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Com as obras da Exposição Dante em Dalí: Realidade Onírica Edição Especial 750 anos de Dante Alighieri COLÉGIO DANTE ALIGHIERI Novembro 2015 Ano 3 - Nº 03

dante em dalí

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Créditos Capa: Salvador Dalí - Canto I / “Inferno” - “A Divina Comédia” Contracapa: Salvador Dalí - Canto XXXIII / “Paraíso” - “A Divina Comédia” Obras da Linha do Tempo: Reprodução Coleção “Gênios da Pintura” - Editora Abril Cultural

Canto I / “Inferno” Canto XXXIII / “Paraíso”

Com as obras da Exposição Dante em Dalí: Realidade Onírica

Edição Especial750 anos de Dante Alighieri

COLÉGIO DANTE ALIGHIERINovembro 2015Ano 3 - Nº 03

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“A Virgem com São Francisco, Anjos e Santos”Artista: Cimabue (1240-1302)

“Madona de Loreto”Artista: Michelangelo Merisi da Caravaggio

(1571-1610)

“São José Carpinteiro”Artista: Georges de La Tour (1593-1652)

"A estigmatização de São Francisco de Assis"Artista: Giotto di Bondone (1266-1337)

“O Jardim das Delícias” – detalhe do painel centralArtista: Hieronymus Bosch (1450-1516)

“A Leiteira”Artista: Johannes Vermeer (1632-1675)

“São Bento em Penitência”Artista: Pisanelo (1395-1455)

“Figuras junto ao Balaústre”Artista: Giambattista Tiepolo (1696-1770)

“A Barca de Dante”Artista: Eugène Delacroix (1798-1868)

“O Milagre da Hóstia”Artista: Paulo Uccello (1397-1475)

“O Sonho de Ossian”Artista: Jean-Auguste Dominique Ingres (1770-1867)

“Distribuição de Esmolas por São Pedro e História de Ananias” - detalhe

Artista: Massaccio (1401-1429)

“Pierrô Cantor”Artista: Honoré Daumier (1808-1879)

“Flora”, detalhe da pintura “A Primavera”, de BoticcelliArtista: Sandro Boticcelli (1445-1510)

“A primeira refeição”Artista: Camile Pissarro (1830-1903)

“Retrato de Ginevra Benci”Artista: Leonardo Da Vinci (1452-1519)

“Composição com três �guras”Artista: Fernand Léger (1881-1955)

“Judite com a Cabeça de Holofernes”Artista: Lucas Cranach (1472-1553)

“O homem com o copo de vinho”Artista: Amedeo Modigliani (1884-1920)

“O café da manhã”Artista: Paul Signac (1863-1935)

“Élan Tempéré”Artista: Wassily Kandinsky (1866-1944)

“A conversão de São Paulo”Artista: Michelangelo Buonarotti (1475-1564)

“Figuras na praia”Artista: Pablo Picasso (1881-1973)

"O nascimento dos desejos líquidos"Salvador Dalí (1904-1989)

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EDITORIAL

A presente edição especial da revista InArte, comemorativa dos 750 anos do nascimento de Dante Alighieri, reveste-se de importância ímpar. Não somente por seu contexto his-tórico e artístico, mas também por ser um marco em suas características construtivas.

Uma equipe multidisciplinar de notáveis se uniu: artistas plásticos, literatos, pesquisadores, historiadores, conserva-dores, jornalistas, fotógrafos, entre outros, se debruçaram sobre um tema “dantesco” com afinco, dedicação e simbio-ticamente, a fim de obter um magnífico resultado colorido e sonoro.

Criou-se, assim, um concerto sinfônico, no qual as partitu-ras foram ensaiadas individualmente, por vezes à distância, e nesta oportunidade se apresenta numa única performance, executando a “Ode à Alegria”, de Ludwig Van Beethoven. Esse desempenho também será eternizado por “tipos” de impressão, registros indeléveis que herdamos de Guten-berg, hoje digitalizados.

Tenho muito orgulho em fazer parte desse grupo que con-duzirá os leitores a palmilhar segredos templários, mitos e verdades dos tempos medievais do “Sommo Poeta“, a en-tender sua importância para o idioma italiano e para a cultura universal, de forma cronológica, e a aportar, sete séculos mais tarde, nos tempos das inquietantes interpretações pictóricas de Salvador Dalí, também gravadas em papel, sobre a mais importante obra de Dante Alighieri: “A Divina Comédia”.

As ilustrações reproduzidas nesta edição da revista InArte descortinam as visões surrealistas de Dalí sobre o imaginá-rio poeticamente criado por Dante Alighieri. O acervo desta obra de Salvador Dalí poderá ser apreciado na exposição promovida pelo Colégio Dante Alighieri, nas dependências do edifício Leonardo da Vinci, até 8 de dezembro de 2015.

Vale aqui enaltecer a vocação divulgadora da arte do Cen-tro Cultural Acervo Antônio Ibaixe ao ceder sua coleção especialmente para realizarmos esta mostra.

Bem-vindos a este fugaz, mas também perene momento de celebração do nascimento do poeta, político e guerreiro Dante Alighieri, patrono de nosso Colégio.

Claudio Antonio Callia

Ensaio à Plenitude Cultural

Editor da revista InArte, em visita ao Espaço Cultural Acervo Antônio Ibaixe, em São Carlos-SP,

em abril de 2015

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SUMÁRIO

06As “Luzes” da Idade Médiapor Adriano Colangelo

44Uma disputa bem florentina: o confronto linguístico entre Dan-te e Maquiavel no “Dialogo intorno alla nostra lingua”por Maria Cecilia Casini

66Ficha técnica da exposição “Dante em Dalí: Realidade Onírica”

68“Dante em Dalí: Realidade Onírica”por Olívio Guedes (Curador)

60Intersecções Dante–Dalípor Gustavo Antonio

36Autor ou autoridade: Dante e a narrativa como superaçãopor Doris Nátia Cavallari

14Il Sommo Poetapor Claudio Callia

22Dante Alighieri: obra-vidapor Eduardo Sterzi

PresidenteJosé Luiz Farina

Diretora-Geral PedagógicaSilvana Leporace

Conselho EditorialJosé Luiz Farina, Fernando Homem de Montes, Claudio Callia e Gustavo Antonio

Jornalista responsávelFernando Homem de MontesMTb 34598

EditorClaudio Callia

Editor-assistente: Gustavo Antonio

RevisãoLuiz Eduardo Vicentin

ColaboradoresMaria Cecilia Casini, Doris Cavallari, Eduardo Sterzi, Adriano Colangelo, Elizabeth Kajiya, Olívio Guedes

Apoio CulturalSr. Diogo IbaixePrefeitura de São Carlos-SP

Agradecimentos: Prefeito Paulo Altomani, Roberto Mori, Hilário Domingos Neto, Márcia Casaburi, Diogo Ibaixe, Departamento de Audiovisual do Colégio Dante Alighieri

HomenageadoLover Ibaixe (in memoriam)

Projeto Gráfico, Arte e DiagramaçãoGrappa Marketing Editorialwww.grappa.com.br

[email protected]@gmail.com

Colégio Dante AlighieriAlameda Jaú, 1601 CEP 01420-001 | SPwww.colegiodante.com.br

52O DNA de uma obra de arte

114Purgatório

CATÁLOGO DA EXPOSIÇÃO“Dante em Dalí: Realidade Onírica”

78Inferno

150Paraíso

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Trovadores, menestréis e saltimbancos (artistas que realizavam números de teatro, malabarismos, musicais etc.) se apresentavam em aldeias e cidades da Itália

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Colégio Dante Alighieri | Novembro 2015 | InArte

A Idade Média costuma ser co-nhecida como um período obscuro para os estudiosos, para as ar tes e para a cultura em geral. Não à toa, durante muito tempo foi chamada por alguns de “Idade das Trevas”. Entretanto, justiça seja feita, tal época da humanidade apresenta diversos aspectos posi-tivos, que inclusive já delineavam o caminho para o humanismo visto no Renascimento. São deles que pretendemos tratar no presente texto por meio da breve citação de algumas de suas facetas.

É digno de nota o fato de certos ambientes medievais possuírem “células” para desenvolver um ce-nário cultural. Saltimbancos (ar tistas itinerantes que se apresentavam nas mais diversas localidades, com números de teatro, malabarismos,

músicas etc.) e monges amanuen-ses (que viviam nos mosteiros e abadias e colocaram em manus-critos o legado cultural e f ilosó-f ico de civilizações como a grega e a romana) fomentavam o lado ar tístico e criativo do período – ainda que tal conhecimento não fosse difundido entre a população. Vale ressaltar também que, em determinadas aldeias e cidades da Itália, circulavam trovadores e menestréis, cujos cantos e músicas representaram, sem dúvida, os primeiros exemplos da criação instrumental.

Como é sabido, a Igreja possuía grande poder na referida época. E, mesmo que se ressalte a já citada negativa concentração do saber por parte de seus dirigentes – o que, efetivamente, se tornava

As “Luzes” da Idade Média

por Adriano Colangelo*

“Flautista”, pirogravura do artista Adriano Colangelo, autor do presente texto

As “Luzes” dA IdAde MédIA

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uma forma de dominação sobre a população iletrada –, a instituição também apresentava importantes talentos artísticos. A monja alemã, teóloga e poetisa, entre outras atri-buições, Hildegard Von Bingen, que viveu entre 1098 e 1179, destacou--se na música com obras como o auto sacro “Ordo Virtutum” e a “Symphonia Armonie Celestium Revelationum”, uma coletânea de cantos e invocações mântricas para uso litúrgico e semilitúrgico.

Um dos aspectos mais interes-santes sobre Hildegard é que ela conquistou um papel relevante na música e também em assuntos teológicos e científ icos (pesquisava ervas medicinais, por exemplo) em uma época em que as mulheres sofriam forte preconceito e eram relegadas a uma posição subalterna. Ganha ainda mais destaque o feito de Hildegard se considerarmos que ela alcançou esse respeito dentro da Igreja Católica, instituição mais poderosa e conservadora da época.

Há de se destacar que as cate-drais góticas, par ticularmente as francesas e as alemãs, eram excep-cionais monumentos de ar te. Sua arquitetura, seus vitrais coloridos e suas esculturas continham notável signif icado simbólico, conf igurando, cer tamente, o cenário ideal para a monja mística Hildegard desen-volver, não somente sua profunda

devoção, mas também sua vocação musical. Essa produção poético--musical foi inspirada, segundo ela, durante suas “visões místicas”. Ela talvez seja a primeira compositora feminina de música vocal – daí o fato de se constituir numa das esplendorosas luzes medievais, ao lado de Dante Alighieri e outros.

Neste ponto cabe apontar uma de suas obras em especial: o auto musicado “Ordo Virtutum”, que com-partilha de certa temática semelhante à que será trabalhada por Dante em “A Divina Comédia”. Nesse auto, Hildegard dramatiza musicalmente a busca pela redenção de uma alma. Os personagens principais são a Alma, o Demônio e as personificações das várias Virtudes, que concorrem para o resgate da alma caída. O texto tem uma função de redenção e, ao seu final, a Alma redimida é levada para o céu, enquanto que as Virtudes, lideradas pela Humildade, acorrentam o Demônio, o que condiz com os princípios da igreja medieval.

Ora, em sua obra máxima, Dante Alighieri trata, de certa forma, do resgate de uma alma, de sua volta ao “Allá diritta via”, isto é, ao “caminho certo”, no contexto dos valores, segundo ele, verda-deiramente caros a Deus. E ao mostrar essa trajetória, busca levar todos os homens a ref letir e a seguir esse rumo. Tem, enf im, o

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Hildegard Von Bingen

propósito elevado de “salvação da alma” parecido com o que Hildegard abordou.

A atitude da monja alemã de repulsa à corrupção e ao jogo de interesses internos da Igreja Católica é um sinal da contes-tação que o poder e o modus

operandi dessa instituição passam a sofrer no f im da Idade Média. Na Itália, as igrejas românicas prezavam pela não verticalidade – ao contrário de lugares como a França, por exemplo. Ou seja, os italianos não olhavam para cima para louvar. Olhavam para seus iguais. Era o pensamento de que

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“Deus está entre nós”. Podemos citar as pregações profundamente humanísticas de São Francisco de Assis, as esculturas de Andrea e Giovanni Pisano e, f inalmente, os serenos e profundamente humanos afrescos de Giotto di Bondone.

Tal ideia de Deus no mesmo nível de suas criaturas gera uma verdadeira revolução cultural. Assim, é justamente na Itália que viverá e professará sua obra Francisco de Assis (1182-1226), o qual se contrapunha a todo luxo e osten-tação dos altos cleros da Igreja, pregando o desapego, a caridade e o amor ao próximo.

Para Francisco de Assis, Deus está em tudo, inclusive, no próximo. Isso transforma todos os seres, em comunhão com a natureza, em irmãos. A visão mais positiva do homem e de sua relação com Deus – não mais calcada no medo, na subjugação e na opressão, mas sim na ideia de amor, de frater-

nidade, de comunhão da vida –, de certa forma, abre o caminho para o período humanista.

Não causa estranhamento, por-tanto, que, com o tempo, artistas de renome em sua época tenham passado a apresentar uma produção inspirada pelas ideias de simplicidade, humildade e igualdade propagadas por Francisco de Assis. Giotto di Bondone (1266-1337) potencializou essa iniciativa ao máximo ao pintar santos como seres humanos de apa-rência comum. Nessa mesma linha, o pintor substituiu o fundo dourado (comum na arte bizantina e medieval em geral) das obras artísticas por imagens da natureza e do cotidiano.

Aliás, ao se falar de Giotto, cabe apontar também o seu professor, Giovani Gualteri, mais conhecido pela alcunha de Cimabue (1240-1302), a quem se atribui a autoria de uma das imagens mais famosas de Francisco – “A Virgem com São Francisco, Anjos e Santos”. Esse

afresco encontra-se na basí lica de São Francisco de Assis, também ilustre por conter diversas pinturas de Giotto retratando passagens da vida do santo de Assis. Todavia, enquanto os afrescos de Cimabue ainda estavam presos ao estilo bizantino, as pinturas de Giotto já prezavam pelas inovações que caracterizavam seu estilo.

Contemporâneo de Cimabue e de Giotto, Dante Alighieri também exaltou Francisco de Assis. E o fez no canto XI do “Paraíso” de “A Divina Comédia”. Nesse trecho, o personagem de Santo Tomás de Aquino faz um breve relato da história de São Francisco ao poeta.

“A estigmatização de São Francisco de Assis (Detalhe)”, obra de Giotto di Bondone

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“Di questa costa, là dov’ella frange più sua rattezza, nacque al mondo un sole, come fa questo tal volta di GangePerò chi d’esso loco fa parole, Non dica Ascesi, ché direbbe corto, ma Oriente, se proprio dir vuole”.

Em Português:

“Onde o declive menos agro desceNasceu ao mundo um sol tão luminoso, Como o que ao Gange às vezes esclarece.Desse lugar quem fale portentosoNão diga Assis, que pouco declarará,Chame Oriente o berço glorioso”.

Com os versos acima, descreve--se o nascimento de Francisco de Assis. Ao longo do canto, Dante chega a escrever que a Igreja f icou mais de onze séculos “viúva e des-prezada” desde a morte de Jesus até o surgimento de Francisco.

Mestres de Dante

A partir dos séculos XI e XII, começa a ocorrer uma abertura e um maior acesso ao conhecimento: este deixa de estar restrito aos ambientes internos da Igreja Católica e chega aos centros urbanos. Há também a expansão do modelo de universidade, o que fomentará o pensamento f ilosóf ico.

A própria cidade de Florença – onde nascerá Dante – representa a ascensão de uma cultura urbana que desaf ia o domínio cultural da Igreja Católica.

É justamente nesse cenário que

surgiram pensadores com caracte-rísticas já próximas das que viriam a ser propostas pelo humanismo. Alguns desses intelectuais tiveram papel fundamental na formação de Dante. Brunetto Latini (1220-1294), por exemplo, exerceu profunda inf luência sobre o futuro autor de “A Divina Comédia”, uma vez que foi seu professor de retórica (outros dizem que ele teria sido um tutor de Dante após a morte do pai deste).

O f ilósofo Latini, nascido em uma família nobre, teve destacado papel na política de Florença, alcançando sucesso também como escritor: exilado na França justamente por questões políticas, desenvolveu a

enciclopédia “Li livres dou Trésor” em língua vulgar francesa. Também escreveu o “Tesoretto”, considerado por muitos como um precursor direto de “A Divina Comédia”.

Apesar de haver colocado Bru-netto Latini no “Inferno” em “A Divina Comédia” – teoricamente pela prática de sodomia (Canto XV) –, o poeta trata seu mestre com grande respeito e afeto. Por toda essa contradição, até hoje o episódio é objeto de diversas interpretações por parte de es-pecialistas na obra.

Por coincidência, Dante também teve um episódio de conf lito com outra de suas principais inf luências: Guido Cavalcanti (1255-1300), gran-de amigo do autor de “A Divina Comédia”. Cavalcanti foi um dos maiores nomes do “doce estilo novo” (dolce stil novo), movimen-to poético conhecido por exaltar uma concepção espiritualizada do amor. Essa escola trouxe inova-ções para a poesia e para a língua italiana e teve Dante como um de seus seguidores (ainda no início da trajetória literária do escritor).

Ocorre que Guido Cavalcanti era for temente envolvido com a política de Florença. E por sua atuação nos conf litos entre as facções guelfas Neri e Bianchi, aca-bou sendo exilado de Florença

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Guido Cavalcanti, melhor amigo e um dos mestres de Dante

Crédito: Wikimedia Commonsjustamente por Dante, então um dos priores (governantes) da ci-dade, com o objetivo de manter a paz no local. Ainda assim, cabe ressaltar que a obra de Guido permaneceu relevante para bem mais além de sua época, inf luen-ciando até mesmo o famoso po-eta nor te-americano Ezra Pound (1885-1972).

De todo o exposto, podemos ver, desde o fim da Idade Média, o de-senvolvimento de um caminhar rumo a uma cultura humanista – que se concretizará efetivamente no Renas-cimento –, valorizando o ser huma-no, sua dignidade, suas aspirações e tratando de seus dilemas, como tão bem fez Dante em sua obra máxima, “A Divina Comédia”.

