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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA JOSÉ APARECIDO LIMA DOURADO DAS TERRAS DO SEM-FIM AOS TERRITÓRIOS DO AGROHIDRONEGÓCIO: conflitos por terra e água no Vale do São Francisco (BA) PRESIDENTE PRUDENTE (SP) Julho de 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

JOSÉ APARECIDO LIMA DOURADO

DAS TERRAS DO SEM-FIM AOS TERRITÓRIOS DO

AGROHIDRONEGÓCIO: conflitos por terra e água no Vale do

São Francisco (BA)

PRESIDENTE PRUDENTE (SP)

Julho de 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

JOSÉ APARECIDO LIMA DOURADO

DAS TERRAS DO SEM-FIM AOS TERRITÓRIOS DO

AGROHIDRONEGÓCIO: conflitos por terra e água no Vale do

São Francisco (BA)

Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação em

Geografia da Faculdade de Ciência e Tecnologia da

Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho”

(FCT/UNESP), como requisito obrigatório para obtenção

do título de Doutor em Geografia, com orientação do

Professor Doutor Antonio Thomaz Junior.

PRESIDENTE PRUDENTE (SP)

Julho de 2015

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FICHA CATALOGRÁFICA

Dourado, José Aparecido Lima.

D774d Das terras do Sem Fim aos Territórios do Agrohidronegócio: conflitos

por terra e água no vale do São Francisco. - Presidente Prudente: [s.n], 2015

361 f. : il.

Orientador: Antonio Thomaz Junior

Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de

Ciências e Tecnologia

Inclui bibliografia

1 Agrohidronegócio. 2. Conflitos por terra e água. 3. Vale do São

Francisco. I. Dourado, José Aparecido Lima. II. Thomaz Junior, Antonio. III.

Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Tecnologia. IV. Das

Terras do Sem Fim aos Territórios do Agrohidronegócio : conflitos por terra e

água no vale do São Francisco.

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Câmpus de Presidente Prudente

Faculdade de Ciências e Tecnologia

Departamento de Geografia

Rua Roberto Simonsen, 305 CEP 19060-900 Presidente Prudente SP.

Tel (18) 3229-5650 - Fax (18) 3221-8212

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________

Prof. Dr. ANTONIO THOMAZ JUNIOR

Orientador

___________________________________

Prof. Dr. CARLOS ALBERTO FELICIANO

Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

__________________________________

Profa. Dra. GUIOMAR INEZ GERMANI

Universidade Federal da Bahia (UFBA)

__________________________________

Prof. Dr. MARCELO RODRIGUES MENDONÇA

Universidade Federal de Goiás (UFG)

_____________________________________________

Profa. Dra. SONIA MARIA RIBEIRODE SOUZA

CEGeT/CETAS

______________________________________

JOSÉ APARECIDO LIMA DOURADO

Candidato

RESULTADO: ___________________________

Presidente Prudente, _____ de ____________ de 2015.

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DEDICATÓRIA

Aos meus pais, pelo amor, dedicação e respeito.

A Ednar,

camponesa “minha” rainha e guerreira, que entre rezas e preocupações torceu para que o

sonho fosse realizado. O amor, o carinho e os cuidados, mesmo à distância, foram a

força propulsora para a continuidade da caminhada.

A Miguel (in memoriam),

cujos ensinamentos serão sempre lembrados. Mesmo nos momentos finais (e mais

difíceis) de sua vida, ensinou-me que a coragem e a fé são fundamentais para enfrentar

os desafios do cotidiano.

Aos meus irmãos e irmãs,

pela ajuda irrestrita e pela torcida.

Aos amigos Jackes e Carla,

pela amizade e acolhida em Irecê.

A Patrícia, Erika e Minéia,

amigas maravilhosas que facilitaram, sobremodo, a pesquisa.

Aos camponeses e camponesas,

cuja luta tem clareado o horizonte, trazendo à tona a esperança de uma sociedade

emancipada.

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AGRADECIMENTOS

Ao chegar ao final dessa caminhada, faz-se necessário agradecer às pessoas

que, ao seu tempo e modo, contribuíram para que tal empreitada fosse realizada. De

antemão, e para me eximir da possibilidade de qualquer esquecimento, quero externar a

todos os meus mais sinceros e profundos agradecimentos. Ressalto que a ausência e o

recolhimento ao longo dos últimos quatro anos não foram suficientes para distanciar-me

de antigas amizades, ou mesmo impedir que novas fossem construídas, muitas delas em

função da própria pesquisa.

O “estar aqui” e o “finalizar a pesquisa” foram possíveis em função da ajuda

de pessoas conhecidas e, também, de muitos desconhecidos que, no desenrolar da

pesquisa, foram agregados, transformando-se em braços e olhos que auxiliaram na

árdua empreitada de construção da tese. Seguindo uma cronologia, agradeço àqueles

que são, em verdade, a minha essência, ou seja, meus pais – “Diná” e Miguel (in

memoriam) – meu todo e a melhor parte de mim, por quem tenho um amor e admiração

imensuráveis. Exemplos de ética, dignidade, sabedoria e força, possibilitaram que eu

aprendesse a “voar”, sem, contudo, retirar a responsabilidade que as minhas escolhas

exigiam. Vocês são o exemplo de que ternura e firmeza não são antagônicas no ato de

educar.

Aos meus irmãos José e Floriano, e irmãs, Maria (ou Ia), Marina, Dolores,

Marilene e Fau, cada um, a seu tempo e modo, contribuíram silenciosa e

significativamente para que eu estudasse e conquistasse esse sonho. Assim como eu,

eles angustiaram, torceram e vibraram com essa conquista.

Aos sobrinhos e sobrinhas, cuja admiração e respeito sempre impulsionaram

a minha caminhada.

Aos meus cunhados e cunhadas – irmãos e irmãs postiços –, pelo apoio.

Aos amigos de Irecê, Carla e Jackes, pela acolhida em sua casa, cujo zelo e

amizade fizeram com que eu os amasse como se fôssemos amigos de infância. Agrego a

essa família maravilhosa, a sempre meiga e sorridente Sheilla. Vocês permitiram que

minha estadia em Irecê fosse mais agradável.

Às famílias do Baixio de Irecê – camponeses e camponesas aguerridos –,

pelo acolhimento em suas casas e pelas longas histórias contadas, permitindo que eu

adentrasse em seus mundos e resgatasse memórias, muitas delas, envolvendo dor e

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sofrimento. Senti-me honrado por vivenciar momentos de alegria, (re)união e de

partilha com vocês.

Ao orientador, Prof. Dr. Antonio Thomaz Júnior, pela orientação e

compreensão em relação aos motivos que fizeram com que eu assumisse a vaga do

concurso junto à Universidade do Estado do Amazonas. Sua trajetória acadêmica e seu

comprometimento político fizeram aflorar sentimentos, como respeito e admiração, ao

longo desses quatro anos de orientação.

À Universidade do Estado do Amazonas, pelo apoio irrestrito para que eu

desse continuidade ao processo de doutoramento.

Ao amigo Thomas Bauer, pelo apoio na reta final da elaboração da tese.

A Daiane da Costa Garcia, ou simplesmente “Dai”, pela importante ajuda

com os trâmites finais de entrega da tese.

A Helena Angélica de Mesquita, pelo incentivo incansável e carinho sempre

motivador.

Ao Grupo de Pesquisa GeografAR (Geografia dos Assentamentos em Área

Ruaral), pelo acolhimento e por socializar resultados de pesquisas.

Ao Núcleo de Pesquisa em Estudos Agrários, Território e Trabalho

(NUPEATT), pela colaboração e, principalmente, ao bolsista Edilson Peres Holanda,

pela elaboração dos fluxogramas da tese.

Ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da FCT/UNESP,

principalmente à Cinthia, sempre atenciosa e ágil em nossas demandas “urgentes”.

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pela

concessão de bolsa pelo período de seis meses.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Geografia da

FCT/UNESP, por socializarem o conhecimento e agregar novas perspectivas à pesquisa.

Ao Grupo CEGeT, pelos momentos de discussão, amadurecimento teórico e

aprendizado.

Aos professores Marcelo Rodrigues Mendonça e Marcelo Dorneles

Carvalhal que compuseram a Banca do Exame de Qualificação, pela leitura crítica e

pelas valiosas contribuições dadas para a pesquisa.

A Sônia Maria Ribeiro, pela leitura atenta e criteriosa da tese, cujas

observações foram imprescindíveis na etapa final da pesquisa.

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Aos amigos que ganhei em Presidente Prudente: Renata Prates, Andreia,

Guilherme Marini, Diógenes Rabello, Fredi, Cintia Lins, Sidney Todescato, Fernando

Heck, Cacá Feliciano, Soninha, Erika Moreira e Clediane.

Aos amigos Diógenes e Ana Paula, pela hospedagem em Presidente

Prudente, momentos de muita alegria e companheirismo.

A distância entre o Alto Solimões e o Pontal do Paranapanema foi, muitas

vezes, encurtada por meu “amigo agroecológico” Diógenes Rabello, a quem deleguei

muitas missões secretas, todas elas cumpridas com extrema competência. Sua ajuda foi

fundamental para a “compressão do espaço”, além de ajudar com questões de ordem

psicológica com boas doses de risadas.

A Patrícia, pela hospedagem em Petrolina, sempre recheada com muito

carinho, companheirismo, simplicidade e amor. Sua colaboração foi fundamental

durante as visitas ao Submédio São Francisco.

A Erika e Mineia, salitreiras guerreiras, cuja ajuda permitiu que eu tivesse

acesso a pessoas e informações essenciais para a pesquisa. Em diversos momentos

vocês foram meus “olhos” e “braços” em Juazeiro.

À CODEVASF, nas pessoas de Manuel Lima e Luís Alberto, pelas

entrevistas concedidas.

Aos diretores do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Rio Verde I, pelas

entrevistas e por autorizar nossa participação nas reuniões dos associados.

À CPT, por disponibilizar os estudos e levantamentos realizados juntos às

comunidades do Baixio de Irecê.

Ao MST, na pessoa de Paulo César, por autorizar as visitas aos

acampamentos e assentamento, de maneira sempre respeitosa, gentil e acolhedora,

permitindo-nos visualizar novos horizontes na luta anticapital.

Para finalizar, agradeço aos salitreiros e salitreiras, por terem

disponibilizado seu tempo para contar suas histórias de vida, suas angústias, permitindo-

nos conhecer por dentro os desafios enfrentados pelos camponeses caatingueiros na luta

pela terra e pela água.

A todos, meus mais sinceros agradecimentos!

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DOURADO, J. A. L. Das terras do sem-fim aos territórios do agrohidronegócio:

conflitos por terra e água no Vale do São Francisco (BA). Tese (Doutorado em

Geografia), Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Presidente

Prudente, 2015.

RESUMO

As políticas públicas voltadas para o fomento à irrigação no Nordeste brasileiro

promoveram, ao longo das últimas quatro décadas, profundas transformações no espaço

agrário da região semiárida. Inseridos no contexto da modernização conservadora da

agricultura, os projetos de irrigação criados pelo Departamento Nacional de Obras

Contra as Secas (DNOCS) e pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do Rio

São Francisco e Parnaíba (CODEVASF) transformaram-se na mola propulsora para o

desenvolvimento econômico regional, estando, em muitos casos, fortemente atrelados

ao grande capital e aos interesses e organismos externos, como é o caso da Política

Agrícola Comum (PAC) europeia. Investimentos públicos em obras de infraestrutura

hídrica, terras férteis, oferta de mão-de-obra e condições climáticas favoráveis

possibilitaram a territorialização do agrohidronegócio no vale do rio São Francisco,

transformando a região em mais uma “Califórnia brasileira”, com diversos projetos de

irrigação em fase de produção, de implantação ou em estudo. Com os investimentos

públicos, ocorreram a valorização e a especulação das terras às margens do Velho

Chico, com destaque para as regiões do Médio e Submédio São Francisco, onde estão

localizados, respectivamente, os projetos de irrigação Baixio de Irecê e Salitre,

considerados “duas transposições baianas” em função dos volumes de água requeridos

para a implantação desses empreendimentos. A criação desses perímetros irrigados

provocou a desterritorialização e o desterreamento de centenas de famílias camponesas,

que ao longo da história vivenciaram distintos processos desterritorializantes em função

das ações do Estado (construção da Barragem de Sobradinho) e da grilagem de terras

nos vales dos rios Verde e Jacaré, ou ainda em função da desapropriação de terras para

fins sociais. Esses novos arranjos espaciais têm ocasionado conflitos pela terra e pela

água por parte dos camponeses caatingueiros, que têm assumido as trincheiras do

enfrentamento ao grande capital e cujas ações apresentam-se ricas em conteúdo político

na luta anticapital, tornando-se fundamentais para a construção das (Re)Existências e

dos espaços de esperança.

Palavras-chave: Projetos de Irrigação. Agrohidronegócio. Luta pela terra e pela água.

Semiárido baiano. Campesinato.

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DOURADO, J. A. L. Land worm to agrohidronegócio Territories: conflicts over

land and water in the São Francisco Valley (BA). Thesis (PhD in Geography),

Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho". Presidente Prudente, in 2015.

ABSTRACT

Public policies aimed at fostering irrigation in northeastern Brazil have promoted over

the last four decades, profound changes in the agrarian space of semiarid region. Within

the context of conservative modernization of agriculture, irrigation projects created by

the National Department of Works Against Drought (DNOCS) and the Development

Company of the Rio São Francisco and Parnaíba Valleys (CODEVASF) became the

driving force for development regional economic and is, in many cases strongly linked

to big business and the interests and external bodies, such as the Common Agricultural

Policy (CAP) European. Public investment in water infrastructure works, fertile land,

labor, labor supply and favorable weather conditions allowed the territorialization of

agrohidronegócio in the valley of the São Francisco river, transforming the region into

one more "Brazilian California", with several irrigation projects in production,

deployment or study. With public investment, occurred recovery and speculation of land

on the banks of the “Velho Chico”, especially the regions of the Middle and Lower-

middle São Francisco, where they are located, respectively, irrigation projects of Baixio

de Irecê and Salitre, considered "two transpositions Bahia "according to the volumes of

water required for the implementation of these projects. The creation of these irrigation

schemes led to the dispossession and the desterreamento of hundreds of peasant

families, who throughout history have experienced different deterritorializing processes

according to the state actions (construction of the Sobradinho Dam) and land grabbing

in the valleys of rivers and Green alligator, or in the light of the expropriation of land

for social purposes. These new spatial arrangements have caused conflicts over land and

water by the caatingueiros peasants who have taken the trenches of confronting big

business and whose shares are presented in rich political content in Anticapital fight,

making it fundamental for the construction of (Re) Inventories and hopes spaces

KEYWORDS: Irrigation Projects. Agrohidronegócio. Struggle for land and water.

Bahia semi-arid. Peasantry.

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Projetos de irrigação sob a gestão da CODEVASF – 2014......................... 56

Quadro 2: Projetos de irrigação sob a gestão do DNOCS – 2014............................... 57

Quadro 3: Empreendimentos de Energia Eólica da Renova....................................... 66

Quadro 4: Caracterização dos camponeses da pesquisa (2011-2014)......................... 81

Quadro 5: Sujeitos Entrevistados........................................................................... 84

Quadro 6: Área dos estabelecimentos agropecuários por utilização das terras na

Bahia, 1996/2006.................................................................................

118

Quadro 7: Metas do Programa BAHIABIO............................................................ 120

Quadro 8: Metas de Produção de Etanol nos Polos da Bahia.................................... 122

Quadro 9: Projeção de Cultivo de Oleaginosas na Bahia para o ano de 2012.............. 125

Quadro 10: Conflitos por água no Brasil – 2002/2013................................................ 167

Quadro 11: Número e causas dos conflitos pela água no Brasil, em 2013, por região

geográfica............................................................................................

168

Quadro 12: Conflitos pela água na Região Nordeste – 2012....................................... 169

Quadro 13: Conflitos pela água na Bahia – 2002/2013............................................... 169

Quadro 14: Índice de Gini – Bahia 1920/2006........................................................... 191

Quadro 15: Classificação do índice de Gini dos municípios do estado da Bahia............ 192

Quadro 16: Terras improdutivas nos municípios pertencentes à Diocese de Juazeiro

(BA) – 2003.........................................................................................

193

Quadro 17: Grau de distribuição da terra por número de municípios (1940-2006)......... 196

Quadro 18: Estabelecimentos no vale do rio Salitre, por grupos de área de 0 a 20ha e

de mais de 1.000ha................................................................................

197

Quadro 19: Barragens localizadas no rio Salitre e seus afluentes................................. 282

LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Complexos Eólicos na Região Sudoeste da Bahia – 2013.............................. 65

Tabela 2: Conflitos por Terra na Bahia (1990-2014)....................................................... 130

Tabela 3: Eixo 1 – Parcerias Público-Privadas em Irrigação............................................ 133

Tabela 4: Eixo 2 – Implantação e Revitalização de Projetos de Irrigação....................... 136

Tabela 5: Eixo 3 – Agricultura Familiar e Pequenos Irrigantes...................................... 137

Tabela 6: Eixo 4 – Estudos e Projetos.......................................................................... 138

Tabela 7: Estimativa das Terras Devolutas por estado da Região Nordeste..................... 182

Tabela 8: Terras Devolutas – Municípios da Área da Pesquisa e seu entorno (BA)........ 185

Tabela 9: Cadastro de Imóveis Rurais – Xique-Xique (BA)......................................... 188

Tabela 10: Cadastro de Imóveis Rurais - Itaguaçu da Bahia – (BA)................................. 189

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Tabela 11: Cadastro de Imóveis Rurais – Juazeiro

(BA).....................................................

190

Tabela 12: Índice de Gini dos municípios do Vale do Salitre – Bahia – 1920-

2006...........

198

Tabela 13: Transações de compra e venda de terras na área do Projeto Baixio de Irecê.... 224

Tabela 14: Superfície Agrícola Útil (SAU)........................................................................ 243

Tabela 15: Características Básicas do Projeto Salitre......................................................... 288

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Trabalhadores no mercado do produtor (CEASA) em Juazeiro (BA).............. 144

Figura 2 Atividades agropecuárias no Acampamento Abril Vermelho (1: Criação de

caprinos, 2: Colheita de cebola, 3: Colheita de batata doce e 4: Lavoura de

mandioca).................................................................................................

315

Figura 3: Práticas socioculturais das comunidades salitreiras (1: Samba de Véio, 2:

Samba de Braço, 3: Bumba-meu-boi e 4: Procissão de Nossa Senhora

Santana)

...........................................................................................................................

323

Figura 4: Jornal Carrapicho.............................................................................................. 324

LISTA DE FLUXOGRAMAS

Fluxograma 1: Esquema metodológico da pesquisa...................................................... 72

Fluxograma 2: Sujeitos da Pesquisa.............................................................................. 76

Fluxograma 3: Cadeia sucessória das terras do Projeto de Irrigação do Baixio de Irecê.. 228

LISTA DE ORGANOGRAMAS

Organograma 1: Camponês caatingueiro e a relação metabólica terra e água.................... 45

Organograma 2: Perspectiva (des)integradora do agrohidronegócio.................................. 161

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1: Vínculos com a terra nos vales dos rios Verde e Jacaré.................................. 239

LISTA DE MAPAS

Mapa 1 Localização da Área da Pesquisa....................................................................... 50

Mapa 2: Projetos de Irrigação do DNOCS e CODEVASF............................................ 54

Mapa 3: Territórios da Cidadania no Nordeste........................................................................... 61

Mapa 4: Centrais Geradoras Elioelétricas, Pequenas Centrais Hidroelétricas e Usinas 64

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Hidroelétricas na Bahia.................................................................................................

Mapa 5: Polo de Produção do Sub Programa Etanol na Bahia................................................... 121

Mapa 6: Polo de Produção do Sub Programa Biodiesel na Bahia.............................................. 124

Mapa 7: Abrangência do Programa Mais Irrigação.................................................................... 134

Mapa 8: Processos Minerários no DNPM na Bahia.................................................................... 171

Mapa 9: Áreas de Expansão do Agrohidronegócio na Bahia..................................................... 176

Mapa 10: Terras Devolutas na Bahia............................................................................................ 183

Mapa 11: Concentração Fundiária na Bahia................................................................................. 194

Mapa 12: Perímetro Irrigado do Baixio de Irecê.......................................................................... 236

Mapa 13: Localização da Bacia do Rio Salitre............................................................................. 269

Mapa 14: Projeto Irrigado do Salitre............................................................................................. 291

LISTA DE FOTOS

Foto 1: Parque Eólico Alto Sertão I, Município de Caetité (BA) – 2014...................... 63

Foto 2: Stands de implementos agrícolas e da Agricultura Familiar na EXPOAGRI,

em Juazeiro, 2013........................................................................................

88

Foto 3: Stands de implementos agrícolas e da Agricultura Familiar na EXPOAGRI,

2013..........................................................................................................

89

Foto 4: Reunião com camponeses atingidos pelo Projeto Baixio do Irecê, Itaguaçu da

Bahia (BA).................................................................................................

90

Foto 5: Reunião com camponeses atingidos pelo Projeto Baixio do Irecê no município

de Xique-Xique (BA)..................................................................................

90

Foto 6: Trabalhador diarista pulverizando agrotóxico em lavoura de melão – Projeto

Salitre.......................................................................................................

142

Foto 7: Camponês durante a pesca no rio São Francisco - Comunidade do Roçado,

município de Xique-Xique (BA)..................................................................

145

Foto 8: Camponês em seu roçado de mandioca e melancia, às margens do rio São

Francisco – Comunidade de Roçado, Xique-Xique (BA)................................

146

Foto 9: Entrada da Fazenda da CODEVERDE em Xique-Xique (BA)......................... 208

Foto 10: Tomada de água do Projeto Baixio de Irecê. Comunidade Nova Boa Vista

(Xique-Xique)............................................................................................

237

Foto 11: Acampamento do MST na área do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê –

Xique-Xique...............................................................................................

259

Foto 12: Assentamento Vale da Conquista – Sobradinho (BA)..................................... 301

Foto 13: Plantação de batata, milho e banana – Assentamento Vale da Conquista,

Sobradinho (BA).........................................................................................

303

Foto 14: Lavoura de milho irrigada por mangueiras – Assentamento Vale da

Conquista, Sobradinho (BA).........................................................................

304

Foto 15: Perímetro irrigado do Assentamento Vale da Conquista, Sobradinho (BA). Ao

fundo, aerogeradores do Parque Eólico da Renova Energia...............................

305

Foto 16: Acampamento Abril Vermelho – Município de Juazeiro (BA).......................... 306

Foto 17: Compra de produtos por atravessadores no Acampamento Abril Vermelho...... 308

Foto 18: Camponês do Acampamento Abril Vermelho – Juazeiro (BA).......................... 313

Foto 19: Camponês da comunidade de Curral Novo expondo os produtos derivados do 320

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umbu durante a 24ª da FENAGRI – Juazeiro.................................................

Foto 20: Stand da agricultura familiar na 24ª FENAGRI/Juazeiro................................. 321

Foto 21: Reunião, na comunidade de Baraúna, para debater sobre a importância do

Jornal Carrapicho........................................................................................

325

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABEEÓLICA - Associação Brasileira de Energia Eólica

ACM – Antônio Carlos Magalhães

ANA - Agência Nacional das Águas

ANEEL - Agência Nacional de Energia Elétrica

APP - Áreas de Preservação Permanente

APRIR - Associação dos Pecuaristas da Região de Irecê

ATER - Assistência Técnica e Extensão Rural

BA – Bahia

BAHIABIO – Bahia Biocombustíveis

BAMIN - Bahia Mineração

BID - Banco Mundial

BIRD - Banco Interamericano de Desenvolvimento

BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Social

BPA – Boas Práticas Agrícolas

CBHS - Comitê de Bacia Hidrográfica do rio Salitre

CBHSF - Comitê de Bacia Hidrográfica do São Francisco

CCEE - Câmara de Comercialização de Energia Elétrica

CDRU - Concessão de Direito Real de Uso

CE – Ceará

CEASA - Centro de Abastecimento

CEBs - Comunidades Eclesiais de Base

CEMIG – Companhia de Eletricidade de Minas Gerais

CETA - Coordenação Estadual de Trabalhadores Acampados, Assentados e

Quilombolas

CHESF - Companhia Hidroelétrica do rio São Francisco

CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

CODEVASF – Companhia de Desenvolvido dos Vales dos Rios São Francisco e

Parnaíba

CODEVERDE - Companhia de Desenvolvimento do Rio Verde

COELBA - Companhia de Energia Elétrica da Bahia

COOPERIRECÊ - Cooperativa Agropecuária Mista Regional de Irecê

CPT – Comissão Pastoral da Terra

CVSF - Comissão do Vale do São Francisco

CVSF - Companhia Vale do São Francisco

DNOCS – Departamento Nacional de Obras Contra as Secas

DNPM - Departamento Nacional de Produção Mineral

EIA - Estudos de Impactos Ambientais

EMSA - Empresa Sul Americana de Montagens

EPI – Equipamento de Proteção Individual

EUA - Estados Unidos da América

EXPOAGRI - Exposição Agropecuária da Região de Irecê

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FENAGRI - Feira Nacional da Agricultura Irrigada

FETRAF - Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar

FIOL - Ferrovia de Integração Oeste-Leste

FNE - Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste

FUNDIFRAN - Fundação de Desenvolvimento Integrado do São Francisco

GARRA - Grupo de Apoio e de Resistência Rural e Ambiental

GEIDA - Grupo Executivo de Irrigação e Desenvolvimento Agrícola

GEOFRAFAR – Geografia dos Assentamentos Rurais

GGA - Gerenciamento Global Ampliado

GTA - Grupo Interministerial do Açúcar

GW – Giga Watts

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IDH - Índice de Desenvolvimento Humano

IFOCS - Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas

IG – Indicação Geográfica

INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

INEMA - Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos

IOCS - Inspetoria de Obras Contra as Secas

IRPAA - Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada

ITRUL - Imobiliária de Terrenos Rurais e Urbanos

LANDSAT – Land Remote Sensing Satellite

LER - Leilão de Energia de Reserva

MDA - Ministério de Desenvolvimento Agrário

MG – Minas Gerais

MI - Ministério da Integração

MME - Ministério de Minas e Energia

MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra

MW – Mega Watts

OIT – Organização Internacional do Trabalho

ONG – Organização Não Governamental

PA – Pará

PAC – Política Agrícola Comum

PAC – Programa de Aceleração do Crescimento

PCH - Pequena Central Hidrelétrica

PDRI - Projetos de Desenvolvimento Rural Integrado

PDT - Política de Desenvolvimento Territorial

PE – Pernambuco

PECSR - Projeto Especial de Colonização Serra do Ramalho

PND - Plano Nacional de Desenvolvimento

PNI - Plano Nacional de Irrigação

PNSH - Plano Nacional de Segurança Hídrica

POLONORDESTE - Programa de Desenvolvimento Integrado do Nordeste

POSGEO – Pós-Graduação em Geografia

PPA – Plano Plurianual

PPI - Programa Plurianual de Irrigação

PPPs - Parcerias Público-Privadas

PROÁLCOOL – Programa Nacional do Álcool

PROFIR - Programa de Financiamento de Equipamentos de Irrigação

PROINE - Programa de Irrigação do Nordeste

PRONI - Programa Nacional de Irrigação

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PROTERRA - Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do

Norte e Nordeste

PTDRS - Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável

RIMA - Relatório de Impactos Ambientais

RN – Rio Grande do Norte

RPAs - Regiões Produtivas Agrícolas

SAG – Superfície Agrícola Geográfica

SAU - Superfície Agrícola Útil

SEAGRI - Secretaria de Agricultura do Estado da Bahia

SEI - Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia

SENIR - Secretaria Nacional de Irrigação

SEPLAN - Secretaria Planejamento do Estado da Bahia

SINPRI - Sindicato dos Produtores Rurais de Irecê

SNCR – Sistema Nacional de Crédito Rural

STR – Sindicato dos Trabalhadores Rurais

SUDENE - Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste

SUVALE - Superintendência do Vale do São Francisco

TM - Thematic Mapper

UAVS - União das Associações do Vale do Salitre

UC – Unidade de Conservação

UE – União Europeia

UFBA – Universidade Federal da Bahia

UNEB – Universidade do Estado da Bahia

VBP – Valor Bruto de Produção

VERACEL - Vera Cruz Celulose

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................... 19

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INTRODUÇÃO............................................................................................................... 25

CAPÍTULO I - TECENDO OS FIOS DA “MEADA”: A TRAJETÓRIA

METODOLÓGICA DA TESE......................................................................................

33

1.1 Sobre tecelões, teares e fios: a pesquisa na Ciência Geográfica............................. 34

1.2 Quando o território da vida se confunde com o território da pesquisa:

entendendo os porquês do Semiárido baiano................................................................

48

1.3Trajetórias caatingueiras: a construção metodológica da pesquisa....................... 70

1.4 Os sujeitos da pesquisa: perspectivas híbridas........................................................ 74

1.5 A organização das informações.............................................................................. 92

CAPÍTULO II - POLÍTICAS PÚBLICAS DE IRRIGAÇÃO E A GEOGRAFIA

DO AGROHIDRONEGÓCIO NO SEMIÁRIDO BAIANO...................................... 96

2.1 Política de Irrigação no Brasil: resgate histórico e fundamentos polítcos.... 97

2.2 Novo Modelo de Irrigação: transferência disfarçada do papel do Estado para o

capital privado............................................................................................................... 105

2.3 Programa Estadual de Bioenegia - BAHIABIO: (des)construção de

consensos......

114

2.4 Programa Mais Irrigação: retalhos do tecido desenvolvimentista......................... 131

2.5 As águas do Semiárido brasileiro correm para o mercado global........................ 148

CAPÍTULO III - TRAMAS DO AGROHIDRONEGÓCIO E A QUESTÃO

AGRÁRIA NA BAHIA................................................................................................... 155

3.1 Tramas do Agrohidronegócio e reorganização territorial do Semiárido

baiano............................................................................................................................ 156

3.2 Avanço das fronteiras do capital e os conflitos por água no Brasil...................... 165

3.3 Polígono do Agrohidronegócio na Bahia e a usurpação dos territórios

camponeses...................................................................................................................

172

3.4 Questão fundiária e terras devolutas na Bahia:dualidade “terra de ninguém”

versus propriedade privada.................................................................................. 180

3.5 Estrutura fundiária e os desafios para o acesso à terra no Vale do Salitre............ 195

3.6 Grilagem de terras públicas, expropriação camponesa e violência no Baixio de

Irecê (BA)...................................................................................................................... 200

3.7 O campo movediço da legalização da grilagem de terras no Semiárido baiano: o

movimento das “peças” no tabuleiro, sob o controle do Estado e do capital.............. 210

3.8 Legalizando a Barbárie no Semiárido baiano: do uso comunal ao cercamento

das terras no Baixio de Irecê......................................................................................... 219

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CAPÍTULO IV - PROJETO DE IRRIGAÇÃO BAIXIO DE IRECÊ:

REORDENAMENTO DO TERRITÓRIO PELO

AGROHIDRONEGÓCIO...................................................................................... 230

4.1 Caracterização da rede hidrográfica da região do Projeto de Irrigação Baixio de

Irecê............................................................................................................................... 231

4.2 Usos do território e disputas territoriais no Semiárido baiano................................ 233

4.3 Organização, resistência e contradições: o desafios da luta pela terra das

famílias camponesas do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê...................................... 249

4.4 Ocupação do MST no Projeto de Irrigação Baixio de Irecê: conflito e

estranhamento de classe no contexto da luta pela terra e pela água....................... 260

CAPÍTULO V - PROJETO SALITRE: FACES CONTRADITÓRIAS DO

AGROHIDRONEGÓCIO NO SEMIÁRIDO BAIANO............................................. 267

5.1 Breve histórico da ocupação e dos conflitos no Vale do rio Salitre..................... 268

5.2 Projeto Salitre, agrohidronegócio e disputas territoriaise de classe no Submédio

São Francisco........................................................................................................ 288

5.3 A chegada do “estranho”: a conflitualidade entre o MST e os salitreiros.............. 294

5.4 Acampamento Abril Vermelho: expressões polissêmicas da luta pela terra e pela

água no vale do rio Salitre............................................................................................. 297

5.5 Mobilização social e múltiplas resistências no Submédio São Francisco.............. 316

5.5.1 Territorialização do campesinato na FENAGRI: disputas veladas no

território do agrohidronegócio em Juazeiro/Petrolina.............................................. 318

5.5.2 Resgate das práticas socioculturais e (Re)Existência camponesa no vale do

Salitre....................................................................................................................... 321

CONSIDERAÇÕES FINAIS – AGROHIDRONEGÓCIO E LUTA

ANTICAPITAL: PENSANDO A CONSTRUÇÃO DOS ESPAÇOS DE

ESPERANÇA................................................................................................................... 328

REFERÊNCIAS.................................................................................................... 341

ANEXO................................................................................................................ 356

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19

APRESENTAÇÃO

Vocês que fazem parte dessa massa

Que passa nos projetos do futuro

É duro tanto ter que caminhar

E dar muito mais do que receber

E ter que demonstrar sua coragem

À margem do que possa parecer

E ver que toda essa engrenagem

Já sente a ferrugem lhe comer

O povo foge da ignorância

E sonham com melhores tempos idos

Esperam nova possibilidade

De verem esse mundo se acabar.

(Zé Ramalho, “Admirável gado novo”)

As alterações no desenho espacial e territorial no campo brasileiro no pós-

1970 têm exigido novas interpretações do espaço agrário no Semiárido nordestino, com

vistas a entender as tramas do capital e do trabalho, materializadas nos territórios em

disputa entre o agrohidronegócio e o campesinato. A crise do sistema sociometabólico

do capital (MÉSZÁROS, 2007) impôs aos países capitalistas profundas transformações

e ajustes nos mais diferentes setores, principalmente na economia. A junção entre a

crise do padrão de acumulação mundial (e a consequente reestruturação produtiva do

capital) e as políticas públicas implantadas pelo Estado no Nordeste brasileiro

exerceram papel central para a conformação do fenômeno analisado nesta pesquisa, ou

seja, a expansão do agrohidronegócio (MENDONÇA e MESQUITA, 2007; THOMAZ

JUNIOR, 2009) e as disputas territoriaisno Semiárido baiano.

A justificativa política e ideológica utilizada pelo Estado perante a

população era o discurso forjado a partir da necessidade de superar o atraso e o

isolamento do Nordeste em relação ao restante do país bem como de potencializar o

desenvolvimento brasileiro. Nos anos de 1970, as necessidades de expandir a oferta de

energia para atender a demanda do recente parque industrial instalado no Centro-Sul e

de integrar regionalmente o país colocavam-se como prioridades para o governo

daquela época.

Nesse contexto, o Estado planejou e executou ações na região Nordeste com

vistas a promover o desenvolvimento e o progresso nacional, a partir de duas vertentes:

a construção de Sobradinho, que passaria a gerar energia a ser consumida, inclusive, em

outras regiões do país, exercendo papel econômico estratégico e a construção de

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diversos perímetros irrigados, aos quais atribuiria a responsabilidade de alavancar a

economia regional e reduzir os efeitos das secas. Assim, em toda extensão semiária

nordestina, novas paisagens foram criadas em virtude do fomento, por parte das

políticas públicas, à irrigação, surgindo “ilhas de desenvolvimento” em meio a um

sertão repleto de mazelas sociais, muitas delas decorrentes da histórica concentração da

terra, tão marcante nessa região.

Contraproducentes, a implantação dos perímetros irrigados e a

modernização da agricultura foram, ao longo dos anos, provocando a expulsão das

“velhas” formas de uso e exploração da terra, frente à imposição de novos modelos de

organização espacial pautados na lógica da produção de mercadorias. Ainda como efeito

dessa modernização, entendida aqui como conservadora, cabe destacar seus efeitos

nefastos sobre o “ethos de campesinidade” (WOORTMANN e WOORTMANN, 1997)

dos camponeses caatingueiros (em seus diferentes matizes), levando muitos a incorporar

o discurso da empregabilidade e do assalariamento como solução para a pobreza rural.

Os perímetros irrigados, muitos deles transformados em polos frutícolas integrados ao

mercado global, como é o caso de Juazeiro/Petrolina, passaram a polarizar

investimentos públicos e privados, sob forte influência do grande capital, de organismos

e de normas internacionais, como é o caso da Política Agrícola Comum (PAC) e do

Banco Mundial.

Ao longo das últimas quatro décadas, a opção por parte do Estado em

priorizar a construção de obras de infraestrutura hídrica no Semiárido nordestino

permitiu as condições adequadas para a territorialização do capital, aproveitando-se dos

grandes incentivos fiscais, da disponibilidade de mão de obra, de terras férteis, água e

condições climáticas favoráveis. O expansionismo do capital nessa fração do território

nordestino deu-se, inclusive, mediante a incorporação de terras “improdutivas”

ocupadas pelos camponeses, transformadas em terra de negócio (MARTINS, 2004) no

circuito da produção de mercadorias. A modernização capitalista promoveu a chegada

do “estranho”, atraído pelo discurso midiático da empregabilidade e das facilidades

oferecidas à reprodução do capital.

Como resultado da modernização conservadora da agricultura, muitas

famílias camponesas foram expulsas de suas terras (em virtude da grilagem, da

indenização por interesse social, ou da especulação fundiária), tendo como destino as

periferias urbanas, as áreas de terras devolutas afastadas dos cursos d’água ou, ainda, as

fazendas onde passaram a vender sua força de trabalho. Outra parte foi incorporada

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pelas atividades agrícolas dos perímetros irrigados como assalariados rurais ou diaristas,

assimilando o discurso da empregabilidade e da geração de renda, tão bem defendido e

propalado pelo Estado e pelo capital. Na contramão dessa história, outros tantos sujeitos

desterritorializados/desterreados passaram a vivenciar a experiência da luta pela terra

através dos movimentos sociais do campo, protagonizando importantes ações de

enfrentamento e resistência ao modelo hegemônico colocado em execução para o

campo brasileiro.

Os investimentos públicos em obras de infraestrutura hídrica viabilizaram a

introdução da fruticultura irrigada no Semiárido nordestino, anteriormente ocupado com

os currais e algodoais, transformando a realidade de muitos lugares, que passaram a

conviver com uma agricultura moderna, relativamente tecnificada e altamente

dependente do pacote tecnológico da revolução verde. Em decorrência desse avanço do

capital sobre as terras do Nordeste seco, os camponeses e seus modos de vida tornaram-

se obsoletos e passaram a representar um entrave para a produção de mercadorias.

Assim, muitos camponeses vivenciaram a desterritorialização e o desterreamento,

processos coexistentes no cerne dos projetos desenvolvimentistas executados na região

semiárida nordestina. Nesse sentido, os conceitos de território (OLIVEIRA, 2003),

desterritorialização (HAESBAERT, 2009) e desterreamento (THOMAZ JUNIOR,

2009) são recorrentes para fazermos as “leituras” do espaço agrário no Semiárido

baiano, frente às profundas mutações ocorridas na organização espacial e nas relações

de trabalho e de produção.

Como forma de não capitularmos aos discursos midiáticos e aos consensos

sociais deles decorrentes, buscamos, a partir do enfrentamento capital versus trabalho e

da relação capital-Estado, entender os desdobramentos da expansão do

agrohidronegócio no Semiárido baiano, com foco na luta pelo acesso à terra e à água,

cujas ações, desencadeadas pelos camponeses e por movimentos sociais, trazem em seu

cerne elementos explicativos e ricos em conteúdos políticos sobre a emancipação social

frente ao destrutivismo do sistema sociometabólico do capital. Tais lutas têm permitido

fazer o enfrentamento por dentro do tecido social do capital, colocando para os

camponeses e movimentos sociais o desafio de superar a fragmentação da classe

trabalhadora, de modo a fortalecer a organização social e pressionar o Estado para que

as políticas públicas estejam atreladas às demandas das populações do campo,

historicamente colocadas à margem dos benefícios dos investimentos públicos.

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As disputas por terra e água no Semiárido baiano expressam o dinamismo e

a complexidade inerentes à questão agrária, bem como os resultados nefastos das

políticas públicas voltadas para a irrigação nessa região, pois estas assumem relevante

papel no tocante à territorialização do agrohidronegócio, condição reveladora de seu

componente de classe. A organização desta tese, intitulada “DAS TERRAS DO SEM-

FIM AOS TERRITÓRIOS DO AGROHIDRONEGÓCIO: conflitos por terra e

água no vale do São Francisco (BA)”,representa o devir da construção do

conhecimento, o movimento das ideias, impossíveis de serem organizadas de forma

hermética, pois sua essência traz a dialética e as contradições do movimento do real.

Trata-se de uma pesquisa com horizontes abertos, pois fugimos da

concepção de produto acabado, ante a natureza dos fenômenos em análise. A

abordagem dialética não nos permite pinçar os fatos da realidade e entendê-los

separadamente, como se fossem independentes. O ir e vir expressos no corpo dos

capítulos representa a própria essência dos sujeitos e dos fenômenos pesquisados,

entrelaçados por saberes-fazeres (MENDONÇA, 2004) e por agentes externos.

Propusemos “costurar” a teoria e a empiria, de modo a revelar a pluralidade e a

complexidade da realidade vivenciada pelos camponeses caatingueiros, seus desafios

para se manterem na terra de trabalho bem como a reproduzir seus modos de vida.

Ademais, ao esgarçar os territórios em conflito, constatamos que as áreas onde estão

atualmente localizados muitos dos polos frutícolas no Semiárido nordestino foram os

mesmos locais de embates entre indígenas e colonizadores, como é o caso do vale do rio

Salitre no Submédio São Francisco, revelando quão nefasto, desigual e contraditório é o

processo de “desenvolvimento” sob os ditames do capital.

Do mesmo modo, ao analisarmos os desdobramentos das políticas públicas

de incentivo à irrigação no Semiárido baiano, concluímos que estas vão espalhando os

conflitos pelo território, ora como filetes e outras vezes como uma inundação (como nos

bons tempos do Velho Chico). Em cada canto e recanto vão produzindo efeitos

repetidos e deturpações novas, aos quais estão expostos os camponeses a quem cabe a

luta para romper com os grilhões do modelo de desenvolvimento que, embora privilegie

a produção de riqueza, é incapaz de suprimir a pobreza, pois essa é gerada para

alimentar o sistema sociometabólico do capital.

À primeira vista, os perímetros irrigados parecem ser a solução adequada

para democratizar o acesso à terra e à água no Nordeste seco. Na mira dos capitalistas,

esses espaços, subtraídos dos camponeses em sua grande maioria, são transformados no

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locus da reprodução ampliada do capital, onde a crença-fetiche da modernidade

escamoteia a barbárie expressa, por um lado, pelo uso de modernas técnicas e máquinas

e, de outro, pela utilização de práticas arcaicas, como as condições precarizadas de

trabalho ou a superexploração do trabalhador, fatos registrados desde os primórdios do

período da industrialização na Inglaterra, que continuam atuais e repaginados sob o

verniz da tecnologia e do desenvolvimento.

Ao se tratar das políticas públicas, entendidas por nós como pilares para os

projetos desenvolvimentistas postos em execução pelo Estado, evidenciamos os

desafios postos para as pesquisas em geografia, ante a necessidade de desvelar as

contradições expressas no pensamento hegemônico pautado na perspectiva de um

modelo único de desenvolvimento para o Semiárido. Ao perpetuar essa lógica, coloca-

se por terra toda a riqueza inerente às práticas socioculturais dos camponeses

caatingueiros, envolvendo seus saberes-fazeres e sua relação com a terra. Ainda é

latente, no conteúdo dos projetos desenvolvimentistas implantados pelo Estado no

Semiárido nordestino, a concepção de colonialidade do poder (QUIJANO, 2000), pois

os sujeitos que historicamente ocuparam as áreas a serem modernizadas pelos

investimentos públicos não são considerados “aptos” ou não têm expertise para

ocuparem os perímetros irrigados.

Assim, as disputas territoriais no Médio e Submédio São Francisco

recolocam no debate a necessidade de se rever o modelo de irrigação implantado pelo

Estado, visto que tais investimentos acabam criando espaços altamente tecnificados e

sob o domínio de agentes externos (capitais, organismos financiadores, instituições

normatizadoras, etc.),priorizando a exportação de commodities, excluindo das lavouras

e/ou nelas incluindo, de forma marginalizada, os camponeses como mão de obra barata.

A (re)conquista do território pelos camponeses, por meio da luta pela terra e pela água,

representa uma importante ação emancipatória, como forma de enfrentamento da

despossessão e do desterreamento gerados pela territorialização do agrohidronegócio

nessa região.

Tamanhos desafios têm levado os camponeses, por meio da organização

social, resistirem às ações e aos discursos capituladores do Estado e do capital mediante

a afirmação da diversidade social e cultural desses protagonistas. Nesse cenário

conflituoso, os camponeses caatingueiros lutam para terem acesso à terra e à água, por

considerá-las fundamentais para a reprodução de seus modos de vida. Inúmeras ações

de (Re)Existência (MENDONÇA, 2004) têm sido travadas no Semiárido baiano,

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transformando esse espaço num território de disputa entre o agrohidronegócio e o

campesinato. É por meio dessas ações que os camponeses vão construindo seus espaços

de esperanças, rumo à emancipação social, ou ainda, criando “modernidades

alternativas” (VELHO, no prelo) aos projetos hegemônicos ao vislumbrar outras formas

de relação com o trabalho e com a natureza.

Nascer no Sertão baiano e pesquisar os sujeitos nele residentes exigiu de

nossa parte abdicação e desprendimento de (quase) tudo o que se sabia sobre a realidade

vivenciada pelos camponeses caatingueiros, para enfim, reinterpretar as nuances

contraditórias envolvendo a modernização conservadora do Semiárido baiano e a

consequente expansão do agrohidronegócio nas regiões do Médio e Submédio São

Francisco. Revelar os enunciados falseadores que fazem reluzir o discursivo do

“progresso” e do “desenvolvimento” foi, desde o momento inicial dessa pesquisa, um

desafio para o pesquisador porque exigiu menções frequentes aos projetos

desenvolvimentistas implantados pelo Estado na região semiárida nordestina,

principalmente a partir dos anos de 1970, com o propósito de inserção da economia

regional nos mercados nacional e internacional. Ao denegar as práticas oficiosas e os

modos de vida dos camponeses caatingueiros, as políticas e projetos públicos

relacionados à expansão da irrigação no Semiárido nordestino deixam evidentes os

pactos de classe entre o Estado e os agentes do capital e a sua condição de não-

modernidade ao perpetuar a continuidade das estruturas de poder bem como a

manutenção da concentração fundiária. Ou seja, a expansão do agrohidronegócio no

vale do São Francisco apenas corrobora a ideia de que ainda não somos modernos

porque a ação do Estado sobre os territórios ocorre à revelia daqueles que serão

diretamente impactados com os seus desdobramentos, atribuindo à terra um duplo

sentido, ou seja, “cativeiro” e “sonho de liberdade”, sendo que esse último representa,

para uma parcela significativa dos camponeses, a necessidade da luta e da resistência.

Por último e não menos importante, cabe destacar que estar na Amazônia e

desenvolver a pesquisa no Semiárido colocou-nos o constante contato com a mistura,

com as dicotomias, levando-nos a estabelecer o duplo-vínculo entre a “Terra das

Águas” e o Sertão seco, as distintas relações entre os sujeitos com seus espaços de

morada e de trabalho. Esse ir e vir levou-nos a estabelecer uma constante mediação

entre naturezas-culturas distintas, resultando no espraiamento da forma de olhar e

compreender como estão conformados os territórios em disputa no Semiárido baiano.

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INTRODUÇÃO

A cada mudança técnica, as verdades

científicas do passado devem ceder

lugar a novas verdades científicas.

(Milton Santos, 2008, p. 33).

Os perímetros irrigados representam, sob o ponto de vista da política do Estado,

a alternativa mais viável para promover o desenvolvimento regional do Semiárido

nordestino. Por outro lado, trata-se de uma aproximação com os modelos globalizantes

pensados para o campo (pacote tecnológico da Revolução Verde e a Política Agrícola

Comum – PAC1), com forte interferência externa em função dos mecanismos de

controle impostos por organismos internacionais e pelos mercados consumidores. Em

seu sentido mais profundo, essa opção política e econômica deve ser analisada no

contexto da reestruturação produtiva do capital, cujas fronteiras são redesenhadas (e

rasgadas) em busca das condições necessárias à sua reprodução ampliada. É mister

acrescentar que as políticas públicas executadas pelo Estado são imprescindíveis para

atrair o grande capital porque tem desdobramentos importantes no tocante ao acesso à

terra e à água. Sem os subsídios governamentais, as dificuldades de implementar a

irrigação no Semiárido seriam consideravelmente superiores, mesmo porque as áreas

ocupadas pela irrigação privada estão atreladas aos investimentos públicos. O princípio

trinário terra-água-trabalho constitui um elemento catalisador para a reorganização

espacial do Semiárido, assumindo função importante na divisão territorial do trabalho.

A execução de inúmeras políticas públicas permitiu que a terra e a água

continuassem concentradas e atreladas ao capital financeiro, via conglomerados agro-

químico-alimentares-financeiros (THOMAZ JUNIOR, 2009), pois o setor de insumos

químicos e agrotóxicos, as agroindústrias processadoras de frutas e as cadeias de

supermercados no Brasil e no exterior são os maiores beneficiados, apropriando-se da

riqueza produzida nas terrassemiáridas irrigadas. Criar perímetros irrigados não

representa uma democratização do acesso à terra e à água, exercendo um efeito

contraproducente àquele propalado pelos inflamados discursos de seus idealizadores

1 A PAC foi criada em 1962 pela União Europeia (UE), tendo como objetivos proporcionar aos cidadãos

de seus Estados Membros alimentos a preços acessíveis e garantir um nível de vida equitativo aos

agricultores.

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bem como pelas políticas públicas direcionadas para incentivar a agricultura irrigada no

Nordeste semiárido.

Após um século de efetiva atuação do Estado no “combate” às secas, o Nordeste

semiárido continua a vivenciar o avanço da agricultura irrigada sobre terras até então

pouco valorizadas economicamente e sob o domínio dos camponeses e povos

tradicionais. De acordo com Silva e Martins (2006, p. 91),

Despontando como trajetória tecnológica hegemônica no bojo da

chamada Revolução Verde, o modelo euro-americano de

modernização agrícola caracterizou-se fundamentalmente pela prática

de uma agricultura altamente especulativa, voltada para o cultivo

contínuo de produtos com maiores níveis de rentabilidade.

Dessa forma, a agricultura irrigada no Semiárido exerce um papel central no

tocante à integração da região Nordeste ao mercado global, pois parte da produção de

frutas tem como destino os mercados europeu e estadunidense, conforme destacam

Sousa (2013) e Bezerra (2012). Enclaves são criados em meio ao Semiárido, com

infraestrutura hídrica voltada para culturas com elevado valor agregado no mercado

internacional, como é o caso das frutas, vinhos e produção de cana-de-açúcar e etanol,

construindo uma “nova” face para a região historicamente retratada como aquela em

que a seca era um obstáculo ao crescimento econômico.

Segundo levantamento feito pelo Banco Mundial (2004), entre os anos de 1970,

1980 e 1990, foram investidos mais de R$2 bilhões de reais em obras de irrigação,

abrangendo uma área aproximada de 600 mil hectares irrigados, divididos entre a

iniciativa privada (400.00 ha) e o setor público (200.00 ha). Devido a esses

investimentos, foram criados polos frutícolas de grande envergadura econômica, com

destaque para o Polo Juazeiro/Petrolina (maior polo frutícola da América Latina) e o

Polo Jaguaribe-Apodi (CE). Segundo dados da Agência Nacional de Águas (2003), a

região Nordeste ocupa a terceira posição no ranking de área irrigada, com destaque para

o estado da Bahia, o estado nordestino com a maior área irrigada, posição mantida ao

longo dos anos. A área irrigada na Bahia (aproximadamente 300 mil hectares)

representa 30,4% da irrigação da região Nordeste, sendo a irrigação por aspersão o

método mais utilizado no estado, tanto aspersão sem pivô (30,6%) quanto com pivô-

central (23,1%).

A irrigação (pública e privada) no Semiárido brasileiro encontra-se em fase de

expansão e de consolidação, conforme destacou estudo realizado pelo Banco Mundial

(2004), e conforme se pode comprovar, mais recentemente, com a destinação de

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recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e do Programa Mais

Irrigação, ambos do governo federal, para a criação de novos projetos de irrigação ou

para a modernização dos já existentes, além da oferta de assistência técnica voltada para

incutir entre os irrigantes o modelo de agricultura empresarial. Essa parece ser uma

tendência que perdurará pelos próximos anos, pois somente os perímetros irrigados

Senador Nilo Coelho e Bebedouro, em Pernambuco, receberam em 2013 investimentos

da ordem de R$ 60 milhões, oriundos do Programa Mais Irrigação, destinados a

melhorias na infraestrutura existente e à ampliação da área cultivada. Ressalte-se que os

investimentos em modernização dos perímetros irrigados não contemplam todos aqueles

em fase de produção2, sendo determinante para a escolha a capacidade de estes espaços

transformarem-se em polos produtores de frutas para os mercados interno e externo.

Considerando a mobilidade do capital e sua irrefreável necessidade de

incorporação de novos espaços para viabilizar sua reprodução ampliada, a expansão da

agricultura irrigada no Semiárido baiano revela a seletividade espacial quando se trata

de direcionar recursos financeiros para melhorias desse setor. O redesenho espacial é

definido por agentes externos, com a introdução de novas relações de produção e com a

imposição de padrões de produção, de acumulação e de consumo, totalmente alheios à

realidade local,

[...] introduzindo relações novas no arcaico e reproduzindo relações

arcaicas no novo, um modo de compatibilizar a acumulação global,

em que a introdução das relações novas no arcaico libera força de

trabalho que suporta a acumulação urbano-industrial e em que a

reprodução de relações arcaicas no novo preserva o potencial de

acumulação liberado exclusivamente para os fins de expansão do

próprio novo. (OLIVEIRA, 2006, p. 60).

Contraditoriamente, muito da estrutura social, política e econômica arcaica é

mantida intacta, como forma de garantir a perpetuação da acumulação de capitais e de

manutenção do status quo. Assim, os investimentos públicos em irrigação não atendem

às demandas dos camponeses a quem, historicamente, foi negado o acesso à terra e à

água, pois, conforme as diretrizes do “Novo Modelo de Irrigação” implementado na

década de 1990, a proposta é fomentar cada vez mais a agricultura empresarial nos

perímetros irrigados, através da celebração das parcerias público-privadas (PPPs). Esse

2 Entre os projetos escolhidos para receber recursos do PAC para obras de modernização estão o Projeto

Tourão (Juazeiro-BA) e o Projeto Jaíba (MG).

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direcionamento dado à irrigação em perímetros públicos expressa o idealismo neoliberal

em que o Estado

passa a priorizar a promoção de um ambiente favorável aos negócios

com vistas a atrair novos investimentos em detrimento de sua

intervenção direta na economia, seja por meio de empresas estatais,

seja por meio do controle sobre o processo econômico baseado em

instrumentos e políticas regulatórias. Inaugura-se um período sob a

dominância de práticas político-econômicas e do pensamento

neoliberal, que defendem um arcabouço institucional caracterizado

por direitos de propriedade privada fortalecidos, mercado livre e

comércio livre. Desregulação, privatização e a retirada do Estado de

muitas áreas de provisão social tornam-se processos comuns. O

Estado se torna um ator a serviço do capital e de sua estratégia de

globalização. (MARQUES, 2011, p. 4).

Seguindo essa lógica neoliberal, duas grandes obras hídricas foram executadas

nas regiões do Médio e Submédio São Francisco3, na Bahia, consideradas as

“transposições baianas do São Francisco” devido à magnitude destes empreendimentos.

Os projetos de irrigação Baixio de Irecê (em fase de implantação) e o Salitre (em fase de

produção) são as maiores obras de irrigação executadas atualmente no Brasil, somando

ambas um total aproximado de 100 mil hectares irrigáveis. Atendendo aos

direcionamentos do “Novo Modelo de Irrigação”, estes perímetros irrigados são

destinados, principalmente, para a agricultura sob os moldes empresariais, com foco na

fruticultura e na cana-de-açúcar. Produzir agrocombustíveis em projetos de irrigação

passa a ser uma realidade já no Projeto Salitre, com a presença da empresa

AGROVALE, maior produtora de cana-de-açúcar do Nordeste, perspectiva essa

vislumbrada para o Projeto Baixio de Irecê. Ou seja, os pequenos produtores vão

gradativamente sendo eliminados desses empreendimentos, demonstrando cada vez

mais que os investimentos públicos em obras dessa natureza estão atrelados à produção

de commodities agrícolas.

Assim, todas as travagens são eliminadas para que o capital possa apropriar-se

da infraestrutura hídrica e da terra, decorrentes de investimentos públicos. A expansão

do agrohidronegócio no Semiárido reforça e evidencia as contradições acerca da

organização espacial e do reordenamento do território do nordestino em virtude de

interesses econômicos e de políticas agrícolas externas. O fomento de atividades

agrícolas com forte dependência de água reforça e intensifica o controle sobre a terra e a

3 Para efeito de regionalização, utilizaremos nessa pesquisa a regionalização feita a partir da bacia do rio

São Francisco, sendo essa dividida em Alto São Francisco, Médio São Francisco, Submédio São

Francisco e Baixo São Francisco.

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água, gerando disputas territoriais e de classe nessa fração do território brasileiro. Desse

modo, os territórios camponeses passam a enfrentar um forte processo de especulação

em decorrência de os discursos propagandearem as virtudes unilateralmente benéficas

da irrigação no Semiárido, cujo resultado é a expansão e integração das atividades

agrícolas ao mercado globalizado. Nesse contexto, as lavouras cultivadas nos perímetros

irrigados possuem pouca ou nenhuma relação com os mercados regionais,

desconsiderando as tradições alimentares das populações locais. Ou seja, a produção de

alimentos passa a ser integrada aos mercados globais, sobrepondo-se às práticas

agrícolas locais, cujas tradições advêm de gerações passadas e cuja perpetuação se deu

pelo trabalho familiar.

Esse interesse demonstrado pelo grande capital por regiões incorporadas, de

forma marginal, à economia global tem sua origem na reestruturação produtiva do

capital, momento em que coincide com o início de maciços investimentos públicos no

Semiárido para viabilizar a agricultura irrigada. Nesse sentido, as formas espectrais e

regressivas inerentes à expansão do agrohidronegócio no Semiárido baiano colocam-se

como um problema de pesquisa ante a territorialização e a monopolização do território

pelo capital e todos os desdobramentos decorrentes desse fenômeno.

A centralidade dessa tese é a indissociável relação entre a expansão do

agrohidronegócio no Semiárido baiano e as disputas pelo controle da terra e da água,

tendo como elementos analíticos os conflitos decorrentes da execução dos projetos

desenvolvimentistas nessa fração do território nordestino, bem como seus

desdobramentos materializados nos territórios camponeses. Ademais, a presente

pesquisa abarca os impactos dos projetos de irrigação e sua materialidade no contexto

da luta de classes inerente ao processo sociorreprodutivo do capital no Semiárido

baiano, atentando para os estranhamentos no interior dos movimentos contrários aos

megaprojetos de segurança hídrica voltados para a irrigação.

A proposta metodológica da tese sustenta-se em autores que abordam a

territorialização do capital e a monopolização do território pelo capital, com ênfase na

expansão do agrohidronegócio e seus desdobramentos nos territórios camponeses, com

o intuito de alcançar os seguintes objetivos: a) analisar a expansão do agrohidronegócio

e das disputas territoriais no Semiárido baiano tendo como vetor as Políticas Públicas

implantadas a partir da década de 1990, de modo a considerar as várias formas de

resistência impostas pelos Movimentos Sociais/sujeitos caatingueiros à barbárie

promovida pela ação do Estado e do grande capital; b) compreender como as Políticas

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Públicas de desenvolvimento regional/territorial, implantadas pelo Estado a partir da

década de 1990, contribuem para a expansão do agrohidronegócio no Semiárido baiano;

c) cartografar as áreas de expansão do agrohidronegócio na Bahia; d)identificar quais

setores do agrohidronegócio despontam no Semiárido baiano; e) analisar como se

estabeleceu o conflito pela terra e pela água no Submédio São Francisco; g) entender

como ocorreu o processo de grilagem das terras atualmente ocupadas pelo Projeto de

Irrigação Baixio de Irecê; h) identificar as principais formas de luta pelo acesso à terra,

à água bem como as formas de resistência dos Movimentos Sociais/sujeitos

caatingueiros para se manterem na terra de trabalho.

Nessa perspectiva, a hipótese da presente investigação é que as políticas públicas

implantadas pelo Estado no Semiárido baiano para garantir a segurança hídrica acabam

fomentando a expansão do agrohidronegócio e as disputas territoriais (terra e água),

colocando em risco a manutenção dos modos de vida das populações camponesas

localizadas na faixa semiárida do estado da Bahia. Dessa forma, destacamos a

necessidade de conhecer profundamente a dinâmica do agrohidronegócio no Semiárido,

suas estratégias, alianças de classes e contradições, como medida para repensar o

modelo de desenvolvimento adotado para o campo brasileiro, pautado na produção de

commodities, de modo a correlacionar o contexto brasileiro com a realidade do Nordeste

semiárido, cada vez mais centrado na fruticultura irrigada e na produção de

agrocombustíveis.

Fazendo o caminho inverso daquele traçado pelos idealizadores e apologistas do

atual modelo de desenvolvimento territorial adotado para o Nordeste semiárido, buscou-

se entrelaçar a teoria aos resultados obtidos durante a imersão no universo pesquisado,

de modo a trazer à tona a voz daqueles que historicamente foram silenciados pelos

discursos hegemônicos e invisibilizados pela imagem de desenvolvimento atrelada ao

agrohidronegócio.

Para alcançar tal empreitada, a presente tese está organizada em cinco capítulos

seguidos das considerações finais. No Capítulo I,Tecendo os fios da “meada”: a

trajetória metodológica da tese,são abordadas questões concernentes à construção da

pesquisa, de maneira a entrelaçar a teoria aos sujeitos pesquisados – as motivações que

influenciaram o pesquisador na escolha do tema, a escolha e a caracterização dos

sujeitos, o recorte espaço-temporal, o método utilizado para interpretar o fenômeno em

questão, as categorias geográficas utilizadas –, além de refletir sobre a importância do

posicionamento político-ideológico que figura como pano de fundo para compreender

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os desdobramentos da expansão do agrohidronegócio no Semiárido baiano.

O Capítulo II, intitulado Políticas públicas de irrigação e a geografia do

agrohidronegócio no Semiárido baiano,buscou fazer um resgate sobre a trajetória das

políticas públicas voltadas para a irrigação no Nordeste brasileiro, de modo a comprovar

como tais ações desempenhadas pelo Estado foram (e ainda são) determinantes para a

territorialização e expansão do agrohidronegócio no Nordeste semiárido. Evidenciou-se

como essas políticas públicas fazem parte de um projeto maior, cujo intuito é o

reordenamento do território para atender às demandas do grande capital em escala

global. Para tanto, foram considerados três programas governamentais voltados para a

irrigação, sendo dois em escala nacional e um em nível estadual, a saber: o Novo

Modelo de Irrigação e o Programa Mais irrigação, em escala nacional e o Programa

Bahia Biocombustíveis, implantado na Bahia.

No Capítulo III,Tramas do agrohidronegócio e a questão agrária na Bahia,

são tratadas questões relacionadas à estrutura fundiária da Bahia e, de modo particular,

como ocorreu o processo de apropriação de terras nos vales dos rios Jacaré e Verde.

Ademais, evidenciam-se as estratégias utilizadas pelo Estado para viabilizar o acesso à

terra e à água por parte dos agentes do capital, colocando em destaque as disputas

territoriais e de classes no campo, a partir da constituição do Polígono do

Agrohidronegócio na Bahia.

O Capítulo IV,Projeto de Irrigação Baixio de Irecê: reordenamento do

território pelo agrohidronegócio, apresenta as alterações verificadas ao longo das

décadas na formatação desse empreendimento, seus objetivos e possíveis

desdobramentos para a região, bem como os desafios enfrentados pelas comunidades,

no tocante à organização social das famílias expropriadas, para fazer o enfrentamento ao

Estado. Ademais, são analisadas as dissidências ocorridas entre os movimentos de luta

pela terra e pela água encampados pelos camponeses caatingueiros e pelo Movimento

dos Trabalhadores Sem Terra (MST).

Intitulado Projeto Salitre: faces contraditórias do agrohidronegócio no

Semiárido baiano, o Capítulo V volta-se à “modernização” da agricultura praticada no

vale do rio Salitre, como um elemento explicativo para a conflitualidade instalada nessa

região a partir da década de 1970. Nesse contexto, o Projeto Salitre é o território em que

se materializam os conflitos pela terra e pela água, assim como os exemplos das

múltiplas resistências levadas a efeito pelos camponeses salitreiros e acampados frente

aos ditames do Estado e do grande capital. Outrossim, são analisadas as estratégias

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utilizadas pelos camponeses e por organizações sociais para disputar território com o

agrohidronegócio.

Nas Considerações Finais,Agrohidronegócio e luta anticapital: pensando a

construção dos espaços de esperança,defende-se a necessidade de repensar o modelo

de desenvolvimento adotado para o Semiárido, de modo a apontar a agricultura

camponesa como uma alternativa ao agrohidronegócio e os camponeses como sujeitos

importantes no contexto da luta anticapital. Nesse diapasão, as múltiplas resistências são

vislumbradas como componentes fundamentais para a construção dos espaços de

esperança, concebidos nessa pesquisa como os territórios camponeses – os territórios de

vida e de trabalho.

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CAPÍTULO I

TECENDO OS FIOS DA “MEADA”: A TRAJETÓRIA METODOLÓGICA DA

TESE

O empreendimento científico, no seu

conjunto, revela sua utilidade de tempos em

tempos, abre novos territórios, instaura

ordem e testa crenças estabelecidas há muito

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tempo. (KHUN, 2011, p. 61).

Este capítulo trata das questões metodológicas da pesquisa, buscando situar a

discussão sobre o agrohidronegócio no contexto da ciência geográfica. São apresentados

os marcos teórico-conceituais, bem como os parâmetros norteadores para a escolha do

tema, do recorte espaço-temporal e dos sujeitos da pesquisa, buscando categorizá-los a

partir de suas especificidades. Ademais, são explicitadas as técnicas utilizadas e como

contribuem para o levantamento das informações necessárias para sustentar as reflexões

a partir do entrelaçamento entre a teoria e a empiria, numa opção deliberadamente

política, com o intuito de fazer ecoara voz aos sujeitos que, em tantos momentos, foram

silenciados pelas personas do capital ou tiveram seus gritos negligenciados pelo Estado.

1.1 Sobre tecelões, teares e fios: a pesquisa na ciência geográfica

A convicção de que um fenômeno não foi ainda tão bem analisado ou que é

possível analisá-lo com maior aprofundamento é o que move a trajetória da elaboração

de uma Tese de Doutorado. Para alguns, trata-se de um posicionamento sensivelmente

modesto, enquanto para outros, de uma postura demasiadamente arrogante, dependendo

do ponto de vista como tal afirmação é analisada. De fato, a elaboração do

conhecimento científico requer uma gama considerável de adesões e pactos – teóricos,

metodológicos e conceituais –, de modo a revelar a natureza de um dado fenômeno (seja

ele social ou natural) cujas nuances sejam postas sob o crivo de determinações e regras,

com a finalidade de identificar, desconstruir ou validar aspectos que permitam

generalizar e/ou particularizar a materialidade daquilo que se configura como um

problema de pesquisa.

A busca pela construção de conhecimento acerca de um dado fenômeno significa

igualmente a adoção de uma opção política vinculada ao universo vivenciado pelo

pesquisador, cujas decisões e parâmetros de pesquisa validam um método próprio de

conceber os fenômenos, processos sociais e suas interações com a natureza.

O ato de pesquisar coloca múltiplos desafios porque condiciona a ação do

pesquisador à descoberta da realidade. Demo (2011, p. 22) destaca que a

realidade que se quer captar é a mesma para todos, mas para captar é

preciso concepção teórica dela, que pode ser diferente em todos,

dependendo do que se define por ciência, por método, ou do ponto de

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partida e do ponto de vista, ou da ideologia subjacente, ou de

circunstâncias sociais condicionantes ou condicionadas por interesses

históricos dominantes.

Ao longo de sua história, a Ciência Geográfica tem passado por profundas e

sensíveis transformações, caracterizada por rupturas e permanências, ratificando a

complexidade do pensar e analisar o espaço produzido e apropriado pelo homem. A

divisão entre Geografia Humana e Geografia Física não tornou o fazer-Geografia uma

tarefa fácil, levando a fragmentações/compartimentações que acabam por impedir aos

geógrafos uma leitura totalizante de como se processa a produção capitalista do espaço.

A coalização de interesses entre o grande capital e o Estado – sujeitos

mediadores do modelo hegemônico de desenvolvimento, mascarado de sustentável –

escamoteia a barbárie intrínseca aos mecanismos utilizados para viabilizar a apropriação

das terras e das águas na América Latina, nas últimas décadas e oblitera a consciência

da população no sentido de legitimar os projetos desenvolvimentistas4 em execução.

Conforme Silva (2011, p. 3, grifo do autor), a

[...] ‘idéia de desenvolvimento’ instituída como meta a ser alcançada

por todas as sociedades nos mantém reféns da dicotomia superior-

inferior, criada a partir da noção de raça, que no passado classificou a

humanidade em civilizados-primitivos e no presente nos divide em

desenvolvidos- subdesenvolvidos.

Novas epistemologias ocidentalizadas sobre desenvolvimento pulverizam ainda

mais a totalidade espacial, num entrincheirado e fugidio processo de invisibilidade das

populações, para quem o “desenvolvimento” significa opressão e cujo consentimento se

faz a partir da interiorização de discursos externos, com o propósito de gerar opacidades

e silêncios em relação às desigualdades sociais. Por outro lado, o enclausuramento

aparentemente desaparece em virtude das mudanças espaciais provenientes dos

investimentos em infraestrutura e tecnologia. Procura-se, por meio de ações dessa

natureza, eliminar a imagem envelhecida de um determinado espaço, livrando-o de

enraizamentos ressentidos, mas, em contrapartida, promove uma linearidade das formas,

dos modos de vida e de sua função ante as demandas do mercado globalizado.

4 Há uma gama de autores (ALVES, 2014; GONÇALVES, 2012; CASTELO, 2012; SAMPAIO JR, 2012;

ALMEIDA, 2012 e PEREIRA, 2012) que vem analisando o atual contexto econômico-político

brasileiro a partir das ações implementadas pelo Estado desde a década de 1990, iniciadas no governo

de Fernando Henrique Cardoso até os massivos investimentos públicos em grandes obras (Programa de

Aceleração do Crescimento, por exemplo) feitos pelos governos Luís Inácio Lula da Silva e Dilma

Roussef. Respeitadas as devidas particularidades, esses autores vêm discutindo os novos rumos do

desenvolvimento no Brasil sob a perspectiva do novo (neo)desenvolvimentismo, analisando as

estratégias adotadas pelo Estado e pelo capital para superar a crise financeira que assola o mundo e

cujos desdobramentos afetam diretamente a economia brasileira.

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No que tange à América Latina, entender as disputas pelos/nos territórios requer

a capacidade de fazer correlações e mediações para dar conta da totalidade dos

fenômenos e/ou processos, de modo a frear o anacronismo histórico e, por outro lado,

ressaltar os “antagonismos sistêmicos insuperáveis” (MÉSZÁROS, 2007, p. 21) do

sistema sociometabólico do capital. Ao priorizar, como recorte temático, as disputas

territoriais devido ao acesso à água,

[...] poderemos abordar facetas ainda mais complexas para o futuro da

sociedade, situações específicas do trabalho, novos vínculos e

significados para o espaço geográfico, especificidades das disputas

territoriais intrínsecas à luta de classes. (THOMAZ JUNIOR, 2011a,

p. 20).

A preocupação com o método no âmbito da Ciência Geográfica não é um

fenômeno recente. Humboldt (1845)5 procurou valorizar o método empírico e indutivo,

baseado em experimentos e observações. Ritter (1818)6, por sua vez, procurou

estabelecer um método para a Geografia baseado na simplificação e redução,

caracterizado por ser globalizador e não analítico. Passado todo esse tempo, essa

questão ainda não foi resolvida, não cabendo aqui uma digressão sobre o método na

ciência geográfica7. Todavia, faz-se necessário destacar que, do método descritivo-

quantitativo ao materialismo histórico-geográfico (HARVEY, 2012), a geografia

sempre conviveu com a necessidade de aproximação com outras áreas do conhecimento.

No contexto atual, essa aproximação visa a atender, em parte, a irrevogável

tarefa da Geografia de interpretar os fenômenos à luz das próprias condições históricas e

sociais, bem como a dimensão espacial dos fenômenos e até mesmo a materialidade das

forças produtivas/destrutivas no seio do capitalismo. Claval (2011, p. 305) nos lembra

que o

movimento que conheceram as ciências sociais desde o início dos

anos 1970 prossegue e aprofunda. Admite-se doravante que elas se

enganam quando tentam se assemelhar à física ou a biologia: a

sociedade não é uma máquina cujos movimentos seriam fáceis de

descrever e de modelar; não é um organismo semelhante às plantas e

aos animais. É feita de seres conscientes, que agem em função das

representações que se fazem do real; o investigador tem mais a

ganhar, aprofundando-se nas humanidades do que copiando as

ciências materiais e da vida.

O caminho percorrido durante a elaboração desta tese levou em consideração os

5 Cosmos, composta por quatro volumes (Cf. CAPEL, 2008, p. 34). 6 Erdkunde (cf. CAPEL, 2008, p. 57). 7 Sposito (2004) faz uma síntese de como ocorreu a evolução do método na ciência geográfica e sua

relação com a Filosofia.

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domínios das novas formas de reparo social e temporal, por reconhecer a natureza

provisória e fluída das configurações espaciais, sociais, econômicas e culturais que

envolvem o fenômeno em questão, ou seja, a expansão do agrohidronegócio8 e as

disputas territoriais no Semiárido baiano. A nova lógica de concepção do espaço,

pautada no movimento e na fluidez, torna, por um lado, obsoletos os espaços, os

sujeitos e os modos de vida que não estejam em conformidade com os projetos

desenvolvimentistas pós-modernos e/ou que não projetem as luzes de tais projetos

(HARVEY, 2010). Por outro, o entrecruzamento contraditório e conflituoso entre o

moderno e o “arcaico”, entre o território camponês e o território do agrohidronegócio

coloca em evidência a sobreposição de sujeitos e de perspectivas político-econômicas

distintas, compondo um quadro extremamente complexo no cerne da geografia,

centrada na preocupação com o espaço social. O espaço como materialidade do

movimento e do conflito9, e o ser social como sujeito das transformações em sua

constante relação com a natureza, constituem a expressão da totalidade-síntese dos

contrários, condição essa extremamente desafiadora para os geógrafos que se propõem a

pensar a produção/apropriação do espaço a partir do desenvolvimento em espiral

(SPOSITO, 2004, p. 63).

O Semiárido baiano com suas transmutações em virtude da territorialização do

capital torna-se uma condição histórico-geográfica no processo de desvelamento do

cenário construído/apropriado pelos sujeitos que nele vivem e se reproduzem, exigindo

do pesquisador um esforço epistemológico para capturar o movimento da totalidade

socioespacial (a estrutura, a organização, as estratégias e as disputas). Pretende-se,

assim, colocar em debate as tramas e urdiduras do capital no território do Semiárido

baiano, reconhecendo que “não há esforço crítico sem risco” (SANTOS, 2008a, p. 25),

tendo como ponto de partida a organização dos espaços de vida e de reprodução dos

“camponeses caatingueiros.” (DOURADO, 2010).

Atualmente, no âmbito da geografia, as pesquisas qualitativas têm ganhado

8 Nossa inspiração para a discussão sobre o conceito de agrohidronegócio tem sua gênese nas obras de

Torres (2007), Mendonça e Mesquita (2007) e Thomaz Junior (2009). O avanço sobre a compreensão e

consolidação conceitual daquilo que entendemos como agrohidronegócio tem nos desafiado a

considerar as rupturas e disputas no cerne da expansão do grande capital no campo e seus rebatimentos

sobre a cidade, mais especificamente sobre os trabalhadores no contexto da reforma agrária e da

soberania alimentar, sem desconsiderar, todavia, o papel do Estado por meio das políticas públicas, haja

vista que estas são instrumentos mediadores importantes para o agrohidronegócio. 9 De acordo com Fernandes (2008b, p. 198, grifo do autor), o conflito “é o estado de confronto entre

forças opostas, relações sociais distintas, em condições políticas adversas, que buscam por meio da

negociação, da manifestação, da luta popular, do diálogo, a superação, que acontece com a vitória, a

derrota ou o empate”.

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destaque, abarcando diversos tipos de enfoques teórico-metodológicos, aspecto

revelador de sua riqueza e complexidade, o que requer, por sua vez, aproximações com

outras áreas do conhecimento, como a antropologia e a sociologia, pelo pioneirismo

destas na utilização da pesquisa qualitativa. Tendo como pressuposto a apreensão do

espaço social, construído e transformado a partir das relações sociais, entendido aqui

como produto e processo do movimento do real, a presente pesquisa assume um caráter

eminentemente qualitativo por

[...] incorporar a questão do significado e da intencionalidade como

inerentes aos atos, às relações, e às estruturas sociais, sendo essas

últimas tomadas tanto no seu advento quanto na sua transformação,

como construções significativas. (MINAYO, 2006, p. 18).

Nesse campo, a geografia do trabalho tem se ocupado em desenvolver pesquisas

focadas no desvelamento das contradições do processo sociometabólico do capital (no

campo e na cidade), numa clara proposta de atualização dos referenciais marxistas.

Segundo Thomaz Junior (2010a, p. 226),

[...] há uma blindagem às ponderações que põem em questão a

atualidade e complexidade dos antagonismos não serem os mesmos da

época de Marx, entre burguesia e proletariado e, portanto, com pouca

capacidade explicativa da realidade do trabalho do século XXI. Ou

ainda, as contradições de hoje, do século XXI, nos remetem à ebulição

que povoa o universo do trabalho, ou as diferentes formas de

expressão do trabalho, que expressam os novos conteúdos das

contradições do capital, e com ele se antagonizam.

Corroboramos essa perspectiva acerca da ciência geográfica por entender que, na

atualidade, o arrefecimento decorrente dos referenciais (teórico-metodológico-

conceituais e políticos) marxistas acaba por engessar a abordagem dos fenômenos e/ou

processos, havendo, pois, a necessidade de se fazer a crítica da crítica, para avançar na

compreensão da totalidade espacial, superando a rigidez interpretativa acerca das

clivagens e contradições materializadas no território. Nessa empreitada, a construção de

uma geografia do trabalho encampada por Thomaz Junior (2003, 2008a, 2008b, 2008c,

2009, 2010c, 2010d, 2011ª, 2011b) tem exigido a aproximação com sociólogos

(ANTUNES, 2004, 2005, 2009; ALVES, 2001), filósofos (MÉSZÁROS, 2007),

cientistas políticos (MARX, 1982), bem como outros geógrafos tais como Moreira

(2007a) e Mendonça (2004). Ainda nesse universo de abordagem, Thomaz Junior

(2008b, p. 343, grifo do autor) adverte que

[...] mais do que romper com as blindagens teóricas, refazer os

caminhos da dinâmica geográfica do trabalho, repensar as novas

territorialidades, enfatizamos o papel central dos movimentos sociais,

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nas nossas pesquisas, sendo, pois, essa a possibilidade para darmos

continuidade à nossa disposição de consolidar o trabalho como um

tema da Geografia, e a Geografia do trabalho uma aposta na

compreensão crítica (autocrítica) da sociedade atual, para além do

capital.

Da mesma forma, há o cuidado em apreender as continuidades e

descontinuidades do espaço, por concebê-lo (aqui entendido como elemento anterior ao

território) como resultado de processos históricos e cujas rugosidades (SANTOS,

2008b, p. 259) trazem em si a materialidade e a modernização dos fenômenos sociais,

influenciados diretamente pelo metabolismo social do capital. A reestruturação

produtiva do capital tem ocasionado a plasmagem de sujeitos e processos, a

fragmentação social e, consequentemente, a pulverização das ações e reivindicações,

dificultando assim a compreensão das lutas bem como a espacialização das disputas

territoriais, como é possível verificar na área de pesquisa quando a Comissão Pastoral

da Terra (CPT), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), as

comunidades do Baixio de Irecê e os Salitreiros10 atuam de forma fragmentada, mesmo

quando o objetivo é o mesmo, ou seja, o direito à terra, ao território e à água. Nesse

mundo de convergência/divergência é possível verificar que as lutas travadas pelos

camponeses contra os empreendimentos executados pelo Estado para garantir a

segurança hídrica ao grande capital carecem de um fortalecimento da ação política,

evitando assim a confusão sobre quem são os alvos e para onde deve ser direcionada a

ação emancipatória.

O que comumente tem ocorrido é uma desconexão entre a forma de pensar e agir

dos camponeses e seus interlocutores (leia-se MST e CPT) que passam a lutar entre si,

fortalecendo ainda mais o poder do Estado e do grande capital. Por conta dessa

fragmentação das ações anticapital, a capacidade de contestação acaba dissipando-se em

virtude da incompreensão de que o embate deva ser feito por meio da luta de classes.

Todavia, essas mesmas ações fragmentadas revelam o interesse coletivo em lutar pela

terra e pelo território, expressando haver consciência de classe no âmbito da

organização social das comunidades11 atingidas pelos projetos de irrigação Baixio de

10 Os moradores das comunidades localizadas às margens do rio Salitre, nos municípios de Campo

Formoso e Juazeiro, autodenominam-se salitreiros, como forma de reafirmação da identidade com o rio,

constituindo também um elemento de resistência e enfrentamento à expansão do capital bem como à

ação do Estado na região. A bacia do rio Salitre, afluente do rio São Francisco, é marcada por conflitos

pelo acesso à água devido à chegada de irrigantes do Centro-Sul do país e da região de Cabrobó (PE)

que migraram para a região na década de 1970/80, em função da valorização das terras naquela região. 11 O conceito de comunidade possui uma amplitude epistêmica, envolvendo inclusive territorialidades

identitárias. Importa para nós definir nossa concepção sobre esse conceito, aqui entendido como espaços

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Irecê e Salitre. Em se tratando da construção da consciência de classes, Mészáros (2008,

p. 72, grifo do autor) expõe que o

desenvolvimento da consciência de classe é um processo dialético: é

uma “inevitabilidade histórica” precisamente na medida em que a

tarefa é realizada através da mediação necessária de uma atuação

humana autoconsciente. Isso requer, inevitavelmente, algum tipo de

organização – seja a constituição de partidos, ou de outras formas de

mediação coletiva – estruturada segundo as condições sócio-históricas

específicas que predominam em uma época particular, com o objetivo

estratégico global de intervenções dinâmicas no curso de

desenvolvimento social.

Por outro lado, essa complexidade do movimento do real coloca como desafio

para a ciência geográfica de base marxista a necessidade de avançar no entendimento da

concepção do que seria a classe trabalhadora hoje, partindo da premissa de que os

camponeses se juntem ao proletariado das fábricas/indústrias, integrando esse universo

como sujeitos com potencial revolucionário/emancipador. Para os marxistas clássicos, a

revolução seria feita apenas pelos trabalhadores das fábricas, por entenderem que a

capacidade de resistência dos camponeses à superexploração impediria que estes

buscassem a organização para lutar contra a estrutura de dominação social. De fato,

seria incoerente conceber a classe trabalhadora (e consequentemente a sua

conceituação) a partir de uma perspectiva rígida e estática, visto que esta se refaz

cotidianamente e sua historicidade revela as redefinições dos significados do ser que

trabalha. A plasticidade das diferentes expressões do trabalho humano ganha novo

significado nesse limiar de século XXI, muito embora seja importante destacar a

inexistência de concordância entre os marxistas sobre esse assunto, pois alguns teóricos

apresentam-se resistentes à atualização da formulação do conceito de classe

trabalhadora, com destaque para Lessa (2007). Para esse autor, não há

qualquer necessidade de novas categorias acerca do trabalho, do

trabalho abstrato, do trabalho abstrato produtivo e improdutivo, do

fundamento das classes sociais a partir do local que ocupam na

estrutura produtiva, etc. para a crítica revolucionária do mundo em

que vivemos. Tais categorias, tal como formuladas originalmente por

Marx, são rigorosamente atuais, imprescindíveis e suficientes.

(LESSA, 2007, p. 313.).

sociais pautados em relações de parentesco, vizinhança, religiosidade e localidade. Especificamente no

caso desta pesquisa, as comunidades tratadas tornaram-se, em função da grilagem de terras (1970/1980)

e da ação do Estado (1970 até a atualidade), espaços de luta em busca de permanência no campo e de

reprodução da família. Nesse contexto o território (de vida, de trabalho e de identidade) é construído a

partir do modus vivendi sertanejo e camponês, sofrendo interferências externas por parte do Estado e

dos agentes do capital a partir da criação de condições necessárias à territorialização e expansão do

agrohidronegócio nas regiões do Médio e Submédio São Francisco.

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Numa perspectiva diferente e que corroboramos, Thomaz Junior (2013a)

defende a necessidade do alargamento conceitual tanto do termo trabalho quanto de

classe trabalhadora. Segundo esse autor, é cada vez mais difícil

afirmar e sustentar empírica e teoricamente que o proletariado é a

única classe da sociedade burguesa que continua produzindo o

conteúdo material da riqueza, através da transformação da natureza,

com fins à reprodução social e, portanto, portadora exclusiva do

significado da revolução. (THOMAZ JUNIOR, 2013a, p. 31).

A esse respeito, Antunes (2005, p. 52) defende a necessidade de ampliação do

conceito de classe trabalhadora como forma de abarcar sua nova morfologia, inserindo

nesse universo o “proletariado rural, os chamados bóias-frias das regiões

agroindustriais”, sujeitos com presença marcante nas áreas dominadas pelo

agrohidronegócio. Todavia, Thomaz Junior (2012, p. 226-7) alerta para o fato de

[...] não haver a menor possibilidade, por exemplo, de se utilizar as

teses defendidas por Antunes, Mészáros, Alves, Francisco de Oliveira,

para se entender o movimento da sociedade como um todo, porque

esses autores não dão conta das relações não capitalistas, ou seja, não

focam, por exemplo, o campesinato.

