
suporte social e tambm de empoderamento para o doente crnico. No entanto, Bernard et
al. (2000), em estudo sobre a influncia da FM na vida conjugal, encontraram que a
doena acarreta impactos negativos na vida sexual do casal e identificaram ainda a FM
como um dos principais fatores responsveis pela separao conjugal dos participantes
divorciados.
A incerteza acerca da doena e sua evoluo descrita por Reich et al. (2006)
como um fator perturbador para mulheres com FM e seus respectivos cnjuges, o que afeta
o relacionamento conjugal. Afirmam que nem o paciente nem seu parceiro entendem, de
fato, o que est errado, mas ambos tm de se ajustar ao longo do tempo e em diferentes
circunstncias, o que pode ter efeitos prejudiciais no relacionamento.
Reich et al. (2006) avaliaram atravs de instrumentos padronizados o papel da
incerteza acerca da doena em relao a satisfao conjugal em pacientes com FM, tendo
como grupo controle pacientes com osteoartrose (OA). Pacientes com FM relataram,
conforme o esperado, um nvel significativamente mais elevado de incerteza sobre a
doena do que os pacientes com OA. Embora ambos os grupos tenham obtido nveis
comparveis de sobrecarga do cuidador/parceiro, no grupo com FM a sobrecarga do
parceiro esteve associada a nveis mais baixos de suporte do companheiro. Observou-se
nesse estudo que, quanto maior o nvel de incerteza acerca da doena, menor o nvel de
satisfao com o relacionamento e mais forte a relao com a baixa condio fsica
agravada pela falta de suporte por parte do parceiro.
38
Sderberg et al. (2003) entrevistaram cinco maridos de mulheres com FM e
identificaram os seguintes temas a partir da anlise dos dados: responsabilidade crescente e
trabalho domstico; ser um defensor e apoiador da esposa; aprendizado sobre como
reconhecer novas necessidades da mulher; mudana da relao entre os cnjuges; mudana
no relacionamento com amigos e parentes; aprofundamento da relao com os filhos e falta
de informao e conhecimento sobre a doena. Os resultados mostraram que essa condio
clnica das mulheres dos participantes teve um grande impacto na vida dos maridos que
relataram no ter informao satisfatria sobre a doena (Sderberg et al., 2003).
Nesse contexto, outro estudo tambm contemplou o cnjuge do doente com FM. A
pesquisa realizada por Buskila e Neumann (1997) com familiares de mulheres com FM
encontrou uma prevalncia de 19% de cnjuges que preenchiam critrios diagnsticos de
FM. E, quando comparados ao grupo controle (homens casados com mulheres sem a
doena), apresentaram maior nmero de pontos sensveis utilizados no exame fsico para
diagnosticar a doena, bem como menor limiar de dor. Os autores sinalizaram que as
dificuldades psicolgicas vivenciadas por alguns pacientes com FM podem afetar o bem-
estar de seus cnjuges.
Bigatti e Cronan (2002) estudaram a sade fsica e mental e a prtica de cuidados
sade de cnjuges de pacientes com FM em comparao com cnjuges de indivduos
saudveis (CIS). Os cnjuges do grupo FM relataram pior condio de sade e pior estado
afetivo, com maior pontuao nas variveis depresso, solido, estresse subjetivo do que os
participantes do CIS, sendo a diferena entre os grupos estatisticamente significativa. Os
resultados sugerem que a doena crnica em um parceiro pode afetar negativamente a
sade fsica e mental do outro parceiro. No entanto, no foram encontradas diferenas nos
custos de cuidados de sade entre grupos, embora estudos revisados pelos autores tenham
39
apontado que cnjuges de indivduos cronicamente doentes parecem ser uma populao de
utilizadores de servios de sade em grau mais elevado do que cnjuges de indivduos
saudveis.
Desse modo, a literatura tem apontado que o cnjuge pode ser considerado
importante membro da rede de suporte social de uma pessoa com FM, mas que, no entanto,
esse processo pode configurar condies de risco e fragilidade tambm para a sua prpria
sade. Ademais, tem sido descrito que o nvel de conhecimento acerca da doena um
fator preponderante no dia-a-dia da convivncia com a doena e com o doente. Assim
sendo, aponta-se a relevncia de explorar o entendimento que pessoas com FM tm acerca
da doena e tambm investigar o conhecimento que eles avaliam ter sobre seus respectivos
cnjuges ao buscar compreender a dinmica conjugal de homens e mulheres com FM. Na
prxima sesso apresenta-se a conjugalidade em sua dimenso histrica e discorre-se
acerca de como questes referentes ao processo de socializao do masculino e do
feminino perpassam aspectos de sua configurao.