*Adriano Colangelo é ar tista plástico, ensaísta, conferencista, escritor, curador, pesquisador e estudioso da obra ar tística de Leonardo da Vinci

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IL SOMMO

“Talvez não haja poeta, em todo o mundo e em todos os tem-pos, para cuja compreensão seja tão indispensável o conhecimento da história em geral, sobretudo da história da Itália e de Florença, sua pátria e cidade natal, como Dante Alighieri. Quem f izesse, se fosse possível, curiosa experiência de pôr “A Divina Comédia” nas mãos de um homem culto em todos os ramos do conhecimento humano, excluída a História, esse leitor, chegado ao f im do divino poema, deveria confessar cândida e sinceramente nada, ou quase nada, ter compreendido. Isto pelo fato de a obra de Dante ser, sem dúvida, a mais perfeita das enciclopédias, tão frequentes e tão do gosto daquela época. Justamente, portanto, o autor, abrindo o Canto XXV do Paraíso, dizia que no seu poema haviam colabora-do o céu e a terra.

“Al quale ha posto mano e cielo e terra.”

Por esse motivo, considero indispensável iniciar os estudos sobre Dante e sua obra com um quadro geral das condições históricas

em que o poeta viveu e escreveu o seu poema imortal”.

(Dr. Antonio Piccarolo)Professor Emérito da Escola Livre de Sociologia e Política

por Claudio Callia*

POETA

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As células da península italiana, naqueles dantescos tempos, eram as cidades – urbes. A Itália, en-quanto Estado, não existia. Havia, sim, Veneza, Ravena, Siena e muitas outras, cada qual com sua cultura e seu governo. Outrora, a expansão da urbe Roma originou o Império Romano, que nunca foi chamado de Império Italiano. A unificação demoraria; a queda do Império fez a península voltar ao seu rendilhado de cidades-estado com um ingre-diente novo, a Igreja.

Dante Alighieri nasceu na aris-tocracia de uma dessas cidades, Florença, em 1265. A data precisa de seu nascimento é desconhecida, mas pode ser deduzida através de alusões autobiográficas constantes em “A Divina Comédia”, onde o poeta afirma ter nascido sob o signo de gêmeos; portanto, entre fins de maio e meados de junho. Outra curiosidade sobre o poeta é o fato de seu nome – segundo testemunho do filho Jacopo Alighieri – ser uma abreviação de seu nome real: Durante. Já seu sobrenome, que apresentou pequenas variações no decorrer da história, afirmou-se “Alighieri” com o advento de Boccaccio.

Dante f icou órfão de mãe, Bella degli Abati, aos cinco anos, e, pouco tempo depois, seu pai, Alighiero di Bellincione, se uniu à viúva Lapa di Chiarissimo Cialuff i, com quem

teve mais dois f ilhos, Francesco e Gaetana.

Quando completou nove anos de idade, conheceu Beatrice de Folco Portinari (Beatriz), que tinha a mes-ma idade de Dante. Mas, mesmo sendo tão jovem, tornou-se a musa que inspirou o poeta ao longo de toda sua vida e obra. Tornou a encontrá-la aos 18 anos, ocasião em que escreveu o primeiro de seus famosos sonetos de amor. Nesse mesmo ano, teve de suportar a dor pelo falecimento de seu pai.

Apesar dos sentimentos que cultivava pela jovem Beatriz, Dante precisou cumprir as exigências familiares que lhe impuseram o casamento com Gemma Donati, com quem teve pelo menos três filhos. Naquela época, era comum firmar alianças políticas entre famílias através do casamento de seus herdeiros, e Dante, com apenas 12 anos de idade, já enten-dera quais seriam as suas obrigações.

Em 1287, Beatriz casou-se com o banqueiro Simone dei Bardi. Entre-tanto, tal fato não mudou em nada a adoração de Dante por ela. Por conta dessa devoção idealizada, alguns especialistas dizem que o sentimen-to do poeta pela musa inspiradora iniciou a moda do “amor romântico” em italiano. Três anos mais tarde, Beatriz faleceu de repente, o que deixou Dante em profunda tristeza.

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Florença

À época de Dante, Florença constituía uma das cidades mais ricas e prósperas da Europa. No início do século XIV, exatamente no apogeu político de Dante, ela estava no auge de sua grandeza. Sua riqueza e poder eram ates-tadas pela tríplice muralha de pedra que a defendia. Havia lá, então, 110 igrejas e 30 hospitais. Duzentas oficinas de tecelagem rendiam cerca de 1 milhão e 200 mil florins de ouro por ano. E o florim era a moeda de melhor curso na Europa daquele tempo. Funcionavam na cidade 80 ban-cos, e 30 mil tecelões constitu-íam sua força de trabalho mais importante

A população de idade escolar girava em torno de 10 mil crian-ças, todas alfabetizadas, o que, diga-se de passagem, desmonta a lenda do analfabetismo medieval. Aliás, como poderia uma épo-ca analfabeta ter produzido um Dante e “A Divina Comédia”?

O processo de desenvolvi-mento urbano, retardado em toda a Europa feudal, se deu em primeiro lugar na Itália graças à relativa proteção contra as inva-sões bárbaras do século X, pro-porcionada pelos Alpes, como também à existência de uma au-

toridade inconteste – a do papa –, que impediu a desagregação política quase total, ocorrida no resto do continente.

Ao mesmo tempo, a inexis-tência de um soberano tempo-ral poderoso e ambicioso per-mitiu a formação de inúmeros pequenos Estados e de cidades autônomas ou livres.

A paz relativa existente na península italiana, assim como sua situação geográf ica inter-média com relação ao Oriente, facilitou o desenvolvimento do comércio nas cidades italianas, que, em geral, se tornaram pe-quenas repúblicas.

É próprio dos governos repu-blicanos a formação de partidos.

A moeda florentina, o florim, criada em 1252, era a de melhor curso na Europa naquele tempo.

No canto XXX do “Inferno”, de “A Divina Comédia”, Dante

coloca o Mestre Adamo no Inferno por este ser um

falsificador desta moedaCrédito: Wikimedia Commons

Se os partidos trazem necessa-riamente divisões, nas apaixona-das repúblicas italianas do sécu-lo XIII e XIV, a política par tidária causou profundos ódios e san-grentos antagonismos.

No século XIII, Florença foi uma república dilacerada por fe-rozes lutas par tidárias. Disputa-vam o poder na cidade do Arno os guelfos e os gibelinos.

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Mapa da Itália na época de Dante.

Crédito: Retirado do livro “A divina comédia: Inferno” / Dante Alighieri. Versão em prosa, notas, ilustrações e introdução por Helder L. S. da Rocha. Ilustrações de

Gustave Doré, Sandro Botticelli e William Blake. – São Paulo, 1999

A política florentina nos séculos XIII e XIV e o exílio de Dante Alighieri

A Itália no tempo de Dante esta-va dividida entre o poder do papa e o poder do Sagrado Império Ro-mano. O norte era predominante-mente alinhado com o imperador (que podia ser alemão ou italiano), e o centro, com o papa.

Helder Rocha, na Introdução de sua tradução do “Inferno”1, aponta

que a política nas cidades, na épo-ca, representava os interesses de famílias. A afiliação era hereditária. Assim, a família de Dante perten-cia a uma facção política conhecida como os guelfos – representados pela baixa nobreza e pelo clero – que fazia oposição a um partido conhecido como os gibelinos – re-presentantes da alta nobreza e do poder imperial.

Na época do nascimento de Dante, eram os gibelinos que go-

1A divina comédia: inferno / Dante Alighieri. Versão em prosa, notas, ilustrações e introdução por Helder L. S. da Rocha. Ilustrações de Gustave Doré, Sandro Botticelli e William Blake. – São Paulo, 1999.

vernavam Florença. Somente em 1289, contando com a participação do poeta no campo da batalha de Campaldino, os guelfos retomaram o poder.

Florença, que desde o início de-clarara-se favorável à parte ponti-fícia no conflito entre o papa e o Sagrado Império Romano (que lu-tavam pelo poder na Itália), ou seja, declarava-se guelfa, nunca chegou, contudo, a se colocar em franca oposição ao Império, com o qual, mais de uma vez, quando os seus interesses lhe convinham, mar-chou em pleno acordo – como, por exemplo, na aliança com Pisa, abertamente imperial, que lhe pro-porcionava as vantagens próprias de um ativíssimo porto marítimo, qual era o porto pisano nos sécu-los XI e XII.

Em virtude dessa política du-rante a luta pela sucessão de poder, apoiando-se ora no Pa-

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Batistério de São João, em Florença, onde Dante foi batizado

Crédito: Reprodução

tes eleitos de corporações que pertenciam às chamadas guildas: associações de artesãos de um mesmo ramo ou atividade pro-fissional que procuravam garantir os interesses de sua classe. Para que os cidadãos florentinos pu-dessem participar da vida públi-ca, era obrigatória sua inscrição junto a uma das 21 artes que compunham as guildas. Essas or-

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pado, ora no Império, Florença conseguiu ampliar seus domí-nios na Toscana, submetendo ao seu poder numerosas terras, subtraindo-se ao predomínio e à prepotência dos feudatários.

O escritor Helder Rocha tam-bém pontua que, na época de Dante, o governo da cidade era exercido por representan-

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ganizações, divididas em 7 artes maiores, 5 médias e 9 menores, controlavam as artes e os ofícios em Florença, fiscalizavam rigoro-samente a qualidade de manufa-tura de seus produtos e exerciam poderosa influência política.

Dante se inscreveu na guilda dos médicos e farmacêuticos, que era a sexta entre as chamadas artes maiores. Sua atuação na vida públi-ca foi destacada e turbulenta. Con-forme diz Boccaccio, em Florença não se tomava nenhuma delibera-ção sem que ele desse a sua opi-nião. Várias vezes foi embaixador da República, pertenceu um par de vezes ao Conselho de Estado e, fi-nalmente, em 1300, obteve o cargo de “priore” (presidente) do Conse-lho da Cidade, que era a suprema magistratura política de Florença.

Até então, a maior parte do po-der em Florença estava nas mãos dos guelfos – opositores do poder imperial. Mas o partido em pouco tempo se dividiu em duas facções: os guelfos negros e guelfos brancos.

Depois de criadas, as facções as-sumiram novas posições políticas em Florença, conforme assinala Helder Rocha:

• Os guelfos brancos - modera-dos, respeitavam o papado, mas se opunham à sua interferência na

TERZA RIMA

A “terza rima”, também conhecida como “rima dantesca”, é uma estrutura métrica criada por Dante Alighieri na época em que o grande poeta escreveu sua obra-prima: “A Divina

Comédia”. Escrita em italiano, a obra constitui um poema narrativo de impressionante sime-tria matemática baseada no número três. Como aponta Helder Rocha, utiliza uma técnica

original, na qual as estrofes de dez sílabas, com três linhas cada, rimam da forma ABA, BCB, CDC, DED, EFE etc. Ou seja, a linha central de cada terceto controla as duas linhas marginais

do terceto seguinte.

Como exemplo, citamos as primeiras estrofes do “Inferno”:

1 Nel mezzo del cammin di nostra vita A 2 mi ritrovai per una selva oscura B 3 ché la diritta via era smarrita. A

4 Ahi quanto a dir qual era è cosa dura B 5 esta selva selvaggia e aspra e forte C 6 che nel pensier rinova la paura! B

7 Tant'è amara che poco è più morte; C 8 ma per trattar del ben ch'i' vi trovai, D 9 dirò de l'altre cose ch'i' v'ho scorte. C

10 Io non so ben ridir com'i' v'intrai, D 11 tant'era pien di sonno a quel punto E

12 che la verace via abbandonai. D

Ao fazer com que cada terceto antecipe o som que irá ecoar duas vezes no terceto seguinte, a terza rima dá uma impressão de movimento ao poema. É como se ele iniciasse um processo que não poderia mais parar. Para ilustrar tal efeito dinâmico, apresentamos o

desenho abaixo, retirado do livro “Le Ton Beau de Marot”, de Douglas Hofstadter.

Alguns estudiosos acreditam que a Terza Rima foi desenvolvida a partir dos tercetos en-contrados nos versos de trovadores provençais, muito admirados por Dante, e que o padrão de três linhas, provavelmente, simbolize a Santíssima Trindade. Outros poetas italianos, como Boccaccio e Petrarca, entusiasmados com o advento do novo esquema de encadeamento de

rimas criado por Dante, passaram a utilizá-lo em algumas de suas obras.

Em uma visão formal mais ampla, aponte-se que os três livros que formam “A Divina Comédia” são divididos em 33 cantos cada, com aproximadamente 40 a 50 tercetos, que

terminam com um verso isolado no final. O “Inferno” possui um canto a mais, que serve de introdução a todo o poema. No total são 100 cantos. Os lugares descritos por cada livro (o Inferno, o Purgatório e o Paraíso) são divididos em nove círculos cada, formando no total 27 (3 vezes 3 vezes 3) níveis. Os três livros rimam no último verso, pois terminam com a mesma

palavra: “stelle”, que significa “estrelas”.

Créditos: .Helder Rocha

.Academy of American Poets- Colletion: Poetic Forms- Terza Rima

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política da cidade. Eram, no fundo, gibelinos disfarçados que preten-diam a supremacia do Império so-bre a Igreja, o aumento do poder do Estado, a laicização do Estado, o predomínio da burguesia e do co-mércio. Entre seus integrantes mais ilustres, destacou-se Dante Alighieri.

• Os guelfos negros eram de-fensores da supremacia papal na Itália, contra o imperador e contra o aumento do poder do Estado. Defendiam os direitos da antiga aris-tocracia florentina contra os novos nobres, enriquecidos com o comér-cio, e contra a burguesia ascendente.

Os priores de Florença (entre os quais Dante) tinham cons-tantes conf litos contra a Igreja de Roma, que, sob o governo do papa Bonifácio VIII, preten-dia exercer grande poder sobre a Itália. Aponta Helder Rocha que, em um dos encontros com o papa, no qual os priores fo-ram reclamar da interferência da Igreja sobre o governo de Florença, Bonifácio respondeu ameaçando excomungá-los. Ao mesmo tempo, o confronto entre os guelfos Neri e Bianchi tomou grandes e graves pro-porções durante o mandato de Dante, chegando ao ponto de ele ter que ordenar o exí lio dos líderes de ambos os lados para preservar a paz na cidade. Dan-

te foi extremamente imparcial, incluindo, entre os exilados, um dos seus melhores amigos (Gui-do Cavalcanti) e um parente de sua esposa (da família Donati).

Em meio aos conf litos entre os guelfos de Florença, o papa en-viou Carlos de Valois (irmão do rei Felipe da França) como paci-f icador para acabar com a briga entre as facções. A “ajuda”, po-

No século XIII, Florença foi uma república dilacerada por ferozes lutas partidárias. Disputavam o poder na

cidade os guelfos e os gibelinos.

Crédito: Revista Storia – A. Mondadori Editore – Nº 21 – Fevereiro de 1976

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no ano de 1302 representavam um valor exorbitante – e exí lio por dois anos. Sem dinheiro, in-dignado e temeroso de enfren-tar os seus inimigos, interrom-peu a viagem na cidade de Siena, vizinha a Florença. Como não efetuou o pagamento da multa, recebeu nova sentença: todos seus bens seriam conf iscados e seu exí lio tornava-se vitalício, com o decreto automático de pena de morte caso voltasse à cidade natal.

Ao longo de seu exílio, Dante passou por Forlì, Verona, Arezzo, Veneza, Lucca, Pádua, falecendo em Ravena em 1321, sem nunca mais ter voltado a Florença.

Símbolos das guildas, associações de artesãos de um mesmo ramo ou atividade profissional que procuravam garantir os interesses de sua classe no tempo de Dante, elegendo representantes para governar a cidade

Crédito: Revista Storia – A. Mondadori Editore – Nº 21 – Fevereiro de 1976

*Claudio Callia é editor da revista InArte e artista plástico

rém, revelou ser um golpe dos Neri para tomar o poder. Eles ocuparam o governo de Floren-ça e condenaram vários Bian-chi ao exí lio e à morte. Dante, que retornava de uma viagem a Roma – onde tentara evitar a intervenção papal –, ainda no caminho de volta à Florença, tomou conhecimento da vitória dos Neri e da sua condenação: uma multa de 5 mil f lorins – que

Fontes:

- “A divina comédia: inferno” / Dante Alighieri. Versão em pro-sa, notas, ilustrações e introdução por Helder L. S. da Rocha. Ilus-trações de Gustave Doré, Sandro Botticelli e William Blake. – São Paulo, 1999. Disponível em http://www.stelle.com.br

- Associação Cultural Montforthttp://goo.gl/f6rrzw

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Difícil separar em Dante o mito pessoal, de um lado, e, de outro, a vida situada aquém da imaginação e da poesia. Af inal, toda sua Obra se construiu em torno de um núcleo autobiográf ico, tendo sempre à frente, mesmo nos momentos de mais fantástica idealização, um eu poético que se apresentava como coincidente com o eu empírico do autor. Ainda que, em menor ou maior grau, transf iguradas, fo-ram as experiências efetivamente vividas por Dante que ele tomou como pontos de partida para seus textos, sejam estes líricos ou narrativos, ou mesmo tratadís-ticos. E sobre a realidade dessas experiências, especialmente em

suas extremas transf igurações na “Comédia”, Dante sempre insistiu. Como disse Charles S. Singleton, a f icção da “Comédia” é de que ela não seja f icção – e o mesmo, podemos acrescentar, talvez valha para as demais obras de Dante, sobretudo para a “Vida Nova”, em cuja introdução declara que apenas transcreverá o que está registrado no livro da sua memória.