Vê-se que o debate travado pelos autores supracitados é profícuo e caracterizado

por divergências, aspecto que o torna bastante complexo e enriquecedor, permitindo a

reflexão sobre as questões contemporâneas acerca do trabalho, como condição

ontológica do ser social. Como forma de entender a estrutura dominante da sociedade

capitalista, defendemos que a unificação desses sujeitos é crucial para o avanço das

ações emancipatórias, pois revela as modificações históricas dos fenômenos sociais. No

plano político e ideológico, representa o fortalecimento organizativo necessário para a

apreensão dos mecanismos de dominação, além de avançar na desconstrução das

fronteiras de classe, na medida em que uma ação reivindicatória não suprime

necessariamente a luta de outro segmento social que se encontra unificado justamente

pelas relações de classes.

Nesse sentido, há um longo caminho a ser percorrido na busca pela superação

das lacunas teóricas existentes acerca da nova morfologia da classe trabalhadora, em

função do hibridismo inerente aos sujeitos que compõem o mundo do trabalho na

atualidade, cuja realidade revela a plasticidade e a mobilidade do trabalho (THOMAZ

JUNIOIR, 2011b). A “pureza” do camponês deu espaço a um sujeito híbrido que ora é

camponês, ora é operário, proletário (mototaxista, diarista nas agroindústrias e fazendas,

biscateiro, ambulante, trabalhadores sem terra ou com pouca terra), como destaca

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Thomaz Junior (2006) e esse processo é fomentado pela crise e pela consequente

reestruturação do capital.

Esse hibridismo do ser camponês foi verificado na área da pesquisa, por meio

das entrevistas realizadas com as populações atingidas pela implantação dos perímetros

irrigados Baixio de Irecê e Salitre. É comum encontrar nas comunidades ribeirinhas do

Baixo Salitre pessoas que trabalham temporariamente nas lavouras do Projeto Salitre

como diaristas, caseiros, motoristas, entre outras funções. De acordo com Thomaz

Junior (2011a, p. 15) “[...] seja nos campos, seja nas cidades e seus respectivos

processos rurais e urbanos, é necessário reconstituir os mecanismos que marcam o fluxo

constante de sentidos, significados, conteúdos materiais e subjetivos de classe”. Nesse

sentido, a ação expansionista do agrohidronegócio tem colocado cada vez mais os

camponeses nas trincheiras do combate (político, ideológico), contra as investidas do

grande capital sobre seus territórios, fenômeno que salta aos olhos e se apresenta como

um assunto geograficamente inquietante e fomentador de pesquisas.

Diante do exposto, destacamos a importância e pertinência das contribuições

decorrentes da abordagem feita pela geografia do trabalho, cuja rede de pesquisadores

no campo da ciência geográfica, no Brasil, encontra em Thomaz Junior (2009, 2010a,

2012) sua expressão mais representativa. A geografia do trabalho busca fazer a “leitura”

do mundo reafirmando a centralidade da categoria “trabalho” , desde o ponto de vista

ontológico para entender o que se passa na contemporaneidade, com vistas a

interpretar/desvendar as múltiplas faces da degradação do trabalho no campo e na

cidade, até as estratégias e discursos hegemônicos adotados pelo capital em seu

processo sociorreprodutivo.

Ainda nessa perspectiva analítica, a geografia do trabalho procura entender a

nova morfologia da classe trabalhadora na contemporaneidade, bem como os desafios

postos pela necessidade de atualizar os referenciais marxistas, de modo que estes

possam contemplar as múltiplas faces do capital nesse limiar de século XXI. Ante o

exposto, Thomaz Junior (2011c, p. 17) nos concita a “[...] refazer o uso da dialética e do

conceito de práxis como referenciais teórico-metodológicos, ou seja, que as categorias e

os conceitos não estejam à frente da objetividade ontológica da sociedade.”

As clivagens, travagens e tramas do metabolismo social do capital colocam-se

como desafios para a interpretação do fenômeno da expansão do agrohidronegócio no

Semiárido baiano, sendo a geografia um aporte importante na busca pela “leitura” das

contradições materializadas no território. Sobre o papel da geografia no tocante à

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compreensão do que se passa no mundo do trabalho hoje, Thomaz Junior (2010a, p.

500) ressalta que a Geografia

pode contribuir sobremaneira para o desvendamento das

manifestações territoriais do processo social, possibilitando-nos o

entendimento das transformações no mundo do trabalho a partir dos

rearranjos espaciais que dão forma e contornos e se fundamentam

sobre conteúdos sociais diversos, ou seja, enquanto processo histórico

de construção e transformação, que por sua vez, substantiva-se em

ordenamento territorial diferencial.

Apreender os fenômenos geográficos a partir dos referenciais da geografia do

trabalho coloca como desafio um universo caracterizado por novas fissuras e múltiplas

travagens no conteúdo da classe trabalhadora, bem como os processos de

expropriação/dominação/apropriação do trabalho vivenciados por milhões de

trabalhadores no campo e na cidade.Assim, faz-se necessário compreender os jogos

explicativos do capital, a intensificação da precarização do trabalho no campo e na

cidade, a produção/supressão de riquezas, a “despossessão” e os intensos processos de

descampesinização12, entendimento esse fundamental para avançar na construção de

uma sociedade anticapital.

Uma vez que o avanço do agrohidronegócio no Semiárido baiano contribui

diretamente para dissolver a relação metabólica terra e água, verifica-se o esgarçamento

do tecido social, que desestabiliza o cotidiano das famílias que vivem do trabalho na e

com a terra e interfere na organização do território, gerando diretamente aquilo que Bihr

(1998) define como “crise de sociabilidade”. Ainda nessa perspectiva, Thomaz Junior

(2011a, p. 15) toma como exemplo “[...] as práticas socioculturais que envolvem

diretamente as comunidades à memória da terra, ou seja, a terra vista não como

mercadoria, mas sim território de vida, da própria existência, o que significa que, ao

perdê-la, perde-se juntamente a possibilidade de existência”. É importante asseverar que

o trabalho, como ato teleológico, segue mediando a construção do espaço geográfico,

num constante par dialético – realização-estranhamento13 – de modo que a relação

capital versus trabalho coloca, no jogo de cena, o complexo de relações contraditórias,

tendo como impacto negativo ointemperismo das relações do homem com a natureza.

A reorganização espacial e o emaranhado político-ideológico que envolvem as

estruturas necessárias à territorialização do grande capital criam estratificações sociais

12 Para Carvalho (2005, p. 38) a instabilidade estrutural vivenciada pelo campesinato brasileiro gera “[...]

processos de ‘campesinização’, ‘descampesinização’ e ‘recampesinização’ [...]”. 13 O termo estranhamento é aqui entendido na perspectiva luckacsiana.

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complexas que vão conflitar direta e indiretamente com as formas tradicionais de uso da

terra e da água. Não raro, eclodem disputas territoriais e processos des-re-

territorializantes, em virtude da execução de megaempreendimentos, aspecto revelador

de uma hidropolítica entre o Estado e o grande capital, em função do mercado virtual de

água.

O agrohidronegócio revela força e poder14 frente aos direitos das populações

camponesas tradicionais, por causa doarranjos políticos e econômicos estabelecidos na

esfera governamental, como forma de agilizar os processos legais sob o domínio do

aparelho do Estado. No tocante ao Semiárido baiano, a efetivação da política de

desenvolvimento territorial executada pelo Estado desde os anos de 1970 tem

promovido uma ressignificação do lugar/território, tanto no tocante à dimensão

simbólico-cultural (lugar) quanto no plano das relações de poder (território). Há, nesse

aspecto, a necessidade do alargamento dos horizontes analítico-interpretativos para

compreender e apreender as alterações ocorridas no plano das relações e espaços de

vivências dos camponeses caatingueiros (ribeirinhos ou não), porque tais

transformações não estão condicionadas especificamente à execução de um grande

empreendimento hídrico, como é o caso dos projetos de irrigação.

A relação metabólica do camponês caatingueiro com a terra e a água

(Organograma 1) passa a ser associada ao simbolismo e à cultura do atraso, concepção

sustentada pela equivocada defensa da agricultura irrigada, cuja produção é direcionada

ao mercado externo. A apropriação da terra e da água pelo camponês caatingueiro traz

em sua gênese os resquícios da estrutura agrária do tempo dos currais, cuja organização

estava centrada na agricultura de vazante (produção de cana-de-açúcar, principalmente)

e na criação de gado nas áreas de sequeiro. Para esse sujeito, a apropriação e o uso dos

recursos terra e água estão mediados por valores culturais (a policultura), valores

simbólicos (terra como território e a água como manifestação divina que potencializa o

trabalho e a produção de alimentos), de modo a viabilizar a reprodução do modo de vida

camponês. A associação terra-ága deve ser analisada a partir do trabalho como condição

ontológica do ser social, porque representa os meios que permitem ao camponês

caatingueiro a manutenção de suas práticas socioculturais e de seus modos de vida,

conferindo-lhe certa autonomia em relação aos atores hegemônicos (Estado, capital e

14 Arendt (1985, p. 24) afirma que “[...] o poder jamais é propriedade de um indivíduo; pertence ele a um

grupo e existe apenas enquanto o grupo estiver unido. No momento em que o grupo, de onde originara-

se o poder desaparece, o seu poder também desaparece.”

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senhores das terras). O controle sobre a terra e a água permite ao grande capital e aos

proprietários de terras subtrair riquezas geradas pelo trabalho camponês ou pelos

assalariados das periferias urbanas que buscam o sustento da família trabalhando nos

perímetros irrigados. Ao visitar as comunidades da bacia do rio Verde (Itaguaçu da

Bahia) e do rio Salitre (Juazeiro) verificamos que os camponeses com acesso à terra e à

água dispõem de maior autonomia tanto do ponto de vista político quanto econômico.

Organograma 1 – Camponês caatingueiro e a relação metabólica terra e água

Org.: DOURADO, J. A. L., 2014.

Elab.: HOLANDA, E. P.

A apropriação social da natureza (LEFF, 2006) entre os distintos grupos que

historicamente ocuparam as terras semiáridas do Médio e Submédio São Francisco fica

seriamente comprometida, devido aos processos de valorização fundiária e especulação

financeira. O resultado é o desmantelamento das comunidades que têm sua dinâmica

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totalmente alterada em função da chegada de pessoas para trabalhar nos canteiros de

obras, ou, ainda, pelos trabalhadores que buscam nos perímetros irrigados uma

oportunidade de emprego, fato que contribui sobremodo para o crescimento

desordenado da população dos municípios onde estão localizados os projetos de

irrigação.

Durante as visitas às comunidades em Xique-Xique, muitos entrevistados

fizeram referência aos “filhos do Baixio”, ao tratar das crianças que nasceram com a

chegada dos operários para trabalhar na obra do Projeto Baixio de Irecê, sendo elas

sequer reconhecidas pelos pais, que, ao término da obra, retornaram para seus locais de

origem, ficando mães e crianças abandonadas. Na região de Juazeiro, são os “filhos do

vento”, ou seja, crianças nascidas com a chegada dos operários para trabalhar na

implantação dos parques eólicos, principalmente no município de Sobradinho, vizinho a

Juazeiro.

As políticas de incentivo à irrigação, os megaempreendimentos de segurança

hídrica (a transposição do rio São Francisco15 e os projetos de irrigação) são evidências

do exercício de relações de poder projetadas no espaço, nas mais diferentes escalas,

temporalidades e situações. É essencial destacar a notoriedade adquirida pelos

megaempreendimentos hídricos na área da pesquisa, sendo disseminada a ideia de que o

desenvolvimento regional está restrito à execução desses projetos. Cria-se,no interior

das comunidades, um conflito entre os adeptos e os contrários aos empreendimentos

hídricos, o que, por sua vez, provoca desestabilidade entre os camponeses, com a

ocorrência de conflitos internos, devido à divisão das famílias e à negação dos modos de

15 O rio São Francisco é conhecido como o rio da integração nacional. “Essa denominação vem do fato de

ele ligar o Brasil desde o Sudeste – serra da Canastra, em Minas Gerais, onde nasce – até o Nordeste,

exatamente na divisa dos Estados de Alagoas e Sergipe, onde deságua no oceano Atlântico. Seu curso

pode ser dividido em quatro trechos diferenciados: o do alto São Francisco, que vai até a confluência

com o rio Jequitaí, em Minas Gerais; o médio São Francisco, onde começa o trecho navegável do rio e

segue até a barragem de Sobradinho, na Bahia; e o submédio e o baixo, entre Sobradinho e a foz.”

(RIMA, 2004, p. 13). Os municípios de Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique estão localizados no

Território da Cidadania (ou Identidade) de Irecê, composto por 20 municípios (América Dourada, Barra

do Mendes, Barro Alto, Cafarnaum, Canarana, Ibipeba, Ibititá, Ipupiara, Jussara, Lapão, Mulungu do

Morro, Presidente Dutra, São Gabriel, Uibaí, Central, Gentio do Ouro, Itaguaçu da Bahia, João Dourado

e Xique-Xique). Já o município de Juazeiro está localizado no Território da Cidadania Sertão do São

Francisco, composto por 10 municípios (Uauá, Campo Alegre de Lourdes, Canudos, Casa Nova,

Curaçá, Juazeiro, Pilão Arcado, Remanso, Sento Sé e Sobradinho). Na Bahia foram identificados 26

territórios da Cidadania pelo Programa Territórios da Cidadania, lançado pelo governo federal em 2008,

com o propósito de promover o desenvolvimento econômico e universalizar programas básicos de

cidadania por meio de uma estratégia de desenvolvimento territorial sustentável. Essas ações integram o

Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável (PTDRS). Para maiores informações sobre os

Territórios da Cidadania acesse www.territoriosdacidadania.gov.br/dotlrn/clubs/territoriosrurais/on-

community.

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vida até então predominantes. Com a chegada dos projetos de modernização, tem-se

como resultado uma devastadora desagregação dos laços de sociabilidade interna, sem

que haja, por parte dos empreendedores (Estado e grande capital), o reconhecimento das

relações territoriais, sociais, culturais e étnicas existentes no local e cujas

especificidades não são contempladas com os planos de “remoção”, “reassentamento”,

“limpeza”. Camponeses, indígenas e quilombolas caatingueiros têm sua quietude e

tranquilidade perdidas em função dos processos desterritorializantes deflagrados pelos

projetos desenvolvimentistas, que ganharam novo fôlego a partir dos anos 2000, mais

especificamente com a implantação do PAC16 no governo Lula. Os discursos

governistas procuram destacar o crescimento obtido na mineração, no agronegócio, no

setor energético, com grande aumento de áreas agricultáveis que avançam sobre

florestas, margens e nascentes de rios e áreas de proteção constantemente invadidas e

destruídas por pastos, monocultivos (cana, soja, celulose, laranja), extração mineral ou

por barragens.

Entender a barbárie do capital em sua versão moderna e sua materialidade no

território requer, necessariamente, que demos conta do par dialético – ir e vir – em face

do conteúdo espacial perpassado por contradições, expressas pelo estranhamento dos

sujeitos sociais enquadrados em diferentes atividades urbanas e rurais, bem como

daqueles excluídos desse processo. Os conflitos por terra e água que emanam do

Semiárido baiano põem em cena novas territorialidades, devido ao processo histórico de

construção e transformação desse espaço para atender às novas demandas de

acumulação, das formas e contornos dos rearranjos do metabolismo societário do

capital, constituindo indicativos da edificação de movimentos de contestação da ordem

vigente. Porto-Gonçalves e Cuin (2013, p. 18) chamam a atenção para o seguinte

aspecto sobre a natureza do conflito:

O conflito é um conceito importante, pois aponta para uma dimensão

imanente às relações sociais e de poder. Indica que sobre um mesmo

tema, um mesmo objeto, diferentes indivíduos/grupos/classes/sujeitos

sociais têm visões/práticas distintas. O conflito é a contradição social

em estado prático. Tomá-lo como conceito central para análise dos

processos sócio-geográficos é fundamental, ainda mais quando se trata

de conflitos pela terra/água, necessários para a produção/reprodução

da vida. A luta pela terra/água mais que uma questão de economia, é

fundamental para a democracia, pois diz respeito a relações de poder

16 Alves (2014) define esses projetos como “neodesenvolvimentistas” inseridos no contexto do

capitalismo hipertardio, caracterizado ontogeneticamente pela “modernização conservadora”. Ainda

segundo esse mesmo autor, trata-se de um fenômeno causador de mudanças internas na morfologia das

classes e camadas sociais.

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através do controle da terra/água.

A pilhagem da região do Semiárido e de seus povos, iniciada pelos donos dos

currais ainda no século XVII, quando tribos indígenas que ocupavam o São Francisco

foram dizimadas para dar lugar ao gado, continua pujante em pleno século XXI, com os

projetos desenvolvimentistas, como é o caso dos projetos de irrigação inseridos no

PAC. O que ocorreu de fato foi uma remodelagem tanto dos mecanismos quanto das

estratégias utilizadas, porém os fins possuem muitas similitudes porque trazem, em seu

cerne, a perspectiva de modernizar o território para facilitar a reprodução do grande

capital. A percepção desses fenômenos e/ou processos foi aguçada pelo fato deste

pesquisador ter crescido no Semiárido baiano e vivenciado as transformações

socioespaciais decorrentes da expansão do agrohidronegócio frutícola no município de

Livramento de Nossa Senhora. Essa expansão promoveu intensa migração campo-

cidade, precarização do trabalho e desmonte dos costumes e modos de vida das

comunidades camponesas desterritorializadas, para a construção do Perímetro Irrigado

do rio Brumado, voltado para a produção de manga para o mercado externo (Estados

Unidos da América, Europa e Japão).

1.2 Quando o território da vida se confunde com o território da pesquisa:

entendendo os porquês do Semiárido baiano

A capacidade de compreensão de um fato e/ou fenômeno é potencializada se

houver uma associação entre quem fala e aquilo do que se fala. O Semiárido abordado

nesta pesquisa é hibrido, plasmado, cuja inteireza revela um pouco de mítico, de

pobreza, de riqueza, de seca, de múltiplas culturas e de resistências (e por que não dizer

existências), tudo isso sublimado pelas contradições dos processos histórico-geográficos

que, ainda hoje, colocam em questão a eficiência e eficácia da técnica, da tecnologia e

da política, no tocante à solução dos problemas causados pelas secas.

O Semiárido das secas (amargo para os camponeses caatingueiros17) logo se

transmutaria em Semiárido do agrohidronegócio (fértil e provedor para as personas do

capital), revelando um imbricado e complexo processo de existência conflituosa entre

mundos-sujeitos, numa terra onde “secas” e “chuvas” são manipuladas para atender aos

17 Entende-se por camponês caatingueiro os sujeitos que vivem no campo, na região semiárida,

compreendendo os barranqueiros, geraizeiros, pescadores e os que vivem em áreas distantes dos rios,

com pouca ou sem terra, sendo caracterizados por práticas socioculturais distintas, porém hibridizados e

amalgamados pelas tramas espaciais intrincadas na própria dinâmica do “ser” camponês.

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interesses das elites (locais, regionais, nacionais e agora também internacionais). Mais

ásperas que a paisagem adusta do Semiárido têm sido as ações voltadas a atender às

demandas do capital em sua ação expansionista, com aporte de grandes investimentos

públicos em obras de infraestrutura, como produtos de nefastas articulações políticas, ao

passo que as populações sertanejas ficam à mercê das medidas assistencialistas ainda

hoje “necessárias” ao enfrentamento das mazelas sociais existentes (e resistentes) no

Semiárido.

Eleger o Semiárido como cenário desta pesquisa não foi algo acidental. Trata-se

de uma decisão eivada de sentido político e também cultural, porque os desígnios da

seca são tão marcantes no Sertão que assumem uma materialidade na paisagem e

espaço, nos discursos e nas representações socioculturais. Nesse sentido, viver no

Semiárido foi preponderante para a escolha do tema e do território a serem analisados e

desvendados a partir do instrumental do materialismo histórico-geográfico, pois, como

destaca Harvey (2011, p. 115), “nossa única escolha é ser ou não consciente de como

nossas intervenções atuam e estar pronto a mudar de rumo rapidamente quando as

condições se colocarem ou quando as consequências não intencionais se tornarem mais

aparentes”.

Considerando a regionalização baseada no rio São Francisco, os municípios

localizados próximos ao seu curso estão divididos em: Alto São Francisco, Médio São

Francisco e Baixo São Francisco. Para a referida pesquisa escolhemos como recorte

espacial (Mapa 1) as regiões do Médio São Francisco (sendo analisados os municípios

de Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique) e o Submédio São Francisco (cujo foco de análise

foi o município de Juazeiro) por razões muito específicas, a saber: a) constituem duas

regiões de expansão do agrohidronegócio no Semiárido baiano, e no Médio São

Francisco esse fenômeno começa a se estruturar, ao passo que no Submédio São

Francisco já apresenta-se consolidado; b) nas referidas regiões temos a atuação

marcante por parte do Estado, através da implantação de grandes projetos de irrigação;

c) nelas há a ocorrência de conflitos por terra e água relacionados à implantação dos

perímetros irrigados; d) estão localizadas no Semiárido baiano.

O vale do São Francisco tornou-se bastante atrativo para o grande capital ao

longo das últimas quatro décadas, visto que a associação entre condições

edafoclimáticas favoráveis e a pisponibilidade de infraestrutura proporcionada pelo

Estado, garantem retorno financeiro aos investimentos realizados pelo setor privado,

principalmente nos perímetros irrigados, promovendo uma expansão considerável

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destes por todo o seu vale.

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Partindo dessa premissa, a escolha do Semiárido como espaço a ser analisado

deu-se em função das experiências vivenciadas por este pesquisador que, desde o curso

de Mestrado18, propôs-se a pensar e a analisar as singularidades dessa região a partir dos

efeitos da modernização da agricultura, devido à implantação dos projetos de irrigação e

à territorialização do grande capital no campo, através da fruticultura irrigada no

Perímetro Irrigado do Rio Brumado, no município de Livramento de Nossa Senhora

(BA). Desse modo, a construção teórica da presente tese emana do mundo vivenciado

pelo pesquisador, o lugar de onde advêm suas experiências cotidianas e com o qual se

tem laços de afetividade. Há, portanto, uma fusão entre os espaços analisados nesta

pesquisa e a vida do pesquisador, aspecto que, a nosso ver, facilita adentrar o cotidiano

dos camponeses caatingueiros, visualizar os conflitos e interpretá-los a partir do real.

Sobre essa relação entre o pesquisador e a pesquisa, Oliveira (1998) ressalta que

[...] promover a consonância entre pesquisa e biografia é altamente

estimulante, pois atribui vida ao estudo, retirando da produção

intelectual poeiras de artificialismo, que recobrem parte da pesquisa

acadêmica ou, senão isso, que acabam contribuindo para a

representação social da universidade como redoma, imagem que ainda

encontra ressonância no conjunto da sociedade.(OLIVEIRA, 1998, p.

19).

Ainda sobre essa escolha, concordamos com Castro (2008, p. 295) quando faz a

seguinte afirmação:

A Região Nordeste é um caso importante para investigação, seja pelo

descompasso que ela apresenta quando comparada com outras regiões

do país ou com a média nacional, seja pelo uso político da aparência

das causas da diferenciação, aceitas pelo senso comum, seja pela

ressonância que os políticos regionais obtêm no cenário nacional.

Diante disso, o pesquisador torna-se uma espécie de artesão intelectual que vai

lapidando a construção do conhecimento mediante a incorporação das experiências

vividas, sem, contudo, ceder às verdades cristalizadas. Ainda sobre a motivação que o

levou à realização da pesquisa, buscou-se respaldo em Oliveira (2008, p. 125) quando

esse revela sua paixão pela investigação ao dizer: “[...] não indaguei, pois, do

surgimento da paixão: apaixonei-me apenas; e entrei na corrente, deixei o barco correr.”

A escolha pelo Semiárido baiano, mais especificamente o vale do rio São Francisco, não

18 No ano de 2009 foi iniciado o curso de Mestrado em Geografia pela Universidade Federal de Goiás –

Campus Catalão, sob a orientação da professora Doutora Helena Angélica de Mesquita, cujo título é

“Modernização da agricultura: expropriação camponesa e precarização do trabalho no agronegócio da

manga em Livramento de Nossa Senhora (BA)”.

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representa apenas uma ampliação da área de pesquisa iniciada durante o Curso de

Mestrado. Significa uma tentativa mais ousada com o intuito de trazer para o debate a

realidade vivenciada por milhões de sertanejos nordestinos que ainda hoje perecem

“vítimas de um sistema de opressão e opróbrio” (OLIVEIRA, 2008, p. 130), visto que o

desenvolvimento das forças produtivas não tem representado a emancipação desses

sujeitos cuja função dentro da engrenagem do grande capital se resume a favorecer a sua

reprodução ampliada.

Interessa analisar, no âmbito desta pesquisa, a expansão do agrohidronegócio e

as disputas territoriais no Semiárido baiano a partir dos projetos públicos de irrigação,

ainda que, não obstante, se tenha a compreensão de que esse fenômeno esteja associado,

em um ou outro momento, à expansão da mineração, de parques eólicos, à construção

de ferrovias e à produção de agrocombustíveis na região. Estas ações integram o

planejamento do projeto desenvolvimentista, pensado e executado para favorecer a

reprodução do capital e a consolidação da estrutura de dominação vigente.

Se, no limiar do século XXI, o Nordeste semiárido tem presenciado a

territorialização do grande capital, acreditamos que “[...] não se pode reconhecer

nenhum papel civilizatório para o grande capital no Nordeste; ali, como em outras

partes do Brasil, é ele a opressão, o obscurantismo, a negação do futuro” (OLIVEIRA,

2008, p. 131). Nesse contexto, colocamos em questão a validade dos projetos

desenvolvimentistas, bem como a racionalidade economicista utilizada para

fundamentar as ações do Estado, pautadas na perspectiva da modernização do território,

desconsiderando as alternativas emanadas da organização social, com base no respeito

aos limites da capacidade dos ecossistemas que compõem o bioma Caatinga e à

valorização das bases imateriais “[...] da cultura e dos valores identitários associados

aos territórios de vida e trabalho” (CARVALHO, 2012, p. 26).

Do Nordeste algodoeiro-pecuário (OLIVEIRA, 2008) ao Nordeste dos

perímetros irrigados, vê-se o surgimento de novas configurações, sendo notória a

articulação Estado-capital, cujo fio lógico é a implementação de megaprojetos, criando

novos circuitos de produção e apropriação do valor gerado pela mercadoria “água”. O

binômio terra-água protagoniza a reinvenção ideológica do “novo Nordeste”, fortemente

marcado pelos investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), como

é o caso dos projetos de irrigação Baixio do Irecê e Salitre, numa clara imposição de

modelo produtivo para essa região. O encurralamento das populações camponesas

constitui-se uma forma de externalização dos custos de um intenso e acelerado processo

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de privatização da terra e do uso da água, sem que haja a possibilidade de debate e

escolha sobre qual modelo de desenvolvimento atende às demandas dos sujeitos que

vivem nesse território. Por outro lado, cabe destacar que não há mais uma clara

distinção entre o Nordeste semiárido e o Nordeste litorâneo, no que tange ao projeto de

superação das disparidades regionais, por entender que há uma convergência do capital

financeiro19, através da expansão da silvicultura no sul da Bahia, da fruticultura irrigada

e da cana-de-açúcar nas áreas de caatinga, mediada pela apropriação da água, cuja

racionalidade acaba por diluir o discurso da seca, revelando assim a contradição no seio

do próprio processo de expansão do capital, em terras semiáridas do Nordeste brasileiro.

A partir da década de 1960, houve nos estados do Nordeste a criação de diversos

perímetros irrigados pela CODEVASF (Quadro 1) e pelo DNOCS (Quadro 2), como

medida para minimizar as disparidades regionais a partir da criação de infraestrutura de

irrigação e geração de energia elétrica, com fortes impactos socioeconômicos para o

campo, por representar as bases para a agricultura moderna na região. Atualmente as

ações da CODEVASF estão concentradas nos sete polos de desenvolvimento: Norte de

Minas, Guanambi, Formoso/Correntina, Barreiras, Irecê, Juazeiro/Petrolina e Baixo São

Francisco. A política de desenvolvimento regional pensada para o Nordeste semiárido

ainda tem, nos perímetros irrigados (Mapa 2), um dos pilares para a atuação do Estado

no que diz respeito à geração de emprego, renda e garantia da segurança hídrica.

O projeto de “Integração” do rio São Francisco20, a implantação do Projeto

Baixio de Irecê e o Projeto Salitre foram contemplados com recursos do PAC, obras

ainda inacabadas. Trata-se de obras voltadas para o incremento da produção de etanol,

cana-de-açúcar e fruticultura, com vistas a atender às demandas de consumo tanto

interno (principalmente o Centro-Sul do país) quanto para exportação.

19 Fusão de capital industrial com capital bancário. 20 Segundo informações do Ministério da Integração Nacional, o Projeto de Integração do rio São

Francisco, além de gerar empregos e promover a inclusão social, irá garantir a segurança hídrica em

390 cidades localizadas nos estados da Paraíba, Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte, totalizando

12 milhões de pessoas.

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Ao analisar o mapa 2 verifica-se que os perímetros irrigados estão

concentrados, em sua maioria, nos estados da Bahia (porção norte do estado),

Pernambuco e Ceará, com destaque para os polós Juazeiro/Petrolina (BA/PE), Tabuleiro

de Russas21 e Jaguaribe/Apodi (CE)22 e Baixo-Açú (RN)23. Os perímetros irrigados

constituem verdadeiras “manchas verdes” para onde convergem empresas do setor

alimentício (Del Monte Fresh Produce, por exemplo), de insumos e de máquinas. Essas

regiões são, atualmente, as maiores produtoras de manga, uva, banana do país. Os

investimentos feitos na região acabaram promovendo a modernização do território,

levando o Semiárido a adquirir importância singular no cenário nacional no tocante à

produção frutícola, principalmente manga, uva e banana. Em função desses

investimentosem construção de canais de irrigação, perímetros irrigados e barragens:

[…] novos conteúdos e impõe novos comportamentos graças às

enormes possibilidades de produção e sobretudo da circulação dos

insumos, dos produtos, do dinheiro, das idéias e informações, das

ordens e dos homens. É a irradiação do meio técnico-científico-

informacional que se instala sobre o território, em áreas contínuas no

Sudeste e Sul ou constituindo manchas e pontos no resto do país

(SANTOS e SILVEIRA, 2001, p.52).

Assim, em função da execução dos programas e projetos estatais, os vales

dos rios São Francisco, Parnaíba e Jaguaribe tiveram suas paisagens transformadas pela

geometria dos canais de irrigação, da açudagem e dos perímetros irrigados, cujos

territórios representam a delimitação entre o “moderno” e o “arcaico”, bem como a

divisão do Semiárido entre o DNOCS e CODEVASF. Vale destacar que, inicialmente, a

atuação do DNOCS estava direcionada para o incentivoda agricultura familiar ao passo

quea CODEVASF sempre esteve direcionada ao incentivodo agronegócio. Os

perímetros irrigados representam um reesenho do Semiárido, cuja espacialização

expressa linhas de tensão entre sujeitos e modelos de ocupação e usos distintos do

território. A atuação da CODEVASF dé-se, de forma mais expressiva, nos estados da

Bahia, Pernambuco e Minas Gerais (Quadro 1), sendo responsável por dotar o território

de condições favoráveis para a territorialização do agrohidronegócio.

21 O Perímetro Irrigado Tabuleiros de Russas está localizado nos municípios de Russas, Limoeiro do

Norte e Morada Nova, especificamente no baixo vale do Jaguaribe, conhecido como zona de Transição

Norte dos Tabuleiros de Russas. 22 A Chapada do Apodi compreende uma área de 2.421,8 km², englobando terrenos dos municípios de

Aracati, Jaguaruana, Quixeré, Limoeiro do Norte, Tabuleiro do Norte, Alto Santo e Potiretama (COSTA,

2009). 23 O Perímetro Irrigado Baixo-Açu esta situado nos municípios de Ipanguaçu, Alto do Rodrigues e

Afonso Bezerra.

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Quadro 1 - Projetos de irrigação sob a gestão da CODEVASF – 2014

Projeto Extensão (ha) Situação Localização

Gorutuba 4.734 Em produção Minas Gerais

Jaíba 107 Em produção Minas Gerais

Lagoa Grande 1.538 Em implantação Minas Gerais

Pirapora 1.236 Em produção Minas Gerais

Lagoa Grande 1.538 Em produção Minas Gerais

Baixio do Irecê 59.375 Em implantação Bahia

Salitre 31.305 Em produção Bahia

Barreiras do Norte 1.652 Em produção Bahia

Ceraíma 408 Em produção Bahia

Curaçá 4.203 Em produção Bahia

Estreito I/III 5.884 Em produção Bahia

Mandacaru 420 Em produção Bahia

Maniçoba 4.160 Em produção Bahia

Mirorós 2.159 Em produção Bahia

Nupeba/Riacho Grande 2.853 Em produção Bahia

Piloto Formoso 408 Em produção Bahia

Formoso A/H 11.751 Em produção Bahia

SãoDesidério/Barreiras Sul 1.718 Em produção Bahia

Tourão 14.237 Em produção Bahia

Estreito 5.844 Emprodução Bahia

Ceraíma 2.430 Em produção Bahia

Projeto Marituba 4.200 Em implantação Alagoas

Itiúba 900 Em produção Alagoas

Boacica 2.762 Em produção Alagoas

Cotiguiba/Pindoba 2.232 Em produção Sergipe

Projeto Jacaré Curituba 3.105 Em implantação Sergipe

Betume 2.860 Em produção Sergipe

Propriá 1.177 Em produção Sergipe

Senador Nilo Coelho 18.563 Em produção Pernambuco

Total (ha) 203.894

Fonte: CODEVASF, 2012.

Org.: DOURADO, 2014.

Os perímetros irrigados Sertão Pernambucano (33.000ha), localizado na Bahia e

em Pernambuco e o Canal do Xingó (16.550ha), localizado nos estados da Bahia e de

Sergipe, estão em fase de estudo. Outros dois estão em fase de elaboração dos projetos:

Jequitaí (34.605ha), em Minas Gerais e Vale do Iuiú (88.306ha), na Bahia. No tocante

ao DNOCS (Quadro 2), sua atuação vem reduzindo significativamente na última

década, fato verificado pelo número de projetos em fase de implantação.

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Quadro 2 - Projetos de irrigação sob a gestão do DNOCS – 2014

Projeto Área (ha) Situação Localização

Brumado 7.821 Em produção Bahia

Jacurici 1.100 Em produção Bahia

Vaza Barris 11.677 Em produção Bahia

Araras Norte 6.407 Em produção Ceará

Ayres de Souza 8.942 Em produção Ceará

Baixo Acaraú 12.407 Em produção Ceará

Curu-Paraipaba 12.347 Em produção Ceará

Curu-Pentecoste 5.016 Em produção Ceará

Ema 352 Em produção Ceará

Forquilha 3.327 Em produção Ceará

Icó-Lima Campos 10.583 Em produção Ceará

Jaguaribe-Apodi 13.229 Em produção Ceará

Jaguaruana 343 Em produção Ceará

Morada Nova 11.025 Em produção Ceará

Quixabinha 530 Em produção Ceará

Tabuleiros de Russas 18.915 Em produção Ceará

Várzea do Boi 12.878 Em produção Ceará

Engenheiro Arcoverde 920 Em produção Paraíba

São Gonçalo 5.548 Em produção Paraíba

Sumé 837 Em produção Paraíba

Boa Vista 249 Em produção Pernambuco

Cachoeira II 378 Em produção Pernambuco

Custódia 1.341 Em produção Pernambuco

Moxotó 12.395 Em produção Pernambuco

Caldeirão 1.543 Em produção Piauí

Fidalgo 5.444 Em produção Piauí

Gurguéia 13.533 Em produção Piauí

Lagoas do Piauí 6.689 Em produção Piauí

Platôs de Guadalupe 16.879 Em produção Piauí

Tabuleiros Litorâneos do Piauí 9.033 Em produção Piauí

Baixo-Açu 6.000 Em produção Rio G. do Norte

Cruzeta 506 Em produção Rio G. do Norte

Itans 247 Em produção Rio G. do Norte

Pau dos Ferros 2.265 Em produção Rio G. do Norte

Sabugi 1.092 Em produção Rio G. do Norte

Total (ha) 221.798

Fonte: DNOCS, 2014.

Org.: DOURADO, J. A. L.

Atualmente apenas o perímetro irrigado Santa Cruz do Apodi (4.024ha), no

Maranhão, está em fase de implantação, sob a responsabilidade do DNOCS. Segundo

informações disponibilizadas pelo Portal Brasil (2014) , os 26 perímetros irrigados em

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fase de produção, sob a gerência da CODEVASF, alcançaram, em 2013, R$1,72 bilhão

em valor bruto de produção (VBP), um crescimento real de 14% em relação a 2012,

atingindo uma produção de 2,68 milhões de toneladas, principalmente de frutas, numa

área total cultivada de 90,9 mil hectares. Ainda de acordo com o Portal Brasil (2014), o

Polo Juazeiro/Petrolina exportou 59,86 mil toneladas de frutas em 2013, principalmente

manga e uva.

A CODEVASF tem atuação expressiva no Semiárido nordestino, abrangendo a

implantação de perímetros irrigados, obras relacionadas ao abastecimento de água

(construção de adutoras, estações de bombeamento de água, etc.), manutenção de

estradas vicinais e obras de saneamento básico em comunidades próximas aos

perímetros irrigados. A espacialização dos perímetros irrigados revela a importância

política das elites agrárias na Bahia e no Ceará, haja vista que estes empreendimentos

destinados à segurança hídrica acabam atraindo investimentos financeiros e fomentando

especulação imobiliária, bem como a valorização de terras, contribuindo para o

aquecimento e a valorização do mercado de terras.

É inegável que a implantação dos perímetros irrigados no Semiárido nordestino

tem ocasionado mudanças profundas na agricultura desenvolvida na região, a partir da

década de 1980 e mais acentuadamente nos anos 2000, com destaque para o Polo

Juazeiro/Petrolina (BA/PE), Jaguaribe-Apodi (CE), Tabuleiros de Russas (CE) e Baixo

Açu (RN), cuja agricultura se encontra fortemente marcada pela produção de frutas

(manga, melão e abacaxi, principalmente), além da produção de cana-de-açúcar pela

empresa Agrovale no município de Juazeiro (BA). Essa modernização, tanto no que se

refere às formas de uso e ocupação do solo bem como no âmbito da produção (sai de

cena o valor de uso e ganha destaque o valor de troca), sob encomenda das ideologias

desenvolvimentistas e a serviço do marketing do grande capital, vai reduzindo as

possibilidades de reprodução das existências camponesas, deformando e

descaracterizando-as a serviço de um modelo homogêneo para o campo. O fenômeno da

modernização agrícola trouxe progressos tecnológicos e científicos para o Semiárido,

introduziu culturas que, sem as alterações impetradas, seriam impossíveis de serem

cultivadas bem como o grande capital, na forma de máquinas, agrotóxicos, sementes

selecionadas (geneticamente modificadas), fertilizantes, monoculturas, produção

industrial e intensificou o assalariamento no campo. Ao tratar das transformações

recentes por que vem passando o Nordeste, Andrade (2005) observa a ocorrência de

profundas transformações na fisionomia, ao passo que as estruturas de poder continuam

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sólidas.

A Bahia, o Ceará e o Rio Grande do Norte destacam-se por apresentar uma

dinâmica econômica centrada na fruticultura irrigada24. Isso revela a crescente

integração do Nordeste semiárido ao circuito da economia urbana, mediada pela

agricultura científica, tendo como desdobramentos novo patamar de relações entre

cidade e campo, em função do sopro de modernização das forças produtivas no campo.

As mudanças qualitativas e quantitativas decorrentes da modernização da agricultura

fomentaram diversos desdobramentos, tornando o espaço rural “[...] culturalizado,

tecnificado e cada vez mais trabalhado segundo os ditames da ciência” (SANTOS,

2012, p. 47), além de remodelarem totalmente determinadas cidades, como é o caso de

Juazeiro, Barreiras na Bahia, Petrolina em Pernambuco, Russas no Ceará, definidas por

Elias (2006) como “cidades do agronegócio”, devido às inovações tecnológicas e à

dinâmica econômica adquiridas por elas após a territorialização do grande capital.

Segundo Elias (2006, p. 209), o resultado foi

uma grande metamorfose e crescimento da economia urbana das

cidades próximas às produções agropecuárias modernas,

paralelamente ao desenvolvimento de um novo patamar de relações

entre cidade e campo, que se pode vislumbrar através dos diferentes

circuitos espaciais de produção e círculos de cooperação que se

estabelecem entre esses dois espaços.

Ainda nessa perspectiva, Santos (2008a, p. 49) defende que a

difusão de modernizações é assim responsável por notáveis diferenças

dentro de cada país, com a criação de pólos internos. A modernização

sempre vai acompanhada por uma especialização de funções que é

responsável por uma hierarquia funcional. Certamente, os pontos da

área que acolheram as modernizações ou os seus mais importantes

efeitos são também os mais capazes de receber outras modernizações.

Isso cria lugares privilegiados, com uma tendência polar.

Os fenômenos abordados por Santos (2008a) e Elias (2006) são facilmente

identificados na área da pesquisa, quando se observa a cidade de Juazeiro que, devido à

expansão do agrohidronegócio, tornou-se um polo regional com grande capacidade de

atração de pessoas (serviços e empregos) e capitais (setor agropecuário). Ao comparar

as cidades de Juazeiro e Sobradinho, verificamos diferenças latentes, pois cabe ressaltar

que a sede do município de Sobradinho localiza-se a 23 km de distância da cidade de

Juazeiro e, mesmo assim, não consegue exercer o mesmo poder de atração de pessoas,

serviços e capitais. O Polo Juazeiro/Petrolina possui expressividade no cenário

24 Para aprofundamento sobre a fruticultura irrigada no Nordeste semiárido, consultar Bezerra (2012) e

Souza (2013).

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nordestino por representar um grande produtor frutícola, contando com uma

infraestrutura que possibilita o escoamento da produção por meio de transporte aéreo e

terrestre.

Para efeito de regionalização, esta pesquisa abrangerá o Médio e o Submédio

São Francisco, utilizando, portanto, como critérios para delimitação regional, a divisão

desse rio por regiões fisiográficas. Há, porém, outras formas de regionalização, como os

territórios de identidade25 (Mapa 3), divisão territorial feita a partir de 2007 pela

Secretaria de Planejamento do Estado da Bahia (SEPLAN), baseada nos aspectos

socioculturais e identitários, dividindo a Bahia em 27 territórios de identidade26.

Essa regionalização (territórios de identidade)é posterior às regiões econômicas,

que consideravam precipuamente as características econômicas dos municípios. As

regiões do Médio e Submédio São Francisco estão totalmente inseridas no Polígono das

Secas27, com predominância do bioma Caatinga28 e caracterizadas por longos períodos

de seca, cuja pluviosidade varia entre 350mm a 800mm. A temperatura média anual é

de 27º C, com elevado índice de evapotranspiração, podendo chegar a 3.000mm anuais,

com clima semiárido.

25 A partir de 2007, o Governo da Bahia passou a reconhecer a existência de 27 Territórios de Identidade,

constituídos a partir da especificidade de cada região. O território é conceituado como um espaço

físico, geograficamente definido, geralmente contínuo, a partir de critérios, como o ambiente, a

economia, a sociedade, a cultura, a política e as instituições, e uma população com grupos sociais

relativamente distintos que se relacionam, interna e externamente, por meio de processos específicos,

em que se pode distinguir um ou mais elementos que indicam identidade, coesão social, cultural e

territorial. Os municípios abrangidos por esta pesquisa pertencem ao Território de Identidade Irecê

(Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia) e Território de Identidade Sertão do São Francisco (Juazeiro). 26 Os territórios de identidade da Bahia são: Bacia do Jacuípe, Bacia do Paramirim, Bacia do Rio

Corrente, Bacia do Rio Grande, Baixo Sul, Chapada Diamantina, Costa do Descobrimento, Extremo

Sul, Irecê, Itaparica, Litoral Norte e Agreste Baiano, Litoral Sul, Médio Rio de Contas, Médio Sudoeste

da Bahia, Metropolitana de Salvador, Piemonte da Diamantina, Piemonte do Paraguaçu, Piemonte

Norte do Itapicuru, Portal do Sertão, Recôncavo, Semiárido Nordeste II, Sertão do São Francisco,

Sertão Produtivo, Sisal, Vale do Jequiriçá, Velho Chico, Vitória da Conquista. Disponível em:

http://www.seplan.ba.gov.br/territorios-de-identidade/mapa. Acesso em: 18/07/2014. 27 O Polígono das Secas trata-se de uma divisão regional efetuada em termos políticos-administrativos

criada em 1936, abrangendo atualmente os estados de Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba,

Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e o extremo norte de Minas Gerais. Desde a sua criação, essa

regionalização passou por várias alterações, sendo a mais recente feita no ano de 2005 com a ampliação

dos critérios para inclusão de novos municípios. O Polígono das Secas abrange 969.589,4 km², sendo

composta por 1.133 municípios localizados na área de abrangência do Semiárido, para onde são

direcionadas as políticas emergenciais de combate aos efeitos dos longos períodos de estiagem (secas),

com destaque para os recursos do Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE). 28 A Caatinga é o bioma que predomina na região do semiárido brasileiro, com uma população de cerca

22 milhões de pessoas – ou 11,8% da população nacional. Na Caatinga estão catalogadas 2.240

espécies de vegetais e animais, segundo informações publicadas no site da Associação Caatinga.

Disponível em: http://www.acaatinga.org.br/. Acesso em: 18/07/2014.

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Para efeito de coleta de dados e visitas a campo, temos como referência os

municípios de Itaguaçu da Bahia, Xique-Xique e Juazeiro, todos na Bahia, por

constituírem os municípios diretamente atingidos pela implantação do projeto de

irrigação Baixio de Irecê (Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia) e do Projeto Salitre

(Juazeiro). A este último se agregam as comunidades localizadas na região do Baixo

Salitre29, cujo perímetro total da bacia é de 640km². O levantamento de dados

relacionados à estrutura fundiária foi realizado junto ao Cartório de Registros de

Imóveis e Hipotecas de Xique-Xique.

As principais atividades econômicas desenvolvidas na região são a agricultura

de sequeiro (lavouras temporárias), a criação de gado bovino e caprino, a agricultura

irrigada (às margens do rio Verde, do rio São Francisco, no Projeto Salitre e às margens

do rio Salitre) e a pesca artesanal. A agricultura de vazante é mais expressiva às

margens do rio São Francisco, principalmente no município de Xique-Xique e às

margens do rio Salitre, onde verificamos a predominância da agricultura camponesa

baseada no trabalho familiar, principalmente nas lavouras de cebola, alho, feijão,

mandioca, melão, milho, melancia e na criação de pequenos rebanhos de bovinos e

caprinos. Para Oliveira (2001, p. 56, grifos do autor),

[...] a presença da força de trabalho familiar é a característica básica e

fundamental da produção camponesa. É pois derivado dessa

característica que a família abre a possibilidade da combinação muitas

vezes articulada de outras relações de trabalho no seio da unidade

camponesa. É assim que o trabalho assalariado, ajuda mútua, e

parceria aparecem como relações que garantem a complexidade das

relações na produção camponesa.

A fruticultura irrigada está predominantemente localizada no Projeto Salitre,

com destaque para a produção de manga, melão e banana. Atrelados ao

agrohidronegócio, a atividade mineradora e a implantação de parques eólicos para

geração de energia nas regiões do Médio e Submédio São Francisco têm como resultado

a emergência de conflitos territoriais e de interesses, devido às novas possibilidades de

territorialização do grande capital frente às demandas de minérios e energia para atender

ao mercado, tanto interno (energia) quando externo (minérios).

A implantação de parques para a geração de energia eólica (Mapa 4) tem

avançado de forma vertiginosa sobre territórios camponeses, áreas de preservação

29 A bacia do rio Salitre faz parte da Bacia do Rio São Francisco, estando localizada na parte norte do

estado da Bahia. É composta por nove municípios (Várzea Nova, Ourolândia, Campo Formoso,

Mirangaba, Umburanas, Jacobina, Juazeiro, Miguel Calmon e Morro do Chapéu), estando totalmente

inserida no Polígono das Secas.

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ambiental, sítios arqueológicos e territórios de povos tradicionais, explicitando assim os

problemas relacionados à produção de energia para atender ao modelo de

desenvolvimento em curso no país. Se, por um lado, a Amazônia representa a “nova”

fronteira hidroenergética brasileira30, o Semiárido é inserido na produção de energia

eólica de maneira abrupta, passando a receber grande montante de investimentos

financeiros, transformando-se num setor lucrativo para as empresas do setor.

Nesse cenário, ganha destaque o Grupo Renova Energia31 com atuação

destacada na Bahia, onde já possui unidades geradoras de energia eólica em

funcionamento. Em julho de 2012, foi concluído o primeiro complexo eólico na Bahia,

denominado Alto Sertão I (Foto 1), localizado nos municípios de Igaporã, Caetité e

Guanambi, região Sudoeste da Bahia.

Foto 1 - Parque Eólico Alto Sertão I, Município de Caetité (BA) – 2014.

Fonte: Renova Energia, 2014.

30 Para saber mais sobre o assunto consultar a tese defendida em 2014 pelo doutorando José Alves, junto

ao Programa de Pós-Graduação em Geografia pela FCT/UNESP com o título “As revoltas dos

trabalhadores em Jirau (RO): degradação do trabalho represada na produção de energia elétrica na

Amazônia”, sob a orientação do Prof. Dr. Antonio Thomaz Junior. 31 Empresa brasileira de geração de energia elétrica obtida a partir de fontes renováveis, como eólica,

solar e Pequena Central Hidrelétrica (PCH). Líder em geração eólica no Brasil e referência no

desenvolvimento de projetos de energia renovável, a empresa adota, como estratégia de negócios, o

desenvolvimento de projetos de forma integrada, da prospecção à implantação e operação de seus

parques geradores (RENOVA ENERGIA, 2012, p. 12).

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A Renova possui mais de 1GW de capacidade instalada e contratada em

parques eólicos. Com a conclusão do Alto Sertão II, ocorrida em julho de 2012, a

companhia detém o maior complexo eólico da América Latina. Os leilões subsequentes,

LER 2010 (energia de reserva) e A-3 2011 (energia nova), demandaram

desenvolvimento de mais parques eólicos na mesma região da Bahia, promovendo

sinergia com os investimentos já em curso. O complexo eólico Alto Sertão II foi

concluído no final de 2012, localizando-se nos mesmos municípios que o Alto Sertão I

(Tabela 1). Os complexos eólicos Alto Sertão I e II totalizam juntos 29 parques eólicos

na Bahia.

Tabela 1 - Complexos Eólicos na Região Sudoeste da Bahia – 2013

Alto Sertão I Alto Sertão II

R$1,2 bilhão de investimento R$1,4 bilhão de investimento

3,9 mil empregos diretos e indiretos

gerados durante a construção

3,9 mil empregos diretos e indiretos

gerados durante a construção

254,4 MW de capacidade instalada 386,1 MW de capacidade instalada

14 parques eólicos 15 parques eólicos

184 aerogeradores 230 aerogeradores

Fonte: Renova Energia, 2013.

Org.: - DOURADO, J. A. L., 2013.

Para a produção de energia eólica são utilizados aerogeradores, com torres de 80

metros de altura e rotores de 82,5 metros de diâmetro, a uma velocidade média de 80

km/h. Na Bahia existem outros parques implantados, como é o caso de Sobradinho, nas

proximidades da Barragem de Sobradinho. Em 2014 (Quadro 3), a empresa Renova

Energia instalou mais um complexo gerador de energia eólica no estado da Bahia, com

capacidade de 212,8 MW de potência, totalizando 29 o número de parques eólicos neste

estado. A energia produzida é comercializada através de leilões de compra e venda

baseados em critérios e normas estabelecidos pelo Ministério de Minas e Energia

(MME), promovidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) e

operacionalizados pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE).

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Quadro 3 - Empreendimentos de Energia Eólica da Renova

Projeto Localização Nº de

Parques

Prazo PPA

(anos)

Início de

Operação

Estimado

Capacidade

Instalada

(MW)

LER 2009*32 Bahia 14 20 Julho/2012 294,4

LER 2010 Bahia 6 20 Setembro/2013 153,0

A-3 2011** Bahia 9 19,8 Março/2014 212,8

Total - 29 - - 660,2

Fonte: Renova Energia, 2011.

Org.: DOURADO, 2013.

*LER - Leilão de Energia de Reserva (promovido pelo Governo Federal).

**A-3 – Leilão de fonte de energia nova (promovido pelo Governo Federal).

Além da Bahia, a Renova Energia atua nos estados do Ceará, Alagoas, Goiás,

Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Maranhão, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Rio

Grande do Norte, Rio Grande do Sul e Tocantins. Embora a produção de energia eólica

seja o carro-chefe desse grupo empresarial, ele atua também na geração de energia

fotovoltaica e por meio de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), cujo discurso se

baseia na produção de energia através de fontes renováveis. O primeiro projeto solar

fotovoltaico da empresa foi instalado na mineradora Yamana Gold, em Goiás, com

capacidade de 25,6 kWp, comercializados no mercado livre, em 2013. Segundo as

projeções feitas pela Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica), a

capacidade de geração de energia eólica no Brasil poderá saltar de 4.5 gigawatts atuais

(2014) para 14.4 gigawatts em 2018. Para o certame de outubro de 2014, foram inscritos

1.034 projetos de fornecedores de energia, sendo 626 eólicos, 400 solares e oito de

biogás e resíduos sólidos urbanos, ofertando 26.3GW de capacidade instalada.

Complexos eólicos, a mineração e o agrohidronegócio (soja, eucalipto, cana de

açúcar e frutas), pilares dos projetos desenvolvimentistas implantados na Bahia, têm

provocado profundas transformações socioespaciais, com desdobramentos ainda pouco

conhecidos, que certamente, porém, já ocasionam interferências nas condições de

reprodução de vida das populações atingidas, visto que tais empreendimentos são

implantados em áreas habitadas por populações tradicionais (quilombolas, Fundo e

32 A Renova foi a vencedora do primeiro leilão de energia de reserva dedicado à fonte eólica, o LER

2009, comercializando 294 MW de potência instalada. Segundo informações da própria empresa, suas

operações no mercado livre (ACL) iniciaram em 2011. Em acordo estratégico firmado com a Light

/Cemig, a Companhia teve garantida a comercialização de 400MW de capacidade instalada em energia

eólica.

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Fecho de pasto00) e camponesas, ocorrendo, inclusive, a expropriação dessas

comunidades para que seja viabilizada a execução do projeto.

Embora não se trate de uma pesquisa focada na análise discursiva do

agrohidronegócio, não se despreza a importância assumida pelo discurso no contexto da

disseminação dos projetos desenvolvimentistas implantados pelo Estado e pelo capital

no Semiárido brasileiro, por reconhecer que esse discurso assume lugar de destaque na

construção do sentido ideológico daquilo que se define como o ato de “desenvolver”.

Nesse sentido, concordamos com Santos (2008b, p. 226) quando o autor faz a seguinte

afirmação:

O Estado exerce, pois, um papel de intermediário entre as forças

externas e os espaços chamados a repercutir localmente essas forças

externas. O Estado não é, entretanto, um intermediário passivo; ao

acolher os feixes de influências externas, ele os deforma, modificando

sua importância, sua direção e, mesmo, sua natureza. Isto significa que

a reorganização de um subespaço sob a influência de forças externas

depende sempre do papel que o Estado exerce.

O discurso do agrohidronegócio, pautado na perspectiva desenvolvimentista,

serve como um elemento de interpelação do sujeito, de “adestramento” do pensamento,

através da criação, no imaginário, da figura do moderno como algo determinado, como

forma de eliminar as resistências, atuando como integrador das práticas sociais.

Transladando do plano discursivo para a materialidade do espaço geográfico, embora se

aborde, no corpo desta pesquisa, a questão das secas como constructo imagético-

discursivo, ressaltamos não se tratar de um estudo com finalidade de abarcar o

fenômeno da escassez, suas circunstâncias e fatores responsáveis por sua ocorrência.

Para além do Nordeste seco, há a tentativa de afirmar o Semiárido como lugar de

grandes oportunidades financeiras, perspectiva propagada através de diversas

estratégias, entre as quais citamos os megaempreendimentos de infraestrutura e os

eventos para a divulgação e exposição dos produtos do agronegócio, como a Feira

Nacional da Agricultura Irrigada (FENAGRI), em Juazeiro e a Exposição Agropecuária

da Região de Irecê (EXPOAGRI), em Irecê.

Não há, pois, interesse em fazer um resgate das mazelas das secas, mesmo

reconhecendo que esse fenômeno (climático e social) ainda causa grandes problemas à

população do Semiárido, como de fato ocorreu entre 2012-2013, quando centenas de

municípios decretaram estado de calamidade em virtude da pior estiagem dos últimos

40 anos. O espaço compreendido pelo Semiárido baiano será analisado a partir da

expansão conflituosa e contraditória do agrohidronegócio pelos territórios dos

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camponeses caatingueiros, inclusive daqueles que vivem às margens do rio São

Francisco, fenômeno esse gerador e potencializador dos conflitos pelo acesso à terra e à

água.

Trata-se, em sua essência, de uma tentativa de pensar o “novo” Semiárido,

fugindo do “discurso moderno” que busca na exegese das secas as justificativas e

argumentos para a autoafirmação, como instrumento de superação da condição de

marginalidade dos 22 milhões de sertanejos, aproximadamente, que povoam essa

região. Ao aprofundar a análise, percebemos que o “velho” ainda encontra-se reificado

na matriz do projeto desenvolvimentista33 do Estado e do grande capital que, ao

buscarem justificar, perante a sociedade, a relevância destas ações, acabam

contradizendo o próprio discurso estranhado, pois suas argumentações são respaldadas

na seca, que é usada como elemento persuasivo para a produção de mentalidades

governadas.

Os simbolismos da seca são, simultaneamente, negados e reafirmados pelos

agentes do capital, num contraditório e dialético processo de

reconstrução/desconstrução do imaginário social relacionado à ideia de catástrofe físico-

climática do Semiárido. Em pleno limiar de século XXI, a seca perpetua como um

importante instrumento de manutenção do status quo (no âmbito de distintas esferas de

poder econômico e político) e a que se recorre sempre quando há a necessidade de

fornecer evidências sobre a legitimidade das ações políticas, com o propósito de

promover o desenvolvimento regional. Embora essa concepção busque aparentemente

forjar no imaginário social uma ideia contra-hegemônica sobre o Semiárido, o que, na

verdade, ocorre é o fortalecimento das estruturas hegemônicas de poder político,

econômico e ideológico.

No âmbito desta pesquisa não há interesse em analisar a seca como um

fenômeno natural, muito embora reconheçamos que as “velhas secas” ocorrem em

“novos sertões”, atualmente bastante diferentes daqueles Sertões da Bahia em que o

padre Serafim Leite registrou, pela primeira vez, os efeitos da seca, ocorrida em 1559

(SANTOS, 1984, p. 17). Acreditamos que tal perspectiva de análise apresente um

33 Para Richard Peet (2007) há a necessidade de se repensar o projeto do desenvolvimento porque o termo

desenvolvimento ainda é cheio de significado. Esse mesmo autor defende a necessidade de “[...] fazer

um novo imaginário de desenvolvimento, no qual usemos nossos momentos mais criativos para pensar

diferentemente” (PEET, 2007, p. 36). Em sua opinião, o modernismo impõe uma crítica ao poder

capitalista, não confiando em nenhuma elite (empresarial, intelectual, científica, burocrática,

geográfica, racial ou patriarcal), abrindo espaço para as massas oprimidas expressarem o que pensam,

na perspectiva de um desenvolvimentismo popular.

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corpus teórico bastante robusto em virtude dos diversos estudos já realizados, dos quais

destacamos os mais recentes centrados na abordagem da problemática da seca no

Semiárido brasileiro: o Projeto Áridas (1993); o Relatório sobre “Clima e

Disponibilidade de Água nas Bacias Hidrográficas do Semiárido, apresentado por

Carvalho (2008); o livro “A questão da água no Nordeste”, publicado pela Agência

Nacional de Águas (2012); e o livro “Impactos sociais e econômicos e variações

climáticas e respostas governamentais no Brasil”, organizado por Magalhães e Bezerra

Neto (1991).

Os espaços intersticiais das disputas territoriais travadas entre os projetos

desenvolvimentistas e os camponeses caatingueiros desvelam o “desenvolvimento

geográfico desigual” (HARVEY, 2011, p. 123), por expressarem as diferenças e

divergências entre modelos e processos tensos e contraditórios de concepção de

desenvolvimento do território. Essas transformações espaciais estão respaldadas na

crença-fetiche de que o modelo adequado para a promoção do desenvolvimento do

Semiárido deve basear-se em megaprojetos hídricos, sendo tal perspectiva,

historicamente, causadora de “desterreamento” (THOMAZ JUNIOR, 2009, p. 237) e

despossessão dos camponeses e demais setores marginalizados, tais como as

comunidades tradicionais (quilombolas, ribeirinhas, Fundos34 e Fechos35 de Pasto).

Desterreamento e despossessão aqui entendidos a partir de sua materialidade e

imaterialidade, em virtude da complexidade das transformações qualitativas e

quantitativas impetradas no espaço habitado/produzido/ocupado. O desmonte do

campesinato, via desterreamento, não significa sua total desvinculação da terra, pois, em

muitos casos, os camponeses desterreados retornam como assalariados rurais, mesmo

morando nas periferias urbanas, para onde se dirigiram após a perda da terra.

Mediante o resgate da história de vida36 dos camponeses atingidos pelo projeto

de irrigação Baixio de Irecê, teve-se a compreensão de que os processos de

desterreamento e despossessão começaram muito antes de sua implantação, quando

Airton Neves Moura, com a ajuda de pistoleiros, grilou as terras que eram usadas,

34 Nas comunidades que são Fundos de Pastos, as terras à solta são próprias para a criação de cabras e

bodes, em função do clima seco e vegetação de caatinga. 35 As comunidades de Fecho de Pasto dedicam-se, principalmente, à criação de gado, uma vez que

possuem grotas e um clima mais úmido, com nascentes e serras. 36 Para resgatar informações durante o período de grilagem de terras ocorrido nos municípios de Xique-

Xique e Itaguaçu da Bahia, fizemos uso da história oral, um importante instrumento para resgatar

informações sobre como ocorreu o processo de grilagem de terras que seriam ocupadas pelo projeto de

irrigação Baixio de Irecê.

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coletivamente, pelas dezenas de comunidades tradicionais nos municípios de Xique-

Xique e Itaguaçu da Bahia. Retiraram-lhes a posse da terra, mas lhes era concedido o

seu uso mediante o pagamento de renda37, não configurando, portanto, o

desterreamento, que somente viria a acontecer com a construção do projeto de irrigação

Baixio de Irecê, haja vista que os camponeses não se enquadraram aos critérios,

estabelecidos pelo edital, de seleção de irrigantes para ocupar os lotes do perímetro

irrigado.

As alterações nas bases técnicas, econômicas e sociais impactam fortemente os

espaços agrícolas a partir da expansão dos capitais financeiros e (agro)industriais,

mediante a criação de redes e fluxos comerciais, com a intensificação da racionalização

do espaço agrário pela difusão da modernização agrícola. Ainda sobre os

desdobramentos dessa agricultura modernizada, Leff (2009, p. 32) destaca que “[...] o

avanço destas transformações agroprodutivas foi deixando pelo seu caminho um saldo

de destruição ecológica e de degradação ambiental nas regiões tropicais do Terceiro

Mundo”. Os investimentos estatais em infraestrutura hídrica no Semiárido brasileiro

possibilitaram a consolidação de um novo modelo de crescimento para o campo,

transformando radicalmente as relações sociais e de produção, fomentando uma

interdependência com os demais setores da economia, culminando numa profunda

divisão social e territorial do trabalho, com a especialização dos espaços e a

intensificação dos fluxos econômicos.

Após essas considerações sobre a inserção do pesquisador no lugar da pesquisa,

as mediações acerca da formulação do problema, bem como os elementos

influenciadores da definição do recorte espacial, faz-se necessário agora ressaltar a

trajetória da pesquisa, porque as descobertas não ocorreram de um só golpe. O avanço

na construção do conhecimento torna-se produto do encontro do pesquisador com o

pesquisado, do conhecido com o desconhecido, da teoria com o empírico, expressando

assim um processo dialético em que pesquisador e pesquisado estabelecem relações

cada vez mais complexas, abrindo possibilidades de conhecimento mútuo.

1.3 Trajetórias caatingueiras: a construção metodológica da pesquisa

A execução de uma pesquisa pode perfazer as mais variadas trajetórias,

dependendo dos objetivos e dos referenciais teórico-metodológicos adotados.

37 Esse assunto será aprofundado no decorrer da tese.

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Especificamente nesse caso, optamos pela pesquisa quali-quantitativa por entender que

seu instrumental permite abordar as contradições sociais, as dimensões do cotidiano

vivido pelos sujeitos, cujo produto-saber gerado seja representante de diferentes formas

de ver/descrever/analisar o mundo. Considerando tais aspectos, concordamos com

Brandão (2009, p. 18) quando afirma que “todo conhecimento renovador é contestador.

Todo conhecimento contestador é um caminho aberto em direção à transformação”. O

processo de apropriação do território bem como as disputas nele materializadas podem

ser analisados/compreendidos sob o viés qualitativo, por presumir que, no campo

geográfico e, mais especificamente, no contexto agrário, tal abordagem responde

satisfatoriamente às exigências quando o que está em foco é a expansão do

agrohidronegócio e as disputas territoriais no Semiárido baiano.

Para a realização desta pesquisa fizemos revisão teórica, pesquisa de campo e

em fontes primárias e secundárias, tendo o cuidado de não mutilar os sujeitos nem

torná-los objetos “mortos” ou amorfos no ato do fazer-ciência. Assim, a busca por

desvendar as tramas sociais do agrohidronegócio em sua transparência plena e exata

colocou o pesquisador em alerta, porque o universo social em que estão imersos os

sujeitos da pesquisa está em constante movimento. Fez-se, portanto, necessário captar

as contradições, as lutas, os enfrentamentos, os paradoxos, tendo o pesquisador o

cuidado de fugir da mecanização e do adestramento da técnica. O que pretendemos

dizer é que, no caso específico desta pesquisa, os enigmas e lastros da investigação

científica exigiram do pesquisador a condição de reconhecedor do importante papel dos

sujeitos e de sua condição protagonista, pois, caso contrário, incorreríamos no erro de

violentar a realidade por desconhecer as raízes históricas da expansão do

agrohidronegócio no Semiárido baiano. Os dados e informações coletados encontram-se

no decorrer do texto, na forma de tabelas, fluxogramas, gráficos, quadros, fotografias e

mapas, analisados e interpretados à luz da interação entre a teoria e a prática, tendo

como aporte o materialismo histórico. Frente ao esforço de sintetizar, no plano

metodológico e teórico-conceitual, os caminhos desta pesquisa, apresentamos a seguir o

Fluxograma 1, contendo informações sobre as etapas de elaboração da presente tese.

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Fluxograma 1 – Esquema metodológico da pesquisa

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Org.: DOURADO, J. A. L., 2013.

Elab.: HOLANDA, E. P.

Ressaltamos que a pesquisa tem como categoria central o território, por entender

que a análise geográfica da dinâmica do agrohidronegócio está condicionada às relações

de poder e aos conflitos de classe estabelecidos entre os sujeitos sociais envolvidos.

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Território38 aqui entendido a partir das relações de poder estabelecidas entre os sujeitos

sociais, ou seja, as “geometrias do poder”, como definidas por Haesbaert (2009, p. 143),

constituindo-se o resultado da (i)materialidade e multidimensionalidade decorrentes da

trama de relações em múltiplas escalas. Santos (2000) traz um conceito sobre território

que facilita o aprofundamento sobre as disputas travadas no Semiárido baiano entre os

camponeses, o Estado e o grande capital, a partir da concepção de “território usado”, ou

seja, o território

não é apenas o resultado da superposição de um conjunto de sistemas

naturais e um conjunto de sistemas de coisas criadas pelo homem. O

território é o chão e mais a população, isto é, uma identidade, o fato e

o sentido de pertencer àquilo que nos pertence. O território é a base do

trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais e da vida,

sobre os quais ele influi. Quando se fala em território deve-se, pois, de

logo, entender que se está falando em território usado, utilizado por

uma dada população. (SANTOS, 2000, p. 96, grifo nosso).

De fato, a concepção de território usado torna possível a percepção das

contradições e conflitualidades existentes a partir dos distintos modos de vida dos

camponeses e da perspectiva do agrohidronegócio, no Semiárido baiano. Esse

movimento inerente ao conceito de território é central em nossa análise do fenômeno de

expansão do agrohidronegócio no Semiárido baiano, devido aos processos de

territorialização-desterritorialização-reterritorialização (TDR)39. De acordo com as

evidências levantadas durante as visitas às comunidades do Baixio de Irecê e do Salitre,

é possível associar os processos de TDR a outro fenômeno, que denominamos de

descampesinização-recampesinização. Estes possuem profunda relação entre si e com os

projetos desenvolvimentistas implantados na região pelo Estado, expressando,

sobremodo, o território como produto das relações de poder estabelecidas numa

sociedade de classes. Para Oliveira (1988, p. 8), o território

deve ser entendido como síntese contraditória, como totalidade

concreta do modo de produção/distribuição/circulação/consumo e suas

articulações e mediações supraestruturais (políticas, ideológicas,

simbólicas, etc.) onde o Estado desempenha a função de regulação. O

território é assim, produto concreto da luta de classes travada pela

sociedade no processo de produção de sua existência.

Para contemplar a discussão, foram selecionados autores que articulam a

discussão sobre território com a questão agrária, tais como Montenegro Gómez (2008),

Thomaz Junior (2008a, 2008b), Fernandes (2008a) e Paulino (2008). Ao se objetivar

38 Saquet (2013) faz uma revisão profunda sobre a construção do conceito de território, resgatando a

história da formação e significação deste conceito a partir de diferentes paradigmas. 39 Para aprofundamento da discussão, consultar Haesbaert (2009).

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conhecer a realidade, os aspectos estruturantes e as contradições de uma determinada

fração do espaço geográfico, há que se considerar os elementos que lhes confere

singularidade. Esse processo de elaboração do conhecimento é dialético e dialógico por

sua própria natureza, porque requer uma constante mediação e um devir inesgotáveis de

abstrações. Sobre isso, D’Incão (1975, p. 19) destaca que,

[...] se de um lado, cada conhecimento novo adquirido, como

resultado do esforço conjugado de reflexão teórica e observação da

realidade, exige uma nova volta à realidade observada, em busca de

um conhecimento mais profundo da mesma; de outro lado, cada nova

realidade percebida exige uma retomada do conhecimento, ao nível do

concreto da referida realidade.

A diversidade de sujeitos, processos, labor, trabalho, conflitos e espaços

abarcados pela pesquisa configura um desafio, porque representa, em sua gênese, a

essência do Semiárido, com todos os cenários naturais e sociais, territórios de vida e de

trabalho, cujas formas explícitas ou ocultas são essenciais para a construção do

conhecimento. Entende-se aqui trabalho como “condição ontológica do ser social”

(LUKÁCS, 2010), ou seja, o elemento fundante para o desenvolvimento do sujeito

social em seu processo de hominização. Ao geograficizar as teias, tramas, urdiduras e

contextos presentes no Semiárido baiano, verificamos não ser possível fazer uma análise

homogeneizantedo espaço em decorrência de sua realidade conflituosa, devido à

materialidade antagônica dos projetos em curso nessa região.

1.4 Os sujeitos da pesquisa: perspectivas híbridas

A escolha dos sujeitos não constitui uma tarefa das mais tranquilas porque

requer maturidade para selecionar aqueles que, através das experiências cotidianas

vividas, possam contribuir para a compreensão do fenômeno em análise, mediante o

relato e a reconstituição dos múltiplos tempos e espaços entrelaçados na história das

comunidades abrangidas pela pesquisa. Considerando o grande número de famílias que

são, direta e indiretamente, influenciadas de algum modo pelos projetos de irrigação no

Submédio São Francisco, bem como a dimensão geográfica da área pesquisada,

optamos por selecionar os sujeitos-chave (camponeses desterritorializados,

representantes de órgãos do governo, trabalhadores dos perímetros irrigados,

acampados, assentados, lideranças do MST, representantes de ONGs) para compor o

quadro de entrevistados. Assim, foram planejados três momentos de visitas à área da

pesquisa para a coleta de dados, sendo necessário destacar a dinâmica complexa do

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campo como um elemento de difícil apreensão, em virtude do movimento dos sujeitos

que produzem e se apropriam dos territórios, os processos de desterritorialização em

curso na região e as lutas travadas pelos camponeses e comunidades tradicionais em

defesa dos territórios da vida. As visitas ao campo ocorreram em 2012, 2013 e 2014.

Mesmo sabendo da “facilidade”, da “economia” de tempo e de recursos

financeiros que a utilização da internet representa, decidiu-se por não realizar

entrevistas por email, por entender que o contato com os sujeitos possibilita um

feedback interessante, pois permite novos questionamentos, além da percepção das

emoções, desejos, sentimentos, angústias e aflições de quem fornece as informações.

Essa decisão foi tomada por entendermos a necessidade de visualizar as contradições do

espaço in loco e como forma de aproximação das pessoas a serem entrevistadas. Nessa

perspectiva, corrobora-se Marafon (2009, p. 388) quando afirma que “uma das funções

mais importantes dos trabalhos de campo é transformar as palavras, os conceitos em

experiências, em acontecimentos reais para a concretização dos conteúdos”, por

entender que o encontro com os sujeitos pesquisados é importante para a compreensão

do fenômeno em análise.

Inicialmente a distância física entre os sujeitos pesquisados e o pesquisador foi

um obstáculo a ser superado, para o qual contamos com a colaboração de diversos

intermediários que permitiram o acesso e o contato com pessoas cujas vivências

conferem movimento e vivacidade a esta pesquisa. Assim, o “estar lá, escrever daqui”

foi tornando-se cada vez menos um problema para a execução da pesquisa. As

impressões sobre o fenômeno em análise advêm tanto de quem escreve como de quem é

descrito, tendo o pesquisador a preocupação em não apenas interpretar um problema,

mas falar de dentro dele; falar dos e com os sujeitos, por acreditar que o pesquisador

deve se assumir como “artesão, pertinaz, paciente, atento, sensível e, ao mesmo tempo,

[...] zelador do consórcio entre teoria e prática” (OLIVEIRA, 1998, p. 20).

A escolha dos sujeitos a serem entrevistados obedeceu a alguns critérios, de

modo que as informações obtidas fossem fidedignas à realidade, podendo dessa forma

serem analisadas com profundidade. A primeira imersão a campo nos revelou uma

problemática interessante: como classificar sujeitos tão híbridos? Essa difícil tarefa

exigiu um trabalho silente e atento para não relativizar a figura dos pesquisados,

submetendo-os ao autoritarismo de uma caracterização a priori. Por não possuírem

características homogêneas, cabe-nos a responsabilidade de informar sobre quais

camponeses tratamos nessa pesquisa, pois o termo “camponês” pode não elucidar a

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complexidade própria dos sujeitos aos quais nos referimos. Estes sujeitos se

reconhecem como camponeses, pescadores, quilombolas, assentados, acampados,

posseiros, fundos de pasto40, diaristas, possuindo múltiplas identidades territoriais e

laborais, dependendo do tempo e do lugar.

Adotando os mesmos critérios de seleção, nos municípios-referência, para a

coleta de dados, selecionamos os seguintes sujeitos (Fluxograma 2):

Fluxograma 2 – Sujeitos da Pesquisa

Org.: DOURADO, J. A. L., 2013.

Elab.: HOLANDA, E. P.

1- Camponeses das comunidades circunvizinhas ao Projeto Baixio de Irecê cujas

terras foram griladas nas décadas de 1970 e 1980. Foram feitas três visitas às

comunidades do Baixio de Irecê (2012, 2013 e 2014). O contato com as

comunidades foi feito por intermédio da CPT, que atua na região mobilizando as

famílias camponesas no processo de enfrentamento à CODEVASF. Participamos de

2 reuniões no município de Itaguaçu da Bahia e 2 em Xique-Xique, realizadas pela

CPT com famílias das 19 comunidades localizadas no entorno do projeto de

irrigação. Nas entrevistas realizadas e nas histórias orais colhidas, percebemos que

os camponeses sentiam necessidade em descrever como ocorreu a grilagem das

terras que ocupavam coletivamente, inclusive relatando a atuação dos pistoleiros na

região, sob o comando do Sr. Airton Moura. A participação nas reuniões de

mobilização permitiu-nos ter acesso a ricos e esclarecedores depoimentos e relatos

40 Segundo dados disponibilizados por Germani (2007, p. 10), a Bahia possui 386 comunidades

quilombolas e 340 comunidades de Fundo e Fecho de Pasto. Em se tratando do Médio São Francisco, já

foram registradas 61 comunidades quilombolas e 19 comunidades de Fundo de Pasto.

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sobre como ocorreu todo o processo de expulsão e sujeição dos camponeses à

Companhia de Desenvolvimento do Rio Verde (CODEVERDE), a quem pagariam

renda da terra.

2 Camponeses das comunidades do vale do rio Salitre. O contato com o povo

salitreiro possibilitou-nos apreender o significado que a terra e a água têm para as

comunidades que margeiam o rio Salitre, afetadas pelos resultados das políticas

públicas implantadas pela CODEVASF nessa região, com o objetivo de garantir a

segurança hídrica para a reprodução do capital. Esses sujeitos também contribuíram

para a compreensão dos sentimentos, dos saberes, das experiências sociais e

simbólicas dos camponeses caatingueiros, bem como da atividade produtiva e da

importância do trabalho na terra, das lutas travadas nos/pelos territórios

camponeses, ante a atuação do Estado e do capital na busca pela apropriação e pelo

controle da água e da terra. Foram entrevistados 2 salitreiros acusados pelo

assassinato dos empresários na década de 1980, fato que permitiu entender a

tecedura do conflito pelos e com os sujeitos.

3 Camponeses acampados no projeto de irrigação Baixio de Irecê e Projeto Salitre.

As entrevistas e conversas informais com esses sujeitos evidenciaram a

complexidade da luta pela terra e pela água no Semiárido baiano, por aglutinar

sujeitos “de longe” e “de perto”, ou seja, além de salitreiros, existem acampados

que vieram de outros municípios baianos – como é o caso dos camponeses

expropriados pela construção da Barragem de Sobradinho – e de outros estados

(Pernambuco e Alagoas), com pouca ou muita experiência em ocupações de terra.

4 Camponeses do assentamento Nova Conquista (Sobradinho). Esse assentamento foi

criado para assentar as famílias que ocuparam uma área de terra no Projeto Salitre.

Durante as entrevistas, os camponeses expuseram os dramas vividos na luta pela

terra e os desencantos em relação às promessas feitas pela CODEVASF e, até

aquele momento, não cumpridas.

5 Gerente regional da CODEVASF (Irecê). A partir da entrevista com o representante

local da CODEVASF, buscamos identificar como a estatal concebe a participação

dos camponeses no contexto do Projeto Baixio de Irecê, quem serão os reais

beneficiados com o empreendimento e quais os seus desdobramentos para as

comunidades atingidas. Entrevistamos o gerente local duas vezes, a primeira vez

em 2013 e a segunda em 2014 após a ocupação feita pelo MST na área do projeto.

6 Gerente regional da CODEVASF (Juazeiro). A entrevista com o representante da

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CODEVASF em Juazeiro permitiu levantar elementos importantes para

compreender a relação estabelecida entre o Estado e os camponeses, havendo

urgência por parte da estatal em fazer o “esvaziamento da área”, mediante ações

sutis de abandono, de esquecimento, ou ainda pela não instalação de infraestrutura

prometida aos camponeses.

7 Representantes do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada

(IRPAA)41. Durante a primeira visita à área da pesquisa, verificamos que o IRPAA

tem atuado, na região, com o propósito de revitalizar atividades desenvolvidas

pelos camponeses, como forma de fortalecê-los a partir da perspectiva da

sobrevivência com o Semiárido. Assim, procuramos identificar as principais ações

dessa ONG na região e quais seus desdobramentos para as comunidades atendidas.

8 Representantes da Comissão Pastoral da Terra (CPT Nacional e CPT/Irecê). A

mobilização das comunidades do Baixio de Irecê tem sido feita pela CPT,

perspectivando promover a coesão social entre os camponeses caatingueiros e

assim unificar as reivindicações e fortalecer os laços identitários entre os

camponeses, de modo que estes se reconheçam como donos das terras, outrora

ocupadas coletivamente e atualmente disponibilizadas para o grande capital.

9 Lideranças do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). As entrevistas e

conversas informais com as lideranças do MST permitiram identificar diferenças

entre os elementos que norteiam a luta pela terra no Submédio São Francisco. A

euforia do acampamento trouxe à tona as divergências entre o MST e a CPT, quanto

às medidas a serem adotadas para fazer o enfrentamento à CODEVASF. Essa

relação conflituosa fez emergir o conteúdo político-ideológico e social expresso

pelas distintas formas de organização e de luta propostas pela CPT e pelo MST,

sendo suas experiências cotidianas um ponto divergente na leitura que cada uma faz

da realidade da situação e nas decisões a serem tomadas no enfrentamento ao

Estado.

10 Representante da Diocese de Barra, o bispo Dom Luiz Cappio. No auge da

execução da obra de transposição do São Francisco, Dom Luiz Cappio

protagonizou dois momentos de enfrentamento ao empreendimento, quando fez

greve de fome, dando notória visibilidade internacional para os movimentos sociais

41 O IRPAA é uma Organização Não Governamental sediada em Juazeiro, na Bahia que atua há mais de

20 anos em comunidades rurais da região desenvolvendo ações de apoio e assistência técnica à agricultura

camponesa através de diversos projetos, tendo como perspectiva a convivência com o Semiárido.

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e organizações populares que contestavam a viabilidade e a necessidade do projeto

da transposição. Nesse sentido, fez-se premente entender como Dom Luiz Cappio

concebia a implantação do Projeto Baixio de Irecê, pois os municípios impactados

pelo empreendimento pertencem à Diocese na qual o religioso é o representante

máximo da Igreja Católica.

11 Presidenta da União das Associações do Vale do Salitre (UAVS). A criação da

UAVS ocorreu para aglutinar as comunidades e suas reivindicações frente à

CODEVASF. Ao visitar as comunidades do Vale do Salitre sentimos a necessidade

de entender como essas comunidades do Baixo Salitre buscaram cobrar ações

compensatórias por parte do Estado, visto que estas não seriam contempladas pelo

Projeto Salitre, em função das exigências do edital para seleção de irrigantes.

12 Representantes do Comitê de Bacia Hidrográfica do rio Salitre (CBHS). O CBHS

tem buscado, por meio da discussão sobre a necessidade de revitalização do rio

Salitre, questionar as ações da CODEVASF junto às comunidades salitreiras, por se

tratar de medidas mitigadoras simplistas e aligeiradas que não contemplam as

demandas locais.

13 Presidentes de Sindicatos Rurais dos Municípios de Xique-Xique, Itaguaçu da

Bahia e Juazeiro. Fez-se necessário entender como os sindicatos de trabalhadores

rurais entendem a problemática dos perímetros irrigados, na área da pesquisa e se

há alguma ação com o objetivo de organizar os associados para fazer algum tipo de

reivindicação junto aos órgãos competentes.

14 Trabalhadores do Projeto Salitre. Verificar qual a opinião dos trabalhadores do

Projeto Salitre em relação à implantação desse empreendimento para a população

local foi uma estratégia para analisar as diversas e antagônicas visões sobre a

expansão do agrohidronegócio na região de Juazeiro, porque entra em cena a

questão da geração de emprego e renda. As informações coletadas foram

importantes para compreender como o Estado busca “cooptar” determinados

sujeitos das comunidades atingidas pelos empreendimentos hídricos, como forma

de legitimação junto à sociedade, por meio do convencimento e da manipulação dos

reais propósitos da execução dos referidos investimentos na região.

15 Empresários rurais do Projeto Salitre. Através das entrevistas com os empresários

rurais, pudemos entender como a ideia de desenvolvimento, a partir de uma

concepção positiva da modernização/tecnificação do território com base na

agricultura industrial, ganha destaque num contexto rodeado por uma agricultura

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camponesa com sérios problemas de acesso à terra e à água.

Todo o conteúdo das entrevistas foi transcrito sem efetuar alterações nos

discursos orais dos sujeitos, por entender que estes são produtos e reflexos de suas

experiências cotidianas: de nada adiantaria buscar “acessar” esse universo se não

houvesse a perspectiva de compreendê-lo e valorizá-lo. Ao tornar públicas as longas

conversas tidas com os sujeitos, houve o cuidado em protegê-los e manter o seu

anonimato, pois nossos interlocutores confiaram em nós e sentiram-se à vontade para

expor suas histórias, mesmo sabendo que estas seriam utilizadas para fins acadêmicos;

procuramos “[...] colocá-los ao abrigo dos perigos aos quais nós exporíamos suas

palavras, abandonando-as, sem proteção, aos desvios de sentido.” (BOURDIEU, 2008,

p. 9). Embora as falas tenham sido preservadas (transcritas ipsis litteris), no ato da

transcrição muito se perde desses momentos com os sujeitos, como a entonação de voz,

a linguagem do corpo, gestos, as pausas (e silêncios), os suspiros, olhares, lapsos e

ênfases dadas a determinadas passagens históricas.

Os camponeses de que tratamos nessa pesquisa possuem origem e tradições

socioculturais e políticas heterogêneas. Não se trata de sujeitos com um único modus

operandi, ou seja, o trabalho na terra. Os sujeitos sociais a que nos referimos

desenvolvem diferentes (e complementares) atividades, dependendo do período do ano,

oscilando entre atividades com a terra seca (caatinga), a terra molhada (vales úmidos,

lameiros, brejos e os perímetros irrigados), com forte influência do regime das chuvas e

das águas do rio São Francisco e seus afluentes, desenvolvendo ainda atividades não

agrícolas. Há, também, distintos modos de vida (modus vivendi), cujas expressões

fenomênicas do trabalho são marcadas pela plasticidade,42 visto que estes sujeitos são

camponeses, pescadores-camponeses ou camponeses-pescadores, trabalhadores

assalariados, revelando os “sentidos polissêmicos do trabalho, em cada tempo e lugar”

(THOMAZ JUNIOR, 2006, p. 151). Caracterizá-los exigiu um esforço de nossa parte,

no sentido de distingui-los para que suas atitudes, identidades territoriais, atividades

42 A discussão sobre plasticidade do trabalho no âmbito da geografia ganhou robustez a partir das

teorizações feitas por Thomaz Júnior, quando esse autor debruça sobre as diferentes expressões e

sentidos do trabalho. De acordo com esse autor, quando nos ocupamos com “a (des)realização e as

novas identidades do trabalho territorialmente expressas na plasticidade que se refaz continuamente,

estamos preocupados com os desdobramentos para os trabalhadores da constante redefinição de

profissões, habilitações, especializações, inserções autônomas etc., entremeada, em vários casos, com

experiências de despossessão. Essa trajetória de fragmentações atinge em cheio o trabalho, e são essas

as evidências mais profundas do estranhamento que acrescentam desafios à compreensão do trabalho,

na perspectiva de classe”. (THOMAZ JUNIOR, 2009, p. 41).

