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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA DANIELLE CONSTÂNCIA FELICIO MACEDO REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE CONJUGALIDADE E DE FIBROMIALGIA: DESDOBRAMENTOS NA DINÂMICA CONJUGAL DO PROVEDORE DA RAINHADO LAR VITÓRIA 2014

DANIELLE CONSTÂNCIA FELICIO MACEDO …repositorio.ufes.br/bitstream/10/3097/1/tese_6495_CAPA DURA... · minhas demandas pessoais ocorridas no decorrer do trabalho. ... (FM) se caracteriza

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E NATURAIS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA

    DANIELLE CONSTNCIA FELICIO MACEDO

    REPRESENTAES SOCIAIS DE CONJUGALIDADE E DE FIBROMIALGIA:

    DESDOBRAMENTOS NA DINMICA CONJUGAL DO PROVEDOR E DA

    RAINHA DO LAR

    VITRIA

    2014

  • DANIELLE CONSTNCIA FELICIO MACEDO

    REPRESENTAES SOCIAIS DE CONJUGALIDADE E DE FIBROMIALGIA:

    DESDOBRAMENTOS NA DINMICA CONJUGAL DO PROVEDOR E DA

    RAINHA DO LAR

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Psicologia da Universidade Federal do

    Esprito Santo sob orientao da Prof. Dr. Priscilla

    de Oliveira Martins da Silva, como requisito parcial

    para obteno do grau de Mestre em Psicologia.

    VITRIA

    2014

  • Dados Internacionais de Catalogao-na-publicao (CIP)

    (Biblioteca Central da Universidade Federal do Esprito Santo, ES, Brasil)

    Macedo, Danielle Constncia Felcio, 1985-

    M141r Representaes sociais de conjugalidade e de fibromialgia : desdobramentos na dinmica conjugal do provedor e da rainha do lar /

    Danielle Constncia Felcio Macedo. 2014.

    269 f. : il.

    Orientador: Priscilla de Oliveira Martins da Silva.

    Dissertao (Mestrado em Psicologia) Universidade Federal do

    Esprito Santo, Centro de Cincias Humanas e Naturais.

    1. Fibromialgia. 2. Representaes sociais. 3. Relaes de gnero. I.

    Silva, Priscilla de Oliveira Martins da. II. Universidade Federal do Esprito Santo. Centro de Cincias Humanas e Naturais. III. Ttulo.

    CDU: 159.9

  • REPRESENTAES SOCIAIS DE CONJUGALIDADE E FIBROMIALGIA:

    DESDOBRAMENTOS NA DINMICA CONJUGAL DO PROVEDOR E DA

    RAINHA DO LAR

    DANIELLE CONSTNCIA FELICIO MACEDO

    Dissertao submetida ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia da Universidade Federal do Esprito Santo, como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Psicologia

    Aprovada em 14 de maro de 2014, por:

    Prof. Dr. Priscilla de Oliveira Martins da Silva

    Orientadora, PPGP/UFES

    Prof. Dr Maria Cristina Smith Menandro

    PPGP/UFES

    Prof. Dr Adriano Roberto Afonso do Nascimento PPGP/UFMG

  • Doena injusta e ingrata (...) que tirou um pedao dos meus sonhos (...). As pessoas

    esperam muito mais do provedor do que da rainha do lar (...). a doena mais, a

    coisa mais, invisvel mais presente que eu j vi (Isolda, M-CJ).

  • AGRADECIMENTOS

    Vrias foram as pessoas que contriburam com essa dissertao, por isso gostaria de

    agradec-las...

    Aos pacientes que colaboraram para a realizao desse trabalho, por aceitarem dividir e,

    por vezes, detalhar fragilidades vivenciadas em suas rotinas.

    minha orientadora, Priscilla de Oliveira Martins da Silva, pela disponibilidade e

    desprendimento em partilhar conhecimentos, pelo zelo e preciso em cumprir

    compromissos, pela qualidade e clareza das orientaes, pela ateno dispensada frente s

    minhas demandas pessoais ocorridas no decorrer do trabalho.

    Ao corpo docente do Programa de Ps-Graduao em Psicologia da Universidade Federal

    do Esprito Santo, especialmente ao professor Ldio de Souza, o maior responsvel por

    meus primeiros entendimentos acerca do campo da Psicologia Social. Considero um

    privilgio ter sido sua aluna.

    Lcia e Camila, pela presteza, bom humor e pacincia no exerccio de suas funes na

    secretaria.

    Aos colegas do mestrado e doutorado, especialmente Renata Danielle pelas sugestes de

    leitura e pelos materiais emprestados e doados! Roberta Rangel e Tammy pela

    colaborao na reviso deste trabalho. Lvia Guimares e Aninha por tudo!

    Principalmente pela amizade surgida.

    Aos profissionais da Equipe de Reumatologia do HUCAM e do LACORE, pelo apoio e

    convivncia calorosa nos primeiros momentos desse trabalho. Em especial, Mrcia e

    Claudinha, pela extrema boa vontade para comigo e para com os pacientes; Dra Valria

    Valim, grande inspiradora de prticas de cuidado em sade com excelncia; ao professor

    Dr. Fabian Tadeu do Amaral, pelo incentivo, parceria e apoio constantes; toda equipe,

    principalmente, Dra rica Serrano e Dra Ana Paula pela colaborao na seleo dos

    pacientes, o que fizeram juntamente com a Dra Bernadete Gavi, grande defensora da

    interdisciplinaridade e por quem tenho grande apreo e gratido.

    Aos funcionrios, docentes e estudantes do Curso de Terapia Ocupacional da UFES, pelo

    apoio e compreenso em momentos de presena restrita para possibilitar maior dedicao

    esse trabalho.

    Aos amigos que se fizeram presentes em desafios especficos dessa jornada, em especial:

    Paulinha, Kelly Pratte, Juliana Gomes, Ana Lusa, Nilcilia, Graciana, Gabriela Queiroz.

    Ao Filipe, pelo apoio e compreenso indescritveis, pelo amor que respeita, partilha e

    constri projetos convergentes; por me apresentar a conjugalidade de maneira to doce e

    intensa. famlia Oliveira, pelo acolhimento, fora e incentivo.

    Aos meu pais Greice e Fernando, s minhas irms Fer e Nati, aos meus cunhados Diego e

    Lucas, toda minha famlia - meu ouro de mina pelas oraes, pela constante presena,

    incentivo e apoio; pela firmeza de nossa unio e bem querer que tornam mais leve e

    possvel qualquer empreitada.

    Deus, condutor de todos os meus projetos e sonhos

  • RESUMO

    Macedo, D.C.F. (2014). Representaes sociais de conjugalidade e de fibromialgia:

    desdobramentos na dinmica conjugal do provedor e da rainha do lar. Dissertao

    de Mestrado. Programa de Ps-Graduao em Psicologia. Vitria: Universidade Federal do

    Esprito Santo.

    A fibromialgia (FM) se caracteriza por dor generalizada, fadiga, sono no reparador, entre

    outros sintomas. Trata-se de uma doena de origem no determinada e com resposta

    incerta ao tratamento, podendo provocar sentimentos de vulnerabilidade e desamparo alm

    de potenciais impactos na rotina familiar e social dos que recebem esse diagnstico. Diante

    disso, o presente trabalho objetivou, de modo geral, descrever e analisar as representaes

    sociais (RS) de FM e de conjugalidade para casais em que um dos cnjuges foi

    diagnosticado com a doena, levando em considerao a perspectiva da Psicologia Social e

    a categoria de anlise gnero. Os objetivos especficos foram: investigar o grau de

    conhecimento dos participantes sobre a FM e o grau de conhecimento que seus cnjuges

    avaliam ter sobre a doena, bem como seus desdobramentos na dinmica conjugal;

    investigar as RS de FM e de conjugalidade; verificar como so construdas as relaes

    entre as RS de FM e de conjugalidade, bem como as prticas de manuteno ou alterao

    da dinmica conjugal aps o diagnstico de um dos cnjuges; analisar os aspectos

    identificados considerando a categoria de anlise gnero. Participaram do estudo 08 casais

    em que um dos cnjuges foi diagnosticado com FM h pelo menos 12 meses, com

    histrico de relacionamento estvel iniciado h pelo menos 01 ano antes do diagnstico.

    Os 16 participantes responderam a um questionrio contendo dados sociodemogrficos e

    informaes breves sobre seu histrico clnico e, em seguida, foram entrevistados

    individualmente com base em um roteiro no estruturado (narrativa) e semiestruturado. As

    transcries das entrevistas foram submetidas anlise de contedo e problematizadas

    luz da Teoria das Representaes Sociais, tendo sido utilizado tambm o software Analyse

    Lexicale par Contexte dum Ensemble de Segments de Texte (Alceste). Os resultados

    evidenciaram aspectos das dimenses relacionais existentes entre as RS de conjugalidade e

    de FM e as prticas conjugais estabelecidas pelos casais. O uso de dois mtodos, tanto na

    coleta quanto na anlise dos dados, desvelou uma ampla rede de significaes amor,

    papis masculinos e femininos, o que o adoecer e o cuidar, a fibromialgia e seus

    desdobramentos na rotina do doente e de sua famlia acessada pelos participantes nos

    processos de ancoragem e objetivao das representaes de FM e de conjugalidade. Por

    fim, constatou-se a existncia de um campo de fragilidade dos doentes com fibromialgia e

    das pessoas prximas a eles no seu processo de enfrentamento. Alm disso, os dados

    apontam para a necessidade de que os servios de sade atuem precocemente no

    esclarecimento sobre a doena e na identificao de conflitos no mbito familiar e

    conjugal, que podem ser desencadeados tanto na investigao diagnstica como no

    decorrer do tratamento e nas particularidades da convivncia diria com a doena.

    Palavras-chave: Fibromialgia, representao social, conjugalidade, relaes de gnero.

  • ABSTRACT

    Macedo, D.C.F. (2014). Social Representation of conjugality and fibromyalgia:

    developments in marital dynamics of "provider" and household's queen ". Masters

    Degree Thesis. Psychology Post Graduation Program. Vitria: Federal University of

    Esprito Santo.