Há, ao longo de toda sua obra, uma postulação de verdade – teo-logicamente fundada, mas realizada sobretudo como humana adequação do texto à “vida” (palavra cen-tral em Dante, desde o título do primeiro livro) – em permanente tensão com a consciência de estar

escrevendo ficção (fictio). Essa ten-são é bem expressa pelo trecho da epístola ao príncipe Cangran-de della Scala, seu protetor por ocasião do exílio em Verona, em que Dante tenta definir a “forma” da “Comédia” por meio de uma série proliferante, e em alguma medida contraditória, de adjeti-vos: “Forma sive modus tractandi est poeticus, fictivus, descriptivus, digressivus, transumptivus, et cum hoc diffinitivus, divisivus, probativus, improbativus, et exemplorum positi-vus” (“A forma, ou modo de tratar, é poética, ficcional, descritiva, di-gressiva, transuntiva, e ao mesmo tempo definitiva, divisiva, probativa, improbativa e exemplificativa”).

por Eduardo Sterzi*

obra-vida

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"Humanistas italianos", de Giorgio Vasari. Dante (à frente segurando um livro) acompanhado de outros nomes de relevância para a cultura italiana: Petrarca, Guido Cavalcanti, Boccaccio, Cino da Pistoia e Guittone d'Arezzo

Crédito: Wikimedia Commons

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“Vida Nova” e o amor por Beatriz

Na “Vida Nova”, seu primei-ro livro, no qual, por volta de 1294, reúne e comenta alguns dos sonetos e canções, e uma única balada, que escrevera a par tir de 1283, Dante se apresenta como um poeta saindo da juventude e ainda sob o impacto da morte de sua amada, Beatriz. A história desse amor (a rigor, unilateral) é rememorada em ordem cronoló-gica, com certa precisão, nume-rologicamente manipulada, para a passagem do tempo, mas com deliberada omissão de nomes de pessoas e lugares. Apenas Beatriz é nomeada, e ainda assim porque seu nome pode ser lido também como apelido: Beatriz é aquela que dá beatitude.

A narrativa começa pelo primei-ro encontro de Dante e Beatriz, quando ambos tinham nove anos (o número nove é recorrente na “Vida Nova”, como cifra milagrosa). Dos anos precedentes da infância, nada é dito no livro e pouco se sabe: que Dante foi batizado (com

Escultura de terracota de Beatriz, localizada no Colégio Dante Ali-ghieri. Em seu primeiro livro, “Vida Nova”, Dante conta a história de

seu amor por Beatriz

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o nome de “Durante”) em 26 de março de 1266; que nascera no ano anterior sob o signo de Gêmeos, o que permite a seu biógrafo, Giorgio Petrocchi, inferir, “com quase absoluta certeza”, que veio à luz em algum dia entre 14 de maio e 13 de junho, e “mais provavelmente lá pelo f im de maio”; que seu pai era Alighiero Alighieri (ou Alighiero II), e sua mãe, Bella, possivelmente da família Abati; que a mãe morreu jovem (em alguma data desconhecida entre 1270 e 1275), e Alighiero casou-se em segundas núpcias; que seu avô paterno, Bellincione, contou-lhe inúmeras histórias sobre Florença, as quais ele retomaria na “Comé-dia”; enf im, que passou a meninice na mesma casa em que nasceu, na paróquia de San Martino del Vescovo, com alguns breves in-tervalos em outras propriedades da família, em Camerata e San Miniato a Pagnolle.

Mas deixemos de lado a vida que não é obra e voltemos à “Vida Nova”: desde aquele encontro precoce com Beatriz, no nono ano de suas vidas, Dante já se sente dominado pelo Amor, que lhe aparecerá, em visões, como um deus (versão me-dieval do Eros grego). O segundo encontro digno de nota se dá nove anos depois do primeiro, e é só então que Beatriz dirige a Dante uma saudação: ao ouvir as palavras

de sua dama pela primeira vez, Dante sente-se “como inebriado” e, assim, recolhe-se à solidão de seu quarto (“al solingo luogo d’una mia camera”), onde a primeira visão de Amor lhe acossa em meio ao sono, numa combinação inextri-cável de alegria e angústia, doçura e terror: o deus lhe aparece, em meio a uma nuvem cor de fogo, na figura de um senhor, “de pavoroso aspecto a quem a olhasse”, e que lhe diz, em latim, “Ego Dominus tuus” (“Eu sou o teu Senhor”); nos braços, carrega uma mulher nua, que dorme, apenas envolta num leve tecido cor de sangue; Dante descobre ser Beatriz essa mulher adormecida e vê que ela traz numa das mãos um coração ardente, como se lhe dissesse ser o dele; e ela, de súbito, despertada por Amor, e sob suas ordens, passa a comer do coração de Dante; finalmente, Amor, que até então mostrava-se alegre (embora temível), começa a chorar, e, como relembra Dante, “assim, chorando, recolhia a dama nos seus braços, parecendo-me que subia com ela para o céu” (na tradução de Carlos Eduardo Soveral).

Angustiado, Dante desperta e,

ref letindo sobre o signif icado do que vira em sonho, resolve escre-ver um soneto em que registrasse o encontro onírico com o deus Amor e com Beatriz, para depois

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enviá-lo “a muitos que eram famo-sos trovadores naquele tempo”, pedindo-lhes que decifrem a visão. Temos aí, conforme Dante o relata, o nascimento da sua poesia, com o soneto “A ciascun’alma presa” (“A cada alma enamorada”). O soneto, cujo sentido, segundo Dante, não teria sido compreendido, então, por nenhum de seus leitores, marca, no entanto, o ingresso do neófito no círculo dos líricos f lorentinos, entre os quais se destacava Guido Cavalcanti (identif icado, na “Vida Nova”, somente pelas perífrases “primo delli miei amici”, “primeiro dos meus amigos”, e “mio primo amico”, “meu primeiro amigo”).

O que mais impressiona, do ponto de vista histórico-crítico, na “Vida Nova” é o modo como Dante consegue mesclar a narrativa da formação de sua própria poesia – e do seu reconhecimento, que é antes de tudo autorreconheci-mento, como poeta relevante no contexto inicialmente f lorentino, mas logo italiano – com uma nar-rativa mais ampla, que naquela outra se ref lete e condensa, da formação da lírica vernacular eu-ropeia. Na progressão da “Vida Nova”, em que Dante passa dos sonetos iniciais, orientados pela poética transpessoal do que f icou conhecido, segundo uma expressão da “Comédia”, como “dolce stil novo” (doce estilo novo), a uma

poesia mais madura e individual, marcada pelo evento decisivo da morte de Beatriz, pode-se ver também uma ultrapassagem mais abrangente de uma série de procedimentos, formas e imagens legados pelo trovadorismo à lírica europeia do século XIII.

A necessidade, poética e histórica, de superação do modo trovado-resco de rimar formula-se na “Vida Nova” em palavras misteriosas do deus Amor; diz ele a Dante: “Fili mi, tempus est ut pretermictantur simulacra nostra” – frase que pode ser traduzida, aproximativamente, como: “Filho meu, é tempo de que nossos simulacros sejam postos de lado”. Simulacra, aí, pode ser traduzido também, como o faz Guglielmo Gorni, como “ficções corteses”, aludindo-se às ficções próprias da cultura dos trovadores originalmente occitânicos. Trata-se, em suma, para Dante, de trocar as imagens falsas (os simulacros) que povoavam a poesia imediatamente anterior – as imagens de amadas fictícias que não correspondiam a nenhuma experiência concreta, reduzindo-se muitas vezes a meras fórmulas retóricas – pela imagem verdadeira de Beatriz, imagem des-dobrada simbolicamente, tanto na “Vida Nova” quanto na “Comédia”, pela Verônica (“ymagine benedec-ta”): ou seja, pelo sudário em que estaria impresso o rosto de Cristo

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desde o Calvário, verdade torna-da imagem, verdade gravada em sangue, como Dante concebe sua poesia depois da morte de Beatriz.

É interessante que, depois da “Vida Nova”, Dante não se tenha posto imediatamente a escrever o poema que, de algum modo, anuncia no f inal daquele livro, poema em que pretendia tratar “mais dignamente” de Beatriz. Inte-ressante e, sobretudo, sintomático do incessante “experimentalismo” dantesco, bem diagnosticado por Contini, experimentalismo que não respeita qualquer linearidade evo-lutiva, ainda que alguma evolução sempre haja (uma obra nova não invalida as anteriores, como poderia supor um evolucionismo ingênuo, mas põe em questão as obras contemporâneas que se mostram menos adequadas que ela a seu momento histórico: nisto, Dante sempre foi genial, propondo, uma após outra, diferentes soluções para os problemas da literatura de seu tempo).

Rimas “pedrosas”

Depois da “Vida Nova”, e antes da “Comédia”, por volta de 1296, Dante compôs quatro canções que, como já demonstraram com leituras cruza-das detalhadas os norte-americanos Robert M. Durling e Ronald L. Mar-tinez e o italiano Corrado Bologna,

foram fundamentais para a passagem da poesia da juventude àquela da maturidade, ao permitirem a Dante ensaiar uma maior variedade estilís-tica que aquela aprendida com seus amigos “fedeli d’Amore”: naquelas que são conhecidas como rimas “pedro-sas” (“petrose”), a doçura stilnovista é posta à prova no confronto com uma aspereza ou mesmo crueldade de dicção inencontrada no Dante anterior, crueldade, ou “realismo”, de que Dante não poderia pres-cindir ao escrever, futuramente, o “Inferno” e o “Purgatório”, as duas primeiras partes – ou “cânticos” – da “Comédia”.

Para se alcançar essa crueldade, foi preciso colocar entre parênteses o amor por Beatriz, que justifi-cara toda sua primeira poesia e voltaria a justificar a “Comédia”, e, inspirando-se não só formal-mente no poetar dificultoso do trovador Arnaut Daniel (seu trobar clus), criar um novo simulacro femi-nino, a donna petra (dama pedra). De toda a produção poética de Dante, talvez sejam as “pedrosas” o único momento de deliberada incoincidência entre texto e vida: em alguma medida, é como se o autor se retraísse, levando consigo, caladas, suas experiências (seus amo-res, suas amizades, suas angústias, suas esperanças) para algum ponto neutro atrás do poema, e deixasse este se armar, por si mesmo, como

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uma espécie de pura edificação de forma e imagem.

Envolvimento político, exílio e a “Comédia”

O lustro de 1298 a 1303 é de pouca atividade literária para Dante. Desde 1295, ele já estava envolvido na política de sua cidade natal, Florença, logo assumindo postos na administração comunal. De 1299 em diante, a cidade imerge numa profunda crise, devido à luta implacável entre as duas facções do partido Guelfo, a que Dante pertencia.

Uma sequência de banimentos de nomes importantes da vida política florentina só piora a situação. Em 27 de janeiro de 1302, também Dante é expulso de Florença. A pena inicial é de dois anos de exílio, e uma multa de 5 mil florins deve ser paga, caso queira regressar. Em 10 de março, porém, a sentença de Dante, junto com as de outros quatorze exilados, é mudada para pena de morte. Caso retornasse a Florença, seria queimado vivo.

A partir de então, Dante erra pela Itália, de corte em corte, atuando como conselheiro político: os mais largos períodos são aqueles passa-dos em Verona, junto ao príncipe Cangrande della Scala, de 1312 a 1318, e em Ravena, com Guido Novello da Polenta, de 1318 (ou

1319) a 1321 (nesta última cidade, graças à generosidade de Guido, Dante teria de novo a seu lado a mulher, seus filhos e mesmo alguns de seus netos). Tudo isso não se-riam mais que graves atribulações de um político da época, se esse político não fosse Dante – e se não tivesse extraído precisamente do exílio a motivação maior de sua obra-prima, a “Comédia”.

Como já observou Joan M. Fer-rante, o “Inferno” está tão cheio de conterrâneos de Dante que Florença parece ter-lhe servido como modelo para a represen-tação do reino doloroso. Mas a acusação de Dante, quanto ao combate de todos contra to-dos, não se dir igia apenas aos f lorentinos:

“Ai serva Itália, que és da dor hotel, / nave a que arrais no temporal não resta, / não dona de províncias, mas bordel! // [...] // e agora em ti não andam sem ter guerra / os teus viventes e um e outro se morda / que o mesmo muro e o mesmo fos-so encerra. // Mísera, busca as costas que te borda / o mar, e depois olha no teu seio / se alguma parte tua em paz acorda” (conforme a tradução de Vasco Graça Moura).

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Na “Monarquia”, tratado político que escreve por volta de 1318, pa-ralelamente à redação dos cantos f inais da “Comédia”, Dante propõe um império universal como meio de se superarem as infelicidades nascidas da fragmentação do terri-tório não só italiano, mas europeu. A mesma ideia perpassa a “Co-média”, explícita, mas sobretudo implicitamente, como lastro dos juízos políticos que Dante emite ao longo de toda a obra.

Com a “Comédia”, Dante conse-gue a proeza de ao mesmo tempo retornar ao nucleamento autobio-gráfico de sua obra, colocando-se desde os primeiros versos como o personagem que tudo vê e narra, e avançar em direção a um muito abrangente panorama alegórico da sociedade de sua época, que é projetada no plano atemporal dos três reinos ultramundanos sem, no entanto, perder sua historicidade. E, na verdade, embora o tempo de Dante, ou seus mais recentes momentos antecessores, empreste

“Dante no exílio”, óleo sobre tela atribuído a Domenico Peterlini

ao poema alguns de seus persona-gens mais marcantes, não há limites para o aprofundamento no passado, que chega a Adão.

No entanto, sejam egressos da Antiguidade ou do Medievo, os homens e mulheres com que Dante se depara em sua peregrinação rumo a Beatriz e a Deus podem ser vistos, em certa proporção, como diversos aspectos de sua própria personalidade: estamos, af inal, dentro de sua imaginação, dentro de seus temores e de suas expectativas. Por mais que os destinos de alguns desses personagens nos impressionem ou mesmo como-vam (no tocante a isto, Francesca e Ulisses, condenados ao Inferno, mas merecedores da simpatia do autor, são insuperáveis), é a história de Dante que mais interessa. É o seu percurso até o reencontro com Beatriz e depois, com ela, até Deus que se coloca no centro da obra que Dante conseguirá concluir poucos meses antes de sua morte, em 1321.

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Dante visionário

Para se compreender mais ple-namente o signif icado e mensurar com justeza o valor da obra de Dante Alighieri é preciso, antes de mais nada, perceber seus vínculos com o momento histórico em que ela foi produzida, sua participação naquele vasto movimento cultural que levou do período que conhe-cemos como “Idade Média” àquele que conhecemos como “Renascen-ça”. Mas não menos importante é entender que a relação que a obra dantesca estabelece com a época e a cultura na qual af lorou não é meramente subordinada, derivativa: pelo contrário, essa obra é uma das principais instân-cias de af irmação, conf irmação, retif icação e livre engendramento daquela cultura; em larga medi-da, tanto nossa imagem da “Idade Média” quanto nossa imagem da “Renascença” são determinadas pela imaginação dantesca.

Como bem disse Domenico de Robertis, “a cultura do tempo da ‘Vida Nova’ é antes de tudo aquela que a ‘Vida Nova’ define e representa” – e tal axioma vale não só para a “Vida Nova”, que foi o primeiro livro de Dante, e também o primeiro livro de toda a literatura italiana, como para todos os seus outros textos, cada um deles, mesmo quando inacabados

(ou por isso mesmo), exemplares de um determinado aspecto daquela cultura em “crise de crescimento” (a expressão é do historiador Jac-ques Le Goff ). Ainda De Robertis, em formulação exata: “A hipótese, retórica e didática, de um Dante sem a ‘Comédia’, ou de uma litera-tura ou de uma língua italiana sem Dante, é hipótese, simplesmente, de uma outra literatura e de uma outra língua.”

Aí se desenha, na lucidez do crítico, outra característica fun-damental da ar te de Dante, que podemos chamar de sua futuridade intrínseca, mas que, na verdade, seria mais precisamente def inida como sua intempestividade radical, ou como seu anacronismo cons-titutivo e, sobretudo, operativo. Para se entender a singularidade da posição dantesca, é preciso traçar uma linha de diferenciação em relação a uma atitude mais generalizada frente aos “clássicos”.

Diversas obras, não só literárias, são vistas pela posteridade como fundadoras de uma determinada tradição ou como decisivas em algum momento da conf iguração de um cânone. No caso da obra de Dante, ocorre algo como uma inversão de perspectiva. É o pró-prio Dante que, antes de qualquer outro, vê a si mesmo como o autor originário do que seria a literatura

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italiana – e originário em sentido profundo: não necessariamente o primeiro em cronologia, ainda que em alguns aspectos o seja, mas aquele que lhe imprime o ponto de inf lexão determinante, aquele que põe em questão o que já foi feito pelos predecessores e, a par tir dessa reavaliação, lança as bases da literatura futura, ou pelo menos de uma de suas linhas de continuidade (trata-se aqui de uma “origem incompleta”, de uma “origem crítica”, para falarmos como Corrado Bologna, em “Tradizioni e fortuna dei classici italiani”).

Há uma passagem na “Comédia” em que a autoconf iança de Dante quanto a essa função originária da própria obra é declarada sem constrangimento algum: ref iro-me ao canto XI do “Purgatório”, em que ele narra seu encontro com o iluminador Oderisi da Gubbio.

Ouvimos, com Dante, Oderisi lastimar a fugacidade da glória, que logo faz a fama de um artista declinar enquanto a de outro as-cende; Oderisi compara, então, a superação de Cimabue por Giotto, na pintura, à de Guido Guinizzelli por Guido Cavalcanti, na poesia, assinalando por f im a possibilidade de que talvez já tenha surgido quem sobrepasse os dois Guidos – e quem seria tal campeão senão o próprio Dante?

“Acreditou Cimabue, na pintura, / manter sua posição, e agora Giotto se sobressai, / de modo que a fama daquele se tornou obscura. // Assim tirou um ao outro Guido / a glória da língua; e talvez tenha nascido / quem a um e outro expulsará do ninho” (Purg. XI 94-99).

Vale notar que uma aposta assim imodesta no porvir não é novidade no percurso de Dante; pelo contrá-rio, muitas vezes a aposta no futuro funciona como uma espécie de ponto de transição interno à própria obra, prenunciando e preparando seus de-senvolvimentos vindouros. Era o que já se dava no final em aberto da “Vida Nova”, em que Dante dizia que, depois de ter composto o último soneto do livro, aparecera-lhe uma “maravilhosa visão”, na qual vira “coisas que [lhe] fizeram propor não dizer mais” de sua amada Beatriz “até que pudesse mais dignamente tratar dela”.