1.4 Conjugalidade e a transversalidade das questes de gnero
Aboim (2006) discute o construto conjugalidade em sua dimenso histrica,
problematizando as transformaes sociais que constituem palco para a vida das famlias e
dos indivduos nas sociedades contemporneas. Transformaes essas, lembra a autora,
que interferem na maneira como os indivduos escolhem um parceiro, casam e tm filhos,
no modo como organizam o trabalho e o sustento, delineiam expectativas de bem-estar
amoroso, fazem projetos e constroem uma histria pessoal e familiar num mundo que lhes
ampliou tanto as possibilidades de ofertas quanto as incertezas que acompanham os
40
processos de escolha. O casal contemporneo confrontado por duas foras paradoxais, ou
seja, pelas tenses entre individualidade e conjugalidade (Frez-Carneiro, 1998).
Aboim (2006) enumera tambm mudanas provocadas pela modernidade nos
valores dominantes, no estabelecimento da intimidade amorosa, nas relaes de produo,
na desconstruo e na produo de novas formas de legitimao e regulao social; em
suma, processos de mudana que produziram um novo lugar para o indivduo na
configurao da famlia e da sociedade em geral. No entanto, ressalta que a conjugalidade
permanece, embora com facetas diferenciadas, um lao social fundador e primordial das
relaes familiares e at das relaes sociais no seu conjunto (Aboim, 2006, p.18).
Nesse processo de transformao histrica, Aboim (2006) considera que a
conjugalidade assumiu como vrtice as expectativas afetivas e de felicidade pessoal,
dissolvendo, mas no eliminando, a fora da concepo de ser uma ferramenta de unidade
essencial de sobrevivncia econmica e de pertena identitria para a vida e para a morte.
Pontua ainda que essas no so esferas necessariamente excludentes. Assim, argumenta
que a conjugalidade se mantm como elemento de destaque na participao da organizao
social, no que tange tanto reproduo biolgica e social como a construo do lugar dos
indivduos e das suas relaes com seus grupos de pertena. Tal processo se d num
contexto de ampliao dos trajetos e das transies possveis entre uma situao conjugal
e uma no conjugal, bem como abertura do leque de conjugalidades possveis nas
sociedades contemporneas (Aboim, 2006, p.18).
Ademais, a atualidade marcada pela pluralidade de arranjos familiares, cujas
configuraes se encontram, ora arraigadas em modelos de famlia em que predomina a
diviso tradicional de papis, ora prximos a configuraes em que as mulheres so as
principais provedoras (Wagner et al., 2005). Martins, Rolke e Trindade (2007) descrevem
41
ainda uma gradual alterao no sentido da configurao dos papis tornarem-se mais
igualitrias, seja nas atividades domsticas (Wagner et al., 2005), seja nas relaes afetivas
(Giddens, 1993). Wagner et al. (2005) ressaltam que tais mudanas nas funes e papis na
famlia contempornea so fruto de um constante, porm no uniforme, processo de
transio. Desse modo, mesmo no bojo das mudanas na dinmica das relaes conjugais,
verifica-se, no raro, que elementos tradicionais ligados ao papel da mulher e do homem
ainda persistem mesmo que muitas vezes sobre outra roupagem, principalmente ao se
considerar a coexistncia de discursos e prticas cotidianas contraditrias (Rocha-
Coutinho, 2000).
De fato, estudos sobre a distribuio de tarefas e papis conjugais apontaram que os
maridos, de um modo geral, acreditam que o trabalho domstico , de fato, uma atribuio
feminina e, identificaram certa tendncia de homens realizarem algumas dessas tarefas de
maneira circunstancial, a ttulo de ajuda ou cooperao com suas esposas (Bilac, 1991;
Bruschini & Ricoldi, 2008). No entanto, publicao recente (Bruschini & Ricoldi, 2012)
revelou que apesar da manuteno de tais tendncias acima descritas e expressas
claramente na resistncia inicial dos homens participantes dos grupos focais para debater o
tema os homens descreveram um grau de preocupao e envolvimento considervel com
o cuidado dos filhos e tambm com a limpeza e a higiene da casa. Muitos deles afirmaram
que dividem tarefas e que vo fazendo sempre que necessrio e at se preocupam que
os filhos aprendam essas tarefas. Essa pesquisa mostrou que a participao dos homens nas
atividades domsticas relevante e deveria ser melhor investigada, ainda que os resultados
tenham mostrado diferenas expressivas no grau de participao, sendo o percentual
masculino de participao nas tarefas de 45 a 50% e o feminino de 90% (Bruschini &
Ricoldi, 2012).