    Fibromyalgia (FM) is characterized by widespread pain, fatigue, non-restorative sleep,

    among other symptoms. It is a disease of undetermined origin and uncertain response to

    treatment, which can cause feelings of vulnerability and helplessness as well as potential

    impacts on family and social routine of receiving this diagnosis. Therefore, this study

    aimed, generally, to describe and analyze the social representations (SR) of FM on couples

    where one spouse has been diagnosed, taking into account the perspective of social

    psychology and gender category of analysis. The specific objectives were to investigate the

    extent of participants' understanding of the FM and the degree of knowledge that their

    spouses think they have about the disease and its impacts on marital dynamics; investigate

    the SR of FM and conjugality; verify how relationships between SR and FM marital are

    built, as well as maintenance practices or change of marital dynamics after the diagnosis of

    a spouse; analyze the aspects identified considering the gender category of analysis. The

    study included 08 couples in which one spouse has been diagnosed with FM for at least 12

    months before the interview, with a history of stable relationship that began at least 01

    years before the diagnosis. The 16 participants answered a questionnaire on

    sociodemographic characteristics and brief information about their medical history, then

    they were interviewed individually, based on an unstructured (narrative) and

    semistructured script. The interview transcripts were subjected to Content Analysis and

    problematized in light of the social representation theory, having also been used the

    Analyse d' Lexicale software Contexte one pair Ensemble Segments of Texte (Alceste). The

    results showed aspects of existing relational dimensions between the RS and FM conjugal

    and marital practices established by couples. Using two methods, in gathering and in the

    analysis of the data, unveiled a broad network of meanings - love, gender roles, what it

    means to become ill and to care, fibromyalgia and its consequences in the routine of the

    patient and his family - accessed by the participants in the processes of anchoring and

    objectification of representations of FM and conjugality. Finally, it was found the

    existence of a field of fragility of patients with fibromyalgia and those around him in the

    process of coping. Furthermore, this data point to the need for health services to act early

    in information about the disease and identifying conflicts in family and marital context,

    which can be triggered both in the diagnostic investigation and in the course of treatment

    and particular characteristics of daily living with the disease.

    Keywords: Fibromyalgia, social representation, conjugality, gender relations.

  • SUMRIO

    1. INTRODUO ............................................................................................... 11

    1.1 Fibromialgia: sinais e sintomas, epidemiologia e prognstico .................. 14

    1.2 Particularidades do gnero: complexidades para alm da prevalncia ....... 17

    1.2.1 Estudos comparativos: mulheres e homens com FM...................... 17

    1.2.2 Gnero como categoria de anlise ................................................ 21

    1.2.3 Sade feminina e masculina .......................................................... 27

    1.3 Processos de incerteza e impactos da fibromialgia na dinmica familiar e

    conjugal ......................................................................................................... 33

    1.4 Conjugalidade e a transversalidade das questes de gnero ....................... 39

    1.5 Teoria das representaes sociais e a questo de pesquisa ......................... 43

    1.5.1 A contribuio da abordagem pragmtica da linguagem no estudo

    das RS ................................................................................................... 47

    1.5.2 Teoria das Representaes Sociais e o Gnero ............................. 54

    2. OBJETIVOS .................................................................................................... 58

    2.1 Objetivos gerais ........................................................................................ 58

    2.2 Objetivos especficos ................................................................................ 58

    3. METODOLOGIA............................................................................................ 59

    3.1 Participantes ............................................................................................. 59

    3.2 Procedimento de coleta de dados .............................................................. 60

    3.3 Procedimento de anlise dos dados ........................................................... 64

    4. RESULTADOS ............................................................................................... 73

    4.1 Anlise de Contedo: Eixos temticos ...................................................... 77

  • 4.1.1 Eixo temtico 1: Fibromialgia, primeiros sintomas e convivncia

    com a doena ........................................................................................ 82

    4.1.2 Eixo temtico 2: Modelo ideal de conjugalidade ........................... 110

    4.1.3 Eixo temtico 3: Impactos da FM na dinmica conjugal ............... 117

    4.1.4 Eixo temtico 4: Fibromialgia na mulher e no homem .................. 155

    4.2 As representaes sociais de conjugalidade, fibromialgia e gnero ........... 168

    4.3 Alceste ..................................................................................................... 170

    4.3.1 Corpus M ...................................................................................... 172

    4.3.2 Corpus H ...................................................................................... 178

    4.3.3 Anlise fatorial ............................................................................. 185

    4.3.4 A integrao das Classes do Alceste com as categorias da AC ...... 188

    5. DISCUSSO .................................................................................................... 191

    5.1 A FM no cotidiano conjugal ..................................................................... 192

    5.2 A estrutura dos servios de sade: conhecimento da FM no restrito

    presena de interesse por conhecer a doena................................................... 202

    5.3 A FM: o conhecimento sobre a doena e o tratamento .............................. 205

    5.4 A dinmica da formao e das relaes entre as RS de conjugalidade e de

    FM no cotidiano conjugal ............................................................................... 212

    6. CONSIDERAES FINAIS .......................................................................... 228

    REFERNCIAS .................................................................................................. 231

    ANEXO ................................................................................................................ 241

    APNDICE .......................................................................................................... 242

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1. Caracterizao do Grupo M-FM (Mulheres com FM e seus parceiros) ... 75

    Tabela 2. Caracterizao do Grupo H-FM (Homens com FM e suas parceiras) ...... 76

    Tabela 3. Eixos temticos, categorias e subcategorias da Anlise de Contedo ...... 80

    Tabela 4. Representaes sociais de Conjugalidade, FM e de gnero ..................... 169

    Tabela 5. Unidades de Contexto Elementar da Classe 1 do Corpus M .................... 174

    Tabela 6. Unidades de Contexto Elementar da Classe 3 do Corpus M .................... 175

    Tabela 7. Unidades de Contexto Elementar da Classe 5 do Corpus M .................... 176

    Tabela 8. Unidades de Contexto Elementar da Classe 2 Corpus M......................... 177

    Tabela 9. Unidades de Contexto Elementar da Classe 4 do Corpus M .................... 177

    Tabela 10. Unidades de Contexto Elementar da Classe 1 do Corpus H .................. 180

    Tabela 11. Unidades de Contexto Elementar da Classe 4 do Corpus H .................. 181

    Tabela 12. Unidades de Contexto Elementar da Classe 6 do Corpus H .................. 182

    Tabela 13. Unidades de Contexto Elementar da Classe 2 do Corpus H .................. 183

    Tabela 14. Unidades de Contexto Elementar da Classe 3 do Corpus H .................. 183

    Tabela 15. Unidades de Contexto Elementar da Classe 5 do Corpus H .................. 185

    Tabela 16: Thematas dos Corpus M e H .................................................................. 224

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1: Direo de anlise entre dados apresentados pelo Alceste e RS............... 69

    Figura 2: Dendrograma do Corpus M e presenas significativas das variveis:

    grupo de entrevistadas; mulher entrevistada; renda ................................ 173

    Figura 3: Dendrograma do Corpus H e presenas significativas das variveis

    grupo de entrevistados; homem entrevistado; renda ............................... 179

    Figura 4: Anlise Fatorial de Correspondncias do Corpus M ................................ 186

    Figura 5: Anlise Fatorial de Correspondncias do Corpus H ................................ 188

    Figura 6: Integrao dos resultados do Alceste e da AC ......................................... 190

    Figura 7: Elementos Constituintes e o Modelo de Produo da Representao

    (modificada) .......................................................................................................... 221

    Figura 8: Articulao do conceito de themata aos Elementos Constituintes e o

    Modelo de Produo da Representao (modificada) ............................. 225

  • LISTA DE ABREVIATURAS

    AC Anlise de Contedo

    ACR American College of Rheumatology

    AFC Anlise Fatorial de Correspondncia

    AVE Acidente Vascular Enceflico

    CHD Classificao Hierrquica Descendente

    CIS Cnjuges de indivduos saudveis

    EN Entrevista narrativa

    FM Fibromialgia

    H-FM Agrupamento: homems com FM

    H-CJ Agrupamento: homens cnjuges de mulheres com FM

    M-FM Agrupamento: mulheres com FM

    M-CJ Agrupamento: mulheres cnjuges de homens com FM

    OA Osteoartrose

    RS Representaes Sociais

    TRS Teoria das Representaes Sociais

    UCI Unidades de Contexto Iniciais

    UCE Unidades de Contexto Elementares

  • 11

    1. INTRODUO

    A fibromialgia (FM), uma das doenas reumatolgicas mais frequentes na

    populao geral (Castro, Kitanishi & Share, 2011), caracteriza-se por sintomas como dor

    crnica e generalizada, fadiga, distrbios do sono, entre outros (Heymann et al., 2010).

    Trata-se de uma doena de etiologia complexa e ainda no suficientemente esclarecida

    (Alambert et al., 2009). A resposta ao tratamento , em geral, incerta (Asbring &

    Narvanen, 2004), o que pode provocar sentimentos de vulnerabilidade e desamparo

    (Berber, Kupek, & Berber, 2005) de modo a influenciar o cotidiano familiar e social dos

    que recebem esse diagnstico.

    Neste cenrio, o fenmeno que ser abordado no presente trabalho permeia o

    entendimento de aspectos da dinmica conjugal de pessoas com fibromialgia (FM).

    Pretende-se explorar de que forma as alteraes na dinmica conjugal de casais em que um

    dos cnjuges tem FM esto articuladas com as representaes sociais que esse grupo tem

    de conjugalidade e da prpria condio de adoecimento, considerando tambm

    particularidades relativas ao gnero.

    A questo tem sua relevncia desvelada nos dados da literatura que descrevem o

    cnjuge do doente com FM como importante membro da sua rede de suporte social1, mas

    apontam tambm que o processo de adoecimento pode configurar condies de risco e

    fragilidade sade fsica e mental do cnjuge saudvel (Sderberg, Strand, Haapla &

    1Seguem algumas das definies clssicas de suporte social apresentadas em um estudo destinado

    construo de uma Escala de Satisfao com o Suporte Social, disponvel em:

    http://www.fpce.up.pt/docentes/paisribeiro/testes/soCIALf.htm.

    (a) Suporte social a existncia ou disponibilidade de pessoas em quem se pode confiar, que mostram que se

    preocupam conosco, nos valorizam e gostam de ns. (Fonte: Sarason, I.G., Levine, H.M., Basham, R.B., & Sarason, B.R. (1983). Assessing social support: the social support questionnaire. Journal of Personality and

    Social Psychology, 44(1), 127-139).

    (b) Refere-se aos recursos ao dispor dos indivduos e unidades sociais (tais como a famlia) em resposta aos

    pedidos de ajuda e assistncia (Dunst, C., & Trivette, C. (1990). Assessment of social support in early

    intervention programs. In:S.Meisels e J.Shonkoff (Edts.) Handbook of early childhood intervention. (pp326-

    349). New York: Cambridge University Press.