Sua intenção, que ele afirmava buscar cumprir por meio do estudo (“E di venire a·cciò io studio quanto posso”: “Para consegui-lo, estudo quanto pos-so”, na tradução de Carlos Eduardo Soveral), era “dizer dela aquilo que nunca foi dito de nenhuma”. Esse dizer inédito – esse poetar sobre-humano – estaria associado, ainda conforme registra Dante, à possibilidade de sua

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alma “ver a glória da sua dama, isto é, daquela bendita Beatriz” que se encontra na companhia de Deus (“la quale gloriosamente mira nella faccia di Colui ‘qui est per omnia secula be-nedictus’”). Não será errôneo supor que era a “Comédia” – com tudo que ela representaria como conquista de uma nova dignidade estilística e formal na expressão vernacular, e isso tanto na sua trajetória pessoal quanto na trajetória mais ampla das letras italianas – que Dante prefigurava nes-se último parágrafo da “Vida Nova”. Mas é claro que essa prefiguração era ainda um tanto indefinida, pouco mais que uma pura pulsão poética futurante, ou espécie de utopia textual, a descer, só depois, sobre o mundo.

A contraparte desse frequente vín-

culo intempestivo da poesia de Dante com o futuro é seu vínculo não menos forte com o passado. Aliás, se Dante, pela boca de seu personagem Oderisi, insinua seu próprio nome como o daquele que já estava, ao tempo da redação da “Comédia”, superando Guido Guinizzelli e Guido Cavalcan-

ti, é porque, em cantos anteriores da obra, já reclamara uma auctoritas inapelável.

De forma difusa, mas não por isso menos eficaz, essa reivindicação de autoridade e autoria atravessa a obra; mas é no canto IV do “Inferno” que toma a forma de um conhecido emblema da húbris dantesca, de sua pretensão sem medidas, pretensão que seria absurda e mesmo um tanto ridícula se estivéssemos tratando de qualquer outro escritor: mas não no caso de Dante.

Naquele trecho do poema, Dante, guiado pelo poeta romano Virgílio, chega ao Limbo, círculo primeiro do Inferno onde se encontram as almas boas que viveram antes de Cristo e que, portanto, não foram batizadas. É ali a morada pós--morte do próprio Virgílio, que vivera entre 70 e 19 a.C. A dupla desloca-se pela região, até que Dante avista, apartado dos demais, um grupo de homens; per-gunta a Virgílio quem são, mas, mal este começa a responder, ouve-se uma voz que amigavelmente saúda o precursor:

“Honrai o altíssimo poeta; / a sua sombra, que partira, retorna”. “Quatro grandes sombras”, de apa-rência “nem triste nem alegre”, vêm em sua direção. Virgílio nomeia-os para Dante: “Com a espada na mão, olha o decano, / à frente qual senhor a conduzir. // É Homero, poeta soberano; / o outro Horácio sátiro que vem; / o outro Ovídio e o último Lucano” (segundo a tradução de Vasco Graça Moura).

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As quatro sombras são, pois, os espectros dos maiores poetas da An-tiguidade, daqueles que formavam, aos olhos de Dante (e de sua época), a “bela escola”.

Para se avaliar a desmesura com que Dante concebia o valor de sua própria obra, não se pode esquecer que não estamos, aqui, diante de um relato objetivo e desinteressado, mas de uma nar-rativa em primeira pessoa, na qual o próprio poeta f igura-se como personagem principal. Conta-nos

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Dante que, depois de terem con-versado entre si por um tempo, Virgí lio e os outros quatro autores voltaram-se a ele “com um aceno de saudação”, assim chamando-o à “sua f ileira”, onde ele foi “sexto entre tanto siso” (sì ch’ io fui sesto tra cotanto senno). Pela primeira vez na história, um escritor vernacular ousava representar-se como um igual dos grandes escritores da Antiguidade. A grandeza literária, que até então estava reservada aos clássicos gregos e latinos, era agora uma possibilidade para os que escreviam na língua de todos os dias.

O descomedimento de Dante, ao colocar-se lado a lado com os maiores nomes do passado, tem uma impor-tância crítico-escritural que vai muito além de seu interesse individual, con-forme argumentou Roberto Mercuri: “A reflexão de Dante sobre o cânone dos clássicos implica um balanço da literatura clássica e da sua função na cultura ocidental; pela primeira vez na Europa, Dante mostra a consciência de

percorrer uma cumeada da história, isto é, de interpretar o momento da passagem do Medievo à Idade Moderna; este é o sentido profundo da mundialização do cânone que Dante opera no canto IV do Inferno, no qual é representada, além daquela latina, a literatura grega na pessoa de Homero, e aquela vulgar na pessoa do próprio Dante. A peculiaridade do discurso dantesco sobre o cânone – e nisto consiste a sua carga inovadora e revolucionária e o seu excesso mesmo em relação à operação agostiniana de conversão do mundo clássico-pagão na-quele cristão – é a de fazer coincidir a reelaboração do cânone com a revisão dos gêneros literários que o Medievo havia rigidamente fixado na rota Vergilii; Dante recodifica o gênero épico não somente em perspectiva cristã, mas também e sobretudo na direção do romance, a partir do momento em que a recodificação dantesca vai na direção plurilinguística, histórica e autobiográfica, perspectivas essas fortemente conotativas do romance moderno, o que é percebido perfeitamente por Boccaccio e por Petrarca, para os quais o intertexto dantesco é o lugar do diálogo e do reuso. É neste lugar e neste

espaço que se constroem o sistema da literatura italiana e o advento da poesia e da prosa italianas e europeias.”

Gianfranco Contini, que foi quem melhor percebeu a implicação mútua da antiguidade e da modernidade de Dante, o fato de que “a sua distância é ao mesmo tempo contraprova e garantia da sua proximidade vital”, bem o disse: “A impressão genuí-na do póstero, encontrando-se em Dante, não é de topar com um tenaz e bem conservado sobrevi-vente, mas de alcançar alguém que chegou antes dele.”

dAnte ALIghIerI: obrA-vIdA

*Eduardo Sterzi é poeta, jornalista, professor e crítico literário brasileiro. Em 2006, doutorou-se em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com tese sobre Dante Alighieri e a origem da lírica moderna. Reali-zou estudos de pós-doutorado na Università degli Studi di Roma “La Sapienza” e na Universidade de São Paulo (USP)

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Autor ou autoridade:

Dante e a narrativa como superação

Doris Nátia Cavallari*

Falar sobre a produção dan-tesca ou apenas sobre “A Divi-na Comédia” de Dante Alighieri não é tarefa simples: muito já foi dito a respeito desse clássico da literatura universal. Contudo, para celebrar os 750 anos de nascimento do grande autor de Florença, proponho aqui algu-mas ref lexões sobre o percur-so narrativo de seu texto maior, com particular atenção ao modo com que a voz narrativa se ar ti-cula na obra dantesca, marcan-

do a mudança do fazer literário na Itália e, posteriormente, em toda a Europa.

Dante viveu em um período de renascimento das cidades após a queda do sistema feudal, e a Itália foi o primeiro dos países euro-peus a passar por esse floresci-mento. Ele teve formação univer-sitária, estudou em Bolonha, em um período em que a universida-de e o saber enciclopédico eram muito valorizados. Conheceu as ideias da filosofia de Chartres

Autor ou AutorIdAde: dAnte e A nArrAtIvA coMo suPerAção

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que deram início ao período gó-tico – “a primeira manifestação de uma cultura não só ocidental e europeia, mas burguesa”, como observa G. Argan (1982, p.300) – foi poeta, político e intelectual que se interessou por filosofia e teologia. Foi um exilado, conde-nado à fogueira por contumácia, e obrigado a vagar pelos territórios italianos, sempre caçado pela po-lícia florentina.

Nosso autor sofreu a fome, a

Dante e Beatriz contemplam o céu mais alto do “Paraíso”, obra de

Gustave Doré (1832-1883)

Crédito: Reprodução

solidão e o silêncio, e fez de sua obra, especialmente, de sua “A Divina Comédia” (título aliás de-terminado por outros, depois de sua morte, uma vez que inicial-mente se intitulava apenas “Co-média”) seu legado para os tem-pos futuros, destinando-se, assim, a figurar na história da grande literatura mundial, naquele espa-ço duradouro “che questo tempo chiameranno antico” (“dos que este tempo chamarão antigo”. Pa-raíso, XVII, 119).

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A “Divina Comédia”, como sa-bemos, é a história de uma via-gem da alma “smarrita”, isto é, confusa, aturdida, com os sen-tidos esmorecidos e incapaz de seguir a reta via; mas, note-se, sua alma não estava perdida, pois esse termo no mundo dantesco indicaria alguém já condenado ao Inferno, e sabemos que nosso po-eta-peregrino tem outro destino.

Para contar essa aventura, Dante cria sua epopeia cristã, em que é narrador e protago-nista de seu texto, fato inédito na literatura até aquele mo-mento. Além disso, usa a língua nova, o “vulgar”, para criar seu universo f iccional.

A narrativa é em última res, ou seja, Dante narrador conta a aventura de Dante protagonista depois que tudo já ocorreu. A viagem do nosso herói, o poeta--peregrino, humilde aprendiz de Virgílio, Beatriz e São Bernardo, o leva ao ponto mais baixo e obscu-ro da alma humana, para depois subir até o vértice do Paraíso aristotélico-ptolemaico e poder vislumbrar a luz divina.

Na verdade, ele passa pelo universo da literatura clássica la-tina e de sua forma de represen-tação – sintetizada na f igura de Virgí lio –, avança para o mundo da revelação cristã, em que a es-perança e a misericórdia divinas dialogam com a melancolia do pecador a lamentar seu atraso para a salvação e ventura per-pétuas, para, f inalmente, chegar ao mundo da perfeição, no qual a sabedoria e o amor são trans-mitidos pelas discussões f ilosó-f icas e teológicas traduzidas em palavra poética.

A escrita dantesca cria ima-gens para o mundo do além, ref lexo deste nosso mundo, e confere ao homem medieval uma dimensão realista de um cosmo imaginário e temido, mas necessário e desejado para se alcançar a felicidade eterna.

Assim, no “Inferno”, o reino inicial, o destino dos danados é descrito com detalhes, e as pai-sagens se tornam reais pelo uso das similitudes e das metáforas; nesse lugar, a agonia e a dor coincidem com as trevas (a au-

“Dante e Virgílio nos portões do Inferno”, de William Blake

(1757-1827)

Crédito: Reprodução

sência absoluta da luz, isto é, de Deus), com o fogo que não pu-rifica, apenas fere, e com o gelo, a frieza do mal absoluto, no qual toda a humanidade do ser se perde, restando apenas o deses-pero sintetizado no silêncio aflito de Lúcifer, que chora e mastiga três pecadores, mas não se ex-pressa em palavras, pois perdeu o “ben dell’ intelletto” (Inferno, III, 18). O “Inferno” é um território que evoca, como se dizia, paisa-gens terrenas conhecidas do po-eta; nele a experiência é árdua e o peregrino deve aprender a enxergar nas trevas para poder compreender melhor a dimen-são salvífica da luz.

O “Purgatório” é o único rei-no transitório, o mais dialético e dialógico, em que o poeta re-toma a entoação do dolce stil novo que marcara suas primeiras obras; nesse reino, o autor cria uma geograf ia inovadora no uni-verso cristão, na forma de uma

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montanha que se deve galgar para conquistar a ascensão espi-ritual, requisito essencial para se voltar à pureza original da cria-ção da alma. Dante supera to-dos os obstáculos e demonstra também ter superado o stil novo que marcou sua formação.

A viagem do “Purgatório”, diz Giorgio Petrocchi, é uma longa preparação para o retorno de Be-atriz e “é natural que aflorem na memória poética de Dante aque-las tonalidades formais que foram o centro da experiência verbal da “Vita Nuova”1.”(1998, p.77). O encontro com Beatriz é difícil no primeiro momento, pois o poeta se vê obrigado a confessar seus pecados com a contrição devida a um bom cristão, mas sua coragem será recompensada pelas águas do Letes, que o fazem esquecer de todo mal, e também pelas águas do Eunoé, que lhe restituem a pu-reza original da criação, condições essenciais para que o poeta se sinta puro e disposto a salire alle stelle (“puro e disposto a subir às estrelas”, Purgatório, XXXIII, 145, 2004, p. 220).

Já no “Paraíso”, logo no início do segundo canto (versos 1 a 6),

o poeta adverte o leitor a não se aventurar em “águas abertas” sem ele, pois poderia se desviar (“smarrirsi”) da estrada justa:

O voi che siete in piccioletta barca,

desiderosi d’ascoltar, seguiti

dietro al mio legno che cantando varca,

tornate a riveder li vostri liti: non vi

mettete in pelago, ché forse,

perdendo me, rimarreste smarriti. (grifos meus)

Ó vós que em pequenina barca es-tais,

e o lenho meu que canta e vai, ansiados

de podê-lo escutar, acompanhais,

voltai aos vossos portos costumados, não vos meteis no mar em que,

presumo,

perdendo-me estaríeis extraviados.

(Trad. Italo Eugenio Mauro, 2004, p. 19)

Nesse reino, além de autor e protagonista, o poeta torna--se “autoridade”, uma vez que, tendo atravessado os caminhos da escuridão à iluminação, pode conduzir o leitor com ele, por meio da poesia (ou da barca), até a visão de Deus, convidan-do-o a realizar com ele o sonho humano de comungar com a perfeição divina.

Para contar sua experiência no além-túmulo paradisíaco, Dante não pode mais servir-se de simi-litudes com as paisagens terre-nas, nem com o aspecto f igural que caracterizam os persona-gens com quem nosso herói dia-loga nos dois primeiros reinos; aqui as almas não são mais ho-mens, mas essências iluminadas do ser, espíritos puros, e a pai-sagem e a f igura transmutam-se em luz e música.

Logo, a poesia deve ser a canora representação da iluminação espiri-tual, e a experiência passa a ser tão interior que “dietro la memoria non può ire” (“que faz a sua memória se perder”, Paraíso, I, 9) mas, diz o poeta, “Veramente, quant’io del regno santo ne la mia mente potei far tesoro/sarà ora materia del mio canto” (“Po-

1Autobiografia poética escrita em homenagem à amada, em 1292. A primeira grande obra de Dante, escrita também em língua “vul-gar”, isto é, não em latim, mas no dialeto de Florença, trabalhado com estilo e arte.

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“Dante e Beatriz nas margens do rio Letes”, óleo sobre tela de

Cristobal Rojas (1857-1890). A obra retrata um episódio do “Purgató-

rio” de “A Divina Comédia”

Crédito : Wikimedia Commons

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rém, tudo do que, do reino santo, pôde o intelecto seu fazer tesouro, ora será matéria do meu canto”, Pa-raíso, I, 10-12). Seguindo Dante em sua ascensão, percebemos que ele compartilha da sabedoria dos elei-tos, sendo capaz de responder aos questionamentos sobre a Teologia e a Sagrada Escritura, etapa necessária para se mostrar digno da visão de Deus. O “Paraíso” é o reino do “ben dell’intelletto”, e a contemplação con-juga-se com o aumento da lucidez do poeta, que pode admirar a sabedoria da criação e das leis divinas.

Maria Corti comenta que, por meio da contemplação intelectual que ocorre no “Paraíso”, “Dante consegue admiravelmente resol-ver, em termos poéticos, temas e argumentos de natureza racio-nal, filosófico-teológica” (2003, p.284). Já o estudioso Ernst R. Curtius afirma que Dante usa o saber filosófico-teológico por priorizar em sua obra o conheci-mento livresco, pois o “herói” de “A Divina Comédia” é um estu-dioso. “Seus mestres são Virgílio e Beatriz: a razão e a graça, o saber e o amor, a Roma imperial e a Roma cristã. Para Dante, as supremas funções e experiências do espírito estão ligadas à disci-plina do estudo, à leitura, à acei-tação livresca de uma verdade preexistente” (1996, p.403).

Desse modo, “a ‘Comédia’ é re-comendada expressamente pelo poeta para a leitura e o estudo”, conclui Curtius. O livro ideal de Dante é composto pela viagem rumo ao “ben dell’intelletto”, que só será possível pelos muitos di-álogos do poeta-peregrino com as almas em diferentes níveis de existência. O autor abre também um espaço de diálogo com o lei-tor, a quem apela diretamente em algumas passagens da obra. O leitor, de fato, é convidado a acompanhar os passos do pere-grino, que, embora “smarrito” no início da viagem, é apresentado, como bem observa Chiavacci Le-onardi, como “homem histórico” e “dotado de liberdade, ao qual é dado a escolher no tempo a pró-pria condição eterna” (p. X – in-trodução).

É interessante notar que, apesar de o narrador deixar claro que conta uma experiência já passada, ele silencia sobre essa questão em sua narrativa. O leitor des-conhece quanto tempo separa a escrita dantesca dos eventos vivi-dos pelo personagem-peregrino. Esse silêncio, como observa ain-da Chiavacci Leonardi, “projeta [a obra] na dimensão eterna” e por seu aspecto figural eterniza as aventuras e desventuras de seus personagens.

O tempo eterno e o históri-co são colocados em confronto nessa obra de dimensões épicas, mas com um herói narrador e narrado, um poeta-peregrino que conta sua aventura em primeira pessoa, instaurando a possibilida-de de um “eu” que, movido pelo amor e pela necessidade de salva-ção, empreende uma viagem ao além-túmulo e lá encontra inú-meros personagens famosos ou desconhecidos que testemunham o seu cotidiano e dotam de ve-rossimilhança sua narrativa.

Para Chiavacci Leonardi, os elementos fundadores da “Co-média” são “valor do indivíduo, historicidade e liberdade”, mas o verdadeiro sucesso da obra se deve à poesia, pois “é por meio da poesia que Dante quer falar aos homens, como o seu Virgilio já havia feito”. (p. XVIII- intro-dução).

Ao final da narração, temos a vi-são breve e fugidia de Deus e, como comenta ainda Ernst Curtius, “o que ele vê é uma luz simples e, ao mesmo tempo, a plenitude total das ideias, figuras e essências” (1996, p.410). Dante descreve Deus como síntese – “legato con amore in un vo-lume/ ciò che per l’universo si squader-na” (“num só volume unindo com

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amor/o que no mundo se desen-caderna”, Paraíso, XXXIII, 86-7) –, como o livro primordial da criação, ou, para dizê-lo ainda com Curtius, reconhece que “o livro é a divinda-de” (1996, p.411).