42
Bruschini & Ricoldi (2012) e Jablonski (1999) descrevem o auxlio masculino em
tarefas referentes aos cuidados domsticos como perifrico e no obrigatrio. Os autores
destacam que a mudana na tradicional diviso de papis coloca em risco a identidade
masculina, que continua sendo reafirmada por esteretipos fortemente arraigados em um
processo histrico e social. Os autores afirmam que os homens tm reagido de maneira
curiosa para resguardar sua identidade: consentem a necessidade de adequao no campo
das atitudes mas pouco mudam no comportamento, o que provoca uma iluso de
renovao, na medida em que passam a ajudar nas tarefas domsticas. Isso porque ajudar
para Bruschini e Ricoldi (2012) significa que mesmo quando o homem se dispe a
contribuir na realizao de tais tarefas, no fundo, considera que essas so de
responsabilidade da mulher.
Gianordoli-Nascimento e Trindade (2002) esclarecem que o homem cresce
tendendo a nortear seu comportamento basicamente para responder a estmulos externos,
como na realizao de tarefas e aes, levando-o ao afastamento de suas vivncias e
necessidades afetivas. As autoras complementam tal discusso acerca de nuances
referentes ao processo de socializao do masculino citando o livro Um homem de
verdade de Nolasco (1997, citado por Gianordoli-Nascimento & Trindade, 2002). Esse
autor afirma que o homem cresce aprendendo a polarizar o projeto profissional e a sua vida
afetiva e pessoal, de modo que no lhe socialmente permitido a expresso de sentimentos
e inseguranas. Tais sentimentos, se demonstrados por mulheres, no as deprecia, mas ao
contrrio, tendem a desqualificar o homem e podem comprometer seu autoconceito.
Assim, a noo de intimidade no pertence socializao masculina (Gianordoli-
Nascimento e Trindade, 2002, p.112).
43
Ressalta-se que as concepes tradicionais de tarefas referentes ao homem e a
mulher, apesar de serem cada vez mais relativizadas num processo histrico de mudanas,
ainda representam um desafio no sentido de transpor tradies fortemente patriarcais e
podem gerar processos de conflitos e/ou rupturas para casais que, por questes de
adoecimento de um dos cnjuges, precisam reorganizar as tarefas. Tal constatao aponta
para a relevncia investigaes a respeito dessa questo, para contempl-la com
efetividade crescente na assistncia que se presta ao doente, de forma que as intervenes
abranjam tambm seu cotidiano familiar.
Este trabalho, alm de investigar de que forma a FM interfere na dinmica conjugal
tendo como importante parmetro de anlise as questes referentes ao gnero, tambm
pauta-se no referencial terico da Teoria das Representaes Sociais, que ser apresentada
a seguir em seus aspectos gerais e articulada com a proposta desse estudo. A sade e a
doena, sendo objeto de conversaes rotineiras, apresentada em diversos contextos
miditicos, foco de pesquisas e pauta de debates polticos rene um complexo de
fenmenos biolgicos individuais, vivenciados e interpretados em um modelo de refernca
cultural, , portanto, objeto de representaes sociais (Almeida & Santos, 2011).
1.5 Teoria das Representaes Sociais e questo de pesquisa
A Teoria das Representaes Sociais (TRS) foi inicialmente proposta pelo
psiclogo social Serge Moscovici na segunda metade do sculo XX e consiste em uma
abordagem psicossociolgica sobre o processo de construo do pensamento social
(Chaves & Silva, 2011). A definio classicamente eleita entre os estudiosos do campo das
representaes sociais a de Denise Jodelet, que as conceitua como uma forma de
conhecimento socialmente elaborado e compartilhado, com um objetivo prtico, e que
44
contribui para a construo de uma realidade comum a um conjunto social (Jodelet, 2002,
p.22). A TRS tem como princpio a diversidade dos indivduos, atitudes e fenmenos, em
toda sua estranheza e imprevisibilidade. Seu objetivo descobrir como os indivduos e
grupos podem construir um mundo estvel, previsvel, a partir de tal diversidade
(Moscovici, 2003, p.79).
As Representaes Sociais (RS) so definidas como teorias sobre saberes do senso
comum, elaboradas e partilhadas coletivamente, compondo o dinmico processo de
interpretao e construo das realidades sociais (Moscovici, 2003; Chaves & Silva, 2011;
Oliveira & Werba, 2011). Seu estudo possibilita depreender elementos tangentes viso
de mundo de pessoas ou grupos, entendidos como norteadores de suas formas de agir e se
posicionar, e sua premissa pauta-se no entendimento das RS como produto e processo de
uma atividade de apropriao do mundo social pelo pensamento e da elaborao
psicolgica e social da realidade (Chaves & Silv