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laborais e formas organizativas sejam compreendidas a partir de seus contextos de

vivência, ou seja, seus modos de vida. Para uma maior clareza em relação à

caracterização, os camponeses informantes desta pesquisa foram subdivididos em

quatro grupos (Quadro 4).

Quadro 4 - Caracterização dos camponeses da pesquisa (2011-2014)

Informantes Categoria de uso e posse

da terra

Localidade

anterior

Organização de

que participa

Salitreiros Agregados, posseiros e

proprietários de terra,

assalariados (agrícolas e

não-agrícolas) e

acampados

Salitre

Associações

Comunitárias e o

IRPAA

Acampados

Posseiros

Comunidades do

Vale do Salitre,

Comunidades do

Baixio de Irecê,

Pernambuco e

Alagoas

MST, CPT e STR

Camponeses

do Baixio de

Irecê43

Agregados, ribeirinhos44,

beraderos/brejeiros45,

posseiros, fundos de

pasto, proprietários de

terra, assalariados e

pescadores

Pilão Arcado,

Sento Sé, Casa

Nova, Remanso,

Xique-Xique e

Itaguaçu da Bahia

Sindicatos de

Trabalhadores

Rurais46 e CPT

Assentados Posseiros Sobradinho MST

Organização: DOURADO, J. A. L.

Fonte: Trabalho de Campo, 2012, 2013 e 2014.

As famílias expropriadas pela construção da Barragem de Sobradinho que

43 Em determinadas situações foram realizadas entrevistas coletivas com os camponeses respeitando a

localidade de origem dos mesmos. A quantidade de camponeses que compunha cada grupo variou de

acordo com a representatividade das comunidades nos encontros de mobilização realizados pela CPT.

Foram realizadas entrevistas com grupos de 4, 6, 8 e 10 camponeses. Faz-se necessário destacar nosso

conhecimento acerca das metodologias “Grupo Focal” e “Grupo de Discussão”, todavia, por questões

teórico-conceituais não fizemos uso destas técnicas. Para saber mais sobre a técnica Grupo Focal,

aconselhamos consultar Silva (2012). Sobre Grupo de Discussão, ver Turra Neto (2011). 44 Aquele que vive à beira do rio. 45 Os brejeiros são os moradores de faixas estreitas de solo fértil às margens de pequenos rios (conhecidos

localmente como “riachos”) que correm em meio à Caatinga. No Baixio de Irecê identificamos uma

área com essas características nas proximidades do Rio Verde, onde são cultivadas lavouras de ciclos

curtos (feijão, milho, melancia, verduras, mandioca e folhagem para os animais). Estrela (2004) define

“beradero” como sendo aquele que vive à beira dos rios e das atividades desenvolvidas na beirada do

rio, cujas práticas socioculturais são marcadas pela relação que estes sujeitos estabelecem com o rio. 46 Algumas lideranças dos sindicatos de trabalhadores rurais integraram, no passado, a FETRAF

(Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar) e o CETA (Coordenação Estadual dos

Trabalhadores Acampados, Assentados e Quilombolas).

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vieram para a região do Baixio de Irecê ocuparam-se com a agricultura de sequeiro e

passaram a criar animais nas áreas de fundo de pasto, além de trabalhar como agregados

ou diaristas, condição bem distinta de seu modo de vida antes da desterritorialização,

em função do barramento do rio, haja vista que a relação terra-rio-trabalho foi

interrompida, obrigando-os a profundas alterações no tocando à forma de uso e de

ocupação da terra e nas relações de trabalho. A ocupação das margens do rio São

Francisco representava, do ponto de vista econômico, a possibilidade de reprodução da

família, cuja renda era, predominantemente, originária da agricultura praticada nas ilhas

e nas margens do rio e da pesca artesanal. Por outro lado, a proximidade com o rio São

Francisco, os chamados “beraderos”, era um elemento diferenciador do modo de vida

desses camponeses, em relação àqueles que viviam distantes do rio.

A ocupação da região do rio Verde ocorreu, segundo os relatos orais feitos pelos

camponeses, há aproximadamente dois séculos, em função do extrativismo animal e

vegetal, principalmente por camponeses que trabalhavam como agregados nas fazendas

localizadas às margens do São Francisco. Nas áreas de “brejos”, ou seja, a faixa de terra

úmida próxima ao rio Verde, é desenvolvida uma agricultura voltada para o

autoconsumo. Os camponeses moradores dos “brejos” articulam a agricultura com a

criação de caprinos e bovinos, esta última praticada na área de sequeiro, conhecida

localmente como “caatinga”. A pesca artesanal, embora seja praticada por muitos

moradores, não possui tanta expressividade, como ocorre entre os “beraderos”,

contribuindo pouco para a dieta nutricional dos camponeses. Essa articulação entre

agricultura e pecuária constitui uma importante estratégia de resistência e de reprodução

camponesa, podendo os “brejos” serem considerados algo similar ao que Harvey (2012)

denominou de “espaços de utopia”. Agricultura, pecuária e pesca não possuem “caráter

residual” entre os camponeses, havendo em alguns casos a relação de cooperação, como

verificamos na produção de farinha. O que há de fato é a alternância de atividades,

conforme o período do ano: na entressafra agrícola, a pecuária ganha destaque, ao passo

que, nos períodos chuvosos, a agricultura e a pesca tornam-se mais vantajosas para os

camponeses.

A área abrangida pela bacia do rio Verde integra parte das terras que eram

ocupadas coletivamente e que foram griladas por Airton Moura. De acordo com as

pesquisas desenvolvidas pelo Grupo GeografAR47 (2010), a região do Submédio São

47 O Grupo de Pesquisa GeografAR – A Geografia dos Assentamentos na Área Rural

(POSGEO/UFBA/CNPq), sob a coordenação da professora Guiomar Germani, busca analisar o

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Francisco concentra grandes extensões de terras devolutas ainda não tituladas pelo

Estado. Acreditamos que a existência de terras devolutas foi um dos motivos que

levaram à grilagem de terras na região do Baixio de Irecê, pois os camponeses

ocuparam sem o título da terra, facilitando assim a atuação dos grileiros.

Após a definição dos sujeitos participantes da pesquisa, fez-se necessário

delimitar a amostragem dos entrevistados em cada uma das categorias (Quadro 5).

Considerando as particularidades da pesquisa, optou-se por utilizar, como modelo, a

amostragem por saturação de Turato (2003), cujas entrevistas foram realizadas até o

ponto em que os resultados passaram a se repetir, servindo apenas como confirmação

para as informações já obtidas.

Foram entrevistados 116 camponeses. Em Xique-Xique48 entrevistamos 50

camponeses moradores das seguintes comunidades: Nova Boa Vista, Boa Vista,

Carneiro, Curral do Meio, Roçado, Muritiba, Tapera de Cima, Sítio e Vista Nova. Em

Itaguaçu da Bahia49 foram entrevistados 40 camponeses moradores das comunidades

Conceição, São João, Muquém, Várzea da Cerca, Esconso, Poço Grande, Pau Seco,

Nova Vereda. Em Juazeiro50 entrevistamos 20 camponeses que moram nas

comunidades de Alfavaca, Capim de Raiz, Campo dos Cavalos e 4 lideranças do MST.

Em Sobradinho foram entrevistados 2 assentados do Assentamento Nova Conquista.

Além dos camponeses, entrevistamos 2 lideranças da CPT/BA no município de Irecê, 2

funcionários do IRPAA no município de Juazeiro, 10 trabalhadores do Projeto Salitre, 2

gerentes regionais da CODEVASF (Irecê e Juazeiro), 3 empresários rurais no município

de Juazeiro, 1 liderança da Igreja Católica e 2 representantes do Comitê de Bacia

Hidrográfica do rio Salitre (Quadro 5).

processo de (re)produção do espaço no campo baiano, a partir da correlação de forças que se define pela

ação política dos sujeitos sociais organizados. 48 Dos 50 camponeses entrevistados em Xique-Xique, 1 era o presidente do Sindicato dos Trabalhadores

Rurais desse município. 49 Dos camponeses entrevistados em Itaguaçu da Bahia, 2 estão na presidência do Sindicato dos

Trabalhadores Rurais da cidade. 50 Dentre os camponeses entrevistados, está a presidente da União das Associações do Vale do Salitre

(UAVS).

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Quadro 5 – Sujeitos Entrevistados.

Sujeitos entrevistados Número de

entrevistados Local

Camponeses 116

Itaguaçu da Bahia, Xique-

Xique, Juazeiro e

Sobradinho

ONG 2 Juazeiro

CPT 2 Irecê

Representante da Igreja

Católica 1 Barra

CODEVASF 2 Irecê e Juazeiro

Trabalhadores do Projeto

Salitre 10 Juazeiro

Empresários Rurais 3 Juazeiro

Representantes do CBHS 2 Juazeiro

Total de entrevistados 138

Org.: DOURADO, J, A. L., 2013

Alguns moradores da comunidade de Nova Boa Vista trabalharam na fase inicial

da obra de construção do canal de irrigação do Projeto Baixio de Irecê, onde é feita a

captação de água do rio São Francisco, nas proximidades dessa comunidade.

Consequentemente, essa é a comunidade em que a CPT enfrenta maiores dificuldades

de mobilização contra a construção do projeto de irrigação, pelo fato das famílias que

tiveram algum membro trabalhando nas obras acreditarem que foram beneficiadas e

que, com o término do empreendimento, conseguirão novamente trabalho.

Para efeito de coleta de dados, a década de 1990 foi o recorte temporal definido

para a pesquisa, por entendermos que é a partir desse momento que são criadas as

condições estruturais e conjunturais para a expansão da agricultura mecanizada no

Semiárido brasileiro e, especificamente no caso baiano, para a implantação dos

perímetros irrigados, forjando novas lógicas de produção e organização do espaço.

Ressaltamos, todavia, que os dados relacionados aos conflitos pela terra e pela água

começaram a ser registrados pela CPT a partir da década de 1980.

Durante as entrevistas fizemos uso de gravador, com o propósito de registrar os

diálogos junto aos entrevistados. A utilização do gravador não substituiu a confecção do

diário de campo, no qual foram registradas as sensações dos entrevistados, reveladas

através das expressões, angústias, pausas e agitações, bem como a nossa percepção da

paisagem das comunidades rurais, do acampamento e assentamento, dos projetos de

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irrigação e do Centro de Abastecimento (CEASA). As histórias contadas, os relatos dos

moradores das comunidades sobre seus costumes e tradições, os festejos, as labutas com

as “roças”, relembrados com certo saudosismo, permitiram-nos ter contato com as

histórias de vida e do lugar, dando-nos elementos para podermos refletir sobre as

experiências vividas em campo e fazermos as correlações e mediações entre o real, seus

movimentos e a teoria, na busca de exercitar a “leitura geográfica” do Semiárido baiano

a partir dos conflitos e contradições materializados no território, como expressão do

movimento do trabalho.

Segundo Venâncio e Pessôa (2009, p. 318-9), por mais que

os gravadores, as câmeras fotográficas, os questionários e os roteiros

de entrevistas sejam técnicas indispensáveis, não conseguem registrar

as emoções momentâneas, tanto por parte do pesquisador quanto por

parte dos entrevistados, nem tampouco conseguem registrar a nossa

percepção da paisagem e a organização dos espaços de vivência dos

moradores. É, pois, essa a importância de o pesquisador ter sempre em

mãos um diário para fazer os registros.

Assim, o diário de campo tornou-se uma memória valiosa sobre o ethos

camponês, as práticas socioculturais, transformações e permanências no espaço/lugar,

sobre os conflitos e contradições, elementos fundamentais na tentativa de compreender

o fenômeno em análise. Revisitado sempre quando necessário, o diário de campo

tornou-se um instrumento importante para a leitura e interpretação do fenômeno

analisado, através das revelações registradas durante os momentos de conversas

informais, memórias, “brincadeiras” e observações sobre a paisagem, sobre o cotidiano

dos sujeitos. Em muitos casos, as conversas informais foram o recurso mais adequado

para “garimpar” as informações junto aos sujeitos, porque alguns entrevistados já são

bastante idosos e, caso disséssemos que iríamos gravar a entrevista, poderiam sentir-se

desconfortáveis para relatar os fatos. A utilização da História Oral51 foi fundamental

para a reconstituição das experiências vivenciadas pelos camponeses, trazendo à tona os

mundos vividos através das palavras, o mundo sentido e percebido pelos sujeitos.

Corroboramos o pensamento de Mattos e Senna (2011, p. 107), quando as autoras

destacam que a“história oral, enquanto método e prática do campo de conhecimento

histórico, reconhece que as trajetórias dos indivíduos e dos grupos merecem ser

ouvidas, também as especificidades de cada sociedade devem ser conhecidas e

51 De acordo com Thompson (1992, p. 47) foi a partir de 1948 que a North American Oral History

Association passou a criar a tradição da história oral como técnica moderna de documentação histórica,

com destaque para os trabalhos de Allan Nevins, historiador da Universidade de Colúmbia, que passou a

gravar as memórias de pessoas importantes da vida americana.

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respeitadas”.

Na verdade, os momentos de História Oral52tornaram-se encontros de troca, de

envolvimento com o universo, por conta da riqueza de detalhes que o resgate das

lembranças possibilita. Para Thompson (1992, p. 17),

[...] a história oral pode dar grande contribuição para o resgate da

memória nacional, mostrando-se um método bastante promissor para a

realização de pesquisa em diferentes áreas. É preciso preservar a

memória física e espacial, como também descobrir e valorizar a

memória do homem. A memória de um pode ser a memória de muitos,

possibilitando a evidência dos fatos coletivos.

Para a realização da metodologia História Oral com os interlocutores da

pesquisa, fizemos uso de gravador digital para registrar as informações, de modo a

evitar que estas fossem perdidas, sendo as falas posteriormente transcritas (ipsis litteris),

permitindo acesso a informações pouco conhecidas e registradas sob a forma de textos

escritos. Inicialmente, procuramos estabelecer uma relação de confiança com os

sujeitos, de modo a evitar que utilizassem de “discursos prontos” para responder às

nossas indagações. A reação por parte daqueles com quem utilizamos a História Oral foi

de tranquilidade e satisfação, ante o exercício de resgate das memórias pouco

“utilizadas”, principalmente porque traziam à tona momentos de angústia e sofrimento

vivenciados ao longo de suas “labutas” no campo. Ao defender o uso dessa

metodologia, Thompson (1992, p. 137) afirma que “a evidência oral pode conseguir

algo mais penetrante e mais fundamental para a história [...] transformando os objetos

de estudo em sujeitos”.

Ante a abrangência da pesquisa, os trabalhos de campo foram programados para

acontecer em três momentos complementares: fevereiro e março de 2012, abril e maio

de 2013 e abril e maio de 2014. A primeira visita realizada em fevereiro e março de

2012 teve como propósito o reconhecimento da área da pesquisa bem como estabelecer

contatos com os sujeitos e instituições a quem recorreríamos na busca pelas

informações. Esse trabalho de campo abrangeu os municípios de Xique-Xique, Itaguaçu

da Bahia, Irecê e Juazeiro, sendo possível conhecer as comunidades atingidas pela

construção dos Perímetros Irrigados, bem como as áreas de plantio, tanto no Projeto

52 Não é propósito nesta pesquisa abordar os debates contrários e favoráveis à utilização dessa

metodologia de pesquisa. Incorre, pois, destacar nossa concordância com os teóricos que defendem a

viabilidade da História Oral para tratar de importante instrumento de resgate de fatos e, por outro lado,

nossa distância deles, por entender que esta constitui-se uma metodologia que permite acessar elementos

marcados pela subjetividade, um dos motivos pelos quais recebe fortes críticas de teóricos contrários à

sua utilização.

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Salitre como nas lavouras às margens dos rios São Francisco, Verde e Salitre. Essa

primeira visita à área de pesquisa foi importante porque sanou muitas incertezas e, por

outro lado, levou-nos a incorporar novos elementos à análise, em função dos detalhes

surgidos durante as visitas às comunidades e do levantamento prévio de informações

sobre os conflitos acerca da terra e da água no Submédio São Francisco. Após a

primeira inserção a campo, o universo dos sujeitos a serem entrevistados foi sendo

delimitado com maior clareza e segurança. O leque de assuntos os quais se encontram

entrelaçados à pesquisa exigiu de nós diversos exercícios contínuos (teóricos,

metodológicos e conceituais), com vistas a não tratar de maneira parcelar o fenômeno,

impedindo assim a compreensão das contradições contemporâneas da sociedade do

capital e a corrosão social a ela inerente. Os desafios impostos pelo objeto de pesquisa

vão desde o ponto de vista epistemológico até a dimensão ontológica dos sujeitos

pesquisados e suas expressões geográficas, perpassando pela sobreposição de barbáries

encobertas pelo verniz da modernidade, decorrentes dos projetos desenvolvimentistas.

Nesse sentido, é importante trazer para o debate Turra Neto (2011, p. 343), para quem

[...] a forma como a pesquisa de campo é realizada indica e influencia

os dados disponíveis e a forma da escrita. Então, o que se tem como

resultado de uma pesquisa é fruto de um processo contingente e

contextualizado de investigação, no qual são determinantes as opções

do/a pesquisador/a. Os resultados seriam outros, se outras fossem as

opções e os caminhos metodológicos percorridos.

Em abril e maio de 2013 foi realizado um trabalho de campo com duração de 30

dias, de modo que pudemos acompanhar a lida nas lavouras, as reuniões comunitárias,

os cuidados com as criações, as dúvidas e angústias cotidianas; ao visitá-los, recebemos

frutos de seu trabalho, tivemos contato com seus modos de vida, suas atitudes, crenças e

contradições materializadas no território. Fizemos refeições, dormimos em suas casas,

tendo acesso às memórias que estavam “adormecidas”, como se fossem doadas em

profusão. Essa vivência com os sujeitos da pesquisa foi fundamental para apreender a

complexidade territorial, como estratégia para fugir da simples observação dos

elementos que compõem a paisagem dos lugares visitados e revelar a essência dos

fenômenos geográficos. Para Thomaz Junior (2005, p. 35), ir além das evidências

paisagísticas

significa entender que na sociedade de classes [...] a relação homem-

meio [...] é mediada pela propriedade privada das condições de

existência, portanto, uma relação ecológica (histórica) de poder. (...)

Significa saber ainda que as relações sociais de trabalho e de produção

são condição e limite da organização da sociedade. (THOMAZ

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JUNIOR, 2005, p. 35).

Visitamos comunidades nos municípios de Itaguaçu da Bahia, Xique-Xique,

Juazeiro e Sobradinho, num constante perambular diário, sem que, das 20 comunidades

visitadas, houvesse uma sequer que tivesse fechado suas portas, negando-se a colaborar.

Ao contrário, ao saber o motivo da visita, logo começavam os relatos sobre a grilagem

das terras, sobre o conflito pela água no Salitre, entre tantos outros fatos que iam,

paulatinamente, permitindo-nos visualizar os sujeitos e as contradições materializadas

no território do Médio e Submédio São Francisco, sujeitos e contradições que teríamos

a responsabilidade de analisar/compreender/interpretar. Nesse interstício, não foi tarefa

fácil lidar emocionalmente com as informações coletadas durante o trabalho de campo,

porque, ao descrever os fatos, os pesquisados exteriorizavam sensações vividas que, em

muitas vezes, representavam momentos de muito sofrimento e incertezas, convocando-

nos a uma constante reavaliação de nossa postura frente à realidade pesquisada.

O período em que realizamos o trabalho de campo em 2013 coincidiu com a data

de realização da Exposição Agropecuária de Juazeiro/Petrolina, sendo possível observar

como se vêm estabelecendo as disputas entre campesinato e agronegócio por espaço,

durante o evento, para expor os produtos (Fotos 2 e 3):

Foto 2 -Stands de implementos agrícolas e da Agricultura Familiar na EXPOAGRI em Juazeiro,

2013

Fonte: Trabalho de Campo, 2013.

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Autor: DOURADO, J. A. L.

Foto 3-Stands de implementos agrícolas e da Agricultura Familiar na EXPOAGRI, 2013

Fonte: Trabalho de Campo, 2013.

Autor: DOURADO, J. A. L.

Ainda nesse contexto, destacamos a participação nas reuniões de mobilização

promovidas pela CPT (Fotos 4 e 5) junto às comunidades atingidas direta e

indiretamente pela implantação do Projeto Baixio do Irecê, o que nos possibilitou o

contato com as famílias das Comunidades de Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique. Outro

momento enriquecedor foi a participação em reuniões dos Comitês de Bacia

Hidrográfica do São Francisco (CBHSF) e do rio Salitre (CBHS), realizadas em maio

de 2013, para discutir questões relacionadas à situação dos rios, como a implementação

dos planos de revitalização, bem como a necessidade de debater sobre os múltiplos usos

da água, tanto no que se refere ao rio Salitre quanto ao rio São Francisco.

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91

Foto 4 – Reunião com camponeses atingidos pelo Projeto Baixio do Irecê, Itaguaçu da Bahia

(BA)

Fonte: Trabalho de Campo, abril de 2013.

Autor: DOURADO, J. A. L.

Foto 5 – Reunião com camponeses atingidos pelo Projeto Baixio do Irecê no município de

Xique-Xique (BA)

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Fonte: Trabalho de Campo, abril de 2013.

Autor: DOURADO, J. A. L.

Em Juazeiro, as comunidades do Baixo Salitre foram inseridas na pesquisa após

a primeira visita a campo em 2012, devido ao fato de haver ocorrido conflitos pelo

acesso à água na década de 1980, quando dois fazendeiros morreram em confronto com

os salitreiros53, revelando assim a emergência dos conflitos nessa região, decorrente da

territorialização da agricultura mecanizada, visto que os conflitos pela água foram

deflagrados devido ao uso indiscriminado de água do rio Salitre por agricultores vindos

do Centro-Sul do país. Esse foi um período de intensa migração de proprietários de

terras das áreas onde a expansão da agricultura baseada no pacote tecnológico estava em

curso no Brasil para outros estados, em busca de terras baratas e aptas à mecanização,

especialmente que contassem com disponibilidade hídrica54. De acordo com Reis (1986,

p. 44), o

cotidiano das atividades de produção, no Vale do Salitre, esteve

vinculado diretamente, ao rio, o ritmo de vida de sua população, o

desempenho e a intensidade de qualquer atividade sempre estiveram

articulados à sua existência e às possibilidades que a organização do

uso de suas vazantes apresentava.

As visitas serviram para a aproximação com lideranças dos movimentos sociais,

presidentes de sindicatos rurais, lideranças comunitárias, representantes de órgãos de

53 Esse conflito já foi estudado por Reis (1986). 54 Cf. THOMAZ JUNIOR, 2010b.

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governo, camponeses e organizações não governamentais, sujeitos essenciais para a

compreensão das tramas, urdiduras e meandros que envolvem o fenômeno em análise.

Os diferentes círculos de interações entre categorias de pessoas, as relações espaço-

territoriais, as diferentes racionalidades e territorialidades que permeiam os caminhos

entre o “moderno” e o “tradicional” no Semiárido baiano foram sendo desvelados no

decorrer dos trabalhos de campo, em função das conversas, entrevistas, História Oral55 e

observações sobre a dinâmica local e as evidências reveladas pela diversidade

biogeográfica e social do Semiárido, no Submédio São Francisco. Destaca-se aqui que,

através das entrevistas junto aos representantes do governo e aos camponeses, pôde-se

verificar a existência de “contra-racionalidades ou de outras-racionalidades”

(BRANDÃO, 2009, p. 47) expressas, por um lado, pelas paisagens-sujeitos do

Semiárido e, em contraposição, pelos monumentos da modernidade e do progresso,

como as megaobras de infraestrutura hídricas (os canais de irrigação) e as extensões

homogêneas das lavouras de frutas e cana-de-açúcar, denunciando neste último caso,

“[...] a derrocada da biodiversidade e de uma correspondente humana

sociobiodiversidade.” (BRANDÃO, 2009, p. 48).

Após a qualificação da tese realizada em fevereiro de 2014, retornamos a campo

para realizar a última etapa de visitas, com o propósito de atender às demandas

apresentadas pela banca avaliadora. Retomamos as visitas às comunidades no Baixio de

Irecê (Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique) e no Baixo Salitre, para atualizar os dados

relacionados ao processo de implantação dos projetos, ao atendimento às reivindicações

feitas pelas comunidades atingidas e para buscar informações sobre as ocupações feitas

pelo MST. Durante o trabalho de campo, o MST ocupou uma área no Projeto Baixio de

Irecê, causando grande tumulto entre as famílias das comunidades circunvizinhas ao

projeto. A inexistência de articulação entre o MST e as famílias que lutam pela posse da

terra no Baixio de Irecê provocou muita confusão e incertezas, fato que levou a CPT a

realizar várias reuniões com as comunidades para esclarecer os fatos. Acompanhamos a

visita feita pelos representantes da CPT ao acampamento do MST, momento em que

percebemos o delineamento de um conflito entre estratégias de atuação o qual impedia o

55 Existem vários tipos de História Oral. A História Oral de Vida é similar à História Oral Temática,

ocorrendo em alguns momentos, uma complementaridade entre ambas. A primeira é mais subjetiva,

enquanto a segunda é mais direcionada, objetiva, havendo uma maior participação por parte do

investigador, no sentido de dar os direcionamentos desejados ao discurso do interlocutor/colaborador.

Para esta pesquisa, utilizamos a História Oral de Vida, de modo a dar liberdade ao sujeito de expor

sobre sua trajetória de vida, embora o que interessava ao pesquisador fossem as experiências

relacionadas ao trabalho na/com a terra, apesar de reconhecermos que, em alguns momentos, foi

necessário fazer demarcações temporais para facilitar o resgate das memórias por parte dos sujeitos.

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estabelecimento de um diálogo entre as lideranças. Durante as reuniões entre a CPT e as

comunidades do Baixio de Irecê, verificamos haver sérios entraves a uma possível

integração das pautas de reivindicações de integrantes do MST e de famílias do Baixio

de Irecê, na luta pela terra. Nesse período ocorreu a XVI EXPOAGRI com o tema

“Baixio de Irecê: levando esperança para a economia da região”, realizada pela

Associação dos Pecuaristas da Região de Irecê (APRIR) e pelo Sindicato dos

Produtores Rurais de Irecê (SINPRI)56.

1.5 A organização das informações

Para a pesquisa, fez-se necessário o levantamento de dados em fontes

secundárias, visando a aprofundar a análise sobre o fenômeno em questão. Nesse

sentido, foram levantadas informações nos sites do Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística (IBGE, 2010), Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia

(SEI), Secretaria de Agricultura do Estado da Bahia (SEAGRI), Secretaria de

Planejamento do Estado da Bahia (SEPLAN), Ministério da Integração (MI), Agência

Nacional das Águas (ANA), CBHSF, CODEVASF, DNOCS, Instituto do Meio

Ambiente e Recursos Hídricos (INEMA), Comissão Pastoral da Terra e o Grupo

GeografAr.

No site do IBGE foram coletados dados dos municípios pesquisados, referentes

ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), à Produção Agrícola Municipal, a

Censos Agropecuários a partir da década de 1970. Na SEI foram coletados dados

socioeconômicos dos municípios que integram a região do Submédio São Francisco. Na

SEAGRI obtivemos informação sobre os Territórios da Cidadania. Os investimentos em

infraestrutura hídrica na região Nordeste foram coletados junto ao Ministério da

Integração Nacional, CODEVASF e DNOCS, com ênfase na construção de perímetros

irrigados. Informações socioeconômicas da área da Bacia do São Francisco foram

levantadas através da ANA e do CBHSF. No tocante aos aspectos socioeconômicos da

bacia do rio Salitre, a coleta de dados foi feita através do INEMA. Os conflitos sobre

terra foram coletados junto aos Cadernos de Conflitos no Campo, publicados

anualmente pela CPT (sequência 1990-2013). Os dados sobre os conflitos pela água

passaram a ser registrados pela CPT a partir de 2002. Recorreu-se também a fontes

56 Na edição realizada em 2013, a Feira gerou mais de R$5 milhões em negócios (comercialização de

animais, máquinas e equipamentos), segundo dados do Jornal Dois Pontos (2014).

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documentais particulares e ao Cartório de Tabelionato do município de Xique-Xique,

para verificar a cadeia sucessória das terras desapropriadas para a implantação do

Projeto de Irrigação Baixio de Irecê.

Durante os trabalhos de campo, além das entrevistas fizemos o registro

fotográfico das paisagens e dos sujeitos, sendo a fotografia muito utilizada na Geografia

para subsidiar as análises e as interpretações dos fenômenos e/ou processos. Para

Mansur (2008, p. 406) fotografar “é eternizar os momentos para que as próximas

gerações possam olhar, sentir e aprender, com aqueles registros, o que hoje estamos

construindo”. As fotografias são utilizadas nesse trabalho com dois propósitos básicos:

primeiro, mostrar a força e os desdobramentos do poder vigente, suas tramas e

urdiduras; segundo, ressaltar as imagens da resistência do campesinato no Semiárido

baiano, pois “ao mostrar a invasão na cultura, os costumes, a tradição, enfim a vida de

um povo, essas imagens geram memórias e cultivam a pedagogia da resistência”

(MANSUR, 2008, p. 406).

Ao registrar aspectos do cotidiano da lida camponesa, seus momentos de

organização e luta, propusemos renovar a imagem da cultura camponesa, como forma

de enfrentamento à repaginação do agronegócio e sua linguagem ideológica. Ao

fotografar os símbolos e signos do progresso e do desenvolvimento – projetos

desenvolvimentistas – no Semiárido baiano, nosso intuito foi desvelar o caráter

concentrador, excludente e expropriatório, próprio do agrohidronegócio e sua cadeia

ideológica. Ainda sobre o papel da fotografia para a compreensão dos fenômenos

investigados no âmbito da Geografia, Justiniano (2005, p. 187) destaca que a imagem

ilustra e documenta eventos naturais e sociais que ocorrem num

determinado tempo e lugar e deve ser acompanhada de outras

informações, com localizações geográficas, ângulo de visada, registro

de hora e da data e relato do fato observado. Essas anotações serão

importantes na composição dos trabalhos, na verificação de resultados

e no acompanhamento dos fenômenos ao longo do tempo.

Essa escolha metodológica parte do pressuposto de indissociabilidade entre o

comprometimento do pesquisador com o fenômeno/sujeito pesquisado, conforme

destaca Mendonça (2004, p. 54):

A escolha teórico-metodológica é eivada de significados, de

trajetórias, de posicionamentos políticos. Qualquer interpretação e/ou

análise espacial exige o nível de comprometimento social do

pesquisador. A prioridade a determinadas categorias, as formas de

construir o texto e a maneira de ver o papel da ciência geográfica são

modos de dizer como pensam ‘as coisas do espaço’, e a possibilidade

de alterá-las está diretamente relacionada à escolha metodológica que

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não é aleatória ou espontânea, mas, sim, política e social.

Os produtos cartográficos apresentados para localização, espacialização e

mapeamento de dados da área da pesquisa do Semiárido e do estado da Bahia foram

elaborados a partir de cartas-base do IBGE, da ANA e de imagens de satélite

LANDSAT 5 (Land Remote Sensing Satellite) e seu TM (Thematic Mapper). A

metodologia associada às técnicas de pesquisa permitiu elucidar como o

agrohidronegócio “territorializa” o Semiárido baiano, desencadeando profundas

metamorfoses sociais, econômicas e políticas bem como conflitos entre camponeses, o

Estado e o grande capital. Ao reconhecer a validade do pensamento de Santos (2008b)

quando este concebe o espaço como resultado da acumulação desigual de tempos,

buscamos capturar, através das entrevistas, da História Oral e das observações diretas, o

movimento constante de (re)configuração dos territórios, cuja essência são as ricas

relações sociais e de trabalho, assim como os saberes-fazeres em seu devir ininterrupto,

ora desigual ora combinado, forjados no contexto da luta de classes e em diferentes

espaço-temporalidades.

O “eu estava lá, escrevo daqui” (GEERTZ, 1989) teve como propósito captar as

sensações, as imagens, os medos, os sonhos e as texturas (e tecelagem) das contradições

em que estão imersos os pesquisados, de modo que pudéssemos arregimentar

informações necessárias à compreensão das sutis evidências dos (des)encontros de vida,

dos saberes-fazeres, das formas regressivas do sistema sociometabólico do capital,

materializadas no Semiárido baiano, território secularmente ocupado por sujeitos com

características heterogêneas e com hábitos/costumes distintos, na desconfortável

fronteira entre “modernidade/progresso” e as práticas tradicionais.

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CAPÍTULO II

POLÍTICAS PÚBLICAS DE IRRIGAÇÃO E A GEOGRAFIA DO

AGROHIDRONEGÓCIO NO SEMIÁRIDO BAIANO

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A água é a matriz da cultura, a base da vida.

[...] a água tem papel central no bem-estar

material e cultural das sociedades por todo o

mundo. (SHIVA, 2003,p. 44).

Este capítulo tem como objetivo compreender como as Políticas Públicas de

desenvolvimento regional/territorial implantadas pelo Estado a partir da década de 1990

contribuem para a expansão do agrohidronegócio no Semiárido baiano. Nesse caso

específico, daremos ênfase às políticas de irrigação, por entender que a segurança

hídrica possui centralidade quando se trata da perspectiva do planejamento regional para

a região Nordeste semiárida. Ressaltamos a necessidade de fazer um resgate histórico

sobre como se constituíram as bases institucionais, técnicas e de infraestrutura que

viabilizaram as condições necessárias para a expansão do grande capital nessa fração de

território nordestino. Para efeito de análise, focaremos três programas voltados para a

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irrigação, dois em escala nacional e um em nível estadual: o Novo Modelo de Irrigação

e o Programa Mais irrigação, em escala nacional e o Programa Bahia Biocombustíveis,

implantado no estado da Bahia.

2.1. Política de Irrigação no Brasil: resgate histórico e fundamentos políticos

Os primeiros indícios da utilização da irrigação no Brasil foram registrados,

indiretamente, em 1881, no Rio Grande do Sul, sob o domínio da iniciativa privada,

com foco na produção de arroz. Durante muito tempo a irrigação permaneceu numa

condição de ostracismo, adquirindo destaque principalmente nas três últimas décadas do

século XX. Embora não fosse restrita ao Nordeste brasileiro, é nessa região que a

irrigação ganhou destacado papel político, sendo usada como importante instrumento

para alavancar o planejamento/desenvolvimento regional. Tal importância fica evidente

através da criação de diversos órgãos pelo Estado,cuja atuação fica limitada

geograficamente ao Nordeste semiárido, para tratar da questão da seca. Essa limitação é

um aspecto revelador do poder político e econômico da elite regional, em sua maioria

composta por grandes proprietários responsáveis pela produção algodoeira e pela

pecuária. Não olvidemos que o discurso dessa elite baseou-se na palavra-chave “seca”,

pois, ela

representa falta de chuva, mas também miséria, analfabetismo,

doença, descapitalização, natureza hostil etc. Mas a seca é também, na

base do discurso, produtora de uma solidariedade social que equaliza

todos diante da sua força, produtores grandes e pequenos,

proprietários ou não. A seca é também percebida como falta d’água e

como necessidade de recursos para obtê-la. O significado destes

conteúdos vai muito além da relação entre natureza e atividade

produtiva, sendo mais evidente na relação entre a natureza e a

produção de um imaginário político, socialmente equalizador e

institucionalmente eficiente para a obtenção de recursos financeiros e

de poder. (CASTRO, 2008, p. 306).

Na primeira metade do século XX foram criadas várias instituições com o

propósito de planejar, executar e gerenciar as atividades relacionadas à infraestrutura

hídrica, saneamento e combate aos efeitos diretos das secas. Em 1909 foi criada a

Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS)57 através do Decreto 7.619 de 21 de

outubro de 1909, editado pelo presidente Nilo Peçanha, a qual teria como

responsabilidade realizar estudos sobre o Semiárido e estabelecer as bases técnico-

57 Mais informações, consultar http://www.dnocs.gov.br/php/comunicacao/registros.php?f_registro=2&.

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científicas para atuar em ações emergenciais contra os efeitos dos longos períodos de

estiagem. Esse órgão teve seu nome alterado em 1919 para Inspetoria Federal de Obras

Contra as Secas (IFOCS), mantendo como ações prioritárias a execução de obras de

infraestrutura hídrica, como açudes públicos, em propriedades particulares. Em 1945,

mediante o Decreto-Lei 8.846 de 28 de dezembro, sofreu nova alteração, passando a ser

denominado Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), tornando-se

autarquia federal pela Lei 4.229 de 01 de junho de 1963. Ressaltamos que até o final da

década de 1950, esse era o principal órgão governamental de “socorro” às populações

acometidas pelos efeitos das secas, construindo açudes, estradas, pontes, portos,

ferrovias, hospitais, campos de pouso, implantando redes de energia e construindo

hidrelétricas58.

Em 1948, foram criadas simultaneamente a Companhia Hidroelétrica do Rio São

Francisco (CHESF) e a Comissão do Vale do São Francisco (CVSF), sendo esta última

transformada, em 1967, em Superintendência do Vale do São Francisco (SUVALE) e,

em 1974, na Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (CODEVASF).

Desde 2002, a CODEVASF passou a exercer mandato também sobre a bacia do rio

Parnaíba. Assim, o DNOCS ficou encarregado de promover a agricultura de base

familiar, enquanto a CODEVASF atuaria de forma sistematizada na promoção do

agronegócio. A criação do Banco do Nordeste, em 1952, teve como principal objetivo

financiar as ações voltadas à modernização do território através da construção de

infraestrutura hídrica (perímetros irrigados, barragens, canais), rodovias, além dos

financiamentos voltados à produção agrícola.

Os avanços obtidos com a irrigação, até a década de 1960, não foram

expressivos porque as ações desenvolvidas até então pelo Estado foram desarticuladas e

descontínuas, no tempo e no espaço. Com o objetivo de promover o desenvolvimento e

reduzir as disparidades socioeconômicas em relação às regiões Sudeste e Sul, foi criada

em 15 de dezembro de 1959, por meio da Lei 3.692, a Superintendência de

Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) num cenário político ameaçador para as

elites dominantes que se viam ameaçadas pelos líderes populistas e de esquerda, com

uma crescente adesão por parte dos assalariados do campo e da cidade, que se

colocavam adeptos às teses revolucionárias. Ianni (2004) faz uma interessante análise

sobre as razões que levaram a criação da SUDENE, pois segundo esse autor, a

58 Como exemplo, citamos os grandes açudes de Orós, Banabuiú, Araras, a rodovia Fortaleza-Brasília e o início

da construção da barragem de Boa Esperança.

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SUDENE

surgiu num momento em que se revelaram de modo particularmente

aberto e intenso os antagonismos da sociedade do Nordeste. Ou

melhor, ela foi criada numa época em que as desigualdades

econômicas e sociais naquela região adquiriram conotações políticas

de cunho pré-revolucionário. No momento em que camponeses e

operários rurais deixaram de acomodar-se às soluções de estilo

oligárquico (consubstanciadas nos padrões de controle social e

liderança política próprios do coronelismo), nesse momento os grupos

dominantes no Nordeste e o governo federal (incluindo o Executivo e

o Legislativo) decidiram agir politicamente, no sentido de controlar ou

dominar as tensões crescentes na região. Aliás, a SUDENE não foi

senão uma das soluções dadas ao agravamento das contradições

políticas no Nordeste. (IANNI, 2004, p. 210-11).

Ao ser criada, a SUDENE teve a responsabilidade de elaborar planos

emergenciais de combate às secas, estabelecendo as formas de ajuda às populações

afetadas pelos prolongados períodos de escassez de chuvas. Esses planos tinham como

objetivo gerar empregos mediante a construção de obras públicas, o abastecimento de

gêneros alimentícios e a assistência sanitária. Tais planos emergenciais foram sendo

alterados desde sua criação: em 1976, eram denominados de frentes de serviço,

passando a ser chamados de frentes de trabalho em 1980 e, após 1987, receberam o

nome de frentes produtivas de trabalho, perdurando essa denominação até os anos 2000.

Como resultado da criação da SUDENE, houve a definição geográfica de sua área de

atuação, que abrangeria os estados do Maranhão, Piauí, Bahia, Sergipe, Alagoas, Ceará,

Rio Grande do Norte, Pernambuco, Paraíba e o norte de Minas Gerais. A secretaria

executiva da SUDENE ficou sob a responsabilidade de Celso Furtado durante o período

de 1959 a 1964. Em 2001 esse órgão foi extinto, acusado de favorecimentos.

Nos anos 1960, novas diretrizes foram adotadas pelo Estado, com destaque para

a criação do Grupo Executivo de Irrigação e Desenvolvimento Agrícola59(GEIDA) em

1968 e a elaboração do Programa Plurianual de Irrigação (PPI) em 1971, durante o

chamado “milagre brasileiro”, com metas ambiciosas a serem executadas, como a

irrigação de 40 mil hectares no Nordeste até 1980. Esse programa lançou as bases para a

política de irrigação para o Brasil, abrindo espaço para a

iniciativa privada, orientando a implantação do Programa Nacional

para o Aproveitamento Racional das Várzeas Irrigáveis

(PROVÁRZEAS) e o Programa de Financiamento de Equipamentos

59 O GEIDA foi responsável pela realização de um amplo e pioneiro estudo sobre as possibilidades de irrigação

no Semiárido, determinando a viabilidade técnico-econômica de 73 projetos, sendo 62 localizados no

Nordeste. Além disso, traçou as diretrizes que constituíram a primeira fase do Plano Nacional de Irrigação

(PNI).

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de Irrigação, além do estabelecimento de diretrizes e metas

comandadas pelo setor público, mas estimulando a iniciativa

privada(COELHO NETO, 2009, p. 8).

Após estudos feitos pelo GEIDA, 1/3 da área total do país foi considerada

favorável à implantação de projetos de irrigação, sendo a região Nordeste subdividida

em duas partes: A e B, na qual a parte B referia-se ao vale do São Francisco, sob a

jurisdição da CODEVASF, enquanto a parte A seria de responsabilidade do DNOCS.

Outro importante instrumento para a expansão do capital no campo foi a instituição do

Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte e

Nordeste (PROTERRA) em 1971, pois, segundo Germani (1993, p. 239), esse foi um

instrumento de “modernización y capitalización de los sectores que ya detenían tierra,

dando como resultado una aceleración del processo de acumulación y concentración del

capital”. Ainda na década de 1970, mais especificamente em 1972, foi lançado o

primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), tendo a segunda etapa sido

implantada em 1979. O PND acabou incorporando o Programa de Irrigação Nacional.

De acordo com Germani (1993, p. 216),

A nível de la planificación se produjo también un cambio significativo

entre el I e II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND). El I PND,

em vigor durante el período de 1972 a 1974, privilegiaba los aspectos

cuantitativod del “desarrollo”. Mientras que el II PND, en el período

de 1975 a 1977, durante el gobierno Geisel, rechazaba la teoria

economicista del período anterior y proponía políticas consideradas

más bien distributivas.

A Política de Irrigação Nacional60 encarou a irrigação como uma estratégia para

promover o desenvolvimento regional mediante a geração de emprego e para reduzir os

efeitos das secas, garantindo assim maior estabilidade aos empregos. Segundo Gomes

(1979, p. 416), as

metas de criação de emprego e geração de renda que poderiam parecer

ambiciosas são postas na sua exata ordem de grandeza quando

comparadas com as necessidades globais da região nordestina,

especialmente na semi-árida. Uma avaliação do desemprego e do

subemprego totais por toda essa região, em 1980, indicou um número

igual a 6,5 milhões, o que se compara de forma desproporcional aos

230 mil empregos a serem gerados pelo PPI, se este programa vier a

ser totalmente implantado.

Embora a Política Nacional de Irrigação não tenha atingido as metas

relacionadas à geração de empregos, sua implementação pelo Estado criou

60 Sua regulamentação, no entanto, só ocorreu em 29 de março de 1984, mediante a edição do Decreto n.º

89.496.

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103

[...] condições favoráveis para a territorialização do grande capital no

Semiárido nordestino, visto que mediante a aplicação de recursos

públicos, passou a dotar frações desse território de infraestrutura

(barragens/açudes, canais de irrigação, adutoras, rodovias),

possibilitando o desenvolvimento de atividades agrícolas (produção de

frutas tropicais, por exemplo) com vistas a atender à demanda dos

mercados do Centro-Sul do país, bem como o mercado internacional.

Em função dessas ações, o Semiárido nordestino se transformou em

um grande produtor frutícola, assumindo lugar de destaque no cenário

nacional, visto que além dos fatores naturais (água, terra e

luminosidade) o capital tem à sua disposição mão de obra barata em

abundância e de fácil acesso. (DOURADO, 2014, p. 9).

Em outubro de 1974, foi criado o Programa de Desenvolvimento Integrado do

Nordeste (POLONORDESTE) pelo Decreto 74.794 de 30 de outubro de 1974, no então

governo de Ernesto Geisel. Esse programa selecionou áreas específicas para a sua

execução, a saber: a) áreas de vales úmidos, b) áreas de serras úmidas, c) áreas de

agricultura seca, d) áreas de tabuleiros costeiros e, e) áreas da pré-Amazônia. Baseado

na ideia de desenvolvimento formulada por Perroux, nos anos de 1950, sobre os polos

industriais, o POLONORDESTE fez uma adaptação dessa teoria para o campo,

mediante a concepção dos polos rurais centrados a partir de pequenos núcleos urbanos.

Basicamente, a implementação desse programa ocorreu através dos Projetos de

Desenvolvimento Rural Integrado (PDRI). Germani (1993, p. 217) afirma que a

orientação do POLONORDESTE

[...] estaba recomendada, apoyada y subsidiada por el Banco Mundial,

por el Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola de las

Naciones Unidas (FIDA), por el Banco Interamericano de Desarrollo

(BID) y por la Organización de los Estados Americanos (OEA). El

programa tenia um alcance geográfico de 850.000km², distribuídos em

diez estados y abarcando más de 700 municípios, em um total de 40

Proyectos de Desarrollo Rural Integrado.

Trata-se de uma tentativa, por parte do Estado, de promover a modernização

planificada – pontual e acelerada – de determinadas frações do território, mediante a

criação de enclaves modernos, numa região com fortes desigualdades econômicas e

sociais, no contexto do regime autoritário. O objetivo de promover o desenvolvimento

de regiões consideradas pontos nodais é confirmado por Sorj (1986, p. 103), ao afirmar

que a

ação do Polonordeste inicialmente caracterizaria as regiões onde iria

atuar, e depois, através de uma ação conjunta dos diversos órgãos

federais e estaduais que atuam no Nordeste, procuraria criar as

condições infra-estruturais, creditícias, assistenciais e de pesquisa,

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com o objetivo de promover a modernização da agropecuária do local.

Concretamente, o POLONORDESTE serviu para viabilizar a expansão e a

reprodução ampliada do capital, sem que ocorressem mudanças significativas nas

estruturas política e agrária no Nordeste, baseando-se na perspectiva de mudar um

pouco para que as antigas estruturas políticas e de poder permanecessem invioladas.

Muitas das áreas em que receberam aportes financeiros oriundos desse programa

tornaram-se polos regionais de irrigação, como Juazeiro-Petrolina (BA/PE), vale do Açu

(RN) e chapada do Apodi (CE). Para Bursztyn (1984), a ação do Estado acabou por

priorizar determinadas zonas geográficas e, consequentemente, determinados grupos

sociais, beneficiados com tais investimentos. Como consequências da execução dos

PDRI, Germani (1993, p. 220) ressalta “a proletarizción agraria y aburguesamento

agrário, com mínimas expresiones de concreción efectiva. Y, em médio, la ampliación

de uma massa campesina que tiene connotaciones de subproletariado y se debate en la

indentificación ideológica, social y política”.

Em1978, durante o governo de João Figueiredo, foi implantado, por meio do

Decreto nº 86.146, o Programa Nacional para Aproveitamento Racional das Várzeas

Irrigáveis (PROVÁRZEAS), com o objetivo de incorporar economicamente as áreas de

várzeas à produção agrícola, através do saneamento agrícola, drenagem e irrigação sob

os moldes do pacote tecnológico da Revolução Verde. Dando sequência a esse

programa, implantou-se, em 1982, o Programa de Financiamento de Equipamentos de

Irrigação (PROFIR) através do Decreto nº 86.912.Tais programas foram fundamentais

para a expansão da irrigação no Nordeste, em função dos subsídios governamentais

(50% do valor gasto) para a aquisição de sistemas e equipamentos de irrigação.

(BANCO MUNDIAL, 2004).

O Programa de Irrigação do Nordeste (PROINE) foi implantado em 1986, tendo

como uma de suas atribuições disponibilizar infraestrutura e equipes técnicas para

favorecer aos agricultores que já dispunham de experiência em irrigação. Em 1996, foi

instituído, pelo Ministério da Agricultura, o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da

Fruticultura Irrigada no Nordeste. A década de 1990 marcou a criação do Programa

Brasil em Ação pelo governo federal, colocando em evidência a perspectiva neoliberal,

defendida pelo então presidente da república, Fernando Henrique Cardoso. Até meados

dos anos 1990, registrou-se um processo de estagnação da agricultura irrigada devido à

retirada de financiamentos em função da extinção dos programas PROVÁRZEAS e o

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PROFIR, voltando, entre 1996/98, a aumentar a área irrigada, com destaque para a

irrigação privada, a fruticultura irrigada no Semiárido nordestino, a produção de grãos

no Oeste baiano e de café no Norte do Espírito Santo, principalmente.

Contemplando as medidas propostas no Plano Plurianual (PPA), 1996 a 1999, o

Programa Brasil em Ação contou com investimentos da ordem de 79 bilhões de reais

para investimentos em áreas prioritárias, como obras de infraestrutura (transportes,

energia elétrica, combustíveis, etc.), abrangendo outras áreas, tais como saúde,

abastecimento d'água, saneamento, produção de alimentos, habitação e emprego.

Considerando os propósitos desta pesquisa, abordaremos o projeto Novo Modelo

de Irrigação, que integra o Programa Brasil em Ação, lançado em agosto de 1996,

porque a execução do mesmo traz implicações de ordem técnica, ideológica e

econômica, contribuindo, de fato, para que o grande capital possa reproduzir-se de

forma ampliada, consolidando um novo paradigma para a agricultura irrigada pública.

Os anos 2000 marcaram a retomada das grandes obras hídricas, como a

transposição do São Francisco, a construção de perímetros irrigados, grandes açudes e o

lançamento do Programa Mais Irrigação em 2012, inseridas no Plano Plurianual 2004-

2007 – Brasil de Todos, definido pelo Governo Federal. O Plano Plurianual envolve

uma gama de ações governamentais direcionadas ao combate à miséria, ao desemprego

e à fome, com ênfase aos problemas do Nordeste brasileiro. O Programa Mais Irrigação,

embora formulado numa conjuntura política diferente daquela em que ocorreu o

planejamento e a execução do Programa Brasil em Ação, revelou que estas políticas

públicas voltadas para o fomento da irrigação estavam concatenadas com o propósito de

expandir a participação do setor privado na agricultura irrigada, no âmbito dos

perímetros públicos de irrigação e reduzir a ação do governo na gestão dos mesmos. As

projeções do Plano Plurianual de 2012-2015 são bastante otimistas e favoráveis ao

capital privado, porque prevê recursos da ordem de R$6,9 bilhões a serem investidos na

criação e modernização de perímetros irrigados. Assim, espera-se ampliar, em 193.137

hectares, a área irrigada nos perímetros já existentes e implantar novos projetos de

irrigação, alcançando 200.000 hectares, privilegiando as parcerias público-privadas.

Pode-se dizer que, excluindo a produção de arroz no Sul do Brasil, os cultivos

irrigados são recentes e sua evolução pode ser dividida em quatro fases: a) Primeira

fase: vai da metade do século XIX até meados dos anos de 1960, período caracterizado

por ações isoladas, com predomínio do governo federal e sem uma estrutura de

programas e projetos; b) Segunda fase: iniciada no final dos anos de 1960 com a

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criação do GEIDA, permaneceu até a primeira metade dos anos de 1980. Destaca-se

nesse período a concepção de “lotes empresariais” nos perímetros irrigados. Destaca,

nesse contexto, o lançamento do I Plano Nacional de Irrigação com forte

direcionamento para a iniciativa privada; c) Terceira fase: deu-se mediante a instituição

do Programa de Irrigação do Nordeste (PROINE) e do Programa Nacional de Irrigação

(PRONI), ambos em 1986, estabelecendo as prioridades do governo federal e a divisão

de funções entre o Estado e a iniciativa privada; d) Quarta fase: a implantação do Novo

Modelo de Irrigação nos anos de 1990 marcou o redirecionamento da Política Nacional

de Irrigação, dando evidência ao papel do agronegócio no âmbito dos perímetros

públicos irrigados, cuja área total irrigada atingiu 2.870.000 hectares, segundo dados da

Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL, 1999).

Em estudo sobre os impactos e externalidades sociais da irrigação no Semiárido

brasileiro publicado em 2004,o Banco Mundial afirma que a irrigação não deveria ser

uma das prioridades do governo para o desenvolvimento regional e a redução da

pobreza no Semiárido, revelando ainda constrangimentos e políticas institucionais

restritivas que impactam negativamente os resultados dos investimentos em irrigação no

Semiárido. Dos onze perímetros irrigados analisados, apenas quatro apresentaram

valores positivos (ex post), a saber: Tourão, Curaçá, Mandacaru, na Bahia, e Bebedouro

em Pernambuco. Entre os direcionamentos desse estudo, destacamos o incentivo à

modernização dos projetos, com vistas a promover a participação do setor privado no

desenvolvimento da agricultura irrigada, a modernização da infraestrutura necessária, a

expansão de novas áreas de irrigação destinadas ao crescimento agrícola, à mitigação da

pobreza e à geração de empregos. Essas recomendações feitas pelo Banco Mundial

estão em consonância com a proposta norteadora do Novo Modelo de Irrigação, tendo

sido incorporadas pelo governo, em suas diferentes escalas, como é possível constatar

ao analisar a conformação dos projetos e programas relacionados ao incremento da

irrigação no pós-1990.

Os investimentos feitos pelo Estado para viabilizar a expansão da irrigação no

Semiárido não acabou com as desigualdades regionais, tendo, contraditoriamente,

produzido e reproduzido as desigualdades inter-regionais, mediante a criação de

“espaços” econômicos e/ou polos de desenvolvimento regionais, dos quais destacamos

Juazeiro-Petrolina, norte de Minas Gerais (Projeto Jaíba), Açu-Mossoró, Baixo

Jaguaribe e Alto Piranha, concentrando aproximadamente 70% da área irrigada no

Nordeste Semiárido. Ianni (2004, p. 170) alerta para o fato de que “[...] o Nordeste

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também tem sido uma vasta e riquíssima ‘fronteira’ do capitalismo” com a expansão e

fortalecimento do grande capital financeiro, com forte acentuação dos antagonismos de

classes como produto do “desenvolvimento desigual e combinado”. Vê-se que esse

conjunto de órgãos e de investimentos governamentais, ao visar o desenvolvimento

econômico, acaba beneficiando grupos privilegiados que são os grandes proprietários da

região, sem resolver problemas essenciais e responsáveis pelas desigualdades sociais e

econômicas, como destaca Prado Júnior (2007, p. 118):

Medidas de fomento e amparo à produção, e visando ao

desenvolvimento econômico, mas orientadas unicamente por

considerações de ordem tecnológica e econômica geral, podem

reverter afinal, (...), em benefício exclusivo de reduzidos grupos

privilegiados que são os grandes proprietários da região, sem tocar em

fatores essenciais responsáveis pelo subdesenvolvimento da região

que se pretende erradicar, e que é o baixo nível de vida de uma

população reduzida praticamente ao mínimo da subsistência animal.

Na seção seguinte abordaremos quais os desdobramentos dos programas Novo

Modelo de Irrigação, Mais irrigação e Bahia Biocombustível (BAHIABIO) para a

agricultura irrigada no Semiárido num contexto de “globalização perversa” (SANTOS,

2000, p. 37), de avanço do grande capital e de reestruturação das relações de produção,

mediante o incentivo da produção camponesa sob os moldes do agronegócio.

2.2 Novo Modelo de Irrigação: transferência disfarçada do papel do Estado para o

capital privado

O Programa Brasil em Ação implantado na década de 1990, durante o governo

de Fernando Henrique Cardoso, é composto por 42 empreendimentos, dos quais 16 são

projetos na área social e 26 na área de infraestrutura, abrangendo os seguintes setores:

saúde, habitação, emprego, saneamento, água, turismo, agricultura, educação,

comunicações, transportes e energia. Inserido no Programa Brasil em Ação, o projeto

Novo Modelo de Irrigação, com financiamento de R$2.487 bilhões tinha como objetivo

promover e consolidar o desenvolvimento sustentável de áreas irrigadas e irrigáveis.

Com esse projeto, a irrigação passou a ser concebida como negócio, cuja base deve ser a

iniciativa privada, responsável pela construção das obras de infraestrutura e toda a parte

envolvendo a produção, processamento e comercialização, além de buscar estabelecer

relações de parcerias entre o mercado consumidor, todos os componentes da cadeia

produtiva e o governo. Havia, pois, um forte interesse em alterar a legislação de

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irrigação vigente (Lei n.º. 6662/79), para modernizar a agricultura praticada nos

perímetros públicos de irrigação, através do fomento à adoção do pacote tecnológico e

da especialização da produção, atendendo às demandas do mercado externo. Destaca-se

que essa medida é estratégica para o agronegócio porque busca uma solução para

“eliminar” as práticas camponesas no interior dos perímetros de irrigação, visto que, em

determinadas situações, parte dos lotes são direcionados para atender a população

desalojada pela desapropriação das terras de interesse público.Essa incorporação dos

camponeses aos perímetros irrigados traz obstáculos à expansão da agricultura

comercial porque os camponeses acabam ocupando os lotes com a policultura, cuja

produção é direcionada para o autoconsumo, sendo os excedentes comercializados

localmente.

O Novo Modelo de Irrigação é uma evidência de que as terras semiáridas do

Nordeste já estavam no cálculo do capital, aguardando o momento ideal para serem

incorporadas à lógica do agronegócio, com a “mercantilização da terra, a produção para

o mercado em lugar da produção para o autoconsumo” (IANNI, 2004, p. 180), em que a

terra é transformada em objeto e meio para a reprodução do grande capital. Ao analisar

os documentos oficiais, não constatamos nenhuma abordagem sobre a questão agrária,

sobre o acesso à terra por parte dos camponeses historicamente condicionados aos

ditames da elite agrária regional nordestina, revelando a perspectiva de “mudar alguma

coisa para nada modificar” (IANNI, 2004, p. 183). Há, como direcionamento, a

destinação de uma parcela mínima (20% dos lotes) para as populações desalojadas ou a

sua incorporação como mão de obra nos projetos de irrigação, predominando os lotes

empresariais61.

Entre as recomendações do Novo Modelo de Irrigação destacamos a gestão dos

perímetros irrigados na perspectiva do Gerenciamento Global Ampliado (GGA), com

protagonismo do setor privado, ficando ao Estado o papel de implementar a

infraestrutura hídrica e tratar da estrutura fundiária, inclusive resolvendo questões

relacionadas à desapropriação das terras. Tal proposta deixa evidente a supremacia do

setor privado como gerenciador do setor relacionado à agricultura irrigada com

incentivo ao agronegócio, tido como modelo ideal para os projetos de irrigação.

Analisar esses novos espaços modernizados – os perímetros irrigados e seus impactos

61 Os projetos públicos de irrigação são geralmente divididos em lotes familiares (até 6 hectares), lotes

empresariais (30 hectares em média) e lotes para profissionais de Ciências Agrárias (máximo de 10% da área

total de um Projeto, para efeito de demonstração e orientação técnica aos agricultores familiares).

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sobre os espaços urbanos – é desafiador porque os investimentos feitos em

infraestrutura vão conformando as mudanças sociais e territoriais, tendo como resultado

o “acirramento da divisão social e territorial do trabalho no setor, transformando as

tradicionais relações cidade-campo” (ELIAS, 2006, p. 115) bem como o surgimento de

conflitos pela terra e pela água. Nessas áreas há o direcionamento das atividades com

vistas a garantir a especialização e a integração das atividades para atender às demandas

do agrohidronegócio, além de contar com uma remodelagem das práticas camponesas,

devido à necessidade de o grande capital agregar terras, água e mão de obra barata para

viabilizar a sua reprodução ampliada.

No contexto do Novo Modelo de Irrigação, embora a abertura e o favorecimento

ao setor privado se constituam pano de fundo para a sua implantação, não fica claro

como a iniciativa privada atuaria, quais seriam suas responsabilidades e sua relação com

o Estado. Esses delineamentos se tornariam mais claros a partir dos anos 2000, com a

possibilidade de estabelecer as chamadas “Parcerias Público-Privadas” (PPPs) mediante

a concessão de direito real de uso (CDRU), por um período que pode variar entre 30 e

45 anos. Durante esse período, a gestão do perímetro irrigado ficaria sob a

responsabilidade da empresa e/ou do consórcio vencedor da licitação, com autonomia

para direcionar as atividades agrícolas a serem desenvolvidas, tendo como base a

concepção de “empresa-mãe”, ou seja, uma empresa responsável por fazer a exploração

e a gestão do perímetro irrigado. A área destinada aos lotes familiares também estaria,

nesse modelo de gestão, subordinada à “empresa-mãe”. Como os projetos de irrigação

são em sua totalidade criados pelo Estado, deverão ter ao menos uma parcela mínima de

seus lotes destinada a assimilar parte da população impactada com a desocupação da

terra.

Esse incentivo à irrigação no Semiárido não é neutra porque, segundo Germani

(1993, p. 501), “la decisión de utilizarla, la tecnología adoptada y los resultados están

fuertemente permeados de connotaciones políticas dependiendo de la realidade que se

presenta, donde el papel del Estado ocupa um protagonismo importante.” Os programas

e projetos implantados pelo governo federal não contemplam todos os perímetros

irrigados existentes no Semiárido brasileiro, sendo escolhidos os mais promissores para

receber os investimentos, na perspectiva de se tornarem projetos-modelo para os

demais. Como exemplo de projetos inseridos na proposta do Novo Modelo de Irrigação

para receber financiamento, temos o Projeto Jaíba (MG),o Projeto Salitre (BA) e o

Projeto Acaraú (CE). Esses projetos são selecionados para receber investimentos

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públicos para que sua estrutura técnica e organizacional seja modernizada, tornando-se

atrativos para a iniciativa privada.

Desde a criação dos primeiros projetos de irrigação, na década de 1960, até o

momento atual passaram-se 50 anos, havendo grandes alterações na base de reprodução

do grande capital, no papel do Estado, na divisão territorial do trabalho e na relação

capital-trabalho, ao passo que as políticas e os programas governamentais voltados para

atender à realidade do Semiárido brasileiro têm mantido intacta uma questão histórica e

sem solução ainda hoje, ou seja, a propriedade da terra. A questão agrária não se

configura como um elemento a ser tratado pelas políticas públicas que abrangem a

irrigação, pois, de acordo com a Política Nacional de Irrigação, a criação dos perímetros

irrigados não tem por função fazer reforma agrária. Inicialmente, a preocupação era com

o armazenamento de água que, embora necessário, nunca resolveu a problemática da

seca no Nordeste semiárido, e a validade da “solução hídrica” já foi refutada. Para

Germani (1993, p. 507), acumular água

por si solo, no era una solución para el problema que se presentaba.

Primero porque el problema no era tanto de falta de agua sino

principalmente de la distribución irregular del régimen de lluvias.

Segundo porque la oligarquia sertaneja se aproprio de la construcción

de los azudes, reforzando la estrutura de la tierra del semiárido

nordestino que se caracterizaba por la articulacíon latifúndio-

minifundio-capital mercantil.

Em muitos casos, a construção de açudes intensificou ainda mais o processo de

subjugação dos camponeses em relação aos proprietários das terras, porque o acesso à

água ficava restrito àqueles que se submetiam aos ditames dos “senhores da água”,

como aponta Oliveira (2008, p. 178, grifos do autor):

O Dnocs dedicou-se, sobretudo, à construção de barragens para

represamento de água, para utilização em períodos de seca, e a

construí-las nas propriedades de grandes e médios fazendeiros: não

eram barragens públicas, na maioria dos casos. Serviam, sobretudo,

para sustentação do gado desses fazendeiros, e apenas marginalmente

para a implantação de pequenas ‘culturas de subsistência’ de várzeas,

assim chamadas ribeiras das barragens. O investimento do Dnocs

reforçava, num caso como noutro, a estrutura arcaica: expandia a

pecuária dos grandes e médios fazendeiros, e contribuía para reforçar

a existência do ‘fundo de acumulação’ próprio dessa estrutura,

representado pelas ‘culturas de subsistência’ dos moradores, meeiros,

parceiros e pequenos sitiantes.

Embora criado para atuar em escala nacional, o DNOCS ficou limitado à região

de mais antigo povoamento e de estrutura socioeconômica (acesso limitado à terra e à

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água, associação entre latifúndio-minifúndio, currais eleitorais, algodão-pecuária) sob o

controle dos coronéis, em muitos casos também representantes políticos. Essa estrutura

de poder, arcaica em sua natureza, permitiu que o poder político e econômico dos

coronéis perpetuasse e, em muitos casos, fosse fortalecido porque, como destaca

Oliveira (2008, p. 179), se trata de uma estrutura que favoreceu o “enriquecimento e o

reforço da oligarquia”.

Quando o Estado adota a política de implantação de perímetros irrigados na

década de 1960, as contradições envolvendo o acesso à terra e à água tornam-se ainda

mais acentuadas porque os critérios de elegibilidade62 do irrigante desconsideram

totalmente a realidade local dos camponeses moradores das terras ocupadas pelos

projetos de irrigação. Segundo Germani (1993, p. 534),

la intervención del Estado en la implantación de los proyectos

públicos de regadio implica uma desarticulación de las comunidades

existentes em las áreas expropriadas sin que existia la obligación de

tenerlas em cuenta en los proyectos. Esto trae como consecuencia el

desalojo de um gran número de personas a veces mucho más grande

que el número de personas asentadas em los proyectos, a los que se

añaden los problemas causados por los retrasos en la implantación del

perímetro.

Bursztyn (1984) destacava o fato de que os camponeses expropriados pela

execução de obras para garantir a segurança hídrica no Semiárido não tinham prioridade

no acesso aos lotes, tornando-se, em sua maioria, mão de obra disponível para trabalhar

nas lavouras comerciais. Passados 30 anos, essa visão não foi superada no âmbito da

esfera governamental, embora esta considere que a inserção dos camponeses na

agricultura irrigada, como força de trabalho, já justifica os investimentos feitos na

criação dos projetos de irrigação. Ante o exposto, podemos afirmar que o Novo Modelo

de Irrigação não é tão “novo” assim porque seu intento é reafirmar a importância de

garantir as condições para a reprodução do grande capital nos perímetros irrigados,

mediante o acesso à infraestrutura financiada com recursos públicos pelo setor privado.

Embora essa perspectiva não estivesse explícita no corpo da Política Nacional de

Irrigação, o fato é que, desde a sua implantação, a orientação sempre esteve voltada para

o fomento à agricultura destinada a atender às demandas do mercado.

A criação dos polos agrícolas a partir dos perímetros irrigados acaba atraindo

62 Entre os critérios de elegibilidade dos colonos estão: a) idade – os candidatos não podem ter acima de 45 anos;

b) estado civil - apenas homens casados podem se candidatar; c) número de filhos – ter pelo menos dois filhos;

d) escolaridade – não podem ser analfabetos; e) preparo - os candidatos passam por uma entrevista para

verificar se possuem aptidão para a agricultura empresarial.

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empresas de grande porte, nacionais e multinacionais, além de desencadear

significativas alterações nas técnicas e nos instrumentos utilizados na produção

(máquinas, insumos, tipos de lavouras e exploração dos recursos naturais – terra e

água), acentuando os riscos e os acidentes de trabalho. Por outro lado, há a

reconfiguraçãodas relações de produção entre os camponeses, que passam a utilizar,

mesmo que de forma subalterna, o pacote tecnológico que é a base do

agrohidronegócio, fato que leva muitos ao endividamento, à subordinação e à perda da

terra. Articulada dessa maneira, a Política Nacional de Irrigação gera uma modernização

agrícola com caráter conservador, limitadaà introduçãodo uso de insumos químicos e

mecanização da produção, conservando sem alteração a estrutura anacrônica da

propriedade e das relações sociais.

A Lei nº 12.787, promulgada em janeiro de 2013, trouxe reformulações no

arcabouço legal, institucional, regulatório bem como no sistema de gestão, créditos e

subsídios da Política Nacional de Irrigação, a saber:

I – incentivar a ampliação da área irrigada e o aumento da

produtividade em bases ambientalmente sustentáveis; II – reduzir os

riscos climáticos inerentes à atividade agropecuária, principalmente

nas regiões sujeitas a baixa ou irregular distribuição de chuvas; III –

promover o desenvolvimento local e regional, com prioridade para as

regiões com baixos indicadores sociais e econômicos; IV – concorrer

para o aumento da competitividade do agronegócio brasileiro e

para a geração de emprego e renda; V – contribuir para o

abastecimento do mercado interno de alimentos, de fibras e de energia

renovável, bem como para a geração de excedentes agrícolas para

exportação; VI – capacitar recursos humanos e fomentar a geração e

transferência de tecnologias relacionadas a irrigação; VII – incentivar

projetos privados de irrigação, conforme definição em

regulamento. (BRASIL, 2013. Grifos nossos).

Outrossim, nesse mesmo contexto, foi criada a Secretaria Nacional de Irrigação

(SENIR), que tem entre as diretrizes estabelecidas pelo art. 19º do decreto nº

8.161/2013, “promover os negócios da agricultura irrigada” e “promover a

implementação de projetos de irrigação e drenagem agrícola”. Ou seja, o propósito da

política de irrigação atual é respaldar as ações de expansão do agrohidronegócio em

áreas com restrições tanto do ponto de vista ambiental (disponibilidade hídrica) quando

econômico (oferta de infraestrutura). Faz-se necessário destacar o papel do Estado ante

a seara de discursos usados para justificar os investimentos públicos em novos projetos

de irrigação bem como na revitalização de muitos outros. Pontes et al. (2013, p. 3214)

afirmam que as

políticas agrícolas no semiárido brasileiro, desde os anos 1960, vêm

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acompanhadas da implantação dos perímetros irrigados como

estratégia geopolítica de expansão seletiva da fronteira agrícola, na

perspectiva da indução do desenvolvimento. Os perímetros irrigados

são áreas delimitadas pelo Estado para implantação de projetos

públicos de agricultura irrigada que, em geral, possuem significativo

potencial agricultável, caracterizado pelos solos férteis, presença

hídrica, clima favorável e abundante força de trabalho. Estes

elementos conjugados às infraestruturas implementadas (canais,

piscinas etc.) favorecem ampla produtividade agrícola. Tal estratégia

é, agora, retomada pelo governo com grande ênfase e, certamente,

vem ao encontro deste capital transnacional que aqui se instala para

produzir commodities agrícolas, a partir de terra, água e mão de obra,

facilidades de infraestrutura e de financiamento, além de condições

políticas e institucionais favoráveis.

Segundo as estimativas, até 2015 serão investidos R$6,9 bilhões na construção e

na revitalização de perímetros irrigados, visando à ampliação da área abrangida pelos

perímetros já existentes em 193.137 ha e a instalação de 200.000 ha em novos

perímetros. A perspectiva é aumentar em 100% a gestão privada das áreas irrigadas,

com ênfase nas parcerias público-privadas (PONTES et al., 2013).

A geografia histórica dos programas e projetos voltados à questão hídrica no

Semiárido revela a existência de nexos entre o Estado, o capital e as elites agrárias

regionais, cujas forças sociais impõem aos camponeses e às populações tradicionais

diversos obstáculos à sua permanência em seus lugares de morada e à reprodução de

suas práticas. A despossessão dos direitos territoriais em nome do progresso e do

desenvolvimento revela como as relações são desiguais e combinadas na produção

desses novos espaços, completamente dependentes e subordinados aos interesses do

capital. Ao analisar os efeitos da implantação dos projetos de irrigação, Germani (1993,

p. 537) destaca que antes,

en el espacio de la roza, el trabajo tenía como sentido garantizar los

médios necessários a la supervivência del grupo doméstico. Ahora, la

producción em el área de regadio cambia la óptica y el trabajo passa

de estar limitado en la manutención del grupo familiar para a la

realización de um saldo elevado de produto-renta, del cual dependerá

su permanência, o no en el proyecto. De esta manera, el trabajo queda

marcado por una dependência total al mercado y del control de las

instituciones responsables de inversiones.

A fetichização acerca da implantação de perímetros irrigados, envolta no manto

da “modernização conservadora” da agricultura no Semiárido, tem um forte

componente de classe em que a tecnologia é utilizada para embasar as críticas à

produção camponesa – tida como insuficiente e superada – bem como à desvalorização

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do trabalho na/com a terra, como meio de reprodução, para torná-lo meramente produtor

de mercadorias, viabilizando a extração de mais-valia. Como ressalta Marx (2009, p.

578), só é “[...] produtivo o trabalhador que produz mais-valia para o capitalista,

servindo assim à auto-expansão do capital”. Acreditamos ser impossível analisar as

políticas públicas implantadas com o escopo de planejamento/desenvolvimento

regional, com base na problemática das secas, sem considerar a dialética da oposição

entre camponeses versus latifundiários, sendo estes últimos resquícios da estrutura

produtiva do “Nordeste” algodoeiro-pecuário (OLIVEIRA, 2008, p. 176), agora

metamorfoseado em agrohidronegócio, continuando, porém a atrair e a cooptar os

investimentos feitos pelo Estado em benefício próprio. De fato, o capital não se mantém

sem a interferência do Estado, sendo este responsável por instrumentalizar o espaço

para viabilizar a reprodução ampliada bem como preservar seu sistema orientado para a

expansão e acumulação, que é em sua essência “irreformável e incontrolável”

(MÉSZÁROS, 2007, p. 58).

Ao contrário daquilo que apregoam os discursos inflados acerca do

desenvolvimento local/regional/sustentável, essas políticas públicas (programas e

projetos) exercem um importante papel para o sistema sociometabólico do capital, por

meio da introdução de corretivos parciais e mecanismos de controle social, no campo e

na cidade, utilizando forças desiguais para manter a “ordem estabelecida”. O Novo

Modelo de Irrigação é, em sua essência, o resultado inexorável do imperativo das

intervenções radicais do Estado em zonas especiais de desenvolvimento econômico,

com favorecimento dos governos estaduais à expansão do grande capital em sua busca

pelo controle sobre a terra, a água e o trabalho, mediante o estabelecimento de relações

de poder iníquas. Dada a importância que o controle da terra e da água tem para a

expansão do grande capital no campo, Thomaz Junior (2011a, p. 313) chama atenção

para o seguinte aspecto:

A evidente vinculação entre a expansão das áreas de plantio das

commodities com a disponibilização dos recursos terra e água tem sido

imprescindível para as estratégias do capital. Assim, a posse da terra e

da água nos remete a refletir o papel do Estado no empoderamento do

capital e seus efeitos, no quadro social da exclusão, da fome e da

emergência da reforma agrária e da soberania alimentar. É dessa

complexa e articulada malha de relações que estamos focando esse

processo, no âmbito do agrohidronegócio, por onde nos propomos

entender os desafios para a sociedade, para os moradores das cidades e

dos campos, ou seja, a dinâmica geográfica da reprodução do capital

no século XXI e os cenários que põem, para os trabalhadores.

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As determinações destrutivas do capital sobre o campo causam a despossessão, a

subordinação, a proletarização e a precarização das relações de trabalho e da própria

existência humana, porque submetem as populações ao fetichismo do espaço-

mercadoria, formatado sob a perspectiva irracional do desenvolvimento (in)sustentável.

Essa irracionalidade sistêmica, embora pareça contraditória para o próprio sistema

sociometabólico do capital, é, na verdade, responsável por sua perpetuação, mediante a

interiorização e consolidação do ideário do capital, envolvendo, inclusive, a “[...]

expropriação do savoir faire do trabalho” (ANTUNES, 2001, p. 190). Irracionalidade,

irreformabilidade e incontrolabilidade são características próprias do sistema do capital,

conforme destaca Mészáros (2007), pois, para viabilizar sua reprodução, este promove

uma revolução nas forças produtivas, ao passo que sustenta relações hegemônicas e

antagônicas para continuar edificando seu processo sociometabólico. O incremento

tecnológico verificado no campo no Semiárido, via projetos de irrigação, tem provocado

alterações nos valores da produção societal, passando de valor de uso para valor de

troca, submetendo os camponeses a situações de alienação e estranhamento.

Na realidade, os projetos desenvolvimentistas pautados na disseminação das

grandes obras de segurança hídrica pressupõem um reducionismo da irrigação como

fábula, consagrada no discurso único fundamentado na produção de imagens e no

imaginário de superação da miséria e da pobreza dos camponeses caatingueiros

provocadas pela seca. Todo o aparato ideológico e político que sustenta as ações de

criação dos programas e projetos voltados para o incentivo da irrigação no Nordeste

semiárido busca, maciçamente, disseminar a ideia de que essa alternativa seja a

condição elementar para a melhoria nas condições de vida desses moradores e para o

aumento da oferta de empregos.

A uniformidade entre o Estado e os agentes do capital (empreiteiras,

latifundiários, empresas do setor alimentício e de implementos agrícolas – máquimas,

insumos e agrotóxicos) fica evidente no culto aos projetos de irrigação para atender a

interesses externos. A perversidade sistêmica inerente a tal proposta tem relação com os

redesenhos espaciais e a reorganização do território para atender às demandas do capital

em sua reestruturação produtiva, camuflando, por outro lado, as mazelas sociais criadas

em decorrência do avanço do processo de globalização (dos costumes, da agricultura, da

alimentação, da economia, etc.) e do sucumbimento de práticas socioculturais centradas

nas relações não capitalistas de produção. Outras possibilidades são, todavia,

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descartadas, sem que estas sejam debatidas ou que os sujeitos envolvidos sejam

consultados sobre quais as suas competências, suas demandas e particularidades.

Primeiro, criam-se os programas e projetos direcionados para a agricultura irrigada,

pautada nos moldes empresariais, para depois informar aos camponeses diretamente

impactados a sua incapacidade de atender aos requisitos necessários para terem acesso

aos possíveis benefícios proporcionados pelos programas e projetos criados. Outras

possibilidades devem ser pensadas para a região semiárida nordestina, de modo a

romper com a lógica sistêmica, perpetuadora de mazelas sociais, pautada na produção

de riquezas através da agricultura irrigada e a viabilizar a supressão da pobreza

mediante o favorecimento de atividades pautadas no trabalho familiar e na distribuição

da terra e da água, como importantes alterações para superar a privatização dos projetos

de irrigação implantados com recursos públicos.

2.3 O Programa Estadual de Bioenergia - BAHIABIO: (des)construção de

consensos

O discurso do desenvolvimento sustentável ganhou força no contexto da crise

ambiental criando uma forte demanda por fontes alternativas de energia. Ao tratar dos

sentidos e significados intrínsecos à discussão sobre a agrocombustíveis, Moreira

(2007b, p. 44) destaca que o assunto deve ser entendido na perspectiva do “biopoder e o

bioespaço”, sem desconsiderar o seu viés geopolítico, visto que a expansão da produção

dos chamados combustíveis limpos e renováveis ocorre, inclusive, sob a forma de

commodities, havendo para tal propósito a necessidade de reestruturar as formas de

organização da agricultura. Por outro lado, acaba por reforçar a hegemonia do capital

porque organiza as relações sociais e de produção a partir da perspectiva do grande

capital, desestruturando relações não capitalistas de produção, como verificamos com a

atual proposta do governo baiano em seu Programa BAHIABIO, ao fomentar a

produção de matéria-prima para os agrocombustíveis em áreas tradicionalmente

ocupadas com lavouras para o sustento das famílias.

Nesse cenário, em que o Estado e as elites agrárias incorporam e disseminam o

discurso ufanista de que o Brasil deve assumir a responsabilidade por liderar a transição

da hegemonia do petróleo para os agrocombustíveis, tem-se a elaboração de novos

fundamentos para justificar o paradigma produtivo, recorrendo ao discurso

ambientalista para respaldar as mediações do capital em seu processo expansionista.

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Essa realidade, acrescida das características hidrológicas, tem constituído um fator

delimitador dos espaços a serem reconstruídos e reelaborados, para atender às demandas

internas e externas em relação a determinados produtos, com destaque,no caso

brasileiro, para a produção de açúcar, café, carne de frango, suco de laranja e etanol.

Especificamente no tocante à região Nordeste, a fruticultura irrigada representa o

“carro-chefe” da política agrário-agrícola das áreas semiáridas, fortemente marcadas

pela expansão dos perímetros irrigados e pela inserção dos agricultores camponeses nos

projetos arquitetadose implantados hierarquicamente, sem que haja discussão,nas

comunidades atingidas,acerca de qual modelo de desenvolvimento se adéqua à realidade

local. Ao optar pelo modelo de desenvolvimento para o Semiárido pautado na

agricultura monocultora e grande consumidora de água, diversos são os

desdobramentos, pois, além de reduzir as reservas desse recurso, tanto no que se refere

às águas superficiais quanto subterrâneas, há ainda outro aspecto igualmente

preocupante que é a contaminação por agrotóxicos, pois sabe-se que a monocultura está

baseada na utilização intensiva de insumos químicos. Ademais, para Marinho et al.

(2011, p. 273-4), esse contexto

gera um tensionamento por mudanças socioespaciais que se

materializam em transformações no modo de vida, nas relações de

trabalho e no modo de lidar com a terra. Somam-se ainda as

fragilidades das políticas públicas direcionadas ao homem do campo,

que privilegiam o cambate às secas ao invés de promover a

convivência com o semiárido. O resultado desse processo é o

“surgimento” de um novo personagem no meio rural: o trabalhador do

agronegócio.

Há uma harmonização das políticas públicas pautadas nos princípios neoliberais,

associadas às políticas reguladoras do Estado, materializadas e entrelaçadas no espaço,

com vista ao favorecimento dos “projetos de desenvolvimento eco-destrutivos63”

(LEFF, 2009, p. 188). A Bahia, importante propulsora do agrohidronegócio no contexto

nordestino, passa por rearranjos no âmbito da política governamental, com vistas à

adequação da realidade regional, baseada na produção de commodities agrícolas (café,

soja e fruticultura em ascensão), ao processo produtivo atualmente centrado no fomento

aos agrocombustíveis, atendendo ao chamado do desenvolvimento sustentável para a

produção de “energia limpa”. Nesse contexto, o governo do estado da Bahia lançou, em

63 Leff, 2009, p. 188 define como projetos de desenvolvimento eco-destrutivos as hidroelétricas, a expansão da

fronteira agrícola, a pecuária nos trópicos úmidos, a revolução verde e os cultivos transgênicos.

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2008, o Programa Estadual de Bioenergia, BAHIABIO64, com o intuito de tornar a

Bahia autossuficiente na produção de energia, sem alterar a produção de alimentos. O

propósito do programa é transformar a Bahia pioneira no tocante à “substituição de

energia de origem fóssil pela renovável, pois possui condições climáticas para a

produção da maioria das oleaginosas para o biodiesel e a cana-de-açúcar para etanol,

bem como área disponível para incremento na produção dessas matérias-primas

(BAHIABIO, 2008, p. 7)”. Exemplificando essa questão, Fabrini (2010, p. 77) destaca

que

[...] a produção de biodiesel se realiza no PNPB (Programa Nacional

de Produção e Uso de Biodiesel) e conta com importante participação

estatal na sua realização. Governos estaduais também têm feito a

gestão e investimentos para a produção de biodiesel na pequena

agricultura.

A implementação desse programa tem como horizonte a incorporação de

aproximadamente 2 milhões de hectares à produção de agrocombustíveis, expandindo a

área agrícola pelos três domínios ecológicos (Semiárido, Cerrado e Mata Atlântica),

incorporando várias bacias hidrográficas com potencial para outorga de água para

irrigação (São Francisco, Rio de Contas, Corrente, Paraguaçu, Prado e Jequitinhonha).

Ressalte-se que algumas dessas bacias já se encontram bastante degradadas, por conta

da superexploração dos recursos hídricos devido ao seu uso intensivo para atender às

demandas de água para irrigação.Entre estas, destacam-se as bacias do rio São Francisco

e do Rio Corrente, sendo a primeira voltada para a fruticultura irrigada e a segunda para

a produção de soja, no oeste baiano.

Esse cenário desenvolvimentista traz à tona a necessidade de discutir e/ou

problematizar qual o papel do campesinato no contexto da produção de

agrocombustíveis, visto que a proposta do Programa BAHIABIO acoplar a agricultura

de base familiar aos interesses agroindustriais do setor de agroenergia, como se

estivéssemos tratando de sujeitos iguais num contexto de relações horizontalizadas,

expressas a partir da perspectiva do “agronegócio familiar”. Cabe destacar que os

agrocombustíveis estão associados à “produção em cadeia e mercados globais

monopolizados por corporações nacionais e estrangeiras” (FABRINI, 2010, p. 81) e,

nesse universo, detectam-se fortes contradições na proposta implementada pelo Estado

64 Esse programa tem como objetivo “incentivar e desenvolver a produção de bioenergia na Bahia, visando

atender às demandas dos mercados interno e externo, através de dois subprogramas: Etanol e Biodiesel, sendo

que os resíduos originados por esses subprogramas também serão computados e adicionados, através da

Cogeração de Energia e Crédito Internacional de Carbono, entretanto, parte será destinada para Biomassa para

fertilização (adubo orgânico) e arraçoamento animal.” (BAHIABIO, 2008, p. 8).

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que, ao perspectivar o uso do território camponês a serviço do mercado de

agrocombustíveis, coloca em risco os componentes territoriais (simbólicos e materiais)

que foram construídos historicamente e que se expressam sob a forma de saberes e

práticas camponeses – uso de sementes crioulas, uso da terra e da água, relações

solidárias e produção para o autoconsumo, entre tantos outros –, como materialidade de

uma lógica diferenciada da produção capitalista fundamentada na produção de

mercadorias e no valor de troca. A terra e o território, trunfos para os camponeses

caatingueiros, acabam sendo incorporados sob a perspectiva dos agrocombustíveis,

sofrendo metamorfoses em seus componentes político, cultural e econômico, trazendo à

tona as contradições do projeto brasileiro de produção de agrocombustíveis, do qual o

Programa BAHIABIO é uma célula.