O livro é, então, a fonte do mais alto conhecimento possível, e Deus é o volume que “se de-sencaderna”, é “l’amor che muove il sol e l’altre stelle” (“O amor que move o Sol e as demais estrelas”. Paraíso, XXXIII, 145) e que se ex-pande amorosamente pelo mun-do. Desse modo, Dante determi-na o alto valor do livro, do seu livro, escrito em linguagem remis-sus et humilis (simples e humilde), isto é, em “língua vulgar”, como deve ser o gênero “cômico”, ou seja, aquele que se usa para con-tar histórias que começam de modo triste e têm um final feliz.

Ao inserir um caráter auto-biográf ico em sua obra e fazer--se protagonista de seu texto,

Dante parece fechar as portas ao mundo antigo, às suas formas de representação, à sua visão poética, à sua f ilosof ia e teolo-gia, isto é, ele encerra o perí-odo medieval e abre as portas para a manifestação do Huma-nismo, o tempo do indivíduo em diálogo constante com sua obra e seu leitor. Ao criar um universo plurisignif icativo, Dan-te, de fato, abriu as portas para leitores de qualquer tempo que sejam capazes de “ressignif icar” sua mensagem e a riqueza es-tética de sua obra, oferecendo--nos essa possibilidade de supe-ração permanente, de resgate e de novas atribuições de sentido às representações individuais e coletivas.

Referências bibliográficas

ALIGHIERI, Dante. A Divina Comé-dia. Trad. Italo Eugenio Mauro. São Paulo: Editora 34, 2004.

ARGAN, G.C. Storia dell’arte italia-na. Vol I. Firenze: Sansoni, 1982

ASOR ROSA, A. “La fondazione del laico.” IN: Genus Italicum. Saggi sulla identità letteraria italiana nel corso del tempo. Torino: Einaudi, 1997.

CLARK, Katerina e HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva, 1998.

CORTI, Maria. Studi su Calvacanti e Dante. Torino: Einaudi, 2003.

CURTIUS, Ernst. Literatura Euro-peia e Idade Média Latina São Paulo: Edusp, 1996.

CHIAVACCI Leonardi, Anna Ma-ria (organização, introdução, notas e comentários) ALIGHIERI, Dante. La Divina Commedia. Vol. Bologna: Zani-chelli, 2010.

PETROCCHI, G. Il Purgatorio di Dante. Milano: BUR Saggistica, 1998.

Autor ou AutorIdAde: dAnte e A nArrAtIvA coMo suPerAção

* Doris Nátia Cavallari é pro-fessora associada de Literatura Italiana do Departamento de Letras Modernas da Universi-dade de São Paulo (USP)

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Uma disputa bem florentina: o confronto linguístico entre

Dante e Machiavelli no “Dialogo intorno alla nostra lingua”*

uMA dIsPutA beM fLorentInA: o confronto LInguístIco entre dAnte e MAchIAveLLI no “dIALogo Intorno ALLA nostrA LInguA”

Questo mio volgare fu congiugnitore de li miei generanti, che con esso parlavano, sì come 'l fuoco è disponitore del ferro al fabbro

che fa lo coltello; per che manifesto è lui essere concorso a la mia generazione, e così essere alcuna cagione del mio essere.

Dante, Convívio, I, XIII, 4

Na obra “Diálogo”, em uma conver-sa imaginária com Dante, Maquia-vel (ao lado representado em um

retrato feito por Santi di Tito (1536 - 1606)), questiona o posicionamen-to do autor de “A Divina Comédia”

sobre a “Questione della lingua”

Crédito: Wikimedia Commons

por Maria Cecilia Casini**

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Fora do âmbito dos especialistas, poucos sabem que Nicolau Maquia-vel (Florença, 1469-1527), internacio-nalmente conhecido pelo tratado “O Príncipe” (1513), escreveu também uma pequena obra sobre a questão da língua na Itália contemporânea. Trata--se de um breve texto em que o autor, apresentando as razões da superiori-dade da língua de Florença com relação aos outros vulgares italianos, demons-tra argutamente a origem florentina da língua literária italiana, razão pela qual a língua comum da Itália deveria ser chamada de florentina. O “Diálogo” oferece ao leitor, expondo-o com uma língua “vivaz e brilhante”1 e com uma acuidade de raciocínio “incomum nos outros linguistas”2 , um recorte preciso e sutil das principais tendências artísti-cas e literárias da Florença da época. E o ponto de vista do autor sobre al-guns pontos cruciais a respeito de uma contenda já tão desgastada é tão novo e original que revitaliza os termos da questão.

A obra ficou desconhecida até 1730, quando foi encontrada, adéspota e, pro-vavelmente, anepígrafa, em um apógra-

fo de Giuliano de’ Ricci conservado na Biblioteca Barberiniana de Roma; o des-cobridor, o erudito monsenhor Giovan-ni Bottari, publicou-a (sem a indicação do autor) como apêndice a “L’Ercolano”, de Benedetto Varchi. Embora tenha havido controvérsias acerca da paterni-dade de sua autoria, desde o começo a opinião geral era que fosse do próprio Maquiavel, devido principalmente ao típico procedimento dilemático da ar-gumentação e à originalidade e à força conceitual de seu raciocínio, à compro-vada presença da terminologia, da sinta-xe e da fraseologia maquiaveliana (essa última, como nas outras obras do autor, apelando para as marcas da língua que se devia falar na Florença contemporâ-nea), ao “excepcional vigor expressivo”3 de sua língua.

A princípio, o texto teria sido escri-to entre 1508-1509 (data da primeira representação em Ferrara da comédia de Ludovico Ariosto, “I Suppositi”, cita-da no “Diálogo”) e 1527, ano da morte do autor. O período mais provável é entre 1514 e 1516, pois seriam estes os anos em que vinha se realizando uma ligação mais estrita “entre aquela escri-

tura e o desenvolver-se do pensamen-to político de Maquiavel, no começo de uma nova fase de sua atividade de cidadão e de escritor” 4 [Tradução da Revisora].

O texto, essencialmente argumen-tativo, contém um longo enxerto em forma de diálogo entre o próprio autor e nada mais nada menos que Dante Alighieri. De fato, a obra ficou indiferentemente conhecida como “Diálogo” ou “Discurso”, dependen-do do gênero literário com o qual cada estudioso a quis associar. Para a tradução em português, preferimos o termo “Diálogo”, por ele remeter ao modelo privilegiado pelos humanistas para a troca de opiniões e de experi-ências concretas, a conversação entre pares, como fundamento da vida civil da Renascença. E, também, para fa-zer jus às próprias palavras do autor, que, na maravilhosa carta a Francesco Vettori de 10 de dezembro de 1513, diz não se envergonhar, uma vez tro-cados os andrajos enlameados e sujos de barro com que atende aos afaze-res do campo por “vestes régias e curiais”, em “falar com eles [os grandes

1 “Vivace e brillante”; Claudio Marazzini, “Le teorie”; in Storia della lingua italiana. Volume primo. I luoghi della codificazione (org. de Luca Serianni e Pietro Trifone), Turim, Einaudi, 1993, p.256. 2 “Non comune agli altri linguai”; Bortolo Tommaso Sozzi, Discorso o dialogo intorno alla nostra lingua, Turim, Einaudi, 1976, p.XLV, citando Ridolfi. 3 “Eccezionale vigore espressivo”; Sozzi, cit., p.XXVIII. 4 “Tra quella scrittura e lo svolgimento del pensiero politico di Maquiavel, all’inizio di una nuova fase della sua attività di cittadino e di scrittore”; Sozzi, cit., pp.XXXVI-XXXVII, citando Hans Baron.

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homens da Antiguidade] e inquiri-los sobre a razão de seus atos”5. [T.da R.].

Por que não teria ele então se en-tretido também com Dante? Como ficará claro lendo o texto, Maquiavel não parece minimamente intimida-do em discutir em pé de igualda-de com seu ilustre patrício, em um diálogo rápido e veemente, rico de efeitos teatrais e às vezes fran-camente cômico. Aliás, ele sequer receia encurralar Dante, colocando--o contra a parede, apontando com lucidez para a contradição entre o posicionamento teoricamente des-favorável do poeta em relação à lín-gua florentina6 , e sua prática poéti-ca, sobretudo aquela da “Comédia”, fundamentalmente baseada no uso do florentino; para enfim obrigá-lo

5 Reproduzimos o trecho integralmente: “Venuta la sera, mi ritorno a casa ed entro nel mio scrittoio; e in sull’uscio mi spoglio quella veste cotidiana, piena di fango e di loto, e mi metto panni reali e curiali; e rivestito condecentemente, entro nelle antique corti delli antiqui huomini, dove, da loro ricevuto amorevolmente, mi pasco di quel cibo che solum è mio e ch’io nacqui per lui; dove io non mi vergogno parlare con loro e domandarli della ragione delle loro azioni; e quelli per loro humanità mi rispondono; e non sento per quattro hore di tempo alcuna noia, sdimentico ogni affanno, non temo la povertà, non mi sbigottisce la morte: tutto mi transferisco in loro”. Trata-se da carta na qual Maquiavel, afastado da política ativa de Florença depois da volta ao poder dos Médici (1512) e exilado em seu sítio do Albergaccio a cuidar das coisas do campo, anuncia ao amigo Vettori a composição de “O Príncipe”. 6 Porém, Maquiavel se engana ao atribuir às críticas de Dante à língua florentina uma motivação unicamente psicológica e pessoal (a ‘vingança’ contra Florença, que o tinha exilado), desconsiderando as razões estilísticas e retóricas da lúcida análise teórico-linguística do poeta. 7 Para o entrelaçamento entre a situação histórica e a questão linguística da Itália da época, sobre o contraste entre uma sociedade aris-tocrática e conservadora e uma sociedade popular dinâmica e aberta às novidades, vejam-se em particular os estudos de Eugenio Garin. 8 O texto síntese do conjunto das teorias e polêmicas linguísticas italianas das origens ao século XIX é considerado La Questione della lingua, de Maurizio Vitale, Palermo, Palumbo, 1960. 9 “Il modo stesso di concepire la lingua, come bene comune o come patrimonio regionale”; Claudio Marazzini, Da Dante alla lingua selvaggia, Roma, Carocci, 1999, p.54. 10 Não cabe aqui debater as razões, históricas, linguísticas ou culturais sobre as quais baseava-se essa pretensa superioridade ‘genética’ do florentino. Limitemo-nos a dizer que alguns estudiosos achavam que a Toscana, por ser a região da Itália há mais tempo ocupada pelos romanos, teria recebido antes e mais profundamente influência normatizadora da língua latina.

a admitir o próprio erro (veja-se, em particular, a parte final do diálogo com Dante). Pois, como notaremos mais adiante, era justamente a opi-nião desfavorável de Dante sobre o vulgar de Florença a alimentar, na-quele começo de século, a polêmica sobre a língua que dividia os intelec-tuais italianos em facções ferozmen-te contrárias entre si.

De fato, no começo do século XVI, a Itália inteira fervilhava em acaloradas discussões linguísticas, intimamente li-gadas ao contexto contemporâneo e não desprovidas de implicações políti-cas7 , que vieram a ser conhecidas pelo nome de “Questione della lingua”8 . Em particular, discutia-se sobre “a pró-pria maneira de se conceber a língua, como bem comum ou como patri-

mônio regional”9 – debate esse cuja direta consequência consistia na defi-nição do nome a ser atribuído a essa língua. Duas eram as teorias principais. A primeira, que podemos chamar de ‘florentinista’, reiterava a superioridade do florentino por razões ‘naturais’10 e socioculturais11 , as quais teriam ocasio-nado a sua superioridade histórica e literária (antes de mais nada, graças à obra de Dante, Petrarca e Boccaccio; mas, também, graças à de muitos ou-tros escritores: os cronistas e os merca-dores dos séculos XIII e XIV, os poetas do stil novo; os autores do século XV, tanto os classicistas – Alberti, Landino, Poliziano, Lourenço, o Magnífico –, quanto os mais populares Burchiello e Pulci, a quem Maquiavel cita no “Diá-logo”; etc.) e a ‘florentinização’ preco-ce de toda a língua italiana. A segunda

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teoria, dita ‘eclética’, ou ‘cortesã’, que considerava a língua itálica existente na Itália do século XVI não (mais) especial-mente florentina, pois em sua prática literária e em seu uso social (nas cortes) teria sido superada e enriquecida por formas mais nobres e elegantes, graças à contribuição dos vários vulgares da Itália, depurados de seus traços idiomá-ticos mais crus12.

As duas correntes propunham então duas denominações diferentes do idio-ma de toda a península: a primeira, flo-rentino, ou toscano; a segunda, italiano, ou língua comum, ou língua cortesã13.

Como sabemos, a complicada “Ques-tione della lingua” começou a ser equa-cionada quando o veneziano Pietro Bembo publicou, em 1525, as “Prose della volgar lingua”, propondo uma so-lução fundamentalmente de tipo esté-tico-estilístico. De fato, Bembo propôs tomar como ponto de partida a tradi-ção literária toscana do século XIV, e, seguindo o exemplo do latim de época clássica, assumir como canônicos dois autores: Petrarca, pela poesia; Boccac-

cio, pela prosa (Dante era descartado, por ter usado uma língua considerada ‘bárbara’ demais). Isso, segundo Bem-bo, permitiria alcançar a sonhada ho-mogeneização e estabilização da língua italiana. A proposta bembiana acabou prevalecendo, principalmente por ra-zões práticas (a facilidade da divulgação via imprensa do cânon escolhido, por conta da grande notoriedade e difusão em toda a Itália das obras dos clássicos toscanos) e políticas (o fim da liberdade italiana e o clima de “normalização” po-lítica e cultural já dominante).

À primeira vista, a proposta bem-biana pode parecer em sintonia com a tese florentinista – e, portanto, com Maquiavel. Porém, devido ao reconhe-cimento da superioridade da língua de Florença, não devemos nos enga-nar quanto às profundas e irredutíveis diferenças entre as duas: sobretudo porque, para Bembo, diversamente de Maquiavel, o critério decisivo para a as-sunção de um modelo linguístico válido para toda a Itália era o da literariedade (ou seja, da arte), e não o da naturali-dade14. A proposta florentino-arcaica

11 Conforme as Novas Crônicas de Giovanni Villani (Florença, 1276-1348), já no século XIV a Comuna de Florença patrocinava políticas educacionais e de difusão cultural muito avançadas, encorajando a criação de escolas de ábaco e de algarismo em que, pela primeira vez na Europa, se ensinava a ler e a escrever diretamente em vulgar, sem a mediação do latim; o que teria levado à alfabetização em massa de muitas classes sociais da cidade, mesmo as populares, refinando-se a língua e favorecendo o florescimento literário. 12 Na verdade, não é este o lugar para reproduzir a definição das várias posições, às vezes bastante diferenciadas entre si, que pode-mos reunir sob a égide da teoria cortesã. De qualquer forma, o denominador comum a todas era a oposição ao florentinismo e ao toscanismo. 13 Há, no debate linguístico renascentista, algumas diferenças entres os apoiadores do florentino e os do toscano, que não cabe aqui ressaltar. Porém, Maquiavel, quando fala de língua toscana, entende fundamentalmente o florentino. 14 A oposição arte/natureza, com a declarada preminência da natureza, é recorrente nos escritos de Maquiavel.

de Bembo, que privilegiava a língua flo-rentina, sim, mas a literária de dois sé-culos antes, estava completamente na contramão da tese florentinista, a qual, dando continuidade ao projeto de he-gemonia política de Florença sonhado por Lourenço, o Magnífico, no século XV, almejava a expansão do florentino contemporâneo como língua comum italiana. Pois o gesto de abrir mão da possibilidade da adoção, por parte dos italianos, de uma língua viva, concreta e comprometida com sua contem-poraneidade (como ainda tentava ser a florentina do século XVI), parece simbolizar a renúncia dos italianos à reivindicação de sua autodeterminação política e cultural, em um momento histórico tão complexo e difícil, que prenunciava de fato o fim da liberdade italiana (o Saque de Roma é de 1527; o Cerco de Florença, de 1530).

Mas, por volta dos primeiros quinze ou vinte anos do século XVI, as dispu-tas são ainda bem vivas e acirradas. E Maquiavel, em particular, não renuncia a exercer sua própria autodeterminação política e cultural ao escrever o “Diálogo”,

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AS TRÊS ‘COROAS’ DE FLORENÇA: BOCCACCIO, DANTE E PETRARCA

Juntamente com Dante Alighieri, Francesco Petrarca (1304-1375) e Giovanni Boccaccio (1313-1375) for-mam as três “coroas” de Florença, sendo considerados os pais da língua italiana devido à importância e à influ-ência que suas obras tiveram na for-mação/consolidação do idioma.

Petrarca se destacou, sobretudo, na poesia, sendo atribuída a ele a criação do formato do soneto (poema de forma fixa, composto por quatorze versos – dois tercetos e dois quarte-tos). Além disso, é considerado o pre-cursor do Humanismo, conciliando, no entanto, a valorização do potencial humano com a fé religiosa. Entre sua produção literária, destacam-se as poesias escritas em italiano do “Can-cioneiro” e suas cartas reunidas nos livros “Epistolae familiares” e “Seniles”.

Amigo e discípulo de Petrarca, Boc-caccio era considerado um especia-lista na história de Dante Alighieri e de sua obra. Foi justamente Boccacio que acrescentou ao nome da princi-pal obra dantesca o adjetivo “divina” – isso porque, originalmente, o livro foi intitulado “Comédia”, termo em-pregado no sentido das histórias que começam mal e terminam bem, com finais felizes.

Não bastasse tal fato, Boccaccio ainda entraria para a história ao escre-ver o “Decamerão”, livro que marca uma transição entre a Idade Média e o Renascimento, destacando-se, en-tre outros motivos, por promover uma substituição do amor platônico, espiritual, por um amor mais material, voltado à sensualidade.

Esculturas de Dante, Petrarca e Boccaccio, as três “coroas”, na Galleria degli Uff izi, em Florença

Créditos: Wikimedia Commons

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quase em forma de panfleto, para reba-ter as razões da facção linguística oposta, fortalecida na época graças à circulação nos ambientes intelectuais do tratado dantesco “De Vulgari Eloquentia”.