  • 12

    Ludman, 2003; Bigatti & Cronan, 2002), sendo necessrio o aprofundamento de

    investigaes que abarquem fragilidades psicossociais e aspectos da sade desses

    indivduos. Destaca-se ainda o grau de incerteza2 associado frequncia e intensidade dos

    sintomas como um fator perturbador para o doente com FM e para os que com ele

    convivem (Asbring & Narvanen, 2004; Reich, Olmsted, & van Puymbroeck, 2006). Frente

    a isso, pesquisas tm mostrado que o nvel de conhecimento acerca da doena desvela-se

    como fator determinante na convivncia com a doena e com o doente (Carvalho &

    Noordhoek, 2006; Albano, Quintrec, Crozet & DIvernoisc, 2010). Sabe-se ainda que

    aspectos relacionados ao conviver com os sinais e sintomas da FM podem precipitar

    processos de separao conjugal (Bernard, Prince & Edsall, 2000).

    Apesar da FM ser prevalente na populao feminina (Castro et al., 2011) e de a

    maioria dos estudos contemplarem esse segmento em suas investigaes (Mir, Diener,

    Martnez, Snchez & Valenza, 2012), considera-se imprescindvel incluir homens e

    mulheres entre os participantes na presente pesquisa, contemplando o gnero como uma

    categoria de anlise, de forma a favorecer a explorao dos dados a partir de referenciais

    da Psicologia Social. O alcance dessa discusso potencializado pela incluso do cnjuge

    do doente com FM como participante desse estudo contemplando, assim, os principais

    atores envolvidos diretamente na dinmica conjugal, palco profcuo de questes tangentes

    ao gnero. Ademais, trata-se de pessoas que convivem rotineiramente com o doente e s

    quais so atribudas maior responsabilidade e encargo familiar (Sderberg et al., 2003).

    Assim, o desenho desse trabalho contempla dades de entrevistados que ora

    podero desvelar expoentes de um feminino submisso e de um masculino provedor,

    expostos em seus limites arraigados em tradies patriarcais (Strey, 2011); ora do feminino

    2Esclarece-se que a incerteza em relao ocorrncia dos sintomas ocorre pela sua manifestao dar-se sem

    seguir uma linha regular. Desse modo no possvel prever quando ocorrer eventos de piora importante da

    dor, da fadiga ou outros sinais da FM, sendo sua intensidade tambm varivel.

  • 13

    reflexo de mudanas histricas como da maior insero da mulher no mercado de trabalho

    (Scott, 1995; Wagner, Predebon, Mosmann, & Verza, 2005; Strey, 2011; Galinkin &

    Ismael, 2011); tambm da masculinidade colocada em situao de conflitos e contradies

    diante de um corpo limitado pela dor (Gomes, Nascimento & Arajo, 2007; Burille, 2012);

    ou ainda, podero retratar situaes em que as concepes tangentes aos papis de marido

    e mulher, mesmo quando se pretende que sejam estanques, podem no se sustentar diante

    das mudanas suscitadas pela convivncia com a doena (Sderberg et al., 2003; Burille,

    2012).

    Para tanto, os aspectos introdutrios deste trabalho estruturam-se em cinco eixos

    centrais: o primeiro caracteriza a fibromialgia em seus aspectos clnicos e epidemiolgicos;

    o segundo aponta a relevncia de se discutirem particularidades referentes ao doente com

    FM ser homem ou ser mulher, o que no ocorre via de regra pela doena ser prevalente em

    mulheres e, fundamenta ainda, o gnero como uma categoria de anlise selecionada para

    problematizao dos resultados; o terceiro apresenta desdobramentos de algumas

    caractersticas clnicas da FM e do grau de conhecimento que se tem sobre a doena, que

    impacta sobre a dinmica conjugal e familiar do doente; o quarto detm-se,

    especificamente, dimenso histrica da conjugalidade e sua relao com as concepes

    tangentes a papis conjugais do homem e da mulher; por ltimo, expem-se os

    pressupostos e as bases tericas da Teoria das Representaes Sociais que nortearam o

    desenvolvimento desta pesquisa.

    Os aspectos metodolgicos contemplaram duplas estratgias tanto na coleta como

    na anlise dos dados, visando ampliar o alcance dessa investigao. Os resultados e as

    discusses desse trabalho buscaram apropriar-se dos elementos presentes no referencial

    terico apresentado na introduo e contou-se ainda com uma tentativa da pesquisadora de

  • 14

    integrar modelos e conceitos considerados clssicos na TRS. O trabalho encerrado com

    consideraes que procuram retomar os desdobramentos prticos que justificam a

    conduo de investigaes sobre as relaes conjugais na FM e suas especificidades de

    gnero como um eixo analtico importante para o aprimoramento constante das aes de

    cuidado ofertado s pessoas com FM e suas famlias.

    O estudo da conjugalidade de pessoas com FM e a investigao de como as

    concepes que o doente e seu cnjuge tm acerca da doena e de como compreendem

    aspectos tangentes a conjugalidade, pode nortear o delineamento de intervenes voltadas

    para viabilizar processos de enfrentamento frente a essa situao de adoecimento crnico,

    de modo a abarcar o doente com FM, seu cnjuge e, por conseguinte, seu contexto

    familiar.

    1.1 Fibromialgia: sinais e sintomas, epidemiologia e prognstico

    As doenas reumticas podem ser definidas como doenas e alteraes funcionais

    do sistema musculoesqueltico de causa no traumtica, constituindo um grupo com mais

    de uma centena de doenas, que podem ser agudas, recorrentes ou crnicas, atingindo

    pessoas de todas as idades (Moreira, Pinheiro & Neto, 2009). Sendo causa frequente de

    incapacidade e afastamento do trabalho, as doenas reumticas, especialmente quando

    diagnosticadas tardiamente ou no tratadas de forma adequada, podem ocasionar

    repercusses fsicas, psicolgicas, familiares, sociais e econmicas, muitas vezes graves e

    permanentes (Provenza et al., 2004).

    Nesse contexto, vlido destacar a complexidade dos sinais e sintomas da chamada

    sndrome fibromilgica ou fibromialgia (FM), entidade nosolgica em que a dor crnica

    assume a centralidade do espectro clnico, com impactos potenciais na rotina familiar e

  • 15

    social dos que recebem esse diagnstico. Alm desses sintomas, pode tambm ocorrer

    fadiga, distrbios do sono, rigidez matinal3, parestesias de extremidades

    4, sensao

    subjetiva de edema5 e distrbios cognitivos

    6 (Heymann et al., 2010).

    A FM, conhecida como fibrosite desde 1904 (Gowers, 1904 citado por Besset

    Gaspard, Doucet, Veras & Cohen, 2010), tem denominao bastante recente. Em 1992, foi

    inserida pela Organizao Mundial da Sade na Classificao Internacional das Doenas

    (Smythe & Moldofsky, 1977 citado por Besset et al., 2010). Em 1990, o American College

    of Rheumatology (ACR) definiu os critrios diagnsticos da FM (Wolfe et al., 1990) e

    estes foram validados para a populao brasileira em 1999 (Atallah-haun, Ferraz & Pollak,

    1999). Esses critrios so: dor generalizada em pelo menos trs dos quatro quadrantes

    corporais nos ltimos 3 meses e dor localizada a palpao em pelo menos 11 dos 18 tender

    points, que so locais dolorosos preestabelecidos7. Embora existam proposies recentes

    para o uso de novos critrios de classificao e diagnstico de FM, sua aplicabilidade ainda

    incipiente e pouco difundida (Oliveira, Petean & Louzada-Jnior, 2010).

    A FM, uma das doenas reumticas mais frequentes, apresenta expressivos dados

    epidemiolgicos que apontam a relevncia de investigaes acerca dessa temtica. Possui

    alta prevalncia na populao em geral, variando de 0,66% a 4,4% e, utilizando os critrios

    diagnsticos estabelecidos pelo ACR, prevalente em mulheres, sendo a proporo

    mulher-homem de 8:1, especialmente na faixa etria entre 35 e 60 anos (Cavalcante et al.,

    2006; Castro et al., 2011).

    3Rigidez matinal: sensao de travamento do corpo que ocorre principalmente pela manh ao acordar. 4Parestesias de extremidade: sensao anormal e desagradvel sobre a pele que assume diversas formas

    (coceira, fisgada, formigamento, sensaes de frio ou calor) que so vivenciadas espontaneamente na ausncia de estimulao nas regies dos braos, mos, pernas ou ps. 5Sensao subjetiva de edema: sensao de que as mos esto inchadas. 6Principais distrbios cognitivos apontados na literatura: diminuio da concentrao e perda da

    memria, sendo que esses prejuzos cognitivos da ateno esto diretamente ligados aos dficits de memria

    operacional e de funo executiva. 7Os critrios completos estabelecidos pelo ACR encontram-se no Anexo I.

  • 16

    No entanto, somente h trs dcadas a FM passou a ser alvo de estudos mais

    consistentes (Heymann et al., 2010). Assim, pouco se sabe sobre sua etiopatogenia, que

    pode ser caracterizada como obscura e complexa. Estudos acerca da fisiopatologia da FM

    reconhecem sua caracterstica multifatorial e apontam sua relao com alteraes na

    funo autonmica, sistema endcrino, influncia gentica e exposio a fatores

    estressantes (Alambert et al., 2009). Essas alteraes esto, geralmente, associadas a

    distrbios que podem sobrepor-se FM, como transtorno depressivo maior, sndrome do

    intestino irritvel e distrbio temporomandibular (Bradley, 2009). Bradley (2009) descreve

    ainda que alteraes no processamento central da parte sensorial e dficits na inibio

    endgena da dor em pacientes com FM podem contribuir para intensificao da

    sensibilidade dor e persistncia da dor difusa. Martinez (2006) ressalta que a teoria

    fisiopatolgica, segundo ele aceita como a mais provvel, considera a FM como uma

    disfuno no processamento da dor, ou seja, uma sndrome de dor crnica caracterizada

    por amplificao dolorosa central. Este autor argumenta que, apesar de tal teoria no

    contemplar todo o espectro da FM, trata-se do ponto de partida mais plausvel para

    avanos em sua compreenso.

    Heymann et al. (2010) afirmam que at o momento no existem tratamentos que

    possam ser considerados eficazes. Por se tratar de uma sndrome pouco pesquisada e que

    envolve um quadro crnico de dor musculoesqueltica, seu tratamento requer um

    acompanhamento multidisciplinar com o objetivo de alcanar uma abordagem ampla e

    mais completa de seus sintomas e comorbidades (Heymann et al., 2010). A complexidade

    de variveis tangentes tanto questo do diagnstico quanto abordagem adequada pelos

    profissionais de sade, mostra a necessidade de mais estudos que se proponham a ampliar

    o entendimento das temticas vivenciadas por esses pacientes (Saltareli, Pedrosa, Hortense,

  • 17

    & Sousa, 2008). Assim, destaca-se a importncia de novas investigaes que englobem

    variveis ainda no suficientemente estudadas nesse contexto, a exemplo de processos

    relacionados dinmica conjugal de homens e mulheres com FM, fenmeno que se

    pretende explorar no presente trabalho.