A expansão e a consolidação desse modelo de desenvolvimento agropecuário

para as terras não contempladas com projetos de irrigação no Semiárido baiano devem

ser analisadas a partir de seu componente político, pois representam a estratégia,

adotada pelo capital e pelo Estado, de extrair renda da terra nos territórios camponeses,

sem que haja expropriação das terras (sejam elas tituladas ou não) e de exercer controle

sobre o trabalho, cujos produtos passam a ser apropriados pelo segmento dos

agrocombustíveis em detrimento da produção de alimentos. Assim novas fronteiras de

acumulação vão sendo delimitadas com o propósito de inserção dos lugares na lógica do

capitalismo globalizado, tendo como desdobramentos dois processos extremamente

danosos para os sujeitos que vivem nas terras semiáridas: primeiro, desafia a identidade

da autonomia camponesa e, segundo, extrai de forma avassaladora os recursos

territoriais mediante a modernização das forças produtivas, cujo processo é altamente

espoliativo das populações tradicionais que historicamente ocuparam esses rincões do

Semiárido baiano. Em nossa compreensão, a execução do Programa BAHIABIO nada

mais é que a dilatação da fronteira agrícola no Semiárido, como estratégia para extração

de renda mediante a transferência de recursos entre as regiões brasileiras, aproveitando

assim da mão de obra barata, dos investimentos públicos e da manutenção das arcaicas

estruturas fundiária e de poder que, ainda hoje, permanecem marcantes no Nordeste

semiárido. Nesse sentido, concordamos com Brandão (2010, p. 67), quando o autor

destaca que o Brasil

forjou economias urbano-regionais e rurais de natureza bastante

complexa, submetidas a estruturas políticas arcaicas de um pacto de

dominação, que soldou um contrato social produtor de diversas

expressões de desigualdades e gerador de intoleráveis privações

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materiais, atém de sufocar a reprodução ampliada de forças produtivas

avançadas.

No período de 1996 a 2006, a área dos estabelecimentos agropecuários manteve-

se estável, ao passo que a área ocupada pelas lavouras temporárias e permanentes

ganhou um aumento acima de 50% (Quadro 6). Esse crescimento na área ocupada pelas

lavouras permanentes e temporárias representa um ponto nodal para a implantação do

Programa BAHIABIO, mediante a incorporação da agricultura camponesa à produção

de matéria-prima para o mercado dos agrocombustíveis.

Quadro 6 - Área dos estabelecimentos agropecuários por utilização das terras na Bahia,

1996/2006

Utilização de terras Área dos estabelecimentos

agropecuários (ha) Área dos estabelecimentos

agropecuários (%) 1996 2006 1996 2006

Total 29.842.900 29.767.590 100 100

Lavouras permanentes 1.348.743 2.646.271 4,52 8,47

Lavouras temporárias 2.698.49 3.665.970 9,4 13,26

Áreas em descanso ou

produtivas não

utilizadas

2.984.290 2.016.815 10 6,77

Pastagens 14.489.768 12.901.698 48,55 46,66

Matas e florestas 7.136.561 9.301.335 23,91 33,64

Fonte: BAHIABIO, 2008.

Org.: DOURADO, J. A. L., 2013.

Ainda com base nas informações do Quadro 6, detecta-se um jogo de

representações, por parte do Estado, na busca do dessubstanciamento do camponês

caatingueiro de seu ser, para reduzi-lo à pura força de trabalho, quando da sua

incorporação ao sistema de produção de matéria-prima para a produção de

agrocombustíveis. Há uma apropriação da natureza e uma captura dos sujeitos, quando

os camponeses são coisificados, num duplo processo de superexploração – tanto dos

recursos naturais (terra e água) quanto da força de trabalho –, que, regido pelos ditames

do mercado dos agrocombustíveis, passa a ser determinado por fatores externos e

definido por agentes hegemônicos. Terra, água e força de trabalho assumem valores

intercambiáveis no contexto da racionalidade econômica, devido à procura de novos

setores de investimentos, capazes de satisfazer às demandas expansionistas do capital.

Sobre a produção de agrocombustíveis pelo campesinato, Fabrini (2010, p. 75) coloca a

seguinte contradição:

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[...] se de um lado, o agrocombustível produzido pelo agronegócio

apresenta um conjunto de limites e prejuízos sociais, [...] movimentos

camponeses, sindicatos de trabalhadores rurais e agricultores

familiares têm demonstrado simpatia à agroenergia, principalmente o

biodiesel, quando praticado pelos pequenos agricultores.

Apresentando uma concepção diferenciada de produção de

agrocombustível do agronegócio, entidades e movimentos entendem

que os pequenos agricultores devem participar do projeto dos

agrocombustíveis. Portanto, não são necessariamente contra a

produção de agrocombustível, mas contra produção hegemonizada

pelos setores dominantes no campo ligados ao agronegócio.

A proposta da implantação do Programa BAHIABIO é promover a expansão do

agronegócio a partir da integração da agricultura empresarial à agricultura camponesa e

essa incorporação dos territórios camponeses à lógica do agrohidronegócio tem como

horizonte as áreas de produção de alimentos, que passariam a fornecer matéria-prima

para a produção de etanol e biodiesel. Vê-se que, no contexto do Programa BAHIABIO,

os camponeses são reduzidos à carapaça do capital esuas realidades e demandas são

ultrajadas em nome de um “[...] sistema de controle reprodutivo social fetichista e

alienante, que subordina absolutamente tudo ao imperativo da acumulação de capital

(MÉSZÁROS, 2007, p. 41)”, camuflado no/pelo discurso da energia limpa e renovável.

Os atuais projetos desenvolvimentistas em curso no Nordeste brasileiro têm

buscado mistificar ideologicamente a premissa de que as parcerias público-privadas

(PPP) são a alternativa mais viável para a superação das desigualdades sociais e

econômicas regionais. A Petrobrás, segundo informações da coordenação regional da

CODEVASF na região de Irecê, já manifestou interesse em firmar parceria para fazer a

gestão do projeto de irrigação Baixio de Irecê.

Surge, nesse contexto, um círculo vicioso de relações de dominação e

subordinação, pois a agricultura praticada pelas famílias camponesas do Semiárido

passa a ser mediada pela lógica perversa do capital, sujeita a regras e regulações do

mercado as quais acabam por redefinir os processos e as dinâmicas locais, ficando os

camponeses cada vez mais dependentes dos agentes dominantes do setor dos

agrocombustíveis. Nesse diapasão, há um esforço do capital em empreender processos

de sobreposição das “mediações de primeira ordem”65que caracterizam as práticas

socioculturais locais a um conjunto alienante de “mediações de segunda ordem”66,

subvertendo assim a interação entre os camponeses caatingueiros com o Semiárido.

65 Cf. Mészáros, 2007, p. 40. 66 Cf. Mészáros, 2007, p. 41.

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Sobre essas mediações, Mészáros (2007, p. 41) destaca que, se

compararmos as mediações de primeira ordem com as bem

conhecidas determinações estruturais hierárquicas das mediações de

segunda ordem do capital, percebemos que tudo se altera com o

surgimento do capitalismo de modo quase irreconhecível. Pois todas

as demandas mediadoras primárias devem ser modificadas de modo a

adequar-se às necessidades auto-expansivas de um sistema de controle

reprodutivo social fetichista e alienante, que subordina absolutamente

tudo ao imperativo da acumulação do capital.

Embora afirmem que a implantação do Programa BAHIABIO não afetará a

produção de alimentos, é necessário destacar que as práticas tendenciosas formuladas ao

longo do último século, com o intuito de promover a superação das desigualdades

sociais do Nordeste semiárido, revelam as crescentes escassezes associadas, cuja criação

serve unilateralmente a um conjunto de imperativos visando à manutenção das relações

de dominação bem como à reprodução do sistema sociometabólico do capital. De

acordo com o Programa BAHIABIO (2008, p. 10), a Bahia possui

uma superfície de 565.000 km², com amplas possibilidades de

produção de cana-de-açúcar em condições de sequeiro, bem como

irrigada, para se tornar um importante pólo de produção de etanol.

Para a produção em condições de sequeiro o Estado da Bahia dispõe

de uma área superior a 300 mil hectares, localizada na região do

Extremo Sul que, também, conta com infra-estrutura de portos e de

aeroportos internacionais, malha rodoviária que percorre toda a região

e uma boa oferta de energia elétrica e de telecomunicações. A

disponibilidade de solo e de clima favorável da região tem

possibilitado a obtenção de produtividade média de colmo de 85 t/ha.

As metas para o Programa BAHIABIO (Quadro 7) são audaciosas, pois buscam

a incorporação da agricultura camponesa para possibilitar a extração de valor, de mais-

valia, sem que haja a despossessão, muito embora as famílias camponesas fiquem

sujeitas à subjugação/desrealização, haja vista que a produção focada prioritariamente

na produção de alimentos básicos parece estar atrelada aos interesses do grande capital,

visto que o processamento da matéria-prima produzida pelo campesinato será feita pelo

capital agroindustrial/agroenergético.

Quadro 7 - Metas do Programa BAHIABIO

Etanol 6,2 milhões de m³

Biodiesel 1,23 milhão m³

Cogeração de energia 3.672,69 GW

Crédito internacional de carbono 4,54 milhões de toneladas

Fonte: SEAGRI/SPA, 2008.

Org.: DOURADO, J. A. L., 2013.

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A produção de matéria-prima para o etanol67 foi planejada a partir da instalação

de três polos canavieiros na Bahia: Recôncavo, Vale do São Francisco e Extremo

Sul(Mapa 5). A incorporação de terras semiáridas para a produção de agrocombustíveis

coloca em risco a produção de alimentos pela agricultura camponesa, que passaria a

produzir oleaginosas (mamona, pinhão manso, amendoim, entre outros), num processo

de subordinação às corporações responsáveis pelo processo da matéria-prima.

67 O Programa BAHIABIO estabeleceu metas a serem alcançadas, não havendo, todavia, um prazo para serem

atingidas.

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Em virtude da localização na região semiárida do estado, a produção canavieira

no vale do São Francisco seráatravés de irrigação com água desse rio, por exigência

climática (Quadro 8). Ressalte-se que esse polo abrangerá os municípios do Médio e

Submédio São Francisco, região onde há a forte presença do agronegócio, desenvolvido

nas áreas dos projetos públicos de irrigação. Segundo dados do Programa BAHIABIO

(2008, p. 11) a bacia do rio São Francisco possui um “[...]considerável potencial para

produção de cana-de-açúcar nos Projetos de Irrigação Salitre, Baixio de Irecê, Corrente

e Médio São Francisco (Muquém, Igarité/Barra, Mocambo/Cuscuzeiro e Santa Maria da

Vitória), todos em implantação ou em fase de estudo”.

Quadro 8 - Metas de Produção de Etanol nos Polos da Bahia68

Polo Área propícia ao cultivo de cana-de-

açúcar (ha) Meta de Produção (mil m²)

Extremo Sul 300.000 2.167

Baixio do Irecê 40.000 340

Salitre 20.000 170

Médio São Francisco 60.000 510

Corrente 30.000 255

Cerrados do Oeste 210.000 1.785

Sudoeste 60.000 510

Canal do Sertão 60.000 510

Total 780.000 6.247

Fonte: SEAGRI/EBDA, 2007.

Org.: DOURADO, J. A. L., 2013.

Buscando atender às demandas internacionais de biodiesel, principalmente da

Europa, Ásia e Estados Unidos da América (EUA), há uma articulação, na esfera

governamental,com vistas a viabilizar o direcionamento das atividades no campo, de

modo a criar as condições necessárias à reprodução do grande capital. A PAC europeia

tem contribuído para esse avanço da produção de commoditiesagrícolas, sobretudo, da

produção de grãos (os chamados feed-grains)para a ração animal e da produção de

etanol (cana-de-açúcar e oleaginosas). Essas estratégias para “desenvolver” a região

semiárida colocam, como elemento fundante, a incorporação dos camponeses à lógica

do mercado externo da produção de agrocombustíveis, gerando despossessão, miséria e

subordinação, além da precarização das relações de trabalho, pois os camponeses

transformam-se em trabalhadores para o capital. Nesse contexto, as relações de trabalho

no campo passam a ser mediadas pelo mercado externo, sem haver alterações na

68 Considerando uma produtividade média de 100 t/ha para as áreas irrigadas e 85 t/ ha para as áreas de sequeiro

e uma produção de 85 litros de álcool por tonelada de cana.

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estrutura fundiária e sem muitas alterações no tocante à utilização de máquinas: um

exército de reserva de lugares e de trabalhadores tem sido convocado a contribuir para

efetivar a reprodução ampliada do capital.

No tocante à produção de biodiesel (Mapa 6), as áreas a serem incorporadas

sobrepõem, em alguns casos, os projetos de irrigação e, em outras situações,abrangem

terras historicamente ocupadas por populações tradicionais (fundos de pasto,

quilombolas, ribeirinhos), fato que traz uma série de desdobramentos em função da

reorganização produtiva do território, mediante lógicas externas às práticas

socioculturais locais.

Destaque-se que a agricultura camponesa se insere na produção de

agrocombustíveis por meio das lavouras de mamona, pinhão manso e dendê,

principalmente (Quadro 9). Esse ajuste espacial nada mais é que uma alternativa

encontrada pelo sistema sociometabólico do capital para garantir os níveis de

acumulação, tendo como resultado a especulação fundiária, a exploração de renda da

terra, fazendo uso, inclusive, de relações não capitalistas de produção, inerentes ao

modus vivendi do campesinato. Observa-se que esse fenômeno traz em seu bojo a

dualidade contraditória expressa pelo “moderno”, ou seja, a produção de energia limpa e

pelo “arcaico”, materializado nas relações não capitalistas de produção. Do prisma do

agronegócio, isso representa uma oportunidade para expandir seus domínios e superar

as clivagens espaciais e os obstáculos à realização do processo de acumulação.

Contraditoriamente, para a agricultura camponesa, esse modelo desenvolvimentista traz

riscos à soberania alimentar, à produção de alimentos voltada para os ciclos curtos, bem

como à sinergia entre o campo e a cidade, pelo fato de desencadear rupturas e

fragmentações mediante o estabelecimento de padrões de produção que desconsideram

as demandas locais. Podemos tomar como exemplo muitos perímetros irrigados

implantados no Semiárido nordestino, pelo fato destes terem uma produção mais

direcionada aos mercados europeu e estadunidense que ao mercado local/regional.

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Quadro 9 - Projeção de Cultivo de Oleaginosas na Bahia para o ano de 2012

Oleaginosa Área a ser cultivada (mil ha) *

Algodão 580

Mamona 290

Amendoim 17

Girassol 60

Pinhão Manso** 60

Dendê*** 120

Soja 850

Total 1.237 Fonte: SEAGRI/SPA, 2007.

Org.: DOURADO, J. A. L., 2013.

*Área do Sudoeste e do Oeste somadas.

**Representando também outras oleaginosas inovadoras, como Crambe,

Moringa e Licuri.

***A partir de 2014.

Estas ações fazem parte da estratégia adotada pelo Estado para fomentar o que se

entende por desenvolvimento territorial rural e para delegar a responsabilidade de

superação da pobreza no campo, sem que haja, por parte dos sujeitos atingidos

diretamente por tais políticas,envolvimento na construção de mecanismos efetivos de

participação social. Tais programas implantados pelo Estado para atender às demandas

do sistema sociometabólico do capital consideram o território fundamental para que seja

possível desenvolver economicamente o Nordeste semiárido. Essa vem constituindo-se

uma característica não apenas da região Nordeste brasileira mas da América Latina

como um todo, porque serve como paradigma instrumentalizador e direcionador do

pensar o território e do agir no território.

Embora procurem considerar as particularidades físicas e econômicas locais, as

políticas de desenvolvimento territorial rural implantadas no Semiárido fazem uma

abordagem enviesada do território como um corpus categorial norteador de medidas,

sem considerar seu caráter conflituoso. Para Montenegro Gómez (2008, p. 252-3), a

proposta de desenvolvimento territorial atual concebe o território como

territorio de la cooperación, la solidariedad y la articulación de

intereses. El territorio del consenso emerge, de esta forma, como

figura privilegiada para pensar soluciones para el medio rural

latinoamericano, como si ese consenso fuese neutro, como si los

intereses y dominaciones atávicas y recientes, de repente,

desapareciesen.

Aspectos sociais, culturais e simbólicos são deixados num segundo plano,

devido à abordagem economicista feita no âmbito do ordenamento territorial. Quando

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considerados, tais elementos são reconfigurados de modo a atender à proposta de

desenvolvimento pautado numa perspectiva hegemônica de reprodução do capital,

havendo, pois, um forjamento do consenso acerca daquilo que seria o moderno e o

progresso. Isso fica evidente quando as particularidades locais são utilizadas como

atrativo para a criação de nichos de mercado, como é o caso da organização da produção

em pequena e média escalas, baseadas em produtos cujo atrativo para a sua

comercialização é a identidade territorial. Analisando os limites do consenso forjado no

conteúdo das políticas de desenvolvimento territorial, Montenegro Gómez (2008, p.

270) ressalta que

Bajo la apariencia de um consenso que se propone mejorar la

situación de la sociedad en su conjunto a través del desarrollo, lo que

tenemos es una imposición de la lógica capitalista que refuerza la

dominación y la expropriación de la mayoría de la sociedad, y,

paralelamente, un ataque feroz contra aquellos que no aceptan ese

consenso reificado, aquellos que están en el lado “malo”, aquellos que

no quieren hacer parte de la sociedad tal como es, en fin, aquellos que

luchan y resisten por formas sociales justas e igualitarias.

Ainda sobre o desenvolvimento territorial pensado a partir das políticas públicas

caracterizadas pela defesa da expansão do capitalismo no campo e da demanda que isso

gera acerca da criação de consensos, Germani (2010, p. 296) se soma a Montenegro

Gómez (2008) ao afirmar que o

Estado cria as representações no imaginário social necessárias ao

estabelecimento do consenso desejado à eficácia institucional na

gestão espacial, dentre as quais se destaca a construção ideológica de

uma identidade territorial de “pertencimento” entre os diversos grupos

sociais, sendo desconsideradas as contradições espaciais que se

evidenciam estruturalmente no modo de produção capitalista.

Não se pode perder de vista o fato destas políticas afetarem diretamente as

relações de trabalho no campo, porque interferem na identidade laboral dos camponeses

a partir do momento em que o trabalho na terra passa a ser regido por outras lógicas,

alheias aos modos de vida locais, ocasionando desencaixes nos territórios. Os territórios

são os mesmos e são outros, num contraditório movimento de negação-afirmação

verificado no contexto dos projetos desenvolvimentistas em curso no Semiárido baiano,

onde os camponeses caatingueiros “[...] desaparecem, não de todos os lugares, mas

daqueles onde a chegada dos recursos ‘de fora’ impede a existência de seres tão ‘de

dentro’ (BRANDÃO, 2009, p. 91, grifos do autor)”. As comunidades camponesas

(agropastoris e extrativistas) localizadas na região do Médio e Submédio São Francisco

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têm sofrido interferências em seu cotidiano devido às instabilidades decorrentes dos

diversos projetos desenvolvimentistas em curso, como é o caso do Projeto Baixio de

Irecê, e à implantação de parques eólicos, à extração de minérios e construção de

infraestrutura (rodovias e ferrovias) para viabilizar o acesso à produção e o seu

escoamento até os mercados consumidores, ou mesmo até os locais de transbordo onde

os produtos são embarcados para o mercado externo.

A produção e reprodução das diversas comunidades camponesas (agropastoris e

extrativistas), muitas delas tradicionais de Fundo de Pasto, ficam ameaçadas porque os

sujeitos que as compõem não têm lugar no atual modelo de organização do espaço

agrário regional. As comunidades camponesas transformaram-se em verdadeiros

obstáculos ao desenvolvimento do capital no Semiárido baiano, em virtude da

resistência que elas têm colocado às políticas de modernização do território a serviço do

grande capital.

A lógica social dos territórios sofre metamorfoses em virtude do “envolvimento

estranhado e manipulado69”, forjado pelas políticas desenvolvidas do Estado em

consonância com os interesses do capital, no momento em que aquele estabelece o que e

como será cultivado, rompendo assim com tradições seculares de práticas de trabalho na

terra. Nesse contexto, faz-se necessário analisar cuidadosamente asintencionalidades do

Programa BAHIABIO, pois acreditamos que ele exerce um papel desagregador das

identidades territoriais além de ocultar uma relação antagônica entre o campesinato e o

agrohidronegócio. Esse conflito político-ideológico fica evidente quando há um esforço

para encobrir os processos desterritorializantes-desagregadores geradospelas

interferências decorrentes da execução de um projeto da magnitude do Programa

BAHIABIO, cuja abrangência e cujo montante de recursos alocados revelam um intenso

processo de incorporação de novas áreas à lógica expansionista do grande capital. Esse

fato traz à tona uma “[...] difusão geográfica das relações de mercado capitalista e sua

expansão a novos âmbitos de reprodução social” (TEUBAL, 2008, p. 141).

Os tempos e os usos dos espaços no Semiárido passam a ser regidos por relações

capitalistas baseadas na produção de matéria-prima para atender às demandas do

mercado dos agrocombustíveis. Não se trata apenas de uma mudança nas estruturas

produtivas, visto que abarcam outras dimensões do cotidiano das famílias sertanejas,

69 Termo emprestado de Antunes (2005, p. 27). Esse autor usa o termo para fazer uma crítica a Coriat que,

segundo Antunes, utiliza acriticamente a expressão “envolvimento incitado” para tratar da falência do Projeto

Saturno que objetivava a automatização e robotização da planta da General Motors nos fins dos anos 1970.

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envolvendo também aspectos culturais, ambientais e sociais, inclusive a relação entre o

camponês e a soberania alimentar, já que o Programa BAHIABIO não contempla a

produção de alimentos. Esse é um aspecto importante e merecedor de uma análise

aprofundada porque rompe com a relação metabólica do camponês caatingueiro com a

terra, cujo trabalho na terra passa a não estar vinculado à produção de alimentos. As

regiões a serem incorporadas à produção de oleaginosas e cana-de-açúcar no Semiárido

são, historicamente, povoadas por famílias camponesas com marcante trajetória na

agricultura de base familiar, voltada ao cultivo de gêneros para o autoconsumo e

comercialização de excedentes. Por outro lado, há uma sobreposição de projetos e

interesses hegemônicos nesse emaranhado de ações do Estado.A produção de etanol,

por exemplo, a partir da cana-de-açúcar irrigada, no polo Médio São Francisco e no

polo Juazeiro, ocorrerá, inclusive, em áreas de perímetros públicos de irrigação,

inicialmente pensados para a produção frutícola.

A produção de agrocombustíveis no Semiárido baiano deve ser analisada com

base nas correlações entre o discurso do desenvolvimento sustentável e as estratégias do

capital para criar condições favoráveis a sua reprodução ampliada,mediante a

incorporação de áreas que, até então, exerciam papel marginal, devido a sua

configuração pouco atrativa para captar recursos capazes de modernizar o território,

viabilizandoe intensificando, assim, os fluxos comerciais. De acordo com o Programa

BAHIABIO (2008, p. 7), a

Bahia [...] é forte candidata a liderar internamente a substituição de

energia de origem fóssil pela renovável, pois possui condições

climáticas para a produção da maioria das oleaginosas para o biodiesel

e a cana-de-açúcar para etanol, bem como área disponível para

incremento na produção dessas matérias-primas.

Respaldado pelo discurso ambientalista, o Estado impõe novas lógicas para as

populações do campo, buscando utilizar como moeda de troca a geração de emprego e

renda, aspectos que acabam por restringir a resistência em relação aos projetos dessa

natureza. No momento atual, caracterizado pela desregulação do mundo do trabalho,

cujos níveis de desemprego atingem índices assustadores afetando o campo e a cidade, a

criação de postos de trabalho acaba por configurar um instrumento de barganha

eficiente junto à população, que fica à mercê de políticas territoriais enviesadas,

explicitando assim o movimento contraditório e desigual do desenvolvimento do

capitalismo.

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A valorização do espaço via políticas de ordenamento territorial, como o

Programa BAHIABIO, traz à tona conflitos em virtude das lógicas contraditórias de

apropriação do espaço geográfico e o Estado não impetra nenhum esforço para

solucionar a questão agrária, perpetuando assim a concepção de “Sertão para os de

fora”, ao passo que milhões de famílias camponesas na região semiárida da Bahia

continuam sem o acesso à terra e à água. Germani (2010, p. 291) afirma que “a questão

agrária é, essencialmente, uma questão territorial e que toda questão territorial expressa

relações de poder e, numa sociedade estruturada em classe, significa, constantes

enfrentamentos”.

Nesse sentido, as transformações ocorridas no espaço agrário no vale do rio São

Francisco não se restringem apenas à produção ou à tecnologia. Tais mudanças

interferem diretamente na relação do camponês caatingueiro com a terra, com a água e

com o trabalho, numa dinâmica dos contrários, devido às novas relações de produção

baseadas em atividades regidas por novos mecanismos de coerção, de modo a facilitar e

a intensificar a exploração da força de trabalho. O Programa BAHIABIO traz, em seu

cerne, a conciliação entre campesinato e agrohidronegócio num jogo de forças

extremamente desigual porque, de um lado, estão grandes agentes do capital ao passo

que, na outra ponta, estão as famílias camponesas, a quem é imposto um regime de

trabalho e de produção alheio às suas tradições. Esses processos são altamente seletivos

e fomentam uma relação de extrema dependência do mercado, na qual os camponeses

caatingueiros passam a disputar terra, território e água com o grande capital, havendo,

pois, uma desorganização da agricultura tradicionalmente praticada nas comunidades.

Ao observar a sequência histórica de conflitos por terra na Bahia (1990-2014),

percebemos que o menor número de ocorrências foi entre 2000 e 2001 (Tabela 2). Nos

demais anos os números registrados mantiveram-se acima de 20 ocorrências,

demonstrando que as duas últimas décadas foram marcadas por intensos processos de

disputas envolvendo, de um lado, ribeirinhos, quilombolas, indígenas, camponeses,

quebradeiras de coco, seringueiros, pescadores, fundos de pasto e, de outro, o grande

capital em suas múltiplas faces (agrohidronegócio, mineração, energia eólica, ferrovia).

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Tabela 2 - Conflitos por Terra na Bahia (1990-2014)

ANO Nº de conflitos Nº de Famílias

envolvidas

1990 62 22.058

1991 53 24.622

1992 29 11.789

1993 21 4.480

1994 44 3.922

1995 43 7.510

1996 54 8.123

1997 42 6.638

1998 45 7.258

1999 62 6.021

2000 16 3.731

2001 7 1.337

2002 24 1.073

2003 30 5.043

2004 38 11.577

2005 61 8.760

2006 41 3.244

2007 22 2.969

2008 39 4.131

2009 23 3.675

2010 43 4.327

2011 57 4.774

2012 63 4.180

2013 37 3256

2014 76 11.899

Fonte: Cadernos de Conflitos no Campo (CPT), 1990-2014.

Org.: DOURADO, J. A. L., 2015.

Embora, por um lado, o número de conflitos por terra tenha sofrido um aumento

exponencial, houve, por outro, uma redução significativa na quantidade de famílias

envolvidas na luta pela terra na Bahia, até 2013, apresentando um aumento exponencial

no ano de 2014, conforme pode ser visualizado na Tabela 2.A redução do número de

conflitos por terra ocorrido na última década coincidente com a posse de Luís Inácio

Lula da Silva à Presidência da República. Os conflitos abrandaram no início do governo

Lula e, em função dos seus programas sociais, os movimentos de luta pela terra

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passaram a enfrentar dificuldades para mobilizar as pessoas para os acampamentos,

fenômeno esse que carece de um aprofundamento analítico para compreender quais as

suas razões, como destaca Medeiros (2014, p. 28):

A progressiva queda apresentada pelos números contabilizados pela

CPT indica que essa linguagem parece estar perdendo a eficácia.

Caberia investigar melhor as razões disso, mas sem dúvida a opção do

Estado, sob diferentes argumentos, por reduzir as desapropriações

combina-se com a institucionalização de outras políticas de garantia

de renda, como a consolidação do Programa Bolsa Família e a

progressiva valorização do salário mínimo, que apresentou ganhos

reais ao longo do tempo. Afinal, os acampamentos são alimentados

pela possibilidade de acesso à terra. Quando este horizonte se

distancia, outras alternativas são acionadas. Tudo indica também que,

ao longo da década analisada, as organizações porta-vozes dos

trabalhadores foram perdendo sua capacidade de mobilizar para as

formas de luta que se consagraram como eficazes ao longo das duas

décadas anteriores e outras demandas ganharam espaço (MEDEIROS,

2014, p. 28).

Ainda sobre os conflitos por terra, Pietrafesa (2013, p. 72) destaca que o

conflito agrário se efetiva quando movimentos propõem novas formas

de produzir o espaço e novas bases para a apropriação dos espaços

rurais. As ações dos movimentos sociais entram em choque imediato

com as seculares formas de organização do mundo rural brasileiro, em

que o Estado normalmente se coloca a serviço do capital, enquanto é

lento no atendimento às reivindicações camponesas.

A usurpação de territórios camponeses devido à territorialização do grande

capital sob a chancela governamental constitui-se um sério risco à reprodução do modo

de vida dos sujeitos que historicamente ocuparam essas terras (quilombolas,

camponeses, ribeirinhos, fundos de pasto, indígenas, entre outros). Assim, a luta pela

terra representa a possibilidade de permanecer nos territórios da vida, ou ainda, de

entrar na terra de trabalho, revelando dessa forma um processo de recampesinização.

Por outro lado, representa também uma estratégia de resistência, por parte dos

camponeses, frente às investidas do capital, que tem buscado incorporar aos seus

domínios terras públicas e de uso coletivo, além de beneficiar-se dos investimentos

públicos direcionados à inserção do campesinato na produção de matéria prima para a

indústria de agrocombustíveis, como é o caso do Programa BAHIABIO.

2.4 – Programa Mais Irrigação: retalhos do tecido desenvolvimentista

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O Programa Mais Irrigação (Mapa 7), lançado pelo governo federal em

novembro de 2012, prevê investimentos de R$ 10 bilhões com o fomento e a

consolidação do modelo de gestão adotado para os perímetros irrigados atuais. Segundo

o discurso do governo, o propósito é fomentar a valorização da economia regional, gerar

emprego e renda e garantir a produção de alimentos com qualidade. Ao todo, 16 estados

brasileiros foram contemplados com recursos provenientes desse programa, sendo R$ 3

bilhões do PAC e R$ 7 bilhões oriundos de iniciativas privadas, no regime das parcerias

público-privadas, a serem investidos em projetos de irrigação nos nove estados da

região Nordeste, além de Goiás, Roraima, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do

Sul e Tocantins.

A proposta do Programa Mais Irrigação é abranger 538 mil hectares, totalizando

66 projetos organizados em quatro eixos: a) parcerias público-privadas; b) implantação

e revitalização; c) agricultura familiar e pequenos irrigantes; d) estudos e projetos.

Aoperacionalização do projeto compreendem a implantação, operação e manutenção da

infraestrutura de irrigação existente por um período de 35 anos, através de processo de

licitação.

De modo geral, essa política segue basicamente as mesmas diretrizes pensadas e

formuladas na década de 1970, havendo apenas ajustes com vistas a incorporar

elementos políticos e econômicos atuais à ação de expansão das forças produtivas.

Observando-se a espacialização dos programas e projetos, constata-se que o Estado

continua a sustentar a função de partner no que se refere à penetração do capital em

terras semiáridas na Bahia, assim como no Semiárido brasileiro como um todo. As

consequências políticas, econômicas e socioculturais desse processo são multiescalares

porque estão inseridas no contexto de movimento sociometabólico do capital. A

tentativa, por parte do Estado, de criar uma unidade entre perspectivas antagônicas –

agricultura camponesa e agronegócio –, no Semiárido baiano, desconsidera um feixe de

práticas e elementos simbólicos que permeia a relação dos sertanejos com o seu

território.

Nesse aspecto, Porto-Gonçalves (2010, p. 138) afirma que o

desafio é, portanto, o de construir relações sociais e de poder com base

em outros valores, emancipatórios, emanados entre os próprios

protagonistas (horizontalidade, reciprocidade, radicalização

democrática, igualdade, diversidade e autonomia) no próprio

movimento de luta com/contra esse sistema-mundo e suas hierarquias.

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Ainda hoje, mesmo depois de severas e consistentes críticas, a compreensão que

se tem do Semiárido é o espaço a ser transformado a partir da racionalidade pautada na

dependência do mercado, ou seja, na tentativa de “modernizar” o território para que haja

uma ressignificação tanto dos sujeitos quanto do território, no sentido de incorporá-los à

política de desenvolvimento. Para Carvalho (2012, p. 30), os

diferentes projetos de intervenção manifestam e expressam as

ideologias e os diferentes sentidos de desenvolvimento territorial para

o Semiárido e, nesse contexto, apresenta-se a proposta de

“Convivência”, muitas vezes se conflitando com as demais, por

abarcar outra racionalidade de desenvolvimento.

No Eixo 1 do Programa Mais Irrigação serão contemplados oito projetos,

perfazendo um total de 189 mil hectares nos estados da Bahia, Ceará, Minas Gerais,

Pernambuco e Piauí (Tabela 3).

Tabela 3 - Eixo 1 – Parcerias Público-Privadas em Irrigação

Projeto Extensão (ha) Estado

Baixo Acaraú 4.144 Ceará

Platôs de Guadalupe 10.632 Piauí

Pontal 7.717 Pernambuco

Canal do Sertão 45.000 Bahia/Pernambuco

Nilo Coelho 22.957 Pernambuco

Salitre 26.206 Bahia

Baixio de Irecê 48.000 Bahia

Jaíba 24.745 Minas Gerais

Total 189 mil hectares

Fonte: Planalto, 2013.

Org.: DOURADO, J. A. L., 2013

No tocante à formalização das parcerias público-privadas, estas serão

desenvolvidas a partir de duas perspectivas: exploração agrícola e infraestrutura e

operação das áreas. A exploração agrícola refere-se ao direitoreal de uso da terra

conquistado pela empresa vencedora da licitação, permitindo-lhe sua exploração e

cobrança de tarifa de irrigação competitiva por um prazo de 45 anos. Em contrapartida,

deverá fazer a ocupação produtiva da área e garantir a integração, em área mínima de

25% do perímetro irrigado, com agricultores familiares.

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Na Bahia, os recursos do Programa Mais Irrigação estão orçados em R$ 636,5

milhões, dos quais R$ 632,5 milhões serão investidos em nove Perímetros Irrigados:

Salitre, Formoso, Curaçá, Baixio de Irecê, Maniçoba, Estreito, Mirorós,

Mucambo/Cuscuzeiro e Iuiú. A Bahia concentra a maior parte dos investimentos da

CODEVASF, cujo montante de recursos destinado à irrigação é da ordem de R$ 1,6

bilhão, sendo responsável por 136,9 mil hectares de lavouras irrigadas dos 141,9 mil

hectares incluídos no programado do governo federal. Os 5 mil hectares restantes são de

responsabilidade da Secretaria Nacional de Irrigação (SENIR) do Ministério da

Integração Nacional (MI).

Para o Eixo 1, a CODEVASF investirá R$ 427,7 milhões, sendoR$ 222,7

milhões no Projeto Baixio de Irecê eR$250 milhões no Projeto Salitre, abrangendo um

total de 74,2 mil hectares. Destaca-se que há forte tendência ao incentivo à produção de

matéria-prima para atender ao mercado de agrocombustíveis, tanto no Baixio de Irecê

quanto no Salitre. O Projeto Pontal receberá R$ 166 milhões do PAC, direcionados à

produção de algodão, frutas, legumes e hortaliças, além da produção de leite e peixe.

Os recursos alocados para o Eixo 2 (Tabela 4) do Programa Mais Irrigação estão

voltados o fortalecimento e a reestruturação dos projetos de irrigação já existentes em

oito estados: Bahia, Minas Gerais, Ceará, Goiás, Tocantins, Rio Grande do Sul,

Roraima e Piauí, num total de 133 mil hectares. A Bahia ficará com R$ 62,2 milhões

direcionados para os seguintes projetos: Formoso (12.558 ha), Curaçá (4.345 ha) e

Maniçoba (5.006 ha). O projeto Formoso, localizado no município de Bom Jesus da

Lapa, ficará com R$ 29,3 milhões para a reabilitação da infraestrutura de irrigação de

uso comum do perímetro.

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Tabela 4 - Eixo 2 – Implantação e Revitalização de Projetos de Irrigação

Projeto Extensão (ha) Estado

Passarão 1.000 Roraima

Tabuleiros Litorâneos 5.985 Piauí

Tabuleiros de Russas 6.376 Ceará

Maniçoba 5.006 Bahia

Curaçá 4.345 Bahia

Formoso 12.558 Bahia

Rio Formoso 28.500 Tocantins

Luís Alves do Araguaia 3.797 Goiás

Gorutuba 2.286 Minas Gerais

Jequitaí 18.000 Minas Gerais

Canal Jaguari 17.000 Rio Grande do Sul

Canal Taquarembó 15.000 Rio Grande do Sul

Arambaré 10.650 Rio Grande do Sul

Total 133 mil hectares

Fonte: Planalto, 2013.

Org.: DOURADO, J. A. L., 2013.

No eixo 3 (Tabela 5), estão concentrados os projetos de irrigação de

interesse social, ou seja, aqueles que não têm vocação para a expansão do

agrohidronegócio. Nesse eixo estão previstas ações de implantação e otimização de

perímetros irrigados destinados à produção familiar, perfazendo um total de 61 mil

hectares em 11 estados, dos quais 25 mil ha na região Nordeste.

Para a implantação e revitalização de perímetros irrigados, a CODEVASF

direcionará R$ 72,5 milhões para os Perímetros Irrigados de Mirorós (2.095 hectares) e

Estreito (2.735 hectares). Destaque-se que Mirorós entrou em colapso em 2012, devido

ao esgotamento hídrico da barragem de onde é captada a água para a irrigação, em razão

da exploração irracional de água pelos irrigantes. Durante a pesquisa de campo nos

municípios de Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique, um dos entrevistados, da CPT,

mencionou que há pretensão por parte dos irrigantes de Mirorós de se organizarem para

reivindicar lotes no projeto Baixio de Irecê, fato que, se concretizado, acirrará ainda

mais os conflitos pela terra e pela água.

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Tabela 5 - Eixo 3 – Agricultura Familiar e Pequenos Irrigantes

Projeto Extensão Estado

Várzea de Flores 1.729 Maranhão

Ayres de Souza 615 Ceará

Araras Norte * Ceará

Icó-Lima Campos 4.263 Ceará

Várzea do Boi 630 Ceará

Santa Cruz do Apodi 26.732 Rio Grande do Norte

Pau dos Ferros 657 Rio Grande do Norte

Cruzeta 196 Rio Grande do Norte

São Gonçalo 2.404 Paraíba

Sumé 274 Paraíba

Moxotó 8.596 Pernambuco

Boa Vista 131 Pernambuco

Bebedouro * Pernambuco

Pariconha * Alagoas

Boacica 3.334 Alagoas

Itiúba 894 Alagoas

Delmiro Gouveia * Alagoas

Betume 2.865 Sergipe

Cotinguiba-Pindoba 2.237 Sergipe

Propriá 1.177 Sergipe

Manoel Dionísio * Sergipe

Jacaré-Curituba * Sergipe

Marreca-Jenipapo * Piauí

Mirorós * Bahia

Estreito 2.735 Bahia

Jonas Pinheiro * Mato Grosso

Itamaraty II * Mato Grosso do Sul

Fonte: CODEVASF, 2012.

Org.: DOURADO, J. A. L., 2013.

* Informação não disponibilizada pelos órgãos competentes.

O Eixo 4 (Tabela 6) compreende os estudos para a implantação de projetos de

irrigação. Serão contemplados 18 projetos, sendo 15 novos e 3 já implantados,

totalizando 155 mil hectares.

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Tabela 6 - Eixo 4 – Estudos e Projetos

Projeto Extensão (ha) Estado

Baixada Maranhense 5.000 Maranhão

Boa Esperança/Rio Brasileiro 5.000 Maranhão

Tabuleiro São Bernardo * Maranhão

Salinas 2.000 Piauí

Platôs de Guadalupe – 3ª Etapa 5.000 Piauí

Ibicutinga 15.000 Ceará

Mendubim 8.300 Rio Grande do Norte

Vertente Litorânea 3.000 Paraíba

Eixo Norte – Trecho VI 34.000 Pernambuco

Canal Xingó * Pernambuco

Serra Negra 6.000 Pernambuco

Terra Nova 8.000 Pernambuco

Inhapi 4.300 Alagoas

Rio de Contas 2.000 Bahia

Mucugê-Ibicoara 3.000 Bahia

Iuiu 30.000 Bahia

Mucambo-Cuscuzeiro 6.000 Bahia

Imburuçu * Goiás

Fonte: Planalto, 2013.

Org.: DOURADO, J. A. L., 2013.

*Dados não informados.

Juntos, os perímetros irrigados de Baixio de Irecê e Salitre receberão R$ 472,7

milhões do PAC os quais se somarão aos investimentos privados. A cartografia das

ações do Programa Mais Irrigação revela haver uma sobreposição de investimentos por

parte do governo federal, com vistas a criar infraestrutura para viabilizar a subordinação

da agricultura familiar à lógica do mercado bem como expandir o agrohidronegócio a

partir dos perímetros irrigados. Nesse sentido, cabe destacar que se mudam as

nomenclaturas dos programas, todavia, ao observar a sua localização, percebe-se haver

uma fragmentação dos investimentos com o propósito de desviar o foco e favorecer

assim a implantação dos projetos sem maiores resistências. Os desdobramentos de tais

projetos são mutáveis e imprevisíveis porque o desenvolvimento geográfico desigual

está conformado de maneira a beneficiar os centros de acumulação de capital bem como

os atores hegemônicos que atuam para organizar as bases do sistema para viabilizar sua

reprodução.

A implantação do Programa de Bioenergia – BAHIABIO, assim como o

Programa Mais Irrigação, expressa a criação e a inserção de novos espaços com o

propósito de reproduzir as hegemonias de classe da burguesia agrária e industrial e o

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contínuo fluxo de capitais, como estratégias para fugir das restrições e incertezas

intensificadas nos períodos de crise.

Para Harvey (2011, p. 174), é

também muito claro que a reprodução do capitalismo implica a

realização de novas geografias e que a criação de novas geografias,

por meio da destruição criativa do velho, é uma forma de lidar com o

problemapermanente da absorção do excedente de capital.

A adoção desse modelo de desenvolvimento para o Semiárido não considera a

necessidade de requalificar o debate sobre a questão agrária, sobre a estruturação das

políticas públicas e ações governamentais, bem como os referenciais adotados para a

conformação da dinâmica socioespacial. Esses referenciais devem ser colocados sob o

crivo da crítica para que algumas questões sejam superadas, como é o caso do simulacro

discursivo acerca do termo “desenvolvimento”. Mais uma vez, as fontes alternativas de

energia são desvirtuadas e passam a ser utilizadas como pano de fundo para a atuação

do grande capital, incorporando a ideia de sustentabilidade para camuflar os interesses

econômicos das corporações controladoras da produção de agrocombustíveis. Thomaz

Junior (2011, p. 316) chama atenção para o fato de que,

[...] ao mesmo tempo em que o capital impõe mudanças na matriz

energética dos países para prevalecer seus interesses econômicos,

estratégicos, logísticos, ele o faz através de princípios excludentes,

amplificando em demasia as desigualdades sociais, a concentração de

riqueza, de terra, de renda e de poder. As variações de lugar para

lugar, na adoção/sofisticação de formas regressivas, nas relações de

trabalho, na subordinação de camponeses e médios produtores à

sistemática oligopólica, evidenciam toda a indiferença do capital com

o meio ambiente, por meio das práticas destrutivas e degradantes que,

juntos, impactam profundamente nas formas de uso/ exploração do

território.

No que tange ao Nordeste semiárido, o Estado sempre adotou a postura de

enfrentamento em relação à semiaridez, considerando-a um problema a ser combatido

através da criação de “ilhas úmidas”, ou seja, os perímetros irrigados, enfeixando o

domínio simbólico e discursivo hegemônico materializado nas ações, intervenções e

programas de planejamento regional e, mais recentemente, de ordenamento territorial.

Em seu discurso durante o lançamento do Programa Mais Irrigação (13/11/2012), a

presidenta Dilma Roussef fez a seguinte afirmação:

Nós vamos derrotar a seca e vamos usar para isso o que existe de

melhor no mundo da tecnologia. Nós não vamos medir esforços. […].

A irrigação permanente e terras constantemente aproveitadas, sem

sombra de dúvidas, são a melhor resposta para seca também. Nós

queremos esse modelo bem sucedido e esperamos que ele se espalhe

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pelo Brasil, recriando oportunidades de produção e esperança

(Informação verbal, 13/11/2012).

Resguardadas as devidas particularidades, o discurso da presidenta Dilma

Roussef deixa transparecer que há uma espécie de “Nova Aliança para o Progresso”70,

só que agora o ataque ao campesinato se efetiva via dependência do mercado, através de

sua inserção/integração ao modelo de produção pautado na lógica do agronegócio. O

problema a ser combatido continua sendo a seca, uma espécie de “coisa demoníaca”,

que se combate com a expansão de infraestrutura hídrica, na perspectiva de superar a

condição de “espaço periférico”, mediante sua inserção nas estruturas produtivas dos

setores agro-químico-alimentares-financeiros, como pressuposto do agrohidronegócio

(THOMAZ JUNIOR, 2009). À margem desse aspecto, que se refere diretamente à

dotação de fixos para viabilizar a territorialização do agrohidronegócio nas terras

semiáridas da Bahia, tem-se um outro, tão interessante quanto este, que é a diluição da

questão agrária na questão hídrica, ou seja, sob o ponto de vista econômico e social, os

problemas sociais do Semiárido deixam de existir no momento em que há a inserção dos

camponeses caatingueiros no universo do agronegócio.

Ao mesmo tempo, o Estado e o capital vão, sub-repticiamente, assumindo o

controle dos territórios camponeses, colocando-os à disposição do agrohidronegócio sob

os ditames de umas poucas empresas, que passam a concentrar sob seu domínio os

meios de produção, como bem exemplifica a presença da Agrovale no polo

Juazeiro/Petrolina.

Nessa mesma perspectiva de análise e concepção em relação aos problemas que

afetam o Semiárido, Elmo Vaz, o atual presidente da CODEVASF, durante o ato de

lançamento do Programa Mais Irrigação, ressalta que, com

os recursos previstos no programa Mais Irrigação, poderemos

alavancar e modernizar nossos projetos, além de implementar muitos

outros projetos de irrigação, e com isso aumentar muito a

produtividade dos perímetros – e, de alguma forma poder contribuir

para diminuir a desigualdade desse país (Informação Verbal,

13/11/2012).

70 Segundo Oliveira (2008), na década de 1960 o estadunidense Merwin Bohan elaborou um relatório intitulado

Northeast Team Survey Report, documento conhecido no Brasil como relatório Bohan, em que fazia

recomendações explícitas para conter o movimento das Ligas Camponesas. Esse programa foi dividido em

duas partes: a primeira consistia num programa de caráter eminentemente assistencialista, com o intuito de

desarticular e esvaziar politicamente o movimento das Ligas Camponesas. A segunda parte desse programa

referia-se a um programa de esvaziamento demográfico no Nordeste, com o propósito de minimizar as

pressões agrárias e urbanas, tudo isso elaborado com o intuito de evitar que o Nordeste caísse em mãos das

forças populares.

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A análise dos referidos discursos permitem defini-los como uma síntese das

contradições que, há aproximadamente um século, vêm pautando as ações do Estado no

tocante ao enfrentamento dos resultados das secas, tidas como trágicas. Os desvios e

equívocos de tais políticas implementadas ao longo desse tempo revelam, entre outras

coisas, os limites das ações “desde sempre” adotadas para combater problemas atuais,

cujas arrumações feitas pelo Estado abrem espaço para a introdução de novas formas de

relação do camponês caatingueiro com a terra e a água.

A teia de relações que se tece a partir dos projetos implantados pelo Estado,de

um lado, traz em seu cerne a concentração de terras, devido à lógica do agronegócio e,

de outro, interfere diretamente na soberania dos camponeses caatingueiros, devido ao

fato de estes estarem atrelados à produção de produtos específicos, fato que vai de

encontro à sua maneira de trabalhar a terra, haja vista que a agricultura familiar no

Semiárido tem como um de seus pilares a policultura, associando a produção de

alimentos para o consumo interno com a produção de ração para os animais, utilizados

para o trabalho na agricultura. Tal surto de desenvolvimento por que passa o Nordeste

semiárido traz como resultado uma precarização existencial71do campesinato

caatingueiro, que perde seus referenciais sociais, culturais e econômicos, passando

repentinamente a integrar uma lógica avessa e alheia à sua vontade.

Ainda nesse universo, destaca-se a questão do trabalho, visto que a geração de

emprego é um dos elementos utilizados como instrumento de barganha, para justificar a

criação dos perímetros irrigados na região semiárida nordestina e, desta forma, evitar o

surgimento de movimentos de resistência aos processos desterritorializantes deles

decorrentes.

As visitas à área da pesquisa permitiram verificar que os empregos gerados a

partir da criação dos perímetros irrigados configuram-se como subempregos, cujas

relações de trabalho são extremamente precarizadas, colocando-se a necessidade de

repensar nas condições em que os trabalhadores da cadeia produtiva da fruticultura

irrigada participam do processo de criação de mercadorias (materiais ou imateriais) bem

como da geração de riquezas. Se por um lado os projetos de irrigação, através da

fruticultura irrigada, geram empregos, por outro trazem novos problemas como o

aumento significativo da população urbana, fenômeno detectado pelo Banco Mundial

(2004) em relação ao polo Juazeiro/Petrolina, cuja população não consegue ser

71 Termo tomado de empréstimo de Alves, 2013.

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absorvida pela agricultura irrigada nem pelo setor de serviços relacionados ao

agrohidronegócio frutícola.

Cabe destacar que essa “modernização mercadológica” da agricultura coloca em

risco a saúde dos trabalhadores dos perímetros irrigados, em função da possibilidade de

contaminação dos trabalhadores devido do uso de agrotóxicos (inseticidas, acaricidas e

fungicidas), sem equipamento de proteção individual (EPI), revelando um dos lados

perversos do trabalho na fruticultura irrigada (Foto 6). Muitos dos agrotóxicos utilizados

nas lavouras dos perímetros irrigados são classificados como extremamente ou

altamente tóxicos: Classe I – Abamectina, Difenoconazol, Tepraloxidym, Diazinona e

Propiconazol –, extremamente tóxicos e Classe II – Cletodim, Carbofurano, Carbaril,

Flutriafol e Fenitrotiona – considerados altamente tóxicos.

Foto 6 – Trabalhador diarista pulverizando agrotóxico em lavoura de melão – Projeto Salitre.

Fonte: Trabalho de Campo, maio de 2013.

Autor: DOURADO, J. A. L. D.

Outro aspecto a ser retratado é a contaminação do solo e da água (superficial e

subterrânea) pelo uso de agrotóxicos e fertilizantes, colocando em risco a saúde das

populações camponesas próximas aos perímetros irrigados, ameaçadas pela

pulverização (aérea ou terrestre), pois muitas comunidades estão cercadas pelos

monocultivos de frutas. Rigotto et al. (2011) apresentaram importantes resultados de

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uma pesquisa realizada no Baixo Jaguaribe, polo frutícola no estado do Ceará, fato que

nos coloca em alerta em relação à realidade do Submédio São Francisco, região onde

estão localizados diversos perímetros irrigados (polo Juazeiro/Petrolina). Pontes et al.

(2013, p. 3218) destacam que

[...] esses impactos não vêm sendo monitorados ou reconhecidos

pelas instâncias responsáveis no Estado; ocultar os agravos à

saúde, a precarização do trabalho e a contaminação ambiental

fazem parte da estratégia de sustentação desse modelo de

desenvolvimento.

A conformação das relações de trabalho e de produção no contexto do

agrohidronegócio da fruticultura irrigada, no Projeto Salitre, coloca como desafio a

necessidade de ir para além das aparências, de modo a desnudar o trabalhado estranhado

e fetichizado, tanto nas lavouras quanto no Centro de Abastecimento (CEASA), também

conhecido como Mercado do Produtor. No campo ou na cidade, verifica-se que os

empregos gerados a partir da fruticultura irrigada no Projeto Salitre são, em sua maioria,

informais, sendo os trabalhadores diaristas, oriundos das comunidades da bacia do rio

Salitre (os salitreiros) e das periferias de Juazeiro. Trabalho precarizado,

subcontratações, são algumas das formas que o capital e os proprietários de terras têm

utilizado para extrair mais-valia da força-de-trabalho, em sua maioria advinda do

campo, expulsa pelas políticas agrárias e agrícolas excludentes.

No maior polo frutícola do Nordeste brasileiro, o desrespeito às leis trabalhistas

e a absorção precária de mão de obra são aspectos recorrentes, trazendo à tona uma das

faces contraditórias do sistema sociometabólico do capital, ou seja, a produção de

riqueza e a supressão da pobreza, haja vista que os índices de produção e produtividade

alcançados nos perímetros irrigados da região do Submédio São Francisco são

utilizados para invisibilizar a massa de miseráveis que perambula pelas ruas do centro

da cidade de Juazeiro.

Ao visitar o Projeto Salitre e o CEASA, constatamos situações totalmente

inadequadas de trabalho, estando os trabalhadores, em sua maioria, expostos a riscos de

acidentes, de contaminação e desamparados pelos direitos trabalhistas. “Livres” do jugo

da terra e donos apenas da força de trabalho, muitos dos camponeses que migraram para

a cidade de Juazeiro ou Petrolina retornam, como trabalhadores diaristas ou

assalariados, aos perímetros irrigados ou ao Mercado do Produtor (Figura 1).

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Figura 1 – Trabalhadores no Mercado do Produtor (CEASA) em Juazeiro (BA)

Fonte: Trabalho de Campo, 2014.

Autor: DOURADO, J. A. L.

Por outro lado, as formas pelas quais o atual reordenamento territorial do Semiárido

vem sendo constituído a partir da segurança hídrica, numa clara relação exteriorizada com a

natureza, desconsideram as práticas socioculturais, o trabalho na/com a terra, o simbólico e a

própria relação metabólica terra-água-trabalho materializada nos territórios semiáridos. A

cotidianidade do camponês caatingueiro que vive nas proximidades do rio São Francisco

expressa signos e significados, frutos de heranças culturais, tendo por elementos aglutinadores

o rio e a água como provedores da vida. Nesse sentido, as expressões culturais, as práticas

sociais envolvendo a agricultura e a pesca – uso e apropriação dos recursos dos territórios –

são mediadas pela convergência entre as relações afetivas, parentais e/ou através da própria

sociabilidade camponesa. No momento atual em que o Semiárido vivencia o expansionismo

do capital no campo, a introdução de novos costumes, funções e a disseminação de lógicas

totalmente distintas da realidade local colocam em risco as práticas de uso e a exploração dos

recursos naturais, baseadas em conhecimentos adquiridos através das relações cotidianas e

tidos como “bens comuns” aos sujeitos.

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Embora reconheçamos que as relações estabelecidas pelos camponeses caatingueiros

são parte de um sistema dinâmico e mutável, faz-se necessário destacar que os projetos

desenvolvimentistas implantados no Semiárido baiano reconfiguram, de modo acelerado, as

relações sociais e os usos do território, baseados no pertencimento, disseminando a concepção

da produção de bens de troca. A água, o rio, a pesca (Foto7), a agricultura (Foto8), no

contexto do “progresso” e da modernização do território, ganham um caráter mercadológico,

ao passo que, para as populações tradicionais, esses elementos integrados ao sistema de

relações passado-presente têm o papel de garantir a manutenção da identidade, dos saberes

ancestrais e até mesmo a possibilidade de reconstruir, a partir de parâmetros e princípios

endógenos, a tessitura e a gestão do território que habitam. Ao que se apresenta nesse cenário

de aceleradas transformações socioespaciais, a reapropriação social da natureza, de que nos

fala Leff (2006), tem sido colocada em risco pelos megainvestimentos feitos pelo Estado,

interferindo sobremodo no conjunto de práticas relacionadas ao modo de pensar, produzir e

ocupar o território pelas populações sertanejas, num processo de reedição de valores que

atentam contra a identidade territorial dos camponeses caatingueiros.

Foto 7 – Camponês durante a pesca no rio São Francisco - Comunidade do Roçado,

município de Xique-Xique (BA).

Fonte: Pesquisa de Campo, abril de 2013.

Autor: DOURADO, J. A. L.

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Foto 8 – Camponês em seu roçado de mandioca e melancia às margens do rio São Francisco –

Comunidade de Roçado, Xique-Xique (BA).

Fonte: Pesquisa de Campo, abril de 2013.

Autor: DOURADO, J. A. L.

Para o camponês caatingueiro, terra e água não constituem unicamente recursos

naturais: estão para além disso, pois representam terra de trabalho e água de trabalho.

Sua existência possui íntima relação com esses bens naturais: é deles que advém o

sustento econômico de sua família, são eles os elementos que compõem a sua

identidade. O tempo e o uso dos espaços estão atrelados ao universo simbólico “terra-

água”, com reflexos na organização do roçado, nos apetrechos de pesca, nas relações

com seus pares, entre tantos outros exemplos, expressando haver, por parte das

populações camponesas do Semiárido, uma “mistificação da água”, cujo contexto deve

ser analisado a partir das relações intersubjetivas e das trocas de saberes envolvendo

esses bens naturais – terra e água. A identidade construída a partir das interações entre

os ciclos físicos (estiagem e chuva) e as construções simbólicas (práticas socioculturais,

mitos e interações físico-sociais) confere aos camponeses e à Caatinga uma riqueza e

uma complexidade existencial não consideradas pelas políticas de desenvolvimento

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territorial. A Caatinga deve ser compreendida a partir de suas feições geográfica,

climatológica, geológica, econômica e social, de modo a fomentar a desconstrução

discursiva da seca como tragédia climática, entendendo-a como um fenômeno social.

De acordo com Carvalho (2012, p. 95), a água

adentra como um elemento repleto de significação para a elaboração

da territorialidade sertaneja, uma vez que, por si mesma, é um

elemento que carrega toda uma simbologia que regula o universo

material e imaterial das populações em todo o mundo.

O camponês caatingueiro que vive às margens do rio São Francisco não vivencia

a seca como escassez hídrica porque as áreas de cultivo estão relacionadas ao regime do

rio – cheia e vazante. Além do mais, o ciclo das águas do rio representa um agente

delimitador do que e ondese planta. Por outro lado, esse mesmo sujeito sofre os efeitos

discursivos e político-ideológicos da seca devido aos diversos projetos implantados ao

longo de toda a bacia do rio São Francisco, tendo, como resultados, transformações nas

atividades socioeconômicas, culturais, perda dos referenciais históricos e geográficos.

Associados a esses efeitos, tem-se ainda a ruptura da relação metabólica terra e água,

sendo essa um aspecto gerador de conflito entre os camponeses do Semiárido e os

setores do capital.

A questão agrária no vale do rio Salitre se associa aos conflitos pelo acesso à

água, revelando o caráter contraditório da lógica de acumulação privada, tanto da terra

quanto água, de modo que há uma concentração dos proveitos (os perímetros irrigados)

e a socialização dos rejeitos (a degradação dos recursos naturais e a exploração do

trabalhado, o subemprego). De fato, o constante movimento expansivo do capital no

baixo Salitre tem levado a um o processo de estranhamento dos homens em função das

mediações de segunda ordem, como bem destaca por Mészáros (2007). Dentro desse

emaranhado de relações/mediações, há uma obnubilação da subjetividade do camponês

caatingueiro bem como do trabalhador da fruticultura irrigada os quais, em virtude dos

apelos do capital e do Estado, acabam por incorporar um discurso favorável aos

empreendimentos relacionados à infraestrutura hídrica no Semiárido. Durante as visitas

às comunidades nos meses de abril e maio de 2013, constatou-se que surgem novos

fetiches relacionados tanto ao consumo quanto às sociabilidades que passam a ser

direcionadas/reconstruídas a partir de referenciais bem consolidados, expressos pela

relação sociedade-natureza. Tais desdobramentos revelam a importância do pesquisador

fazer imersões na área a ser analisada, para estabelecer contato direto com os sujeitos da

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pesquisa bem como observar a paisagem (cenário) e seus elementos, concordando com

Thomaz Junior (2005, p. 39) quando este afirma ser o trabalho de campo um

“laboratório geográfico por excelência”.

2.5 – As águas do Semiárido brasileiro correm para o mercado global

O novo cenário agrário/agrícola do Semiárido revela que o capital agroindustrial

continua sua expansão pelo campo brasileiro, com o objetivo de (re)organizar os

territórios, de modo que estes possam ser ocupados com atividades favoráveis à sua

reprodução ampliada. Os redimensionamentos em curso são parte integrante da

reestruturação produtiva do capital no setor agrícola, num processo de forte dependência

ao setor industrial, mediante a mecanização do campo e a utilização intensiva de

insumos agrícolas. Esse fenômeno não ocorre de forma homogênea no território, cujas

contradições desencadeiam conflitos territoriais devido às divergências de modelos e

projetos de desenvolvimento entre os diversos sujeitos que compõem o mosaico sócio-

político e cultural do Semiárido.

Se a expansão do agrohidronegócio representa a modernidade em terras até

então fadadas ao atraso, a contraposição à rusticidade do ser e do lugar revela, por outro

lado, como o Estado e o capital atuam, conjuntamente, para colocar em execução

projetos destinados à agricultura irrigada visando a atender ao mercado externo. Não se

trata apenas de questões conjunturais que se apresentam no horizonte como desafiadoras

e merecedoras de uma profunda análise. A manutenção das velhas relações de poder e

subserviência e o papel do Sertão da divisão territorial do trabalho revela que o “novo”

projeto desenvolvimentista posto em execução nessa fração da região Nordeste traz em

seu cerne os ranços de outros contextos históricos, cujos desdobramentos foram o

fortalecimento das desigualdades sociais e a manutenção do status quo.

Para Ab’Saber (1999, p. 7), conhecer

mais adequadamente o complexo geográfico e social dos sertões secos

e fixar os atributos, as limitações e as capacidades dos seus espaços

ecológicos nos parece uma espécie de exercício de brasilidade, o

germe mesmo de uma desesperada busca de soluções para uma das

regiões socialmente mais dramáticas das Américas. O Nordeste seco.

Os investimentos feitos em obras voltadas à criação de uma infraestrutura

hídrica na região semiárida evidenciam a ineficácia do Estado no tocante à resolução de

uma questão estrutural para as comunidades camponesas, o acesso à água

historicamente represada e protegida pelas cercas, resquício de “uma estrutura agrária

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particularmente perversa” (AB’SABER, 1999, p. 7) que perdura até os dias atuais.

Desde sempre, as obras realizadas pelos órgãos do governo, como a

CODEVASF e o DNOCS, provocaram intensos processos de desterritorialização e

“descampesinização” (CARVALHO, 2005),abrindo espaço para a desestruturação dos

territórios comunitários e a reorganização do espaço para o capital financeiro sob o

domínio dos conglomerados agro-químico-alimentar-financeiros. Entendemos por

descampesinização, as alterações ocorridas a partirda implantação dos perímetros

irrigados voltados para a agricultura modernizada baseada no uso intensivo de

agrotóxicos, na produção de mercadorias para o mercado e no trabalho assalariado,

levando assim a uma ruptura de práticas agrícolas fundamentadas em saberes

tradicionais. Nas áreas que antes eram utilizadas para a produção de alimentos para o

sustento familiar, passa a predominar a produção regida pela lógica do mercado,

promovendo profundas transformações na paisagem e fomentando o surgimento de

conflitos em os diferentes sujeitos que produzem o território. Urge alterar essa maneira

de conceber a conformação do pensamento genérico acerca da política de irrigação

implantada no Nordeste porque nela o controle da água, como instrumento de

empoderamento social, não é evidenciado, haja vista que isso poderia causar

desdobramentos políticos indesejáveis e induzir ações contrárias aos discursos imbuídos

de intento de naturalizar a falta de acesso à água e de deslegitimar os conflitos

relacionados ao seu uso e controle.

Grandes áreas do Semiárido brasileiro foram modernizadas mediante a

tecnificação do território, assumindo papel de destaque no cenário nacional, como

grandes produtoras de frutas tropicais direcionadas ao mercado internacional. O

slogan“desenvolvimento” impele o capital, em sua marcha expansionista destrutiva,

sobre os vales férteis que outrora eram ocupados pela agricultura camponesa, tendo

como pano de fundo o “progresso” trazido pelo capitalismo triunfante. A conformação

do Semiárido como fronteira agrícola para a fruticultura irrigada se expressa através das

muitas áreas nas quais o agronegócio impera e, junto com ele, toda uma teia de relações

de poder, dominação e articulações políticas e ideológicas, no intuito de consolidar as

suas bases e perpetuar as desigualdades sociais.

O agrohidronegócio tem expandido seus tentáculos em todos os biomas

(Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, ambientes costeiros,Pantanal, Pampa e Amazônia),

na busca de apropriação da água, justamente nos lugares onde o seu acesso e a

propriedade da terra não representem custos elevados. Terras planas, fertéis, mão de

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obra disponível e barata, associada à disponibilidade hídrica tornam-se atrativos para os

investidores que buscam condições adequadas para suas atividades econômicas. Além

dos impactos verificados na modernização das forças produtivas, tem-se uma

reorganização socioeconômica em função da expansão das atividades agroindustriais,

sendo marcantes as disputas (intra e intercapital) sobre uma mesma porção territorial.

No Centro-Sul do Brasil, mais especificamente, no Polígono do Agrohidronegócio72, a

grilagem de terras tem constituído um componente político importante para viabilizar a

agricultura baseada no modelo agroexportador-monocultor, cujo papel é o de

legitimar/legalizar o grilo no contexto da requalificação da dinâmica expansionista do

agronegócio canavieiro. Segundo Thomaz Junior (2010a, p. 103-4), outro

dispositivo também importante em relação às disputas que

requalificam a dinâmica expansionista do agronegócio canavieiro tem

a ver com a garantia de terras para a produção da matéria-prima. Os

expedientes que emprega contemplam a formalização de contratos de

parceria e de compra e venda, com proprietários regulares, via de

regra pecuaristas decadentes, mas seus responsáveis também estão

apostando no futuro do empreendimento como um todo, através da

tentativa de legitimar grandes extensões de terras devolutas, com

pendências jurídicas e improdutivas, o que se efetiva por meio de

contratos de arrendamento, pois, assim dividem os “riscos” com os

grileiros, usufruem dos preços mais baixos e podem contribuir para a

regularização dessas terras, o que lhes garantirá prioridade na sua

aquisição, depois de regularizadas juridicamente, mediante a vidência

do Decreto 578.

A reestruturação espacial do capital vem promovendo a inserção de novos

lugares, inclusive de regiões pouco desenvolvidas economicamente, em seu circuito de

reprodução, assumindo, em muitos casos, um caráter “civilizatório”. Essa mobilidade

leva em consideração diversos aspectos, como a existência de mão de obra barata

disponível, infraestrutura adequada, recursos hídricos e o apoio por parte do Estado para

evitar movimentos contrários à presença do grande capital na região. Na busca por

lugares com as condições favoráveis à reprodução do lucro e à geração de riquezas, o

capital tem gerado disputas nos mais diferentes ambientes, ao avançar por territórios sob

o domínio de camponeses e de populações tradicionais, como destacam Siqueira e

Zellhuber (2006, p. 112), ao afirmarem que a

causa geradora destes conflitos, no fundo, é a lógica capitalista do uso

dos chamados "recursos hídricos", que pode ser resumido como

72 Thomaz Junior (2010a) faz uma discussão sobre os conflitos territoriais decorrentes da expansão das plantas

processadoras e agroindustriais do setor canavieiro no Pontal do Paranapanema (SP), colocando em evidência

as estratégias utilizadas pelo capital, em seu processo expansionista, para ter acesso e controle sobre as terras

férteis e planas e com disponibilidade hídrica, aptas à mecanização.

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hidronegócio, termo que engloba todos os tipos de negócios que se

fazem hoje com a água ou relacionados a ela. É pelos caminhos das

águas que avança o capital no campo, interferindo, ocupando e

remodelando o espaço antes de posse e uso tradicional de

comunidades indígenas, quilombolas, extrativistas, agroextrativistas.

As principais faces do hidronegócio podem ser resumidas na produção

de energia hídrica, irrigação, carcinicultura (criação de camarão, que

consome 50 mil litros por quilo), saneamento ambiental, água

engarrafada. Como um país de grande potencial hídrico e agrícola,

relativamente pouco utilizado até agora, o Brasil tende a se tornar,

cada vez mais, grande exportador de água em produtos agrícolas e

agrocombustível (etanol e agrodiesel). E não está fora de cogitação a

privatização dos serviços de água e esgoto, através das Parcerias

Público-Privadas (PPPs).

Na Bahia, um dos exemplos emblemáticos desse fenômeno é a produção de

eucalipto, introduzida na década de 1980. Desde então, tem ela avançado sobre o

Extremo Sul, causando profundas transformações socioespaciais (uso da terra e da água,

expansão urbana, concentração fundiária, redução dos postos de trabalho no campo,

migração campo-cidade, entre outros), muito embora as atividades tradicionais, como a

pecuária, a agricultura para o autoconsumo e a pesca, continuem a desempenhar papel

importante para região. A territorialização de empresas, como a Veracel, Bahia Sul e

Aracruz, além das mudanças na paisagem, introduziu o Extremo Sul Baiano na

dinâmica econômica nacional e internacional, desencadeando, segundo Pedreira (2004),

a desestruturação da produção camponesa e a migração para a cidade. Inicialmente,

houve um crescimento significativo de postos de trabalho, devido à necessidade de mão

de obra para a instalação das plantas industriais e para o cultivo dos bosques, ocorrendo

posteriormente uma queda vertiginosa na quantidade de empregos, como demonstram

Almeida et al. (2008, p. 14), ao afirmarem que houve “crescimento no número de

empregados temporários entre 1970 a 1985 de 225%, saindo de 7.105 em 1970 para

23.111 trabalhadores em 1985. Já em 1995 esse número cai para 2.398 trabalhadores, ou

seja, uma redução de 863%, comparando-se com os anos de 1985 e 1995”.

A territorialização do grande capital em terras do Semiárido nordestino

configura novas paisagens, cria “ilhas” de crescimento econômico, modifica

culturalmente os lugares a partir da inserção de novas relações econômicas, sociais e de

trabalho, num intenso processo de des-re-territorialização. Soja, eucalipto, frutas, cana-

de-açúcar, camarões, e oleaginosas para a produção de agrocombustíveis têm avançado

sobre os territórios camponeses, indígenas e quilombolas, ocasionando conflitos e danos

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socioambientais sem precedentes na história agrária brasileira. Tal afirmação pode ser

elucidada se observarmos os dados disponibilizados pelo Caderno de Conflitos no

Campo 2012 (CPT, 2012, p. 26-7), onde se verifica que, dos 63 conflitos por terra no

estado da Bahia, 20 estão relacionados à construção da Ferrovia de Integração Oeste-

Leste (FIOL), destinada ao escoamento da produção de soja (Tocantins e Oeste baiano)

e de minério de ferro no Semiárido baiano (município de Caetité), cuja exploração seria

feita pela empresa Bahia Mineração (BAMIN).

Grandes extensões dos vales dos rios e dos perímetros irrigados no Semiárido

estão sob o domínio do agrohidronegócio. Nessas áreas predominam a monocultura, a

concentração de terras, o trabalho precarizado nas lavouras e nas agroindústrias e o uso

intensivo de agrotóxicos. Vale do Rio Açu (RN), Mossoró (RN), Baixo Jaguaribe (CE)

e região do Médio São Francisco (BA) ganharam notoriedade pelo fato de

transformarem-se num“mar verde” em pleno Semiárido. Conforme destaca Gomes

(2010, p. 61), como

consequência da territorialização do capital no campo, há um

incremento da oligopolização do espaço agrícola brasileiro,

acompanhado de um paralelo processo de fragmentação deste,

culminando numa nova divisão territorial do trabalho diretamente

relacionada ao setor agrícola.

Na Bahia, tanto a atuação do DNOCS quanto da CODEVASF tiveram como

desdobramentos a criação de vários projetos de irrigação, principalmente no vale do rio

São Francisco, num processo de reorganização socioespacial a partir de lógicas

totalmente alheias à realidade local. Atualmente, dois grandes empreendimentos na área

de irrigação vêm sendo implantados na região do vale do São Francisco, mais

especificamente no Médio São Francisco, fatos que demonstram que a política de

irrigação no Semiárido ainda continua com força, embora tenha sofrido algumas

mutações, devido ao processo de reestruturação produtiva do capital. Além das obras da

transposição do rio São Francisco, os projetos de irrigação do Baixio do Irecê (BA), do

Projeto Salitre, em Juazeiro (BA), representam, segundo o discurso do Estado, a

locomotiva desenvolvimentista para a região, mediante a oferta de emprego e a

superação da miséria, discurso exaustivamente utilizado quando o que está em jogo são

os interesses do grande capital. Deste modo, a

espacialização dos perímetros irrigados e das plantas

agroprocessadoras de frutas e das monoculturas, demonstra o

movimento do capital no Semi-árido nordestino, evidenciando as

regiões onde o capital concentra suas ações de maneira intensificada e

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articulada, com o propósito de reproduzir-se. A eleição dessas áreas

não se trata de um movimento despretensioso ou “natural”. Trata-se

de um conjunto de estratégias, na busca incessante pelo acesso e

controle da água. (DOURADO, 2011, p. 116).

A expansão das áreas irrigadas no Semiárido baianotraz elementos para análise

das controvérsias que perpassam a modernização desse território na perspectiva do

agrohidronegócio, porque os prejuízos são socializados e a riqueza concentrada, com a

formação de cidades-polo como é o caso de Juazeiro. Os hidroterritórios (TORRES,

2007) se constituem num ambiente conflituoso, porque colocam em disputa modelos de

desenvolvimento antagônicos, revelando as urdiduras do capital e do Estado para

garantir o controle de áreas com abundância hídrica. Mesmo com todo o aparato

midiático, aspersonas do capital não conseguem camuflar o fato de que a criação dos

perímetros irrigados acaba fomentando a plasticidade e a mobilidade do trabalho, tanto

nas comunidades próximas à sua localização quanto na cidade. A demarcação de

territórios pelo capital em função da disponibilidade de água é uma realidade neste

limiar de século XXI, com sérios agravos para os milhões de miseráveis de todo o

mundo e, principalmente,da América Latina, a quem foi atribuída a responsabilidade de

prover a manutenção do “desenvolvimento” do restante do planeta devido à riqueza de

sua sociobiodiversidade. Harvey (2011, p. 147) defende que o

direito a participar na construção da geografia do capitalismo é (...)

um direito em disputa. Embora as relações de poder na atual

conjuntura favoreçam, sem dúvida, a combinação de capital e Estado

sobre todo o resto, há importantes forças de oposição. E tanto o capital

quanto o Estado hoje estão na defensiva, suas alegações de que para o

benefício de todos estão criticamente desacreditadas, assim como suas

alegações de que são os benfeitores da humanidade como agentes da

acumulação do capital baseada no mercado.

Nos Brasil, os conflitos por água eclodem em todos os lugares, até mesmo em

regiões com grandes rios, como é o caso da região Norte, colocando a necessidade de

repensar o paradigma vigente do “desenvolvimento” e “modernidade”. O Semiárido,

com sua histórica escassez hídrica, não tem constituído um fator limitante para o grande

capital, haja vista que a seca possui gradações diferenciadas de influência na vida dos

sujeitos que compõem o mosaico social, político, econômico e cultural do Sertão.

Para os detentores do capital, o Semiárido representa uma oportunidade ímpar de

ampliação dos lucros e da extração de renda e riqueza,pois se utilizam de expedientes

para garantir seus propósitos, tais como velhas estruturas e ideias que, ao serem

reformuladas, transformam-se em elementos sustentadores da barbárie instalada.

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Nesse contexto, a geograficização da expansão do agrohidronegócio no

Semiárido deve representar uma possibilidade de cindir as “subtotalidades” locais, de

modo a dotá-las de valores e elementos que permitam pensar a modernização do

território a partir de uma lógica que não seja baseada na concepção equivocada do

agronegócio, como o único meio de promover o desenvolvimento do campo. O modus

vivendi dos múltiplos sujeitos que compõem os territórios do Semiárido não deve ser

desconsiderado na luta contra o capital, mesmo que, nesse embate de forças desiguais, o

agrohidronegócio busque, através do apoio do próprio Estado, (des)construir uma nova

racionalidade da água, atribuindo-lhe valor econômico em detrimento de todo o legado

simbólico-cultural que os camponeses caatingueiros trazem em suas relações sociais.

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CAPÍTULO III

TRAMAS DO AGROHIDRONEGÓCIO E A QUESTÃO AGRÁRIA NA BAHIA

A terra é, pois, um instrumento de trabalho

qualitativamente diferente de outros meios

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de produção. Quando alguém trabalha na

terra, não é para produzir a terra, mas para

produzir o fruto da terra. O fruto da terra

pode ser o produto do trabalho, mas a

própria terra não o é. (MARTINS, 1990, p.

159-160).

Este capítulo aborda questões relacionadas à estrutura fundiária da Bahia e, de

modo particular, como ocorreu o processo de apropriação de terras nos vales dos rios

Jacaré e Verde e os vínculos desse processo com os conflitos motivados pelo acesso à

água. Buscamos fazer um resgate histórico da estrutura fundiária da região que abrange

os municípios de Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique, com o propósito de conhecer a

origem das terras onde esta sendo implantado o Projeto de Irrigação Baixio de Irecê,

para verificar a veracidade das acusações de grilagem de terras ocorrida nessa região.

Ademais, serão evidenciadas as estratégias utilizadas pelo Estado para viabilizar o

acesso à terra e à água por parte dos agentes do capital, colocando em destaque as

disputas territoriais e de classes no campo, a partir da constituição do Polígono do

Agrohidronegócio na Bahia.

3.1 Tramas do Agrohidronegócio e reorganização territorial do Semiárido baiano

O desafio de analisar a conformação do agrohidronegócio exige conceber tal

processo numa perspectiva integradora, tanto do ponto de vista de sua espacialização e

materialização no território quanto em suas articulações político-ideológicas porqueo

mesmo se encontra envolto no manto desenvolvimentista cujo caráter “civilizatório”

exige que o espaço seja reorganizado para viabilizar sua expansão destrutiva. O

fenômeno expansionista do agrohidronegócio abrange múltiplas questões, desde a posse

da terra até os efeitos destrutivos da intensificação da exploração e precarização do

trabalho, num ambiente cuja aura reluz modernidade, eficiência e desenvolvimento.

Irrefreável, o capital, em sua mobilidade destrutiva, vai costurando o tecido espacial

para criar as condições necessárias à sua territorialização, numa meticulosa articulação

envolvendo o Estado e as elites regionais, de modo a criar vínculos locais para facilitar

seu estabelecimento numa dada região.

Os vínculos locais são necessários porque contribuem para que as metas, planos

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e programas sejam alcançados, ao passo que a movimentação do capital pelo espaço

reflete uma tendência mundial de seu metabolismo social em marcha para as áreas ainda

pouco exploradas e/ou com um potencial promissor para a produção de mercadorias.

Sob o escopo de gerar riquezas, emprego e renda, o capital disputa territórios com

camponeses e populações tradicionais, agora conclamados a “usufruírem” dos

benefícios do mundo moderno e de todas as (des)realizações inerentes à realidade atual

em que predominam as relações capitalistas de produção (e de descarte dos

trabalhadores), cujos valores éticos e morais passam a ser monetarizados e definidos em

função do lucro. De maneira geral, a territorialização do capital nos lugares é marcada

inicialmente pelo aumento do número de empregos (fase inicial de implantação dos

canteiros de obras e das plantas agroprocessadoras) e, em seguida, pela sua consequente

e imediata redução, num fenômeno caracterizado pela dilatação-contração do mercado

de trabalho. O discurso respaldado na geração de emprego e renda é uma base

importante para convencer as populações locais sobre os benefícios advindos da

chegada do “estranho”.

Nesse universo marcado por profundas contradições e pela reificação das

relações sociais de produção ante à falsa ideia de “autonomia” atribuída ao capital, faz-

se urgente debruçarmos sobre os espaços de expansão do agrohidronegócio na região

Nordeste do Brasil e, de modo particular, no Semiárido baiano, por entendermos que tal

fenômeno sublima o paradigma desenvolvimentista e fortalece, entre os sujeitos, a

concepção de inevitabilidade do progresso sob os moldes atuais, com profunda aversão

aos modos de vida (e expressões do trabalho) que fogem radicalmente das formas

(des)realizadas do trabalho cujo modelo colonial de apropriação e organização espacial

gera disputas territoriais e de classes.

Na atual configuração do agrário brasileiro, a hegemonia do “latifúndio

moderno-colonial” (PORTO-GONÇALVES; CUIN, 2013, p. 18) tem sido sustentada

por políticas públicas voltadas para garantir a segurança hídrica bem como para criar as

condições de acomodação das plantas agroprocessadoras e facilitar o escoamento da

produção.Se por um lado o Estado atua no sentido de absolutizar a importância da

modernização da produção agrícola, enfrenta, em contrapartida, resistência às ações levadas a

cabo para eliminar as formas de produção e de ocupação do espaço pautadas em pressupostos

obstaculizantes ao desenvolvimento das forças produtivas no campo. Thomaz Junior (2010, p.

97) ressalta que de

[...] forma consorciada, dispor de terra e água, mais ainda, controlá-

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las,possibilita ao capital condições para a prática da irrigação, o que

reforça e intensifica a expansão territorial sobre as melhores terras

para fins produtivos. Ou seja, o acesso às terras, seja pela titularidade

(legal ou grilada), seja por meio de contratos de arrendamento etc., é a

garantia que o capital, identificado como agronegócio (grandes grupos

econômicos nacionais e transnacionais), requer para reproduzir-se e

apropriar-se dos meios de produção e controlar o tecido social,

mediante o acionamento dos dispositivos das esferas da produção, da

circulação, da distribuição, do consumo, bem como especulativos.

No centro desse fenômeno estão as ações que colocam em trincheiras opostas

trabalhadores versus capital, revelando as fissuras no interior das políticas públicas e

dos projetos desenvolvimentistas executados pelo Estado. Na rota do desenvolvimento

estão populações tradicionais, camponeses, indígenas, entre tantos outros sujeitos,

considerados “opositores bárbaros” ao processo expansionista do capital em sua

tentativa de controlar as terras planas, férteis e com disponibilidade hídrica, como é o

caso das áreas onde estão localizadas as dezenas de perímetros irrigados no Semiárido

nordestino, revelando “[...] o conteúdo e os significados do processo expansionista do

agronegócio em geral.” (THOMAZ JUNIOR, 2010a, p. 96).

A territorialização do agrohidronegócio dá-se a partir de uma perspectiva

desintegradora. O start inicial desse fenômeno representa uma evolução do

agronegócio, com dependência direta dos recursos hídricos em decorrência da

commoditização da agricultura, inclusive de regiões até recentemente ocupadas com

lavouras para o autoconsumo. Terra e água são, no contexto da agricultura modernizada,

indissociáveis para a racionalidade do capital, cuja expansão vem ocorrendo por áreas

historicamente caracterizadas por déficit hídrico, fazendo aflorar, em meio à região

semiárida, verdadeiros oásis com uma agricultura irrigadatecnificada. Já na década de

1970, vales e chapadas em toda a extensão semiárida, desde Minas Gerais até o

Maranhão, foram alvos de investimentos públicos que promoveram uma valorização das

terras e despertaram o interesse do capital (agora financeiro e transnacionalizado).

Inicialmente a preocupação era liberar a terra sob o jugo da agricultura camponesa,

utilizando para tanto medidas legais, como é o caso da Política Nacional de Irrigação

que não contempla a construção de perímetros irrigados para reforma agrária.

Com a consolidação da irrigação no Nordeste semiárido e em virtude da própria

mobilidade do capital em busca de novas áreas a serem incorporadas ao processo

produtivo, houve alterações profundas na dinâmica territorial das regiões onde estão

localizados os perímetros irrigados. Os impactos são os mais diversos, encimados na

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supervalorização da geração de emprego e renda, enquanto outros efeitos foram, em

contrapartida, invisibilizados e somente agora passaram a ser mensurados, como o uso

intensivo de agrotóxicos e todos os perigos decorrentes dessa prática (surgimento de

doenças, contaminação da água), danos ambientais, segregação socioespacial,

flexibilização e precarização das relações de trabalho, especulação imobiliária, entre

tantos outros. Sobre os desdobramentos negativos do atual modelo de agricultura em

franca ascensão no Semiárido nordestino, Rigotto et al. (2013, p. 67) relatam que o

uso intensivo de agrotóxicos é consequência da forma de produção do

agronegócio que parte do desmatamento e da destruição da

biodiversidade dos biomas para implantar o monocultivo de

commodities em grandes extensões, através da imposição de intenso

ritmo de produção à terra. Faz parte das transformações em curso nos

processos de produção e nas relações de trabalho no campo, a partir da

mecanização agrícola, da superexploração da força de trabalho e da

introdução da biotecnologia com organismos geneticamente

modificados, como é o caso dos transgênicos. Fortemente apoiado

pelas políticas de desenvolvimento agrícola dos governos

(financiamento, infraestrutura, flexibilização da legislação,

impunidade, entre outros), este complexo de sistemas agrícolas,

industriais, de mercado e financeiro controlado por corporações

transnacionais, gera impactos que repercutem sobre toda a população

brasileira.

Os resultados das pesquisas realizadas por Rigotto et al. (2011, 2012) no estado

do Ceará, mais especificamente no município de Limoeiro do Norte, Chapada do Apodi,

são bastante emblemáticos sobre os efeitos nefastos do agronegócio para o ambiente e

para a saúde dos trabalhadores e da população que vive no entorno dos perímetros

irrigados. O atual modelo de agricultura privilegiado pelas políticas públicas e projetos

desenvolvimentistas postos em execução no Semiárido corrobora o papel assumido pelo

Brasil no cenário mundial, como um dos maiores produtores de commodities para

exportação, num contexto de dominação do capital transnacional, altamente vinculado

aos “conglomerados agro-químico-alimentares-financeiros.” (THOMAZ JUNIOR,

2010d, p. 98). De modo marcante, o agrohidronegócio tem provocado movimentos de

territorialização, desterritorialização e reterritorialização do trabalho, no campo e na

cidade, colocando inúmeras travagens para os trabalhadores e camponeses que passam a

sofrer os efeitos da superexploração da mão de obra, bem como a dissolução de modos

de vida tradicionais frente à imposição de novas relações fundamentadas na produção de

mercadorias e na extração da mais-valia.