O tratado, escrito em latim, tinha sido descoberto pelo humanista vê-neto Gian Giorgio Tríssino, que o ti-nha traduzido em italiano justamente para dar peso à tese antiflorentinista. A obra, de fato, embora escrita por um florentino15 – aliás, pelo maior au-tor florentino – parecia constituir-se numa importante aliada contra a tese florentinista; ainda que a interpretação trissiniana do tratado fosse na verdade frágil, pois Tríssino tinha se equivocado em considerá-lo a chave de leitura da “Comédia”. E isso não escapa a Ma-quiavel, que demonstra, falando com Dante no “Diálogo”, não ser a curial, mas francamente a florentina, a língua da obra-prima dantesca.

Pois Dante, no “De Vulgari Eloquen-tia”, tratando da questão de uma língua italiana unitária, tinha realizado uma classificação dos vários vulgares da Itá-lia, com o intuito de verificar qual deles oferecia as melhores condições para se candidatar a vulgar ilustre italiano: uma língua vulgar de valor unitário para toda a Itália, desenvolvida naturalmente pelo povo como instrumento de comuni-cação, mas refinada pelo uso literário.

Nessa análise, criticara o florentino, chamando-o de “turpilóquio” pelo seu pouco refinamento, descartando-o da disputa e preterindo-o em favor de outros vulgares. Graças a essa obra, os adversários de Florença podiam afir-mar que o próprio Dante, florentino, tinha sido contrário à tese da superiori-dade de sua própria língua, afirmando a necessidade de ser a língua comum italiana curial, ou seja, ligada a uma corte linguisticamente representativa de toda a Itália. Tríssino apresentara o livro nas reuniões dos Orti Oricellari (os jardins da família florentina Rucellai), nas quais jovens aristocráticos de sim-patias antimedíceas se encontravam para estudar a história da Roma repu-blicana e debater a historiografia latina. Maquiavel frequentava essas reuniões, representando, na qualidade de ex--secretário da segunda chancelaria da República Florentina (1498-1512), uma espécie de eminência parda para os jo-vens rebeldes.

O “Diálogo”, portanto, deve ser visto como uma firme tomada de posição, um assumido ato de engaja-mento em favor e em defesa de Flo-rença por parte de Maquiavel, que o usa para responder polemicamente a Tríssino (citado de forma alusiva no final da obra) e aos outros partidá-rios da teoria cortesã (Pierio Valeria-no, Mario Equicola, o Calmeta, Bal-

dassare Castiglione etc). Isso explica a energia do raciocínio e do estilo, profundamente interligados, da obra, a paixão abraçada pelo autor em sua composição. Dessa forma, Maquia-vel também dá sua preciosa contri-buição ao debate sobre a questão da língua na Itália, embora o “Diálogo” não tenha exercido uma influência histórica à altura, pois, antes de sua publicação, circulou apenas clandes-tinamente nos ambientes literários. Provavelmente, além de ser malvisto pelos partidários da tese cortesã, não deve ter gozado sequer da simpatia dos próprios florentinos, por conta do ataque a Dante; embora mais tarde vários autores da tese florenti-nista (Martelli, Tolomei, Gelli, Lenzo-ni, Varchi, Salviati) tenham recorrido a partes do “Diálogo” para sufragar suas argumentações linguísticas. No século XIX, é ignorado por Leopardi e Foscolo em seus escritos sobre a língua; porém, é citado por Manzoni pela sua posição contra os precon-ceitos da cultura dos doutos, em fa-vor da língua viva e falada, e por suas críticas ao Ariosto comediógrafo.

Em geral, pelo que diz respeito mais particularmente à análise linguística desenvolvida por Maquiavel no “Di-álogo”, a admiração dos estudiosos a partir do século XIX só aumentou16, e o texto é citado também nos escritos

15 Na verdade, alguns puseram em dúvida, durante certo tempo, a autoria dantesca do tratado, pois Tríssino não divulgou o texto original, mas somente a versão em vulgar feita por ele. Não Maquiavel, de toda forma, como bem entendemos lendo o “Diálogo”.

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sobre a questão da língua de autores estrangeiros17. Considera-se que, com essa obra, Maquiavel, a partir de um conceito de unidade linguística especí-fica – a sua própria, a florentina -, es-taria plenamente inserido na mesma linha de raciocínio em favor da regula-ridade da língua, que, partindo do au-tor das "Regole Vaticane"18, e passando por Leonardo, Pulci, Fortunio, Bembo, Liburnio, leva até Manzoni. No século XVI, seria no “Diálogo”, e não nas “Re-gole”, de Giovanni Francesco Fortunio, escritas em 1516, que se encontraria pela primeira vez um esboço de estu-do gramatical da língua italiana. E Ma-quiavel é considerado um precursor justamente de Manzoni, por conta da sua defesa da língua viva e contempo-rânea, contra a preferência bembesca pelo florentino arcaico.

Mas quais são os principais pontos debatidos no “Diálogo”? Listamos aqui os seguintes19:

• a noção da distinção entre a língua falada e a língua literária, com prefe-rência pelo naturalismo linguístico (e, portanto, em favor da superioridade

do florentino, língua "natural" criação comum e espontânea do povo de Flo-rença e da Toscana, contra a artificiali-dade da língua cortesã);

• a afirmação que, graças à praxe das florentinas três coroas de Florença (Dante, Petrarca, Boccaccio), a língua teria passado ao resto da Itália, "edu-cando" linguisticamente e refinando os escritores não florentinos;

• a crítica ao excesso de abstração da língua cortesã e à heterogeneidade da corte romana;

• o princípio da expansibilidade do tosco-florentino a toda a Itália (em con-sonância com o projeto medíceo do século XV de impor a hegemonia de Florença a partir da língua e da cultura);

• interessantes observações sobre a capacidade assimiladora das línguas (como a afirmação de que a introdu-ção em uma determinada língua de vocábulos estrangeiros, mesmo de muitos, não prejudica a persistência do caráter indígena e autêntico daquela lín-gua; a qual, ao contrário, tem força para torná-los semelhantes a si, integrando--os estavelmente no seu patrimônio linguístico);

• o reconhecimento do caráter es-

truturante e identificador, para uma língua, da sintaxe;

• a importância atribuída à fonética (atenção à pronúncia e aos acentos);

• a firme rejeição do antiflorentinis-mo linguístico de Dante (considerado o autor do “De Vulgari Eloquentia”);

• a censura de certos termos usados por Dante;

• a demonstração da fundamental "florentinidade" linguística de “A Divina Comédia”, apesar da hostilidade de seu autor contra Florença.

Esperamos, com este texto, ter ofe-recido nossa pessoal contribuição para uma maior e melhor difusão, no Brasil, da complexa e fascinante história da lín-gua italiana.

*Excerto do texto publicado original-mente em 2013, nos Anais do II Colóquio Internacional do NEIITA-Núcleo de Estu-dos Interdisciplinares de Italiano da Univer-sidade de Florianópolis, como prefácio à tradução do “Diálogo” feita pela autora.

**Maria Cecilia Casini é docente de Literatura Italiana na Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo (USP)

16 Em particular, Pasquale Villari considera Maquiavel um predecessor de Friedrich Schlegel, fundador da filologia comparada. Entre os estudiosos que apreciaram as qualidades estilísticas e de raciocínio linguístico do Maquiavel autor do "Diálogo", citamos, entre outros, Francesco De Sanctis, Ruggero Bonghi, Pio Rajna, Luigi Morandi, Ciro Trabalza, Vincenzo Vivaldi, Roberto Ridolfi, Hans Baron, Guido Mazzoni, Bortolo Tommaso Sozzi. 17 Ver o texto de Thérèse Labande Jeanroy, "La Question de la langue en Italie", Publications de la Faculté des Lettres de l’Université de Strasbourg, Strasbourg, 1925. 18 Escritas por volta de 1450, são atribuídas ao humanista Leon Battista Alberti (1404-1472). 19 Para uma análise mais detalhada, remetemos à Introdução da edição crítica de Bortolo Tommaso Sozzi, em particular, às páginas XXXIX e XL.

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O DNA de uma obra de arte

Você já se perguntou como os especialistas fazem para af irmar que uma obra é de determinado artista? De fato, é um processo trabalhoso, que exige muito conhecimento, pesquisa e, até mesmo, a realização de procedimentos com as mais diversif icadas técnicas e tecnologias

A conservadora e restauradora Elizabeth Kajiya é especialista em autenticação de obras artísticas. Segundo ela, as análises científi-cas realizadas com o uso de me-todologias físicas e químicas em objetos de arte e do patrimônio cultural permitem obter informa-ções do processo de manufatura, dos materiais existentes, dos pig-mentos utilizados, do estado de conservação, do processo criativo etc. “Essas informações auxiliam nas ações dos procedimentos de conservação e restauro. Em al-guns casos, fornecem dados para identificação do período e/ou es-cola à qual a obra pertence como também podem auxiliar na iden-

tificação de falsificações. Com a experiência do profissional habili-tado somada às análises individuais de cada técnica e suas respectivas particularidades, podem-se obter informações correlacionadas que permitem melhor caracterizar o objeto em estudo”, conta.

Um dos trabalhos recentes rea-lizados por Elizabeth consistiu na análise de um quadro que, su-postamente, seria de autoria de Amedeo Modigliani. A obra teria sido dada pelo pintor italiano ao ilustrador brasileiro José Wasth Rodrigues, com quem dividiu apartamento em Paris no início do século XX. Wasth, por sua vez,

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presenteou o ator e poeta Ruy Afonso com o quadro, que acaba-ria repassado para o atual proprie-tário, Alex Ribeiro, jornalista, ator e pesquisador de arte.

Foi Alex quem deu ao quadro o nome de “Velieri Livorno” (Veleiro Livorno) e, principalmente, iniciou as pesquisas para provar que a obra é de Modigliani – como ouviu de Ruy Afonso ao receber o “pre-sente” em 1999. Inicialmente, Ri-beiro procurou a USP, onde foram

realizados diversos procedimentos investigativos.

Integrante da equipe de pesqui-sa, Elizabeth Kajiya explica que o primeiro passo para a investigação desse quadro – e de obras em ge-ral – foi um estudo sobre a vida e o trabalho do artista. “Após essa pesquisa histórica, a gente parte para a análise por meio de imagens. Tal etapa consiste em trabalhar com espectro eletromagnético em diversas faixas. Fazendo toda

No caso do “Velieri Livorno”, com a macrofotografia, pôde-se observar

uma inscrição no centro inferior da obra em tons alaranjados e vermelhos. Há possibilidade de

se reconhecerem ali as letras “M”, “i”, “g” e “l”, às quais se

poderia associar à assinatura do nome Modigliani – entretanto,

tal identificação é dificultada pela espessura da camada de tinta usada nessa parte da pintura

Crédito: Elizabeth Kajiya

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uma análise com a fotografia de luz visível, vou observar a paleta do pintor, dados estilísticos, composi-ção – tudo para fazer um compa-rativo com a obra do artista que está sendo investigado”, explica a restauradora. No caso do “Velieri Livorno”, com a macrofotografia, pôde-se observar uma inscrição no centro inferior da obra em tons alaranjados e vermelhos. Há pos-sibilidade de se reconhecerem ali as letras “M”, “i”, “g” e “l”, às quais se poderia associar à assinatura do nome Modigliani – entretanto, tal identificação é dificultada pela es-pessura da camada de tinta usada nessa parte da pintura.

Em seguida, utilizou-se a técni-ca de f luorescência visível com radiação ultravioleta, a qual é capaz de evidenciar as diferen-ças entre a pintura original e as áreas de retoque, visto que os reparos que são aplicados mui-to tempo depois da elaboração

A partir de uma análise com luz visível, observa-se a paleta do pin-tor, dados estilísticos, composição – tudo para fazer um comparativo com a obra do artista que está sen-do investigado

Crédito: Elizabeth Kajiya

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A radiação ultravioleta é capaz de evidenciar as diferenças entre a pin-tura original e as áreas de retoque,

visto que os reparos que são aplica-dos muito tempo depois da elabo-ração da obra possuem coloração

diferenciada, sobretudo quando executados sobre um verniz

Crédito: Elizabeth Kajiya

da obra possuem coloração di-ferenciada, sobretudo quando executados sobre um verniz. Já por meio de uma técnica cha-mada ref letograf ia de infraver-melho, constatou-se que o qua-dro não possui intervenções de restauro nem danos relevantes. Esse último procedimento tam-bém permitiu a visualização de outra inscrição, não sendo pos-sível, porém, decifrar seu conte-údo (na imagem feita com au-xí lio de contraste de negativo/

positivo, conseguiu-se verif icar apenas a letra “H”).

Não satisfeita com os resultados da refletografia de infravermelho, a equipe de pesquisa partiu para exames de raio X, que conse-guem chegar às subcamadas da pintura. “Como cada equipamen-to e técnica tem a sua limitação, nós vamos fazendo outras análises complementares”, explica Elizabe-th, apontando os objetivos espe-cíficos para o uso do raio X. “A

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radiografia foi utilizada para tentar encontrar detalhes em uma ca-mada mais profunda que a do in-fravermelho. Entretanto, também não observamos nenhuma infor-mação relevante.”

Pinceladas, luz rasante, fluo-rescência de raio X e técnica de Raman

Ainda no campo de estudo de imagens, as pinceladas – movimen-tos e texturização – do autor da obra, bem como os instrumentos usados por ele foram avaliados por meio da técnica de análise com luz

rasante. Ou seja, um feixe tangen-cial de luz evidenciou a técnica de pintura executada pelo artista, que revela camadas espessas da policromia, variações de texturas e também os sulcos das cerdas do pincel.

A pesquisa a respeito de “Ve-lieri Livorno” ainda se preocupou com a identificação dos pigmen-tos. Na Universidade Estadual de Londrina (UEL), foi realizado um estudo com Fluorescência de Raio X por Dispersão em Ener-gia (EDXRF). “Essa técnica possi-bilita identificar o elemento quí-

A refletografia de infravermelho mostrou que o quadro não possui intervenções de restauro nem danos relevantes. Esse último procedimento também permitiu a visualização de outra inscrição, não sendo possível, porém, decifrar seu

conteúdo

Crédito: Elizabeth Kajiya

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mico presente em cada tinta. Por exemplo, a partir de dois tons de azul, faz-se uma medida, que vai gerar um espectro. E esse espec-tro me dará o elemento químico presente. Assim, consigo verifi-car se o azul é à base de ferro ou cobalto, e, através de bibliografia e de estudos anteriormente rea-lizados, temos uma tabela de pig-mentos e sua composição, que apresenta uma cronologia para que se identifique o período em que foi feita aquela tela. Dá para separar mais ou menos as tintas por períodos”, explica Elizabeth. Nessa etapa foram observados

os elementos químicos Cr, Fe, Cu, Zn, Hg, Pb. Enquanto a fluorescência de raio

X se ocupa da identificação do elemento químico, a Microcospia de Raman, uma técnica de análise de superfícies, fornece aos pesqui-sadores a composição química da obra. No caso de “Velieri Livorno”, os indícios da presença de litopone, um pigmento branco que come-çou a ser comercializado em 1874, somada à ausência de pigmentos modernos como branco de titânio e compostos orgânicos sintéticos, indicam que a tela poderia ter sido pintada entre o último quarto do

Exames de raio X são utilizados para tentar encontrar detalhes em subcamadas mais profundas que as

alcançadas pelo infravermelho

Crédito: Elizabeth Kajiya

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século XIX e o primeiro quarto do século XX – exatamente o período cogitado pelo proprietário da obra. “A paleta bate com as características do período em que supostamente foi pintada a obra. Quando foi feita a análise tanto de Raman (realizada no Instituto de Química da USP) quanto de fluorescência de raio X, elaboramos o cruzamento dos da-dos e, analisando cada espectro de cada ponto, deu para ver que é uma pintura do período que está sendo indicado na obra”, disse Elizabeth.

Assim, com o uso de todos esses recursos, segundo a especialista, os estudos feitos no Brasil conse-guiram obter o levantamento da paleta e da técnica artística utili-

zada (óleo sobre cartão) na obra. Também apontaram que as inscri-ções do quadrante inferior direito e do quadrante inferior central são de difícil leitura e ainda estão sen-do investigadas.

Ou seja, apesar de a paleta corres-ponder ao período esperado, até o momento, não há nenhum indício de que a obra seja efetivamente de Mo-digliani. Entretanto, Elizabeth afirma que as análises pelas quais o quadro passa na Espanha na atualidade po-dem trazer novas informações.

Dante e Modigliani

De fato, a obra não possui os traços característicos que con-

A técnica de análise com luz rasante avalia as pinceladas – movimentos e texturização – do autor da obra,

bem como os instrumentos usados por ele

Crédito: Elizabeth Kajiya

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sagraram Modigliani. Alex Ri-beiro, proprietário do quadro, argumenta, porém, que o pintor italiano a teria feito na época de estudante, quando ainda buscava um estilo próprio. Inclusive, no blog (http://amedeomodigliani.blogspot.com.br/) que criou para narrar o processo de autentica-ção do quadro, Ribeiro alega que Guglielmo Michelli, um dos pri-meiros professores de Modiglia-ni, era conhecido por pintar pai-sagens, principalmente marinhas, temática de “Velieri Livorno”.

Um fato que chama a atenção no quadro é, segundo a interpretação de Alex Ribeiro, a presença de elementos que remetem ao livro “A Divina Comédia”, obra máxima do poeta italiano Dante Alighieri. De acordo com pesquisas realiza-

das pelo proprietário do quadro, desde criança Modigliani teve con-tato com os versos de “A Divina Comédia” graças à sua mãe, Euge-nia Garsin, e a seu avô Isaac Gar-sin. Inclusive, há notícias de que, já adulto, o italiano recitava versos da obra de Dante Alighieri nos cafés de Paris. Além disso, Ribeiro sus-tenta que outro aspecto une Mo-digliani e Dante: o fato de serem iniciados em práticas de ocultismo.

Sob orientação do investigador mexicano Luis Aguirre Morales, Ribeiro diz ter encontrado sím-bolos da cabala e da alquimia em “Velieri Livorno” – tais como crâneos, serpentes, cavalo, de-mônios, moscas, barco –, que seriam uma homenagem à obra máxima de Dante. O proprietá-rio também submeteu o quadro

a um estudo em um Centro de Cultura Judaica em São Paulo.