    1.2 Particularidades do gnero: complexidades para alm da prevalncia

    1.2.1 Estudos comparativos: mulheres e homens com FM

    Sabe-se que homens e mulheres sentem, percebem, relatam e se comportam frente

    dor de maneira diferente, devido s diferenas biolgicas de sexo e diferenas dos papis

    de gnero (Fillingim et al., 2003; Myers, Riley & Robinson, 2003). Alm destas

    diferenas, vale pontuar que as concepes de sade e doena tambm variam entre

    pessoas, famlias, grupos e classes sociais (Helman, 2010).

    Estudos em populao saudvel com queixas de dor tm observado que as mulheres

    tendem a mostrar mais comportamentos de catastrofizao frente dor do que os homens,

    o que parece surgir em uma idade muito jovem e pode estar relacionado a distintos padres

    de socializao de formas de expresso e de relato da dor de homens e mulheres (Snchez,

    Martnez, Mir & Medina, 2011). Tambm deve ser destacado que fatores biolgicos

    relacionados a ao dos hormnios sexuais podem corroborar para as diferenas entre os

    sexos observadas na sensibilidade dor ou fatores a ela relacionados (Pamuk, Dnmez &

    Cakir, 2009).

    A prevalncia da fibromialgia (FM) em mulheres tem sido um ponto basilar na

    construo do conhecimento atual referente a essa a sndrome, sendo a grande maioria das

    pesquisas no campo realizadas com mulheres (Mir et al., 2012). Prez et al. (2007)

  • 18

    chamam a ateno para preconceitos existentes em cuidados de sade em FM, ao ser

    assumida como "Doena de mulher".

    Embora estudos ressaltem a importncia da anlise da relao entre os papis

    socioculturais de gnero da mulher e o desencadeamento e manuteno da FM (Fernandes,

    2003), tambm se faz necessrio investigar aspectos de seu desenvolvimento e impactos

    em homens que desenvolvem a doena. A formao de subgrupos de doentes, levando-se

    em conta esses fatores, pode otimizar aspectos do tratamento da FM (Robinson et al.,

    2001).

    Poucos estudos investigaram particularidades de homens e mulheres com a doena,

    abarcando aspectos referentes intensidade de sintomas da doena em sua maioria, alm

    de diferirem quanto ao rigor metodolgico e aspectos culturais da amostra, o que pode

    estar relacionado a achados controversos (Mir et al., 2012). Embora parte desses estudos

    sugira que as mulheres com FM experimentam alguns sintomas mais graves do que os

    homens (Wolfe, Ross, Anderson & Russell, 1995; Yunus, Inanici, Aldag & Mangold,

    2000), os resultados de outros trabalhos apontaram maiores fragilidades em homens com a

    doena (Buskila, Neumann, Abu-Shakra & Alhoashle, 2000; Hooten, Townsend & Decker,

    2007). Alguns estudos, no entanto, identificaram poucas diferenas significativas entre

    mulheres e homens com FM (Yunus, Aldag & Celiker, 2004; Mir et al., 2012). Assim,

    apesar de resultados variados, esses estudos evidenciam a existncia de diferenas entre

    homens e mulheres com FM que ainda necessitam ser aclaradas na literatura. Castro et al.

    (2011) afirmam que o reconhecimento das diferenas especficas entre os gneros pode

    estimular a melhor compreenso dos mecanismos fisiopatolgicos da doena, bem como

    permitir uma melhor abordagem s pessoas com essa sndrome.

  • 19

    Wolfe et al. (1995) e Yunus et al. (2000) descobriram que as mulheres com FM

    tm um menor limiar de dor, dor mais difusa e maior nmero de pontos de gatilho, mais

    fadiga e maior comorbidade com sndrome do intestino irritvel que homens. Em

    contraste, no foram encontradas diferenas significativas entre os sexos referentes a mal-

    estar emocional ou nvel da patologia. Por outro lado, Wolfe et al. (1995) encontraram

    maior ocorrncia de distrbios do sono em mulheres e Yunus et al. (2000) no

    encontraram nenhuma diferena nesse aspecto entre os sexos. Entretanto, diferentemente

    desses estudos, que empregaram uma escala Likert sem adequadas garantias psicomtricas,

    Mir et al. (2012), atravs do uso de instrumentos padronizados, no observaram

    diferenas em relao ao sono e fadiga relacionadas ao gnero.

    Mir et al. (2012) tambm compararam grupos de homens (H-FM) e mulheres (M-

    FM) com FM com respectivos grupos controle saudveis e, os doentes com FMobtiveram

    pior desempenho em todas as variveis analisadas. Nesse estudo foram avaliados nvel de

    dor e fadiga, qualidade do sono, aspectos psicopatolgicos, mal-estar emocional e impacto

    funcional da FM. A nica diferena significativa entre os grupos H-FM e M-FM foi um

    menor limiar de dor e maior consumo de analgsicos no grupo M-FM, o que pode estar

    associado a diferente percepo subjetiva da dor entre os sexos. Assim, os resultados

    sugerem que no houveram diferenas significativas em importantes aspectos psicolgicos

    entre mulheres e homens com FM. Vale destacar ainda que a dor do grupo H-FM mostrou-

    se correlacionada qualidade do sono e ao sentimento de autoeficcia; j no grupo M-FM

    foram o medo da dor, a ateno para a dor e o nvel de catastrofizao as variveis

    correlacionadas a esse sintoma. Yunus et al. (2004) utilizando diferentes escalas para

    avaliao da dor, fadiga, sono, ansiedade, depresso, estresse, deficincia e gravidade

  • 20

    global da FM, encontraram diferenas apenas em dois aspectos, sendo que as mulheres

    apresentaram mais pontos de gatilho e fadiga do que os homens.

    Buskila et al. (2000) observaram em uma amostra de israelenses que os homens

    com FM relataram mais dor, rigidez, fadiga, distrbios do sono, sndrome do intestino

    irritvel, depresso, irritabilidade e funcionamento dirio prejudicado do que mulheres,

    sendo que os autores atriburam tais achados a variveis culturais. Prez et al. (2007)

    verificaram que os homens demoram mais tempo para serem diagnosticados, esto em

    maior proporo de afastamento do trabalho e tm pior sade percebida. No entanto, esses

    estudos utilizaram-se, respectivamente, de escalas Likert e contato telefnico para coleta, o

    que pode comprometer a acurcia dos resultados.

    Hooten et al. (2007) encontraram que os homens com FM apresentam pior

    avaliao do que as mulheres em dois domnios do SF-368: estado geral de sade e

    capacidade funcional. Por outro lado, as mulheres experimentaram maior impacto nos

    relacionamentos e nas atividades dirias em funo da dor (avalidado pela

    Multidimensional Pain Inventory). No entanto, em ambos os grupos no houve diferena

    significativa entre o nvel de dor e de estresse.

    vlido pontuar que, conforme Mir et al. (2012), realizar estudos que

    investiguem aspectos objetivos e tambm subjetivos que representem variveis

    biopsicossociais um desafio para o campo no intuito de ampliar a compreenso do

    impacto das diferenas de gnero na FM. Neste trabalho, consideram-se as lacunas

    referentes explorao dos fenmenos que permeiam o adoecer e viver com FM de modo

    8Trata-se de um instrumento genrico para avaliar sade e qualidade de vida. Avalia melhor a incapacidade

    fsica e incapacidade para o trabalho. Contm 36 itens agrupados em 8 escalas: aspectos fsicos, capacidade

    funcional, dor corporal, estado geral de sade, vitalidade, aspectos sociais, aspectos emocionais e sade

    mental. Ver artigo de validao em: Ciconelli, R.; M.; Ferraz, M. B.; Santos, W.; Meino, I & Quaresma, M.

    R. (1999). Traduo para a lngua portuguesa e validao do questionrio genrico de avaliao de qualidade

    de vida SF-36 (Brasil SF-36). Revista Brasileira de Reumatologia, 39(3), p. 143-150.

  • 21

    a contemplar homens e mulheres em sua investigao, explorando dades com diferentes

    configuraes conjugais. Desta forma, no prximo tpico analisam-se aspectos da

    dimenso do gnero, que se considera uma categoria de anlise imprescindvel para o

    enriquecimento das discusses sobre as experincias do conviver com a FM, para alm de

    dados de prevalncia.

    1.2.2 Gnero como categoria de anlise

    Os movimentos feministas, assim denominados, surgiram no sculo XIX na Europa

    e tambm nos Estados Unidos e ecoaram no Brasil no sculo XX, atingindo seu apogeu h

    poucas dcadas (Strey, 2011). Estes tiveram papel central nas discusses sobre gnero,

    sexualidade, relaes scio-histricas e culturais entre homens e mulheres (Galinkin &

    Ismael, 2011).

    Para Strey (2011), estudos de gnero e o campo da psicologia social histrico-

    crtica apresentam como ponto convergente a relevncia que ambos atribuem anlise e ao

    estudo das situaes e condies sociais geradoras de desigualdade e, em ltima instncia,

    voltam-se para sua erradicao. Entretanto, Nuernberg (2008) reconhece que a Psicologia

    Social no incio da discusso de questes tangentes ao sexo e ao gnero o fez sob grande

    influncia do primado da razo e do empirismo e sob o prisma de pressupostos cientficos

    positivistas. Desse modo, esclarece que, em sua origem, assumiu uma posio biologicista

    e essencialista, abordando as diferenas de gnero como entidades psicolgicas internas

    femininas e masculinas. Com o incio do movimento feminista na segunda metade do

    sculo XX, algumas pesquisas em psicologia social passaram a ser dirigidas a essa

    temtica, dentre as quais se destaca a produo de escalas para medir masculinidade e

    feminilidade sob a tica da vertente empirista da dcada de 1970, sendo que as respostas

  • 22

    normativas eram consideradas como um sinal de sade psicolgica (Strey, 2011, p.194) e,

    questes como a homossexualidade e problemas familiares eram ligadas aos desvios dos

    escores da mdia. Strey (2011) e Nuernberg (2008) consideram que tal perspectiva pautada

    nas mensuraes, mais que buscar a garantia da preciso e da objetividade, acabava por

    legitimar as ideologias vigentes.

    Atualmente, Galinkin e Ismael (2011) enfatizam que a Psicologia Social trata o

    gnero como uma construo histrica, social e cultural e, sob esse prisma de anlise,

    considera, para alm das diferenas ou semelhanas entre os sexos, a relevncia de se

    investigar e transpor as relaes de poder entre eles que configurem desigualdades e

    dominao (Strey, 2011).