Muitos camponeses desterreados pela implantação dos perímetros irrigados

acabam retornando a esses mesmos espaços, agora como mão de obra assalariada, fato

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verificado nas comunidades do Baixo Salitre, em Juazeiro. Isso, por sua vez, não ocorre

mediante a posse da terra, dando-se exclusivamente através da venda diária da força de

trabalho. Um segundo grupo consegue inserir-se nos perímetros irrigados através dos

processos seletivos, tornando-se irrigantes. Algum tempo depois, porém, muitos, não

conseguindo adaptar-se à agricultura irrigada sob os moldes empresariais, acabam

desistindo dos lotes. Sobre essa questão, Pontes et al. (2013, p. 3217) reforçam que os

camponeses,

expropriados de suas terras por conta da pressão exercida pelos

latifundiários, veem-se diante da alternativa infernal de aceitar o

emprego oferecido na grande empresa, passando de trabalhadores

autônomos para assalariados do agronegócio. Evidencia-se ainda a

sazonalidade nos vínculos trabalhistas, com contratos que duram

somente seis meses, correspondentes ao período da plantação até a

colheita dos frutos, momento em que a empresa necessita de mais mão

de obra. Ao final desse período, grande parte dos trabalhadores é

demitida, configurando-se assim uma - força de trabalho descartável.

Há também aqueles que retornam aos territórios do agrohidronegócio (leia-se

perímetros irrigados) na condição de acampados, fato que revela a pluralidade de

fenômenos no âmbito da questão agrária no Semiárido nordestino, conforme detectamos

no Projeto Salitre, através do acampamento Abril Vermelho. As ocupações feitas pelos

camponeses nos perímetros irrigados revelam as tensões, fissuras e conflitualidade no

cerne dos projetos desenvolvimentistas executados pelo Estado, revelando também o

caráter destrutivo do sistema de acumulação capitalista.

Devido à revalorização da agricultura irrigada pelo Estado nos anos de 1990,

ocorreu o resgate dos projetos hídricos no Semiárido brasileiro com a construção de

diversos perímetros irrigados e a modernização de muitos já existentes, por meio de

vários programas governamentais como o PAC. Nesse contexto, terra e água assumem

conotações antagônicas para camponeses e para empresas do setor frutícola,

representando para os primeiros, terra e água de trabalho, ao passo que, para o segmento

empresarial, trata-se de uma forma de obtenção de lucros e extração de mais-valia,

mediante a subtração das riquezas oriundas da exploração da força de trabalho, da terra

e da água.

Eivada de contradições, a territorialização do agrohidronegócio ocorre por meio

da integração entre espaço, território, lugar e paisagem, num processo de coalização de

forças políticas e econômicas, com diversos desbobramentos (Organograma 2).

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Organograma 2 – Perspectiva (des)integradora do agrohidronegócio

Org.: DOURADO, J. A. L.

Elab.: HOLANDA, E. P.

O espaço como categoria partner da atuação do homem sofre os efeitos da

presença do grande capital mediante a intensificação dos fluxos materiais e imateriais

(pessoas, serviços, informações e transações comerciais), sob uma nova racionalidade

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bastante distinta daquela anterior à chegada da fruticultura irrigada na região. Arraigado

no ideal de progresso e desenvolvimento, o Estado tem direcionado grandes volumes de

recursos financeiros para obras de infraestrutura hídrica (transposição do São Francisco,

Projeto Salitre e Projeto Baixio de Irecê), dando uma significativa contribuição para

promover a mercantilização da água. Não está na pauta de discussão da esfera

governamental pensar na desconcentração do controle sobre a água no Semiárido

nordestino, ou seja, reforma hídrica, fato que, associado à concentração fundiária, acaba

gerando movimentos de resistência encampados pelos camponeses, conforme

detectamos nas regiões do Médio e Submédio São Francisco. No bojo do planejamento

governamental está o interesse em expandir e fortalecer as ações do grande capital,

usando para tanto o aparato discursivo do desenvolvimento que substitui a ideia de

progresso colapsada a partir de 1929 com a crise do capitalismo. Assim, o termo

desenvolvimento passa a ser uma espécie de classificação para dividir o planeta em dois

polos: de um lado, os países desenvolvidos e, na outra esfera, os países

subdesenvolvidos, ou seja, aqueles que foram explorados e garantiram, com sua miséria,

o desenvolvimento dos exploradores. Conforme Castoriadis (1987, p. 140), o termo

desenvolvimento

[...] começou a ser empregado quando se tornou evidente que o

progresso, a expansão, o crescimento não eram virtualidades

intrínsecas, inerentes a todas as sociedades humanas, cuja efetivação

(realização) se pudesse considerar como inevitável, mas propriedades

específicas – dotadas de um valor positivo – das sociedades

ocidentais.

Nesse mesmo direcionamento, Dourado e Thomaz Junior (2012, p. 4) tecem

críticas à postura adotada pelos países ditos “em desenvolvimento”, ao destacar que a

concepção de desenvolvimento é usada como retórica para sustentar o

planejamento eexecução de grandes obras, de modo a anular ou

deslegitimar quaisquer ações contrárias à sua implementação. A

retórica do “desenvolvimento sustentável”, por exemplo, é uma das

máximas que caracterizam o discurso do capital e do Estado ao

justificarem o investimento em determinados setores, como a

construção de hidrelétricas, a produção de agrocombustíveis (tidos

como energia limpa), a exploração mineira, implantação de parques

eólicos, construção de rodovias, ferrovias e projetos de irrigação. Não

seria exagero afirmar que essa perspectiva de desenvolvimento acaba

por privatizar os territórios, controla e disciplina aqueles que

historicamente estiveram vinculados a eles.

De modo articulado, a efetivação dos investimentos públicos em obras de

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infraestrutura hídrica sob os ditames da racionalidade do capital tem promovido

diversos processos de territorialização-desterritorialização-reterritorialização, sendo o

Estado o agente precípuo nesse universo contraditório, em que a pujança de

investimentos em programas e projetos não tem conseguido alterar a estrutura de poder

no Semiárido – destituir do poder os donos da terra e da água. De acordo com Thomaz

Junior (2010, p. 98-9), a

posse da terra e da água nos remete a refletir o papel do Estado no

empoderamento do capital e seus efeitos no quadro social da exclusão,

da fome, e da emergência da reforma agrária e da soberania alimentar.

É dessa complexa e articulada malha de relações que estamos focando

esse processo no âmbito do agrohidronegócio, por onde nos propomos

entender os desafios para a sociedade, para os moradores das cidades e

dos campos, ou seja, a dinâmica geográfica da reprodução do capital

no século XXI e os cenários que põem para os trabalhadores.

O Estado acaba transformando-se num importante agente deflagrador dos

conflitos, mas, em contrapartida,incorpora o papel de mediador na relação capital versus

trabalho, frente aos movimentos sociais contrários à execução dos empreendimentos,

exigindo, ainda, acesso aos benefícios decorrentes desses investimentos. Nesse sentido,

ao territorializar-se o agrohidronegócio, promove processos desterritorializantes e cria

micropoderes em conflitos, ao colocar em rota de colisão diferentes frações da classe

trabalhadora que passam a disputar entre si o território sob o domínio do grande capital

ou do Estado. Essas disputas internas fragmentam a luta de classes, sendo tais

dissidências um desafio a ser superado pelos movimentos sociais, para unificar a luta,

potencializar a ação política da classe trabalhadora e superar a (des)identidade do

trabalho. Outro elemento a ser destacado são as relações complementares e conflitantes

engendradas no contexto da territorialização do agrohidronegócio, porque as

articulações realizadas entre os movimentos de contestação procuram estabelecer pactos

para fortalecer o embate contra os atores hegemônicos. Através da coalisão de forças

políticas, os sujeitos desterritorializados abrem trincheiras para disputar com o grande

capital os territórios alvos de investimentos públicos, como forma (re)existir aos

processos homogeneizantes intrínsecos à globalização econômica e à massificação

cultural e social dela decorrentes.

Quando analisamos a expansão do agrohidronegócio pelo Semiárido baiano,

verificamos uma tendência de homogeneização dos modos de vida, com uma

consequente descaracterização dos aspectos simbólicos e culturais das populações que

vivem no campo, mediante a introdução de formas de uso e de ocupação da terra

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divergentes daquelas costumeiramente feitas pelos camponeses e povos tradicionais.

Para os camponeses, as práticas culturais estão relacionadas às memórias de seus

antepassados, pautadas em relações com a terra; não como uma mercadoria, mas como

“[...] território de vida, da própria existência” (THOMAZ JUNIOR, 2013b, p. 10).

Questionar a legitimidade do agrohidronegócio significa para os camponeses a

possibilidade de defender sua própria existência e sua autonomia (mesmo que parcial)

em relação ao grande capital.

A territorialização do agrohidronegócio interfere na dinâmica do campo,

reorganizando-o para atender suas necessidades, fato que acaba por comprometer

significativamente as formas de organização social que possam obstaculizar sua

reprodução. Sabe-se que as ações dos conglomerados agro-químico-alimentares-

financeiros possuem forte dependência da subtração ou da subordinação dos espaços

ocupados pelo campesinato e por povos tradicionais, fato causador de disputas pelo

território, conforme constatamos nos projetos de irrigação Baixio de Irecê e

Salitre.Devido à cooptação feita pelaspersonas do capital aos sujeitos atingidos pelos

grandes empreendimentos, ocorre, muitas vezes, um estranhamento de identidade entre

os camponeses, que se colocam em campos opostos e cujos ideais representam

perspectivas políticas e econômicas antagônicas. Isso cria identidades estranhadas no

interior do campesinato, quando determinados sujeitos passam a defender a viabilidade

e/ou a importância dos projetos executados pelo Estado e pelo grande capital,

provocando dissidências na luta de classes. Os fluxos migratórios de trabalhadores para

as cidades onde são implantados os projetos de irrigação, em busca de emprego,

constituem outro fator desencadeador de identidades estranhadas, pois o contato entre as

populações camponesas e os “de fora” gera conflitos, em decorrência de diversos

fatores, inclusive culturais, políticos e religiosos. Essa convivência entre os de “dentro”

e os de “fora” não ocorre de maneira harmônica, haja vista que as identidades

territoriais interferem, sobremodo, na forma como os sujeitos ocupam o espaço e

produzem seus territórios.

De outro modo, e não menos representativo, destacamos as alterações

verificadas na paisagem73, como desdobramentos da reorganização da dinâmica

73 A paisagem não constitui um elemento de pesquisa para os geógrafos marxistas, tendo essa categoria

maior importância para a geografia física e a geografia cultural ou humanística. Percebe-se, então,

segundo Schier (2003, p. 85), “que não existe uma geografia que sirva ao estudo, em todos os níveis, da

paisagem. Pois sua complexidade torna impossível qualquer análise geográfica sob a luz de uma única

abordagem. Assim, toma-se então que o olhar a partir de uma determinada abordagem constrói um filtro

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socioespacial para adequar-se aos interesses do capital. Desflorestamento de grandes

áreas, barramento de rios, construção de plantas agroprocessadoras, motomecanização

da produção, intensificação da exploração dos recursos naturais (terra, água e florestas)

são alguns dos efeitos da presença do grande capital, fato desencadeador de profundas

mudanças na paisagem geográfica. Paisagem aqui entendida como uma composição de

elementos naturais e sociais, cuja construção dá-se pela relação homem-natureza,

mediada pelo trabalho. Assim, a (des)construção da paisagem nas áreas hegemonizadas

pelo grande capital expressam valores precipuamente econômicos, desconsiderando

outras representações simbólicas (culturais e religiosas, por exemplo). Sucessivas

adições e subtrações realizadas pelo capital e pelo Estado provocam alterações na

paisagem, por meio da introdução de novos elementos, ou ainda, de novas formas de

exploração da terra, tornando-a cada vez mais tecnificada e “moderna”.

3.2 Avanço das fronteiras do capital e os conflitos por água no Brasil

O Brasil é mundialmente reconhecido pela riqueza em água doce, devido à

grandiosidade dos rios que cortam o território nacional concentrando 13,8% de toda a

água doce do planeta e à presença do Aquífero Guarani que abrange uma área de

840.000 km, englobando porções dos estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas

Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. As reservas

permanentes desse aquífero (água acumulada ao longo do tempo) é da ordem de 45.000

Km³.

Desigualmente distribuída pelas cinco regiões brasileiras, temos dois extremos,

ou seja, de um lado a região Norte, onde se localiza a maior bacia hidrográfica do

mundo e, de outro, a região Nordeste, onde se registra um elevado déficit hídrico em sua

porção semiárida. A água no Brasil encontra-se assim distribuída:a região Norte tem

aproximadamente 68,5%, o Centro-Oeste 15,7%; o Sudeste 6%; o Sul 6,5% e o

Nordeste 3,3%, sendo o sertão pernambucano a região com a menor disponibilidade de

água por pessoa/ano (1.270 m³). Para Malvezzi (2008, p.82-3), o

problema do Nordeste, após a construção de 70 mil açudes que

armazenam 37 bilhões de metros cúbicos de água, está na sua

distribuição. Essa água é suficiente para as demandas domésticas. Daí

que ressalta o que essa abordagem propõe, e a paisagem, seja física ou cultural, exige uma filtragem

mais ampla que, algumas vezes, foge até mesmo das questões geográficas mais clássicas, necessitando

uma filtragem científica, cultural, filosófica, política, entre outras, mostrando um caráter

multidisciplinar no seu estudo”.

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a reivindicação das adutoras que cumpram esse papel distributivo.

Segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), 530 obras seriam

suficientes para atingir aproximadamente 1.300 municípios,

oferecendo segurança hídrica a 34 milhões de nordestinos que vivem

no meio urbano.

Em 2002 a CPT passou a registrar os conflitos pela água74 e, desde então, esses

dados têm permitido analisar a intrínseca relação existente entre o modelo atual de

desenvolvimento adotado para o Brasil e o fenômeno de apropriação/mercantilização da

água. Atendendo aos preceitos neoliberais, a Política Nacional de Recursos Hídricos (lei

nº 9.433/97) implementou um modelo mercantil de gestão hídrica favorável à

privatização do uso da água, com destaque para a outorga como instrumento que

viabiliza a exploração da água sob os ditames das leis de mercado. Sobre esse assunto,

Malvezzi (2011, p. 86) afirma que a água

passou a ser vista com mercadoria, como um bem a ser privatizado e

mercantilizado, ainda que seja pelo “jeitinho” brasileiro da outorga. O

argumento da normatização do uso da água pela outorga – instrumento

de controle do uso - é legítimo, mas ele é apenas o pretexto para o uso

intensivo da água de forma legal e tantas vezes ilegal, além de

predadora. Mesmo que funcionasse como instrumento de

normatização, a outorga não garante a equidade social no uso da água,

já que o capital tem o poder de reservar para si volumes que as

populações não têm.

A atuação do Estado tem alargado as “fronteiras” do capital sobre diferentes

frações do território brasileiro, inclusive por regiões ditas pouco desenvolvidas, o que

tem gerado diversos conflitos pelo acesso e pelo controle da água. Atualmente, no

Brasil, há uma relação direta entre os grandes empreendimentos executados pelo Estado

e a questão da água, porque tais projetos desenvolvimentistas são fortemente

dependentes de grandes volumes desse bem natural. Irrigação (fruticultura), mineração,

monocultivos (soja, eucalipto), associados à geração de energia hidrelétrica (construção

de barragens) e à mineração, têm protagonizado disputas pelo território entre o capital e

as comunidades camponesas e povos tradicionais. Para Gonçalves (2013, p. 93) é

[...] clara a disputa entre grandes empresas de capital nacional e/ou

estrangeiro pelos territórios – terra e água - de comunidades

camponesas. Estes conflitos envolvem e prejudicam principalmente

comunidades de pescadores, ribeirinhos, indígenas, quilombolas,

pequenos agricultores, assentados pela reforma agrária, dentre outras.

74 A CPT entende os conflitos pela água como “ações de resistência, em geral coletivas, para garantir o

uso e a preservação das águas e de luta contra a construção de barragens e açudes, contra a apropriação

particular dos recursos hídricos e contra a cobrança do uso da água no campo, quando envolvem

ribeirinhos, atingidos por barragens, pescadores, etc.” (Conflitos no Campo no Brasil, 2006, p. 10).

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No cerne desses conflitos, estão formas distintas de uso e de apropriação da

água, pautadas por racionalidades antagônicas e mediadas por correlações de forças

desiguais entre os sujeitos. De um lado, está o Estado exercendo a função de direcionar

recursos públicos para a execução de projetos, visando ao crescimento econômico do

Brasil, principalmente através do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES)

e, no outro horizonte, estão os sujeitos que buscam, por meio do enfrentamento, manter

o domínio sobre os territórios de vida e de trabalho. Segundo Pacheco (2013, p. 98), os

conflitos sociais existem porque a água está ameaçada como bem

comum. O aprisionamento da água para uso privado, para a sua

mercantilização direta ou na forma de minérios, energia, insumo na

produção agrícola e industrial, é o que a torna escassa e motivo de

disputa. A água pode ser tratada como um mero recurso natural, na

visão de empresas e, muitas vezes, de governos, ou como um bem

essencial à própria vida. A disputa se dá por interesses e formas

radicalmente diferentes de se relacionar, e os conflitos se intensificam

entre a visão diversa do capital viabilizado pelos governos e a visão

cosmológica dos povos e comunidades tradicionais.

Ao longo dos últimos 11 anos, houve um aumento vertiginoso nos casos de

conflitos pela água (Quadro 10) no Brasil, passando de 8 ocorrências (1.227 famílias

envolvidas) em 2002 para 93 casos em 2013 (envolvendo 26.976 famílias), em todas as

regiões do país, inclusive naquelas com maior infraestrutura e aparato estatal de

fiscalização. O Estado, como grande empreendedor das obras hídricas, tem socializado

os custos e privatizado os seus benefícios, pois os empreendimentos financiados com

recursos públicos são entregues para o capital privado, como é o caso das hidrelétricas e

dos projetos de irrigação. Em 2013 foram registrados 104 casos de conflitos pela água

no Brasil, envolvendo 31.426 famílias. Quando a edição do Caderno de Conflitos no

Campo 2013 já havia sido finalizada, chegou até o conhecimento da CPT a ocorrência

de mais 11 conflitos, não sendo, porém, mais possível inseri-los, pois os dados já

tinham sido analisados pelos autores.De acordo com Pacheco (2013, p. 98), entre as

causas dos conflitos

temos: 44 casos provocados pela construção de barragens e

hidrelétricas (42,31 %); 31 ocorrências deflagradas por mineradoras

(29,8 %); 15 casos por destruição e poluição (14,4 %) e 11

correspondem, especificamente, à apropriação e impedimento de

acesso (10,6%), embora todas as formas apresentadas acima também

representem expropriação e impedimento de acesso.

Nesse cenário desenvolvimentista, os camponeses e os povos tradicionais

passam a enfrentar um novo agente desterritorializante, ou seja, os grandes grupos

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econômicos, tais como a Odebrech e a Camargo Correia, além dos velhos e novos

coronéis donos das terras e da água.

Quadro 10 – Conflitos por água no Brasil – 2002/2013

Ano Casos Famílias Ano Casos Famílias

2002 8 1.227 2008 46 27.156

2003 20 9.601 2009 45 40.335

2004 60 21.449 2010 87 39.442

2005 71 32.463 2011 68 27.571

2006 45 13.072 2012 79 31.784

2007 87 32.747 2013 93 26.967

Org.: DOURADO, J. A. L.

Fonte:Conflitos no campo, 2013.

As causas dos conflitos são diversas (Quadro 11) e, mesmo enfrentando vários

movimentos de resistência, o Estado tem seguido adiante com a execução de obras

extremamente polêmicas, como a hidrelétrica de Belo Monte (PA), a transposição do

São Francisco e o Projeto Baixio de Irecê. Além dessas, há uma agenda de planejamento

para a construção de hidrelétricas e perímetros irrigados em vários estados brasileiros

nos próximos anos. O represamento dos rios é a principal causa de conflitos nas regiões

Norte e Sudeste, com destaque para os empreendimentos barrageiros na Amazônia, a

nova fronteira hidroenergética do Brasil. A mineração constitui outra atividade

econômica geradora de conflitos, principalmente no Nordeste e Sudeste do país. O

Centro-Oeste,entre todas as regiões brasileiras, possui o menor número de ocorrência de

conflitos pela água.

Quadro 11 – Número e causas dos conflitos pela água no Brasil em 2013 por região

geográfica

Região Casos Uso e

Preservação

Barragens

e açudes

Apropriação

Particular

Nordeste 37 27 8 2

Norte 27 6 19 2

Sudeste 18 8 9 1

Centro-Oeste 3 1 2 0

Sul 8 3 5 0

Total 93 45 43 5

Org.: DOURADO, J. A. L.

Fonte:Conflitos no Campo, 2013.

Analisando os casos de conflitos pela água na região Nordeste (Quadro 12),

a Bahia registrou o maior número entre todos os estados, envolvendo movimentos de

camponeses e de comunidades tradicionais no enfrentamento aos projetos de irrigação e

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de mineração, principalmente. Em 2013, a atividade mineradora foi responsável por 15

conflitos, com destaque para os municípios de Pindaí (10 casos) e Caetité (5

ocorrências), envolvendo comunidades tradicionais e o Projeto Pedra de Ferro/Bamin75,

ambos localizados na região semiárida do Sudoeste baiano. Já no estado do Ceará, duas

obras do PAC (Barragem do Figueiredo e Eólica Icaraí) e uma obra do DNOCS (Projeto

de Irrigação Tabuleiro de Russa, em Limoeiro do Norte) foram as principais

responsáveis pelos 4 conflitos registrados. Em Pernambuco, o estado com o segundo

maior índice de conflitos, 2 dos 5 casos foram deflagrados por obras do PAC

(Complexo Suape e a transposição do São Francisco). Somados os conflitos nos estados

nordestinos, obteve-se o total de 4.182 famílias envolvidas, em sua maioria camponeses

e populações tradicionais que lutam contra os projetos hegemônicos do Estado

executados em benefício da reprodução do capital, em terras até então pouco

valorizadas economicamente.

Quadro 12 - Conflitos pela água na Região Nordeste – 2013

Estado Nº de

Conflitos

Nº de

Famílias

Alagoas 2 66

Bahia 21* 259

Ceará 4 465

Maranhão - -

Paraíba 3 1300

Pernambuco 5 892

Piauí - -

Rio Grande do Norte 1 1200

Sergipe 1 **

Total 37 4.182

Org.: DOURADO, J. A. L.

Fonte:Conflitos no Campo, 2013.

* Com os dados atualizados o número de conflitos na Bahia passa para 27

casos.

**Dados não informados.

Em 2013 foram registrados 21 conflitos pela água na Bahia. A sequência

histórica dos conflitos pela água na Bahia registrada pela CPT (Quadro 13) acompanha

a tendência ascendente do Brasil. Ao resgatar os últimos quatro anos (2010, 2011, 2012

e 2013) registrados pela CPT, constatou-se haver uma supremacia dos conflitos

75 O minério de ferro é exportado, em sua grande maioria, para a China e o Japão, com total isenção de

ICMS e com taxas extremamente reduzidas de royalties, repassados para municípios e estados

mineradores.

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deflagrados pela mineração (ferro, urânio e ouro, principalmente), trazendo à tona os

desdobramentos do avanço dessa atividade sobre os territórios camponeses e

quilombolas.

Quadro 13 – Conflitos pela água na Bahia – 2002/2013

Ano Número de conflitos Número de famílias

envolvidas

2002 1 23

2003* - -

2004 4 395

2005 7 775

2006 3 750

2007 2 725

2008 7 1.964

2009 2 1.230

2010 15 5.230

2011 9 1.151

2012 8 720

2013 21 259

Org.: DOURADO, J. A. L.

Fonte:Conflitos no Campo, 2013.

* Não foram registrados conflitos pela água nesse ano, na Bahia.

A análise das informaçõesdisponibilizadas pelo Departamento Nacional de

Produção Mineral (DNPM), relacionadas à mineração na Bahia (Mapa 8), permite

visualizar que as regiões da Chapada Diamantina e a região Norte são aquelas com

maior quantidade de pedidos de autorização/requerimento de pesquisa e pedidos de

concessão/requerimento de lavras. No Extremo Sul, é a territorialização dos

monocultivos de eucalipto a causadora do aquecimento do mercado de terras e da

expropriação de camponeses e indígenas, causadores, por sua vez, de disputas

territoriais envolvendo o acesso à terra e à água, como é o caso registrado no município

de Mucuri, devido à presença da empresa Suzano/Fibria Papel Celulose.

Os conflitos decorrentes da implantação dos perímetros irrigados Baixio de Irecê

e Salitre comparecem, na edição de 2008, como um conflito por terra; todavia, esses

movimentos configuram-se como conflitos pelo acesso à água. Nesse mesmo ano,

muitos conflitos tiveram como propósito solidarizar com o ato de Dom Luiz Cappio

contra a transposição do São Francisco.

O crescimento do número de conflitos pela água na Bahia está relacionado ao

processo de valorização das commodities agrícolas e minerais no mercado internacional.

Essas tensões trazem à tona a necessidade de repensar o modelo de desenvolvimento

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adotado para o Brasil, porque não alteram as estruturas de poder político e econômico.

Para Thomaz Junior (2012, p. 11), as

disputas por água nos territórios de expansão do agrohidronegócio –

perímetros irrigados, áreas de mineração, expansão da soja e da

silvicultura, na região do Semi-árido baiano – trazem à tona as

contradições expressas pelo modelo de desenvolvimento adotado para

essa região, bem como as reivindicações das comunidades tradicionais

(quilombolas, ribeirinhas), camponeses e povoados que ainda hoje não

têm acesso à água, ficando estes impossibilitados

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Em pleno século XXI, a perspectiva quinhentista de explorar até a exaustão é a

tônica das atividades praticadas pelos grandes grupos econômicos nacionais e

estrangeiros, sem respeitar a existência de outras lógicas materializadas no território. A

subordinação às leis de mercado leva o Estado a imprimir uma proposta

desenvolvimentista em que camponeses e povos tradicionais são transformados em

obstáculos diretos à concretização de tal perspectiva, porque esses sujeitos, sempre

sobrepujados/não contemplados/alienados/afastados/distanciados das políticas públicas

e do acesso aos benefícios oriundos dos investimentos estatais, foram, ao longo da

história, ocupando os espaços que atualmente despertam o interesse do grande capital.

Mesmo depois de enfrentar todos os revezes decorrentes do processo de reestruturação

produtiva do capital, associados aos desastres da Revolução Verde, a opção adotada

para promover o crescimento econômico brasileiro tem sido a incorporação de novas

áreas à lógica destrutiva do capital e sua incessante corrida para acumular lucros. Tal

cenário nos credencia a perspectivar o agravamento dos conflitos porque camponeses e

povos tradicionais, cada vez mais, serão pressionados a ceder seus territórios para o

capital, levando-os a protagonizar movimentos de resistência à consolidação do

agrohidronegócio, que avança num avassalador processo de supressão dos obstáculos à

sua territorialização, utilizando para tanto o poder político e midiático.

3.3 Polígono do Agrohidronegócio na Bahia e a usurpação dos territórios

camponeses

O final dos anos 1970 e início da década de 1980 representam, no âmbito da

Bahia, o marco inicial daquilo que viria a se conformar atualmente como o Polígono do

Agrohidronegócio, representado pela soja, eucalipto, fruticultura irrigada e a produção

de agrocombustíveis. A perspectiva de tratar a territorialização do capital a partir da

ideia de polígono é um esforço analítico-metodológico com o objetivo de demonstrar

como a integração do território à lógica destrutiva do capital vai açambarcando novas

áreas e tecendo tramas entre estas e as antigas, de modo a entrelaçar atividades

aparentemente distintas, mas com um único propósito, ou seja, a reprodução ampliada

de riquezas pautada no “trabalho estranhado76” (ANTUNES, 2004, p. 141). Na

76 Antunes (2004) destaca que a relação do trabalhador com o produto de seu trabalho torna-se

estranhada quando aquele (o trabalhador) não reconhece que a riqueza gerada por seu trabalho acaba

sendo apropriada pelo capital.

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determinação do Estado como agente organizador do espaço, as ações convergem para

criar mecanismos capazes de articular as políticas de incentivos financeiros e a oferta de

terra e água, viabilizando assim o empoderamento do capital. Nessa seara, temos a

combinação de práticas modernas e arcaicas, cuja acomodação entre si é vital para a

consolidação do projeto hegemônico do capital, em que o papel do Estado é

indispensável para legitimar suas ações e mecanismos, tanto no que se refere ao

domínio da terra e da água quanto ao controle social exercido sobre os camponeses e

trabalhadores da terra envolvidos em ações de resistência e de luta pela conquista ou

permanência nos territórios. Ao debruçar sobre esse assunto, Thomaz Junior (2010, p.

91-92) defende que a

evidente vinculação entre a expansão das áreas de plantio das

commodities com a disponibilização dos recursos terra e água tem

sido imprescindível para as estratégias do capital. Assim, a posse da

terra e da água nos remete a refletir o papel do Estado no

empoderamento do capital e seus efeitos no quadro social da exclusão,

da fome, e da emergência da reforma agrária e da soberania alimentar.

Nesse imbróglio, o que temos é o capital financeiro ultrajado e atuando em

distintas atividades no campo, mas, em sua essência, similares devido à dependência de

grandes volumes de água bem como de terras férteis para a agricultura empresarial.

Nesse jogo de cena vale tudo, desde práticas seculares como a grilagem de terras até a

implementação de políticas públicas com a intenção de desfocar a questão agrária e de

forjar um consenso, entre os grupos sociais, sobre as condições de acesso à terra e de

permanência na terra bem como de acesso à água.

Dilui-se, através da negação, a existência de perspectivas distintas e conflitantes

acerca da posse e do uso da terra e da água, em nome do propalado desenvolvimento

territorial rural, mediante a homogeneização do planejamento e da gestão territoriais,

em que o território constituía síntese das relações contraditórias estabelecidas do capital

versus trabalho e do enfrentamento daqueles menos favorecidos que veem, na luta pela

terra, uma possibilidade de emancipação como contraposição à valorização do mundo

das coisas e à “desvalorização do mundo dos homens” (ANTUNES, 2004, p. 143).

O planejamento dos primeiros perímetros irrigados iniciou na década de 1970,

seguindo a lógica da integração regional à economia nacional, como forma de promoção

do desenvolvimento a partir da agricultura irrigada. Tais empreendimentos seguem o

curso do rio São Francisco e seus afluentes. Na Bahia, a maior concentração de

perímetros irrigados está no Submédio São Francisco. Com o processo de modernização

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da agricultura verificado na região do Cerrado brasileiro, a região oeste da Bahia foi

incorporada à fronteira agrícola a partir da expansão da soja, principalmente nos

municípios de Barreiras e São Desidério. Também na década de 1980, foram

implantadas na Bahia as primeiras unidades de cultivo de eucalipto, no extremo sul do

estado, transformando-se atualmente na segunda maior região produtora de eucalipto do

país. O desenvolvimento da atividade citrícola na região do Litoral Norte da Bahia

ocorreu na década de 1970 (SANTOS, 2009, p. 30), mediante incentivos do Estado,

representando o desenho do processo de territorialização do capital nessa porção do

território baiano. Assim, o desenho do agrohidronegócio na Bahia foi constituído por

diferentes atividades agrícolas, tendo em comum a forte dependência em relação aos

recursos hídricos, pois se trata de lavouras que demandam grandes volumes de água.

(Mapa 9).

O avanço desses ramos do agrohidronegócio associados à implantação dos

parques eólicos e da mineração evidencia as disputas entre diferentes segmentos da

burguesia, impondo aos camponeses situações de conflitualidade pela posse e pelo uso

da terra e da água, visto que, em seus diferentes momentos de expansão, o capital tem

incorporado novas áreas à sua lógica sociorreprodutiva, em sua essência desigual e

contraditória, colocando sérios obstáculos para a permanência desses sujeitos em seus

territórios de vida (morada e trabalho). Fernandes (2008a, p. 199) entende que a

conflitualidade é

[...] uma propriedade dos conflitos e está relacionada, essencialmente,

à propriedade da terra, à renda da terra, à reprodução capitalista do

capital, consequentemente à concentração da estrutura fundiária e aos

processos de expropriação dos camponeses e assalariados por diversos

meios, escalas e bases sociais, de cunho técnico, econômico e político.

A expansão do agrohidronegócio na Bahia revela novas formas de gestão e de

controle do território baiano a partir da hegemonia da lógica econômica, pautada na

ocupação intensiva do espaço e dos recursos naturais nele existentes bem como na

superexploração do trabalho e na desrealização do modo de vida camponês. Na busca

pelas condições adequadas para produzir e extrair riquezas, o capital tem subordinado e

proletarizado os camponeses, precarizado as relações de trabalho no campo, além de

destituir os camponeses dos meios de produção, levando muitos a engrossarem os

acampamentos na luta pela terra, tida como uma estratégia para garantir trabalho e,

consequentemente, o sustento da família.

O resultado dessa expansão do agrohidronegócio tem sido a disputa por

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território, cujo germe anticapitalista está presente na área da pesquisa, através dos

acampamentos do MST, tanto no Projeto Salitre quanto no Projeto Baixio de Irecê, bem

como na organização das comunidades que circundam estes empreendimentos e cuja

população está contabilizada pelo capital para o processo de assalariamento. Essas

disputas territoriais e de classe revelam a complexidade da nova geografia do espaço

agrário no Semiárido baiano, transformado em “mar de cana”, em “Califórnia

brasileira77”, havendo, ainda, a possibilidade de inseri-lo na lógica da produção de

agrocombustíveis a partir das oleaginosas, rompendo barreiras naturais e criando

“espaços novos para a acumulação” (HARVEY, 2006, p. 66).

Preocupado em entender essa nova realidade inerente ao agrohidronegócio,

Thomaz Júnior (p. 308) destaca que é

[...] importante a familiarização com as nomenclaturas específicas do

hidronegócio e que, acreditamos, nos permitirão estreitar um campo

de investigação de muito significado teórico, político, estratégico e

geográfico para a compreensão da nova divisão territorial do trabalho,

no Brasil, e toda a ordem de desdobramentos para a luta de classes e

para as ações políticas em torno da Reforma Agrária, da Soberania

Alimentar e Energética etc., sendo, pois, a água agregada ao campo de

disputas e de domínio de novos territórios. Contudo, não podemos nos

esquecer de que essa natureza de conflito, que polariza os interesses

políticos, estratégicos e de classe, opondo capital (agronegócio) e

movimentos sociais envolvidos na luta pela terra e pela água, deve ser

considerada quando estamos refletindo a reorganização do espaço

brasileiro. No entanto, temos que pensar que a água deve ser garantida

para outras formas de uso, outras formas de vida, ou que não se

restrinja às atividades humanas.

77 Numa referência ao Tenesse Valey, nos EUA.

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Na verdade, o fenômeno é novo, mas suas bases foram preparadas no passado.

Os projetos públicos de irrigação são, em sua essência, a garantia dada pelo Estado ao

capital para que este possa extrair renda e lucro, produzir e/ou perpetuar dominação

política, além de inserir novas frações do território semiárido no circuito da produção

especializada, com destaque para as interferências externas, como é o caso da PAC78,

criada pela União Europeia em1962, com o objetivo de proporcionar alimentos a preços

acessíveis e de garantir um nível de vida equitativo aos agricultores, tendo, para tanto,

estabelecido normas rigorosas para a agricultura, como a certificação globalgap79, no

caso da produção de frutas, homogeneizando os padrões de produção de acordo com os

parâmetros europeus. O selo globalgap possui uma série de exigências em termos de

Boas Práticas Agrícolas (BPA), organizadas em várias vertentes atuando

conjuntamente: agronômica, social, segurança alimentar, bem-estar animal e animal. A

PAC europeia interferiu na agricultura praticada no mundo, mediante o estabelecimento

de uma série de normas que subordinam os agricultores a diferentes segmentos do

grande capital, tais como as empresas certificadoras, produtoras de insumos,

transportadoras, fabricantes de embalagens e as empresas avaliadoras. Em relação a

essas condicionantes da PAC europeia, Sousa (2013, p. 179) destaca:

Vê-se que a existência de um selo faz parte da política de qualidade

dos produtos propagandeados pela reforma da PAC em 1992 para

atender aos grandes produtores que exigiam do Estado o

desenvolvimento de um referencial de certificação com aceitação

generalizada dentro da área dos países membros da PAC. O

EUREPGAP criado por estes vinha acirrar a competição porque

propagandeava as boas práticas Agrícolas (Good Agriculture Practices

– GAP), realçando a importância da Produção Integrada e da proteção

das condições de trabalho agrícola. Em contrapartida, era também uma

estratégia para impedir a produção dos pequenos agricultores uma vez

que para obter o selo era preciso dispor de certo capital.

78 A PAC tem como propósito a modernização das explorações agrícolas, tendo muitos agricultores da

UE recebido subvenções para a modernização dos edifícios e das máquinas das suas explorações,

além do melhoramento genético dos animais e das suas condições de criação. Para saber mais, acesse

http://ec.europa.eu/agriculture/50-years-of-cap/files/history/history_book_lr_pt.pdf 79 Segundo Berger (2009, p. 19) “O GLOBALGAP é hoje uma organização privada que estabelece

normas voluntárias para a certificação de produtos agrícolas em todo o mundo, cujo secretariado está

baseado na Alemanha. O seu objectivo é estabelecer normas de Boas Práticas Agrícolas (BPA) que

incluem diferentes requisitos para os vários produtos, adaptáveis a toda a agricultura mundial. O

GLOBALGAP conta com membros voluntários que se dividem em três grupos:

produtores/fornecedores, retalhistas/distribuidores alimentares e membros associados (ex.

fornecedores de factores de produção para a agricultura, organismos de certificação)”. Disponível em:

http://www.infoqualidade.net/SEQUALI/PDF-Sequali-07/Page%2019-22.pdf. Acesso em:

15/02/2015.

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Com uma estrutura produtiva bipolar – terra e água – associada à disponibilidade

de força de trabalho barata e abundante, a agricultura irrigada tem incorporado novas

áreas do Semiárido baiano, representando um trunfo territorial para o capital, e,

contraditoriamente, possibilita a recriação e/ou a reprodução do campesinato, quando

este rejeita a sua incorporação aos perímetros irrigados na condição de força de trabalho

proletarizada e se insere na luta pela terra.

As políticas públicas e incentivos fiscais implantados pelo Estado, desde os anos

1960, na região Nordeste semiárida acabaram fomentando o modelo de

desenvolvimento para o campo altamente dependente de grandes extensões de terra e

grande volume de água. Associada a essas medidas, a reestruturação produtiva do

capital, iniciada nos anos 1970, incorporou áreas até então pouco atrativas ao seu

processo expansionista, fenômeno que teria como desdobramento um constante repensar

das ideias e de concepções sobre a região semiárida brasileira. De obstáculo natural à

produção agrícola e ao desenvolvimento econômico e social da população, as condições

edafoclimáticas singulares do Semiárido seriam tratadas, no limiar do século XXI, como

verdadeira “benesse” no processo de produção de mercadorias. Aqui, o dipolo

modernização/conservação serve ao capital, porque permitiu que alterações fossem

efetuadas para promover os interesses de mercado, sem tocar na propriedade fundiária,

como destaca Castro (2008, p. 293).

Há, nesse sentido, diferentes e conexos processos que vão tecendo a malha de

significados do movimento em defesa da modernização do território, cujo

entrelaçamento de projetos e programas criou as bases e as condições necessárias para

que o capital pudesse reproduzir-se de forma ampliada. Vai, por outro lado, ocorrendo

também a destruição e/ou o esfacelamento dos meios de existência dos camponeses e

dos trabalhadores da terra, como materialidade dos interesses antagônicos e

hegemônicos nos espaços em transição, aqui entendidos como o Semiárido, em razão da

mudança de abordagem do Nordeste, de “região-problema” para o Semiárido “das

oportunidades”. Essa alteração no discurso revela as contradições e as disputas entre

duas lógicas de reorganização do território: uma conservadora, que ainda vê nas

intempéries climáticas uma forma de acumulação de capitais, e outra moderna, que

concebe as particularidades do Nordeste seco como um fator essencial para a geração de

riquezas, sob o domínio da tecnologia, conforme ressalta Castro (2008). Duas lógicas

aparentemente antagônicas; todavia, o que se verifica é a tentativa de rearticulação do

capital que busca superar os ranços do algodão e da pecuária para privilegiar a

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agricultura irrigada, baseada na produção de frutas e nos agrocombustíveis.

As intervenções do Estado, desde a criação do que viria a ser o DNOCS na

década de 1910, seriam determinantes para a mudança na racionalidade do Semiárido,

que passaria de hostil a “bondoso”, concepção essa muito útil e usada pelos

parlamentares em seus discursos elitistas, para justificar a necessidade de execução de

obras técnicas a fim de “resolver” o problema das secas. Os resultados das intervenções

dos órgãos responsáveis por incentivar e incrementar a irrigação na região semiárida,

além de não solucionarem a situação de desigualdade social, acentuaram, em muitos

casos, as injustiças sociais, ou ainda, acabaram gerando ainda mais injustiça e

desigualdade sociais.

Na contramão da História, a questão agrária nunca figurou como centralidade no

âmbito das políticas públicas, tampouco no tocante à atuação dos órgãos

governamentais. Se, por um lado, não há o reconhecimento da questão agrária, essas

mesmas políticas públicas assumem a responsabilidade de camuflar os conflitos, a

concentração de terras bem como a organicidade e a dinâmica das populações que

vivem no campo e cuja permanência em seus territórios exige intensas disputas com os

agentes do Estado e do capital, em decorrência da valorização e da especulação de suas

terras, revelando haver uma correlação desigual de forças desiguais. Germani (2010)

evidencia como a questão agrária é diluída nas ações do Estado com vistas a promover o

desenvolvimento territorial rural – como é o caso da Política de Desenvolvimento

Territorial (PDT), proposta pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) –,

transformando o território em uma unidade de planejamento. Tais ações pautadas na

discussão sobre identidade acabam, estrategicamente, promovendo o esquecimento do

conflito. O Programa de Crédito Fundiário e o Programa Cédula da Terra são, segundo

Germani (2010), exemplos da reforma agrária de mercado executada pelo governo de

Fernando Henrique Cardoso. Ainda segundo essa autora, o

Programa Cédula da Terra, que vigorou no período de 1997-2002,

como projeto piloto, sendo sucedido pelo Crédito Fundiário, não deve

ser confundido com assentamento de reforma agrária e faz parte da

proposta de “reforma agrária de mercado” empreendida pelo Banco

Mundial que foi implementada durante o governo do Fernando

Henrique Cardoso na perspectiva de construção do Novo Mundo

Rural. Entra neste quadro de formas de acesso a terra por fazerem

parte da política fundiária do Estado que, mesmo que tenha sido

implantada pelo processo direto de luta de seus integrantes considera-

se decorrente do processo mais amplo de luta pela terra empreendida

pelos grupos sociais organizados. Esta política foi estabelecida com o

claro propósito de apresentar aos demandantes de terra a opção de

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“uma reforma agrária pacífica”, pois a aquisição da terra é resultado

de uma negociação de compra, intermediada pelo Estado (GERMANI,

2010, p. 286. Grifos da autora).

Nesse diapasão, essas políticas têm gerado disputas pelo/no território e pelo

controle da terra e da água, visto que a reestruturação dos espaços pelo grande capital

leva a uma especialização destes, colocando em risco os modos de vida das populações

que historicamente ocuparam a região. As transformações não se limitam apenas aos

aspectos econômicos e aos da paisagem, sendo registradas também metamorfoses nas

práticas socioculturais, nas relações de trabalho e de produção. A (mono)cultura da soja,

da cana-de-açúcar, do eucalipto, da laranja, da manga, abacaxi e uva, eivadas de

componentes políticos e ideológicos, colocam em risco outras expressões sociais, como

a cultura camponesa baseada no trabalho familiar, na produção para o autoconsumo

e/ou voltada para os ciclos curtos e nas relações solidárias.

As novas formas de trabalho baseadas no assalariamento é o aspecto fundante

dessa transformação espacial, decorrente da expansão do agrohidronegócio na Bahia,

revelando a plasticidade e a mobilidade do trabalho, pois se trata de atividades agrícolas

com significativo uso de máquinas, principalmente no caso da soja e do eucalipto,

requerendo pouca mão de obra. Outro elemento político importante nesse processo

expansionista do capital no campo é a grilagem de terras, como detectado nos

municípios de Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique, fenômeno que antecedeu a

implantação do Projeto Baixio de Irecê. A grilagem de terras é uma estratégia muito

utilizada nas áreas de expansão do agrohidronegócio, como constatou Thomaz Junior

(2010b) ao pesquisar a expansão do agrohidronegócio no Pontal do Paranapanema (SP),

onde a produção de cana de açúcar em terras griladas é um instrumento para viabilizar a

sua legalização perante o Estado. A redução dos postos de trabalho é uma característica

similar nessas áreas, cujas monoculturas avançaram sobre os territórios camponeses

ocupados a partir de outras lógicas, diferentemente da concepção economicista própria

da agropecuária capitalista.

3.4 - Questão fundiária e terras devolutas na Bahia: dualidade “terra de ninguém”

versus propriedade privada

A propriedade da terra no Brasil, desde os seus primórdios, ocorreu de maneira

desigual devido à estratégia utilizada pela Coroa portuguesa para fazer a gestão da

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Colônia. Conforme relata Oliveira (2001, p. 28), primeiro “[...] foram as capitanias

hereditárias e seus donatários, depois foram as sesmarias. Estas, estão na origem da

grande maioria dos latifúndios do país, fruto da herança colonial.”. Se a origem da

concentração fundiária no Brasil remonta ao período colonial, atualmente esse desigual

processo de apropriação de terras constitui um dos pilares para a existência e para a

expansão do agrohidronegócio nas diversas regiões brasileiras, com extensas áreas

ocupadas com a produção de commodities (Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste, Sul e parte

da região Amazônica). Num país onde existem “superlatifúndios80”, a desigual

distribuição da terra interfere diretamente nas relações de trabalho no campo, levando os

camponeses a adotarem diferentes e complexas estratégias para manter a sua

reprodução. Luta pela terra, permanência de relações não capitalistas de produção

(parcerias, por exemplo) e a expansão do assalariamento no campo são apenas alguns

dos elementos envoltos na seara da questão agrária no Brasil.

Em se tratando da Região Nordeste, a estrutura fundiária concentrada é o

resultado do período colonial, com forte presença de grandes propriedades e áreas de

terras devolutas. Sobre essa região, Oliveira (2001, p. 32) destaca a seguinte realidade:

[...] o Nordeste que tem uma estrutura fundiária herdada do período

colonial, apresentava em 1985 uma elevadíssima participação dos

estabelecimentos de menos de 10 ha. Estes representavam mais de

70% do total, ficando, entretanto, com apenas pouco mais de 5% da

área total da região. Enquanto os latifúndios com mais de

1.000hectares, que representavam tão-somente 0,4% dos

estabelecimentos, ficavam com mais de 32% da área total.

Embora seja histórica a concentração fundiária no Nordeste brasileiro, a

conjuntura atual no tocante ao modelo de desenvolvimento adotado para as áreas

semiáridas não permite visualizar alterações em se tratando da propriedade da terra,

porque cada vez mais o agronegócio incorpora novos territórios, que passam a ser

organizados sob a lógica da agricultura globalizada. Fruticultura irrigada, soja,

silvicultura e a produção de agrocombustíveis tensionam o espaço agrário nordestino

em decorrência da necessidade de novas áreas a serem anexadas, contribuindo,

sobremodo, para manter elevado o índice de concentração de terra.

A estratégia adotada pelo Estado para reduzir as desigualdades regionais

mediante programas e projetos pautados na modernização conservadora do território

(inclusive no tocante à agricultura) criou “novos subespaços dinâmicos” (BARCELAR,

80 Termo tomado de empréstimo de Oliveira (2001, p. 32).

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2000, p. 1), ou “novos arranjos territoriais81” (ELIAS, 2011, p. 153), onde são

constatadastransformações expressivas em sua estrutura produtiva e social. Esse

agrohidronegócio moderno e globalizado expande-se, inclusive, por terras com

pendências jurídicas, especialmente as devolutas. Os estados nordestinos com maior

concentração de terras devolutas (Tabela 7) são, respectivamente, Bahia (22.838.662 ha),

Piauí (9.914.132 ha), Maranhão (6.174.443 ha), Ceará (5.870.419 ha) e Pernambuco (3.635.924

ha). Sergipe é o estado com a menor área de terras devolutas (563.325 ha).

Tabela 7 - Estimativa das Terras Devolutas por estado da Região Nordeste

Unidade da

Federação

Superfície

Territorial

Área

Cadastrada

Áreas

Indígenas

Unidades de

Conservação

Terras

Públicas Devolutas

Maranhão 33.198.329 19.158.864 1.908.388 8.076.591 20.941 6.174.443

Piauí 25.152.919 13.322.447 2.643.951 47.430 9.914.132

Ceará 14.882.560 8.771.543 14.455 924.718 60.054 5.870.419

Rio Grande

do Norte 5.279.679 3.328.221 43.334 192.738 1.897.883

Paraíba 5.643.984 3.812.972 31.570 28.278 4.029 1.931.603

Pernambuco 9.831.162 5.781.845 109.362 659.057 32.600 3.635.924

Alagoas 2.776.766 1.477.826 9.598 56.433 770 1.298.338

Sergipe 2.191.035 1.625.883 4.316 57.469 533 563.325

Bahia 56.469.267 33.919.105 113.832 3.786.884 18.309 22.838.662

Fontes: SNCR/INCRA e IBGE.

Ano: 2003.

Em se tratando da Bahia, a maior extensão de terras devolutas está

localizada principalmente no vale do São Francisco (Mapa 10), ou seja, as terras que

pertenciam à Sesmaria Casa da Ponte.Trata-se de áreas cobiçadas pela burguesia

agroindustrial e financeira, sendo a manutenção do latifúndio improdutivo e das terras

griladas um importante instrumento catalisador para a permanência do grande capital na

região, como é o caso da Odebrecht, presente no vale dos rios Verde e Jacaré,

representada pela CODEVERDE.

81 Regiões Produtivas Agrícolas (RPAs), conforme Elias (2011, p. 153).

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Longe de serem assépticas aos interesses próprios da burguesia, as terras

devolutas exercem um destacado papel no desenvolvimento das forças produtivas, não

raro associadas ao inexorável progresso e desenvolvimento. A incorporação dessas

terras ao sistema de produção de mercadorias exerce um papel importante no

rebaixamento dos custos de produção, elevando, por outro lado, os níveis de

acumulação. Acrescente-se que não se pode perder de vista o fato de que essas terras,

em muitos casos, impulsionam as ações de cunho territorial, porque a pressão exercida

sobre elas pelo capital gera novas demandas e potencializa os conflitos e a violência no

campo, já que o capitalismo não pode existir sem os meios de produção e sem a força de

trabalho. Assim, é importante resgatar Luxemburgo (1988, p. 33), quando a autora

ressalta que o “[...] capital não conhece outra solução senão a da violência, um método

constante da acumulação capitalista no processo histórico, não apenas por ocasião de

sua gênese, mas até mesmo hoje.”

Um dos artifícios utilizados pelo Estado para facilitar e expropriação é torná-la

“área de interesse social”; assim, evitam-se maiores problemas no tocante a possíveis

reivindicações e contestações por parte das populações que ocupam os locais de

interesse para o grande capital. A título de exemplificação, a construção da Ferrovia de

Integração Oeste-Leste expressa bem essa realidade, pois, ao cortar o estado da Bahia

no sentido oeste-leste, passou por terras com pendências jurídicas (terras devolutas,

áreas reivindicadas por populações tradicionais, etc.) e o Estado fez uso desse artifício

para superar toda e qualquer possibilidade de impedir a execução da obra. Assim ocorre

com as terras desapropriadas para a implantação de perímetros irrigados, construção de

hidrelétricas, complexos portuários, entre tantos outros empreendimentos.

SegundoOliveira (2012), tanto os municípios que integram essa pesquisa quanto aqueles

que estão localizados em seu entorno possuem grandes extensões de terras devolutas,

conforme apontam os dados daTabela 8.

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Tabela 8 - Terras Devolutas – Municípios da Área da Pesquisa e seu entorno (BA)

Terras Devolutas 2003 (ha) (%) 2010 (ha) (%)

Barra 1.229.944,87 100% 993.194,71 81%

Casa Nova 860.206,32 89% 811.415,20 84%

Irecê 19.757,76 59% 16.213,56 48%

Itaguaçu da Bahia 327.721,79 74% 322.996,19 73%

Jussara* (43.527,77) -53% -25.250,16 -31%

Muquém de São

Francisco

166.440,44 58% 191.327,85 67%

Pilão Arcado 1.127.021,81 96% 1.045.841,27 89%

Remanso 348.398,78 74% 358.392,68 76%

Sento Sé 1.024.333,77 81% 738.757,46 59%

Xique-Xique 357.281,15 60% 384.789,35 65%

Curaçá 593.746,96 92% 565.983,39 88%

Juazeiro 546.539,99 86% 535.471,90 84%

Sobradinho 118.924,60 90% 115.512,28 87%

BAHIA Total 31.087.213,14 55% 28.713.581,16 51%

Fonte: Estatísticas Cadastrais do INCRA. In: OLIVEIRA, A. U. et alii, Atlas da Terra no

Brasil, CNPq, 2012.

Adaptação: DOURADO, J. A. L.

* O dado em negrito significa que o município tem registrado no Cadastro do INCRA área

maior do que aquela do município. São os “beliches fundiários” ou títulos em andares.

Considerando os municípios da área da pesquisa, todos apresentam percentuais

de terras devolutas acima de 60% de sua extensão. Essa realidade merece atenção

especial, por parte do Estado, no sentido de pensar ações que levem em consideração

esse contexto, pois, embora sejam “terras de ninguém”, essas áreas são ocupadas por

populações remanescentes de quilombos, Fundos de Pasto e camponeses,

historicamente à margem das políticas públicas, tanto aquelas voltadas para o campo,

como as de saúde, de educação, de assistência social e de tantos outros direitos

garantidos pela Constituição Federal de 1988. Ao se pensar uma política pública para o

campo, na Bahia, deve-se ter em conta toda essa particularidade, como forma de superar

um universo de contradições e de círculos viciosos sustentadores da concentração

fundiária, cujas prioridades devem ser definidas para atender às reais necessidades das

populações que vivem no campo, retirando das políticas públicas seu caráter

“civilizador”, pois, muitas vezes, o resultado destas é diametralmente oposto. Com 51%

de sua extensão territorial definidos como terras devolutas (28.713.581,16ha), o campo

baiano, mais especificamente, os vales do rio São Francisco e de seus afluentes estão

sujeitos às constantes investidas, tanto por parte do Estado quanto do grande capital,

pautadas em alternativas hegemônicas. O fetichismo da modernização torna-se o

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propulsor das regras e práticas exploratórias direcionadas para a incorporação dessas

áreas de terras devolutas ao sistema de acumulação, de modo a criar uma visão

consolidada de obsolescência dos sujeitos que, ao longo dos tempos, ocuparam essas

terras, na tentativa de torná-los invisíveis perante a sociedade em geral. Corroborando

essa análise, Almeida (2006, p. 18, grifo do autor) diz que:

As ocorrências de conflito que envolvem os Fundos de Pasto referem-

se principalmente aos municípios de Pilão Arcado, Remanso, Campo

Alegre de Lourdes, Casa Nova, Sobradinho, Sento Sé, Senhor do

Bonfim, Oliveira dos Brejinhos, Brotas de Macaúbas, Uauá, Curaçá e

Canudos. Todos eles localizados no Estado da Bahia. As comunidades

acham-se ameaçadas por grileiros, que compram pequenas

propriedades, passando em seguida a se apossar das "terras de uso

comum" das comunidades tradicionais de Fundos de Pasto.

Encontram-se ameaçadas também por projetos de irrigação, que se

apropriam de suas terras fazendo uso generalizado de agrotóxicos e

poluindo as águas potáveis; por empresas mineradoras; por carvoarias

que representam, hoje, para estas comunidades o maior perigo para

sua sobrevivência, pois, devastam toda a cobertura vegetal da caatinga

para fabricar carvão, através de desmatamentos clandestinos,

queimando também pastos e fruteiras e utilizando formas de trabalho

forçado e de trabalho infantil; são ameaçadas, ainda, pela implantação

do Parque Nacional Boqueirão da Onça, que por ser uma UC

(Unidade de Conservação) de proteção integral, prevê o deslocamento

compulsório de famílias das comunidades de Fundos de Pasto da

região de Sobradinho (BA).

Na prática, essas terras devolutas permanecem ainda hoje um campo aberto para

a expansão da agricultura capitalista, inseridas no processo de produção de mercadorias

a partir de uma organização social, com total subordinação do trabalho ao capital. Como

a quantidade de terras demarcadas como territórios tradicionais é insignificante, as

populações que no passado ocupavam essas terras na condição de agregados, escravos e

sitiantes, principalmente, enfrentam, desde os anos de 1970, constantes ameaças de

expulsão, devido à valorização das terras por causa dos projetos relativos ao

desenvolvimento do Nordeste. Harvey (2006, p. 64, grifo do autor) ressalta que o

capitalismo apenas consegue escapar de sua própria contradição por

meio da expansão. A expansão é, simultaneamente, intensificação (de

desejos e necessidades sociais, de populações totais, e assim por

diante) e expansão geográfica. Para o capitalismo sobreviver, deverá

existir ou ser criado espaço novo para acumulação.

Ao longo das últimas décadas, em função de investimentos públicos feitos pelo

Estado, principalmente, muitas barreiras espaciais foram derrubadas, possibilitando ao

capital a sua expansão, sendo, em determinados casos, fundamental o controle sobre a

terra e a água, cuja exploração dá-se de forma intensa, pois, conforme destaca

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187

Luxemburgo (1988, p. 23), “[...] em função de sua natureza e de sua forma de

existência, o capital não admite nenhuma limitação”. Em virtude dessa destrutividade

promovida pelos antagonismos do capital globalizando entrelaçado82, pode-se constatar

que seu avanço pelo campo, mediante a produção agrícola moderna e voltada para as

demandas externas (muitas vezes baseada nas commodities agrícolas), tem sido

acompanhado pelo aumento da concentração da terra ao longo das décadas.

Considerando o total de imóveis rurais83 cadastrados pelo INCRA (2013) e a

área total por eles ocupada, pode-se afirmar que os municípios de Xique-Xique,

Itaguaçu da Bahia e Juazeiro possuem significativa concentração de terras, (Tabelas 9,

10 e 11). Quando analisado sob o ponto de vista da distribuição dos imóveis, o

município de Xique-Xique (Tabela 9) possui 1.517 imóveis cadastrados, dos quais

1.168 possuem menos de 50 hectares, num total de 9.750,21 hectares. Os imóveis com

extensão de 50 a menos de 1.000 hectares perfazem um total de 310, abrangendo

75.515,24 hectares. Os imóveis entre 1.000 e menos de 10.000 hectares somam 38

unidades, num total de 128.662,40 hectares. Nesse município há 1 imóvel com

46.941,80 hectares, os quais somados aos 128.662,40 hectares dos 38 imóveis com mais

de 1.000 hectares perfazem um total de 175.604,20 hectares.

82 Termo tomado de empréstimo de Mészáros (2007, p. 51). 83 O INCRA utiliza o termo “imóvel” rural, ao passo que o IBGE utiliza o termo “estabelecimento” rural.

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188

Tabela 9 - Cadastro de Imóveis Rurais – Xique-Xique (BA)

Total de Imóveis rurais: 1.517

Total de área cadastrada (em hectares): 260.869,66

Classe de Área Total de

Imóveis Total de Área (ha)

Mais de 0 a menos de 1 0 0,00

1 a menos de 2 292 383,60

2 a menos de 5 416 1.165,40

5 a menos de 10 148 978,29

10 a menos de 25 196 3.127,30

25 a menos de 50 116 4.095,62

50 a menos de 100 94 6.504,40

100 a menos de 250 90 12.703,57

250 a menos de 500 76 22.671,96

500 a menos de 1000 50 33.635,31

1.000 a menos de 2.000 17 22.663,40

2.000 a menos de 2.500 5 10.729,10

2.500 a menos de 5.000 6 19.340,00

5.000 a menos de 10.000 10 75.929,90

10.000 a menos de 20.000 0 0,00

20.000 a menos de 50.000 1 46.941,80

50.000 a menos de 100.000 0 0,00

100.000 e Mais 0 0,00

Fonte: INCRA, 2013.

Org.: DOURADO, J. A. L.

O município de Itaguaçu da Bahia possui 1.221 imóveis cadastrados no INCRA

em 2013, totalizando 215.190,12 hectares (Tabela 10). Desse total, 838 imóveis

possuem menos de 50 hectares (12.924,10 hectares), 368 imóveis possuem área de 50 a

menos de 1.000 hectares, (82.129,05ha). Os imóveis com extensão entre 1.000 e 10.000

hectares somam 15 unidades, abrangendo 47.195,04 hectares. Há apenas 1 imóvel com

72.951,93 hectares, de propriedade da CODEVERDE.

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189

Tabela 10 - Cadastro de Imóveis Rurais - Itaguaçu da Bahia – (BA)

Total de Imóveis rurais: 1.221

Total de área cadastrada (em hectares): 215.190,12

Classe de Área Total de

Imóveis Total de Área (ha)

Mais de 0 a menos de 1 4 2,45

1 a menos de 2 80 96,84

2 a menos de 5 197 636,83

5 a menos de 10 151 1.037,22

10 a menos de 25 185 2.978,06

25 a menos de 50 221 8.172,70

50 a menos de 100 109 7.730,10

100 a menos de 250 103 14.152,30

250 a menos de 500 120 36.223,75

500 a menos de 1000 36 24.012,90

1.000 a menos de 2.000 8 10.437,17

2.000 a menos de 2.500 1 2.158,60

2.500 a menos de 5.000 1 3.345,75

5.000 a menos de 10.000 4 31.253,52

10.000 a menos de 20.000 0 0,00

20.000 a menos de 50.000 0 0,00

50.000 a menos de 100.000 1 72.951,93

100.000 e Mais 0 0,00

Fonte: INCRA, 2013.

Org.: DOURADO, J. A. L.

No tocante ao município de Juazeiro (Tabela 11), foram cadastrados em 2013

pelo INCRA 7.974 imóveis (349.287,19 hectares), sendo 6.518 imóveis com menos de

50 hectares (81.424,24 hectares), 1.426 imóveis de 50 a menos de 1.000 hectares

(203.443,56 hectares) e 30 imóveis entre 1.000 e 10.000 hectares, totalizando 64.419,36

hectares. Nesse município não foi registrado, segundo dados do INCRA (2013), nenhum

imóvel com extensão maior que 10 mil hectares, sendo o município com menor

concentração de terras entre os abrangidos por esta pesquisa.

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Tabela 11 - Cadastro de Imóveis Rurais – Juazeiro (BA)

Total de Imóveis rurais: 7.974

Total de área cadastrada (em hectares): 349.287,19

Classe de Área Total de

Imóveis Total de Área (ha)

Mais de 0 a menos de 1 178 98,15

1 a menos de 2 521 667,12

2 a menos de 5 1.516 4.538,19

5 a menos de 10 1.434 9.910,35

10 a menos de 25 1.772 27.662,50

25 a menos de 50 1.097 38.547,97

50 a menos de 100 773 52.832,15

100 a menos de 250 388 51.516,49

250 a menos de 500 216 67.576,37

500 a menos de 1000 49 31.518,55

1.000 a menos de 2.000 21 31.837,16

2.000 a menos de 2.500 3 6.243,10

2.500 a menos de 5.000 5 21.133,10

5.000 a menos de 10.000 1 5.206,00

10.000 a menos de 20.000 0 0,00

20.000 a menos de 50.000 0 0,00

50.000 a menos de 100.000 0 0,00

100.000 e Mais 0 0,00

Fonte: INCRA, 2013.

Org.: DOURADO, J. A. L.

Os municípios de Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia possuem estrutura fundiária

mais concentrada que o município de Juazeiro, realidade expressa pelo número de

imóveis acima de 5.000 hectares (1 imóvel em Juazeiro, 4 imóveis em Itaguaçu da

Bahia e 10 imóveis em Xique-Xique). Ao analisar os dados gerais da estrutura fundiária

da Bahia, constata-se que esse estado se caracteriza por um elevado grau de

concentração fundiária (Quadro 14), cuja realidade traz à tona as contradições do

desenvolvimento do capitalismo no campo e a permanência histórica do domínio da

terra por uma reduzida fração de sujeitos, sendo a concentração fundiária uma das

principais causas das disputas territoriais, da miséria no campo e da violência nesses

territórios.

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191

Quadro 14 – Índice de Gini – Bahia 1920/2006

Ano Índice de Gini

1920 0,734

1940 0,784

1950 0,794

1960 0,779

1970 0,795

1975 0,805

1980 0,821 1985 0,835

1995/96 0,829 2006 0,838

Fonte:Censos Agrícolas e Agropecuários do IBGE, 2006.

Elaboração: Projeto GeografAR, 2010.

A série histórica revela que a concentração de terras na Bahia vem ocorrendo de

forma acentuada (Quadro 14). A ideia de que a divisão do território em municípios

levaria a uma maior desconcentração das terras (151 em 1940 para 417 em 2006) não se

confirma quando se analisam os dados, pois o que de fato aconteceu foi um aumento

significativo na quantidade de municípios com índice de concentração de terra

considerada forte a muito forte (31 em 1940 e 283 em 2006) e muito forte a absoluta (2

em 1940 e 19 em 2006). Segundo Germani (2010, p. 278-9)

[...] parte dessas terras são terras devolutas, isto é, patrimônio público

que está sendo apropriado individualmente como mercadoria, seja

como reserva de valor ou como valor de troca. Estima-se que mais de

55% do território baiano esteja nessa situação, isto é, constituído por

terras devolutas, mas que o Estado não sabe onde e com quem estão e,

portanto, não tem o controle desse patrimônio público.

Os dados referentes à evolução do índice de Gini84 da Bahia demonstram um

aumento na concentração de terras a partir da década de 1970, fenômeno que pode ser

atribuído à modernização da agricultura no contexto da reestruturação produtiva do

capital. Em meio a esse cenário, ganham destaque a monopolização da terra e o controle

sobre os recursos hídricos bem como as novas (e velhas) formas de degradação do

trabalho, responsáveis pelo desencadeamento de ações de resistência. O avanço do

grande capital sobre o espaço agrário baiano, mediante a apropriação de riquezas

84 O índice de Gini é um indicador de desigualdade utilizado para verificar o grau de concentração de terra e de

renda. Esse índice varia no intervalo de zero a 1, sendo que quanto mais próximo de 1, maior é a

desigualdade na distribuição e, quanto mais próximo de zero, menor é a desigualdade.

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192

geradas pelo uso da terra e da água e o controle social sobre o trabalho, tem sido

facilitado pelo favorecimento dos investimentos públicos em obras de infraestrutura e

em programas de financiamentos, como o PROINE, o PROVÁRZEAS,

POLONORDESTE85, em dezenas de perímetros irrigados implantados a partir de 1970.

Esses programas foram fundamentais para a expansão da fronteira agrícola no Nordeste

semiárido porque possibilitaram a criação dos chamados polos agroindustriais, atraindo

para a região novas atividades econômicas. Combinando formas regressivas e formas

destrutivas, o capital amplia suas ramificações no campo baiano, de modo a integrar

todos os biomas (Caatinga, Cerrado e Mata Atlântica) sob os mais diferentes segmentos,

seja ele agroindustrial (lavouras voltadas para o mercado externo) ou de infraestrutura

(parques eólicos, ferrovia, e complexo portuário).

Ao analisar o índice de Gini dos municípios da Bahia (Quadro 15), verificamos

que 69,78% destes são caracterizados por um alto grau de concentração da estrutura

fundiária. Somadas as categorias forte a muito forte e muito forte e absoluta, o índice de

concentração atinge 73,61%. Se considerado o número de municípios classificados com

concentração de média a forte esse percentual atinge 94,95% do total de municípios

baianos. Do total de 417 municípios, 4 não foram classificados porque o IBGE não

disponibilizou os dados referentes à concentração fundiária.

Quadro 15 – Classificação do índice de Gini dos municípios do estado da Bahia

Classes Categorias Nº. de Municípios %

0,000 a 0,100 Nula 0 0

0,101 a 0,250 Nula e Fraca 0 0

0,251 a 0,500 Fraca a Média 1 0,23

0,501 a 0,700 Média a Forte 105 25,17

0,701 a 0,900 Forte a Muito Forte 291 69,78

0,901 a 1,000 Muito Forte a Absoluta 16 3,83

Não classificados - 4 0,95

TOTAL 417 100

Fonte: IBGE, INCRA.

Org.: Projeto GeografAR, 2003.

Adaptado por: DOURADO, J. A. L., 2014.

85 Programa de Desenvolvimento de Áreas Integradas do Nordeste, criado pelo Decreto nº 74.794, de 30/10/74,

com o objetivo de modernizar as atividades agropecuárias de determinados polos agrícolas do Nordeste.

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193

Os municípios de Barra, Riachão das Neves, Barreiras, Correntina, Jaborandi,

Cocos, Ibicoara, Castro Alves, Brejões, Rodelas, Rio Real, Entre Rios, Inhambupe, São

Sebastião do Passé, Camaçari e Itagimirim apresentam concentração da terra

considerada de muito forte a absoluta(Mapa 11). Juazeiro e Itaguaçu da Bahia possuem

índice de concentração fundiária considerado de forte a muito forte. Entre os municípios

abrangidos pela pesquisa, Xique-Xique é aquele com a menor concentração fundiária

(de média a forte).

Da área cadastrada da Bahia (33.919.105ha), 6.725 imóveis foram declarados

como improdutivos, totalizando 17.677.507 hectares. Desse número de imóveis

cadastrados como improdutivos, 221 estão localizados na área da Diocese de Juazeiro,

totalizando 864.332 hectares de terras improdutivas (Quadro 16).

Quadro 16 - Terras improdutivas nosmunicípios pertencentes à Diocese de Juazeiro

(BA) – 2003

Município Nº de imóveis improdutivos Área total (ha)

Campo Alegre de Lurdes 7 29.193

Casa Nova 18 49.010

Curaçá 20 70.391

Juazeiro 39 95.887

Pilão Arcado 4 81.899

Remanso 16 45.598

Sento Sé 103 470.434

Sobradinho 9 13.508

Uauá 5 8.412

Total 221 864.332 Fonte: IBGE, 2003.

Org.: D OURADO, J. A. L.

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195

Ao analisar os dados do Quadro 16,verificamos que os municípios estão

localizados na área de influência do Rio São Francisco, ou seja, uma região com as

condições adequadas para a expansão do agrohidronegócio. Juazeiro, polo

agroindustrial da região, possui o segundo maior número de imóveis declarados como

improdutivos, sendo superado apenas por Sento Sé que totaliza 103 imóveis. Ao que

nos parece, a propriedade fundiária como reserva de valor ainda se configura como um

importante negócio para os grandes proprietários de terra, constituindo um instrumento

singular de acumulação pela via rentista, valendo-se inclusive dos investimentos e

subvenções públicos. Aí temos a materialização do conflito de classe, a intocabilidade

da questão agrária/fundiária protagonizada pela agricultura modernizada e engendrada

nos discursos sustentados pela ideia de progresso técnico-científico, eficiência produtiva

e crescimento econômico. O Estado, ao longo dos últimos 50 anos, buscou através de

uma racionalidade hegemônica, sustentar suas ações, no Semiárido, em alavancas

ideológicas poderosas e indispensáveis para que as rápidas e profundas transformações

promovidas na agricultura fossem reforçadas perante o conjunto da sociedade e

adotadas acriticamente como algo desejável per se.

3.5 Estrutura fundiária e os desafios para o acesso à terra no Vale do Salitre

A manutenção da estrutura fundiária arcaica e a política agrícola que prioriza o

agronegócio são responsáveis pelas contradições no campo brasileiro. O

desenvolvimento como metástase fica explícito quando o Semiárido é alvo de diversas

ações do Estado com vistas à criação de infraestrutura hídrica, geralmente grandes

investimentos em obras faraônicas baseadas no modelo desenvolvimentista que

privatiza os recursos naturais, como é o caso do acesso à terra e à água, via projetos de

irrigação.

Na Bahia, mais especificamente no vale do São Francisco, a concentração da

terra é acentuada, ocupando as obras de infraestrutura hídrica um papel destacado nesse

cenário atual de expansão do agrohidronegócio.

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Quadro 17 -. Grau de distribuição da terra por número de municípios (1940-2006)

Ano Total de

Municípios

Fraca a

média

Média a

forte

Forte a

muito forte

Muito forte a

absoluta

Nº % Nº % Nº % Nº %

1940 151 30 19,87 88 58,28 31 20,53 2 1,32

1960 193 13 6,74 100 51,81 78 40,41 2 1,04

1970 334 15 4,49 156 46,71 157 47,00 6 1,80

1995/6 415 6 1,45 133 32,05 261 62,89 15 3,61

2006 417* 1 0,23 109 26,14 283 67,87 19 4,55 Fonte: IBGE, 2006.

Elaboração: GeografAR, 2010.

* Os dados de cinco municípios apresentam inconsistência e não permitem efetuar o cálculo.

A concentração fundiária na Bahia (Quadro 17) eleva-se ao longo das últimas

décadas, principalmente a partir da década de 1990 quando há a intensificação da

política de irrigação nas áreas semiáridas e a expansão da fronteira agrícola para o oeste

do estado, com a chegada da soja. A expansão e consolidação do agrohidronegócio

contribui, sobremodo, para a concentração devido a necessidade de extensas áreas para

os monocultivos (soja, algodão, milho, eucalipto, laranja, manga, banana e uva). De

fato, a execução de obras, como a construção de perímetros irrigados associada a outros

empreendimentos voltados à modernização agrícola, não tem contribuído para fomentar

o acesso à terra. A essas informações, deve-se acrescentar o Índice de Gini da série

1920 a 2006.

No tocante ao vale do Salitre, a situação não sofre alterações, já que os nove

municípios da bacia possuem estrutura fundiária concentrada (Quadro 18), um dos

motivos pelos quais torna a região bastante conflituosa. Verifica-se que, em pleno

século XXI, a conformação da propriedade da terra continua similar à de séculos

passados, em que poucos mantêm sob seu domínio grandes extensões de terra, ao passo

que a maioria não dispõe de terra suficiente para retirar a renda necessária para a

manutenção da família.

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197

Quadro 18 - Estabelecimentos no Vale do Rio Salitre por grupos de área de 0 a 20ha e

de mais de 1.000ha

Município Grupos de área

(ha)

Nº de

estabelecimento

(%)

Área (%)

Campo Formoso De 0 a 20 65,03 6,42

Mais de 1.000 0,85 31,81

Jacobina De 0 a 20 65,37 10,32

Mais de 1.000 0,15 9,49*

Juazeiro De 0 a 20 64,92 7,26

Mais de 1.000 0,56 40,36

Miguel Calmon De 0 a 20 57,65 7,77

Mais de 1.000 0,08 12,28*

Mirangaba De 0 a 20 60,72 7,15

Mais de 1.000 0,32 13,84*

Morro do Chapéu De 0 a 20 52,24 4,88

Mais de 1.000 1,19 31,14

Ourolândia De 0 a 20 47,43 7,17

Mais de 1.000 0,14 7,88*

Umburanas De 0 a 20 54,68 6,85

Mais de 1.000 0,85 23,43

Várzea Nova De 0 a 20 51,88 6,27

Mais de 1.00 0,64 29,51 Fonte: Censo Agropecuário, 2006.

Elaboração: GeografAR, 2010.

*No Censo Agropecuário de 2006, os casos em que foram registrados menos de três

estabelecimentos por grupo de área, a área total é desinformada pelo IBGE. Para efeito deste

quadro, tais dados foram estimados.

Com base nos dados do Censo Agropecuário de 2006, a concentração de terras

no vale do Salitre é considerável, com destaque para os municípios de Campo Formoso,

Juazeiro, Umburanas e Várzea Nova, cujas porcentagens são expressivas considerando-

se a relação entre o número de estabelecimentos e a área. Pode-se dizer que a

concentração de terra em todos os municípios integrantes da bacia do Salitre é

considerada um fator limitante para o desenvolvimento das condições favoráveis para a

manutenção das famílias no campo. Em todos os municípios, o número de

estabelecimentos com área até 20 ha é superior a 50%; juntos, porém, somam menos de

10% da área total. A histórica concentração de terra traz também, em seu bojo, o

domínio sobre os mananciais hídricos, deixando as famílias camponesas reféns dos

“senhores das terras e das águas”. A questão agrária na Bahia, mais especificamente no

Médio São Francisco, configura-se como uma questão hídrica porque a água encontra-

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198

se sob o poder dos donos das terras, cujas estruturas de poder econômico e político

continuam latentes ainda hoje. O Estado tem papel importante nesse contexto, ao

assumir a função de modernizador do território através da disponibilização de meios

técnicos para viabilizar a expansão do agrohidronegócio na região. Todos os municípios

do Vale do Salitre possuem Índice de Gini superior a 0,6 (Tabela 12).

Tabela 12 - Índice de Gini dos municípios do Vale do Salitre – Bahia – 1920-2006

Município 1920 1940 1950 1960 1970 1980 1985 1996 2006

Ourolândia 0,645 0,680

Umburanas 0,691 0,742

Várzea

Nova

0,710 0,747

Miguel

Calmon

0,640 0,688 0,698 0,732 0,781 0,761 0,754 0,753

Mirangaba 0,716 0,779 0,774 0,753 0.768

Morro do

Chapéu

0,923 0,633 0,656 0,691 0,716 0,741 0,763 0,760 0,783

Jacobina 0,889 0,719 0,706 0,705 0,722 0,772 0,803 0,790 0,793

Juazeiro 0,937 0,571 0,758 0,618 0,798 0,726 0,865 0,828 0,828

Campo

Formoso

0,972 0,788 0,768 0,817 0,822 0,786 0,813 0,794 0,831

Fonte: IBGE, 2006.

Elaboração: Projeto GeografAR, 2010.

De acordo com os dados, pode-se verificar uma elevação no Índice de Gini, o

que leva a perceber que as políticas de irrigação no Médio São Francisco, via

implantação de perímetros irrigados, não têm contribuído para a desconcentração de

terra. Com a modernização do território com vistas a atender as demandas do capital

(nacional e internacional), ocorre um processo de especulação imobiliária que gera dois

fenômenos inter-relacionados: por um lado, esse processo provoca a desterritorialização

das famílias camponesas e, de outro, impede o acesso das famílias sem terra a um

pedaço de chão para produzir sua existência, pois a disputa por terra entre campesinato

e agronegócio nas regiões do Médio e Submédio São Francisco tem-se acentuado na

última década, verificando-se com isso o surgimento de acampamentos e assentamentos

em Juazeiro, Sobradinho e Xique-Xique. Essa realidade agrária da Bahia traz à tona

uma questão territorial, já que há, contraditoriamente, aqueles que lutam pelo acesso à

terra, colocando-se no front de disputas com os detentores de grandes propriedades. A

luta por terra e território coloca, como elemento de análise, a necessidade de reconhecer

a legitimidade das reivindicações dos sujeitos que buscam, no acesso à terra, condições

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dignas de existência e da manutenção de modos de vida pautados em práticas

socioculturais, frutos da relação metabólica terra-território-água. Segundo Germani

(2010, p. 281), toda

questão territorial expressa relações de poder de uma sociedade e isso

é muito mais visível numa sociedade estruturada em classes sociais

como é a nossa. Assim, as relações de poder significam

enfrentamentos, e, que contrapõem os que detêm grandes extensões de

terra com os grupos sociais que lutam para “entrar” na terra e para

nela permanecer.

Se partirmos da premissa de que a questão agrária é, em sua essência, uma

questão territorial, faz-se necessário ressaltar as linhas de força que estão a manejar os

traçados para o redesenho do semiárido baiano, porque a geometria do poder nessa

região revela razões, estratégias e distintos campos de micropoderes em que os sujeitos

reivindicam apropriação diferente em relação ao uso do território. De fato, há uma

expansão seletiva dos espaços a serem incorporados à lógica global de acumulação de

capital, sendo os perímetros irrigados vetores de indução da modernização agrícola na

região semiárida nordestina. Como resultado, têm-se especulação imobiliária,

concentração fundiária e expulsão dos camponeses da terra, em virtude das condições

adversas de produção, pois os cultivos de ciclo curto voltados para o autoconsumo

deixam de ser a principal atividade praticada, cedendo lugar para as lavouras

direcionadas a atender às demandas do mercado nacional e internacional, de frutas

principalmente.

Numa reformulação discursiva, o Semiárido torna-se o lugar promissor para “os

de fora”, ao passo que, para os “de dentro”, terra e água continuam pouco acessíveis,

principalmente no tocante às políticas executadas pelo Estado, porque os propósitos

destas é fortalecer as estruturas de poder e de classe. Para as comunidades do Baixio de

Irecê e do vale do Salitre, terra e água estão atreladas à reinvenção específica do

Nordeste, na qual a inserção destes sujeitos (salitreiros e camponeses das comunidades

dos vales dos rios Verde e Jacaré) na terra e/ou no território é feita de maneira marginal

ou precarizada.

3.6 Grilagem de terras, expropriação camponesa e violência no Baixio de Irecê

(BA)

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200

Compreender as estratégias utilizadas pelo campesinato em sua busca pela

reprodução requer superar uma espécie de “anacronismo histórico”, em virtude da

hegemonia adquirida pela ideia de progresso e desenvolvimento. Por conseguinte, tudo

aquilo que não potencializa o modo de reprodução sociometabólica do capital é

completamente inadmissível, porque assevera possibilidades distintas daquelas pensadas

pelo próprio sistema. Ou seja, a obliteração de alternativas de uso e de ocupação do

território/espaço distintas da lógica desenvolvimentista torna-se central para a estrutura

do sistema do capital, favorecendo sua perpetuação, inclusive utilizando a própria

estrutura do Estado para ampliar os obstáculos, mediante a institucionalização de

práticas e de formas de organização social sustentadas em valores que dispensavam os

acordos e contratos formais estabelecidos sob as prescrições da lei.

No século XX, o vale do São Francisco vivenciou profundas transformações

capituladoras, não se limitando apenas às formas de uso e de ocupação da terra. Tais

mudanças foram mais profundas porque atingiram as bases da racionalidade

substantiva, num contraditório movimento de negação/reafirmação de relações

historicamente criadas, transformadas por circunstâncias atuais em obstáculos à ordem

social vigente, subjugada à tirania do capital. Essa região começou a ser desbravada em

1553, quando as “entradas” foram direcionadas para o interior da Colônia, em busca de

mão de obra escrava para os canaviais e engenhos através das frentes pioneiras de

ocupação. A ocupação dessa região foi direcionada à pecuária extensiva, constituindo

um imenso “curral”, universo em que as figuras do fazendeiro e do vaqueiro

representavam a dualidade riqueza-subordinação, dualidade que tem na propriedade da

terra sua existência. Associada à criação de gado, foi desenvolvida uma agricultura para

o autoconsumo praticada pelos camponeses nas áreas de vazante e de ilhas, ocupadas,

principalmente, com culturas de milho, feijão, mandioca e arroz, além da produção nos

“lameiros”. O algodão e a cana-de-açúcar representavam produtos mais “nobres”, tendo

o primeiro se destacado nas áreas de sequeiro enquanto os canaviais se localizavam nas

proximidades dos rios, sendo a produção de rapadura uma importante fonte de renda

para as famílias86. Associada às atividades agropecuárias, a pesca artesanal constituía

um recurso econômico e fonte de alimento para as populações que tinham uma relação

de proximidade com o Rio São Francisco e suas ilhas, seus afluentes e lagoas marginais,

86Essa é uma característica marcante no vale do Rio Salitre que será aprofundada adiante.

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essas últimas muito utilizadas para a pesca e a agricultura, principalmente a produção de

arroz. Segundo Estrela (2009, p. 1), de modo geral,

catingueiros, brejeiros e beraderos tinham acesso a terra através de

formas seculares – a posse, a agregacia, o foro e a moradia sob

condição -, em estreita relação com fazendeiros, em geral, absenteístas

que açambarcaram as terras devolutas, arvorando-se em proprietários.

Para garantir a sobrevivência, praticamente todos recorriam a

pluriatividade.

Durante quatro séculos, poucas foram as alterações verificadas nos processos e

nos sujeitos que compunham o mosaico social87, político e econômico do vale do São

Francisco. O Vale era um imenso território sob o domínio dos coronéis, marcado por

uma forte concentração fundiária, tendo as relações políticas centradas no mandonismo

e no clientelismo. Essa realidade passaria por significativas mudanças no século XX,

mais especificamente a partir da década de 1970, quando o Estado, através de diferentes

políticas, confere ao Rio São Francisco a responsabilidade pelo desenvolvimento

regional. Desde então, a construção de hidrelétricas, projetos de irrigação, projeto de

colonização88e a implantação de infraestrutura (pontes sobre o Rio São Francisco89)

promoveram uma reestruturação produtiva das atividades econômicas que alteraram

significativamente o quadro regional, com destaque para as relações de produção na

agricultura. Embora, em decorrência das Políticas Públicas implantadas pelo Estado no

Semiárido nordestino, em especial no vale do São Francisco, tenha ocorrido uma

modernização do território nessa região, trata-se de um fenômeno conservador porque

as mudanças verificadas contribuíram para a permanência da concentração fundiária, da

estrutura de poder e da subalternidade de muitas famílias camponesas. Ainda segundo

Estrela (2009, p. 1), a

chamada modernização conservadora do campo, no que toca ao Vale

do Rio São Francisco, consubstanciou-se através de política públicas,

que se não significaram ponto de inflexão no sentido de atender

amplas demandas dos moradores da região, rompendo com seu

isolamento e com a enorme pobreza, possibilitaram a criação de uma

série de medidas que culminaram com a inserção da região no circuito

87 Esse mosaico social era composto por sujeitos como o cabra, o coronel, o cangaceiro, o vaqueiro, o

barqueiro, o pescador, o ribeirinho, o camponês entre outros. 88O Projeto de Colonização Serra do Ramalho (PECSR) foi idealizado para abrigar parte das famílias

expropriadas pela construção da Barragem de Sobradinho. Todavia, os camponeses desterritorializados

e realocados para o PECSR não se adaptaram às novas condições de vida, visto que saíram das bordas

do rio São Francisco, passando a morar em área de caatinga, promovendo um movimento de volta para

as bordas do lago de Sobradinho. Com isso, o PECSR passou a ser utilizado para assentar camponeses

de áreas vizinhas e até mesmo de outros estados, como Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul,

contribuindo para reduzir os conflitos agrários nesses estados, conforme destaca Machado (1987). 89 Pontes construídas em Juazeiro, Ibotirama e Bom Jesus da Lapa, que permitiram a conexão com

Salvador e Brasília.