Todos os esforços de Alex Ribeiro para provar a autenticidade de “Ve-lieri Livorno” podem ser unicamente premiados pelo Instituto Modigliani, localizado em Roma. “No Instituto, uma equipe avaliará as análises fei-tas no Brasil e os diversos aspectos da obra, desde o suporte, passando pela base de preparação das tintas até chegar à técnica utilizada pelo pintor. Eles também têm mais ele-mentos para realizar essa identifica-ção, uma vez que devem possuir ou-tras das poucas obras que restaram da época de estudante de Modigliani. De qualquer modo, como o Institu-to é o detentor dos direitos da obra do artista, é sua equipe que bate o martelo e diz se a obra é ou não de Modigliani”, esclarece Elizabeth.

Nesta imagem, observam-se o craquelamento na policromia e um dos elementos cabalísticos: o cavalo

Crédito: Elizabeth Kajiya

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Intersecções

Dante-Dalípor Gustavo Antonio*

A figura de Salvador Dalí e o seu estilo de fazer arte talvez o tornassem um dos artistas mais indicados para retratar “A Divina Comédia”, livro de Dante Alighie-ri que consta entre as grandes obras literárias da humanidade. Dalí, em seu misto de excentrici-dade, genialidade, loucura, perspi-cácia e talento incríveis, acumulou ao longo da carreira – e dos seus quase 85 anos de vida – criações, fases e episódios dignos de cons-tar no “Inferno”, no “Purgatório” e no “Paraíso”, justamente as três partes do poema dantesco.

Hilário Domingues Neto, soció-logo, historiador e artista plástico, faz uma analogia entre Dante Ali-ghieri e o artista espanhol.

“Eu pesquisei sobre Salvador Dalí e Dante em vários auto-res. Eu falo que os dois são cúmplices. Embora, em tem-pos diferentes, eles consegui-ram juntar um conhecimento ao outro. Um tratou do co-nhecimento da história da Itá-lia , da Idade Média, pois há, na obra de Dante Alighieri, muito da visão que se tinha de mun-do naquela época; e Salvador Dalí interpretou o mundo con-temporâneo, além de retratar “A Divina Comédia” com base nos ideais surrealistas. Aliás, acho que os dois foram surre-ais. O Dante foi um surrealista literário de sua época, e Salva-dor Dalí foi um surrealista das ar tes plásticas”, af irma.

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Seguindo a linha de raciocínio do professor Hilário, é possível dizer que Dante utilizou uma re-presentação sobre o mundo dos mortos para retratar os dramas dos homens da Idade Média, en-quanto Dalí buscou nos sonhos e no inconsciente, por meio do Surrealismo, uma forma de dia-logar e expandir as possibilida-des da realidade do mundo con-temporâneo.

Surrealismo

Em 1928, Dalí se mudou de Madri para Paris. Na capital francesa, se juntou a ar tistas que iniciavam o movimento ar-

tístico conhecido como Surrea-lismo. Inf luenciados pelas ideias do psicanalista Sigmund Freud, esses pintores, poetas, cineas-tas etc. expressavam, em forma de ar te, temas relacionados ao inconsciente e aos sonhos, bus-cando ultrapassar os limites do racional e do lógico.

“O Surrealismo é destruti-vo, mas ele destrói somente o que acha que limita nossa vi-são”, dizia Salvador Dalí, que se transformaria em um dos maiores nomes desse movimen-to ar tístico. Obras suas como “A persistência da memória” (a dos famosos relógios derreten-

do) e “O grande masturbador” tornaram-se referências quando se fala em Surrealismo. Nessa mesma linha ar tística, Dalí tra-balhou com o também espanhol Luis Buñuel no curta-metragem “Um cão andaluz”, considerado o maior expoente do cinema experimental surrealista.

Entretanto, devido aos seus supostos apoio e simpatia ao governo do ditador Francisco Franco na Espanha, Dalí acabou sendo renegado por diversos ar-tistas surrealistas, principalmen-te por Andre Breton, precursor do movimento, uma vez que estes defendiam ideais antitota-

Salvador Dalí em 1939

Crédito: Coleção de fotografias Carl Van Vechten na Biblioteca do Con-gresso dos EUA

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“O nascimento dos desejos líqui-dos” (1932), de Salvador Dalí

Crédito: Reprodução do livro "Arte nos Séculos – volume VII – A Arte Contem-porânea" – Editora Abril Cultural, 1971

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litários. Na ocasião, Dalí desde-nhou de seus ex-companheiros. “A única diferença entre mim e os surrealistas é que eu sou o Surrealismo”, teria dito.

Dante, Dalí, Divina Comédia

Salvador Dalí sempre foi mui-to espirituoso e exibia um gran-de talento para formular frases de efeito. E algumas dessas ci-tações chamam a atenção por convergirem com fatos e ideias relacionados a Dante Alighieri. A inventividade imagética – e o grande talento para descrevê-la –, por exemplo, é um fator co-mum aos dois ar tistas.

A descrição dos ambientes do “Inferno”, do “Purgatório” e do “Paraíso” feita por Dante Alighieri é um dos pontos mais exaltados pelos críticos de “A Divina Comédia”. Isso porque o poeta conseguiu criar cenários e situações com tamanha riqueza de detalhes que acabaram mol-dando o imaginário ocidental sobre o tema. Até por isso, di-versos ar tistas plásticos – como Gustavo Doré, William Blake e o próprio Dalí – deram suas versões ar tísticas para o poe-ma-mor da língua italiana.

Dalí, seja na pintura, na escultu-ra ou nas outras áreas artísticas

em que atuou (pois, como disse certa vez, “pintar é uma parte infinitamente minuta da minha personalidade”), também utili-zou ao máximo seu talento para a criação de imagens memorá-veis – no caso, explorando, prin-cipalmente, a estética surrealista.

“O que é o aparato da tele-visão para o homem, que tem apenas que fechar seus olhos para ver as mais inacessíveis re-giões do visto e do jamais visto, que tem somente que imaginar para perfurar paredes e origi-nar todos os Bagdás planetá-rios de seus sonhos para erguer das cinzas”. A frase anterior de Dalí resume bem a crença que ele possuía na capacidade criati-va do homem e, curiosamente, pode-se dizer que casa perfeita-mente com o que fez Dante Ali-ghieri em “A Divina Comédia” ao elaborar imagens capazes de atingir em detalhes as até então inacessíveis regiões do mundo dos “mortos”.

Na série de gravuras que rea-lizou para apresentar sua inter-pretação de “A Divina Comé-dia”, por ocasião dos 700 anos de Dante, em 1965, Dalí pro-moveu o casamento das ima-gens poéticas criadas por meio de versos pelo italiano e o estilo surrealista. Segundo af irmou a

curadora Ania Rodriguez Alon-so em entrevista concedida ao site do jornal Gazeta do Povo, nas ilustrações de Dalí sobre a primeira parte da obra, “Infer-no”, é possível enxergar a veia surrealista, o mundo de sonhos e pesadelos do ar tista. “Ve-mos uma pessoa mais temero-sa, tomada por suas paixões”. No “Purgatório”, segundo Ania, essa vertente se conjuga com um Dalí mais calmo e lírico. Na última parte do poema, “Pa-raíso”, é a religiosidade que se expressa de forma clara, e os desenhos ganham um tom mais sutil e conciliador, apresentando um Dalí mais maduro.

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Arte como ferramenta para melhorar o homem

Dante Alighieri tinha como um de seus principais objetivos, ao escrever “A Divina Comé-dia”, deixar para a posteriori-dade uma obra que ajudasse a melhorar os seres humanos, tornando-os mais justos, éticos e verdadeiros. Em um aspecto mais transcendental, buscava contribuir para a purif icação dos homens, livrando-os dos “peca-dos” do materialismo e priori-zando os valores caros a Deus.

Salvador Dalí também ex-pressou, por meio de suas frases, a conf iança no poder transformador da ar te. “A ar te progressiva pode ajudar as pes-soas a aprender não somente sobre as forças objetivas em ação na sociedade na qual elas vivem, mas também sobre a ca-racterística intensamente social de suas vidas interiores. No f i-

nal das contas, isso pode impul-sionar as pessoas para a eman-cipação social”, af irmava.

Mas a ideia de Dalí sobre a ar te que talvez mais se aproxi-me do intuito de Dante em “A Divina Comédia” é a seguinte: “Eu não pinto um retrato para se parecer com a pessoa, mas sim para fazer a pessoa progre-dir e se parecer com seu retra-to”. E Dante, em sua obra má-xima, apresenta justamente um ser humano que busca evoluir e, assim, servir como modelo para as demais pessoas. Ou seja, os dois gênios almejaram utilizar o fazer ar tístico para atingir um f im semelhante. A diferença é que, enquanto Dalí pintou esse “homem melhor”, Dante o re-tratou por meio de seus origi-nais e poderosos versos.

*Gustavo Antonio é editor--assistente da revista InArte

“Prenúncio da Guerra Civil”, também de Dalí

Crédito: Reprodução do livro "Arte nos Séculos – volume VII – A Arte Contem-porânea" – Editora Abril Cultural, 1971

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“DANTE EM DALÍ: REALIDADE ONÍRICA”

EXPOSIÇÃO

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“DANTE EM DALÍ: REALIDADE ONÍRICA” GRAVURAS DE SALVADOR DALÍ

Realização: Colégio Dante Alighieri

Idealização e Coordenação-geral: Claudio Callia

Produção: Departamento de Marketing do Colégio Dante Alighieri

Supervisão Executiva: Fernando Homem de Montes

Curadoria: Olívio Guedes

Conservação Científ ica: Elizabeth Kajiya

Projeto Expográf ico:Arquiteto Felipe Vasconcelos Rodrigues

Ação Educativa:Coordenação: Gisele Ottoboni

Supervisão e Mediação: Maurício A. EloyMediação: Isabela Baptista Caetano da Silva, Juliana Cezar Mileo, Lara

Zanetta Brener, Marina Klautau Felipe

Apoio Cultural:Sr. Diogo Ibaixe

Prefeitura Municipal de São Carlos-SP

Vernisage: 23 de novembro de 2015

Exposição: De 23 de novembro a 8 de dezembro de 2015 no

Colégio Dante Alighieri, em São Paulo-SP

Todos os direitos desta edição reservados ao Colégio Dante Alighieri

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DANTE EM DALÍ

Dante em Dalí - reALIdAde onírIcA

Realidade OníricaPor Olivio Guedes (Curador)*

“Cuando se es um gênio no tenemos derecho a morirnos... Porque hacemos falta para el progresso

de la humanidade.”

(Salvador Dalí )

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Por que Salvador Dalí realizou estas obras?

Este projeto não se originou simplesmente porque o gover-no italiano lhe fez o convite para homenagear os 700 anos (1265-1965) do nascimento de Dante Alighieri (1265-1321), mas, Dalí, ao pintar a obra “A persistência da memória”, nos apresenta um pouco dessa resposta.

Gala, sua esposa (ex-mulher do poeta Paul Éluard), havia ido ao teatro com amigos; Dalí es-tava com dor de cabeça e re-solveu f icar em casa. Enquan-to esperava o retorno de sua mulher, ele pintou essa obra. Quando Gala a observou, Dalí viu em seu semblante “contra-ção inequívoca de espanto e ad-miração” e perguntou se achava que em três anos ela esqueceria aquela imagem; teve como res-posta: ninguém poderia esque-cê-la uma vez vista!

Dalí, ao conhecer a obra de Dante, se identif icou com a vida e obra deste italiano poeta!

“Toda a minha ambição no campo pictórico é materializar as imagens da irracionalidade concreta com a mais imperialis-

ta fúria da precisão”. Esse dizer de Dalí nos apresenta a questão do "símbolo metafórico", que compõe suas obras.

Artista catalão

Às 8h45 do dia 11 de maio de 1904, na cidade de Figueres, Es-panha, nasce Salvador Dalí Do-ménech. Seu pai, Salvador Dalí, um notário ateu de alta classe social, e sua mãe, Felipa Domé-nech, católica praticante, forja-ram a base deste nosso ar tista. Sua mãe faleceu quando ele ti-nha 16 anos, perda profunda para este buscador do incons-ciente. Mas, essa família teve um primogênito, ou seja: anterior ao nosso ar tista, que também se chamou Salvador, que veio a falecer com 21 meses de idade. Assim, o ar tista Salvador Dalí teve uma incumbência além de viver: cumprir expectativas des-se primogênito. E sua irmã Ana Maria, três anos mais jovem, es-creveu o livro: “Dalí visto pela sua irmã”.

Dalí, em suas obras, claramente apresentava a realidade da vida. Assim, a realidade trata também da morte, um mundo fantasma-górico, um mundo bordeline; esse termo fronteiriço não trata

simplesmente de estados entre o normal e o psicótico, mas de uma instabilidade frequente, que em Dalí se apresenta no lidar com as emoções, a impulsivida-de, a ansiedade, a irritabilidade, que, em sua experiência de vida como artista, o fizeram realiza-dor, portanto, criador e assim um grande artista!

Sua adaptação ao Surrealis-mo como epíteto se apresentou graças aos relacionamentos com os objetos de representações. Seus lados punitivo e sádico deram sua genialidade aos pre-ceitos, pois suas representações em animais e insetos mostram um comportamento corpóreo destruidor para confrontar as dores da alma.

Seus motivos histéricos, suas grandes tempestades emocio-nais habitam plenamente suas obras, em que a motivação obsessiva-compulsiva cria esta-dos de ar te nos quais seus me-canismos de inteligência propi-ciam criações desconcertantes à interpretação do observador. Com isso, sua ar te desenvolve um estado de consciência que transforma o falador em visua-lizador e, com esse movimento, a competência técnica em Dalí

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objetiva esse acompanhante a se tornar um companheiro de suas viagens.

Suas experiências no mundo da arte – entenda-se, a arte como um todo, da política à pintura, ou seja, as representações de nossa sociedade – têm por norma si-tuações que são mudadas a cada instante, pois a única razão certa é a incerteza da razão!

Sua experiência anterior ao Surrealismo, ao passar pelo Dadaísmo, inf luenciou seu tra-balho. Dalí claramente se iden-tif icou nessa vanguarda que se apoiava em poetas, escritores e, depois, em artistas plásticos que utilizavam como marco o nonsense: exatamente a falta de sentido como cada sentido, seja ele qual for, tem sua explicação no mundo dos seres humanos. O princípio como modo dos da-daístas era não ter princípio!

“A obra de arte não deve ser a beleza em si mesma, porque a beleza está morta.”

T. Tzara (1896-1963), poeta dadaísta

Salvador Dalí percebeu que sua ar te é a de estar vivo e re-presentar seu personagem, qual seja, sua própria existência. E

isso é também ser louco, pois o sistema pede normas.

Amor cuidador

Sua enfermidade teve uma cuida-dora e ela chamava-se Gala. Para se aproximar, criou um momento, pois percebeu tratar-se de uma mulher de sua categoria. Assim, para impres-sioná-la, cortou um orifício na cami-seta à altura do mamilo, raspou as axilas até fazê-las sangrar e se untou com desperdícios fecais por todo o corpo. E isso fez com que vivessem juntos por mais de 50 anos.

Seus jogos com a vida, Gala nasceu para ser musa de Dalí; sua origem russa como Elena Ivanovna Diako-nova, de uma família de intelectuais, alicerçou-a para a convivência. Ca-sara anteriormente com o poeta francês Paul Éluard (1895-1952), com quem teve uma filha. Envolveu-se com o movimento Surrealista, foi inspiração do poeta francês Louis Aragon (1897-1982), de Max Ernst (1891-1976), pintor alemão, de André Breton (1896-1966), escritor francês, teórico do Surrealismo; este, alegan-do que Gala era uma má influência, se desentendeu com ela.

Gala e Paul Éluard visitaram um jovem artista no ano de 1929. Esse ar tista era Salvador Dalí. Gala e Dalí se identif icaram imediatamente. Seus dez anos a

mais deram a base para relacio-nar-se com Salvador.

O canibalismo é a paixão mais terna do ser humano!

(Dalí )

Salvador, como gênio, é ris-cado como louco; seus conhe-cidos, como o cineasta espa-nhol Luis Buñuel (1900-1983) e o poeta espanhol García Lorca (1898-1936), sustentaram esse seu cotidiano. Sua arranhadu-ra patológica infantil constituiu uma personalidade que rom-peu com o convencional, com o estabelecido; sua dif iculdade para manter amigos mostrava sua busca totalizadora, que era apresentada em seu exibicionis-mo, em sua extravagância e em seu extremo narcisismo.

Ao declarar “sou absoluta-mente impotente”, nos aperce-bemos de sua loucura genial!

A compreensão da arte cabe à mente dos observadores: Salvador foi o salvador da enfermidade do normal! Curar um ser nesse esta-do é matar a criação, que é divina!

Tratado com caprichos extre-mos pela mãe, sem nem uma re-primenda, Salvador era colocado por ela no centro do universo,

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tornando-se, assim, extrema-mente narcisista. Nesse contex-to, a qualidade estética de Dalí apontou desde cedo e, em sua infância, isso se tornou real. Seu pai, então, o encaminhou para escola de Belas Artes de Madrid.

Por declarar a incompetência de seus mestres para lhe ensinar e avaliar, foi expulso em 1926. Sua primeira exposição aconteceu em Cadaqués, aos 21 anos. Após a expulsão, viajou para Paris, onde conheceu o pintor Pablo Picasso

(1881-1973) e o escritor André Breton (1896-1966), habilitando--se para os Surrealistas.

Sua diferença para os ar tistas surrealistas: os ar tistas pintam Surrealismo, e eu sou surrealis-ta, disse Dalí.

Os outros mundos estão em nosso... (Dalí )

Ismo artístico

O Surrealismo, movimento literário-artístico de desenvol-vimento internacional, detém fortes ligações psicanalíticas. Em 1938, nosso artista protagonista, Dalí, conhece o criador da psi-canálise, Sigmund Freud (1856-1939), neurologista cujas teorias são utilizadas no Surrealismo, em que se enfatiza a questão do in-consciente, pois o racionalismo estaria reduzindo a criação na arte. Este termo, “surrealismo”, foi criado pelo crítico francês Guillaume Apollinaire (1886-

Canto XXVIII - Inferno

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1918), que define o movimento como além e sobre o real.