    Os termos sexo e gnero so, por vezes, utilizados sem distino ou critrio. No

    entanto, na segunda metade do sculo XX essa diferenciao comea a ecoar no contexto

    das discusses e teorizaes feministas referentes s relaes sociais entre os sexos,

    especificamente no que tange as desigualdades e questiona sua suposta determinao

    natural (Galinkin & Ismael, 2011). Strey (2011) tambm critica a tendncia predominante

    de propor razes naturais para a ordem social nas civilizaes ocidentais. Tal como os

    diferencia Burille (2012), no presente trabalho considera-se que o termo sexo refere-se s

    caractersticas biolgicas pr-determinadas de homens e mulheres; e o termo gnero

    compreende uma categoria utilizada para apontar as caractersticas que so construdas nas

    diversas vivncias em sociedade e que esto ligadas ao que masculino e feminino, sendo

    que tais caractersticas que definem o ser homem e o ser mulher variam ao longo da

    histria e em cada sociedade, em um processo dinmico e constante de construo social

    (Gomes, 2006).

  • 23

    Assim sendo, Strey (2011) pontua que o sexo biolgico com o qual se nasce no

    determina, em si mesmo, o desenvolvimento posterior em relao a comportamentos,

    estilos de vida, tendncias das mais diversas ndoles, responsabilidades ou papis a

    desempenhar, tampouco determina o sentimento ou a conscincia de si mesmo(a), as

    caractersticas da personalidade, do ponto de vista afetivo, intelectual ou emocional, ou

    seja, psicolgico. Tudo isso seria determinado pelo processo de socializao e outros

    aspectos da vida em sociedade e decorrentes da cultura que abrange homens e mulheres ao

    longo de toda a vida, em estreita conexo com diferentes circunstncias socioculturais e

    histricas (Strey, 2011, p.181).

    Galinkin e Ismael (2011) argumentam que o conceito de gnero opera na direo de

    desnaturalizar no somente a sexualidade, mas tambm as desigualdades sociais entre os

    sexos, uma vez que revela diferenciaes relacionadas a construes scio-histricas, cuja

    premissa de anlise ope-se ao determinismo biolgico. Vale destacar que, mesmo

    identificando a variabilidade das diferenas sexuais nas diversas sociedades, antroplogas

    e demais feministas observam traos da existncia de uma relao de subordinao da

    mulher pelo homem, que classificavam como dominao universal (Galinkin & Ismael,

    2011). Para Scott (1995) gnero um elemento constitutivo das relaes sociais fundado

    sobre as diferenas percebidas entre os sexos e uma primeira forma de significar as

    relaes de poder (Scott, 1995, s/p). De fato,

    uma representao em que o masculino se confunde com o universal (Amncio,

    1994) e o feminino transforma as mulheres numa comunidade de invisveis

    (sobre)sexuados, irremediavelmente diferentes dos homens, confundindo a

    diferena entre os sexos com a diferena em si mesma (...). A situao paradoxal de

    seres da natureza e seres sociais, cujo espao de exerccio da razo se reduzia

  • 24

    funo reprodutora, no discurso poltico da modernidade, tornou as mulheres seres

    relativos (Fraisse, 1995, p. 175) no plano da cidadania e dos direitos (Amncio,

    2003, p. 703)

    Galinkin e Ismael (2011) reportam aspectos scio-histricos referentes s

    modificaes do papel da mulher nas sociedades ocidentais. Em relao ao contexto

    brasileiro, pontuaram que a constituio dos estudos de gnero deu-se nos movimentos de

    esquerda nas dcadas de 1960 e, principalmente, 1970, em meio as crticas s

    desigualdades sociais e ao autoritarismo fortemente presente na realidade poltica da poca

    (Galinkin e Ismael, 2011).

    Nuernberg (2008) e Galinkin e Ismael (2011) afirmam que a academia teve papel

    de destaque viabilizando pesquisas na rea, embora tenha ocorrido grande resistncia por

    parte das instituies financiadoras que no enxergavam o feminismo como tema de

    relevncia cientfica. No final da dcada de 70, a produo cientfica sobre a condio da

    mulher ganha espao e repercusses crescentes, sendo que ao longo dos ltimos anos um

    vasto conjunto de obras aliadas atuao do movimento feminista brasileiro tm

    subsidiado projetos de lei e aes contra todo tipo de discriminao sexista, apoiando uma

    legislao igualitria.

    Galinkin e Ismael (2011) apontam que desde o final da primeira metade do sculo

    XX avanos no sentido da promoo da equidade entre homens e mulheres foram

    conquistados em maior amplitude. O processo de mudanas continua a ocorrer at a

    atualidade, inclusive no mbito jurdico e, persiste seu intuito de, cada vez mais, alcanar o

    cotidiano das prticas sociais e culturais.

    Vale destacar que, especialmente no domnio dos movimentos feministas, o

    conceito de gnero vem sendo cunhado em toda sua representatividade histrica, como

  • 25

    uma resposta terica na tentativa de refutar as desigualdades existentes (Scott, 1995). Os

    atuais estudos feministas, mesmo em suas mais variadas correntes, no pretendem dar

    definies acabadas sobre a condio da mulher, mas, mais que isso, objetivam precisar as

    condies scio-histricas em que se constroem as diversas definies do masculino e do

    feminino e suas consequncias nos processos de excluso social (Galinkin & Ismael,

    2011).

    Apesar dos progressos alcanados no sentido da equidade nas relaes de gnero

    sabe-se que as mudanas no so lineares. No o so tambm imediatas ou dependentes

    unicamente de melhorias no sistema legislativo para que se tornem, de fato, um valor para

    a populao e sirvam de base para as relaes sociais (Galinkin e Ismael, 2011). A

    exemplo de tal constatao, Strey (2011) afirma que at recentemente o patriarcado,

    estrutura social na qual a autoridade efetiva sobre as mulheres exercida atravs dos

    papis de pai e de marido, era a forma predominante na hierarquia de gnero no ocidente.

    Atualmente, a autora identifica o poder social em atributos considerados masculinos, de

    modo que homens e mulheres podem desempenhar papis por meio dos quais o poder pode

    ser exercido, no entanto, eles permanecem simbolicamente como papis masculinos.

    Destaca ento que, em virtude disso, a discriminao contra as mulheres gerada por esses

    papis recebe reforo ideolgico.

    Por outro lado, sob influncia recente de estudos e tendncias da Europa, Estados

    Unidos e Canad, as discusses no Brasil avanam na considerao do carter histrico e

    plural do gnero como categoria multidisciplinar de anlise, de modo que os homens

    tambm passam a ser includos nas discusses referentes temtica, num cenrio mais

    prximo da busca por igualdade de tratamento entre os gneros (Galinkin e Ismael, 2011).

    Surgem ento os debates e estudos contemplando a subjetividade masculina, comeando-se

  • 26

    a discutir os papis e os lugares dos homens nesse contexto. Somente no incio da dcada

    de 1970, os homens e o masculino comearam a configurar uma categoria contemplada em

    estudos de gnero (Almeida, Santos, Vasconcellos & Coenga-Oliveira, 2011).

    Trindade, Menandro, Nascimento, Cortez e Ceotto (2011) ao discorrerem sobre a

    produo cientfica do campo da masculinidade e suas interfaces com a sade,

    apresentaram o conceito de masculinidade hegemnica que, desde sua elaborao no fim

    da dcada de 1990 pela cientista social Raewyn Connell, tem sido largamente usado em

    estudos de gnero.

    Os autores esclarecem que esse conceito fortalecido em um contexto scio-

    histrico de afirmao do modelo tradicional de masculinidade configura-se como uma

    forma de masculinidade dominante que rege estereotipias cujas normativas tendem a inibir

    ou constranger quaisquer forma de comportamento que destoe do homem de verdade,

    sustentando diversas formas de preconceito e discriminao (Trindade et al., 2011).

    Galinkin e Ismael (2011) descrevem como os estudos passam a contemplar

    questes da masculinidade, considerando os homens como sujeitos construdos pelos

    mesmos mecanismos sociais que as mulheres. Assim, identificam que o gnero sai do

    mbito das discusses sobre mulheres e direitos femininos e incorpora tambm a

    problemtica referente ao papel e a construo ou reconstruo do homem e do masculino,

    e de outros atores sociais que reivindicam identidades sexuais e de gnero fora dos

    modelos tradicionais.

    Foram apresentados aspectos gerais, conceituais e histricos referentes questo do

    gnero e pode-se perceber um pano de fundo constitudo de facetas ideolgicas que, no

    raro, legitimam relaes de excluso, subordinao e poder. Esse estudo pretende explorar

    essas nuances analisando o processo de adoecimento pela FM no caso de casais em que um

  • 27

    dos cnjuges tem a doena. Segue-se, desse modo, alguns apontamentos tericos acerca da

    sade feminina e masculina. Sero esses desdobramentos ocorridos nas relaes de gnero

    no contexto do adoecimento de um cnjuge com FM que tambm subsidiaro a discusso

    dos resultados encontrados neste trabalho.

    1.2.3 Sude feminina e masculina

    Os traos descritos por Powell (1993, citado por Nogueira, 2001) para o masculino

    (independncia, agressividade e dominncia) e para o feminino (sensibilidade, emoo e

    gentileza) ainda encontram, segundo Trindade et al (2011), eco nos dias atuais. Como

    elementos das representaes sociais de gnero, cujos aspectos tericos sero ainda

    apresentados na introduo desse trabalho, sabe-se que essas estereotipias apresentam

    consequncias na qualidade de vida das pessoas por interferirem em suas prticas de sade.

    Tonelli e Mller (2011), bem como Butler (2003), destacam a primazia do feminino como

    sujeito universal do cuidado e o entendimento do adoecer relacionado linearmente falta

    de sade e rodeado dos ideais de onipotncia e invulnerabilidade masculinas.

    O Sistema nico de Sade (SUS) de Brasil possui polticas pblicas especficas

    para cuidados sade da mulher e do homem. Atualmente, segue-se os parmetros da

    Poltica Nacional de Ateno Integral Sade da Mulher (Ministrio da Sade, 2004) lanada

    em 2004 e a Poltica Nacional de Ateno Integral Sade do Homem vigente desde 2008

    (Ministrio da Sade, 2008).

    Souto (2008) elenca aspectos que fundamentam e orientam essas polticas. O

    primeiro deles afirma que o ser humano deve ser compreendido em suas mltiplas

    dimenses (de indivduo e de grupo social) e em suas subjetividades e particularidades.

    Outro ponto destacado a articulao entre as aes de promoo, preveno e assistncia

  • 28

    disponveis e acessveis na rede de servios de sade, favorecendo a configurao de linhas

    de cuidado delineadas na perspectiva da transformao da determinao social do processo

    de adoecimento dos grupos contemplados nas polticas. Por ltimo e o principal ponto

    destacado pela autora foi o conceito de integralidade, um dos princpios do SUS. Segundo

    Souto (2008) trata-se de uma definio polissmica e bem apresentada por Carvalho

    (2006) citado por essa autora:

    Costumo dizer que a integralidade tem duas dimenses: a vertical e a horizontal. A

    vertical inclui a viso do ser humano como um todo, nico e indivisvel. E a

    horizontal a dimenso da ao da sade em todos os campos e nveis (p.16).