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nacional de produção, abrindo-a, inclusive, ao capital monopolista,

representado, sobretudo, pelo agronegócio.

É comum aos projetos desenvolvimentistas executados pelo Estado assumirem,

por um lado, o “papel civilizador” e, em outros casos, explicitarem a concepção de que

os lugares receptores desses investimentos são verdadeiros “desertos”, desconsiderando

as tramas de relações estabelecidas pelas comunidades/sujeitos existentes nesses locais.

Com isso, a valorização da terra foi uma das consequências mais expressivas para a

região onde inúmeras comunidades tradicionais (Fundos90 e Fechos de Pastos,

quilombolas, camponeses, ribeirinhos e indígenas) estavam secularmente localizadas,

gerando tensionamentos, conflitos e expropriação. Sobre o processo de valorização das

terras em virtude da atuação do Estado, Sorj (1986, p. 106) destaca:

Os processos de valorização da terra e a impossibilidade dos

camponeses de oferecer uma resistência organizada, determinou que

esse período se caracterizasse por uma ofensiva geral contra os

pequenos produtores, em particular naquelas áreas onde, através de

infra-estrutura, incentivos fiscais ou programas especiais, o Estado

favoreceu uma rápida valorização das terras.

A atuação do Estado fomenta, contraditoriamente, novas formas de acesso à

terra mediante a execução de políticas públicas (especialmente aquelas voltadas para o

desenvolvimento territorial), distintas daquelas historicamente existentes na região,

como o uso coletivo das chamadas terras devolutas, onde se fazia o criatório de animais

(bovinos, caprinos, ovinos e equinos) e se praticava o extrativismo animal e vegetal.

É no interior desse contexto que começa a se desenhar o processo de grilagem de

terra no Baixio de Irecê, ou seja, nos municípios de Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia,

nos vales dos rios Verde e Jacaré, afluentes do Rio São Francisco. Já na década de 1960

havia planos para a criação de um projeto de irrigação abrangendo áreas dos municípios

de Itaguaçu da Bahia, Xique-Xique, Sento Sé e Jussara. Segundo informações de um

dos entrevistados no município de Itaguaçu da Bahia91, a chegada do Sr. Nely92 na

90 O conceito de Fundo de Pasto é bastante amplo e começou a ser formulado na década de 1970. De

modo geral, refere-se à apropriação de território no Semiárido baiano, caracterizado pelo criatório de

animais em terras de uso comum, articuladas com áreas denominadas de lotes individuais. Nos Fundos de

Pasto no Semiárido baiano as atividades estão baseadas na criação de bodes, ovelhas ou gado na área

comunal, com cultivo de lavouras para o autoconsumo nas áreas individuais, práticas essas associadas ao

extrativismo vegetal nas áreas de refrigério e de uso comum. Esses sujeitos são pastores, lavradores e

extrativistas.

91 Entrevista realizada em abril de 2014. Trata-se de um dos integrantes da presidência do Sindicato dos

Trabalhadores Rurais de Rio Verde, município de Itaguaçu da Bahia.

92 Engenheiro agrônomo com experiência na produção de cebola, em Cabrobó (PE).

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região do Baixio de Irecê foi um dos indícios da existência de interesse, por parte do

Estado, em implantar um projeto agropecuário nessa área. Inicialmente foi introduzido o

cultivo de cebola, mas havia a proposta de cultivo de uva, seguindo a perspectiva do

modelo de agricultura irrigada desenvolvida em Cabrobó (PE).

Conforme relatos dos camponeses moradores da Comunidade de Muquém, em

Itaguaçu da Bahia, a chegada do grileiro Airton Neves Moura na região ocorreu no ano

de 1974. Ainda de acordo com as informações obtidas através das entrevistas e da

história oral junto aos camponeses, o grileiro Airton Neves Moura era cunhado de

Antônio Carlos Magalhães, político influente, eleito várias vezes para o cargo de

governador da Bahia. Com o propósito de obter a posse ilegal das terras, a estratégia

adotada por esse grileiro foi a compra da fazenda Baixa Funda, incorporando as terras

ao redor dessa propriedade. Essa fazenda serviu de base para justificar as ações de

grilagem das terras, cujos domínios fronteiriços eram ampliados sem qualquer

obstáculo, porque não havia limites definidos da área usada coletivamente pelos

camponeses e, quando se tratava de áreas cercadas, estes não tinham nenhum

documento legal que lhes garantisse a posse da terra. Através dos depoimentos,

verificamos que, na região onde se registrou a grilagem de terras, existiam fazendas cuja

base econômica era a pecuária extensiva, tendo a agricultura uma função secundária,

desenvolvida nos vales úmidos dos rios Verde e Jacaré. Nessas fazendas, muitas

famílias camponesas com pouca terra trabalhavam como meeiros, parceiros, ou via

assalariamento, buscando uma fonte de renda complementar, como forma de superar as

dificuldades decorrentes dos períodos de longa estiagem, ou até mesmo da falta de

terras nos vales úmidos dos rios para as atividades agrícolas.

A grilagem das terras era feita através de coação e violência por parte de Airton

Neves Moura e seus “jagunços”. Quando visitava as comunidades, o grileiro estava

sempre acompanhado de “funcionários” armados e com um grande arsenal de munição,

aterrorizando as famílias. Em todos os relatos colhidos durante a pesquisa junto às

comunidades do Baixio de Irecê, a ação do grileiro foi retratada como violenta e sem

muitos episódios de enfrentamento por parte dos camponeses, havendo apenas dois

casos em que estes buscaram impedir a grilagem, sem, todavia, obter êxito. O poder

público não se manifestou em relação ao processo de expropriação das famílias, ficando

os camponeses à mercê do coronelismo velado das autoridades locais. Ressalte-se que o

momento político vivido pelo Brasil, na primeira metade dos anos 1970, era marcado

por forte repressão por parte do governo militar, o que dificultava qualquer ação dos

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camponeses, haja vista os resultados da perseguição enfrentada pelas Ligas

Camponesas. Airton Neves Moura, segundo os relatos dos camponeses, possuía forte

ligação política com o então prefeito de Xique-Xique, Reinaldo Braga93. Outro indício

de que a atuação do grileiro foi negligenciada pelas autoridades locais é o fato da

Companhia Vale do São Francisco (CVSF) já ter solicitado, em 1961, a realização de

estudos nos municípios de Xique-Xique, Itaguaçu da Bahia, Jussara e Sento Sé, com o

propósito de assentar as famílias desalojadas pela construção da Barragem de

Sobradinho94. Como resultado desses estudos, foi identificada uma extensa área de

terras férteis adequadas para a irrigação, conforme aponta o Relatório de Diagnóstico

Ambiental, elaborado pelo Consórcio Baixio de Irecê.

A inundação de extensas áreas do Médio São Francisco, [...] que seria

provocada pela elevação das águas do então futuro reservatório de

Sobradinho, criando problemas sociais e geoeconômicos para a

população a ser deslocada, levou a Comissão do Vale do São

Francisco a abrir concorrência em março de 1961 para realização de

estudos e investigações gerais objetivando determinar as

possibilidades hidroagrícolas das Bacias dos Rios Verde e Jacaré

(região de Irecê) assim como as possibilidades de fixação nessa região

das populações a serem deslocadas pela elevação do nível das águas

do rio São Francisco, a montante da Barragem de Sobradinho. Os

estudos constataram a existência de uma grande área favorável ao

desenvolvimento da agricultura irrigada (INTERNACIONAL

ENGENHARIA S.A; MAGNA ENGENHARIA LTDA;

GROUPEMENT D’ÉTUDES ET DE RÉALISATIONS DES

SOCIETÉS D’AMÉNAGEMENT RÉGIONAL, 1989, p. 12).

Após os estudos feitos sobre o Baixio de Irecê a pedido da CVSF,ante a

perspectiva de valorização das terras, a grilagem se iniciou, sendo as terras griladas

transformadas em reserva de valor. Com os resultados dos estudos feitos sobre essa

região, houve uma forte especulação em relação à propriedade da terra e sobre os

mananciais hídricos, evidenciando aquilo que Torres (2007) vai definir como

“hidroterritórios”, em virtude dos conflitos decorrentes da territorialização do grande

capital nas áreas com disponibilidade hídrica. Instalava-se, desta forma, uma nova

concepção de propriedade naquela região, levando à desterritorialização dos

camponeses ou ainda à sua subjugação aos donos das terras, obrigando muitas famílias a

93 Reinaldo Braga foi eleito para o cargo de deputado estadual no pleito eleitoral de 2014.

94 De acordo com PEREIRA (1987, p.11), a construção do lago de Sobradinho provocou a expropriação

de 26 mil propriedades e deslocamento compulsório de mais de 72 mil pessoas, incluindo a reconstrução

em outras áreas de quatro cidades: Casa Nova, Sento Sé, Remanso e Pilão Arcado, que tiveram novas

sedes construídas pela Companhia Hidrelétrica do Vale do São Francisco (CHESF), assim como

redistribuição de terras em compensação por parte das propriedades rurais submersas, contando com a

construção de agrovilas, como o PEC/Serra do Ramalho.

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migrarem para as cidades de Xique-Xique, Itaguaçu da Bahia ou para São Paulo. O

cercamento das terras de uso comum introduziu um elemento novo para o cotidiano dos

camponeses, significando mais um obstáculo à sua reprodução. As disputas territoriais

eclodiram, no contexto do Baixio de Irecê, muito antes de se divulgar a implantação do

projeto de irrigação, sendo frequentes as agressões e perseguições do grileiro e seus

jagunços aos camponeses, conforme podemos verificar por meio do depoimento da Sra.

M. A. da S. (61 anos):

Eu morava lá [Muritiba]. Carregava água daqui [Comunidade de

Roçado]para lá. Nóis pegava água daqui para lá. Meus meninos não

podiam nem com um carote de água. Nós fiquemos la, trabaiemos,

plantemos. Nessa terra mermo. Nóis ficamo lá muito tempo, nunca

tinha parecido ninguém. Tem quase 20 anos quando eu pensei

apareceu um povo lá, mandado de Antônio Carlos Magalhães. Quando

eu vi eu fiquei com medo. Eu estava até sozinha lá apareceu um carro

tudo cheio de gente. Eu disse: oxê é puliça! Ai ele chegou e perguntou

está com medo, senhora? Eu disse: eu tô porque nunca vi esse tanto de

gente aqui. Não senhora, a gente tá aqui conhecendo as terra. Essas

terra aqui é de Antônio Carlos Magalhães, a gente tá fazendo uma

pesquisa. Cadê seu marido? Eu disse: Ele tá no mato, foi buscar uma

rama para fazê um remédio para os menino. [...]. Eles conversou

muito com eu, perguntou o que é que eu fazia para comer. Eu falei: a

gente caça no mato, pranta mandioca, eu prantava mandioca lá atrais.

Eu relava era no ralo. Eu fazia um ralinho de lata de leite, um ralin

bem feitinho e ralava a mandioca, depois espremia bem esprimidinho

e colocava no sol para secar um pouquinho, quando secava eu passava

no caco para dar meus filhos. Quando nos pensamos que não ele falou

que na quarta feira ele vinha em Xique-Xique e queria conversar com

o “véi” que ia indenizar nóis, perguntou quantos anos a gente tava ali

e eu disse 11 anos. Pois eu vou indenizar ocêis aqui, nóis tava com

uma roça cheia de melancia, ai ele eu vou indenizar ocêis, ai ele disse

fala para seu marido que aqui ele não tira mais uma vara. Ai eu falei tá

bom. Na quarta feira ele foi para Xiquei-Xique e encontrou com o

homem. O homem chamava Mariano. Ah, ele era cabo extra de

Antônio Carlos Magalhaes. Você não corta mais um pau, não faz mais

roça. Você pode se retirar de lá que lá tem dono. Ai Ciço veio e já

aqui fora e ai no terreno dessa muiê aí, fez uma barraquinha de lona ai

nóis ficamos lá no terreninho com um mucado de filho lá debaixo de

uma lona. Outro homem estava desorientado porque trabaia num

terreno lá e os engenheiros chegou lá e falou para ele não tirar mais

um pau e era para ele ir embora. Um homem nos deu uma dica boa:

aqui nessa beira de rio vocês pega um lugar que só tem mato, num

lugar de matagal, num pega lugar onde tem roça de ninguém. Nóis

veio para cá para esse lugar, fizemos uma barraquinha de lona no

primeiro ano a gente fez uma tarefa só, ai trabaiamo, trabaiamo. Eu

tinha um menino ai eu fiquei comendo e trabaiano dentro da roça.

Hoje está lá uma roçona. Ele paga, ele tem a escritura do INCRA

desse que a gente mora lá, todo ano ele paga imposto. Já fez até aquele

negócio no Banco. E lá sabe o que eles fez? Queimaram a casa,

quebraram os pote, eu tinha um rádio véi eles quebraram tudo,

tacaram fogo nas cerca. Ocê pode crê que morava lá nesse lugar tão

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ruim, um lugar desse não é bom para vir buscar água aqui na beira do

rio, eu ainda sinto saudade de lá, eu gostava de lá, o povo fala

assim:ocê tá é doida, bom ocê tá é hoje. Mas de vez em quando eu

sinto falta, aquela vontade de ir lá. O que nóis comia lá [pausa] a gente

comia caça sem farinha, depois deu para pegar umas caça e vender

aqui na beira do rio. Ai eu vinha aqui ou mandava o menininho, ele

vinha sozinho. Eu ficava com pena dele e vinha atrais dele porque eu

tinha medo da onça comer ele. Graças a deus tá todo mundo vivo. Oia,

eu sinto falta, mas nem é bom sentir falta de um lugar desse não.

[Suspiros] Eu sofri demais lá. Quando acaba eles nem pagou nada,

enganou nóis. Nóis não ia sair de lá não. Não pagou todo mundo. Se

ficasse saia com pontapé. Ameaçava se não saísse. Lá quem mandava

era Antônio Carlos Magalhães, Félix Mendonça. O Airton Moura era

cunhado de Antônio Carlos Magalhães, tinha todo apoio dele. Antônio

Carlos Magalhães era o governador da Bahia, como é que a gente não

saia meu irmão? Esse Airton Moura grilava terra de todo mundo lá no

Sanharó. Quanta cerca ele arrancou do povo lá no Sanharó. Depois

que Airton morreu veio a CODEVERDE e a CODEVASF e ficou com

as terra. Depois da CODEVERDE ninguém teve mais nada. Se a gente

já tinha sido mandado embora de lá, aí ninguém quis mais saber de

nada (Informação verbal, 14/04/2014).

Analisando o relato feito pela camponesa moradora da Comunidade de Muritiba,

no município de Xique-Xique, é possível identificar vários elementos que configuram o

modo de vida das comunidades de Fundo de Pasto localizadas no Semiárido baiano,

cujas práticas cotidianas estão baseadas na coletivização do uso das terras, do

extrativismo vegetal e animal e dos saberes tradicionais, expressos na fala da

entrevistada através do uso de ervas e de plantas coletadas na caatinga para a produção

artesanal de remédios, como chás, xaropes, compressas, entre tantos outros. Ressalte-se

que, embora essas comunidades do entorno do Projeto Baixio de Irecê possuíssem as

características de comunidades tradicionais de Fundo de Pasto, nenhuma delas é

legalmente reconhecida como tal.

Após a audiência pública realizada em maio de 2014 pelo Ministério Público

Federal, no município de Xique-Xique, para tratar da representação pública impetrada

pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itaguaçu da Bahia, pelo Sindicato dos

Trabalhadores Rurais de Xique-Xique e pela Paróquia Senhor do Bonfim de Xique-

Xique – Bahia, Comissão Pastoral da Terra (CPT/BA), é que surgiu a proposta de

buscar o reconhecimento dessas comunidades como Fundos de Pasto. Antes disso, a

CPT já vinha fazendo a discussão junto às comunidades; todavia, essa ideia de

autodenominar Fundo de Pasto95 não tinha obtido muita adesão por parte dos

95 Para Ferraro Júnior e Bursztyn (2008, p. 1) “ao se reconhecer e ser reconhecido como fundo de pasto

(FP) uma comunidade e o conjunto destas comunidades acumulam forças para ocupar espaços mesmo em

situações de conflito”.

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camponeses. Segundo afirmou o agente da CPT/Irecê, o Ministério Público Federal tem

visitado algumas comunidades para coletar depoimentos dos camponeses, a fim de

requerer o reconhecimento dessas comunidades como Fundos de Pastos, de tal forma

que as terras griladas por Airton Neves Moura nos anos 1970/80, hoje sob o domínio da

CODEVASF, sejam devolvidas aos camponeses.

Nesse sentido, temos uma questão importante no interior do movimento de

mobilização social, decorrente da atuação da CPT junto às comunidades. Gradualmente

os camponeses estão reconhecendo a necessidade de buscar novas estratégias para fazer

o enfrentamento ao Estado, sendo o reconhecimento das comunidades como Fundos de

Pastos uma possibilidade de retomarem as terras que outrora ocupavam coletivamente,

sem ter que pagar renda. Ferraro Junior e Bursztyn (2008, p. 8, grifos dos autores)

afirmam que na Bahia

destacam-se quatro grandes grupos de populações tradicionais:

indígenas, quilombolas, FP e pescadores (inclui ribeirinhos e

marisqueiras). Há ainda as ‘comunidades terreiro’ (também

reconhecidas pela PNPCT) e os ‘geraizeiros’ que não estão

organizados, mobilizados e tampouco mapeados, e que vêm se

articulando com os FP. Entre os geraizeiros há ainda um grupo

bastante diferenciado que é reúne as comunidades dos brejos da Barra,

também denominados brejeiros.

Devido à extensão da área e à quantidade de famílias, não é possível definir

quantas famílias ainda criam animais nas terras que eram da CODEVERDE, mas ficou

evidente, durante as entrevistas, que essa prática não foi extinta, até porque, depois que

parte dessas terras passaram para o domínio da CODEVASF, não houve mais a

cobrança de renda.

A cobrança de renda foi mencionada por diversos camponeses, sendo

confirmada através do contrato assinado pelas partes envolvidas (ver anexo 1) e

mediante depoimento de um camponês (74 anos), morador da Comunidade de São João,

em Itaguaçu da Bahia:

O Sr. Já morava na região quando a CODEVERDE chegou?

Oxente! Já! Eu sou filho daqui. Nasci bem perto daqui. A

CODEVERDE chegou com a proposta: era para pagar ou tinha que

tirar as criação. Você tem 8 bezerros e paga 1 para a CODEVERDE.

Saísse de onde saísse você tinha que comprar um bezerro para pagar.

Eu paguei foi muita renda. Tinha vez que eles vinham panhá e saia

daqui 3, 4 bezerros. De um ano para outro lá chegou a ter 60 gado lá.

[Fazenda Pioneira] (Informação verbal, maio de 2013, grifos do

autor).

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Os animais recolhidos dos camponeses eram levados para uma das sedes da

CODEVERDE, nesse caso a Fazenda Pioneira (Foto 9), em Itaguaçu da Bahia e

ficavam sob os cuidados dos funcionários até atingirem o ponto de comercialização.

Desde 2012 a CODEVERDE não fez mais o recolhimento de animais nas comunidades

do Baixio de Irecê.

Foto 9 – Entrada da Fazenda da CODEVERDE em Xique-Xique (BA).

Fonte: Trabalho de Campo, fevereiro de 2012.

Autor: DOURADO, J. A. L.

Em outra entrevista, a cobrança de renda por parte da CODEVERDE também foi

ressaltada pela entrevistada (55 anos), moradora da Comunidade Nova Vereda, em

Itaguaçu da Bahia:

A gente planta no Poço Grande. A gente cria gado e criação96. Mas

para criar gado a gente paga. Quem cobra esse gado? Quem pega é

umas pessoa que trabalha pra CODEVERDE que fica na Pioneira,

rapaz que trabalha com eles né! Quando é aquele tempo eles vem

pegar. De 8 bezerros nascido a gente paga 1. Quem pega os bezerro é

os empregados, não é os donos não. Antes quando a gente era novo,

era assim absoluto97 que nem fala o povo, não tinha cerca mas hoje é

tudo fechado. A gente tem que criar na área da CODEVERDE. Não

tem como criar nas terra da gente mesmo porque é pouca. A gente

96 Criação é um termo utilizado pelos camponeses da região para designar caprinos e ovinos.

97 Absoluto quer dizer criar os animais livremente sem ter que pagar renda para o dono da terra.

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vive dos bichin (sic) que cria. (Informação verbal, abril de 2013,

grifos do autor).

A região que compreende os vales dos rios Verde e Jacaré, ou seja, a área do

Baixio de Irecê representava um lugar de refúgio para os camponeses caatingueiros por

motivos diversos, como o desalojamento decorrente da construção da Barragem de

Sobradinho, a grande seca de 1972/73, a disponibilidade de água para a agricultura e a

existência de terras devolutas que poderiam ser utilizadas sem o jugo dos senhores das

fazendas. Em virtude da origem dos sujeitos bem como da diversidade territorial do

local de proveniência, fica evidente a diversidade de campesinatos na região do Baixio

de Irecê, conforme destaca Marques (2008, p. 70):

A diversidade de campesinatos existente em cada formação territorial

resulta de processos históricos complexos, a partir dos quais cada

grupo local determina sua própria maneira de se relacionar com a terra

e a natureza, conformando tradições distintas, o que, por sua vez está

intimamente vinculado às relações estabelecidas entre o grupo e as

várias formas de capital e seus respectivos mercados, organizados em

escalas diferenciadas.

Segundo relatos dos camponeses, existiam muitas fazendas de gado na região,

cujos donos residiam em outros locais, sendo comum entre os camponeses trabalharem

como diaristas, parceiros ou meeiros nessas fazendas, mediante a associação de formas

de produção não capitalistas com a reprodução de relações capitalistas, pois essa

articulação entre assalariamento e “agricultura de borda” constituía-se uma importante

estratégia de reprodução desse campesinato, em muitos casos subordinado ao fazendeiro

pecuarista. Essa subordinação sofreria alterações com a grilagem de terras porque, ao

invés do fazendeiro pecuarista, o campesinato com características de Fundo de Pasto

passava a ser subordinado à CODEVERDE. Essa empresa era formada pelo Banco

Econômico, pelo Grupo Odebrecht e o Bahema-Caterpillar, nomes que comparecem em

diversas transações de compra e venda de terras na área do atual Projeto Baixio de Irecê,

revelando as engrenagens da ação das personas do capital no processo de grilagem das

terras nos municípios de Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique, acentuando a sujeição do

trabalhador ao espaço de morada e de trabalho.

Como a questão central para o capital é viabilizar a extração da mais-valia,

torna-se imperioso transformar todos os sujeitos em trabalhadores, de modo a torná-los

disponíveis no circuito produtivo. Deste modo, a eliminação dos modos de vida pouco

favoráveis ao processo sociometabólico do capital constitui uma importante etapa para a

libertação do sujeito do jugo da terra, tornando-o livre para vender sua força de trabalho

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para os proprietários dos meios de produção. Nessa perspectiva, Luxemburg (1983, p.

315) afirma que o

capital não pode desenvolver-se sem os meios de produção e forças de

trabalho existentes no mundo inteiro. Para estender, sem obstáculos, o

movimento da acumulação, necessita dos tesouros naturais e das

forças de trabalho existentes na superfície da terra. Mas como estas se

encontram, de fato, em sua grande maioria, acorrentadas a formas de

produção pré-capitalistas – este é o meio histórico da acumulação de

capital – surge, então, o impulso irresistível do capital de apoderar

daqueles territórios e sociedades.

Tem-se, nesse universo, a transformação da terra de trabalho em terra de

negócio98, conforme destaca Martins (1980), configurando novas relações no território a

partir da interferência de atores externos. Essa modernização da agricultura (e do

território) reflete um conjunto de alterações no uso da terra e da água, inclusive quando

se trata das ações do Estado, pautadas nas relações de mercado, não significando

necessariamente mudanças no plano do valor no tocante aos modos de vida dos

camponeses, porque suas práticas cotidianas estão entrelaçadas a valores tradicionais

que interferem na organização do tempo, do espaço e do trabalho. A partir da criação e

da expansão dos perímetros irrigados, acentuam-se os conflitos territoriais, traduzidos,

inclusive,pelas divergências entre concepções, projetos de sociedade e perspectivas de

futuro. Instala-se uma disputa político-ideológica, tendo como pano de fundo o

antagonismo entre o território dos povos do campo e o território do capital.

As Políticas Públicas voltadas ao incentivo da irrigação revelam os

direcionamentos daquilo que poderíamos denominar de geografia da grilagem de terras

e da expropriação camponesa. O resultado dessa reorganização espacial, incluindo a

própria existência de fazendas na região, cria as bases para a territorialização do grande

capital no Semiárido baiano, esboçando as particularidades da geografia das águas a

qual, nas últimas quatro décadas, ganha destaque em função das disputas territoriais e

de classes, no âmbito da demarcação de novas áreas propícias aos

megaempreendimentos agroindustriais, ocasionando redefinições campo-cidade e na

relação capital versus trabalho.

3.7 O campo movediço da legalização da grilagem de terras no Semiárido baiano:

o movimento das “peças” no tabuleiro sob o controle do Estado e do capital

98 A compreensão que temos sobre esses termos baseia-se nas reflexões realizadas por Martins (1991,

1995 e 2001).

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Antes de adentrar nas minúcias da grilagem de terras nos municípios de

Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique, faz-se necessário debruçar sobre a origem das terras

devolutas no Semiárido baiano99 para compreender como se constituem as grandes

propriedades bem como aquelas áreas usadas coletivamente pelos camponeses

caatingueiros e pelas populações tradicionais (comunidades quilombolas, Fundos e

Fechos de Pastos, ribeirinhos, entre outras). Em sua obra Os donos do poder, Faoro

(1987) menciona a existência de um “mundo novo”, referindo-se ao Sertão, que, no caso

da Bahia, passaria a pertencer predominantemente às Sesmarias100 da Casa da Ponte e

Casa da Torre101, perspectiva corroborada por Ferraro Junior e Bursztyn (2008), cujas

dimensões territoriais eram desconhecidas. Destacamos que, durante a realização de

História Oral com um camponês (70 anos) morador da Comunidade de Muquém, em

Itaguaçu da Bahia, este afirmou que o grileiro Airton Neves Moura mencionava ter

comprado do “Conde da Ponte” as terras que reivindicava como suas e de quem não

repassava nenhuma outra informação que o identificasse. Ao analisar as informações e

resgatar a historicidade da organização territorial do Semiárido baiano, conclui-se que

esse “Conde da Ponte” a que se referia o Sr. Airton Neves Moura era, na verdade, o

dono da Sesmaria da Casa da Ponte, desagregada no final do século XVIII. Esse fato

revela o profundo conhecimento, por parte do grileiro, da estrutura fundiária da região,

por reconhecer a própria condição das terras, tendo total liberdade para forjar os

99 Germani (2010, p. 14) estima que aproximadamente 55% do território baiano sejam constituídos de

terras devolutas.

100 Terras cedidas pelo Rei de Portugal ou por seus prepostos para pessoas de sua confiança com o

propósito de ocupação e colonização.

101 A constituição dos latifúndios, no Brasil, muitas vezes se confunde com a história das Capitanias

Hereditárias. Especificamente no caso do Nordeste brasileiro, Garcia d’Ávila, homem de confiança de

Tomé de Souza e funcionário da Coroa, foi um dos nomes de destaque, obtendo sesmarias no litoral e no

sertão. Este sesmeiro tornou-se o maior criador de bovinos, em toda a colônia, adentrando sertão com o

domínio sobre várias sesmarias, estabelecendo vários currais, principalmente ao longo do rio São

Francisco. Nesse desbravamento do sertão acabou arregimentando uma enorme quantidade de índios que

passaram a trabalhar sob seu comando como vaqueiros, plantadores e jagunços e cujo patrimônio ficou

conhecido pelo nome de Casa da Torre. Nesse processo de desbravamento do Sertão, muitas ocorreram

muitos conflitos entre os desbravadores/colonizadores e indígenas e entre os colonizadores e

missionários. De acordo com Santos (2012, p. 6) no “final do século XVII, a mando das ‘mulheres da

Torre’ (assim eram chamadas vulgarmente a viúva do Francisco Dias d’Ávila, Leonor Pereira Marinho e

sua mãe Catarina Fogaça, irmã do Francisco Dias d’Ávila), o procurador da Casa da Torre de Tatuapara,

Antonio Gomes de Sá, expulsou os jesuítas Filipe Bourel e mais quatro missionários das aldeias de Acará,

Curumambá e Sorobabé. Os confrontos entre missionários e a Casa da Torre não eram novidades, pois,

em março de 1669, o segundo Garcia d’Ávila já havia destruído as igrejas das missões do Itapicuru,

Geremoabo e Caimbé ou Massacará. Neste mesmo ano, a guerrilha dos d’Ávila também destruíra as

missões de Santo Inácio, Santa Cruz e a de São Francisco Xavier, fundadas pelos padres João de Barros e

Jacob Roland em 1666.”

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documentos necessários para comprovar a posse legal das terras usurpadas, ante a

certeza da impunidade em relação às barbáries cometidas contra os camponeses.

O apossamento coletivo de terras, por parte dos camponeses e fazendeiros,

ocorreu tanto no período das sesmarias até 1822, quanto após a sua extinção e a

constituição da chamada Lei de Terras102, de 1850. Essa lei demonstrou o poder de

articulação das classes dominantes, como explica Bursztyn (1995, p. 41):

Antevendo o fim da escravatura, que decorreria necessariamente do

fim do tráfico negreiro da África para o Brasil, efetivado em 1850

devido a pressões do governo inglês, as classes dominantes tomaram

providências de ordem legal para encaminhar o processo de

substituição do escravo sem prejuízo para a economia da grande

lavoura, principalmente café e cana. [...]. Tal lei instituía um novo

regime fundiário para substituir o regime de sesmarias suspenso em

julho de 1822 e não mais restaurado.

Entre 1822 e 1850, o Brasil ficou sem uma legislação que regulamentasse a

propriedade da terra e, conforme ressalta Torres (2011, p. 44-45), apesar da

vacância legal entre 1822 e 1850 favorecer aqueles que já possuíam

terras aumentar ainda mais suas propriedades, negros libertos,

vaqueiros, brancos pobres, também constituíram posses sobre terras

públicas, e nos fundos das fazendas de gado das sesmarias

parcialmente abandonadas, fazendo surgir, em grande parte, a forma

de exploração comunal, na região Nordeste da Bahia, que viria a ser

conhecida como fundo de pasto.

A promulgação da Lei de Terras representou o encerramento de um ciclo e, ao

mesmo tempo, funcionou como base para a perpetuação da concentração da terra. Com

a fragmentação das Sesmarias da Casa da Ponte e Casa da Torre103 iniciada no final do

século XVIII, abriu-se a possibilidade de se anexarem novas terras àqueles que já as

possuíam, bem como de constituírem propriedades aqueles que ainda não possuíam

terras. Para Ferraro Junior e Bursztyn (2008, p. 8), esta

desagregação, relacionada à decadência do ciclo do açúcar no

nordeste, permitiu que os antigos vaqueiros, ajudantes e suas famílias

mantivessem seu modo de vida e produção, independente do gado e

102 Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850. Lei de Terras, como ficou conhecida a lei nº 601 de 18 de

setembro de 1850, representou a primeira iniciativa adotada para estabelecer a propriedade privada no

Brasil. Até aquele momento, não havia nenhum documento que regulamentasse a posse de terras e, diante

à conjuntura econômica e social que se delimitava para o país, com os indícios do fim da escravidão, o

governo foi pressionado a criar mecanismos para obstaculizar a propriedade da terra pelos antigos

escravos. A Lei de Terras foi aprovada no mesmo ano da lei Eusébio de Queirós, que previa o fim do

tráfico negreiro e tinha como horizonte a abolição da escravatura no Brasil. Assim, essa Lei, nada mais é

que uma ação orquestrada pelos grandes fazendeiros e políticos latifundiários se anteciparam para impedir

que negros alforriados se tornassem donos de terras.

103 Para saber mais sobre a Sesmaria Casa da Torre, consultar Calmon (1983).

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do mando senhorial. A posse das terras da caatinga baiana pelos

conjuntos de famílias foi obtida por compra no período de

desmembração das sesmarias (primeira metade do século XIX) ou

pelo uso das terras devolutas.

As sesmarias avançaram para o interior e com elas os currais104 de gado, para

posteriormente aquelas entrarem em colapso no final do século XVIII, ficando muitos

espaços ociosos enquanto outros eram ocupados por camponeses na forma de

arrendamento ou posse simples. Por não atenderem ao dispositivo da Lei de Terras,

essas áreas seriam novamente incorporadas ao domínio do Estado, sendo denominadas

terras devolutas105 aquelas que foram dadas em sesmarias e, por terem caído em

comisso106, foram devolvidas à Coroa. Para Ferraro Junior e Bursztyn (2010, p. 388), as

terras devolutas são áreas onde geralmente “[...] vivem posseiros e outros povos, muitas

vezes em tensão com outros grupos interessados na sua ocupação. São territórios da

desconstrução e reconstrução do campesinato, nos quais surge um padrão camponês de

ocupação [...]”, áreas em que persistem, em pleno século XXI, comunidades

agropastoris e sobre as quais há um forte tensionamento, por parte do grande capital, na

busca por novos espaços para a sua reprodução ampliada.

De modo geral, a ocupação do Semiárido deu-se a partir dos vaqueiros e

posseiros, sendo estes últimos os que, na maioria das vezes, ocupavam as bordas das

fazendas, ou seja, as faixas de terras menos férteis, denominadas “terras fracas”.

Segundo Bloch (1996, p. 20), o

povoamento do vale do São Francisco pelos portugueses começou no

século XVII, com a catequização ou eliminação dos índios, deixando

lugar à criação de gado em grandes latifúndios, maior atividade

econômica da região até meados do século XX. [...] Além da pecuária

e da agricultura de subsistência praticada no sequeiro, havia também a

agricultura de várzea, que se aproveita das margens férteis do São

Francisco.

Os camponeses107que ocupavam as áreas do Semiárido baiano tinham como base

de reprodução familiar a pecuária e a agricultura para o autoconsumo, sendo aquela

104 Prado Junior denominou esse período de “civilização do gado” (PRADO JUNIOR, 1997) porque todas

as atividades que floresceram no Semiárido, com toda sua riqueza cultural, religiosa e diversidade

econômica estavam intrinsecamente relacionadas às atividades rurais, com destaque para a pecuária.

105 Decreto-lei 9.760/1946, de 5 de setembro de 1946, dispõe sobre os bens imóveis da União. De acordo

com o artigo 5º dessa lei, terras devolutas são as terras que não estão em uso público federal, estadual ou

municipal, ou que não estejam sob o domínio particular.

106 Multa imposta pelo não cumprimento do acordo entre a Coroa portuguesa e o sesmeiro.

107 Segundo Ferraro Junior e Bursztyn (2010, p. 390), o termo camponês, no Nordeste, refere-se a duas

concepções: aos assalariados rurais e aos que ainda não foram totalmente expropriados dos meios de

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caracterizada por ser de sequeiro e esta desenvolvida nos vales úmidos dos rios, brejos e

lameiros, como aponta Germani (2005, p. 6013):

A agricultura implantou-se no vale em paralelo com o processo de

povoamento. Em princípio voltada para a subsistência, a agricultura

conserva, até hoje, as mesmas características, sendo a exploração

pecuária sempre mais extensiva do que o cultivo da terra. De maneira

geral, os pequenos produtores, proprietários ou não, têm ocupado

áreas de vazantes ou algumas ilhas disseminadas sobre o leito do rio,

sujeitas a desaparecer com as enchentes.

Ainda sobre as particularidades da agricultura praticada no Médio São

Francisco, antes da intervenção do Estado, através de políticas públicas de incentivo à

irrigação, Germani (2005, p. 6014) expõe que nas

vazantes cultivavam-se culturas temporárias, como: milho, feijão,

mandioca e arroz, e a produção obtida nos brejos voltava-se

praticamente para o abastecimento intrarregional. A cana-de-açúcar

não atingiu o mesmo nível de importância alcançado na Zona da Mata,

uma vez que, na região predominava a existência de pequenos

engenhos que produziam rapadura e/ou aguardente, tendo sido

utilizada também como reserva forrageira. O algodão, que se destacou

como sendo a cultura mais antiga da região, entrou em declínio diante

da expansão da pecuária.

Na região de Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique, era comum a presença de

camponeses morando nas fazendas onde trabalhavam, havendo casos em que os

proprietários das terras doavam pequenas glebas para que estes pudessem desenvolver

uma agricultura voltada para o autoconsumo nos dias “livres”, como forma de

complementar a renda obtida com o assalariamento. Conhecidos como sitiantes ou

agregados, parte desses camponeses possuía pequenas propriedades em áreas de

sequeiro, sendo insuficientes para a criação de animais, levando-os a buscar o

assalariamento parcial.

Em outros casos, a agricultura e a pecuária extensiva eram praticadas nas áreas

comunais, como verificado nas 20 comunidades circunvizinhas do Projeto Baixio de

Irecê, cujas terras eram ocupadas dessa forma há aproximadamente um século,

conforme relatos dos camponeses. Ante a atuação do Estado, essas terras passariam a

ser cobiçadas, inicialmente pelos grileiros e, posteriormente, pelo grande capital devido

à possibilidade de implantação da infraestrutura hídrica, não havendo mais espaço para

o antigo morador/sitiante, o posseiro, o ribeirinho ou o vaqueiro. Mediante a

produção, e a “[...] gênese do sertanejo se ajusta a essa segunda acepção do campesinato nordestino que,

em algumas regiões, manteve a posse da terra em comunidades pastoris, nas quais se incluem os Fundos

de Pasto”.

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possibilidade de investimentos a serem feitos pelo Estado, as terras passariam a ser

valorizadas e transformar-se-iam em objeto de cobiça e conflito, aprofundando dessa

maneira as contradições e as barbáries no âmbito do metabolismo do capital, em terras

semiáridas, na Bahia.Transformada em reserva de valor, a terra grilada viabilizou

aextração de renda a ser transformada em lucro pela CODEVERDE,pelo fato desta

cobrar pagamento dos camponeses para que pudessem criar os animais soltos na área

sob seu domínio. Essa cobrança passou a fazer parte do universo das famílias das

comunidades localizadas na área onde seria implantado o Projeto Baixio de Irecê.

Percebeu-se, através do resgate da historicidade das comunidades mediante o uso da

História Oral, que não havia a preocupação, por parte dos camponeses, de ter a

propriedade da terra porque o interesse desses sujeitos era apenas usá-la para a

reprodução familiar.

Temos, nesse caso, a sobrevalorização do direito à propriedade privada da terra,

ao passo que sua função social constituía uma realidade através do uso coletivo das

áreas pelos camponeses108 para a criação de animais, agricultura, extrativismo vegetal e

animal. O uso da terra é aqui entendido como um valor próprio da identidade

camponesa, carregada de hibridismo, porque a historicidade do campesinato do

Semiárido baiano é repleta de contradições e sua “trajetória não é linear”, como aponta

Woortmann (1990, p. 16). A historicidade dos camponeses que vivem no Semiárido

baiano tem uma longa trajetória de desterritorialização, fuga e reterritorialização, seja

pelo avanço da pecuária, seja pelos projetos desenvolvimentistas, iniciados com a

construção de Sobradinho109 que inundou aproximadamente 4.214 km². Conforme

destaca Woortmann (1990, p. 12), para o camponês a terra é:

expressão de uma moralidade; não se vê a terra em sua exterioridade

como fator de produção, mas como algo pensado e representado no

contexto de valorações éticas. Vê-se a terra, não como natureza sobre

a qual se projeta o trabalho de um grupo doméstico, mas como

patrimônio da família, sobre a qual se faz o trabalho que constrói a

família enquanto valor. Como patrimônio, ou como dádiva de Deus, a

terra não é simples coisa ou mercadoria.

108 Oliveira (1986, p. 70) define esse sujeito como “camponês-posseiro”.

109 Os resultados decorrentes da construção do Lago de Sobradinho trouxeram grandes impactos

negativos para as populações atingidas, direta ou indiretamente, por esse empreendimento, pois

submergiram 350 km de margens férteis do rio, além das ilhas onde também se praticava a agricultura

itinerante, numa estimativa de que, da área total inundada, 40% era agriculturável, conforme afirma

Pereira (1987).

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A proliferação das ações de injustiça, opressão e desterritorialização tiveram sua

continuidade com os projetos de irrigação e, mais recentemente, com a mineração e com

os parques eólicos que avançam sobre os territórios dos camponeses e das populações

tradicionais, para atender aos ditames do mercado global. Por isso, é necessário analisar

os desdobramentos da expansão dos empreendimentos no Semiárido baiano sob o

comando do grande capital e com o consentimento do Estado, porque a análise espacial

desse fenômeno revela um elemento importante para a compreensão de como vem

ocorrendo a mobilidade do capital, nessa região, em busca de novas formas de

acumulação. Determinadas frações do território semiárido baiano que, até o início dos

anos 1990, não haviam despertado interesse do grande capital, ou seja, os topos das

serras e as terras de sequeiro, distantes do vale do Rio São Francisco, passam a ser

incorporadas a uma nova estrutura socioeconômica, com base na expansão do

capitalismo “financeirizado” no campo. Enquanto há uma dilatação dos territórios sob o

domínio do grande capital, tem-se um “encolhimento” dos territórios camponeses,

fazendo emergir, na contramão desse fenômeno, movimentos de contestação dessa

lógica perversa e desigual. Esse “próspero” e “novo” Semiárido revela o “atraso” e o

ufanismo inerentes aos projetos desenvolvimentistas pautados na globalização perversa,

à qual se atribui a responsabilidade de reduzir as desigualdades sociais, como enfatizam

os representantes do Estado em seus discursos. Assim sendo, conforme afirma Bursztyn

(1984, p. 165, grifo do autor),

o Estado tem um papel decisivo na expansão capitalista, através da

criação de enclaves no Nordeste. Nestes “lócus” privilegiados pela

ação planejada, novos grupos sociais aparecem, enquanto outros

reduzem. E essa mudança não se limita à esfera dos trabalhadores,

onde os assalariados são cada vez mais importantes em relação aos

parceiros, moradores e arrendatários. Também no topo da hierarquia

social o Estado cria novos grupos: uma parcela dos velhos

latifundiários tornam-se capitalistas modernos e uma “pequena

burguesia” rural, outrora inexistente, começa a aparecer como um

produto direto dos programas de desenvolvimento regional.

Os resultados dos programas de desenvolvimento regional/territorial

influenciaram diretamente a dinâmica do espaço agrário no Semiárido baiano, havendo

uma sobreposição de ações e políticas públicas com vistas a reconfigurar as atividades

econômicas locais/regionais, criando um extraordinário mosaico geográfico de

produção de riquezas e miséria. Há, nesse sentido, um amálgama de formas “arcaicas” e

“modernas” necessário ao pleno desenvolvimento do capitalismo, num processo

recíproco de retroalimentação que emana do controle social e da despossessão

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crescentes no presente. Através dos programas e projetos direcionados à irrigação, a

agricultura praticada no Semiárido tem sido incorporada à produção agropecuária

globalizada, exigindo significativos investimentos em correção de solos, fertilizantes,

agrotóxicos, máquinas e sistemas de irrigação. Políticas públicas dessa natureza

representaram (e ainda hoje representam) grandes obstáculos para os camponeses pelo

fato destes não disporem de recursos financeiros para modernizar a produção e porque,

em geral, não há por parte dos formuladores o propósito em alterar a realidade. Por

meio da aliança terra-capital manteve-se “[...]intocada a estrutura do poder no

campo”(DELGADO, 2001, p. 31), garantindo a perpetuação dos mecanismos de

valorização especulativa dos capitais, ao passo que a estrutura fundiária permaneceu

congelada, sendo incontestável a concentração de terras. Destacamos, nessa seara, o

“Projeto Sertanejo”, pois este contribuiu para fomentar a valorização e grilagem de

terras, aumentando a “vulnerabilidade das populações locais e de suaconsequente

desterritorialização.” (FERRARO JUNIOR e BURSZTYN, 2010, p. 395).

Aliás, muitas das Políticas Públicas (programas e projetos) formuladas para o

Semiárido brasileiro, desconsideram as potencialidades e particularidades dos sujeitos

que residem na região, excluindo-os do acesso aos benefícios decorrentes dos

investimentos feitos pelo Estado, por não terem expertise para acessá-los, como é

possível verificar através dos procedimentos adotados para a escolha daqueles que irão

ocupar os lotes nos projetos de irrigação. Quando os camponeses e trabalhadores locais

são absorvidos nas obras de construção dos perímetros irrigados, ou mesmo depois, nas

atividades agrícolas, estes ocupam funções com baixa remuneração e de caráter

temporário, configurando condições precárias de trabalho, expressas pelo

assalariamento temporário nos canteiros de obras, em muitos casos intermediado pela

terceirização dos contratos de trabalho e pela informalidade, situação comum, inclusive,

nas lavouras dos perímetros irrigados. Esses, entre tantos outros fenômenos, colocam

novos e complexos desafios para a análise e a compreensão da classe trabalhadora

atualmente, porque, segundo Antunes (2005, p. 82), a “classe trabalhadora, hoje,

também incorpora o proletariado rural – que vende a sua força de trabalho para o capital

-, de que são exemplos os assalariados das regiões agro-industriais, [...].”

Ocorre, na verdade, a captura dos espaços de vida e de trabalho, sendo estes

transformados em “territórios para o consumo” (HARVEY, 2005), tornando-se mais

dinâmicos para o capital, e assumindo, consequentemente, a condição de territórios dos

conflitos e das disputas, numa simbiose entre desenvolvimento e

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“subdesenvolvimento”, pautada na “autoconcepção eternizante do capital”

(MÉSZÁROS, 2002, p. 605).

A região do Baixio de Irecê elucida bem essa realidade porque as comunidades –

bastante heterogêneas e detentoras de distintos modos de vida – passaram a sofrer as

interferências diretas dos megaprojetos executados pelo governo durante o período da

ditadura militar. Em decorrência da construção da Barragem de Sobradinho, a

identidade territorial das comunidades sofreu alterações porque muitas famílias

desalojadas foram reassentadas nessa área, o que confere características bastante

heterogêneas aos modos de vida dos camponeses. Em 2013, durante um encontro de

mobilização promovido pela CPT/Irecê na Comunidade de Roçado, no município de

Xique-Xique, um camponês (32 anos) fez o seguinte relato:

Minha família veio “corrida” de Sobradinho para cá. Quando chegou

aqui foi para uma área de catinga. Aqui passou um sofrimento danado

com medo de Airton Moura que veio tomando terra de todo mundo.

Agora a gente está assim: o que sobrou que a CODEVASF não pegou

corre o risco de ser tomado pelas mineradoras e pela energia eólica. A

gente fica desesperado porque terra não tá fácil e a gente não é mais

menino. É triste viu viver assim. [...]. (Informação verbal,

26/05/2013.Grifo nosso).

Os projetos desenvolvimentistas executados pelo Estado e o grande capital têm

ocasionado a mobilidade forçada do campesinato no Semiárido baiano, gerando

múltiplos processos de expropriação, conforme expõe o camponês A. da S. P. (62 anos),

morador da Comunidade de Carneiro, município de Xique-Xique:

A gente foi retirado das ilhas e da margem do São Francisco pela

CHESF para a construção de Sobradinho;daí a gente foi para a Serra

do Rumo, e quando nós já estava produzindo e criando, fomos

expulsos pelos jagunços que queimaram tudo: casa, roça, até os

poleiros das galinhas.E agora vem esse projeto para tirar nós de novo

da terra. (Informação verbal, 26/05/2013).

Considerando os relatos dos camponeses, é possível constatar diferentes agentes

e/ou processos expropriatórios presentes na história do campesinato caatingueiro,

revelando o movimento do capital na busca por sua reorganização espacial, mediante a

incorporação de novas áreas para atender às demandas do mercado. Na década de 1970,

no ápice da reestruturação produtiva do capital, ocorreu o boom dos projetos de

irrigação e a construção de hidrelétricas no São Francisco. No momento atual,

associados aos projetos de irrigação, tem-se a explosão da mineração e dos parques

eólicos, colocando novos e complexos elementos para a análise da

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219

mobilidade/territorialização do capital sobre terras semiáridas baianas. Essa inserção

revela as marcas, as contradições históricas e o conteúdo territorial impressos na

configuração espacial do espaço agrário no Semiárido baiano, onde modernização e

pobreza estão separadas por tênues limites recobertos com “mantos” que escondem a

degradação das condições de trabalho e de vida das populações que vivem no campo.

Quando entra em cena a implantação dos perímetros irrigados, no primeiro

momento, a total desinformação por parte da população local em relação aos

empreendimentos cria uma expectativa sobre a possibilidade de melhoria nas condições

de vida, pois, historicamente, o acesso à terra e à água constituiu um problema no

Nordeste semiárido, estando associado ao latifúndio – baseado na pecuária extensiva, na

monocultura do algodão e no coronelismo – e ao controle político. Com isso, temos

cada vez mais um processo de controle da massa trabalhadora, com a intensificação do

assalariamento no campo, em virtude das alterações na agricultura, do pacote

tecnológico e das mudanças nas relações de trabalho. Assim como na cidade, o trabalho

no campo passa a ser cada vez mais precarizado, fragmentado e alienado, porque, junto

com a modernização da agricultura, vem o grande capital, apropriando-se das terras e da

água e, consequentemente, fomentando os processos des-reterritorializantes e a “lógica

empresarial” entre os próprios camponeses.

3.8 Legalizando a Barbárie no Semiárido baiano: do uso comunal ao cercamento

das terras no Baixio de Irecê

Antevendo a possibilidade de valorização das terras localizadas entre os vales

dos rios São Francisco, Jacaré e Verde, ocorreu o esbulhamento do campesinato que

ocupava coletivamente a vasta faixa de terras que abrange os municípios de Itaguaçu da

Bahia, Xique-Xique, Jussara e Sento Sé. Airton Moura teria, na década de 1970, o papel

de fazer a “limpeza” da área para viabilizar a apropriação das terras pelo capital,

transformando-as em reserva de valor, ante à possibilidade de implantação nessa área do

maior projeto de irrigação da América Latina. Esse trabalho de “limpeza” foi feito desde

a margem direita do rio São Francisco, nas mediações do município de Xique-Xique –

aproximadamente no povoado de Boa Vista – até as margens do Rio Jacaré,

atravessando o vale do rio Verde, no sentido leste-oeste, numa extensão de

aproximadamente 100km e na direção norte-sul (50km), até as imediações dos

povoados de Lajes, em Itaguaçu da Bahia.

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220

Airton Moura comparece como primeiro agente no complexo processo de

compra de terras, nos municípios de Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique, por importantes

grupos econômicos como a Odebrecht, Banco Econômico, Bahema e COPENER,

posteriormente agrupados com o nome de CODEVERDE. Diversas estratégias foram

utilizadas por Airton Moura e seus jagunços no processo de grilagem, como ameaças de

morte, esbulho, queima de casas e cercas, violência psicológica e processos fraudulentos

de compra de terras dos camponeses que talvez pudessem comprovar o direito de

propriedade.

É necessário destacar que as áreas usadas coletivamente pelas famílias

camponesas, entre os vales dos rios São Francisco, Verde e Jacaré, eram, justamente,

aquelas que despertavam pouco interesse entre os sesmeiros e, posteriormente, entre os

grandes fazendeiros, porque estavam relativamente distantes das margens do rio São

Francisco. Buscando ter a posse da terra, as famílias camponesas adentraram a Caatinga

e passaram a ocupar-se com a pecuária extensiva – sendo predominante a criação de

caprinos sob o regime de “bode solto” ou compáscuo110 – e com a agricultura nos vales

úmidos dos rios Verde e Jacaré. Ressalte-se que a interiorização da pecuária foi um dos

pilares do processo de ocupação do sertão, constituindo uma verdadeira “civilização do

couro111”, conforme destaca Abreu (1963). Sobre a mobilidade do campesinato em

busca de terras disponíveis para fazer sua roça, Martins (1990) afirma que essa

ocupação dura apenas o tempo necessário à chegada do grileiro ou do fazendeiro.

“Expropriação”, segundo Oliveira (2001, p. 110), é apenas uma das faces da questão

agrária no Brasil, estando associada a outro fenômeno, o da exploração, ambos

verificados nas comunidades do Baixio de Irecê. Ainda no tocante aos aspectos que

envolvem a expropriação camponesa, Martins (1990, p. 50) afirma:

[...] a expropriação constitui uma característica essencial do processo

de crescimento do capitalismo, é um componente da lógica da

reprodução do capital. O capital só pode crescer, só pode ser

reproduzir, à custa do trabalho, porque só o trabalho é capaz de criar

riqueza. Por isso, uma lei básica do capital é a de subjugar o trabalho.

Não há capitalismo sem subjugação do trabalho.

110 Termo muito usado no Direito Civil. Refere-se à comunhão de pastos entre camponeses/proprietários.

111 Sobre essa civilização do couro, Andrade (1982, p. 65) descreve: “De couro era a porta das cabanas,

rude leito aplicado ao chão, e mais tarde a cama para os partos, de couro todas as cordas, a borracha para

carregar água, o mocó ou alforje para levar comida, a mala para guardar roupa, a mochila para milhar o

cavalo, a peia para prendê-lo em viagem, as bainhas de facas, as brocas e os surrões, a roupa de montar no

mato, os bangüês para curtumes ou para apanhar sal, para os açudes o material de aterro era levado em

couros por juntas de bois, que não calcavam a terra com seu peso, em couro pisava-se o tabaco para o

nariz”.

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221

Nos vales dos rios Verde e Jacaré existiam (e ainda existem) fazendas,

resultantes do desmembramento da Sesmaria Casa da Ponte, abrigando muitas famílias

que trabalhavam na condição de agregados, posseiros, vaqueiros, diaristas, com forte

presença de relações não capitalistas de produção, expressas pela coexistência da

agricultura de “borda” ou “marginal” voltada para a produção de gêneros alimentícios,

enquanto os fazendeiros se dedicavam à pecuária de gado bovino, nas áreas de caatinga

e ao cultivo de cana-de-açúcar, nos vales úmidos dos rios, para a produção de rapadura

e forragem para o rebanho durante os períodos de estiagem.

A expropriação dos camponeses pela ação do grileiro Airton Neves Moura

promoveu transformações nas relações de trabalho entre as famílias das comunidades do

Baixio de Irecê. A ocupação comunal dessas áreas constituía uma estratégia de

reprodução do campesinato caatingueiro, sendo este, em sua essência, caracterizado por

não ter terra, ou seja, eram camponeses que viviam, em sua maioria, na condição de

agregados112, parceiros, meeiros, arrendatários e trabalhadores rurais (vaqueiros e

jagunços) em fazendas da região. Historicamente, parte desse campesinato sempre

esteve subordinado aos fazendeiros, a quem pagavam renda113 diretamente, sem a

presença de intermediários. Por outro lado, uma parcela desse campesinato adquiriu

relativa autonomia em relação ao fazendeiro, devido à aquisição de terras, via compra,

por meio de doação feita pelos próprios fazendeiros como forma de pagamento e/ou

gratidão por serviços prestados, ou, ainda, mediante a ocupação de terras devolutas. Em

se tratando do processo de formação do campesinato no Semiárido, os autores Ferraro

Junior e Bursztyn (2010, p. 485-6) reforçam que o:

esfacelamentodas grandes sesmarias – como das Casas da Pontee da

Torre –, entre o final do século XVIII e iníciodo século XIX,

decorrente da queda da economiado açúcar, permitiu o

estabelecimento e a formação de um campesinato advindo de famílias

de vaqueiros, agregados e outros recém-chegados, num processo de

acampesinamento relacionadoao apossamento comunal das terras. O

descontrole do Estado sobre essas terras, o desinteresse econômico por

112 Martins (1994, p. 35-36) explica minuciosamente como se constituíam as relações entre o agregado e o

fazendeiro. Segundo esse autor, a relação entre esses sujeitos “[...] era essencialmente a relação de troca –

troca de serviços e produtos por favores, troca direta de coisas desiguais, controlada através de um

complicado balanço de favores prestados e favores recebidos. Nesse plano, a natureza das coisas trocadas

sofria mutações – pelo fato de viver e trabalhar autonomamente nas terras de um fazendeiro, um agregado

podia retribuir-lhe defendendo o seu direito de se assenhorear de mais terras, de litigar com fazendeiros

vizinhos, etc. com isso, o agregado, defendia também o seu direito de estar na terra do fazendeiro. Mas

não podia defender o direito de estar na terra, sem fazer dessa terra propriedade do seu fazendeiro. A sua

luta era luta do outro”.

113 Martins (1980, p. 163) defina esse pagamento como “renda pré-capitalista”.

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222

elas e o seu relativo isolamento geográfico são aspectos que

favoreceram seu desenvolvimento. No sertão, essas condições

perduraram sem alterações bruscas e exógenas até as décadas de 1970

e 1980, quando o cercamento de grandes áreas criou choques com os

usos costumeiros.

Analisando a realidade das comunidades circunvizinhas ao projeto de irrigação

Baixio de Irecê, vê-se que o intuito do grilo da terra não foi a expropriação para a

introdução de uma nova atividade econômica. O que ocorreu, de fato, foi a apropriação

da terra como reserva de valor, tornando-a mercadoria, já com vistas aos possíveis

lucros a partir da realização de investimentos públicos em obra de infraestrutura hídrica

na região. As terras, até então, utilizadas de maneira comunal foram cercadas e os

camponeses passaram a ser obrigados a pagar renda à CODEVERDE pela criação de

animais nessa área. Temos, nesse contexto, aquilo que Martins (1980, p. 175) define

como a “sujeição da renda da terra ao capital”, ou seja, o grande capital procura tornar-

se proprietário de terra, ao vislumbrar lucros mediante a especulação imobiliária, sem o

intuito de desenvolver atividades agrícolas, num processo de unificação do capitalista e

do proprietário de terras. Sobre essa questão, Oliveira (2001, p. 49) afirma que

[...] o desenvolvimento do modo capitalista de produção no campo se dá

primeiro e fundamentalmente pela sujeição da renda da terra ao capital,

quer pela compra da terra para explorar ou vender, quer pela

subordinação à produção do tipo camponês. O fundamental para o

capital é a sujeição da renda da terra, pois a partir daí, ele tem as

condições necessárias para sujeitar também o trabalho que se dá na

terra.

Inicialmente, a despossesão dos camponeses, teve a função de assegurar a

propriedade privada sobre as terras devolutas, tendo os agentes da grilagem utilizado,

para tanto, traços de (i)legalidade. Esse seria um passo importante para a transformação

da terra de trabalho em terra de negócio, conforme explica Martins (1991, p. 55):

Quando o capital se apropria da terra, esta se transforma em terra de

negócio, em terra de exploração do trabalho alheio; quando o

trabalhador se apossa da terra, ela se transforma em terra de trabalho.

São regimes distintos de propriedade, em aberto conflito um contra o

outro. Quando o capitalista se apropria da terra, ele o faz com o intuito

do lucro, direto ou indireto. Ou a terra serve para explorar o trabalho

de quem não tem terra; ou a terra serve para ser vendida por alto preço

a quem dela precisa para trabalhar e não a tem. Por isso, nem sempre a

apropriação da terra pelo capital se deve à vontade do capitalista de se

dedicar à agricultura.

Ressaltamos que a inexistência de organização política, por parte das famílias

camponeses moradoras das comunidades localizadas entre os vales dos rios São

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Francisco, Verde e Jacaré, nos municípios de Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia,

favoreceu, sobremodo, a apropriação das terras por Airton Moura. As organizações

sociais existentes na região, durante aquele período – como a Grupo de Apoio e de

Resistência Rural e Ambiental (GARRA), Fundação de Desenvolvimento Integrado do

São Francisco(FUNDIFRAN) e Coordenação Estadual de Trabalhadores Acampados e

Assentados (CETA) – estavam focadas em organizar as famílias desalojadas pela

construção de Sobradinho. Após a “limpeza” da área situada à margem esquerda do rio

São Francisco, mediante a despossessão dos camponeses, as terras passaram a ser

incorporadas por grandes grupos econômicos com atuação em setores diversificados.

Após o levantamento da cadeia sucessória de 15 propriedades localizadas na região em

que os camponeses mencionam ter ocorrido a grilagem de terras, identificamos alguns

nomes que sempre comparecem nas transações de terras, a saber: Airton Moura, Banco

Econômico, Bahema, Copener/Copene, Gustavo Colaço Dias, João Medeiros Borges e

Eulina Borges de Sena.

A elaboração da cadeia sucessória foi feita com base na documentação cedida

pelo Cartório de Registro de Imóveis e Hipotecas – Comarca de Xique-Xique – a pedido

da CPT/Irecê, sendo esta responsável por atuar junto às comunidades impactadas pelo

Projeto de Irrigação Baixio de Irecê (Tabela 13).

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Tabela 13 – Transações de compra e venda de terras na área do Projeto baixio de Irecê

Propriedade Extensão

(ha)

Município Proprietário

Atual

Vendedor Ano de

compra

Cadeia

sucessória

(anos)

Fazenda

Codeverde

12.362 Itaguaçu da

Bahia

CODEVASF CODEVERDE 2011 145

Fazenda

Codeverde

31.827 Itaguaçu da

Bahia

CODEVASF CODEVERE 2011 145

Fazenda Boa

Vista

2.853 Xique-Xique CODEVASF CODEVERDE 2011 33

Baixio de

Irecê –

ETAPA I

1.406 Xique-Xique CODEVASF José Carlos

Ferraz Ribeiro

2002 33

Gleba da

Fazenda

André

2.423 Xique-Xique

e Itaguaçu da

Bahia

CODEVASF ITRUL* 2011 94

Fazenda

André

8.333 Xique-Xique

e Itaguaçu da

Bahia

CODEVASF José Cralos

Ferraz Ribeiro

2011 94

Fazenda Boa

Vista – Gleba

I

143 Xique-Xique

e Itaguaçu da

Bahia

CODEVASF CODEVERDE 2009 37

Fazenda

Codeverde –

Gleba 2

637 Xique-Xique CODEVERDE Banco

Econômico

2012 146

Fazenda

Codeverde –

Gleba 3

229 Xique-Xique CODEVERDE Banco

Econômico

2009 146

Fazenda

Santa Izabel

36.165 Itaguaçu da

Bahia

CODEVERDE Copene 1992 32

Fazenda

Codeverde

72.084 Itaguaçu da

Bahia,

Xique-Xique

e Sento Sé

CODEVERDE Banco

Econômico

2009 145

Fazenda Boa

Vista

135 Xique-Xique

e Itaguaçu da

Bahia

CODEVASF CODEVERDE 2011 38

Fazenda Boa

Vista

10.834 Xique-Xique CODEVASF CODEVERDE 2010 33

Fazenda

Baixio de

Irecê I

8.802 Xique-Xique

e Itaguaçu da

Bahia

CODEVASF CODEVERDE 1999 38

Fazenda Boa

Vista

2.250 Itaguaçu da

Bahia

CODEVASF Empresa Agro

Indústria

2010 37

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Área total 176.071 hectares

Elaboração: DOURADO, J. A. L.

Fonte: Cartório de Registro de Imóveis e Hipotecas, Xique-Xique, 2013.

*Imobiliária de Terrenos Rurais e Urbanos LTDA.

Foram cedidas 15 certidões que nos possibilitaram levantar informações sobre os

processos de compra e venda das propriedades, de modo a entender as teias que

envolvem a movimentação das peças no complexo tabuleiro do mercado de terras nos

vales dos rios Verde e Jacaré. Com base nos dados da Tabela 13,percebe-se que a

CODEVASF não desapropriou pequenos agricultores114, pois as únicas áreas com

menos de 200ha são oriundas de desmembramentos de fazendas maiores, revelando as

estratégias adotadas pelos grandes proprietários para a venda das terras para a

CODEVASF. Alguns nomes são recorrentes nos registros de compra e venda de terras

emitidos pelo Cartório de Registro de Imóveis e Hipotecas de Xique-Xique, com

destaque para Airton Neves Moura, Banco Econômico, Bahema, Copene/Copener,

Gustavo Colaço Dias, João Medeiros Borges, José Medeiros Borges e Eulina Borges de

Sena.

Conforme menciona a Ação Civil Pública Coletiva impetrada pela Comissão

Pastoral da Terra/Irecê, pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itaguaçu da Bahia e

pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xique-Xique, junto ao Ministério Público

Federal, a primeira transação de compra de terra feita por Airton Neves Moura na região

foi com Eulina Borges de Sena, herdeira de José de Medeiros Borges, cujo inventário

seria utilizado para atribuir caráter de legalidade à origem da propriedade das terras.

Outro nome recorrente é o de João de Medeiros Borges, também citado nos documentos

de compra e venda de terras, fazendo uma alternância entre eles quanto às transações

envolvendo terras nos vales dos rios Verde e Jacaré.

De acordo com informações contidas nos registros emitidos pelo Cartório de

Registros de Imóveis e Hipotecas, Gustavo Colaço Dias115 adquiriu terras nessa região

em três momentos distintos: 1976, 1979 e 1985. Tratava-se de um influente empresário

do setor sucroalcooleiro, acionista da Agrovale, uma das maiores produtoras de cana de

açúcar e etanol do Nordeste brasileiro, com expressiva atuação no município de

114 Para o IBGE, o pequeno agricultor é aquele que possui propriedade que varia entre 0 e 200 hectares.

115 Nascido em 1926, faleceu dia 05/09/2014 na cidade de Recife (PE). Ao longo de sua trajetória, atuou

em diferentes funções: Diretor Vice-Presidente da Federação das Indústrias de Pernambuco, Diretor Vice-

Presidente do Centro das Indústrias de Pernambuco, Diretor Presidente do Sindicato da Indústria do

Açúcar no Estado de Pernambuco e Membro do Grupo Interministerial do Açúcar (GTA). Disponível em:

http://www.agrovale.com/?sessao=noticia&cod_noticia=326. Acesso em: 19/11/2014.

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Juazeiro (BA), com aproximadamente 21.000 hectares de cana-de-açúcar plantados,

uma vez que, com a criação do PRÓ-ÁLCOOL pelo governo federal em novembro de

1975, passou-se a especular sobre a produção de agrocombustíveis no projeto de

irrigação a ser implantado nos municípios de Itaguaçu da Bahia, Xique-Xique e Sento

Sé, nos vales dos rios Verde e Jacaré. Essa região aglutinava um elenco de

características favoráveis à expansão de empreendimentos capitalistas baseados na

modernização do campo: terras férteis, área planas, proximidade com o rio São

Francisco, grande quantidade de áreas utilizadas de forma comunal e falta de

organização política por parte dos camponeses. Em decorrência disso, essas terras

passaram a ser cobiçadas para a produção de agrocombustíveis, como revela a presença

dos grupos econômicos Copene, Copener e Agrovale, do setor de agroenergia.

O Banco Econômico, de propriedade do banqueiro Ângelo Calmon de Sá,

também possuía terras na atual área do Projeto Baixio de Irecê, conforme comprova os

registros de imóveis e hipotecas, sendo citado em 7 transações de compra e venda.

Ainda segundo os registros, o Banco Econômico vendeu três propriedades para o Grupo

CODEVERDE, totalizando 72.950 hectares, cujas operações foram realizadas nos anos

de 2009 e 2012. Esse banco esteve envolvido no escândalo financeiro dos cheques

administrativos sem cobertura, durante o período da ditadura militar, sendo abafado

pelo fato de seu dono possuir grande influência política116. Esse mesmo banco sofreu

intervenção do Banco Central em 1995, entrando em liquidação judicial em 1996117: os

bens dos controladores ficaram bloqueados, a pedido do Ministério Público da Bahia,

durante 10 anos (1996 a 2006) para pagamento de dívidas junto aos credores, sendo o

bloqueio suspenso em 2006 pelo próprio Ministério Público da Bahia.

Embora algumas cadeias sucessórias remontem ao século XIX (1867), a maior

parte dos registros de compra e venda ocorreu após a década de 1970, revelando o

emaranhado e complexo processo de apropriação das terras dos vales dos rios Verde e

Jacaré. Ao confrontar as informações obtidas através das entrevistas e História Oral com

as certidões de compra e venda, conclui-se que a ocupação dessa região ocorreu bem

antes dessa década, pois as famílias já se encontravam naquelas terras há

116 Ângelo Calmon de Sá foi Ministro da Indústria e Comércio no governo do general-presidente Ernesto

Geisel.

117Mais informações sobre as operações do Banco Econômico podem ser obtidas em

http://www.muco.com.br/index.php?option=com_content&id=462:escandalo-banco-

economico&Itemid=53. Acesso em 20/11/2014.

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aproximadamente 4 gerações: chegamos a entrevistar camponeses com 93 anos de

idade. Segundo Cruz (2013, p. 18), muitas destas

comunidades já existem há mais de 200 anos. As de menos tempo de

existência são as comunidades que foram povoadas por famílias

expulsas pela Barragem de Sobradinho. A maioria delas são

comunidades pequenas, porém existem algumas consideradas grandes,

como é o caso de Boa Vista, com mais de 300 famílias. Estima-se um

total de 800 famílias camponesas.

Ainda sobre as famílias ocupantes das terras dos vales dos rios Verde e Jacaré,

Cruz (2013, p. 18) afirma:

Muitos destes camponeses são sobreviventes e remanescentes da

grilagem5 (na década de 1980), que houve em algumas comunidades

dos Municípios de Itaguaçu da Bahia, Xique-xique e Jussara e da

expulsão provocada pelo processo de construção da barragem de

Sobradinho, também nesta década.

O nome de Airton Neves Moura consta em 11 das 15 certidões analisadas, sendo

uma figura central nas transações de compra e venda de terras. A partir da compra de

uma propriedade de posse de João Medeiros, Airton Neves Moura amplia seu domínio

sobre extensas áreas de terras tradicionalmente ocupadas pelas comunidades dos

municípios de Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique.

Para a implantação do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê, a CODEVASF

comprou terras de propriedade da CODEVERDE (7 propriedades), de José Carlos

Ferraz Ribeiro, da ITRUL e da Empresa Agro Indústria, totalizando 66.956ha. O Grupo

CODEVERDE ainda detém em seu domínio 109.115ha, conforme informações do

Cartório de Registro de Imóveis e Hipotecas de Xique-Xique. O Fluxograma 3, a seguir,

sintetiza as transações realizadas a partir da década de 1970 nessa região.

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Fluxograma 3 – Cadeia sucessória das terras do Projeto de Irrigação do Baixio de Irecê

Fonte: CPT/Irecê

Adaptação: DOURADO, J. A. L., 2014.

Pertencente ao Grupo Odebrecht118, a CODEVERDE ainda possui extensas

áreas de terras na região (109.115ha), fato que revela seu interesse em investir no setor

118 A Odebrecht Agroindustrial produz e comercializa etanol e açúcar, abastecendo os mercados brasileiro

e internacional, e energia elétrica originada da biomassa. Atua, do cultivo à colheita, na produção de 22,5

milhões de toneladas de cana-de-açúcar, de forma 100% mecanizada, desde o preparo do solo e a escolha

de variedades adequadas, até a produção, venda e entrega dos produtos.

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dos agrocombustíveis, pois se trata de áreas planas e propensas à mecanização,

favorecendo a produção de açúcar e etanol a partir da cana de açúcar irrigada, nos

moldes da empresa Agrovale. De acordo com o dirigente local da CODEVASF em

Irecê, a ideia é estimular a vinda de grandes empresas do setor de agrocombustíveis para

o Projeto de Irrigação Baixio de Irecê, tendo em vista o interesse do Estado em fomentar

as chamadas parcerias público-privadas. Isso revela a lógica do “mercado de terras” na

região dos vales dos rios Verde e Jacaré, ante a expectativa do grande capital se

apropriar da infraestrutura hídrica disponibilizada pelo Estado e necessária à sua

reprodução ampliada. Contraditoriamente, a CODEVERDE adquiriu vasta extensão de

terras e, até o momento, não buscou implementar nenhuma atividade econômica

expressiva, tendo a área sido o destino para os animais recolhidos junto aos

camponeses, como forma de pagamento119.

Ante o exposto, a propriedade e a concentração da terra devem ser entendidas a

partir de suas contradições, pois estão inseridas na lógica capitalista de transformação

desse bem natural em mercadoria. A aquisição de terras por grandes grupos

econômicos, conforme verificamos nos vales dos rios Verde e Jacaré, traz à tona os

processos de expansão das grandes propriedades, da concentração fundiária e da

valorização capitalista da terra, atentando contra os interesses das famílias camponesas,

colocando grandes desafios para a reprodução de seus modos de vida.

119 Renda-em-produto (OLIVEIRA, 1986, p. 77).

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CAPÍTULO IV

PROJETO DE IRRIGAÇÃO BAIXIO DE IRECÊ: REORGANIZAÇÃO DO

TERRITÓRIO PELO AGROHIDRONEGÓCIO

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231

[...] mais do que resistência, o que se tem é

R-Existência posto que não se reage

simplesmente a ação alheia, mas, sim, que

algo pré-existe e é a partir dessa existência

que se R-Existe. (PORTO-GONÇALVES,

2006, p. 165).

Neste capítulo faremos um resgate histórico de como ocorreu o processo de

implantação do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê, apresentando as alterações

verificadas, ao longo das décadas, na formatação do empreendimento, seus objetivos e

possíveis desdobramentos para a região, bem como os desafios enfrentados pelas

comunidades no tocante à organização social das famílias expropriadas para fazer o

enfrentamento ao Estado. Ademais nos debruçaremos sobre as dissidências ocorridas

entre os movimentos de luta pela terra encampados pelos camponeses caatingueiros e

pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o qual ocupou a área do projeto

de irrigação em maio de 2014.

4.1 Caracterização da rede hidrográfica da região do Projeto de Irrigação Baixio

de Irecê

No que diz respeito à hidrografia, merecem destaque o rio Verde120, o riacho

Vereda do Lajedo, o rio Jacaré, o rio Recife e o riacho Ferreira, cruciais para a

manutenção da fauna e da flora da região. Em relação ao relevo, ocorrem na área do

projeto duas feições morfológicas: a superfície pediplanizada, ascendente no sentido

Sul-Sudeste (SSE), com declividade inferior a 1%, desenvolvendo-se,

aproximadamente, entre as cotas de 395m no vale do rio São Francisco, e de 450m na

parte sul. A segunda superfície pediplanizada, a mais antiga, encontra-se no topo das

serras quartzíticas, representada pela serra do Rumo.

O rio Verde é um tributário do São Francisco, cortando diversas comunidades

impactadas pelo Projeto de Irrigação Baixio de Irecê. No período de 1981 a 1985 foi

construída pela CODEVASF a Barragem Manoel Novais, com capacidade para represar

158,4 milhões de m³ de água, no município de Ibipeba, com a finalidade de assegurar a

disponibilidade hídrica para a população da microrregião de Irecê (aproximadamente

120 Curso de água intermitente, que corta a área do projeto no sentido Norte-Sul, desaguando a

montante do reservatório de Sobradinho.

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250 mil habitantes) e para o Perímetro Irrigado de Mirorós121 (3.300ha). A barragem de

Mirorós, com altura máxima de 75,0 m, comprimento de 340,0 m, possui 2 comportas e

vazão de 1.000 m³/s, abrangendo uma superfície máxima de 780ha. A água acumulada

atende às seguintes demandas: a) adutora do Feijão, com 250 km de canais, sob a

responsabilidade da Embasa, para atendera 15 municípios (América Dourada, Barra do

Mendes, Barro Alto, Canarana, Cafarnaum Central, Ibipeba, Ibititá, Irecê, João

Dourado, Jussara, Lapão, Presidente Dutra, São Gabriel e Uibaí), com vazão de 700

litros/segundo; b) Perímetro de Irrigação Mirorós, cuja vazão é de1.300 litros/segundo,

para irrigar uma área de 2.055 ha; e c) Vazão de perenização do rio Verde, com vazão

de 250 litros/segundo. Para atender a essas três finalidades, são captados da Barragem

Manoel Novais 5,0 m3/s.

Com o aumento do consumo de água em virtude da expansão da área cultivada,

a água tornou-se escassa, com impactos negativos para os irrigantes do Projeto Mirorós

e para os camponeses cujas terras estão localizadas a jusante da barragem. Passou-se a

registrar uma concorrência entre o abastecimento humano (500 l/s) e a irrigação (1.300

l/s).Nesse cenário de uso intenso e concentrado da água do reservatório, entre 2007 e

2008 eclodiram conflitos pela água na região122, pois o rio Verde já não conseguia

chegar até as comunidades situadas em suas margens, no baixo curso. Como os

irrigantes do Projeto Mirorós são pessoas influentes no cenário político e econômico

locais, houve negligência por parte do órgão responsável pela gestão do perímetro

irrigado em não traçar um plano emergencial de gestão das águas da barragem, levando-

a ao colapso. Como medida emergencial, foi construída pelos governos federal e

estadual a adutora do São Francisco para atender inicialmente aos municípios da

microrregião de Irecê (Irecê, América Dourada, Jussara, São Gabriel, Central e João

Dourado)com investimentos da ordem de R$182,4 milhões, advindos do Programa

Água para Todos123, vinculado ao PAC. Esse sistema adutor fará a captação de água

121 O Perímetro de Irrigação Mirorós entrou em operação em 1996. Possui cerca de 2.055 ha

irrigáveis, sendo 1.037 ha em áreas de pequenos produtores e 1.018 ha em áreas empresariais. A área

irrigável está distribuída entre 241 lotes agrícolas, sendo 201 de pequenos produtores e 40 de

empresas agrícolas, com predominância do cultivo de banana.

122 Para saber maiores informações sobre os conflitos pela água na Barragem de Mirorós, consultar a

monografia para a obtenção do título de Bacharel em Geografia intitulada “Conflitos pelo uso da água

envolvendo a Barragem Manoel Novais (Mirorós): o caso dos irrigantes do município de Itaguaçu da

Bahia” de autoria de Tassio Barreto Cunha (2009). Disponível em :

http://www.geociencias.ufpb.br/leppan/gepat/files/conflito_barragem.pdf. Acesso em: 22/10/2013.

123 De acordo com informações do Ministério da Integração, a Bahia é o estado que mais investe em

obras de abastecimento na região Nordeste. Atualmente, estão sendo investidos R$ 300 milhões em

várias obras, em parceria com o governo estadual, por meio do programa Água para Todos. Para

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diretamente do rio São Francisco, em Nova Iguira, localidade de Xique-Xique,

percorrendo um total de 132 km até os municípios atendidos, beneficiando um número

aproximado de 350 mil habitantes.

Com o colapso da Barragem Manoel Novais, os municípios abastecidos pela

adutora do Feijão passaram a ser atendidos pela adutora do São Francisco. Instalada a

crise hídrica nessa região em 2008, houve a necessidade de intervenção da Agência

Nacional de Águas (ANA, 2012) que, em parceria com órgãos estaduais, editou uma

série de resoluções em que são estabelecidas as outorgas de usos da água para todos os

usuários e as cotas de nível de água do reservatório para os respectivos controles.

Devido à crise hídrica, os irrigantes e políticos locais passaram a pressionar a

CODEVASF, solicitando deste órgão a concessão de uma área no Projeto de Irrigação

Baixio de Irecê para os agricultores que haviam perdido suas lavouras pela escassez de

água na Barragem Manoel Novais. A gerência regional da CODEVASF em Irecê não

apresentou objeções em relação à proposta; todavia, não houve, até o momento,

nenhuma decisão quanto a destinar uma área específica do perímetro irrigado para os

irrigantes de Mirorós. Cabe destacar que, como o processo seletivo dos ocupantes da

Etapa I do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê segue normas estabelecidas por meio de

edital, os selecionados foram exatamente os agricultores de Mirorós, pelo fato destes

atenderem aos requisitos exigidos para participar da concorrência de editais para

obtenção de lotes em perímetros públicos irrigados.

4.2 Usos do território e disputas territoriais no Semiárido baiano

A perspectiva desenvolvimentista adotada pelo governo militar gerou uma

reconfiguração espacial no território brasileiro por meio do esgarçamento das fronteiras

e da criação de redes e tessituras capazes de viabilizar não apenas a integração do país

como também a criação de infraestrutura para promover o desenvolvimento das regiões

mais atrasadas economicamente. No afã desenvolvimentista, o Estado investiu na

constituição de complexos produtivos voltados para o aproveitamento dos recursos

naturais, como estratégia para promover o desenvolvimento do Brasil. Aqui nos

interessa mencionar a construção da hidrelétrica de Sobradinho, porque, em virtude da

grande quantidade de famílias desalojadas pelo represamento do rio São Francisco,

maiores informações consultar http://www.ouvidoriageral.ba.gov.br/2013/05/24/adutora-do-sao-

francisco-beneficia-330-mil-pessoas-da-regiao-de-irece/.

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houve a necessidade de se pensar um local para abrigá-las. Inicialmente, a proposta de

implantação do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê estava associada à Barragem de

Sobradinho, tendo esse projeto por objetivo a construção de agrovilas para onde seriam

reassentados os expropriados do Sobradinho. Segundo documentos oficiais, a escolha

da área localizada entre os vales dos rios Verde e Jacaré levou em consideração algumas

particularidades, como a disponibilidade de terra e água, baixo custo de adução de água

por tratar-se de uma região plana, “desabitada”, sem aproveitamento agrícola e, ainda, a

inexistência de organizações populares capazes de oferecer resistência ao processo de

“limpeza” da área.

Desde os anos de 1960 até a atualidade, o projeto original passou por profundas

alterações devido aos pressupostos econômicos e aos diversos estudos124 feitos para

verificar a viabilidade técnica com o propósito de otimizar o aproveitamento da área.Os

estudos, projetos de engenharia, execução de obras, fornecimentos de consultoria para

apoio à supervisão e fiscalização das obras foram feitos pela CODEVASF, contando

com a colaboração do consórcio entre a CODEVERDE e a Libyan Arab Foreign

Investiments (LAFICO)na elaboraçãodo trabalho de revisão do Projeto Básico da

CODEVASF, tendo como foco a exploração do empreendimento por grandes empresas.

Esse trabalho teve como propósito fornecer à CODEVERDE elementos para que o

consórcio pudesse analisar sua futura participação na concorrência para a gestão do

Projeto Baixio do Irecê, nos moldes da parceria público-privada (PPP)125.

Em 1961 foi aberta a primeira concorrência para a elaboração de estudos de

viabilidade para a utilização das bacias dos rios Verde e Jacaré para abrigar as famílias

futuramente desalojadas pela construção de Sobradinho. A CVSF passou a realizar

124 Entre os anos de 1988 e 1994, foi elaborado o estudo de viabilidade técnica e econômica e o

projeto básico das principais obras de adução pela CODEVASF. De 1995 e 1998, a CODEVASF

revisou o Lay-Out e fez a adequação do estudo de viabilidade e projeto básico do Projeto Baixio do

Irecê. No período de 1999 a 2001, a CODEVASF elaborou o Projeto Executivo da Etapa 1A do

Baixio de Irecê. A pedido da CODEVASF, nos anos de 2002 e 2003 foi feita a reavaliação da

viabilidade do Baixio Irecê. Nos anos de 2005 e 2006, o consórcio CODEVERDE/LAFICO realizou

os estudos de viabilidade técnica, ambiental, financeira, legal, e socioeconômica para o

estabelecimento de concessão do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê. Em 2007/2008, a

CODEVERDE solicitou a revisão do Projeto Básico do Projeto Baixio de Irecê. Recentemente, a

CODEVASF contratou a elaboração do Projeto Executivo do Canal Principal CP-0, entre os km 27,02

e 42,00 e do seu perímetro irrigado, do Projeto Baixio de Irecê, estudo iniciado em 2010 e concluído

em 2011.

125 A PPP é um contrato organizacional, de longo prazo de duração, por meio do qual se atribui a um

sujeito privado o dever de executar obra pública e/ou prestar serviço público, com ou sem direito à

remuneração, por meio da exploração da infraestrutura, mas mediante uma garantia especial e

reforçada prestada pelo Poder Público, utilizável para a obtenção de recursos no mercado financeiro.

(MAGNA ENGENHARIA, 2013, p. 11).

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estudos sobre a referida área, objetivando determinar as possibilidades hidroagrícolas

dessa regiãoe sua capacidade de receber os camponeses expropriados pela elevação do

nível das águas do rio São Francisco, a montante da Barragem de Sobradinho. Como

resultado desse diagnóstico, foi detectada a existência de 380.000 hectares favoráveis à

irrigação, conformeaponta o Relatório de Diagnóstico Ambiental (1989).

Nos anos de 1970, devido à conjuntura internacional, ocorreram alterações na

proposta de implantação do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê, pois, devido à crise do

petróleo ocorrida em 1972 e à implantação do PROÁLCOOL em 1985, havia, por parte

do Estado, intenção de fomentar a introdução da cana-de-açúcar na região, para a

produção de etanol.

Com base nesses estudos básicos, na preocupação de minimizar o

fluxo migratório das populações rurais e no contexto do Programa

Nacional do Álcool (PROALCOOL) incentivado pelo Governo

Federal a CODEVASF contratou em abril de 1981 a elaboração do

Antiprojeto de Irrigação e Drenagem do Baixio de Irecê, envolvendo

uma área de 234.000ha, área esta que logo a seguir foi ampliada de

mais 50.000ha para incluir áreas potencialmente irrigáveis ao sul dos

limites do levantamento de solos existentes. (RELATÓRIO DE

DIAGNÓSTICO AMBIENTAL, 1989, p. 2-3).

O Projeto Baixio de Irecê, incluído no Programa Mais Irrigação em 2012,

localiza-se ao Norte da região do Médio São Francisco, a 500 km de Salvador, entre os

paralelos 10° 24’ e 10º 39’ ao Sul, e entre os meridianos 42° 05’ e 42° 35’ a Oeste de

Greenwich(Mapa 12), à margem direita do rio São Francisco, abrangendo terras dos

municípios de Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia, na bacia do rio Verde. O investimento

total estimado para a implantação do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê é de R$4,1

bilhões, abrangendo a infraestrutura de irrigação, agrícola e de agroindústria. Está

previsto, no projeto, a construção de um aeroporto na área do perímetro irrigado, por

onde será escoada parte da produção.