Momento dos Manifestos, no caso do Surrealismo, foi escrito e desenvolvido por André Bre-ton, em 1924, sendo seus re-presentantes mais reconhecidos Antonin Artaud (1896-1948) no teatro; Luis Buñuel (1900-1983), no cinema; e Max Ernest (1891-1976), René Magritte (1898-1927) e Salvador Dalí nas ar tes plásticas.

Tal estilo caracteriza-se por re-presentações figurativas do abs-trato, do irreal e do inconsciente. Pertencem-lhe também a escrita automática e a colagem. Seu moto habita na libertação da lógica e da razão, caminhando no mundo onírico, mas seu modelo estético é a forma de enxergar o mundo, a busca do transcendental, o além da objetividade, e a subjetividade como poética da alucinação, da alteração de consciência – alterar seus estados, com isso buscando uma realidade onírica!

O nosso surrealista, com a Se-gunda Grande Guerra, irá para os Estados Unidos em 1942, vol-tando para a Catalunha sete anos depois. Cria o Teatro-Museu em 1960, em sua cidade natal. Aber-to em 1974, esse espaço abriga a

maior e mais diversificada cole-ção das obras de Salvador Dalí. É também o local em que o corpo do artista está sepultado.

Em 1982, Gala falece, e Dalí en-tra em uma fase de grande de-

Canto I - Purgatório

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pressão: sua produção não existe, ele não come, alimentando-se por sonda. Em 1984, seu quarto incen-deia-se; o artista passa a ser assis-tido. Em 23 de janeiro de 1989, às 10 horas, Dalí morre em Figueres aos 85 anos devido a uma pneu-monia, doença de inflamação dos pulmões. Seu ar se libertou para além-vida, para o surreal.

Indo em busca de nossa res-posta: qual foi a identificação de Salvador Dalí com Dante Alighieri?

Dante Alighieri (1265-1321) nasceu em Florença, região da Toscana, sem a precisão de data, mas, sob o signo de gême-os; autodidata, buscou conhe-cimento nos autores clássicos, como o poeta Virgí lio (70 a.C. – 19 a.C.), o poeta Horácio (65 a.C. – 8 a.C.), o f ilósofo Cícero (106 a.C. – 43 a.C.), o advogado escritor Séneca (4 a.C. - 65), o notário e escritor Brunetto Lati-ni (1220-1295), além dos menes-tréis e provençais poetas. Tam-bém teve interesse por música e pintura. O hipocorístico de seu nome vem de Durante, seguido do patronímico Alagherii.

Dante politico-guerreiro-poe-ta: sua família era comprometi-da com os guelfos de Florença, aqueles que se prestavam ao

papa, assim, contra os oposi-tores, os gibelinos, aqueles que eram coniventes com o Impé-rio Romano-Germânico. Seu pai, Alighiero di Bellincione, um guelfo; sua mãe Bella (Gabrie-la) Degli Abati morreu quando Dante tinha apenas cinco ou seis anos. Seu pai se uniu com Lapa di Chiarissimo Cialuff i, nascen-do Francesco e Tana (Gaetana), seus irmãos.

Jovem, Dante casou-se com Gemma, arrumado por seu pai, e tiveram Jacopo, Pietro e Anto-nia, talvez outros f ilhos. Antonia tomou o hábito com o nome de Beatriz.

Par ticipou de duas batalhas importantes: batalha de Cam-paldino, em 1289, e escolta de Carlos de Anjou (1226-1285), servindo em Florença. Fez parte de vários conselhos e foi ligado à corporação de farmacêuticos, à guilda dos boticários, podendo assim, como usual na época, as-cender à vida política.

Chegou a ser embaixador na corte de Bonifácio VIII, com quem teve desavença, sendo acusado de indevido uso do cargo públi-co. Ficou desterrado em Roma. Viveu 21 anos de exílio, em várias cidades como Arezzo, Forli, Luc-ca, Ravena, Veneza, Verona, etc.

Em 1318, foi convidado pelo príncipe Guido Novello da Po-lenta a morar em Ravena, onde terminou o texto do “Paraíso” de “A Divina Comédia” em 1321, falecendo nesse mesmo ano. Foi sepultado em Ravena, na igreja de San Pier Maggio-re (mais tarde San Francesco), onde se encontra até os dias de hoje, morto, aos 56 anos, por malária. Malária, doença aguda causada por parasitas, cujos sig-nif icados poderão se encontrar na constituição dos livros “Infer-no” e “Purgatório”. Ao concluir o “Paraíso”, transitou.

Sacerdotes guerreiros

Seu período de vida foi mar-cado por perturbações políti-cas, principalmente pela Ordem dos Templários; foi contra o término da Ordem por Felipe IV (1268-1314) e Clemente V (1264-1314). Dante adorava o ideal espiritual e a busca pela justiça dos Cavaleiros do Tem-plo. Lembrando que Bernardo de Claraval (1090-1153), que o acompanha no “Paraíso”, é um sacerdote-guerreiro da Ordem do Templo. Nesse mesmo perí-odo, a poesia e o canto através dos trovadores e menestréis, seres livres, eram conhecidos como Fidelli d´Amore (Fiéis do Amor); seus jograis eram inici-

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áticos, e Dante estava entre es-tes. E neste ambientado viver que escreveu "La Commedia" ("A Comédia").

Por estar desterrado, assim, contra Roma, escreve em dia-leto próprio, local – o toscano, língua vulgar –, não em latim, o idioma dominante. Dessa forma, organizou a base do idioma ita-liano como é hoje.

"A Comédia", uma iniciação

O título “A Comédia” foi dado pelo motivo que f indava bem: no céu. O adjetivo divino é posto pelo crítico literário Gio-vanni Boccaccio (1313-1375). A edição de 1555, publicada por Lodovicco Dolce (1508-1568) e executada por Gabriele Giolito de Ferrari (1508-1578), trará o novo título: “A Divina Comédia”.

Sua estrutura se constitui por 100 cânticos, num total de 14.233 versos, divididos em três partes: Paraíso, Purgatório e Inferno. Mostram-se em 33 cantos, com cerca de 40 a 50 tercetos. Há um canto intro-dutório para formar o número 100, número simbólico da Per-feição Absoluta: múltiplo de 10 (número pitagórico).

O canto é composto de 130

a 140 versos em rima de ter-ça: versos colocados em grupos de três. Sua harmonia se exibe com os números 3, 7, 10 e seus múltiplos, marcando assim o simbolismo da cultura medieval, a Santíssima Trindade, o segui-mento dos Templários.

A harmonia organiza a métrica adotada, em versos hendecassí-labos (11 sí labas) e rimas no co-lóquio ABA, BCB, CDC, VZV – assim, o verso central rima com os 1º e 3º do grupo.

Chamado de terceto dantesco, estruturado por Dante, criado por ele. Os três livros terminam com a mesma palavra: stella, “estrela”, sim-bolizando o padroado da Mãe Divi-na, aclamando Stella Maris. Podemos lembrar o hino composto por Ber-nardo de Claraval, "Ave Maris Stella".

O conhecimento de Dante so-bre geograf ia e astronomia era ptolomaico e, com essa base, concebeu os organismos divi-sores, uma vez que a obra foi escrita no século XIV.

O "Inferno" é composto de nove círculos de padecimen-tos, três vales, dez valados e quatro esferas, localizados no interior planetário. O "Purga-tório", espaço intermediário, se localiza no austral, ilha que

é uma montanha organiza-da por sete elevações, que se prestam para arrependimento, expiação. Nesses dois espaços circunstanciais, quem o orienta é o poeta Virgí lio. Ao chegar ao "Paraíso", encontra esferas cêntricas em número de dez, realizando o caminho para a ascensão. Não mais Virgí lio o encaminha a par tir do terceiro cêntrico; é Bernardo de Clara-val, cavaleiro templário, quem passa a guiá-lo. Ao ver o céu mais luminar, Dante encontra Beatriz, sua Graça Divina (Cla-raval não mais o acompanha), concomitante, tem a visão de uma rosa branca, com triângulo central, símbolo da alma.

“A verdade é que, como forma muitas vezes não se harmo-niza com a intenção da arte, porque a matéria é surda a responder.”

(Dante)

Sociedade que em que Dante vivia

Seu caminhar interior se trans-formou em uma viagem, uma senda iniciática.

Suas referências de personagens fo-ram a sociedade florentina e europeia, pessoas de sua cultura. Terminaria sua obra em 1321, ano de sua morte.

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Nessa obra, ambientada por seitas religiosas, grupos políticos trazem uma linguagem secreta, em que os círculos esotéricos se representam com sinais iniciáticos e senhas secre-tas são apresentadas em números.

Contingências para o caminho da purif icação mística, em que a perfeição no caminhar para o encontro da Graça Divina e a garantia da imortalidade es-piritual trazem o pragmatismo

da representação do peregrinar do despertar interior, passan-do pelos tortuosos caminhos para chegarmos a um estado de adepto.

“Abre a mente ao que eu te revelo e retém bem o que eu te digo, pois não é ciência ouvir sem reter o que se escuta.”

(Dante)

Salvador Dalí, ao compre-ender o caminho iniciático de Dante Alighieri, se identif icou com esse despertar, assumindo, assim, seu emocional para ex-por toda sua loucura de adepto – “Dante em Dalí ” – através da técnica de aquarela, onde a ac-quarella tem como base a água, símbolo da emoção. Assim sur-ge a Realidade Onírica!

Como as obras chegaram aqui?

As gravuras do “Inferno”, do “Purgatório” e do “Paraíso” foram trocadas por 300 moedas de ouro (Império Austríaco).

Lover Ibaixe, fazendeiro da cida-de de São Carlos, interior paulista, foi apresentado ao pintor Salvador

Canto VIII - Paraíso

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Dalí e a sua esposa Gala, na década de 1960, em Madrid, Espanha.

Esse pecuarista carregava sempre no bolso as moedas com as quais brincava à mesa na ocasião desse encontro; Gala, ao reparar, pergun-tou se ele tinha muitas delas. Lover respondeu: umas trezentas! Assim, foi apresentada e oferecida para trocar com o apreciador de arte esta coleção de 100 obras.

Estas gravuras, realizadas original-mente em aquarela, foram super-visionadas pelo editor de gravuras de Dalí, Joseph Fôret, e executadas pelos xilogravuristas franceses R. Jacquet e J. Tarico, no ano de 1959. Constam da primeira tiragem da série de reproduções, conhecida como “edição do autor”; inclusive, as obras possuem as iniciais E. A. (Épreuve d´Artist), prova do artista, e a marca de Dalí, segundo Ibaixe.

Portanto, foram adquiridas dire-tamente de Gala Éluard Dalí. Esta coleção tem como moradia o Espa-ço Cultural Acervo Antonio Ibaixe, na cidade de São Carlos-SP.

A tratativa se desenvolveu para realização desta mostra no Colégio Dante Alighieri pelo motivo dos 750 anos do nascimento (1265-

2015) do poeta Dante Alighieri, que justamente dá o nome a esta Casa de Ensino.

O conhecimento e desenvol-vimento desta exposição se de-ram pelo editor da revista InArte, o artista plástico Claudio Callia. As tratativas com a família Ibaixe, Coordenadoria de Cultura, Prefei-tura de São Carlos entraram em conformidade e apreciação junto à Diretoria Executiva e ao Conselho do Colégio Dante Alighieri. Assim, surge esta mostra.

Por que no Colégio Dante Alighieri?

O Colégio Dante Alighieri foi fun-dado em 1911 por imigrantes italia-nos. Por volta de 1870, um grande fluxo de imigrantes italianos chegou ao Brasil e, particularmente, à en-tão província de São Paulo.

No começo do século XX, a cidade de São Paulo tornava-se a mais italiana das cidades brasileiras. Para os italianos que aqui se en-raizavam, era preciso fundar uma escola que fortalecesse a sua iden-tidade cultural.

E assim foi feito! Com mais de cem anos de história, esta Casa de Ensino vem transmitindo um co-

nhecimento que se transforma em sabedoria, do italiano sapore, que quer dizer: sabor.

O sabor pela vida, portanto, forja pessoas que foram alunos, palavra latina que significa sem luz; forjando assim, pessoas com ‘sabor para a luz’, ou seja: Buscar o Conhecimento.

Haja vista os nomes de alguns de seus prédios:

Leonardo da Vinci (1452-1519), polímata italiano e uma das fi-guras mais importantes do Alto Renascimento, que se destacou como cientista, matemático, en-genheiro, inventor, anatomista, pintor, escultor, arquiteto, botâ-nico, poeta e músico. Conhecido como o percursor da aviação e da balística. Arquétipo do homem do Renascimento. Considerado um dos maiores pintores de to-dos os tempos. Seus interesses não tiveram precedentes.

Galileo Galilei (1564-1642), um italiano físico, matemático, astrô-nomo e filósofo. Personalidade fun-damental na revolução científica. Desenvolveu os primeiros estudos sistemáticos do movimento uni-

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formemente acelerado e do mo-vimento do pêndulo. Precursor da mecânica newtoniana. Melhorou significativamente o telescópio re-frator. Contribuiu para o heliocen-trismo. Sua principal contribuição foi para o método científico, pois a ciência assentava numa metodolo-gia aristotélica.

Michelangelo Buonarroti (1475-1564) italiano pintor, escultor, po-eta e arquiteto, considerado um dos maiores criadores da história da arte do Ocidente. Sua carrei-ra se desenvolveu na transição do Renascimento para o Maneirismo, e seu estilo sintetizou influências da Antiguidade clássica, dos ideais do Humanismo e do Neoplatonismo.

O Colégio Dante Alighieri, ao oferecer uma exposição como esta, apresenta sua busca por, cada vez mais, se aprofundar na compreensão da realização atra-vés do conhecimento. Uma mos-tra com este perfil, em que um artista plástico espanhol, da im-portância de Salvador Dalí, que bebe da fonte de um conheci-mento clássico de sapiência ita-liana como do poeta Dante Ali-ghieri, quer apresentar o estar no contemporâneo, pois o processo

de ensino no mundo hoje é a realização interdisciplinar. Esse é o papel das casas de ensino no mundo atual!

O que traz esta exposição?

Esta exposição traz um modelo de Tradição e Contemporanei-dade. Percebendo que o conhe-cimento humano é ontológico e nossos idiomas são simbólicos, ou seja, se embasam nas palavras, esse mundo linguístico dá a base estru-tural para a forma-pensamento.

Esta exposição é percepção, e percepção não se separa da lin-guagem. O mundo falado e o mundo falante vivem na busca de identidades. A leitura de obras de arte com essa qualificação, pela qual um artista modernista embasa seu conhecimento em um poeta medieval que, por seu momento, se reconhece em pen-sadores da Antiguidade, nos re-presenta, no contemporâneo, o pensamento transdisciplinar, que, no mundo de hoje nos dá a habi-litação de percorrê-lo.

Como isto pode acontecer?

Embasando-nos pelo conheci-mento passado e adquirindo uma forma-pensamento no contempo-râneo, habitado pela tecnologia, onde a tekhné (arte) está na criati-vidade de nossos conteúdos.

Assim, o conteúdo desta mos-tra é pertinente à homenagem que o Colégio Dante Alighieri presta ao poeta, sendo realizado por um gênio da arte que, com o conceito dessa comunicação, pela experiência da imago, mostra um vir a ser para o observador, onde seu olhar diz respeito ao seu pró-prio conteúdo. Assim, lhe apre-sentamos com esta exposição a observação de um estado de ple-nitude do viver!

Como Curador, agradeço toda a equipe, pois é impossível realizar uma mostra como esta se não hou-ver consenso.

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* Olívio Guedes é curador da exposição "Dante em Dalí: Realidade Onírica", gestor cul-tural, escritor histórico e di-retor do Museu Brasileiro da Escultura (MUBE)

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Canto I

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Canto II

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Canto IV

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Canto V

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Canto VI

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Canto VII

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Canto VIII

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Canto IX

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Canto X

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Canto XI

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Canto XII

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Canto XIII

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Canto XIV

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Canto XV

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Canto XVI

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Canto XVII

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Canto XVIII

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Canto XIX

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Canto XX

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Canto XXI

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Canto XXII

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Canto XXIII

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Canto XXIV

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Canto XXV

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Canto XXVI

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Canto XXVII

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Canto XXVIII

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Canto XXIX

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Canto XXX

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Canto XXXI

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Canto XXXII

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Canto XXXIII

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Canto XXXIV

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Canto I

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Canto II

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Canto III

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Canto IV

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Canto V

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto VI

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto VII

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto VIII

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto IX

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto X

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto XI

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto XII

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto XIII

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto XIV

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Canto XV

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto XVI

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto XVII

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto XVIII

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Canto XIX

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto XX

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Canto XXI

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto XXII

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Canto XXIII

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto XXIV

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Canto XXV

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto XXVI

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Canto XXVII

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Canto XXVIII

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto XXIX

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Canto XXX

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Canto XXXI

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto XXXII

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Canto XXXIII

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto I

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto II

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Canto III

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto IV

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Canto V

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto VI

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Canto VII

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto VIII

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Canto IX

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto X

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Canto XI

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto XII

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Canto XIII

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Canto XIV

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Canto XV

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Dimensões: 22,3 cm x 28,7 cm

Canto XVI

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Canto XVII

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Canto XVIII

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Canto XIX

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Canto XX

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Canto XXI

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Canto XXII

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Canto XXIII

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Canto XXIV

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Canto XV

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Canto XVIII

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Canto XXIX

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Canto XXX

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Canto XXXIII

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Colégio Dante Alighieri | Novembro 2015 | InArte

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Purgatório

Paraíso

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Créditos Capa: Salvador Dalí - Canto I / “Inferno” - “A Divina Comédia” Contracapa: Salvador Dalí - Canto XXXIII / “Paraíso” - “A Divina Comédia” Obras da Linha do Tempo: Reprodução Coleção “Gênios da Pintura” - Editora Abril Cultural

Canto I / “Inferno” Canto XXXIII / “Paraíso”

Com as obras da Exposição Dante em Dalí: Realidade Onírica

Edição Especial750 anos de Dante Alighieri

COLÉGIO DANTE ALIGHIERINovembro 2015Ano 3 - Nº 03