    Desse modo, Souto (2008) afirma que uma poltica de sade integral voltada para

    grupos especficos da sociedade precisa considerar a totalidade do ser humano (fsico,

    mental, afetivo e espiritual) como objeto do cuidado em sade, em meio aos saberes e

    prticas de sade acumulados e organizados na totalidade das redes de servios que

    produzem essas aes de sade cuidado. A autora considera ainda que as respostas

    governamentais estruturadas mediante demandas sociais e que resultam em polticas

    especficas para determinados grupos, como o caso das voltadas para a sade da mulher e

    do homem, tem o seu alcance/ou limite como resultado de disputas conceituais, poltico-

    ideolgicas e organizacionais. Nesse cenrio, o estabelecimento dessas polticas fruto de

    histricas disputas entre o Governo e Sociedade Civil para fins da luta contnua por fazer

    valer os preceitos constituicionais que asseguram a sade como um direito de todos e um dever

    do Estado.

    Ademais, Souto (2008) lembra que o fato de estarem voltadas para as mulheres ou

    homens no garante que essas polticas incorporem a abordagem de gnero. Tal abordagem,

    considerada no contexto da integralidade dessas polticas, suscita prismas de anlise que

    tenham como norteadores o modo como homens e mulheres se relacionam no cotidiano de

  • 29

    suas vivncias evidenciadas em seus corpos e que marcam suas vidas, cujas ligaes com a

    determinao social do processo sade/doena devem ser analisadas.

    Especificamente abordando questes da sade feminina, Tavares, Andrade e Silva

    (2009) destacam que a Poltica Nacional de Ateno Integral Sade da Mulher foi precedida

    pelo Programa de Assistncia Integral Sade da Mulher (PAISM), cuja criao em 1983 foi

    considerada um marco histrico. Tal fato ocorreu num contexto de reivindicaes do

    movimento feminista e no decurso do processo de redemocratizao do Pas, junto a outros

    movimentos sociais. Eles desempenharam um papel decisivo para a consolidao da

    democracia e na incluso e para o reconhecimento da sade como uma questo de direito e

    cidadania em nosso pas.

    No aspecto concreto da sade feminina, o marco referencial do PAISM rompeu com o

    modelo materno-infantil, que considerava a mulher como produtora e reprodutora de fora de

    trabalho, ou seja, apenas na sua condio de me, nutriz e cuidadora da prole (Souto, 2008,

    p.165) e cujas polticas eram voltadas primordialmente para garantir o bem-estar dos recm-

    nascidos e crianas.

    Outro aspecto relevante pontuado por Souto (2008) a viso historicamente arraigada

    de o corpo feminino ser considerado um lcus privilegiado de instrumentao da mulher, de

    sua submisso e de sua opresso. Desse modo, destaca-se que as as aes em sade da mulher

    tambm esbarram nessa concepo, sendo as intervenes voltadas para esse corpo, muitas

    vezes influenciadas pelo papel de me ou reprodutora que a sociedade de forma hegemnica

    lhe resume. Foi assim, segundo a autora, sob esse olhar que se institucionalizaram os primeiros

    cuidados sade feminina: sade materna e do ciclo gravdico-puerperal, no qual a

    sexualidade da mulher tambm est restrita sua condio de reproduo.

    Ainda na primeira metade da dcada de 1980, constantes debates em instncias sociais

    e polticas de forma crescente contemplando as questes de gnero, resultaram em

  • 30

    modificaes dessa viso limitada (Souto, 2008). Assim, a introduo desse enfoque gnero

    nas anlises sobre a condio da mulher, contribui com uma viso crtica do modo como as

    intervenes sobre seu corpo a preteria e afastava-a de sua condio de cidad. Nesse cenrio

    Souto (2008) destaca a incluso de direitos sexuais e reprodutivos na assistncia integral

    sade da mulher em todos os ciclos de vida. Tambm pontua, tal como Tavares, Andrade e

    Silva (2009), que no incio do sculo XX passou-se a considerar o perfil epidemiolgico das

    mulheres brasileiras, cuja anlise considerou aspectos referentes ao gnero, contemplando

    fatores e causas de adoecimento que ultrapassam a viso reducionista da mulher, o que foi um

    grande avano para tratar os agravos sua sade.

    Em 2004, foi formulada e proposta a Poltica Nacional de Ateno Integral Sade das

    Mulheres, fruto da parceria de diversos departamentos e comisses do Ministrio da Sade,

    alm da equipe tcnica da rea de Sade da Mulher (Tavares, Andrade & Silva, 2009). A

    poltica explicita orientaes para a gesto na rea da sade que contemplem necessidades e

    demandas das mulheres, considerando realidade locais e os determinantes sociais e culturais de

    homens e mulheres (Souto, 2008).

    O documento da poltica (Ministrio da Sade, 2004) apresenta um breve mapeamento

    da sade da mulher no Brasil destacando a alta mortalidade da populao feminina por doenas

    cardiovasculares. Souto (2008) alerta que, apesar desse dado, as principais aes em sade

    concentram-se ainda no aspecto sexual e reprodutivo. Fica evidente que essa poltica consiste

    em mais um passo na perspectiva da abordagem de gnero e da integralidade, entretanto traz

    ainda algumas limitaes. Desse modo, temticas que fazem parte do cotidiano das mulheres,

    no so abordadas com a mesma nfase ou ainda sob a perspectiva de gnero. Por exemplo,

    questes como o crescimento da participao feminina no mercado de trabalho e em espaos

    ditos masculinos; situaes de violncia domstica; ampliao de aes de preveno e

  • 31

    cuidado nos servios de sade, de modo a no investir de modo destoante apenas em

    tratamento e recuperao (Souto, 2008).

    De fato, h ainda, no cenrio atual, muitos desafios de origem muitifacetada e

    desdobramentos complexos que dificultam a efetividade das aes em sade da mulher e

    que suscitam discusses e investimentos multiprofissionais e intersetoriais constantes.

    Tavares, Andrade e Silva (2009) enumeram alguns desses desafios: remunerao menor da

    mo de obra feminina; as mulheres esto concentradas em profisses mais desvalorizadas;

    tm menor acesso aos espaos de deciso no mundo poltico e econmico; sofrem mais

    violncia (domstica, fsica, sexual e emocional); enfrentam dupla e/ ou tripla jornada de

    trabalho; so as mais penalizadas com o sucateamento de servios e polticas sociais.

    Pontuam ainda algumas variveis que agravam a situao de desigualdade das mulheres na

    sociedade: classe social, raa, etnia, idade e orientao sexual.

    Adentrando-se agora sobre aspectos gerais da sade masculina, destaca-se que

    somente na dcada de 1970 se iniciaram os primeiros debates sobre o tema da sade do

    homem no pas (Burille, 2012). Esta autora pondera que os homens permaneceram

    praticamente invisveis para o setor sade por um longo tempo, sendo somente mais

    recentemente contemplados como indivduos que adoecem, tal como mulheres e crianas.

    Apontou ainda a importncia da incorporao de discusses acerca das relaes de gnero

    como determinantes do processo de sade/doena e do reconhecimento da sade como um

    direito dos homens brasileiros, o que culminou no lanamento, em agosto de 2008, da

    Poltica Nacional de Ateno Integral Sade do Homem (Ministrio da Sade, 2008;

    Burille, 2012), cuja instituio consiste em um avano e sua vigncia configura um desafio

    para a sade pblica.

  • 32

    Esta poltica enfatiza que muitos dos agravos sade do homem poderiam ser

    evitados caso utilizassem com regularidade os servios de ateno primria. Vale ressaltar

    que consolidar a procura por aes de promoo e preveno sade do homem configura

    um desafio por requerer, em geral, mudanas comportamentais. Tambm se destaca a

    complexidade da adeso ao tratamento quando so diagnosticadas doenas crnicas ou de

    longa durao. necessrio ponderar que tais circunstncias apresentam mltiplos

    desdobramentos de modo que no observado apenas um aumento da sobrecarga

    financeira da sociedade como tambm, e, sobretudo, a ocorrncia de sofrimento fsico e

    emocional no apenas dos homens, como tambm de suas famlias (Ministrio da Sade,

    2008).

    As razes para a no procura masculina pelos servios de sade foram descritas por

    Burille (2012) como barreiras institucionais e socioculturais. Dentre tais barreiras a autora

    ressaltou a concepo de homem enquanto provedor, que prioriza o sustento da casa

    considerando os cuidados com a prpria sade uma questo secundria; a crena na sua

    invulnerabilidade versus o medo de descobrir fragilidades em sua sade; timidez e

    vergonha de expor o corpo; concepo de que a busca por ajuda colocaria em risco a

    masculinidade e aproximaria os homens das representaes de feminilidade (Burille,

    2012, p.31; Gomes et al., 2007).

    Burille (2012) pontua que a procura por cuidado consiste em uma atitude que no

    parece desmerecer as mulheres, ao contrrio dos homens. Dessa forma, evidencia-se que o

    gnero influencia na conduta e nos hbitos masculinos, produz no somente modos de

    vida, como tambm, modos de adoecer e morrer (Braz, 2005, p.101).

    Com relao s barreiras institucionais, segundo Burille (2012), os servios de

    sade so percebidos em geral como espaos feminilizados, por serem frequentados

  • 33

    principalmente por mulheres e tendo tambm mulheres como a maior parcela de

    trabalhadores desses servios (Gomes et al., 2007). Ao observar os servios oferecidos em

    Unidades Bsicas de Sade, evidencia-se a inexistncia de programas ou atividades

    direcionadas especificamente para a populao masculina (Laurenti et al., 2005;

    Figueiredo, 2005). Tais constataes justificam a sensao de no pertencimento aos

    espaos de sade demonstrada pelos homens. Alm disso, as estratgias de comunicao

    ali estabelecidas privilegiam as aes de sade voltadas tradicionalmente para crianas,

    mulheres e idosos (Ministrio da Sade, 2008).

    Perdura, entretanto, o desafio de transformar as aes propostas nas polticas pblicas

    acima citadas em prticas de sade no cotidiano dos servios e dos processos de trabalho dos

    profissionais de sade comprometidos com a produo de prticas humanizadas e de qualidade

    (Souto, 2008). Tanto as conquistas acumuladas como os desafios que persistem,

    paulatinamente, reafirmam a necessidade de se reconhecer as desigualdades existentes nas

    relaes de gnero e o seu papel diferenciado no processo sade/doena.