Nas proximidades do Projeto Baixio de Irecê estão localizados três projetos de

assentamentos, sendo eles: Projeto de Assentamento São Caetano e Projeto de

Assentamento Sertão Bonito, no município de Itaguaçu da Bahia, e Projeto de

Assentamento Serra Azul em Xique-Xique. Esses assentamentos não são dotados de

infraestrutura hidríca para viabilizar a irrigação e a água para o consumo é obtida, em

sua maioria, através da construção de cisternas de placas pelo Programa Um Milhão de

Cisternas (P1MC) desenvolvido pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA).

Predomina nos assentamentos a criação de caprinos, a agicultura de autoconsumo

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durante o período chuvoso ou ainda nos vales úmidos. No caso do aAssentamento Serra

Azul, a pesca artesanal é uma importante fonte de alimento, em função da proximidade

com o rio São Francisco.

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237

A captação de água é feita norio São Francisco, nas proximidades da

comunidade Nova Boa Vista, a 40 km da sede do município de Xique-Xique, cuja

vazão é de aproximadamente 63m³/s (Foto 10). A demanda média de energia elétrica

pelo sistema de captação e adução da água do Rio São Francisco até os lotes é de 120

MW/ano, a ser fornecida mediante convênio firmado entre a Companhia Hidrelétrica do

São Francisco (CHESF) e a Companhia de Energia Elétrica da Bahia (COELBA).

Considerado uma “transposição baiana do Rio São Francisco” em virtude de seu

gigantismo, trata-se do maior perímetro irrigado em construção da América Latina, cuja

obra recebeu R$547 milhões destinados do PAC.

Foto 10 – Tomada de água do Projeto Baixio de Irecê. Comunidade Nova Boa Vista

(Xique-Xique).

Fonte: CODEVASF, 2013.

Considerando as premissas da Política Nacional de Irrigação, o Projeto de

Irrigação Baixio de Irecê tem por objetivo básico alcançar as seguintes metas: a)fixar o

homem à terra, evitando o êxodo rural; b)elevar o nível de renda das famílias do campo;

c)incrementar a produção agrícola, visando a atender ao crescimento interno, bem como

exportar o excedente; d) dar continuidade à implantação de indústrias de processamento

de produtos agrícolas, mediante a criação de um polo agroindustrial na região; e)tornar

produtivas áreas que podem ser aproveitadassomente por intermédio da irrigação,

devido ao baixo índice pluviométrico anual.

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Embora as obras da Etapa I (A e B) já tenham sido concluídas, estando aptas à

ocupação, as comunidades atingidas pela construção do empreendimento continuam

buscando mecanismos para ocupar a área e alterar a formatação do projeto atual. Está

em andamento, junto às comunidades de Xique-Xique e de Itaguaçu da Bahia,

mobilizadas pela Comissão Pastoral da Terra, a formalização de uma representação

pública contra a CODEVASF. A reivindicação das 19 comunidades é que as terras

sejam destinadas aos agricultores locais oriundos dos povoados impactados pelo

empreendimento, pois essas terras eram usadas de forma coletiva, pelos camponeses,

para criação de animais.

A implantação desse empreendimento é bastante conturbada e tem sua origem na

década de 1960, antes mesmo da Usina Hidrelétrica de Sobradinho e a consequente

formação do lago, que expropriou aproximadamente 72 mil famílias de suas terras.

Inicialmente, em 1961, a ideia era reassentar as famílias desalojadas. A execução dessa

obra afeta diretamente 19 comunidades, das quais oito estão localizadas no município

de Itaguaçu da Bahia (São João, Muquém, Esconço, Poço Grande, Conceição, Várzea

da Cerca, Pau Seco e Nova Vereda) e 11 em Xique-Xique (Nova Boa Vista, Boa Vista,

Carneiro, Roçado, Curral do Meio, Tapera, Sítio, Muritiba, Vista Nova, Volta da

Caatinga e Maravilha), totalizando aproximadamente 712 famílias, de acordo com o

levantamento da CPT em Irecê. Ressalte-se que esse número de famílias pode ser maior

porque, em consequência das limitações financeiras, algumas localidades não foram

contempladas em sua totalidade, no levantamento.

De acordo com o Diagnóstico Ambiental (1993), tratava-se de uma área com

pouca densidade fundiária, sendo a agropecuária a única atividade desenvolvida nas

terras que seriam ocupadas pelo referido projeto. Esse, segundo o Diagnóstico, teria

sido o fator preponderante para a seleção da área, visto que apenas à margem esquerda

do rio Verde estaria a maior densidade fundiária, com a incidência acentuada de

propriedades com menos de 100 ha. Na margem direita do rio, concentravam-se os

estabelecimentos com área superior a 2.000 ha. Em contraposição, os levantamentos

feitos pela CPT, nos municípios de Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia, detectaram a

existência de aproximadamente 712 famílias vivendo nas 19 comunidades, dados que

colocam em xeque os argumentos apresentados pela CODEVASF para a escolha do

local onde deveria ser implantado o Projeto Baixio de Irecê.

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Basicamente, toda a área situada entre osrios Verde e Jacaré foi incorporada pela

CODEVERDE. As pequenas propriedades localizavam-se à margem esquerda do rio

Verde. De acordo com levantamentos feitos pelo Relatório do Diagnóstico Ambiental

(1993), foram identificadas 179 propriedades: 38,6% dos responsáveis pelos

estabelecimentos definiam-se como proprietários, 41,3% como posseiros, 14% como

parceiros e 6,1% como arrendatários (Gráfico 1). Naquela época, 76% da área era

recoberta por Caatinga, 17,75% com pastagens e 6,5% por lavouras.

Gráfico 1 – Vínculos com a terra nos vales dos rios Verde e Jacaré

Fonte: Relatório de Diagnóstico Ambiental, 1989.

Elaboração: DOURADO, J. A. L., 2013.

Ressaltamos que estes dados foram extraídos do documento elaborado pelos

agentes interessados em criar as condições favoráveis para a implantação do Projeto

Baixio de Irecê, o que nos leva a analisá-los com ressalvas, visto que a área de

abrangência do mesmo é bastante considerável, podendo haver inconsistência nos

dados, ante a quantidade de comunidades atingidas pelo empreendimento. Merece

destaque o percentual de camponeses sem o título da terra, já que, somados os

posseiros, parceiros e arrendatários, temos 61,4% de camponeses sem terra, à mercê dos

grileiros e proprietários de terras da região. Sem a propriedade legal das terras, a ação

do grileiro Airton Neves Moura e seu grupo foi facilitada, porque as famílias que

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ocupavam as terras passaram a ser coagidas a abandonarem suas casas, devido às

ameaças feitas pelo grileiro, inclusive pelo fato deste garantir ter toda a documentação

que comprovaria a propriedade das terras.

Mediante o contexto supracitado, por ser uma área de uso comunal e voltada

principalmente para a criação de gado (bovino, caprino e ovino, principalmente), o

percentual identificado como Caatinga não significa que esta era uma área não utilizada

pelas comunidades. Pelo fato de os animais serem criados “soltos”, ou seja, sem

divisões entre as propriedades, a vegetação era mantida porque os arbustos compunham

parte significativa da pastagem consumida pelos animais. Germani (1993, p. 533, grifos

da autora) chama atenção para o seguinte aspecto sobre a escolha das áreas as serem

implantados os perímetros irrigados:

Normalmente las áreas seleccionadas para establecer los proyectos de

regadio no son áreas desabitadas. Al contrario, cuando las áreas

elegidas son tierras fértiles em los márgenes de ríos perenes – lo que

ocorre generalmente estas ya están ocupadas por uma gran cantidade

de pequenos produtores que hace tiempo descubrieron, cultivan y

ocupan estas tierras. Quizás de uma manera no tan “racional” ni tan

“moderna” como la que prevê el proyecto de regadio. Aunque no

obstante, de uma manera que les permite reproducirse como pequenos

produtores. Reproducción ésta que será interrumpida com la

expropriación del área para la implantación del proyecto.

Com o espectro da implantação do projeto de irrigação, as bacias dos rios Verde

e Jacaré, afluentes do São Francisco, passaram a sofrer especulação a partir de 1966,

quando a CODEVASF apresentou os resultados de um estudo em que foram detectados

380.000 ha irrigáveis na área de confluência entre esses dois rios e o São Francisco. Ao

optar por utilizar outras áreas para o reassentamento das famílias desterritorializadas

pelo lago de Sobradinho, como é o caso de Serra do Ramalho126, a proposta de criação

do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê é abandonada pelo Estado, retomando os estudos

somente em 1979.

Motivado pelo PRÓ-ALCOOL127, o governo federal apresentou em 1982,

através da CODEVASF, a proposta de criação de um projeto voltado para o plantio de

126 Parte das famílias desalojadas pela construção de Sobradinho foi reassentada no município de Serra

do Ramalho, distante das bordas do lago, numa região com características diferentes daquelas a que

estavam acostumadas, inclusive com a sua própria relação com o rio São Francisco, eliminando assim

a relação metabólica terra-água que estes camponeses caatingueiros estabeleciam em seu cotidiano, ao

trabalhar a/na terra.

127 O Programa Nacional do Álcool (PROÁLCOOL) foi criado pelo Brasil em 1975, com o propósito

de substituir, em larga escala, a utilização do petróleo por etanol nos veículos. Essa foi a alternativa

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cana-de-açúcar em 233.000 hectares, na região já denominada de Baixio de Irecê,

baseado na perspectiva da parceria público-privada.Dessa área, 161.000 ha seriam

destinados às grandes empresas voltadas ao cultivo de cana, enquanto os 72.200 ha

restantes seriam ocupados por pequenas e médias empresas voltadas à produção

diversificada, principalmente a de frutas. O processo de especulação fundiária no Baixio

de Irecê acentuou-se, significativamente, a partir de 1986, quando o então Presidente da

República, José Sarney, implementou o Programa Irrigação no Nordeste (PROINE),

período em que muitas empresas se instalaram às margens dos rios Verde e Jacaré,

adquirindo aproximadamente 100.000 ha de terras. Destacam-se, entre essas empresas, a

Odebrecht, a Bahema, o Banco Econômico, a Copene/Copener, que se unificaram

formando a CODEVERDE, grupo que seria responsável por implantar o Polo

Agroindustrial Rio Verde.

Entre 1986 e 1988, o projeto ficou paralisado devido às negociações realizadas

entre a CODEVERDE e a CODEVASF, visto que a criação de um projeto desta

magnitude somente seria viável por meio do estabelecimento de parceria com o Estado,

a quem ficaria a responsabilidade de disponibilizar a infraestrutura básica e o

financiamento necessário para a instalação das empresas. Ressalte-se que o Banco

Mundial (BID) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BIRD) demonstraram

interesse em financiar o Projeto de Irrigação Baixio de Irecê, que passaria por

reformulações em 1992 e cuja perspectiva seria implantar a infraestrutura e cedê-la para

a iniciativa privada. Ao analisar as informações coletadas em campo e por meio de

consulta a acervos particulares, verificamos que as ações arquitetadas pelo

Estadoseguiram duas vertentes: num primeiro momento fez-se a mobilização política

para a criação deste empreendimento e, posteriormente, houve a apropriação (legal e

ilegal128) das terras, visto que a área abrangida pelo Projeto Baixio de Irecê incorpora

terras que antes eram utilizadas coletivamente por diversas comunidades, tanto em

Itaguaçu da Bahia quanto em Xique-Xique. Tais comunidades já vivenciam os efeitos

da implantação do empreendimento, pois as áreas de uso coletivo,agora em posse da

CODEVASF, encontram-se cercadas, impedindo a criação de animais soltos. Como as

encontrada pelo governo para a crise do petróleo, deflagrada em 1973. Esse programa atingiu seu auge

na safra de 1986-87, quando o país produziu 12,3 bilhões de litros de etanol.

128 Durante as entrevistas realizadas com camponeses nos municípios de Itaguaçu da Bahia e Xique-

Xique, muitos mencionaram ter vivenciado a grilagem de terras feita por Airton Neves Moura, que

usou de métodos violentos, inclusive incendiando algumas casas daqueles que se recusavam a sair das

terras.

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famílias possuem propriedades pequenas, o uso comum destas terras constituía uma

estratégia de reprodução do campesinato na região, viabilizando a criação de gado

(bovino, caprino, ovino e equino) que exercia o papel de “moeda” a ser utilizada em

momentos de crises/secas e, em casos atípicos, quando ocorria o adoecimento de

familiares.

Em 1993 foi entregue pelo consórcio liderado pela CODEVERDE o relatório

intitulado “Diagnóstico Ambiental”, apresentando as características gerais do

empreendimento, estudo esse iniciado em junho de 1988. O Estudo de Impactos

Ambientais (EIA) e o Relatório de Impactos Ambientais (RIMA) foram elaborados

entre 1992 e 1993, após uma redefinição da área de abrangência do projeto. Nesse

mesmo ano, foi fundada a Cooperativa Agrícola do Vale do Rio Verde

(COOPEVERDE) nas terras da CODEVERDE, ante a necessidade de atender às

exigências da CODEVASF/Banco Mundial para o financiamento de um projeto piloto,

implementado pela COOPEVERDE, baseado na irrigação de aproximadamente 320 ha,

com cultivo de manga e uva.

Entre 1993 e 1994 ocorreram novas expulsões de camponeses, relatadas pelos

moradores das comunidades, divulgadas, na época, pelo jornal A Tarde(1994) que

publicou uma matéria intitulada “Relatório sobre violência em Irecê não é muito claro”,

a qual evidencia a falta de clareza em relação à ação dos técnicos responsáveis pela

obra. Após décadas de estagnação, o então Presidente da República, Luís Inácio Lula da

Silva, iniciou as obras de construção da infraestrutura do perímetro irrigado Baixio de

Irecê, sem atentar para as reivindicações das comunidades afetadas pelo

empreendimento.

A concepção atual do Projeto Baixio de Irecê compreende uma superfície bruta

total de 95.118,6 ha, dos quais 61.956,5 ha correspondem à superfície agrícola

geográfica (SAG) ou irrigável, 24.701,6 ha são de reserva legal e 2.258 ha de áreas de

preservação permanente (APP). Da superfície agrícola geográfica, 59.630,8 ha referem-

se à superfície agrícola útil (SAU), sendo o restante da área ocupada pela infraestrutura

e por obras do projeto, que já possuem 42 km de canais construídos, devendo chegar a

84 km. A implantação do empreendimento está prevista para ser feita em 9 etapas, das

quais a primeira já foi executada e compreende a construção da infraestrutura de

captação de água do rio São Francisco e os 42km do canal principal. A divisão da obra

em etapas tem como propósito possibilitar possíveis correções, caso haja alguma

demanda a partir da finalização de cada uma das etapas. Na infraestrutura da etapa já

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concluída, foram gastos R$227 milhões, provenientes do PAC. Para o fomento da

produção, serão disponibilizados R$272,7 milhões, provenientes do Banco do Nordeste,

por meio do Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE).

Em 2014 foram alocados R$13,8 milhões para prosseguimento da implantação

da II etapa do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê. Entre os investimentos, R$12

milhões serão destinados para obras complementares na rede de drenagem e na rede

viária da etapa II. Além desses serviços, serão realizados também o projeto executivo da

estação de bombeamento principal (R$2,3 milhões), o completo georreferenciamento da

etapa I do projeto (R$144,5 mil) e a contratação do fornecimento, carga, transporte e

descarga de tubos e peças de aço fundido que comporão as adutoras, tomadas d’água

dos lotes irrigados e os tanques de amortecimento unidirecional (R$1,8 milhão).

As obras desse empreendimento foram executadas pela Odebrecht e pela

Empresa Sul Americana de Montagens (EMSA). A proposta é destinar 22% da área

para lotes de pequenos agricultores e 78% para empresas e, da área destinada às

empresas,30,4% corresponde a grandes empresas e 69,6% a médios produtores(Tabela

14). Desde a sua formulação original, a estrutura do projeto foi sendo alterada conforme

novos estudos de viabilidade foram realizados. Ressalta-se que a Superfície Agrícola

Útil compreende apenas a parte passível de ser ocupada com as lavouras, excluído áreas

a serem utilizadas para a construção de plantas industriais, área de preservação,

agrovilas, etc.

Tabela 14 - Superfície Agrícola Útil (SAU)

Áreas SAL Parcelamento

da Área (ha)

Número de

Setores

Número de

Lotes

Área Média

dos Lotes (ha)

Pequenos

Produtores

12.989 9 2.156 6,0

Médios

Produtores

32.433 16* 1.052 30,0

Empresas 14.189 8* 121 120,0

Área Total (ha) 59.611

(*) Na Etapa I os lotes destinados às empresas não estão agrupados em setores.

Fonte: RIMA/Projeto Baixio de Irecê.

Org.: DOURADO, 2013.

Existem várias especulações em relação à gestão do referido projeto,o qual será

baseado no modelo PPP. A CODEVERDE e a Petrobrás já manifestaram interesse em

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investir no Projeto Baixio de Irecê e,em junho de 2013,foi lançado o edital Nº.

36/2013129 de Concessão de Direito Real de Uso (CDRU)130, pela CODEVASF, para

seleção dos irrigantes que irão ocupar a Etapa I da área destinada à agricultura familiar.

As fases do processo de seleção compreendem inscrição, pré-seleção e apresentação de

documentos de habilitação. Ter experiência em agricultura – irrigada e não irrigada –

está entre os critérios para concorrer a um dos lotes no Projeto Baixio de Irecê. Para

essa etapa, foram destinados 5.308,29 hectares, dos quais 4.207,85 são irrigáveis e

1.110,43 ha não irrigáveis. Os lotes foram divididos em 3 categorias: lotes para

pequenos irrigantes, cooperativas e lotes empresariais. A área para os pequenos

irrigantes compreende 47 unidades de 6 hectares e 120 lotes de 17 hectares. Para os

médios produtores foram destinados 38 unidades de 31 hectares. Para as cooperativas e

associações, destinaram-se 11 unidades entre 23 e 138 hectares.

Nessa primeira fase, a CODEVASF vendeu todos os lotes de 6 e 31 hectares.

Dos 120 lotes com 17 hectares foram vendidos 50. Já, dos lotes destinados às

associações e cooperativas, apenas um foi comprado pela Cooperativa Agropecuária

Mista Regional de Irecê (COOPERIRECÊ). Para a segunda etapa, serão

disponibilizados 14.000 hectares, divididos em lotes empresariais a serem ocupados

com lavouras de grãos (milho e soja) e algodão. Segundo informações do chefe do

escritório da CODEVASF em Irecê, Luís Alberto Barbosa, três empresas manifestaram

interesse em concorrer à gestão do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê: Petrobrás

(energia e etanol), o Grupo Maia (Luís Eduardo Magalhães) e Grupo Tomaselli (Mato

Grosso). O Grupo Maia e o Grupo Tomaselli teriam suas atividades, na região,

direcionadas para a produção de milho, soja e algodão. A fruticultura ficará restrita à

Etapa I dos lotes pertencentes aos pequenos irrigantes, pois há o interesse por parte da

CODEVASF em privilegiar a ocupação do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê com a

produção de commodities (soja e cana-de-açúcar).

Ao analisar o histórico de criação do Projeto Baixio de Irecê, verificamos que a

CODEVERDE comparece como um ator importante, tanto no que se refere à questão

fundiária quanto na própria gestão do referido empreendimento, já que a opção pelo

modelo baseado na parceria público-privada favorece principalmente esse grupo. Num

129 O edital 36/2013 foi lançado, em 03 de setembro de 2013, pelo então presidente da CODEVASF,

Elmo Vaz.

130 A CDRU possibilita o uso produtivo da área por um período de 35 anos, podendo os agricultores

oferecerem o direto real de uso como garantia para financiamentos.

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primeiro momento, a CODEVERDE assumiu o controle da maior parte das terras entre

os vales dos rios Verde e Jacaré, através de transações bastante suspeitas e sob fortes

indícios de grilagem de terras, para serem desapropriadas e indenizadas pela

CODEVASF. Após os investimentos estatais, inclusive a regularização fundiária, a

antiga proprietária de terras (nesse caso, a CODEVERDE), torna uma das interessadas

em assumir a gestão do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê. Assim, esse consórcio se

beneficiaria duplamente com a implantação do empreendimento na região,

demonstrando a face perversa e contraditória dos projetos desenvolvimentistas

executados sob o frágil discurso da geração de emprego e renda. O anacronismo

histórico relativo à questão agrária se expressa, nesse contexto, de diferentes maneiras,

quando as comunidades impactadas pelo Projeto de Irrigação Baixio de Irecê são

desconsideradas de todo o processo de discussão sobre a importância, a necessidade, a

viabilidade do empreendimento e sobre quem serão os beneficiados com a sua

execução.

De fato, a execução desse projeto possui muitas questões sem solução, com

muitas incongruências em relação ao número de famílias atingidas, à forma como as

famílias atingidas serão beneficiadas, uma vez que a conformação da obra demonstra

haver fortes indícios de que tais investimentos públicos serão direcionados à

territorialização do agrohidronegócio na região, por meio da implantaçãode toda uma

infraestrutura hídrica e da disponibilização de terras agricultáveis à produção de

agrocombustíveis, já que a Petrobrás aparece como uma das prováveis concorrentes à

gestão do empreendimento. Devido às mobilizações e às reivindicações feitas pelas

comunidades sob a organização da CPT/Irecê, a CODEVASF comprometeu-se a assinar

um termo de compromisso com a prefeitura de Xique-Xique para a doação de 667

hectares, com valor estimado de R$400.000, para o desenvolvimento de projetos que

visem à inclusão social e produtiva das famílias residentes nos povoados Carneiro e

Curral do Meio, através da sua regularização fundiária. Para a primeira fase, estima-se

que 200 famílias serão beneficiadas. À prefeitura de Xique-Xique caberá a incumbência

de elaborar um plano diretor de desenvolvimento para definir o ordenamento territorial

e o modelo de exploração agrícola da área. A viabilização das obras de infraestrutura e

assistência técnica e extensão rural (ATER) ficará sob a responsabilidade da

CODEVASF, através de recursos do Programa Mais Irrigação e do Plano Brasil Sem

Miséria.

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Vê-se que essa proposta feita pela CODEVASF é uma estratégia para tentar

desarticular a organização das famílias, porque essa medida não atende às demandas e

às reivindicações feitas pelos camponeses. Esse fogo cruzado entre o Estado e as

comunidades revela quão contraditória é a ação da CODEVASF, que utiliza essa doação

como medida compensatória para mitigar os impactos do empreendimento sobre as

comunidades localizadas na área e no entorno do Projeto Baixio de Irecê. Segundo

depoimento do assessor local da CPT/Irecê,

“[...] essa é mais uma ação da CODEVASF no sentido de ‘enganar’ as

comunidades e evitar que estas reivindiquem na justiça o direito às

terras da área do Baixio de Irecê. Nossa preocupação tem sido alertar

as comunidades do Baixio para que não caiam mais nas armadilhas da

CODEVASF que tem utilizado de diversas estratégias para excluir as

famílias camponesas das terras historicamente ocupadas por elas.

[...].” (Informação verbal, 03/05/2014, grifo nosso).

Todo o aparato discursivo utilizado pelo Estado acerca dos resultados advindos

do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê tem como premissa cultivar um pensamento

subordinado ao conhecimento autorizado pelo mais forte, ou seja, a indissociabilidade

entre a irrigação e o “progresso”, como forma de salvar da condição de débeis e

primitivos os camponeses caatingueiros.Durante uma reunião de mobilização feita pelo

CPT com as comunidades do Baixio de Irecê, em 2013, a CODEVASF fez-se presente e

solicitou a palavra para informar aos presentes sobre a doação de uma faixa de terra

para as famílias, de modo a viabilizar a implementação do propalado “projeto de

inclusão social”. Durante a exposição de um dos técnicos da CODEVASF, um dos

camponeses fez o seguinte questionamento:

Camponês: Oh, seu “dotô”, qual é a área que o senhor está dizendo

que vai doar para a gente? É a área da cerca do projeto pra lá pro o

canal ou da cerca pra comunidade?

Representante da CODEVASF: É da cerca do projeto para as

comunidades.

Camponês: Então, vocês não está doando terra nenhuma pra gente

porque a gente já tá aqui há muito tempo e a gente não aceita que essa

terra seja dada para outras famílias não. Se não for da cerca pro o

canal a gente não quer não. (Informação verbal, 05/05/2013. Grifo

nosso).

Nesse momento tornam-se visíveis os resultados da atuação das reuniões e dos

encontros de formação, feitos pela CPT com os camponeses, demonstrando oposição às

ações da CODEVASF no tocante à implantação do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê,

tendo as reuniões e encontros ampliado a capacidade de reivindicar outras perspectivas

de desenvolvimento social para o Semiárido. As resistências travadas revelam os

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indicativos da superação daquilo que Silva (2011) define como “aridez mental”, ou seja,

a superação do pensamento (neo)colonial entre os camponeses de que o

desenvolvimento do Semiárido acontecerá a partir dos grandes megaprojetos executados

pelo Estado.

A implantação do Projeto Baixio de Irecê constitui-se o fio condutor para a

territorialização do modelo agroenergético/frutícola na região e produtor de

commodities, mediante a expansão da agropecuária capitalista em territórios construídos

a partir de relações não capitalistas, conforme enfatiza Frei Cappio. Segundo esse líder

religioso, o Projeto de Irrigação Baixio de Irecê está pautado na mesma lógica da

transposição do São Francisco, pois é

uma obra autoritária que se impõe. Chuta todo mundo e faz aquilo que

eles querem, o que eles bem entendem sem olhar a realidade do povo

que vive lá, e as reais necessidades daquela população. Eles colocam

na cabeça um projeto tipicamente econômico como é o projeto da

transposição e impõem e não respeitam nada que leve em

consideração a população que está por ali. Esta reunião que tivemos

com os comunitários é o mesmo estilo. Interessante: de Xique-Xique

saiu o Baixio de Irecê, que é um projeto econômico e sai a adutora,

que é um projeto social. Esse de levar agua para a população tudo

bem. Agora o Baixio de Irecê poderia também ser um projeto

interessante se respeitasse a questão social e ambiental, mas é

tipicamente econômico e não quer nem saber. (Informação verbal,

08/05/2014).

A conformação desse empreendimento assume papel de destaque na engrenagem

de expansão e de consolidação do capital no Semiárido baiano e, a nosso ver, apresenta-

se similar ao que Thomaz Júnior (2010a, p. 92) denomina de “Polígono do

Agrohidronegócio”. Na Bahia, o desenho espacial do Agrohidronegócio se expressa a

partir de quatro regiões bem delimitadas: o Extremo Sul da Bahia, com a expansão da

silvicultura dominada pela empresa Vera Cruz Celulose (VERACEL), o Litoral Norte

com a citricultura, o Oeste baiano, com a presença hegemônica da soja e o polo de

Juazeiro em sua confluência com Petrolina (PE), centrado na fruticultura. Ainda na

região de Juazeiro, destaca-se a Agrovale, empresa que atua tanto na produção frutícola

quanto no segmento agroindustrial canavieiro, com uma área plantada de

aproximadamente 21 mil hectares.

A reorganização espacial do Médio São Francisco, na perspectiva da criação de

infraestrutura hídrica, torna a região apta à expansão da agricultura capitalista sob o

espectro do agrohidronegócio. Terras planas e férteis, disponibilidade de água, mão de

obra ociosa e barata, apoio por parte do Estado e convencimento da população das

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benesses do empreendimento por meio do discurso do “progresso” e “desenvolvimento”

da região revelam o desenho, as tramas e urdiduras da geografia do agrohidronegócio no

Semiárido baiano. Ante o exposto, concordamos com Thomaz Junior (2010a, p. 97)

quando este destaca que, de

forma consorciada, dispor de terra e água, mais ainda, controlá-las,

possibilita ao capital condições para a prática da irrigação, o que

reforça a expansão territorial sobre as melhores terras para fins

produtivos. Ou seja, o acesso às terras, seja por titularidade (legal ou

grilada), seja por meio de contratos de arrendamento etc., é a garantia

que o capital, identificado como agronegócio (grandes grupos

econômicos nacionais e transnacionais), requer para reproduzir-se e

apropriar-se dos meios de produção e controlar o tecido social,

mediante o acionamento dos dispositivos das esferas da produção, da

circulação, da distribuição, do consumo, bem como especulativos.

Nesse contexto, o Projeto de Irrigação Baixio de Irecê configura-se como ponto

nodal daquilo que, hipoteticamente, acreditamos ser o Polígono do Agrohidronegócio

na Bahia, consolidandoo marco teórico-conceitual da expressão fenomênica detectada

no Centro-Sul do Brasil por Thomaz Júnior (2010a). Aprofundando na compreensão das

disputas territoriais (intra e intercapital), verifica-se haver uma (des)ordem provocada

pelos projetos desenvolvimentistas em voga na Bahia, cujos conteúdos e significados do

expansionismo do capital revelam dois processos antagônicos que, em momentos

específicos, tornam-se complementares, quando se trata do avanço sobre novas áreas.

Sobre os propósitos do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê, a liderança da

CPT/Irecê enfatiza que esse projeto

vai favorecer ao agronegócio. Outro aspecto é que as famílias não

participam desse processo. Existem várias experiências no Nordeste

brasileiro de convivência com o Semiárido, experiências de

agroecologia que tem garantido a sustentabilidade das famílias e que,

muitas vezes, não são levadas em consideração. E um projeto com

essa envergadura a gente percebe o quanto isso vai ser prejudicial as

famílias porque as mesmas têm uma forma de vida diferenciada e esse

projeto terá 70% de sua área irrigada será para cana. A gente tem visto

o quanto a monocultura tem provocado uma riqueza que sai, que é

exportada, e na verdade, as famílias atingidas que estão no entorno

desses grandes empreendimentos de monocultura e projetos são

utilizadas como mão de obra barata como muitos já percebem que as

famílias camponesas da região não tem mão de obra qualificada.

(Informação verbal, 14/04/2013).

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Essa opinião contrária à implantação do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê é

partilhada por muitas famílias que buscam, através da organização social, reivindicar as

terras das quais foram expropriadas, conforme depoimento abaixo:

A senhora é a favor da implantação do Projeto de Irrigação baixio

de Irecê?Eu não sou a favor não. Porque benefício [o Projeto de

Irrigação Baixio de Irecê] ele não trouxe e nem vai trazer para a gente.

Algumas pessoas foram beneficiadas porque trabalhou nesse projeto,

mas dinheiro não é tudo. Enquanto estava trabalhando tinha o dinheiro

e depois quando a firma foi embora e não veio mais, o pessoal está

vivendo de que? Tá sobrevivendo da roça que tem porque dali planta

um pasto, cria um gado, cria uma ovelha, É do rio São Francisco de

onde tira um peixe para comer e vender. (Camponesa moradora da

Comunidade do Roçado, 46 anos).

Em essência, os investimentos feitos pelo governo federal através do PAC e do

Programa Mais Irrigação possuem relação intrínseca com os programas estaduais para o

desenvolvimento territorial na Bahia, mediante a sobreposição de atividades

agroindustriais, com destaque para a cana,a soja, o milho e o algodão no oeste baiano, a

fruticultura e a atividade canavieira no polo de Juazeiro e, por outro lado, mediante a

incorporação de novas áreas até então mantidas como reserva de valor. Ainda nesse

universo, territórios camponeses são incorporados através do Programa BAHIABIO,

colocando assim a geopolítica de domínio do capital no campo, sob a expressão

fenomênica do agrocombustível – através da mamona, do amendoim, do pinhão manso

e do dendê –, em áreas tradicionalmente ocupadas com atividades agrícolas voltadas

para a produção de alimentos para o autoconsumo.

Até o momento, muitas são as dúvidas dos moradores das comunidades

atingidas pela implantação do Projeto Baixio de Irecê, que têm buscado organizar-se,

através da CPT, para reivindicar o direito à terra, à água e ao território. Atualmente há

um processo de mobilização das comunidades, com o propósito de fazer o

enfrentamento junto à CODEVASF, para reivindicar terras no Projeto Baixio de Irecê.

Sob a orientação da CPT, as famílias buscam apoio junto ao Ministério Público

Estadual, mediante representação pública, solicitando do órgão responsável pela

implantação do empreendimento o atendimento às reivindicações feitas, entre elas a

destinação das terras do referido projeto para os camponeses das 19 comunidades

localizadas na área do projeto e em seu entorno.

Nesse sentido, percebemos que a luta pela terra e pela água no Semiárido baiano

traz um componente, político e de classes, marcante, cuja expansão do capital no campo

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tem submetido as populações camponesas do Médio e Submédio São Francisco a

intensos processos desterritorializantes, visto que os projetos desenvolvimentistas

implantados pelo Estado (projetos de irrigação, produção de agrocombustíveis, entre

outros), têm como fundamento a produção de mercadorias, interferindo diretamente na

organização dos territórios.

4.3 Organização, resistência e contradições: os desafios da luta pela terra das famílias

camponesas do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê

O processo de expropriação camponesa nos vales dos rios Verde e Jacaré, desde

os anos 1970, evidenciou uma realidade marcada por contradições desencadeadas pela

antiga concentração fundiária característica dessa fração do território baiano. Conforme

destacam Olalde, Oliveira e Germani (2007), ainda nesse período histórico (1970)

ocorreu, de modo acentuado, a partilha territorial e política dessa região, com a criação

de novos municípios sem provocar alterações na estrutura fundiária, porque essa

partilha se deu entre a elite local e à revelia das desigualdades sociais, marcantes nesses

espaços modelados sob os resultados da reestruturação produtiva impulsionada pela

atuação do Estado.

Pode-se considerar a década de 1970 um marco no tocante à questão agrária no

Médio São Francisco, por causa de determinados acontecimentos envolvendo a Igreja

Católica e as elites locais. Esse momento histórico, de profundas inquietações políticas,

econômicas e sociais, não se restringia apenas ao sertão da Bahia: refletia a realidade

vivenciada pela América Latina com os governos ditatoriais, com o aguçamento da

problemática ambiental e social, com a crise paradigmática envolvendo as ciências,

tendo como desdobramento a rejeição da racionalidade ocidental e da “colonialidade do

poder” (QUIJANO, 2000). Em decorrência das turbulências internas no centro de poder

da Igreja Católica131 durante os anos de 1970, a Diocese de Barra, sob influência da

131 No período de 1962 a 1965 ocorreu o Concílio Vaticano II, no qual foram apontadas novas diretrizes

para a relação entre a Igreja e seus fiéis, tendo ele ainda estabelecido uma nova maneira dessa instituição

conceber as relações sociais e seus vínculos com os Estados Nacionais. A partir do Concílio do Vaticano

II, outros eventos foram realizados, como a II Conferência de Medelin, na Colômbia, em 1968 e a III

Conferência de Puebla, no México, em 1979. A realização da II Conferência de Medelin acabou

dividindo a Igreja latino-americana em duas vertentes: uma progressiva, pautada na defesa da justiça

social e a outra, conservadora, pautada na fé e na espiritualidade. Essa divisão teve rebatimentos em

diversos países latino-americanos, inclusive no Brasil, com o envolvimento de vários religiosos com as

questões sociais, com destaque para os movimentos de luta pela terra.

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Teologia da Libertação, resolveu desfazer de alguns de seus bens para viabilizar a

criação de uma entidade que atuasse no combate à pobreza e promovesse o

desenvolvimento social. Como a Diocese de Barra estava localizada numa das regiões

mais pobres, isoladas e “atrasas” da Bahia, a quantidade de imóveis, especialmente as

duas fazendas, causava certo desconforto ao bispo daquela época, Dom Thiago Gerard

Cloin.

Sob influência dos ideários da Teologia da Libertação, juntos, o Bispo Dom

Thiago Gerard Cloin e o Padre Jesuíta Fred da Costa e Silva criaram, em 6 de agosto de

1971, a Fundação de Desenvolvimento Integrado do São Francisco (FUNDIFRAN)132.

Para viabilizar a criação dessa entidade, a Diocese de Barra fez várias doações de

imóveis, inclusive do Palácio Episcopal, fato que trouxe grande descontentamento por

parte da elite local barrense, que passou a questionar o propósito e o produto dessas

ações praticadas pela Igreja.

Os anos de 1970 coincidiram com a sindicalização dos trabalhadores rurais

(pequenos produtores, assentados, assalariados e pequenos proprietários), ocorrida no

cerne da criação da FUNDIFRAN e com a inserção da Igreja nas causas relacionadas à

questão agrária. Nesse diapasão, surgiram,durante o período do regime militar, os

primeiros sindicatos133 de trabalhadores rurais da região, ante a necessidade de repensar

a realidade contraditória decorrente da expansão da monocultura do feijão: em

consequência dos incentivos dados pelo Estado aos grandes produtores, Irecê se tornara

a “capital do feijão”. De acordo com informações disponibilizadas pelo Plano Territorial

de Desenvolvimento Rural Sustentável – Território de Irecê (PTDRS), a organização, a

formação política e a mobilização dos sindicatos estavam no arco de atuação da

FUNDIFRAN, tendo como primeiro resultado de seu trabalho a:

[...] mobilização dos sindicatos da época para a criação do Pólo

Sindical da região, que acontecia de forma itinerante, ou seja, as

reuniões aconteciam em cada Sindicato da região, isto de dois em dois

meses, na qual estas eram assessoradas pela FUNDIFRAN e pela

FETAG. (PTDRS, 2010, p. 69).

Esses sindicatos de trabalhadores rurais tiveram a importante função de fazer o

enfrentamento aos processos de grilagem de terra, ocorridos na região de Xique-Xique,

132 Para um aprofundamento sobre o processo de criação da FUNDIFRAN, consultar Estrela (2011).

133 Os primeiros sindicatos de trabalhadores rurais da região são: Irecê, Canarana, Uibaí, Xique-Xique e

Presidente Dutra (1971), Barra do Mendes (1974), Jussara (1976), Ibipeba (1977) e Gentio do Ouro

(1979).

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Itaguaçu da Bahia e Jussara, principalmente, e aos grandes latifundiários (coronéis) que

mantinham sob seu controle os camponeses sem ou com pouca terra. Clientelismo,

paternalismo e mandonismo eram marcantes nas relações estabelecidas entre os

latifundiários da região e os camponeses. A atuação da FUNDIFRAN junto aos

camponeses despertou desconfiança entre a elite local (proprietários de terras e

políticos), que passou a combatê-la, utilizando para isso diversas estratégias, como a

disseminação entre os camponeses da ideia de que a entidade tinha o propósito de

instalar o socialismo. Em virtude dessa perseguição, houve a transferência da sede da

entidade, em meados dos anos 1980, para o município de Xique-Xique (1986-2000) e,

posteriormente, para Ibotirama – onde se encontra até a atualidade –, como forma de

afastar-se da poderosa elite barrense, já que até mesmo o exército teria começado a

cobrar explicações da diretoria da FUNDIFRAN sobre o papel dessa Fundação.

Nos anos 1990 surgiram outras organizações com menor expressividade, como a

CETA e o GARRA, que atuaram na luta pela terra, nos municípios que integram

atualmente o Médio São Francisco. As Comunidades Eclesiais de Base (CEB) também

tiveram um papel de destaque no processo de formação de militantes que atuariam junto

às organizações e movimentos sociais de luta pela terra, na região. À medida que

acentuavam os conflitos fundiários (grilagem, expulsão e concentração de terra) e as

desigualdades sociais no campo (pobreza e migração), novas entidades foram sendo

criadas, com o propósito de organizar e formar politicamente os camponeses para que

pudessem reivindicar seus direitos junto ao Estado e fazer o enfrentamento aos

latifundiários. Algumas das lideranças locais que colaboram com a CPT/Irecê, na

mobilização e organização das famílias impactadas pelo Projeto de Irrigação Baixio de

Irecê, atuaram em outras entidades, como o GARRA (um Integrante do STR de Xique-

Xique) e a FUNDIFRAN (o vice-presidente do STR de Rio Verde, Itaguaçu da Bahia).

Os anos 2000 foram marcados por momentos de tensão e reviravolta, no tocante

às organizações sociais envolvendo o acesso à água no Nordeste semiárido, devido ao

resgate do projeto de transposição134 do São Francisco pelo então Presidente da

República, Luís Inácio Lula da Silva. Caracterizado por constantes reviravoltas, o

134 O projeto atualmente em execução é um empreendimento do governo federal, sob a responsabilidade

do MI, destinado a, de acordo com esse Ministério, assegurar a oferta de água, em 2025, a cerca de 12

milhões de habitantes de pequenas, médias e grandes cidades da região semiárida dos estados de

Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Seu nome oficial, conforme já mencionado, é Projeto

de Integração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional, doravante

referido como Projeto de Transposição, como é conhecido (CASTRO, 2011, p. 11)

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Projeto teve suas obras iniciadas em 2007, em meio a inúmeras manifestações

contrárias, encabeçadas por ONGs, por movimentos sociais e por membros do clero da

Igreja Católica, com destaque para os dois jejuns feitos pelo bispo da Diocese de Barra,

Dom Luis Flávio Cappio. Em 1992, Frei Cappio, junto com outras três pessoas, fizeram

a chamada Peregrinação pelo Rio São Francisco, da nascente, na Serra da Canastra

(MG), até a foz, começando no dia 04 de outubro de 1992 e terminando no dia 04 de

outubro de 1993. Passaram por todas as comunidades ribeirinhas, com o propósito de

dialogar com o povo sobre a importância do Rio, num trabalho de conscientização

ambiental, conhecer os motivos que estavam provocando a sua “morte” e chamar o

povo para a luta em defesa do Rio. Em 2003, o projeto da transposição foi resgatado

pelo governo federal, envolvendo articulações políticas com o governo do Ceará

(naquela época, Ciro Gomes), sendo esse projeto hídrico uma moeda de troca

(barganha) pelo apoio político recebido no processo eleitoral. Conhecedor da realidade

do rio e das populações ribeirinhas, Frei Cappio fez oposição ao projeto de transposição

assim que detectou que sua execução não beneficiaria os 12 milhões de sertanejos,

desconsiderando todas as manifestações contrárias à sua execução. De acordo com Frei

Cappio:

Quando (se) começou a falar no projeto de transposição, havia um

invólucro social de levar água para o povo – que é mentirosa – nós

aplaudimos; nossa, que maravilha!Agora o povo do Nordeste vai ter

água! Fomos estudar o projeto e, quando adentramos o mesmo e

conhecemos suas minúcias, nós percebemos que ele não tinha nada de

social e ambiental e nem estava preocupado com a dessedentação

humana e animal, sendo um projeto para a segurança hídrica dos

grandes projetos agroindustriais; um projeto tipicamente econômico.

Quando tomamos conhecimento, percebemos que não poderíamos

deixar o projeto acontecer. (Informação verbal, 08/05/2014).

O gerente da CODEVASF em Juazeiro tem opinião contrária ao líder religioso

no tocante ao projeto da transposição do São Francisco.Ao ser perguntado sobre os

motivos que desencadearam os diversos protestos contra a execução da obra, o Sr.

Emanuel Lima da Silva respondeu que as causas eram o

desconhecimento. Em alguns momentos, a crítica pela crítica, certo?

Eu, sinceramente, não vejo uma questão nessa transposição que não

seja uma questão ideológica. Porque está aí, um perímetro irrigado

desses.O Salitre, por exemplo, ele bombeia e põe água a 42 m³/s; a

vazão mínima do rio agora é 1100 m³/s. A vazão é normal.Agora, se

você considera a transposição do São Francisco projetada a 57 m³/s,

qual o efeito disso no geral? Você prefere matar o povo de sede e

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deixar a produção morrer ou trabalhar com essa questão de projetos

estruturantes, que garantem vida, não só a vida animal – que nós

somos animais, agente e os animais – e algumas áreas que você

produz alimentos. O grande problema do futuro será alimentos. Tem

esse celeiro que você pode produzir, não só aqui, mas no Amazonas,

Tocantins, como no Mato Grosso ... tem que trabalhar com a visão de

futuro, você não pode trabalhar só pensando no hoje.Não vejo

sinceramente críticas com respaldo técnico; vejo mais como uma

questão ideológica ou a crítica pela crítica (Informação verbal,

15/05/2013. Grifos nossos).

Está-se, pois, diante de discursos antagônicos e pautados em argumentos

distintos, revelando como a perspectiva desenvolvimentista é forte no âmbito do

aparelho de Estado, como forma de impulsionar a territorialização do capital. Os

movimentos contrários à transposição entendem a obra como uma engrenagem para o

fortalecimento das estruturas de poder e para a consolidação do papel do Semiárido no

mercado nacional e internacional, como produtor de frutas, vislumbrando também a

produção de agrocombustíveis e grãos. Contraditoriamente, o Estado resgata o discurso

do “Brasil potência”, a “Pátria-mãe”, provedora de alimentos para justificar

investimentos na agricultura para exportação. A criação dos perímetros irrigados

possuem diferentes expressões e significados políticos, constituindo um ponto nodal na

convergência de interesses e discursos antagônicos. Nesse embate político-ideológico,

há o resgate de elementos para respaldar as ações e refutar/enfraquecer as críticas feitas

aos megaprojetos, tais como a questão ideológica, a produção de alimentos, a geração

de emprego e o tão propalado “desenvolvimento”. Sobre essa necessidade de

“consumo” do desenvolvimento na perspectiva hegemônica, Thomaz Junior (2006, p.

132) destaca:

É como se o projeto de desenvolvimento tivesse que ser único para o

conjunto da sociedade, contanto que seu recorte para o campo fosse

afinado aos interesses exclusivos de classe (das classes dominantes

nacionais e estrangeiras). Estas, representadas, pois, pelas grandes

empresas capitalistas relacionadas ao agronegócio, cujos vínculos se

estendem de forma mais ou menos expressiva ao capital industrial

(químico-agroalimentário), capital bancário e financeiro, aos

latifundiários e grileiros de terras públicas e devolutas.

Os projetos de irrigação estão, na proposta do Estado, umbilicalmente

relacionados ao progresso e desenvolvimento econômico do Semiárido brasileiro. Há,

pois, um jogo discursivo nas palavras “desenvolvimento”, “progresso” e “trabalho”,

cujos “significados” são conflitantes, embora utilizados para justificar a compreensão

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dos sujeitos sobre um mesmo objeto. Sobre o sentido e a ideologia imbricados nas

palavras, Pêcheux (1988, p. 160, grifos do autor) destaca que

[...] o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição,

etc., [...] é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo

no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões,

proposições são produzidas [...]. As palavras, expressões, proposições,

etc,, mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles

que as empregam. [...] elas adquirem seu sentido em referência a essas

posições, isto é, em referência às formações ideológicas [...] nas quais

essas posições se inscrevem [...].

Sobre as tentativas de evitar a continuidade da obra da transposição, houve, por

parte do Frei Cappio, o interesse em dialogar pessoalmente com a Presidência da

República, o que acabou não ocorrendo. Depois de esgotadas todas as possibilidades de

diálogo com o governo federal, houve a decisão pelo primeiro jejum em 2005, com

duração de 11 dias, sendo, segundo o líder religioso, um “grito em desespero”. Sobre o

primeiro período de jejum, Frei Cappio afirmou:

Nós tínhamos um mote que dizia assim: quando a razão se estingue, a

loucura é o caminho. Quando os argumentos racionais não valem

mais, a loucura é o caminho. Seguindo esse pensamento nosso,

iniciamos o primeiro jejum de 2005, que pegou todo mundo de

surpresa, ninguém conhecia esse doido e, graças ao apoio CNBB, na

pessoa de Dom Geraldo Magella de Mello, esse grito ganhou respeito

no mundo inteiro e tornou-se conhecido porque, a partir disso, o

mundo inteiro tomou conhecimento dessa barbaridade que estava

acontecendo. O objetivo era esse: lançar um grito e esse grito ser

ouvido e foi ouvido. O Planalto se viu doido pelas manifestações e foi

incrível como essas manifestações, de repente,[...] se alastraram, de tal

forma que o presidente [Lula] se viu tão acossado que, no 11º dia do

jejum, mandou para lá o ministro Jacques Wagner para negociar. Após

dezenas de telefonemas para Brasília, porque eu estava em Cabrobó,

numa capelinha de São Sebastião, com o povo todo em volta rezando,

partilhando no meio do sol, Jacques Wagner e eu chegamos a uma

conclusão: o término do jejum. (Informação verbal, 08/05/2014).

As exigências feitas pelo bispo da Diocese de Barra para acabar com o jejum

foram as seguintes: a) suspensão imediata das obras, b) busca de alternativas para o

projeto e uma ampla discussão sobre este com a comunidade nacional e, c) iniciar um

sério trabalho de revitalização do rio São Francisco. Passados dois anos sem que tais

exigências tivessem sido cumpridas, em 2007, o bispo iniciou um novo período de

jejum, que durou 24 dias, sendo suspenso sem que as condições impostas pelo Frei

Cappio fossem atendidas, tendo este afirmado que o

projeto [transposição do São Francisco] caminhou até as eleições de

2010. Até ai caminhou. Dilma foi eleita e as obras pararam. Isso aqui

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é importante: se os recursos investidos na transposição fossem

investidos no projeto da ANA [Agência Nacional de Águas], que

também era do governo, hoje todo o Nordeste tinha água para beber e

usar, com os recursos que foram gastos com o ralo da corrupção no

projeto da transposição. E agora, diante dessa seca terrível que

vivemos nesses dois últimos anos, a toque de caixa construíram a

adutora de Guanambi, a adutora de Irecê e ano passado foi inaugurada

a adutora de Floresta, no Pernambuco, para garantir água para o povo,

(Informação verbal, 08/05/2014, grifo nosso).

Aguerrido em sua postura contrária à execução do projeto da transposição do

São Francisco, Frei Cappio não adotou a mesma atitude frente à implantação do Projeto

de Irrigação Baixio de Irecê, cuja obra possui investimentos e impactos sociais,

econômicos e ambientais semelhantes àqueles da transposição. Embora a CPT/Irecê

venha desenvolvendo um trabalho importante de mobilização e assessoria junto às

comunidades impactadas pelo empreendimento, constatamos que a participação da

diocese de Barra nas ações de mobilização e enfrentamento à CODEVASF tem ocorrido

em momentos pontuais. Uma das prováveis causas para o pouco envolvimento de Frei

Cappio na luta contra a execução do Projeto de Irrigação do Baixio de Irecê seja a

decepção sua em relação ao Presidente Lula e ao Partido dos Trabalhadores (PT).

Já no final dos anos 1990, a CPT/Irecê fez uma denúncia sobre a situação de

desamparo a que estavam sujeitas as famílias dos vales dos rios Verde e Jacaré, após a

confirmação da implantação do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê. As primeiras ações

objetivando organizar as famílias ocorreram ainda em agosto de 2008, quando a

CPT/Irecê fez um mutirão de visita junto às comunidades para fazer um diagnóstico da

realidade das famílias que ocupavam a área onde seria implantado o perímetro irrigado.

O trabalho de acompanhamento feito por essa entidade começou em maio de 2010, visto

que, no período entre o diagnóstico (2008) até o início das atividades, fez-se necessário

angariar recursos financeiros para viabilizar as ações de acompanhamento e de

mobilização das comunidades. A metodologia utilizada pela CPT/Irecê no processo de

mobilização das famílias/comunidades está pautada na educação popular, com reuniões

periódicas de formação e de discussão com os camponeses sobre seus direitos

territoriais e sobre quais as ações a serem tomadas no processo de reivindicação da área

junto à CODEVASF. De acordo com a liderança da CPT/Irecê, as reuniões de discussão

dão ênfase aos seguintes assuntos:

a) Direitos à terra e ao território, conforme asseguram a Constituição

Federal e a Organização Internacional do Trabalho (OIT 69)e b)

orientação sobre os direitos socioambientais e organização. É

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necessário que as comunidades despertem e se organizem para as

conquistas desses direitos, cuja metodologia é baseada na educação

popular. Dentro desse aspecto da formação, são feitas trocas de

experiências através de intercâmbio com outras comunidades que

sofrem impactos semelhantes, na perspectiva de que aquelas famílias

despertem e se organizem para lutar contra a implantação do projeto.

(Informação verbal, 16/04/2013).

Atualmente a CPT é a entidade com maior atuação na região do Médio São

Francisco, no tocante à organização social, muito embora existam associações e

sindicatos de trabalhadores rurais – Associação Comunitária da Fazenda Almas,

Associação Comunitária Rural de Guaxinim, Associações dos Produtores de Várzea

Grande, Associação dos Agricultores de Lajes e Associação Comunitária de Rio Verde

II e III – nos municípios de Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia. Mesmo com atuação

incisiva na região, desde 2008, a CPT não foi mencionada no “Relatório de

Compatibilização dos Documentos do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê” elaborado

pela Empresa Magma Engenharia.

A atuação da Igreja como liderança comunitária na região encontra-se

relativamente desmobilizada, havendo sido mais significativa na

década de 70, principalmente em função dos impactos sociais

advindos da formação do lago de Sobradinho. Foram identificados

como grupos mais atuantes no que se refere às questões sociais e

ambientais: a Ordem dos Franciscanos, vinculada à Diocese de Barra,

a FUNDIFRAN - Fundação para o Desenvolvimento Integrado do São

Francisco, sediada em Xique-Xique, e o Grupo de Apoio à Resistência

Rural e Ambiental – GARRA, com sede em Irecê. (MAGMA

ENGENHARIA, 2013, p.104).

Entre os desafios encontrados pela CPT no processo de organização das

famílias, está a descrença, por parte dos camponeses, em relação aos resultados que a

mobilização contra as ações da CODEVASF poderá trazer para eles. Essa desconfiança

deve-se a diversos fatores: primeiro, porque muitas dessas famílias vivenciaram os

desdobramentos do processo de desterritorialização provocado pela construção de

Sobradinho, bem como os revezes enfrentados pelos desalojados e a total omissão por

parte do Estado, que assumiu deliberadamente a defesa da necessidade de gerar energia

para viabilizar o “desenvolvimento” do país, em detrimento das 72 mil pessoas que

perderam suas terras (26 mil propriedades) e seus territórios, submersos pelas águas que

gerariam a energia para impulsionar o progresso para além das terras são-franciscanas.

Há, também, aquelas famílias que foram vítimas, nos anos 1970 e 1980, dos violentos

despejos decorrentes da grilagem de terras nos vales dos rios Verde e Jacaré, liderados

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por Airton Neves Moura e seus jagunços, sem que o poder público local tomasse

qualquer atitude em defesa dos camponeses. Ressaltamos que algumas dessas famílias

expulsas das terras pelos grileiros haviam sido desalojadas pela construção de

Sobradinho, vivenciando um novo processo de perda da terra e do território. As

comunidades do Baixio de Irecê vivenciam, ao longo das últimas quatro décadas, vários

ciclos de expropriação que têm produzido sentimentos distintos, expressos ora sob a

forma de descrença em relação ao papel do Estado, ora de incerteza quanto à

permanência nas comunidades. De acordo com a liderança da CPT/Irecê, mesmo que as

comunidades ainda estejam fragilizadas,

[...] no início do trabalho isso era bem mais acentuado. Hoje as

comunidades já conseguem desmistificar a lógica do empreendimento.

Eles não se veem dentro do empreendimento, como é propagado. No

entanto, há também pessoas nas comunidades que acreditam no

empreendimento. Outro aspecto a ser mencionado é a falta de atuação

de outras organizações que possam contribuir nesse processo de

fortalecimento da luta das famílias camponesas. No entanto, nesses

últimos dias a gente tem percebido, devido à provocação da CPT, o

envolvimento dos dois sindicatos [Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique].

Na verdade, outras organizações que tinham uma atuação muito forte

na região abraçam o discurso do governo com essa proposta de

desenvolvimento, recuado no enfrentamento de discutir os direitos

socioambientais dessas comunidades. (Informação verbal,

14/05/2013).

Como a identidade e a própria origem das famílias atingidas são heterogêneas,

há grande dificuldade em obter uma unidade, o que se reflete nas opiniões que os

camponeses têm em relação às medidas a serem adotadas no enfrentamento à

implantação do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê. De todas as comunidades atingidas,

direta e indiretamente, pelo empreendimento (total de 19 comunidades), aquela que

apresenta menor adesão ao movimento contra a criação do perímetro irrigado pela

CODEVASF é a Comunidade de Boa Vista porque, devido à proximidade desta com o

canteiro de obras do perímetro irrigado, muitos moradores trabalharam

temporariamente, exercendo diversas atividades, como porteiros, cozinheiras,

faxineiras, destocadores de floretas, dentre outras. Percebe-se que essa foi uma

estratégia bem sucedida por parte das empresas executoras da obra, evitando, assim,

problemas com os moradores, visto que esta comunidade está localizada a

aproximadamente 400 metros da tomada de água do perímetro irrigado. Pelo fato de

algumas pessoas terem trabalhado nas obras, ocorreu um processo de cooptação das

famílias, de modo que estas não participam das reuniões, o que dificulta a atuação da

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CPT/Irecê. De todas as 19 comunidades, Boa Vista é a mais favorável à execução da

obra, por acreditar que o empreendimento promoverá o desenvolvimento local. Tem-se,

nesse contexto, um estranhamento entre as comunidades, levando à negação, por parte

de muitas famílias, de seus modos de vida e a adoção de uma racionalidade – propagada

por agentes externos – quase sempre contrária aos costumes locais.

Em 2013, após diversas reuniões junto às comunidades atingidas pelo Projeto de

Irrigação Baixio de Irecê, foi elaborada (06/11/2013) pelo Sindicato dos Trabalhadores

Rurais de Itaguaçu da Bahia, pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xique-Xique,

pela Paróquia Senhor do Bonfim de Xique-Xique e pela CPTuma Representação

Pública, protocolada junto ao Ministério Público Estadual. Como desdobramento dessa

Representação Pública, foi instaurado um Inquérito Civil (nº. 1.14.012.000011/2014-13)

pelo procurador da República, Samir Cabus Nachef Junior, a fim de apurar as

irregularidades denunciadas pelo documento protocolado pelo coletivo de comunidades

e entidades sociais.

No dia 20 de maio de 2014, foi realizada, na Câmara Municipal de Xique-Xique,

uma audiência pública sobre os impactos do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê para as

comunidades tradicionais de Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia. Foram convidados para

participar do evento: associações de representantes das comunidades tradicionais,

representantes da Comissão Pastoral da Terra, CODEVASF, Prefeitura Municipal de

Xique-Xique, Câmara Municipal de Xique-Xique, Prefeitura Municipal de Itaguaçu da

Bahia, Câmara Municipal de Itaguaçu da Bahia, Empresa Baiana de Desenvolvimento

Agrícola, Bahia Pesca, o juiz e o promotor estaduais em atuação no município de

Xique-Xique. A audiência contou também com a presença de Cristina Nascimento de

Melo,Procuradora da Repúblicaemembro do grupo de trabalho “Quilombos, Povos e

Comunidades Tradicionais da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão da Procuradoria

Geral da República”. No dia seguinte à audiência pública (21/05/2014), os procuradores

da RepúblicaCristina Nascimento de Melo e Samir Cabus Nachef Junior visitaram

várias comunidades, com o propósito de conhecer e registrar a realidade das

comunidades atingidas pelo Projeto de Irrigação Baixio de Irecê.

Em 02 de maio de 2014, como parte das ações deflagradas anualmente, durante

o mês de abril (Abril Vermelho), o MST ocupou a área do Projeto de Irrigação Baixio

de Irecê (Foto 11), com aproximadamente 200 famílias. Parte das famílias acampadas

veio para esta área, deslocada do Acampamento Abril Vermelho localizado no Projeto

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Salitre, em Juazeiro (BA), apresentando, como pauta de reivindicação, o assentamento

de 1.000 famílias no perímetro irrigado.

Foto 11 – Acampamento do MST na área do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê –

Xique-Xique

Fonte: Trabalho de Campo, 2014.

Autor: DOURADO, J. A. L.

O acampamento das 200 famílias foi instalado nas proximidades do canal central

do projeto, de modo a facilitar o acesso à água: apesar de o perímetro ainda não ter sido

inaugurado, é necessário manter o canal com água para evitar danos na sua estrutura de

concreto. A ocupação foi realizada pelo MST sem qualquer consulta ou conhecimento

por parte da CPT e das famílias atingidas pelo perímetro irrigado, causando

instabilidade entre estas que passaram a temer e a rechaçar a presença dos acampados na

região, devido ao seu descontentamento com a ocupação das terras e por desconhecerem

o que representa o próprio MST no contexto da questão agrária brasileira. O

desconhecimento por parte das comunidades atingidas pelo Projeto de Irrigação Baixio

de Irecê em relação à presença e aos propósitos do MST, bem como a falta de

articulação entre as lideranças desse movimento social com a entidade que faz a

mobilização das famílias na luta pela terra e pela água nessa região geraram

discordâncias e enfraqueceram ainda mais a capacidade de enfrentamento ao Estado. Na

verdade, o que poderia consubstanciar a ação das famílias que lutam pela posse da terra

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no Projeto de Irrigação Baixio de Irecê transformou-se num obstáculo a ser removido,

pois, os “de fora”, ou seja, os acampados atuam com referenciais (políticos, ideológicos)

diversos daqueles apresentados pelas famílias camponesas impactadas pelo

empreendimento.

4.4 Ocupação do MST no Projeto de Irrigação Baixio de Irecê: conflito e

estranhamento de classe no contexto da luta pela terra e pela água

As dificuldades de compreensão da complexa trama de relações que envolvem a

luta pela terra e pela água no campo brasileiro exigem constante repensar sobre a

própria identidade de classe bem como sobre os posicionamentos políticos e ideológicos

dos diferentes sujeitos envolvidos nesse processo. Os desafios, nesse universo, são

grandiosos porque envolvem não apenas o embate travado contra o Estado e contra o

grande capital mas também os conflitos entre os sujeitos que estão no front de batalha

contra os atores hegemônicos, revelando uma dissonância e falta de clareza no cerne da

luta de classes, frente às divergências político-ideológicas e metodológicas que há entre

os diferentes movimentos sociais e entidades, envolvidos na luta pela terra e pela água.

A luta de classes é indispensável para a compreensão das contradições do campo

brasileiro, caracterizado pelo desenvolvimento desigual e combinado, tendo de um lado

os interesses dos capitalistas e, de outro, os camponeses e os trabalhadores assalariados.

A explicação da (i)materialidade dos conflitos envolvendo a sujeição da renda da terra

ao capital, da alienação do trabalho, da mutilação/precarização do trabalho (em suas

diferentes formas de expressão) e da criação de novas formas de reprodução do capital

requer considerar o território como categoria analítica estruturada nas relações de poder,

visto que o capital só pode reproduzir num espaço desigual.

No conflituoso campo de ação, a produção e reprodução da desigualdade no

mundo contemporâneo e, mais especificamente, no campo brasileiro desencadeiam

disputas territoriais, permeadas, em muitos casos, por identidades territoriais que

interferem na maneira como ocorrerá a inserção do sujeito nas ações, coletivas e

individuais, de luta e de resistência aos processos desterritorializantes deflagrados pelos

agentes hegemônicos.

As tensões em jogo no cerne da organização das famílias atingidas pelo

empreendimento da CODEVASF no Médio São Francisco são diversas e evidenciam as

cisões no âmbito da luta de classes, que, por sua vez, revelam a necessidade de

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aprofundar a análise sobre as questões identitárias. Concordamos com Bezerra (2013, p.

51), quando este afirma que:

[...] ainda não conseguimos captar a importância do debate sobre a

identidade no contexto da ofensiva do capital. Uma vez que, ela é

entendida como um traço crucial para compreendermos a sociedade

contemporânea e o apelo identitário não necessariamente representa

uma demanda pelo reconhecimento de uma subjetividade despida de

conteúdos políticos. Exemplos de identidades construídas no bojo da

luta social que se distanciam dos referenciais/representações

associadas ao proletariado puro podem ser observados na ação dos

movimentos sociais.

Pensamos que a identidade territorial pode ser um elemento importante ao tratar

das dissonâncias entre os discursos e as ações da CPT e do MST envolvendo o Projeto

de Irrigação Baixio de Irecê, por reconhecer a necessidade de interpretar como a

condição “de fora”, atribuída aos acampados por aqueles que se consideram “de dentro”

(as famílias atingidas pelo empreendimento), interfere na unificação da luta e cria

obstáculos à atuação das entidades e dos movimentos sociais imbuídos na luta pela terra

e pela água. Há que se entranhar na constituição do conflito instaurado a partir da

ocupação do MST na área do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê porque é, a partir

desta, que vem à tona uma questão cabal para o avanço naquilo que estamos definindo

como visão estranhada sobre o direito à terra e ao território. O que inicialmente parecia

ser um discurso uníssono, ou seja, a união de diferentes atores na luta pela terra e pela

água, demonstrou ser um desencontro entre o MST, de um lado, e a CPT e as

comunidades atingidas pela implantação do perímetro irrigado, de outro, com

perspectivas discrepantes e difusas, causando descontentamento de ambas as partes.

Trata-se de uma contradição marcante pelo fato de a luta envolver sujeitos com os

mesmos propósitos – a luta pela terra e pela água – e possuir diferentes significados, em

decorrência do modo de vida do camponês caatingueiro com forte apego à terra e um

enraizamento, expressos por meio da resistência a atos corriqueiros entre os acampados,

como o “sair de casa”, “dormir no barraco” e “deixar minha casinha”. Ao perguntar a

uma camponesa (43 anos) moradora da comunidade de Roçado sobre a sua opinião em

relação a juntar-se aos acampados do MST, obtivemos a seguinte reposta:

Eu acho muito difícil sair da casinha da gente, deixar os bichos

[cabras, galinhas e bois] pra ir ficar debaixo de uma lona lá. Eles

chamaram o pessoal pra juntar com eles, mas eu não achei jeito de ir

não. A gente já tem nossas coisinhas aqui. Não vai deixar o certo pelo

duvidoso. Quem vai cuidar? (Informação verbal, 21/05/2014).

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Nesse momento, verificamos que cada um desses atores passou a fazer sua luta.

De um lado, o MST exigindo adesão das famílias/comunidades do Baixio de Irecê e, do

outro, a CPT e os camponeses num total descontentamento em relação à ocupação feita

pelo MST, por entenderem que tal ação coloca em risco a luta e o direito das

comunidades que foram expropriadas. Tem-se, nesse universo, uma confusão sobre qual

é o foco da luta e as divergências colocam-se como um desafio para o entendimento da

morfologia da questão agrária brasileira, graças à pulverização da classe trabalhadora no

embate entre MST, a CPT e famílias do Baixio de Irecê.

Longe de entender a subjetividade desvinculada do componente político,

partimos do pressuposto de que a incompatibilidade entre os sujeitos que protagonizam

a luta pela terra no Projeto de Irrigação Baixio de Irecê está para além das metodologias

adotadas pelas organizações que fazem o enfrentamento ao Estado. Os acampados

possuem um histórico de atuação, por meio de ocupações, distinto das famílias

camponesas do Baixio de Irecê, que sempre estiveram sob o jugo dos grandes

proprietários de terra da região. Embora tenham sofrido violentos processos de

expulsão, esses camponeses nunca vivenciaram a condição de acampados e, por isso,

demonstram grande resistência a essa ação política de territorialização do campesinato

em territórios em disputa. Destarte, a grilagem e o cercamento das terras nos vales dos

rios Verde e Jacaré não provocaram a perda da identidade territorial entre os

camponeses, tendo a casa, como espaço de moradia e vivência, e a comunidade, como

locus de convivência e de reprodução social, uma representação daquilo que poderíamos

definir como a imaterialidade do território que ora reivindicam.

De fato, a ocupação do MST no Projeto de Irrigação Baixio de Irecê causou

instabilidade nas comunidades e na CPT. Ante à ocupação, essa entidade e os

camponeses sentiram-se obrigados a repensar as atitudes tomadas até aquele momento,

avaliando se a ocupação seria mesmo a maneira mais adequada e rápida para atingir os

propósitos almejados, ou se continuariam a seguir os mesmos direcionamentos até então

adotados. Para tanto, A CPT realizou reuniões para consultar os camponeses sobre a sua

opinião e a sua percepção em relação ao MST. Mesmo com as lideranças do movimento

visitando algumas comunidades, convidando os camponeses para aderir ao

acampamento, esses sujeitos demonstraram receio e aversão ao movimento social,

percebendo-o muito mais como concorrentes que aliados, conforme expresso no

discurso do camponês (48 anos) da comunidade de Muquém, em Itaguaçu da Bahia:

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Eu não vou juntar com esse povo não. Ninguém sabe quem é. E outra

coisa: essa terra tem que ser nossa e não deles. Eles não é daqui e

agora vão querer “invadir” a terra que a gente tá lutando para ter de

volta? Isso não é certo não. A gente tem que agir também.

(Informação verbal, 21/05/2014, grifo nosso).

A essência movente do discurso do camponês supracitado reafirma o

estranhamento entre a classe trabalhadora, demonstrando as fissuras existentes no

contexto da luta pela terra e pela água no Semiárido baiano, a partir da realidade

concreta e objetiva, enfatizando o acirramento das disputas pelo/no território. Assim

sendo, uma questão surge como desafio a ser resolvido: a expansão da luta pela terra e

pela água cria territórios em disputa entre os diferentes tipos de campesinato no

Semiárido baiano, saindo de cena a luta de classes e ganhando expressividade o fato de

que são os camponeses que passam a disputar o território entre si. Destarte, teríamos

mais um demonstrativo da contradição, no interior da luta pela terra e pela água, travada

no Semiárido baiano porque, mesmo havendo incompatibilidade entre as perspectivas

diversas, em relação ao modo de pensar e agir, no enfrentamento ao Estado e ao capital,

essas diferenciações não expressam interesses de classes antagônicas. Nesse caso, não

está presente o conflito do território do capital versus o território camponês135, ou, em

outros termos, os antagonismos existentes não são entre terra de trabalho e terra de

negócio. Embora o MST compreenda que a melhor forma de pressionar o Estado e fazer

o enfrentamento ao capital seja a ocupação, a CPT e as famílias impactadas pelo Projeto

de Irrigação Baixio de Irecê buscam alternativas, pressionando a realização de

audiências públicas, com o objetivo de denunciar, ao Ministério Público e à sociedade,

como as comunidades atingidas pelo referido empreendimento têm sido invisibilizadas

pelo discurso desenvolvimentista do Estado.

Mesmo quando os camponeses concebem a possibilidade de ocupar a área do

Projeto de Irrigação Baixio de Irecê não demonstram interesse em criar vínculo com o

MST. Durante a reunião realizada pela CPT na Comunidade de Muquém, em Itaguaçu

da Bahia, um camponês (54 anos) fez a seguinte colocação: “A minha proposta é a

seguinte: se unir com o MST é para ficar separado” (Informação verbal, 21/05/2014). O

discurso do camponês abriga o conflito entre diferentes sujeitos/agentes mediadores da

luta pela terra e pela água, deixando subentendido o significado atribuído à palavra

ocupação pelo camponês que defende a manutenção da “distância” em relação aos

integrantes do MST. No contexto dado, o confronto com outros posicionamentos e

135 Sobre essa discussão, consultar Martins (1994) e Marques (2008).

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sujeitos traz à tona a diferenciação entre significados atribuídos a um mesmo ato, pois a

posição do sujeito é indissociável na construção do discurso, ou seja, “[...] o sujeito é

inseparável de um contexto da enunciação que se compõe da situação social imediata e

de um meio social mais amplo (...) as crenças, os valores – do grupo e da época [...]”.

(GUIMARÃES, 2009, p. 98).

O acompanhamento das reuniões realizadas nas Comunidades de Muquém

(comunidades de Itaguaçu da Bahia) e Roçado (comunidades de Xique-Xique)

possibilitou-nos verificar que estas são contrárias à adesão ao MST, por entender que a

presença do movimento social na região traz obstáculos à luta das famílias. Apenas a

comunidade de Boa Vista demonstrou aceitabilidade à ação do MST, tendo alguns

moradores visitado o acampamento para avaliar se aderiam à ocupação. Segundo

informações das lideranças do MST, essa ocupação faz parte de uma estratégia adotada

pelo movimento para forçar o governo federal a realizar uma “reforma agrária” nos

projetos de irrigação no Nordeste brasileiro, tendo como prerrogativa a incorporação das

famílias expropriadas pela implantação do perímetro irrigado. Uma das lideranças do

MST entrevistada no acampamento afirmou que “[...] a prioridade é para o povo do

lugar; eles [as famílias do Baixio de Irecê] são do lugar e conhecem a região”

(Informação verbal, 22/05/2014). Mesmo assim, percebemos que as lideranças no MST

não levaram em consideração o trabalho de base realizado pela CPT junto às famílias

bem como suas reivindicações e demandas, numa postura similar à adotada pela

CODEVASF, tornando invisível a existência dos sujeitos que historicamente ocuparam

aquela área. Ao constatar a resistência à ocupação, as lideranças do MST buscaram

fazer contato com algumas comunidades, realizando reuniões para explicar quais os

objetivos da ocupação e convidar as famílias para aderir ao movimento. Por outro lado,

a CPT viu-se forçada a reunir-se com os camponeses com o propósito de explicar-lhes o

que é o MST, sua origem e suas estratégias de atuação.

De modo geral, os camponeses esperavam um posicionamento da CPT sobre

como deveriam agir, se aderiam à ocupação ou se se mantinham coesos com o trabalho

da entidade. A liderança dessa entidade enfatizou, junto aos camponeses, que essa seria

uma decisão pessoal a ser tomada e que não iria interferir; todavia, haveria que se

considerarem as ações em andamento, como a representação pública e a audiência

agendada com o Ministério Público para tratar do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê.

Em se tratando da postura da CPT, verificamos que a entidade não demonstrou adesão

ao MST, conforme se pode constatar na fala de seu representante local:

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Em nenhum momento fomos procurados pelas lideranças do MST

para tratar do Projeto Baixio de Irecê, nem fomos informados sobre a

ocupação. Já temos um trabalho consolidado junto às famílias,

iniciado de forma efetiva desde 2008 e, ao que nos parece, era

desconhecido pelo movimento. No único momento que tivemos

contato com as lideranças do MST, estas cobraram de nós uma postura

que não condiz com nossa metodologia de trabalho. Jamais vamos

orientar os camponeses para que estes venham acampar. Isso é uma

decisão de cada um. Estamos dispostos a dialogar com o movimento,

mas isso não significa que vamos dizer para as famílias ocupar a área,

pois esse não é nosso papel enquanto entidade. Mobilização, formação

e assessoria são a base de nosso trabalho. Não temos condições

(recursos humanos e financeiros) para dar suporte para que essas

famílias venham acampar na área do projeto. Se fizéssemos isso,

estaríamos sendo irresponsáveis. (Informação verbal, 16/05/2014).

Acreditamos que faltou articulação, por parte do MST, para aglutinar as famílias

ao movimento de ocupação, fato que criou uma atmosfera de disputa entre o movimento

e a CPT. Sem o contato e diálogo prévios, as lideranças do MST passaram a cobrar uma

adesão das famílias sem levar em consideração os seus valores sociais, esperando

encontrar sujeitos “cativos” e fáceis de serem convencidos. Grosso modo, não levaram

em consideração que a ocupação tem rebatimentos diferentes a depender do sujeito:

para as famílias dos vales dos rios Verde e Jacaré, isso acarretaria mudanças na maneira

cotidiana de produzir e relacionar-se, transformando suas práticas socioculturais, ou

seja, sua própria campesinidade. Outra particularidade ignorada foi a territorialidade das

famílias, pois esta funciona como um fator que agrega força, identificação e laços

solidários. Para essas famílias, o ato de sair de suas casas e ir para o acampamento

significa viver um processo de desterritorialização, distanciamento dos laços de

consanguinidade, de afetividade, vizinhança e dos rituais familiares, estando

subordinados a novos membros e a novas regras, inclusive de acesso à terra, até então

desconhecidos.

Outros aspectos foram decisivos para acentuar o estranhamento entre o MST e

os camponeses, como o desconhecimento, por parte das famílias, dos ideais do

movimento, ou, ainda, a visão criminalizada em relação ao MST produzida pelos

discursos midiáticos. Por outro lado, a militância, característica marcante entre os

integrantes deste movimento social, constitui uma experiência não vivida pelas famílias

atingidas pelo Projeto de Irrigação Baixio de Irecê. Além disso, em nenhum momento

houve concordância, por parte das lideranças, seja do movimento social, seja da CPT,

em discutir a possibilidade de unificação das pautas de reivindicações acerca da luta

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pela terra e pela água. Estando os sujeitos distantes e apresentando concepções

divergentes sobre os direcionamentos a serem adotados no enfrentamento ao Estado, o

que ocorreu foi o aumento do antagonismo entre esses sujeitos e uma “desordem” no

tocante aos interesses vinculados à órbita dos conflitos de classe.

Nesse contexto, a compreensão da trama de relações envolvendo as diferentes

formas de organização e deação política dos trabalhadores coloca-se como um desafio

para entender a “[...] dimensão da representação e da subjetividade da classe

trabalhadora [...]”(THOMAZ JUNIOR, 2009, p. 38), por acreditarmos que o

fortalecimento das ações anticapital perpassa pela superação da fragmentação no

interior da classe trabalhadora – cada vez mais heterogênea e multifacetada – e da

apreensão dos sentidos polissêmicos do trabalho.

CAPÍTULO V

PROJETO SALITRE: FACES CONTRADITÓRIAS DO

AGROHIDRONEGÓCIO NO SEMIÁRIDO BAIANO

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Por meio do trabalho, o homem põe em

movimento as forças naturais do seu corpo,

afim de apropriar-se dos recursos da

natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida

humana. (Marx, 1982, p. 243).

Neste capítulo faremos um resgate de como ocorreu o processo de ocupação do

vale do rio Salitre, das principais atividades agrícolas desenvolvidas pelos camponeses

bem como dos desdobramentos da modernização da agricultura ocorrida nessa região, a

partir dos anos de 1970, mediante a introdução de novas lavouras, técnicas,

instrumentos, em decorrência das políticas públicas implementadas, na região, pelo

Estado. Ademais, analisaremos como ocorreu o conflito pela água envolvendo

empresários rurais e camponeses no Baixo Salitre, nos anos de 1980 e como essa

conflitualidade perdura até os dias atuais com a implantação do Projeto Salitre. Serão

tratadas as dissidências entre os salitreiros e os integrantes do MST, com vistas a refletir

sobre as fissuras e fragmentações no interior da luta pela terra e pela água, sobre o papel

do acampamento Abril Vermelho no enfrentamedo ao Estado e ao grande capital, bem

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como sobre as estratégias adotadas pelos camponeses no contexto da mobilização e

organização social das comunidades do vale do Salitre para reivindicarem seus direitos

perante o Estado.

5.1 – Processo de ocupação e o surgimento dos conflitos no vale do rio Salitre

O rio Salitre nasce no município de Morro do Chapéu (Chapada Diamantina, no

local chamado de “Boca de Madeira”) e deságua em Juazeiro (povoado de Sabiá, à

jusante da Barragem de Sobradinho), cortando nove municípios (Morro do Chapéu,

Mirangaba, Juazeiro, Jacobina, Várzea Nova, Miguel Calmon, Ourolândia, Umburanas

e Campo Formoso) e abrangendo 20 comunidades situadas nas margens esquerda e

direita do rio. A bacia hidrográfica do rio Salitre (Mapa 13)está totalmente inserida no

Polígono das Secas, na região centro-norte da Bahia. Trata-se de uma sub-bacia do rio

São Francisco, caracterizando-se como um rio intermitente cujos limites são: a leste, as

bacias do rio Itapicuru e do Submédio São Francisco; a oeste, as bacias dos rios Verde e

Jacaré; ao sul, a bacia do rio Paraguaçu, especificamente a sub-bacia do rio Jacuípe.

Tomando-se por base o curso do rio, a bacia hidrográfica do rio Salitre foi dividida em

Alto Salitre, Médio Salitre e Baixo Salitre.

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Após o “descobrimento”, os colonizadores realizaram-se algumas expedições,

em direção ao interior do país, as quais fracassaram devido à fome, a doenças e aos

ataques dos indígenas, até que expedicionários conseguiram “rasgar” o sertão e levaram

ao rei de Portugal informações, relatadas pelos nativos, sobre a existência de ouro

naquelas terras. Desde então, muitas outras expedições foram realizadas, tendo algumas

delas conseguido alcançar, já em 1596, o atual Submédio São Francisco, mais

especificamente, os locais onde estão localizadas a Serra da Borracha, em Curaçá,

Jacobina e o vale do rio Salitre, conforme afirma Pierson (1972). Sobre os primeiros

contatos entre os portugueses e os índios do vale do São Francisco, Gonçalves (1997, p.

13) destaca que os

primeiros contatos entre os índios do Vale do São Francisco e os

portugueses não foram, na maioria das vezes, violentos. Como a

maioria das expedições dos portugueses que andavam na região

procuravam minerais, não existiam motivos para confrontos

sistemáticos. Quase sempre os colonizadores mantinham posturas

gentis, uma vez que buscavam obter o máximo de informações.

Palmilharam amplamente as terras da região, mas não encontraram

ouro.

Quando a mão de obra escrava indígena ficou escassa no litoral, a solução

encontrada pelos colonizadores portugueses foi trazê-la do vale do Rio São Francisco,

sendo os índios caçados e escravizados para o trabalho nas lavouras de cana-de-açúcar.

Expedições mineradoras e escravizadoras de indígenas no sertão do São Francisco

perduraram até os anos de 1620, sem haver uma fixação dos expedicionários naquela

região. A ocupaçãoportuguesa efetiva do vale do rio Salitre deu-se por Francisco Dias

D’Ávila, a partir de 1624. As terras, concebidas sob a forma de sesmarias, ampliaram o

patrimônio da Casa da Torre, tendo-se nelas destacado as atividades de mineração e o

aprisionamento de índios, para trabalhar como escravos. O estabelecimento da pecuária

deu-se por volta dos anos de 1640, sendo implantados vários currais na região do vale

do rio Salitre, assim como em todo o curso do rio São Francisco, exigindo

investimentos menores para manutenção e reduzida mão de obra.Assim, a ocupação

dessa fração do território baiano ocorreu de forma complementar às atividades

econômicas desenvolvidas no litoral, baseadas na produção de cana-de-açúcar.

Associando mãodeobra escrava e trabalho servil, os senhores da Casa da Torre

expandiram seus domínios, sendo os currais implantados rapidamente, intensificando o

processo de ocupação pela atração que a pecuária exercia nos portugueses

desafortunados.

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Os portugueses enfrentaram grande resistênciaao avanço da criação de gado no

Sertão, por parte dos povos autóctones, principalmente pelos índios Cariris, como

enfatizaAbreu (1988, p. 41):

No avanço para o sertão defrontaram os índios, em que sobressaíam os

Cariris, antigos dominadores do litoral, então acuados entre o São

Francisco e a Ibiapaba. A sua resistência foi terrível, talvez a mais

persistente em que os povoadores encontraram em todo o país; mas

atacados no São Francisco, no Piranhas, no Jaguaribe, no Parnaíba, do

Ceará, foram uns mortos, outros reduzidos a aldeamentos, outros

agregados a fazendas, [...].

Desse modo, pode-se observar que os mesmos locais já ocupados pelos índios,

nos primórdios da colonização portuguesa, no Semiárido nordestino são, atualmente, os

territórios do agrohidronegócio, os vales férteis onde estão localizados muitos dos

projetos de irrigação, considerados pelo Estado como modelo de agricultura de sucesso,

devendo ser propagado por gerar riqueza e desenvolvimento regional.

Aproximadamente pelos anos de 1670 a expansão dos currais, de forma

vertiginosa, sobre as terras férteis passaria a rivalizar com os índios Cariri136, sendo

estes desalojados e obrigados a fugir para as serras, ilhas e vale do rio São Francisco,

locais que, durante os períodos de estiagem, eram cobiçados pelos criadores, que

levavam os animais para pastar nos roçados feitos pelos indígenas, destruindo-os e

causando fome e medo entre os nativos. Esse conflito acentuou quando os índios, em

situações de fome, passaram a abater os animais para comer, causando revolta entre os

criadores portugueses. Assim, foi planejada uma expedição de caçada aos índios Cariris,

conforme destaca Gonçalves (1997, p. 36):

A reação dos criadores não demorou. O segundo Francisco Dias

D’Ávila, mandatário da Casa da Torre na ocasião, homem de ambição

e truculência extremadas, reuniu vaqueiros e donos de currais da

região, e conseguiu o apoio do governador da época – que lhe

concedeu pólvora, chumbo e uma ordem que determinavaque o Frei

Martin de Nantes colocasse os índios da Missão sob seu comando (do

segundo Francisco Dias D’Ávila), e ajudassem no combate aos

rebelados. O Frei, prontamente cumpriu a determinação, mas os índios

da Missão se recusaram a ir à luta sem a presença do missionário.

Após longa perseguição, em junho de 1676, na foz do rio Salitre, os índios

Cariris foram massacrados, episódio que ficou conhecido como “Chacina do Rio

Salitre”, devido ao extermínio de aproximadamente 800 índios, tendo os portugueses

136 O nome Cariri significa silencioso, quieto e calado.

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realizado a “limpeza” da área para os currais. Ainda sobre a atuação dos portugueses no

sertão do São Francisco, Lins (1983, 21) relata que os criadores

não povoaram a região, em vez de povoarem-na, promoviam o seu

despovoamento, matando o gentio que a ocupava. Plantando currais

pelo ermo adentro, o explorador branco substituía por boiadas as

tribos que encontravam pelo caminho. Matando ou escravizando o

índio, o colonizador português, a princípio, realizou uma obra de

escravidão e extermínio de toda uma nação [...].

Assim, desde os primórdios da História, o vale do Salitre foi marcado por

grandes conflitos pela posse da terra entre portugueses e indígenas. Com a desagregação

da sesmaria Casa da Torre, restaram grandes fazendas que passaram a desenvolver

atividades consorciadas: criação de gado e produção de cana-de-açúcar. Os engenhos,

movidos por tração animal, localizavam-se nas margens do rio Salitre e as áreas de

criação de gado, nas terras de sequeiro, distantes do rio. Essas atividades eram divididas

em dois períodos: seis meses dedicados à pecuária (janeiro a junho) e seis meses

dedicados à produção de cana-de-açúcar (junho a dezembro), usada na produção de

rapadura para o autoconsumo, sendo o excedente comercializado localmente (nas

comunidades do Salitre e na cidade de Juazeiro) e em municípios mais distantes, como

Senhor do Bonfim. Como nem todos possuíam engenhos, havia uma relação de parceria

entre os fazendeiros e os camponeses. Estes pagavam aos donos dos engenhos renda

(em espécie ou em produto), para poder fazer a moagem da cana e produzir a rapadura,

havendo assim uma relação de submissão dos camponeses aos senhores dos engenhos.

A rapadura, a farinha e a carne seca (salgada e desidratada ao sol) compunham a dieta

alimentar dos moradores do Sertão semiárido – principalmente dos vaqueiros, dos

trabalhadores dos currais e dos camponeses – durante os meses de estiagem, quando a

oferta de verduras e legumes se reduzia drasticamente.