    Ao discorrer sobre aspectos que desvelam facetas histricas e ideolgicas referentes

    ao gnero, percebe-se que, muitas vezes, elas podem configurar fortes barreiras no

    processo de adaptao a situaes de adoecimento de homens e mulheres e, por

    conseguinte, em seu cotidiano conjugal e familiar. Adentrando agora especificamente no

    contexto da conjugalidade de pessoas com FM, revisam-se na prxima sesso aspectos do

    adoecimento que ampliam os desafios de seu enfrentamento, bem como seus reflexos na

    dinmica conjugal.

    1.3 Processos de incerteza e impactos na dinmica familiar e conjugal

    Como muitas doenas crnicas, a FM se distingue por incertezas acerca do

    diagnstico, do prognstico e do aparecimento dos sintomas, em sua intensidade e

  • 34

    frequncia (Asbring & Narvanen, 2004). Por ser uma doena de origem no determinada e

    tratamento incerto, a FM pode provocar sentimentos de vulnerabilidade e desamparo

    (Berber, Kupek, & Berber, 2005).

    O conhecimento acerca da doena um elemento destacado na literatura como

    favorecedor de condies necessrias para que o paciente faa escolhas informadas, alm

    de influenciar na interao do paciente com os prestadores de cuidados de sade (Pierce,

    1996). Pesquisas demonstram que a aquisio de conhecimento importante para

    pacientes que tm afeces com trajetrias incertas, por reduzir a ansiedade e favorecer o

    controle da doena (Weingarten et al., 2002; Burckhardt, 2005; Carvalho & Noordhoek,

    2006; Albano et al., 2010).

    Uma vez que a doena crnica geralmente dolorosa e de longo prazo, pode

    resultar em mudanas no cotidiano da pessoa, na famlia e no ambiente domstico

    (Sderberg et al., 2003; Burille, 2012).

    No que se refere ao nvel mais privado, Palmeira (2009) chama a ateno para as

    alteraes nas rotinas de vida da pessoa com uma doena crnica, sendo tambm

    necessrio a ocorrncia de adaptaes no mbito familiar. A autora lembra que a partir do

    diagnstico, no s quem adoeceu, mas tambm a sua famlia e seu grupo social sero

    favorecidos por esclarecimentos e informaes acerca da doena e de suas repercusses.

    Ser necessrio rever rotinas, crenas e comportamentos que habitualmente organizavam a

    famlia, mas que, pela ocorrncia do adoecimento de um de seus membros, tm a sua

    funo questionada frente as mudanas que a doena impe.

    O papel da famlia no acompanhamento a essas pessoas e das reaes de amigos,

    familiares e pessoas do convvio social primordial no enfrentamento desse processo de

    mudanas (Palmeira, 2009). Nesse sentido, que transcende a esfera orgnica, h a

  • 35

    necessidade de abordar esse tema tambm em uma perspectiva social, ou seja, que

    considere quem adoeceu, sua famlia, seu grupo de amigos, na constituio da cronicidade

    de uma doena. Palmeira (2009) afirma que a Psicologia Social tem grande propriedade

    para contribuir com a pesquisa nesse campo, uma vez que dispe de recursos tericos-

    metodolgicos para identificar as repercusses subjetivas que a doena traz para quem

    adoece, compreender os sentidos individuais relacionados ao adoecimento e os articular s

    construes sociais e culturais sobre a doena.

    A caracterstica mais evidente da dor crnica, sintoma marcante da FM, sua

    onipresena, cujas consequncias podem ser devastadoras na vida do doente, acarretando

    desfechos como a interrupo de projetos pessoais e profissionais e, muitas vezes,

    mudanas permanentes nas funes corporais (Fernandes, 2003). Assim, refora-se que o

    enfrentamento/impacto da doena no fica restrito ao indivduo adoecido, e este trabalho

    dar destaque figura do cnjuge no convvio familiar do doente, qual, via de regra, so

    atribudos maior responsabilidade e encargo familiar (Sderberg et al., 2003).

    Saltareli et al. (2008) entrevistaram 30 mulheres com FM, sendo 70,3%

    casadas/amasiadas, 13,3% divorciadas/separadas, 10% solteiras e 3% vivas, visando

    investigar temticas referentes vivncia do processo de adoecimento no contexto

    familiar, social e no relacionamento com os profissionais da sade. A anlise temtica

    revelou que o apoio familiar, de amigos e no trabalho, apresentou-se de maneira bastante

    variada na percepo das pacientes, mostrando, em muitos casos, a existncia de apoio, e,

    em outros, um total descaso, dificultando o manejo. Quanto aos sentimentos na relao

    familiar e na relao conjugal as autoras analisaram que essas expressam o reflexo do

    amparo recebido, variando bastante, de acordo com o tipo de apoio percebido, quando

    percebido.

  • 36

    Ainda explorando os resultados desse estudo ressalta-se que a categoria

    repercusses na qualidade de vida mostrou os prejuzos impostos no mbito familiar (com

    alteraes na dinmica e nas relaes familiares), pessoal (relacionado principalmente a

    dependncia gerada pelas limitaes e mudanas no estado de humor), sociais e de

    trabalho (com diminuio da produtividade e das atividades de lazer) e sexuais

    (interferindo no apetite sexual das pacientes). As autoras enfatizaram ainda que para a

    eficcia do tratamento as intervenes devem envolver a equipe de sade, o paciente e a

    famlia, de modo a favorecer que o fenmeno seja compreendido de maneira completa,

    trazendo a famlia para a realidade da doena, esclarecendo dvidas, fazendo trabalho de

    orientao e busca pela reorganizao e fortalecimento das relaes familiares em funo

    da otimizao no manejo da dor.

    Gianordoli-Nascimento e Trindade (2002), analisando a dinmica das relaes

    conjugais aps ocorrncia de Infarto Agudo do Miocrdio9 em um dos cnjuges,

    identificaram modificaes na dinmica conjugal e familiar em funo do ocorrido. As

    autoras pontuam que quando situaes de crise como essa ocorrem em uma famlia nuclear

    os papis desempenhados por cada um dos familiares so revistos, podendo haver acmulo

    ou alteraes no desempenho das tarefas e dos papis. No entanto, consideram que um

    processo de crise ao acarretar alteraes pessoais e conjugais, pode ou no culminar em

    reaes de adaptao por parte do casal (Gianordoli-Nascimento & Trindade, 2002).

    Vrias podem ser as reaes do cnjuge diante da incapacidade experimentada pelo

    seu parceiro, desde comportamentos de suporte, superproteo ou de desencorajamento

    (Reich et al., 2006). importante ressaltar que comportamentos de apoio por parte de

    9Embora aborde uma condio clnica diferente da estudada nesta pesquisa, considerou-se pertinente citar

    esse trabalho dado sua qualidade metodolgica, bem como os objetivos da investigao guardarem

    similaridade com os desse trabalho ao explorarem as alteraes na dinmica conjugal em funo de um

    processo de adoecimento de um cnjuge.

  • 37

    parceiros de pessoas com FM esto relacionados a uma melhor adaptao do paciente a

    doena e maior satisfao conjugal (Flor, Kerns & Turk, 1987). Sderberg et al. (2003)

    ressalta que o apoio dos familiares, com destaque para os cnjuges, importante fonte de

    suporte social e tambm de empoderamento para o doente crnico. No entanto, Bernard et

    al. (2000), em estudo sobre a influncia da FM na vida conjugal, encontraram que a

    doena acarreta impactos negativos na vida sexual do casal e identificaram ainda a FM

    como um dos principais fatores responsveis pela separao conjugal dos participantes

    divorciados.

    A incerteza acerca da doena e sua evoluo descrita por Reich et al. (2006)

    como um fator perturbador para mulheres com FM e seus respectivos cnjuges, o que afeta

    o relacionamento conjugal. Afirmam que nem o paciente nem seu parceiro entendem, de

    fato, o que est errado, mas ambos tm de se ajustar ao longo do tempo e em diferentes

    circunstncias, o que pode ter efeitos prejudiciais no relacionamento.

    Reich et al. (2006) avaliaram atravs de instrumentos padronizados o papel da

    incerteza acerca da doena em relao a satisfao conjugal em pacientes com FM, tendo

    como grupo controle pacientes com osteoartrose (OA). Pacientes com FM relataram,

    conforme o esperado, um nvel significativamente mais elevado de incerteza sobre a

    doena do que os pacientes com OA. Embora ambos os grupos tenham obtido nveis

    comparveis de sobrecarga do cuidador/parceiro, no grupo com FM a sobrecarga do

    parceiro esteve associada a nveis mais baixos de suporte do companheiro. Observou-se

    nesse estudo que, quanto maior o nvel de incerteza acerca da doena, menor o nvel de

    satisfao com o relacionamento e mais forte a relao com a baixa condio fsica

    agravada pela falta de suporte por parte do parceiro.

  • 38

    Sderberg et al. (2003) entrevistaram cinco maridos de mulheres com FM e

    identificaram os seguintes temas a partir da anlise dos dados: responsabilidade crescente e

    trabalho domstico; ser um defensor e apoiador da esposa; aprendizado sobre como

    reconhecer novas necessidades da mulher; mudana da relao entre os cnjuges; mudana

    no relacionamento com amigos e parentes; aprofundamento da relao com os filhos e falta

    de informao e conhecimento sobre a doena. Os resultados mostraram que essa condio

    clnica das mulheres dos participantes teve um grande impacto na vida dos maridos que

    relataram no ter informao satisfatria sobre a doena (Sderberg et al., 2003).

    Nesse contexto, outro estudo tambm contemplou o cnjuge do doente com FM. A

    pesquisa realizada por Buskila e Neumann (1997) com familiares de mulheres com FM

    encontrou uma prevalncia de 19% de cnjuges que preenchiam critrios diagnsticos de

    FM. E, quando comparados ao grupo controle (homens casados com mulheres sem a

    doena), apresentaram maior nmero de pontos sensveis utilizados no exame fsico para

    diagnosticar a doena, bem como menor limiar de dor. Os autores sinalizaram que as

    dificuldades psicolgicas vivenciadas por alguns pacientes com FM podem afetar o bem-

    estar de seus cnjuges.

    Bigatti e Cronan (2002) estudaram a sade fsica e mental e a prtica de cuidados

    sade de cnjuges de pacientes com FM em comparao com cnjuges de indivduos

    saudveis (CIS). Os cnjuges do grupo FM relataram pior condio de sade e pior estado

    afetivo, com maior pontuao nas variveis depresso, solido, estresse subjetivo do que os

    participantes do CIS, sendo a diferena entre os grupos estatisticamente significativa. Os

    resultados sugerem que a doena crnica em um parceiro pode afetar negativamente a

    sade fsica e mental do outro parceiro. No entanto, no foram encontradas diferenas nos

    custos de cuidados de sade entre grupos, embora estudos revisados pelos autores tenham

  • 39

    apontado que cnjuges de indivduos cronicamente doentes parecem ser uma populao de

    utilizadores de servios de sade em grau mais elevado do que cnjuges de indivduos

    saudveis.

    Desse modo, a literatura tem apontado que o cnjuge pode ser considerado

    importante membro da rede de suporte social de uma pessoa com FM, mas que, no entanto,

    esse processo pode configurar condies de risco e fragilidade tambm para a sua prpria

    sade. Ademais, tem sido descrito que o nvel de conhecimento acerca da doena um

    fator preponderante no dia-a-dia da convivncia com a doena e com o doente. Assim

    sendo, aponta-se a relevncia de explorar o entendimento que pessoas com FM tm acerca

    da doena e tambm investigar o conhecimento que eles avaliam ter sobre seus respectivos

    cnjuges ao buscar compreender a dinmica conjugal de homens e mulheres com FM. Na

    prxima sesso apresenta-se a conjugalidade em sua dimenso histrica e discorre-se

    acerca de como questes referentes ao processo de socializao do masculino e do

    feminino perpassam aspectos de sua configurao.

    1.4 Conjugalidade e a transversalidade das questes de gnero

    Aboim (2006) discute o construto conjugalidade em sua dimenso histrica,

    problematizando as transformaes sociais que constituem palco para a vida das famlias e

    dos indivduos nas sociedades contemporneas. Transformaes essas, lembra a autora,

    que interferem na maneira como os indivduos escolhem um parceiro, casam e tm filhos,

    no modo como organizam o trabalho e o sustento, delineiam expectativas de bem-estar

    amoroso, fazem projetos e constroem uma histria pessoal e familiar num mundo que lhes

    ampliou tanto as possibilidades de ofertas quanto as incertezas que acompanham os

  • 40

    processos de escolha. O casal contemporneo confrontado por duas foras paradoxais, ou

    seja, pelas tenses entre individualidade e conjugalidade (Frez-Carneiro, 1998).

    Aboim (2006) enumera tambm mudanas provocadas pela modernidade nos

    valores dominantes, no estabelecimento da intimidade amorosa, nas relaes de produo,

    na desconstruo e na produo de novas formas de legitimao e regulao social; em

    suma, processos de mudana que produziram um novo lugar para o indivduo na

    configurao da famlia e da sociedade em geral. No entanto, ressalta que a conjugalidade

    permanece, embora com facetas diferenciadas, um lao social fundador e primordial das

    relaes familiares e at das relaes sociais no seu conjunto (Aboim, 2006, p.18).

    Nesse processo de transformao histrica, Aboim (2006) considera que a

    conjugalidade assumiu como vrtice as expectativas afetivas e de felicidade pessoal,

    dissolvendo, mas no eliminando, a fora da concepo de ser uma ferramenta de unidade

    essencial de sobrevivncia econmica e de pertena identitria para a vida e para a morte.

    Pontua ainda que essas no so esferas necessariamente excludentes. Assim, argumenta

    que a conjugalidade se mantm como elemento de destaque na participao da organizao

    social, no que tange tanto reproduo biolgica e social como a construo do lugar dos

    indivduos e das suas relaes com seus grupos de pertena. Tal processo se d num

    contexto de ampliao dos trajetos e das transies possveis entre uma situao conjugal

    e uma no conjugal, bem como abertura do leque de conjugalidades possveis nas

    sociedades contemporneas (Aboim, 2006, p.18).

    Ademais, a atualidade marcada pela pluralidade de arranjos familiares, cujas

    configuraes se encontram, ora arraigadas em modelos de famlia em que predomina a

    diviso tradicional de papis, ora prximos a configuraes em que as mulheres so as

    principais provedoras (Wagner et al., 2005). Martins, Rolke e Trindade (2007) descrevem

  • 41

    ainda uma gradual alterao no sentido da configurao dos papis tornarem-se mais

    igualitrias, seja nas atividades domsticas (Wagner et al., 2005), seja nas relaes afetivas

    (Giddens, 1993). Wagner et al. (2005) ressaltam que tais mudanas nas funes e papis na

    famlia contempornea so fruto de um constante, porm no uniforme, processo de

    transio. Desse modo, mesmo no bojo das mudanas na dinmica das relaes conjugais,

    verifica-se, no raro, que elementos tradicionais ligados ao papel da mulher e do homem

    ainda persistem mesmo que muitas vezes sobre outra roupagem, principalmente ao se

    considerar a coexistncia de discursos e prticas cotidianas contraditrias (Rocha-

    Coutinho, 2000).

    De fato, estudos sobre a distribuio de tarefas e papis conjugais apontaram que os

    maridos, de um modo geral, acreditam que o trabalho domstico , de fato, uma atribuio

    feminina e, identificaram certa tendncia de homens realizarem algumas dessas tarefas de

    maneira circunstancial, a ttulo de ajuda ou cooperao com suas esposas (Bilac, 1991;

    Bruschini & Ricoldi, 2008). No entanto, publicao recente (Bruschini & Ricoldi, 2012)

    revelou que apesar da manuteno de tais tendncias acima descritas e expressas

    claramente na resistncia inicial dos homens participantes dos grupos focais para debater o

    tema os homens descreveram um grau de preocupao e envolvimento considervel com

    o cuidado dos filhos e tambm com a limpeza e a higiene da casa. Muitos deles afirmaram

    que dividem tarefas e que vo fazendo sempre que necessrio e at se preocupam que

    os filhos aprendam essas tarefas. Essa pesquisa mostrou que a participao dos homens nas

    atividades domsticas relevante e deveria ser melhor investigada, ainda que os resultados

    tenham mostrado diferenas expressivas no grau de participao, sendo o percentual

    masculino de participao nas tarefas de 45 a 50% e o feminino de 90% (Bruschini &

    Ricoldi, 2012).

  • 42

    Bruschini & Ricoldi (2012) e Jablonski (1999) descrevem o auxlio masculino em

    tarefas referentes aos cuidados domsticos como perifrico e no obrigatrio. Os autores

    destacam que a mudana na tradicional diviso de papis coloca em risco a identidade

    masculina, que continua sendo reafirmada por esteretipos fortemente arraigados em um

    processo histrico e social. Os autores afirmam que os homens tm reagido de maneira

    curiosa para resguardar sua identidade: consentem a necessidade de adequao no campo

    das atitudes mas pouco mudam no comportamento, o que provoca uma iluso de

    renovao, na medida em que passam a ajudar nas tarefas domsticas. Isso porque ajudar

    para Bruschini e Ricoldi (2012) significa que mesmo quando o homem se dispe a

    contribuir na realizao de tais tarefas, no fundo, considera que essas so de

    responsabilidade da mulher.

    Gianordoli-Nascimento e Trindade (2002) esclarecem que o homem cresce

    tendendo a nortear seu comportamento basicamente para responder a estmulos externos,

    como na realizao de tarefas e aes, levando-o ao afastamento de suas vivncias e

    necessidades afetivas. As autoras complementam tal discusso acerca de nuances

    referentes ao processo de socializao do masculino citando o livro Um homem de

    verdade de Nolasco (1997, citado por Gianordoli-Nascimento & Trindade, 2002). Esse

    autor afirma que o homem cresce aprendendo a polarizar o projeto profissional e a sua vida

    afetiva e pessoal, de modo que no lhe socialmente permitido a expresso de sentimentos

    e inseguranas. Tais sentimentos, se demonstrados por mulheres, no as deprecia, mas ao

    contrrio, tendem a desqualificar o homem e podem comprometer seu autoconceito.

    Assim, a noo de intimidade no pertence socializao masculina (Gianordoli-

    Nascimento e Trindade, 2002, p.112).

  • 43

    Ressalta-se que as concepes tradicionais de tarefas referentes ao homem e a

    mulher, apesar de serem cada vez mais relativizadas num processo histrico de mudanas,

    ainda representam um desafio no sentido de transpor tradies fortemente patriarcais e

    podem gerar processos de conflitos e/ou rupturas para casais que, por questes de

    adoecimento de um dos cnjuges, precisam reorganizar as tarefas. Tal constatao aponta

    para a relevncia investigaes a respeito dessa questo, para contempl-la com

    efetividade crescente na assistncia que se presta ao doente, de forma que as intervenes

    abranjam tambm seu cotidiano familiar.

    Este trabalho, alm de investigar de que forma a FM interfere na dinmica conjugal

    tendo como importante parmetro de anlise as questes referentes ao gnero, tambm

    pauta-se no referencial terico da Teoria das Representaes Sociais, que ser apresentada

    a seguir em seus aspectos gerais e articulada com a proposta desse estudo. A sade e a

    doena, sendo objeto de conversaes rotineiras, apresentada em diversos contextos

    miditicos, foco de pesquisas e pauta de debates polticos rene um complexo de

    fenmenos biolgicos individuais, vivenciados e interpretados em um modelo de refernca

    cultural, , portanto, objeto de representaes sociais (Almeida & Santos, 2011).

    1.5 Teoria das Representaes Sociais e questo de pesquisa

    A Teoria das Representaes Sociais (TRS) foi inicialmente proposta pelo

    psiclogo social Serge Moscovici na segunda metade do sculo XX e consiste em uma

    abordagem psicossociolgica sobre o processo de construo do pensamento social

    (Chaves & Silva, 2011). A definio classicamente eleita entre os estudiosos do campo das

    representaes sociais a de Denise Jodelet, que as conceitua como uma forma de

    conhecimento socialmente elaborado e compartilhado, com um objetivo prtico, e que

  • 44

    contribui para a construo de uma realidade comum a um conjunto social (Jodelet, 2002,

    p.22). A TRS tem como princpio a diversidade dos indivduos, atitudes e fenmenos, em

    toda sua estranheza e imprevisibilidade. Seu objetivo descobrir como os indivduos e

    grupos podem construir um mundo estvel, previsvel, a partir de tal diversidade

    (Moscovici, 2003, p.79).

    As Representaes Sociais (RS) so definidas como teorias sobre saberes do senso

    comum, elaboradas e partilhadas coletivamente, compondo o dinmico processo de

    interpretao e construo das realidades sociais (Moscovici, 2003; Chaves & Silva, 2011;

    Oliveira & Werba, 2011). Seu estudo possibilita depreender elementos tangentes viso

    de mundo de pessoas ou grupos, entendidos como norteadores de suas formas de agir e se

    posicionar, e sua premissa pauta-se no entendimento das RS como produto e processo de

    uma atividade de apropriao do mundo social pelo pensamento e da elaborao

    psicolgica e social da realidade (Chaves & Silv