O trabalho nas lavouras de cana-de-açúcar envolvia todos os membros da família

– homens, mulheres e crianças – desde o trabalho na lavoura (preparo da terra, plantio,

limpeza e colheita) até a moagem no engenho. Havia, entre os camponeses pobres, a

realização de “batalhão”137 para executar tarefas, como o plantio e a colheita da cana-

de-açúcar. De acordo com A. M. (70 anos), morador da comunidade de Campo dos

Cavalos,

137 Espécie de mutirão realizado entre os camponeses pobres moradores das comunidades do

vale do rio Salitre.

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[...] o pobre era plantador e não tinha condição de pagar 5 tostão. Pra

ninguém. Sabe como é que fazia? Dizia: amigo, amanhã eu estou

fazendo um batalhão para nós plantar minha roça. Ajuntava 5, 6, 8, 10

homens. Ninguém pagava não. Aquele tempo não tinha egoísmo. O

egoísmo é de um certo tempo para cá que o dinheiro apareceu. Todo

mundo querendo pisar um no outro. Todo mundo ia lá ajudar ele

plantar. Aquele dia era trocado. E assim todo mundo trabalhava. Era

comum. Só pagava diária o dono do engenho.

A divisão sexual do trabalho dava-se da seguinte maneira: o preparo da terra era

feito pelos homens; a limpeza das lavouras agregava homens, mulheres e crianças; o

corte da cana era trabalho dos homens; o transporte da cana-de-açúcar da lavoura até os

engenhos englobava homens, mulheres e crianças; o processo de moagem e a produção

da rapadura envolviam homens (moagem e trabalho nas caldeiras) e mulheres (colocar o

melado nas formas e desenformar as rapaduras). As crianças ficam responsáveis por

atividades que exigiam menos força física, como a função de buraqueiro. Havia várias

funções a serem desempenhadas nas lavouras de cana-de-açúcar e na produção de

rapadura, como destaca A. C. dos S. (73 anos), morador da comunidade de Alfavaca: “o

planteiro, o cambiteiro, foguista138, formeiro139, bagaceiro140, garapeiro141, carreiro142 e

o buraqueiro143”. Quanto ao trabalho nas lavouras de cana-de-açúcar, Reis (1986, p. 41)

pondera:

Para alimentar o engenho trabalhavam os cortadores de cana, os

cambiteiros que carregavam a cana apoiada por uns ganchos

(cambitos) presos às cangalhas dos jegues ou ainda em carro de boi. A

garapa era recolhida em bangüês de couro ou em dornas e levada para

os tachos de cobre, onde fervia até dar ponto. A tarefa de “dar ponto

no mel” para fazer a rapadura era do ponteiro, que na hora certa devia

passar o mel para as gamelas onde era batido e enformado pelas

mulheres.

A lavoura de cana-de-açúcar ocupava toda a extensão do vale úmido do rio

Salitre, constituindo uma das principais fontes de renda para as famílias, conforme

destaca M. da C. (Salitreira, 59 anos):

As pessoas plantavam a cana. Todo mundo que tinhas as propriedades

plantavam cana. Porque não era irrigação, era água do rio mesmo que

molhava aquela cana. O rio era perene, aí ele umedecia aquela terra e

não precisava irrigar a terra, era natural a “molhação” da cana. Eles

138 Colocava fogo na fornalha. 139 Colocava o melado nas formas e desenformava a rapadura. 140 Recolhia o bagaço do engenho. 141 Mexia a garapa na caldeira ou tacho. 142 Responsável por buscar a lenha para ser queimada na fornalha. 143 Responsável por orientar os cambiteiros no transporte da cana, evitando assim que os jumentos

caíssem em buracos no trajeto até os engenhos.

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plantavam a cana e com seis meses estava boa para o corte. Tinha

aqueles donos de engenho. Não era todo mundo que tinha engenho,

eram algumas pessoas que tinham mais condição; tinham um engenho

de pau puxado a boi. Aquelas pessoas combinavam com o dono do

engenho aquele dia que ia cortar a cana. Tinha aquelas pessoas que

trabalhavam no corte da cana: mudar da cana, limpar da cana, cortar

da cana e trabalhar no engenho. Quem tinha a família com muita gente

não precisava colocar diarista. Quem não tinha precisava colocar

diarista. Quem não tinha terra trabalhava para os donos dos engenhos.

Por isso não faltava emprego no Salitre. (Informação verbal,

07/05/2014, grifo do autor).

Ainda sobre a importância da lavoura de cana-de-açúcar no vale do rio Salitre,

A. M. (70 anos), morador da comunidade de Campo dos Cavalos, afirma:

Todo o Salitre era cana. Todo mundo, de Curral Novo a Curral Velho,

toda a vazante era cana. Quem não podia comprar um engenho de

ferro tinha um engenho de pau. Aqueles homens, o finado Zé

Amorim, o finado Janjão, Simplício, Furtuoso, Miguel Muniz e

Miguelzinho do Curral Novo era quem podia colocar um engenho e

quem não podia plantava cana e dava de meia ao dono do engenho

para o dono apurar e partir a rapadura. [...]. O pagamento era feito em

rapadura. Se desse 10 mil rapaduras para aquele produtor, 5 mil era do

dono do engenho. Nem todos tinham o engenho para apurar e fazer a

rapadura. (Informação verbal, 18/04/2014).

Essas terras eram inundadas anualmente e permaneciam úmidas durante boa

parte do ano. Quando era necessário irrigar, havia um ajuste entre os camponeses, de

modo que era colocado um tronco de carnaúba com palhas no leito do rio, impedindo

parcialmente a passagem da água. Assim, a água represada transbordava e, através de

sulcos, era conduzida até as lavouras cultivadas próximas às margens do rio, sem

represar,contudo, toda sua vazão. Concluída a irrigação, eram retirados o troco e as

palhas de carnaúba e o fluxo de água era liberado para que outro camponês pudesse

realizar o trabalho de irrigação, sem prejuízos para o rio e para os ribeirinhos. Essa

técnica simples permitia irrigar as lavouras, dispensando o uso de motores (movidos a

diesel) para captar água, não havendo, conforme informações dos salitreiros

entrevistados, registro de conflitos pelo acesso à água naquela época.

A rapadura produzida no vale do rio Salitre era destinada ao autoconsumo,

constituindo um alimento importante na dieta alimentar dos salitreiros, substituindo o

uso do açúcar. Os excedentes eram comercializados nas feiras livres de Juazeiro, de

Senhor do Bonfim, de Januária e de Pirapora. O transporte da rapadura até as cidades

mineiras era feito por meio de barcos. Em consórcio com a cana-de-açúcar, outras

lavouras eram praticadas pelos salitreiros, como o feijão, o milho, o alho, a cebola roxa,

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a batata, verduras, hortaliças, frutas (manga, goiaba, coco principalmente) além da

criação de animais de pequeno porte (aves, suínos e caprinos). Toda a produção era

voltada para o autoconsumo e os excedentes comercializados na própria comunidade ou

nas feiras livres de Juazeiro e em cidades circunvizinhas. A irrigação das lavouras de

verduras era feita utilizando-se latas para o transporte da água. Para se construírem os

canteiros nas margens do rio, onde eram cultivadas as hortaliças (principalmente o alho

e a cebola), usava-se um instrumento produzido artesanalmente, chamado pelos

salitreiros de passadeira, como descreve Silva (2013, p. 27):

Chamava-se de passadeiras um arranjo feito com a parte central da

palha de coqueiro e uma cabaça partida presa em uma das pontas,

instrumento este que era usado para retirar água do rio e molhar os

canteiros feitos a poucos centímetros do mesmo. A passadeira

constituía-se uma tecnologia de irrigação desenvolvida por

agricultores da região para tornar mais prática a molhação dos

canteiros.

A introdução da agricultura irrigada em moldes comerciais, para o cultivo da

cebola, principalmente, ocorreu no vale do São Francisco, no estado de Pernambuco,

sob incentivo da SUVALE. Essa modelo de agricultura rivalizava tanto com os grandes

proprietários de terras, resistentes a mudanças em suas bases econômicas (pecuária

extensiva) quanto com os ribeirinhos/beiradeiros, cujas atividades tinham como

propósito o sustento da família.

Em 1960 ocorreu uma grande cheia, permanecendo inundadas as áreas de

cultivo de cana-de-açúcar durante todo o ano, levando essa lavoura ao colapso, na

região do Salitre. A partir desse momento, novas culturas e técnicas de produção

agrícolas foram introduzidas na região, com a chegada de agricultores oriundos dos

municípios pernambucanos de Cabrobó, Santa Maria da Boa Vista, Orocó e Belém do

São Francisco. Entre essas culturas e técnicas, estão o cultivo da cebola amarela, até

então desconhecida pelos salitreiros, e o uso do motor movido a diesel, numa lógica

diferenciada daquela da agricultura praticada pelos camponeses do vale do rio Salitre.

Inicialmente, esses agricultores arrendaram terras, mas, com a consolidação da

agricultura comercial em decorrência dos solos férteis e da disponibilidade de água,

acabaram tornando-se grandes proprietários e essa região transformou-se num celeiro

agrícola, atraindo novos investidores. De acordo com Gonçalves (1997, p. 136), a

década de 1960

emerge no cenário regional como marco da modernização. Os

processos e os bens de inovação que vinham sendo introduzidos desde

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a década de 1940 produziram reflexos que alteraram a paisagem

social, econômica e cultural do vale. A partir dos anos 60, as bases

gerais da vida dos habitantes do Vale foram tornadas obsoletas. Eram

insuficientes para dar sustentação às exigências advindas da nova

realidade insuflada pelo esforço modernizador dos planos e das

agências advindas da nova realidade do estreitamento de relações com

outras regiões do país que acresceram novos itens de consumo e de

valores culturais, trazendo necessidades e aspirações inéditas.

Esse período histórico pode ser considerado um marco no processo de

valorização fundiária, despertando o interesse dos empresários locais e de funcionários

de órgãos públicos. Ao perceberem o sucesso da agricultura comercial introduzida na

região, houve uma verdadeira corrida às terras do vale do Salitre, momento em que

muitos empresários das cidades de Juazeiro e de Petrolina compraram as chamadas

“posses secas”, ou seja, áreas de terras sem uma delimitação específica, conforme relata

M. C., da Comunidade de Tapera:

O pior de tudo não foram as pessoas que vieram trabalhar. O que eu

acho mais errado é que grilaram as terras. Gente daqui mesmo de

Juazeiro ia lá no Salitre e comprava um pedacinho de terra chamado

“posse seca”. Tinha um negócio de vender chamado posse seca. O que

é isso? Posse seca é você ter sua terra e vender lá no meio do mato um

pedacinho de terra. Chamava posse seca. Meu pai mesmo gostava de

fazer isso. Depois que a pessoa comprava essa posse seca tinha o

direito de cercar meio mundo. Teve um senhor mesmo lá, a gente na

época não ligava muito para isso. Nós ficamos no meio desse homem.

O nome dele é Alonso. Ele comprou posse seca de meu pai lá não sei

aonde, no “cafundó” e veio até a margem do rio fazendo cerca. Eu sei

que ele grilou muita terra lá e muita gente fez isso. Comprava um

pedacinho de terra lá dentro e cercava “meio mundo”. Ah, não tem

direito. Tem direito, sim. A posse seca não tinha metragem nenhuma

ai pegava e fazia cerca naquele pedaço de terra. Eu sei que muita

gente grilou terra lá. O que fez mais mal fez ao salitreiro foi isso.

Grilaram as terras. Hoje, mesmo, com esse Projeto Salitre, muita gente

do Salitre ficou sem indenização porque os donos que grilaram foram

os que venderam ao projeto, eles tinham documento da terra e tudo.

(Informação verbal, 26/04/2014, grifos do informante).

Ao analisar as informações relatadas pela salitreira M. C., percebemos como as

terras foram sendo incorporadas por pessoas externas às comunidades do vale do

Salitre, criando obstáculos para a permanência e a reprodução das famílias camponesas.

A grilagem de terras foi relatada por vários camponeses entrevistados. Segundo M.da

C., moradora da comunidade de Alfavaca, “eles não davam muita importância para as

terras de sequeiro” (Informação verbal, 28/04/2014), pois, naquela época, essas terras

eram destinadas para a criação de cabras, denominados fundos de pasto. Assim,

verifica-se a indissociabilidade entre terra e água quando se refere aos camponeses

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salitreiros, pois, como destaca um dos técnicos do IRPAA, “a questão base dos

camponeses do Semiárido é terra; não é a vocação do clima”144. Desde o período da

colonização, as terras Semiáridas foram concentradas sob o domínio de uma elite

subserviente aos interesses da coroa portuguesa (capitanias e, em seguida, as sesmarias),

e as alterações ocorridas no decorrer do processo histórico foram insuficientes para

mudar a realidade marcada pelos latifúndios, ou seja, quebrar o monopólio das terras.

No final dos anos 60 e início dos anos 1970, a SUVALE implantou em Juazeiro

o Horto Florestal, para realizar experimentos objetivando comprovar a viabilidade

econômica da agricultura irrigada em larga escala, no Submédio São Francisco. A partir

dos resultados desses experimentos foram implantados dois projetos de irrigação: o

Projeto Bebedouro (PE) e o Projeto Mandacaru (BA). Juntamente com a implantação do

Horto Florestal em Juazeiro, foi introduzido o cultivo de uma nova espécie de tomate na

região do Salitre, por meio de José Massaki, de descendência japonesa, que morava no

Rio de Janeiro. Parte dos camponeses do vale Salitre passou a trabalhar como diaristas

para José Massaki, tendo aprendido a manusear a técnica de cultivo de tomates

utilizando varas como suporte para as plantas. No local onde funcionava o Horto

Florestal fica atualmente a Faculdade de Agronomia da Universidade do Estado da

Bahia (UNEB/Campus III - Juazeiro). Sobre esse contexto de mudanças na agricultura

do Submédio São Francisco, Silva (2013, p. 29) afirma que a

irrigação [...] era o elemento central dessa movimentação. O

novo jeito de usar a terra e explorar o rio exigia um pouco mais

da população salitreira do que estavam acostumados até então, a

exemplo da incorporação de novas técnicas de irrigação, maior

dedicação à administração da propriedade, contratação de mão

de obra. As novidades trazidas de outras regiões, como o

município de Cabrobó (PE) ou as técnicas que foram usadas

inicialmente por japoneses e grandes empresários que

adquiriram terras no Salitre por um baixo custo, se espalharam

rapidamente. As tecnologias usadas a partir de então para

desenvolver os monocultivos, ao mesmo tempo em que

inauguravam um certo progresso para a região, marcavam

também o início de uma nova relação dos salitreiros e salitreiras

com a agricultura, praticada, até então, de forma sustentável,

limitada, respeitando o curso espontâneo da natureza. (SILVA,

2013, p. 29).

Na década de 1970, ganhou destaque a consolidação da agrohidronegócio no

vale do São Francisco, inclusive na região do rio Salitre, trazendo uma série de

transformações econômicas, sociais e culturais, saindo de cena práticas socioculturais

144 Informação verbal, 04/05/2014.

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locais com a entrada de novos costumes e tradições. Em associação aos novos cultivos,

houve a introdução do uso de agrotóxicos, principalmente nas lavouras de tomate. Até

então, segundo relato dos camponeses entrevistados, não havia, entre os salitreiros, o

uso de agrotóxicos nas lavouras, pois não era registrada a ocorrência de pragas nos

cultivos. De acordo com Silva (2013, p. 24), o

modo de vida camponês nesta região a cada década passava por

transformações provenientes do avanço da tecnologia produzido nos

centros urbanos. Neste ritmo, aos poucos, e de forma mais agressiva

depois dos anos de 1970, a agricultura irrigada passou a ganhar espaço

na região, fazendo do Vale do Salitre, inclusive, referência para outras

regiões do país no tocante à produção agrícola.

Nesse universo, a chegada da energia elétrica constituiu um aspecto importante

no tocante às transformações ocorridas na dinâmica econômica, socioambiental e

cultural do vale do Salitre, porque permitiu intensificar a agricultura irrigada através da

utilização de bombas movidas à eletricidade, viabilizando a exploração de maiores áreas

e de terras mais distantes da margem do rio.Em relação às transformações no espaço

agrário no vale do rio Salitre, cabe destacar que a

tendência de concentração de terra no Vale do Salitre intensificou-se a

partir dos anos sessenta. A grande corrida em busca de terras na região

deveu-se aos incentivos e subsídios oferecidos pelo Governo para a

agricultura nesse período; ao potencial dos solos da região; à

construção de estradas; à instalação de rede elétrica e à

disponibilidade de água e de áreas de sequeiro, consideradas

inapropriadas para a agricultura. Como consequência deste fenômeno,

muitos proprietários passaram a vender suas terras, parcelaram-nas e

foram perdendo o domínio das áreas devolutas onde criavam os

animais. Com isso, iniciou-se o processo de transformação desse

espaço agrário.(SILVA apud BARROS, 1992, p. 66).

Analisando as mudanças ocorridas, nessa região, a partir da segunda metade do

século XX, M. C. (59 anos), moradora da comunidade de Tapera, destaca que:

As mudanças foram quando chegou o pessoal de fora para plantar e

trouxeram o motor a diesel. Depois daí veio a energia. A energia foi a

mudança, porque aí o pessoal quando não tinha energia que

começaram a trabalhar com motor a diesel. O motor não tinha

potência para levar água para longe. Era só ali mesmo para plantar

cebola nas roças na beira do rio. Quando a energia chegou, os grandes

proprietários que já tinham grilado muitas terras por lá ou comprado,

começaram a levar água para o pé da serra, bem para longe. Aí foram

começando as mudanças. [...]. Quando a energia chegou e o pessoal

que tinha terras por lá, grandes terras, começaram a puxar água para

longe aí o rio começou a secar, porque antes não secava. [...]. A

grande mudança foi essa: primeiro foi quando chegou o pessoal de

fora para plantar e trouxeram os motores a diesel, já veio outros tipos

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de cultivo e depois a energia que o pessoal levava agua para muito

longe, aí foi secando o rio e começou a bagunça. Aí o pessoal deixou

de plantar suas roças porque não tinha água, as pequenas culturas, aí

todo mundo começou a plantar grandes roças: tomate, melão e cebola

em grande quantidade e o pequeno foi deixando de mão porque não

tinha água. (Informação verbal, 26/04/2014).

Pode-se dizer que este momento marca uma nova etapa no tocante à exploração

dos recursos hídricos no rio Salitre. Antes da chegada dos irrigantes, os salitreiros

faziam a captação da água de maneira artesanal e sem causar grandes impactos para o

rio. Havia, entre os salitreiros, uma espécie de contrato informal e os laços de

vizinhança e de parentesco contribuíam, sobremodo, para o processo de organização do

modo como era “planejada” a irrigação das áreas próximas ao leito do rio, sem registros

de conflitos entre os camponeses. A gestão da água assim como o seu uso eram

compartilhados pelos salitreiros, tendo como base a ética e a moral camponesas.

Quando os irrigantes de origem pernambucana se instalaram na região, essa lógica foi

interrompida porque a agricultura passou a ser praticada sob os moldes empresariais,

tendo a produção o propósito único de gerar o acúmulo de riquezas. Esse momento

coincide com o fenômeno da “modernização” da agricultura, iniciado no Centro-Sul do

Brasil e com o surgimento dos conflitos por terra, na região do Pontal do Paranapanema

(SP).

Com incentivos governamentais, grandes áreas de sequeiro na região do Salitre

tornaram-se irrigáveis por meio de bombas elétricas, onde eram cultivados tomate,

cebola e melão, tendo como desdobramento um intenso processo de valorizadas das

terras. Estavam, pois, criadas as condições para a eclosão de intensos conflitos entre os

salitreiros e os grandes empresários, havendo forte pressão sobre as áreas ocupadas pela

agricultura camponesa, bem como pelo acesso à água.

Os anos de 1980 registraram os efeitos negativos das transformações ocorridas

no espaço agrário do vale do rio Salitre, culminando com a ocorrência de assassinatos

envolvendo disputas pela água. Com o aumento da irrigação pelo uso de bombas

elétricas, os camponeses do Baixo Salitre passaram a enfrentar constantes interrupções

no fluxo de água do rio, visto que toda a água era captada pelos grandes produtores de

melão e cebola na região do Alto Salitre, na comunidade de Goiabeira, no município de

Campo Formoso. A partir de 1978, a falta de água acentuou significativamente, sem

haver qualquer acordo entre os empresários, camponeses e prefeitos dos municípios que

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integram a bacia do rio Salitre. Segundo o relato de um dos acusados pelo assassinado

de empresários, o conflito surgiu:

[...] no tempo que faltou água. O povo estava com as roças plantadas.

Logo apareceu muita gente aqui plantando tomate. A água já pouca.

Aconteceu que uma cambada acolá em cima, muito conhecida plantou

umas roças para lá. O riacho secou, mas ficou chorando uma aguinha,

a agua vinha. Os de lá pegava a água e a água não vinha cá. Os bichos

aqui morrendo de sede nos bebedor, as prantas morrendo de sede. Os

daqui inventaram de derrubar as canelas, derrubando as canelas em

cima a agua vem, porque a energia acaba. A água veio pouca porque

certamente tava pouca. Aí começou a briga. Um queria, outro queria.

Os que queria mais eram os que plantavam mais, eram os ricos. Secou

o riacho, mas lá soltavam água mais encima, aí eles prendiam a água

para molhar as prantas deles. Quando soltava, não dava mais para vir

cá. Aí um dia derrubaram as canelas e ficou essa novela. Aí veio o

pessoal de Juazeiro disposto a brigar – os que morreu. Eu fiquei preso

sete meses e nove dias por causa disso. Os outros ficaram presos três

dias. Foram presos sete acusados, mas para demorar assim só eu. Teve

um acusado que fugiu. Vendeu tudo aqui. Se ele voltar, vai preso

porque não foi ouvido. (Informação verbal, 28/04/2014).

A falta de uma gestão compartilhada por parte dos usuários do rio deflagrou um

sério conflito por água, na bacia do rio Salitre, envolvendo camponeses do Baixo Salitre

e dois empresários rurais do Alto Salitre. Na tentativa de impedir que os grandes

empresários retirassem toda a água do rio, os camponeses resolveram interromper a rede

elétrica, como estratégia para bloquear as grandes motobombas e permitir que a água

chegasse às comunidades próximas à foz do rio. Após o fornecimento de energia ter

sido suspenso, os dois empresários rurais dirigiram-se até Campo dos Cavalos para

reestabelecer a rede elétrica, encontrando, ao chegar à referida comunidade, os

camponeses aglomerados ao redor do poste de energia, para impedir qualquer ação com

vistas a retomar o fornecimento de energia. O confronto armado teve como

desdobramento a morte dos dois empresários rurais na comunidade de Campo dos

Cavalos, no dia 07 de fevereiro de 1984. Os empresários mortos no conflito com os

camponeses salitreiros eram da cidade de Juazeiro (supervisor do Banco do Brasil) e da

cidade de Cabrobó (comerciante de frutas e produtor de cebola). Naquela época, o bispo

Dom José Rodrigues, da diocese de Juazeiro, apoiava a luta dos salitreiros, tendo sido

acusado pelos políticos locais de ser o mandante dos crimes. Ainda sobre o surgimento

do conflito por água no vale do Salitre, A. C. dos S. (70 anos), morador da comunidade

de Campo dos Cavalos e acusado pelo assassinato, relatou que:

A energia chegou nos anos 1970. Aí quem tinha motor comprou

bomba elétrica. Aí, quando entrou os anos 80 os agricultores do Alto

Salitre usavam a água toda. De 15 a 20 km do rio São Francisco para

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cima o rio secava e não chegava aqui. Aí foi quando teve a confusão;

as brigas. O povo derrubava as canelas da rede para poder as bombas

lá em cima não funcionar e a água descer para o povo molhar as

plantas: cebola, melão, tomate. Quem tinha plantação aqui no Baixo

Salitre. Confusão de morte que teve foi por causa de agua. Porque a

água só chegava até a goiabeira, no Alto Salitre. Eles puxavam tudo.

Esse pessoal que morreu, esses agricultores grandes que morreu, um

era supervisor do Banco do Brasil e o outro era comerciante de melão

e produtor de cebola. Ele era de Cabrobó. [...]. A briga de agua aqui é

porque esses dois agricultores grandes, poderosos, plantaram muito

melão lá na Goiabeira, botaram bombas grandes lá. Aí o povo jogava

arame e as canelas caía. Daí dois, três dias a água chegava. Aí o povo

colocava as bombas e molhavam as roças. Até que um dia o pessoal

derrubou as canelas ali na pista. O pessoal se aglomerou no pé do

poste para ninguém ligar as canelas até a agua chegar. O povo estava

com as plantas murchas sem molhar, roupa suja, quem tinha feijão não

tinha água para cozinhar, não tinha caminhão-pipa nem poço

artesiano. A água do riacho era usada para tudo. O povo ficou aí um

dia, dois dias, aí eles vieram para ligar a bomba. Eles vieram para ligar

a energia à força. Tinha cento e tantas pessoas no pé do poste. Aí

deram a testa. Eles [os empresários] estavam fortemente armados e

atiraram muito e o pessoal que estava aí ninguém saiu ferido. O povo

enfrentou eles com pedra e pau. Enquanto eles atiram em alguém,

tinha 20, 30 dos lados jogando pedra e pau neles. Até que eles

esmoreceu, aí dominaram eles, homens e mulheres. Todo mundo

desesperado com fome e com sede. (Informação verbal, 28/04/2014).

Confirmando a historicidade dos conflitos pela água no vale do Salitre, E. L. da

P., moradora da comunidade de Curral Novo, reafirma:

A questão mesmo era a água e o uso exagerado de alguns produtores

principalmente de pessoas que não eram da região que vieram em

busca das terras e do potencial que tem as terras do Salitre para

agricultura.Como alguns agricultores não tinham aquela consciência

de que a água era para todos, e não para quem tivesse um poder

aquisitivo maior, no caso dos produtores que vieram.Isso resultou na

revolta dos pequenos produtores. (Informação verbal, 26/04/2013).

Após as mortes terem ocorrido e o episódio ter repercussão nacional, sendo

noticiado pelo Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão e por jornais da região, o

então prefeito de Juazeiro, Jorge Cury, foi a Brasília buscar junto ao Presidente José

Sarney uma solução para a situação de conflito, estabelecida entre camponeses e

empresários no vale do rio Salitre. Após negociação, a ação emergencial adotada para

tentar conter os conflitos foi a construção de nove barragens galgáveis no leito do rio

Salitre, para fazer o bombeamento da água do rio São Francisco, tendo sido as obras de

construção iniciadas em 1984 e finalizadas em 1985, estando localizadas na região do

Baixo Salitre, mais especificamente no município de Juazeiro. Cabe destacar que desde

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1982, o Estado, através da CODEVASF e do DNOCS, havia iniciado a construção de

seis barragens no rio Salitre e em seus afluentes (Quadro 19).

Quadro 19 – Barragens localizadas no rio Salitre e seus afluentes

Barragem Localização Ano de construção Responsável

Tamboril Morro do Chapéu 1982 CODEVASF

Caatinga do Moura Jacobina 1982 CODEVASF

Defino Campo Formoso 1982 DNOCS

Taquarandi Mirangaba 1988 CODEVASF

Ourolândia Ourolândia 1989/1993 Prefeitura de

Jacobina Fonte:CBHS, 2013.

Org.: DOURADO, J. A. L.

As barragens construídas no rio Salitre, entre os anos de 1980 e 1990, tinham

como objetivo perenizar o rio para viabilizar a irrigação em todo o seu vale. As

barragens galgáveis construídas no município de Juazeiro tinham o intuito de atenuar os

conflitos gerados pela retirada excessiva de água do rio e abastecer as comunidades

ribeirinhas, ficando, sob responsabilidade da União das Associações do Vale do Salitre

(UAVS), da CODEVASF e da Prefeitura, a manutenção e fiscalização das mesmas.

Através da execução dessa obra, foi possível transportar água do rio São Francisco, a

partir da foz do rio Salitre, para o leito deste rio, num processo de inversão artificial da

oferta de água e de seu curso, passando o mesmo a “correr para cima”, como dizem os

salitreiros. As nove barragens galgáveis estão localizadas nas seguintes comunidades:

Sabiá, Bananeira/Curral Novo, Horto (UNEB/Juazeiro), Campo dos Cavalos, Recanto,

Arame, Alfavaca e Angico. Entre os problemas relacionados à questão da irrigação no

vale do Salitre temos: métodos de irrigação incompatíveis com a disponibilidade hídrica

da bacia (sulco e inundação), tanto no Alto quando no Baixo Salitre (municípios de

Juazeiro, Várzea Nova, Jacobina e Ourolândia), além de elevada demanda hídrica e

escassez de água.

Em 1989, visando a disciplinar a agricultura desenvolvida no vale do rio Salitre

e em resposta aos conflitos ocorridos em 1984, o governo estadual, através da Portaria

077, delimitou a superfície a ser irrigada por família, cuja área máxima ficou restrita a 3

hectares para irrigação por inundação e 6 hectares para irrigação com gotejamento e

microaspersão. Na esfera municipal, foi editada a lei nº. 047/87 pela prefeitura de

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Juazeiro, que proibiu a instalação de novas bombas e reservatórios, além de delimitar as

áreas irrigadas e de tabelar o uso da água. Atualmente, quem faz a fiscalização para

verificar se as referidas medidas estão sendo respeitadas é a UAVS, tendo esta

enfrentado dificuldades em executar essa função, conforme expôs a presidenta da

UAVS, E. L. da P., moradora da comunidade de Curral Novo:

Como a UAVS gerencia a águae tem um produtor que está plantando

muito, a gente teve que recorrer àPromotoria de Justiça.A UAVS teve

que levar um produtor porque a água da adutora não comporta grandes

áreas para ser irrigada por cada produtor.É estabelecido 3 hectares

para quem usa irrigação por inundação e 6 hectares para irrigação por

microaspersão e gotejamento. Nós temos um produtor que é do

movimento com a gente, que começou desde 2003 e hoje eu estou

ameaçada de morte. A gente não tinha espalhado muito essa coisa.

Mas a imprensa ainda não tem conhecimento porque nós temos os

funcionários da UAVS que usam o GPS para medir a área,

identificandoque ele tinha quase 40 hectares plantados. 40 hectares

não é para agricultura familiar; nenhum agricultor familiar tem 70

funcionários. Esse produtor tem uma área muito grande, inclusive essa

área ocupada por ele é da União, do Projeto Salitre. Ele ocupou essa

área e está causando esse conflito. [...]. Como a UAVS leva à frente as

questões que saem nas assembleias, eu como presidente fui

representar a UAVS na Promotoria. Acabou sobrando para mim.

Como a gente tem que acompanhar de perto o que ficou definido no

acordo com o promotor, o produtor e a UAVS, eu ficaria também

fazendo a fiscalização dessa área porque num prazo de 120 dias ele

tem que ficar com seis hectares para ele e 6 ha para o filho. Lá na

Promotoria ele aceitou muito bem, mas depois ele mandou um recado

dizendo que se eu fosse na propriedade dele ele mim mataria dentro

do carro da associação. A semana passada ele mandou outro aviso. Eu

ainda não voltei na Promotoria porque eu perguntei à pessoa que veio

trazer o recado dele se ela servia de testemunha. Ele disse: não, porque

eu tenho medo dele. Agora eu, não tenho medo dele. Eu sei que eu

tenho minha família. Agora, a questão de ele ser um grande produtor

hoje e ser da UAVS, de ter ficado rico, o dinheiro dele não intimida

não. Eu vou na propriedade dele. Agora, só que antes, eu vou à

promotoria conversar com o promotor [...]. (Informação verbal,

26/04/2013).

Outra entidade que vem atuando no sentido de contribuir com as discussões

sobre a gestão da água na bacia do rio Salitre é o Comitê de Bacia Hidrográfica do

Salitre (CBHS), criado em 2001. As reuniões têm permitido apresentar e discutir os

principais problemas da bacia hidrográfica do rio Salitre, enfatizando a urgência em

implementar ações de revitalização do rio e controle sobre o uso da água para irrigação.

Passados 30 anos desde as mortes ocorridas na comunidade de Campo dos

Cavalos, ainda hoje o vale do Salitre continua sendo um território em disputa, entre

campesinato e o agrohidronegócio, pelo controle da terra e da água, sem que o Estado

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adote medidas capazes de resolver efetivamente a questão do acesso à água para os

salitreiros. Acusados e inocentados, os camponeses envolvidos diretamente nas mortes

ocorridas em 1984, hoje, já idosos, ainda têm registrados na memória os momentos de

angústia e sofrimento por causa do conflito com os empresários e toda a pressão, por

parte da elite local (política e econômica), para condená-los. Conflitos e mortes

envolvendo a questão hídrica mancharam a história e a imagem do vale do Salitre e o

incentivo à expansão do agrohidronegócio na região, por parte do Estado, criou, e

continua criando, as condições favoráveis para a deflagração das disputas territoriais.

Em 2003, aproximadamente 100 famílias do Baixo Salitre decidiram ocupar a fazenda

Santa Maria, de propriedade da CODEVASF, como forma de reivindicar lotes no

Projeto Salitre. Após as negociações entre a entidade proprietária das terras e os

acampados, ficou acordado o assentamento dessas famílias na área do Projeto Salitre.

Após a sua desocupação, a fazenda Santa Maria foi vendida pela CODEVASF. Visando

a atender parte das reivindicações feitas pelas comunidades do Baixo e Médio Salitre, a

CODEVASF executou o projeto de perenização do rio Salitre a partir de seu médio

curso,por meio da construção de duas adutoras145que levam água do São Francisco. Em

julho de 2005, foi inaugurada a adutora que leva água até a comunidade de Capim de

Raiz:com capacidade para irrigar uma área de 180 hectares, atende a aproximadamente

200 agricultores. Em decorrência do não cumprimento das promessas, as famílias

envolvidas, agora denominadas “Movimento dos Sem-Água”, voltaram a ocupar, em

2008, uma área do Projeto Salitre, passando a produzir lavouras de ciclos curtos (melão,

tomate, cebola e milho principalmente), forçando a entidade responsável pelo

empreendimento a realizar uma audiência pública com os acampados. Foi nesse

momento que ocorreram divergências entre os salitreiros e as lideranças do MST. Estes

exigiram a saída dos salitreiros da área ocupada, alegando que esta já havia sido

escolhida por eles para montarem o acampamento, fato que causou distanciamento entre

os movimentos.

Insatisfeitos com os desdobramentos da reunião com a CODEVASF, os

salitreiros ocuparam por 5 dias, em 2009, o canteiro de obras do projeto de irrigação.

Devido a essa ocupação, as lideranças do movimento foram convocadas a Brasília para

uma reunião com a Casa Civil da Presidência da República, que autorizou a construção

145 Os custos com energia elétrica para o bombeamento da água é pago pelos agricultores mediante a

cobrança de uma taxa de R$40 feita pela UAVS, através de contrato estabelecido entre essa entidade e a

CODEVASF. Após a ocupação do MST no Projeto Salitre, a UAVS suspendeu o pagamento da taxa,

alegando que o MST também faz uso de água do Projeto Salitre e não paga nenhuma taxa.

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do Projeto Lindu. Visando a atender as reivindicações feitas pelas comunidades do

Baixo e Médio Salitre, a CODEVASF executou o projeto de perenização do rio Salitre a

partir de seu médio curso,por meio da construção de duas adutoras que levam água do

São Francisco.

Em setembro de 2010, mais especificamente no dia 21 de agosto desse ano,

ocorreu um novo conflito entre os salitreiros e os grandes empresários agrícolas: com a

derrubada de 16 postes,os salitreiros pretendiaminterromper o fornecimento de energia

elétrica, para forçar os grandes irrigantes do Médio e Alto Salitre a suspenderem a

captação de água, de modo que aqueles pudessem irrigar suas lavouras. Esse fato foi

amplamente noticiado pela rede de televisão local – TV São Francisco – afiliada da

Rede Globo de Televisão e o Jornal A Tarde, tendo este último veiculado uma matéria

com o título “Vândalos derrubam postes e 16 povoados de Juazeiro ficam sem energia”.

A maneira como os meios de comunicação de massa – o aparato midiático a serviço da

burguesia - trataram o conflito revela as intenções e os pactos político-ideológicos da

mídia no país, historicamente firmada em favor da manutenção do status quo, visto que

busca criminalizar a ação dos salitreiros, colocando-os como “vândalos”, quando, na

verdade, estão reivindicando a solução de um problema que perdura há décadas. Para

Mendonça (2004, p. 98), ao

falsear a realidade, não se vislumbram as alternativas exequíveis,

forçando a opinião pública, informada equivocadamente, a se

posicionar, única e exclusivamente, na defesa do direito à propriedade.

A mídia televisiva e escrita exponencia e espetaculariza o conflito

agrário como ameaça à democracia. Ao procederem assim, estão

apenas dando continuidade ao padrão de tratamento a questão agrária

que prevaleceu nos últimos anos, marcado pela opção de criminalizar

os movimentos sociais, [...].

No ano de 2013 foi construída uma segunda adutora,com capacidade para irrigar

278 hectares, levando água até a comunidade de Junco, atendendo a 100 agricultores.

As adutoras não contemplam o abastecimento humano, tendo como propósito único

fornecer água para a agricultura e dessedentação animal. Embora tenha amenizado a

falta de água nas comunidades ribeirinhas, a conflitualidade ainda persiste, porque

muitos agricultores continuam retirando grande volume de água. A estratégia adotada

pelos camponeses revela a necessidade de o Estado (em suas diferentes instâncias)

adotar medidas conjuntas para solucionar a questão agrária e hídrica no vale do rio

Salitre. Medidas paliativas, como a construção dessas adutoras, têm contribuído para a

expansão da área irrigada e, consequentemente, para agravar as disputas pela água no

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vale do rio Salitre. Ao problematizar os conflitos pelo acesso à água entre salitreiros e

empresários, E. L. da P., moradora da comunidade de Curral Novo, declara:

Esse conflito vem até hoje. Houveram aquelas mortes, mas, na

verdade, ele existe até hoje. O conflitohoje segue a mesma linha, mas

só que em outros locais. Antes, era aqui emCurral Novo, Campo do

Cavalos.Como o rio foi secando de baixo para cima, a problemática

continua na parte de cima. Só que agora, esse ano, não teve mais

porque teve muitas reuniões: CODEVASF, Igreja, UAVS. Hoje não

tem mais essa coisa de briga direta, do corpo a corpo, graças a Deus

não teve mais. Agora, o conflito continua. [...]. (Informação verbal,

26/04/2013).

Como repensar o modelo de desenvolvimento adotado para o Semiárido

nordestino não faz parte da proposta do Estado, o que vem ocorrendo é uma retomada

vertiginosa dos projetos de irrigação, com promessas alvissareiras para os sertanejos,

utilizadas como moeda de troca para amainar conflitos ou, até mesmo, evitar o seu

surgimento. Quando iniciou a discussão sobre o Projeto Salitre, havia a expectativa, por

parte dos salitreiros, de terem acesso à terra e à água, o que acabou não acontecendo

porque o projeto não beneficiou as comunidades desta região, cuja inclusão no

perímetro irrigado tem ocorrido de forma marginal, como mão de obra barata, na

fruticultura irrigada, na maioria das vezes precarizada. A expansão dos projetos de

irrigação no Semiárido nordestino tem fomentado a subcontratação, a terceirização, a

desregulamentação, bem como a intensificação da superexploração da força de trabalho.

Como preconiza a Política Nacional de Irrigação, a seleção dos irrigantes para o

Projeto Salitre foi regulamentada pelo edital nº. 18/2009146, sendo os salitreiros

“democraticamente” excluídos, por não atenderem às exigências do projeto. Em 2003,

quando perceberam que o Projeto Salitre era destinado ao agronegócio, as comunidades

passaram a reivindicar, junto à CODEVASF, a criação de um projeto que atendesse, de

maneira específica, os camponeses do Baixo Salitre, pois, de acordo com a presidente

da UAVS naquela época147, moradora da comunidade de Curral Novo, “o que ficou foi

a revolta. De 255 lotes, tem 8 salitreiros. É terrível porque esse povo achava que estaria

inserido no Projeto Salitre. No entanto, hoje tem muitos produtores que trabalham de

boias-frias no projeto”. (Informação verbal, 26/04/2013). O acordo firmado entre a

CODEVASF e as comunidades, em 2010, previa a aquisição de 2.000 hectares de terra,

num total de 1.100 hectares irrigados, com capacidade para assentar aproximadamente

146 Divulgado no Diário Oficial, nº. 59, de 27 de março de 2009. 147 A UAVS atualmente tem uma nova diretoria.

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220 famílias salitreiras. Todavia, em reunião realizada no auditório da 6ª

Superintendência da CODEVASF/Juazeiro, no dia 18 de julho de 2014, com membros

do STR de Juazeiro e representantes da UAVS, o presidente dessa entidade federal,

Elmo Vaz, afirmou que o Projeto Lindu era inviável, porque os recursos financeiros

disponíveis contemplam apenas a compra de terras. Assim, mais uma vez, os

camponeses do Baixo Salitre são vítimas do Estado, cujas ações privilegiam o

agrohidronegócio em detrimento dos sujeitos que historicamente ocuparam essa região,

viabilizando a “aliança capital-Estado-trabalho”, como enfatiza Sousa (2010, p. 9).

Sustentada no discurso do “novo” e do “moderno”, a expansão da agricultura

irrigada no Semiárido baiano continua em ascensão, como se pode comprovar através

das discussões envolvendo a implantação do Canal Sertão Baiano148 (também

conhecido como o Canal do Eixo Sul da transposição), cujo propósito é transpor água

do rio São Francisco para 44 municípios ao norte do estado, percorrendo um total de

300 km do Semiárido, com cerca de 20m³/s de vazão. A proposta é que essa obra seja

inserida no Plano Nacional de Segurança Hídrica (PNSH), devendo ser construída em

parceria com o Ministério do Interior, a ANA e os governos estaduais. O objetivo do

PNSH é definir as principais intervenções e estratégias a serem adotadas, visando a

garantir recursos hídricos para o abastecimento humano e para atividades produtivas.

Baseado na ideia e no mito do progresso e da modernidade, o Estado tece a teia

de sustentação para a territorialização e para a reprodução do grande capital no

Semiárido nordestino, oferecendo como alternativa aos camponeses o assalariamento

nos “oásis” da fruticultura irrigada, cuja sustentação coloca em risco a existência de

outras lógicas de reprodução camponesa. Nesse aspecto, concordamos com Conceição

(2007, p. 79) quando a autora diz que o

discurso da modernização do campo, ao tempo que reforça o processo

de monopolização e da territorialização do capital, acentua a expulsão

dos camponeses da unidade de produção familiar, à medida que

permite o processo de subsunção do trabalho ao capital. Desprovidos

de possibilidades da terra como condição de vida, o Estado, pela

coação, impõe um discurso velado da submissão ao capital à medida

que favorece a crescente mobilidade do trabalho.

148 O projeto do Canal do Sertão Baiano, com valor total estimado em R$6 bilhões, visa a

atender, segundo seus defensores, a dessedentação humana e animal, o fortalecimento da

agricultura e o incentivo à pecuária. Todavia, assim como os Eixos Norte e Leste da

transposição, esse projeto é mais uma ação do Estado com vistas a garantir a segurança hídrica

para a expansão do agrohidronegócio na região semiárida nordestina.

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Ainda nessa perspectiva, estamos de acordo com Gonçalves (1997, p. 176)

quando este reforça que não restam

dúvidas que os investimentos feitos na região do Submédio São

Francisco, ao longo desses 40 anos, alteraram o quadro econômico e

social, mas as manifestações do progresso que aqui mais se destacam

são exatamente aquelas que denunciam o seu lado podre, tendo no

pico a miséria que é o terreno que fertiliza todo tipo de desgraça. Isso

porque se prendeu um tipo de desenvolvimento onde o povo entrou

apenas como combustível, como matéria descartável, porque foi

expropriado de seus meios materiais e culturais de existência, porque

foi vislumbrado apenas para se posicionar no degrau mais baixo da

submissão. A estratégia do desenvolvimento foi vislumbrada através

de grandes empreendimentos agrícolas, industriais ou comerciais,

onde nosso povo entrou apenas como mão-de-obra desqualificada.

Ante o exposto, é possível associar as disputas envolvendo terra e água na bacia

do rio Salitre ao processo de “modernização” da agricultura, ocorrido nessa região a

partir dos anos de 1970, por meio de incentivos do Estado e pela ação de investimentos

privados, fato que possibilitou intensificar a captação de água do rio Salitre e ampliar a

área plantada. Desse modo, estavam, pois, criadas as condições para a eclosão de

intensos conflitos entre os salitreiros e os grandes empresários que passaram a ocupar as

terras do vale do rio Salitre. Essa situação conflituosa arrasta-se até os dias atuais,

gerando instabilidade entre as comunidades salitreiras e mobilidade do trabalho.

5.2 Projeto Salitre, agrohidronegócio e disputas territoriais e de classe no

Submédio São Francisco (BA)

O Projeto Salitre (Mapa 14)localiza-se à margem direita do rio São Francisco, no

município de Juazeiro e acesso a ele é feito pela BA-210, que liga Juazeiro a

Sobradinho, a 20 km da sede municipal. A discussão sobre a implantação do Projeto

Salitre surgiu como uma resposta aos conflitos pela água ocorridos na década de 1980.

Tabela 15 - Características Básicas do Projeto Salitre

Área irrigável (hectares) 31.305

Fonte hídrica Rio São Francisco

Vazão requerida (m³/s) 42

Vazão atual (m³/s) 6

Potencia de energia elétrica requerida

(KVA)

142.540,00

Pequenos Produtores 944 lotes (20% da área total do perímetro) Empresas 485 lotes (80% da área total do perímetro)

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Principais culturais Abacaxi, abacate, manga, melão, acerola,

banana, limão, milho, tomate, uva,

algodão e cana-de-açúcar.

Sistemas de irrigação preconizados Microaspersão e gotejamento

População beneficiada 131.481

Número de empregos diretos 31.305

Número de empregos indiretos 626.116

Fonte: CODEVASF, 2013.

Organização: DOURADO, J. A. L.

O 1º Seminário sobre o Projeto Salitre ocorreu no ano de 1989, numa espécie de

audiência pública. Implantado, em 1996, com investimentos federais, estaduais e

municipais, foi considerado inicialmente, pelos próprios salitreiros, como uma

alternativa para sanar os problemas relacionados ao acesso à água no Baixo Salitre.

Todavia, ao perceberem que a obra atenderia ao agrohidronegócio, as comunidades do

Baixo Salitre começaram a reivindicar terra no perímetro irrigado, ocorrendo, em 2003,

a ocupação da Fazenda Santa Maria, de propriedade da CODEVASF, por 100 famílias.

Devido à mobilização, ficou acertado, entre a 6ª Superintendência Regional da

CODEVASF e as famílias salitreiras, que 100 lotes da Etapa I seriam destinados para os

camponeses acampados. Tal promessa, porém, não foi cumprida pela presidente do

órgão, por alegar que esse acordo não tinha respaldo legal. Mesmo recorrendo a Brasília

e buscando apoio junto a políticos regionais (deputados estaduais e federais), o acordo

não foi cumprido, tendo, como compensação, a proposta de implantação do Projeto

Lindu149, até o presente momento sem apresentar avanços. Segundo E. L. da P., o

projeto Lindu acaba sendo mais um projeto de reparação. Nós

conseguimos esse projeto em Brasília numa negociação, onde a gente

acampou no canteiro de obras do Projeto Salitre 15 dias antes de ser

lançado o edital. Quando a gente foi ler o edital e viu que os

concorrentes tinham que ter prática na agricultura, até aí a gente achou

bom, que tinha que ter uma contrapartida de 25% do custo do lote,

isso a gente já não tinha e exigia um grau de escolaridade. A gente

sabe que é histórico o analfabetismo no Nordeste e, principalmente,

em Juazeiro. Isso gerou uma revolta muito grande, a gente se

mobilizou. A gente foi para Brasília e conseguiu uma área para

implantar um projeto com 220 lotes na Baixa do Umbuzeiro e que irá

beneficiar apenas os salitreiros escolhidos pelas UAVS e que

participam dos movimentos. Houve depois uma discordância do povo

que dizia: ah, se é para o salitreiro tem que ser para todo mundo. Mas

a gente tem priorizado as pessoas que participam, que correm atrás,

149 Lindu era uma das lideranças camponesas que atuava no movimento contra a implantação do Projeto

Salitre nos moldes empresariais. Morador do povoado do Horto, faleceu acometido por um acidente

vascular cerebral sem ter concretizado o sonho de ver os salitreiros ocupando o Projeto Salitre.

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que buscam, mesmo porque aqueles que não buscam não é por falta de

convite. (Informação verbal, 26/04/2013).

Ainda, como forma de organização social e fortalecimento das lutas, foi criada

em 2003 a UAVS, integrando atualmente 29 comunidades e 302 produtores. Em 2009

foi lançado pelo Ministério da Integração Nacional, via CODEVASF, o edital de

seleção150para a ocupação de 255 lotes para irrigantes familiares bem como o aviso de

licitação para a venda de áreas irrigáveis destinadas à implantação de empreendimentos

agrícolas, agropecuários e agroindustriais no perímetro151.

O Projeto Salitre (Mapa 14) faz parte do PAC, recebendo investimentos da

ordem de R$251,5 milhões, sob o formato das PPP. A previsão inicial era de que as

obras do perímetro irrigado seriam concluídas em 2015, porém encontram-se em atraso.

Quando concluído, serão 944 lotes para irrigantes familiares e 485 lotes empresariais,

integrados ao circuito produtivo da cadeia frutícola do polo Juazeiro/Petrolina, região

com condições favoráveis para o escoamento da produção.

A Etapa I do Perímetro Irrigado Salitre foi inaugurada no dia 05 de março de

2010, pelo então presidente Luís Inácio Lula da Silva, sendo destinados 255 lotes com

6,6 hectares para pequenos irrigantes e 66 lotes para médias empresas. Ressalte-se que

apenas 08 agricultores das comunidades do vale do Salitre foram contemplados com

lotes no perímetro irrigado do Salitre, fato que acabou gerando grande insatisfação entre

as comunidades, pois a implantação desse empreendimento na região foi realizada com

o propósito de sanar os conflitos pelo acesso à água nas comunidades localizadas na

parte baixa do Salitre.

150 Os critérios estabelecidos pelo edital para seleção dos irrigantes foram os seguintes: a) Experiência em

agricultura irrigada e sequeiro (25 pontos); b) Condições econômicas (10 pontos; c) Grau de instrução (15

pontos). Em caso de empate, seriam considerados os seguintes critérios de desempate: a) Comprovada

experiência em agricultura irrigada; b) Comprovada condição econômica; c) Comprovada escolaridade

(grau de instrução); d) Comprovada experiência em agricultura de sequeiro; e) Casado. 151 Edital Nº19/2009.

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Percebe-se que os impactos positivos do Projeto Salitre são superdimensionados

por parte da CODEVASF, ao passo que os problemas decorrentes de sua implantação

sequer são mencionados, pois há um esforço no sentido de “limpar” todos os indícios

negativos que possam colocar em xeque a viabilidade e envergadura do referido

empreendimento, no tocante à promoção do desenvolvimento regional. De fato, poucas

foram as famílias beneficiadas diretamente, até o momento, com a implantação do

Projeto Salitre, pois o que vem acontecendo é a incorporação paulatina e instável dos

moradores das comunidades localizadas nas adjacências do perímetro irrigado, nas

lavouras irrigadas como diaristas ou arrendatários.

Desde os anos de 1960, os perímetros irrigados no Nordeste semiárido

assumiram o papel de expandir a fronteira agrícola por regiões, até então, pouco

atrativas para o grande capital, com destaque para a produção destinada ao mercado

externo. Se pensarmos a perspectiva dos perímetros irrigados no Semiárido baiano e a

conjugação de seus efeitos, conclui-se que estes cumprem um importante papel no

contexto da reestruturação produtiva do território nordestino, ao passo que trazem à tona

o hibridismo característico das políticas públicas de “modernização do campo”

implementadas pelo Estado na região semiárida nordestina.

Há uma constante inversão de perspectiva no cerne dos perímetros irrigados

porque a justificativa para a sua implantação é promover o desenvolvimento das

comunidades/famílias localizadas na área dos empreendimentos, porém, quando

instalada a infraestrutura hídrica, são adotadas medidas que privilegiam a agricultura

empresarial e promovem uma inclusão marginal dos camponeses no processo produtivo,

via mão de obra precarizada. Tem-se, nesse universo, um duplo processo de

desterritorialização porque os camponeses perdem o controle sobre os seus territórios e

ficam sujeitos a lógicas distintas que levam, muitas vezes, à desestruturação de seus

modos de vida.

Por não atender às demandas das famílias salitreiras, o Projeto Salitre

transformou-se num conflituoso campo de disputas, entre o campesinato, o Estado e o

agrohidronegócio, no Submédio São Francisco, sendo visto, por estes sujeitos, como um

território hídrico a ser desapropriado e reapropriado pelos salitreiros, revelando assim o

“conteúdo territorial do tensionamento vivo da luta de classes” (THOMAZ JUNIOR,

2011a, p. 17). Nessa correlação de forças desiguais envolvendo a luta pela terra e pela

água, torna-se imperioso pensar sobre os usos da terra e do território entre os sujeitos

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sociais do campesinato e o capital, de modo a colocar em xeque a matriz paradigmática

desenvolvimentista uniformizada adotada para o campo, por concebê-la como um risco

para as comunidades camponesas, por causar esfacelamento da identidade individual e

coletiva, além de subjugá-las aos ditames do agrohidronegócio.

Cabe destacar que há um hibridismo dos sujeitos que se colocam no front de

batalha contra a entrega do Projeto Salitre para o grande capital.A materialidade do

conflito revela a complexidade da luta pela terra e pela água no vale do Salitre, em

decorrência do jogo de alianças políticas, do direcionamento e propósitos do Estado

bem como da conformação dos sujeitos que protagonizam os embates contra o sistema

sociometabólico do capital.

As pesquisas de campo permitiram identificar diferentes sujeitos e

territorialidades nas ações de resistência, cujas dimensões espaciais e territoriais estão

para além das delimitações geográficas da própria bacia do Salitre. Ao visitar o

acampamento Abril Vermelho no Projeto Salitre, verificamos que a luta pela terra e pela

água nessa regiãonão é produto apenas dos salitreiros, o que torna ainda mais complexa

a compreensão da dimensão reivindicatória que a concepção “Salitre para os salitreiros”

traz em seu cerne. As proliferações rizomáticas intrínsecas às disputas territoriais

desvelam novos vínculos e significados – tanto no que se refere ao espaço quanto ao

território – decorrentes da expansão do agrohidronegócio no Semiárido baiano.

Do ponto de vista da ciência geográfica, o cenário das disputas territoriais e de

classes no Semiárido baiano requer uma interpretação dos sujeitos sociais

historicamente desterreados e forçados a incorporar o discurso dos vencedores, (leia-se

do Estado e do capital), tendo suas práticas, saberes e modos de vida depreciados,

porque obstaculizam a dinâmica do capital, gerando anomalias ao seu processo

expansionista. Importa ressaltar que esses sujeitos se realizam pelo trabalho, aqui

entendido como condição ontológica do ser social e, por causa disso, o acesso à terra e à

água ganha uma dimensão profunda porque representa a materialidade de sua

(Re)Existência152, entendida, nesse contexto, como um emaranhado complexo de ações

que permite aos sujeitos resistir aos processos desterritorializantes e, por outro lado,

manter os seus costumes, suas formas de “ser” e “estar” no mundo. Assim, o par

dialético resistência-existência, no cerne da luta pela terra e pela água, representa um

152 Termo tomado de empréstimo de Mendonça (2004).

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dos aspectos da conflitualidade materializada no território, em que construção e

desconstrução revelam quais interesses, sujeitos e racionalidades são hegemônicos.

5.3 A chegada do “estranho”: a conflitualidade entre o MST e os salitreiros

Considerando o contexto atual, a luta pela terra e pela água coloca-se como

travagem para a expansão e reprodução do capital no campo porque envolve questões

político-ideológicas entre sujeitos antagônicos. Isso, por si só, já tornaria a questão

complexa porque entra em cena a luta de classes como possibilidade emancipatória.

Nesse universo, a modernização conservadora da agricultura produz novas relações

sociais, quer de aproximação, quer marcadas pela conflitualidade, expressando a

inexistência de discursos únicos e formashomogêneas de pensar. É na multiplicidade de

pensamentos, na diversidade de discursos e concepções materializados no território que

buscamos analisar e interpretar a conflituosa relação estabelecida entre os camponeses

salitreiros e o MST, no Projeto Salitre, pois, através desta, é possível compreender como

a fragmentação, no interior da classe trabalhadora, se transforma num obstáculo à busca

pela emancipação social.

Quando o MST chegou à região do Salitre, as comunidades já estavam

organizadas e haviam começado a reivindicar junto à CODEVASF o “Projeto Salitre

para os salitreiros”. Nesse caso específico, a chegada do MST na região sofreu

resistência tanto por parte do Estado quanto pelas comunidades salitreiras que passaram

a ver, no movimento, um adversário que podia obstaculizar o atendimento das

reivindicações. Iniciou-se, assim, dois movimentos reivindicatórios: um de luta pela

terra, encampado pelo MST e outro, o “Movimento dos Sem-Água”, representado pelos

salitreiros, evidenciando o estranhamento no interior da classe trabalhadora, reforçado

pelas identidades territoriais. A gênese do interesse do MST pelo Projeto Salitre pode

ser verificada através do discurso do articulador regional do movimento, P. C. C. de S.:

A ideia de ocupar o Projeto Salitre surgiu desde quando surgiu a

discussão desse projeto. A CODEVASF, junto com o governo federal,

vem implementando esse projeto há muito tempo. Mas intensificou a

partir de 2003 com a vitória de Lula. A promessa era que o Projeto

Salitre teria 20% da área para empresários e 80% para pequenos

produtores e salitreiros. O Projeto Salitre era a esperança para todo o

povo – salitreiros e ribeirinhos – que achava que o governo federal ia

implementar um projeto que ia levar água para todo mundo e, como

essa região é típica na produção de frutas, todo mundo pensou que ia

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começar a produzir frutas e desenvolver a produção na região. Só que

logo bateu a decepção quando saíram os primeiros lotes e nenhum

pequeno foi contemplado. Os critérios usados pela empresa só

contemplavam grandes empresários aqui do comércio, os funcionários

públicos e grandes empresas, como a Agrovale, do setor

sucroalcooleiro. Aí começou o conflito. (Informação verbal,

07/05/2013).

Mesmo com a participação de algumas famílias salitreiras na ocupação feita pelo

MST ao Projeto Salitre em 2005, percebe-se que a inexistência de um “pacto agrário”

entre esses sujeitos provocou uma cisão na luta contra o Estado e o capital, de modo que

enfraqueceu significativamente a potencialidade dos movimentos contestatórios. Ficou

evidente, a partir dos discursos da presidenta da UAVS e da liderança regional do MST

em Juazeiro, que nenhuma das organizações lutou contra a implantação do Projeto

Salitre, visto que esse representava, ainda em sua fase embrionária, a possibilidade dos

camponeses terem, a um só tempo, no Semiárido, o acesso à terra e à água, sem

necessariamente estarem sob o jugo dos latifundiários. Havia, de certo modo,

divergências no cerne das lutas travadas no Projeto Salitre, porque, para o MST, “quem

tem terra tem poder153”, numa clara referência a terra enquanto território, enquanto, para

o “Movimento dos Sem-Água”, formado pelos salitreiros, o acesso à água era a

prioridade. Embora compreendamos que terra e água são indissociáveis para reprodução

do campesinato caatingueiro, construíram-se, inicialmente, distintas bandeiras de luta

entre os sujeitos participantes do processo, causando distanciamento entre si. Terra e

água foram utilizadas de modo dissociado, talvez pela própria trajetória de vida dos

sujeitos. Para os salitreiros, a questão hídrica apresenta-se como o elemento aglutinador,

o escopo da luta, ao passo que, para os integrantes do MST, a questão agrária é a

centralidade dos embates, o polo irradiador do movimento e da organização camponesa

no enfrentamento ao latifúndio e ao agrohidronegócio. Em função dessas

particularidades, defendemos que terra e água são dimensões da questão agrária,

portanto, não devem ser tratadas de maneira dissociada, como destaca Porto-Gonçalves

et al. (2014, p. 157-8):

A questão da água está intimamente ligada à questão fundiária e, por

aí, à questão (da reforma) agrária, pelo fato de não se plantar sem

água. Em termos agrários e rurais, não se democratiza a água sem

democratizara terra! Registre-se que cerca de 70% do consumo global

153 Camponesa do acampamento Abril Vermelho, 02/05/2013.

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de água não se dá no mundo urbano e tampouco na prática industrial,

mas sim na agricultura, número esse que deriva do uso intensivo da

água pelo modelo técnico-produtivo do agronegócio! Enfim, as

manifestações em torno da água sinalizam para as profundas

implicações entre o mundo rural e o mundo urbano, para a relação

sociedade-natureza. Isso se manifesta claramente seja no caso das

barragens tomando/alagando terras indígenas e de ribeirinhos, seja nos

casos em que há poluição das águas pelo avanço das monoculturas

empresariais que impedem camponeses/ribeirinhos e indígenas de

desenvolverem suas práticas agrícolas, de caça e coleta e, até mesmo,

sobreviverem.

Nesse diapasão, pensamos que a valorização do território e as complexas

relações nele estabelecidas podem ser aspectos importantes a serem considerados na

análise da luta pela terra e pela água no Projeto Salitre, porque, até o presente momento,

não ocorreu uma unificação das reivindicações, favorecendo um maior controle social

por parte do Estado e do capital. No acampamento Abril Vermelho, os salitreiros são

vistos como “estranhos” porque não se inserem nas atividades coletivas, pois, mesmo

tendo uma área para cultivo, todo o trabalho é feito individualmente;já, entre os

acampados do MST, a ajuda mútua,o envolvimento de todos com as tarefas cotidianas é

uma das premissas do acampamento. Assim, o acampamento para o salitreiro é um

espaço pouco representativo do ponto de vista do enfrentamento, sem conteúdo

simbólico e político, ao passo que, para os integrantes do MST,é um território

conquistado, representando poder frente ao agrohidronegócio e ao Estado, pois, como

destaca Feliciano (2006, p. 108) “[...] o sentido da ocupação como ação contestadora

também se dá na esfera política e simbólica”. O distanciamento entre os salitreiros e o

MST evidencia que a luta pela terra pode envolver diferentes perspectivas e vieses

ideológicos: para o salitreiro, trata-se de uma questão de pertença e de identidade

territorial, enquanto, para os integrantes do MST, as disputas territoriais estão

fundamentadas no embate político-ideológico de enfrentamento ao

agrohidronegócio.Ao analisar as relações entre os diferentes sujeitos acampados,

verificamos que esse território é produzido a partir de distintas perspectivas e “ganha

múltiplos sentidos”, conforme menciona Feliciano (2006). Ao se debruçar sobre o

processo de formação e territorialização do MST no Brasil, Fernandes (1996, p. 42)

define os acampamentos como:

[...] espaços e tempos de transição na luta pela terra. São, por

conseguinte, realidades em transformação. São uma forma de

materialização dos sem-terra e trazem em si os principais elementos

organizacionais do movimento. Predominantemente, são resultados de

ocupações.

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É fato que a luta pela terra e pela água no Semiárido engloba uma ampla gama

de interesses, de sujeitos e de conteúdos políticos. Nesse sentido, concordamos com

Germani (2010, p. 281-2) quando a autora destaca que se pode

fazer uma distinção da luta pela terra – empreendida pelos

trabalhadores rurais sem terra – com a luta na terra empreendida pelos

povos e comunidades tradicionais, mas, não obstante suas

especificidades, estas têm um denominador comum que é a questão

agrária, entendida, também, como uma questão territorial.

As conquistas alcançadas pelos movimentos sociais e organizações comunitárias

no Submédio São Francisco junto à CODEVASF ainda são, do ponto de vista material,

pouco representativas porque sua concretização coloca-se num horizonte distante,

enquanto o avanço do capital sobre a área do perímetro irrigado faz-se de forma rápida,

deixando transparecer a sua hegemonia e superioridade. Embora a liderança do MST em

Juazeiro (Regional Norte) tenha mencionado que a maioria das famílias do

acampamento Abril Vermelho sejam salitreiras, o que podemos constatar, através da

exposição da presidenta da UAVS e das visitas ao acampamento, é que a fragmentação

perdura sem que haja lampejos de uma possível unificação no futuro. O Projeto Lindu e

o Abril Vermelho são indicadores dessa cisão, evidenciando as disputas territoriais no

cerne da luta pela terra e pela água, mediante a separação dos espaços e dos sujeitos que

fazem o enfrentamento ao Estado e ao grande capital. Mesmo verificando a presença de

alguns salitreiros junto aos acampados, sua relação é diferenciada e seu envolvimento

com o MST é superficial, visto que é sob o barraco de lona – no frio ou no calor - que a

coesão se materializa.

Por outro lado, é necessário reafirmar a importância das diferentes formas de

resistência ao capital, pois explicitam a heterogeneidade de sujeitos envolvidos na luta

pela terra e pela água no Semiárido baiano. Embora as sociabilidades, as memórias da

terra, as identidades territoriais tenham em comum a concepção da terra, não como

mercadoria, mas como território de vida mediado pelo trabalho, as possibilidades

emancipatórias podem apresentar distintas perspectivas, sem, contudo, descaracterizá-la

ou torná-la ilegítima.

5.4 Acampamento Abril Vermelho: expressões polissêmicas da luta pela terra e pela

água no vale do rio Salitre

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298

É imperioso buscar novos horizontes para o modelo de desenvolvimento

pensado para o Semiárido nordestino – aqui, especificamente, a sua porção no estado da

Bahia –, visto que os postulados que referenciam a implantação dos projetos de

irrigação pautados na perspectiva empresarial não consideram as demandas e

particularidades locais e, ainda,transformam os territórios da vida em palco de riscos,

incertezas e vulnerabilidades. Esse modelo de desenvolvimento e suas expressões no

Semiárido baiano têm gerado uma fragmentação dos sujeitos e das realidades, sendo

estes concebidos a partir de uma visão desintegradora, o que impede a inteligibilidade

dos problemas que perpassam as uniformidades e a linearidade presentes na ideia de

modernidade, intrínseca ao agrohidronegócio.

Os diversos projetos desenvolvimentistas implantados no Semiárido baiano

constituem a base para a expulsão de camponeses de seus territórios, comprometendo a

base social e ecológica da Caatinga, visto que esse bioma tem sido,cada vez mais,

suprimido para ceder lugar a perímetros irrigados, à mineração, a barragens e, mais

recentemente, aos parques eólicos, que avançam sobre os lugares, até então, à margem

da sanha desenvolvimentista do capital. O crescimento econômico do país possui

intrínseca relação com a degradação/mercadorização da água – água de trabalho –,

colocando em risco as atividades produtivas tradicionais adaptadas às diferentes

condições socioecológicas da região.

A primeira ocupação feita pelo MST no Projeto Salitre ocorreuem 2007, após o

resultado do edital de seleção dos irrigantes para a Etapa I do perímetro irrigado,

quando os critérios estabelecidos pela CODEVASF inviabilizaram a participaçãodos

salitreiros, pois, entre as exigências, estavam ter experiência em irrigação, possuir

recursos financeiros para investir no lote e ter concluído o ensino médio. Ressalte-se

que os investimentos iniciais necessários para a manutenção de um lote no perímetro

irrigado era da ordem de R$30 mil reais. Para a presidenta da UAVS, trata-se de um

“edital excludente154” porque eliminou todas as possibilidade de os salitreiros

concorrerem aos lotes.

De acordo com a liderança do MST na região de Juazeiro, a primeira ocupação

no Projeto Salitre durou 1 ano, havendo a reintegração de posse da área pela Polícia

Federal. Em 2008, foi realizada nova ocupação com a participação de aproximadamente

1.000 famílias, momento em que a CODEVASF convocou as lideranças do movimento

154 Informação verbal, 26/04/2013.

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299

para estabelecerem uma negociaçãoque envolveu a mobilização de várias instâncias do

governo (federal e estadual), para resolver a situação e liberar o empreendimento para as

empresas do setor frutícola e sucroalcooleiro.

A CODEVASFpropôs a criação de um assentamento para os acampados no

município de Sobradinho, a 23 km de Juazeiro, contemplando 600 famílias com lotes de

terra para viabilizar a produção familiar. Assim, implantou-se o assentamento Vale da

Conquista, nos arredores do perímetro urbano de Sobradinho, com a promessa de

atender às reivindicações das famílias acampadas no Salitre – moradia, água tratada e

terra regularizada, entre outras –, permitindo assim a viabilidade técnica para a

permanência dessas famílias na terra conquistada. De acordo com informações

disponibilizadas pela CODEVASF, foram alocados, para a implantação do

assentamento Vale da Conquista, R$13,5 milhões, recurso repassado ao INCRA para a

aquisição das terras (13 mil hectares) e para a regularização fundiária. Como parte do

acordo, foi construída uma adutora de 6400 metros para abastecer o assentamento,

embora tal informação tenha sido refutada pela liderança regional do MST. Segundo

esse líder e informante desta pesquisa, o INCRA disponibilizou água apenas para o

consumo humano. Ressalte-se que não houve nenhuma garantia, por parte da

CODEVASF, em relação aos demais acampados, um total de 400 famílias, segundo a

liderança do MST.

A escolha do local para o assentamento das famílias é um aspecto a ser

analisado, porque evidencia o interesse por parte do Estado em fazer a “limpeza” do

espaço para que o modelo tecnocrático de desenvolvimento adotado para o campo possa

prosperar. Essa decisão da CODEVASF levou em consideração a postura adotadapelo

Estado em ocultar as iniciativas de contestação ao modelo vigente, buscando manter os

camponeses afastados das áreas economicamente valorizadas e tecnicamente

modernizadas, pois a existência de conflitos pela posse da terra e pelo uso da água

podem causar desinteresse e desconfiança por parte dos empresários que buscam

lugares atrativos para realizar seus investimentos.

Os conflitos pela terra e pela água têm ocorrido justamente nos lugares que

receberam grandes investimentos do Estado, tornando-os atrativos para o grande capital,

evidenciando lógicas contraditórias de uso e de apropriação do espaço geográfico. Esses

investimentos,no Semiárido brasileiro, têm favorecido a territorialização do capital

financeiro, que passa a usufruir dos recursos públicos que viabilizam a produção, a

distribuição, a circulação e o consumo dos produtos. Novas territorialidades são criadas

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300

na tentativa de eliminar os resquícios de atraso econômico dessa região, por considerá-

la como “espaços desabitados”, o que acaba gerando conflitos. Para Germani (2010, p.

289), o

Estado cumpre um importante papel nesse processo como agente de

produção e valorização do espaço quer através de seus investimentos

diretos, quer através de suas políticas em diferentes áreas, dimensões e

escalas. Uma ação que confirma ou exclui espacialidades e

territorialidades.

Diante dos conflitos, o Estado assume a função de mediador dos interesses de

sujeitos antagônicos, adotando medidas paliativas, com o intuito de provocar a

desmobilização dos movimentos sociais. Para garantir a saída do MST do Projeto

Salitre, a CODEVASF comprometeu-se a realizar uma série de ações, conforme relato

de P. C. C. de S.,pertencente à liderança do MST em Juazeiro:

Nesse acordo que a CODESVAF e o Governo Federal fizeram com os

Sem Terra, previa imediatamente após 60 dias a construção de casas,

regularização da terra e irrigação de 80 hectares para as 600 famílias.

Então as famílias foram lá para Sobradinho. Eles [o Governo Federal]

prometeram compraram 13 mil hectares, mas até hoje, compraram 5

mil apenas. Segundo eles, tem 2 mil ainda sendo incrementado e falta

comprar 6 mil. Dos 5 mil hectares que eles compraram a terra está lá

ainda sem funcionamento. A CODEVASF começou a viabilizar 80

hectares, mas parou no meio, largou lá no ponto de concluir. Depois

de quatro anos o pessoal continua acampado sem casa [...] o pessoal

está há quatro anos morando debaixo de barraquinho de lona. Tem

escola por causa da prefeitura de Sobradinho que tem feito um

trabalho no assentamento, mas não tem colégio. A escola está no

barraquinho, não está legalizada pelo Governo do Estado e por conta

disso a Prefeitura fala que não pode construir a escola. Então, a

situação dessas 600 famílias que se encontram lá é desumana.

(Informação verbal, 07/05/2013).

Durante a visita ao assentamento Vale da Conquista, constatou-se o caráter

polissêmico que a luta pela terra pode assumir no contexto das ações do Estado, o qual

se utiliza de tramas e urdiduras para deslegitimar o processo de resistência dos

camponeses, dos trabalhadores rurais e das políticas de assentamentos rurais. O

assentamento Vale da Conquista que, em sua gênese, constitui o chamamento

emancipatório, transformou-se num local sem as condições mínimas necessárias para

que as famílias assentadas possam ter uma vida digna (Foto 12), cujas condições

precárias de habitação, inexistência de serviços básicos e de apoio por parte dos órgãos

de Estado criam sociabilidades estranhadas.

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301

Foto 12 – Assentamento Vale da Conquista – Sobradinho (BA).

Fonte: Trabalho de Campo, maio de 2013.

Autor: DOURADO, J. A. L.

Ao negar a legitimidade das reivindicações feitas pelas famílias

acampadas/assentadas, a CODEVASF reforça a imagem do agrohidronegócio como o

único ou o mais relevante modelo a ser adotado para incrementar economicamente a

região e, nesse sentido, deixa expostas as combinações regressivas do processo de

mobilização social em favor dos grandes empreendimentos e da agricultura capitalista.

A realidade do assentamento Vale da Conquista desconstrói o discurso do Estado, visto

que, segundo a gerência da 6ª sessão Regional da CODEVASF, o órgão tem dado todo

o apoio aos assentados, inclusive disponibilizando-lhes a infraestrutura adequada para

que possam produzir. Sobre a presença do MST no Projeto Salitre, a gerência da

CODEVASF em Juazeiro teceu críticas tanto no que se refere à legitimidade da ação

das lideranças do Movimento quanto às reivindicações feitas pelas famílias, por

acreditar que estas já foram atendidas:

Quanto ao MST, quando foi implantada a primeira etapa, eles tinham

ocupado as terras para pressionar o então presidente LULA que na

época atendeu as reivindicações. As reivindicações deles eram que

eles também queriam áreas para eles assentarem, queriam água tratada

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e também queria ter casas. Na época do acordo que foi feito

envolvendo a Casa Civil da Presidência da República, a Presidenta

Dilma era a chefe da Casa Civil e o Pedro Bertoni era o preposto desse

processo e foi feito um acordo e o MST escolheu áreas no município

de Sobradinho. Compramos as áreas que eles queriam, mas há ainda

uma parte das terras que necessita fazer a regularização fundiária.

Fizemos a doação da terra que estava regularizada para o INCRA.

Fizemos um perímetro pequeno para a associação deles em

Sobradinho, só que o INCRA não cumpriu com sua parte no acordo.

Aí eles [os acampados] por não sei qual motivo, resolveram pressionar

o INCRA (vamos invadir de novo o perímetro da CODEVASF para

forçar uma negociação) como se foi assim: se agente provocar o

INCRA e não resolver, vamos criar um problema lá no Projeto. É um

desrespeito aos compromissos da CODEVASF. Só que politicamente,

você sabe como o MST age; então nós envolvemos o presidente da

CODEVASF, o Ministro da Integração, a Secretaria Geral da

Presidência da República e hoje esse assunto está sendo tratado pela

Secretaria Geral da Presidência da República, até porque a gente quer

concluir o processo. Enquanto eles [o MST] estiverem lá dentro é um

fator inibidor de atrativos, inclusive empresariais, pois nenhum

empresário vai querer implantar uma empresa numa área que pode ser

objeto de conflito; um conflito que ainda não está devidamente

regularizado. Então, nós estamos trabalhando juntos, dialogando com

o Movimento; o Movimento dialogando diretamente com a

Presidência da República para poder sanar e a gente espera que, até o

final desse ano, essa questão também esteja resolvida. (Informação

verbal, 04/05/2013).

Durante as entrevistas com os assentados, estes expuseram as dificuldades

enfrentadas no decorrer da luta pela terra, revelando aspectos do atraso que representa a

ação do Estado no âmbito da questão agrária, ou seja, a repaginação de práticas e

política arcaicas a serviço do agronegócio e das elites agrárias. Os signos e significados

da modernidade e do progresso retratados e difundidos pela cadeia ideológica do

agronegócio ficam, todavia, esvaziados de sentido com a absoluta miséria vivida por

centenas de famílias camponesas nos assentamentos/acampamentos do Médio São

Francisco. Se, por um lado, Juazeiro representa um polo de desenvolvimento para a

agropecuária capitalista, por outro, para os camponeses (salitreiros, não salitreiros) e

para os trabalhadores da cadeia produtiva do agronegócio, significa um território de

disputa e de materialização dos signos das relações de poder e das desigualdades

sociais, inerentes ao modelo socioeconômico impositivo que devassa a organização

social em busca do controle social dos trabalhadores. Nesse contexto, as estratégias

cotidianas de vivência dos camponeses caatingueiros bem como dos trabalhadores das

periferias das cidades de Juazeiro e Petrolina e até de municípios mais distantes revelam

as capilaridades internas e a arquitetura da luta pela terra no contexto do Projeto Salitre,

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trazendo à tona novos conflitos e disputas que redefinem o cenário criado pelo discurso

desenvolvimentista.

Para Thomaz Junior (2008b, p. 290):

De forma orquestrada estão sendo destruídas as culturas tradicionais,

as comunidades camponesas, os empregos, as diferentes experiências

que se efetivam no dia-a-dia das lutas, nos grotões e em qualquer

lugar onde se apresentam as resistências e ocorrem os conflitos, com

base no modelo hegemônico e único de desenvolvimento que fascina e

atrai diferenciadas parcelas da sociedade às suas teses, sobretudo, à

necessidade intrínseca que esses pressupostos passam a ter como

condição para o ingresso na modernidade, sem antes se colocar em

questão os conteúdos do sistema metabólico e da estrutura de classes e

suas alianças, que lhes dão sustentação.

As entrevistas com a liderança do MST e com a gerência da CODEVASF

evidenciaram uma questão bastante comum no cerne das disputas políticas e ideológicas

travadas entre o Estado e os Movimentos Sociais. Segundo a CODEVASF, todas as

reivindicações feitas pelas famílias assentadas no Vale da Conquista já haviam sido

atendidas, inclusive a implantação do perímetro irrigado para viabilizar a produção

agrícola no assentamento, mas tal informação foi contestada pelo MST que destacou o

desrespeito aos acordos feitos durante as negociações com o governo federal. Ao visitar

o assentamento Vale da Conquista, verificou-se que as lavouras desenvolvidas pelos

assentados estão restritas a minúsculos cercados (quintais produtivos) – onde são

cultivados milho, batata, banana e feijão (Foto 13) –, havendo um único assentado, que

possui uma pequena área cultivada com milho, cuja irrigação é feita através de

mangueiras (Foto 14).

Foto 13 – Plantação de batata, milho e banana – Assentamento Vale da Conquista,

Sobradinho (BA).

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304

Fonte: Trabalho de Campo, maio de 2013.

Autor: DOURADO, J. A. L.

Foto 14 – Lavoura de milho irrigada por mangueiras – Assentamento Vale da

Conquista, Sobradinho (BA).

Fonte: Trabalho de Campo, maio de 2013.

Autor: DOURADO, J. A. L.

O perímetro irrigado ao qual se referiu o gerente regional da CODEVASF, em

Juazeiro, sequer foi concluído, pois a obra foi paralisada sem justificativa, dificultando

significativamente a permanência na terra, devido ao fato de as famílias terem que

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buscar fonte de renda em outras atividades, inclusive migrando para a cidade de

Juazeiro para trabalhar, como diaristas (boias-frias), nas lavouras do Projeto Salitre.

Deslocar as famílias acampadas para o município de Sobradinho foi uma estratégia bem

sucedida adotada pelo Estado para favorecer duplamente o capital: afastou os

“invasores” dos territórios do agrohidronegócio, sem eliminá-los da cadeia produtiva da

fruticultura, pois, em tempos de safra, os empresários recorrem a esses sujeitos para

trabalharem como diaristas. Essa reserva de mão de obra contribui para manter estável o

valor pago aos trabalhadores, de modo a não haver elevação com os custos, garantindo

as condições necessárias para a reprodução do capital.

No assentamento Vale da Conquista, a área foi desmatada, mas a infraestrutura

para irrigação está inacabada e inutilizada, não havendo uma previsão de quando as

obras serão retomadas, visto que, para a CODEVASF, o perímetro irrigado já foi

entregue aos assentados. Destaque-se que, enquanto os camponeses sofrem com os

desdobramentos das ações contraditórias do Estado, que busca deslegitimar e desvirtuar

a luta pela terra, grandes projetos desenvolvimentistas avançam sobre os territórios

camponeses, como é o caso do parque eólico da Renova Energia (Foto 15), no

município de Sobradinho, implantado no topo das serras. Essas áreas geralmente são

utilizadas pelos camponeses para a extração de madeira, coleta de mel, frutas silvestres,

fibra vegetal e para a criação de gado “solto”.

Foto 15 – Perímetro irrigado do Assentamento Vale da Conquista, Sobradinho (BA). Ao fundo,

aerogeradores do Parque Eólico da Renova Energia.

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306

Fonte: Trabalho de Campo, maio de 2013.

Autor: DOURADO, J. A. L.

O Acampamento Abril Vermelho (Foto 16) foi criado, em abril de 2012, com

1.200 hectares do Projeto Salitre, dos quais 960 hectares estão ocupados com lavouras

desenvolvidas pelas 400 famílias acampadas. As famílias montaram acampamento

próximo a um dos canais de distribuição de água do Projeto Salitre e passaram a captar

água por meio de motobombas para irrigar as lavouras de milho, melancia, cebola,

melão, alho e hortaliças, além da criação de animais de pequeno porte, caprinos, ovinos,

suínos e aves. A CODEVASF, diante da resistência das famílias em permanecer na área,

tem adotado a postura de não interromper o fornecimento de água do canal, pois há um

forte interesse em manter o movimento “pacificado”, de modo a não prejudicar a

ocupação dos lotes empresariais.

Foto 16 – Acampamento Abril Vermelho – Município de Juazeiro (BA).

Fonte: Trabalho de Campo, maio de 2013.

Autor: DOURADO, J. A. L.

Não houve a divisão dos lotes entre as famílias, tendo cada uma delas recebido

em média 2 a 3 hectares para cultivar, havendo também a produção coletiva. O tamanho

dos lotes para o agricultor familiar é de 6 hectares, mas para que o acampado obtenha

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essa quantia de terra terá que comprovar sua capacidade de trabalhar junto às lideranças

do MST que coordenam a ocupação. A área do acampamento ocupada com lavouras

ainda não dispõe de infraestrutura de irrigação e a água captada do canal de distribuição

do Projeto Salitre é levada até as plantações através de sulcos. Esse modo tradicional de

irrigação consome muita água por causa da infiltração, fator limitante para os

camponeses do acampamento Abril Vermelho porque, durante o período de irrigação

das lavouras, o nível de água do canal diminui significativamente.

Para fazer a gestão da água no acampamento, as lideranças do MST criaram um

comitê para monitorar o uso e a distribuição da água o que se mostrou eficiente até o

momento, já que nenhum conflito interno relacionado à água foi registrado, mesmo com

a expansão das lavouras. A água para o consumo humano também é retirada do canal de

irrigação, representando riscos para a saúde das pessoas, visto que a água pode estar

contaminada com agrotóxicos.

Em relação à água utilizada para o consumo humano no acampamento, a

liderança do MST na região destaca que,

[...] quando a gente ocupou, buscamos um local privilegiado. Nós

começamos a usar a água do canal que passa pelo acampamento, onde

controlamos o uso dentro do nosso acampamento. Criamos uma

coordenação de água e vamos distribuindo, deixando passar para

poder atender os colonos. Agora essa água não é adequada para

consumo humano; é própria para a produção, pois vem dos canais de

irrigação e os canais, como a agricultura aqui é bastante convencional,

usa-se muito agrotóxico. Como a água não é adequada para consumo,

a gente tem pedido para o pessoal tratar de forma artesanal a água,

enquanto que outros vão à comunidade próxima de Campos dos

Cavalos que tem um sistema de água para encher os botezinhos e traz

para o consumo humano, mas a nossa produção tá tranquilo.

(Informação verbal, maio de 2013).

Toda a produção agrícola do acampamento Abril Vermelho é direcionada ao

CEASA da cidade Juazeiro. Como os acampados não dispõem de transporte nem local

adequado para a comercialização dos produtos agrícolas, a compra é feita por

atravessadores e proprietários de galpões de frutas no próprio acampamento (Foto 17).

O CEASA de Juazeiro fornece frutas e verduras para o mercado do Centro-Sul do país,

além de exportar produtos para o mercado europeu155. É nesse local que os produtos do

trabalho e da resistência camponesa são “misturados” aos produtos do agronegócio,

155Cf. Bezerra (2012) e Sousa (2013).

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invisibilizando, perante a sociedade, a importância da luta pela terra e pela água travada

diariamente entre o campesinato e o agronegócio.

Foto 17: Compra de produtos por atravessadores no Acampamento Abril Vermelho

Fonte: Trabalho de Campo, Maio de 2013.

Autor: DOURADO, J. A. L.

Pensamos que, assim como os sujeitos possuem uma identidade territorial, os

produtos trazem em si um conteúdo político e uma identidade relacionada ao seu

território, ou seja, o lugar, os propósitos e as formas como estes foram produzidos

refletem perspectivas político-ideológicas e correlações de forças desiguais. O capital já

se beneficia eficientemente dessa concepção, ao propor o selo de Indicação Geográfica

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(IG), utilizado para agregar valor aos produtos e para alcançar nichos específicos de

mercado. Assim, acreditamos que, quando os produtos do acampamento Abril

Vermelho são comercializados no CEASA, os prejuízos são de ordemeconômica – em

virtude da presença da figura do atravessador – e política porque, para a sociedade, não

há uma distinção entre o que é produzido pelo agronegócio e pelo campesinato. Em

decorrência do discurso midiático que reproduz a ideia equivocada de eficiência e

produtividade do agronegócio, a comercialização, no CESASA, dos produtos

produzidos no acampamento Abril Vermelho fortalece ainda mais a pujança desse setor

perante a sociedade local, para quem fica evidente que toda a dinâmica do Mercado do

Produtor depende do agronegócio.

O CEASA, além de local do comércio dos produtos oriundos da agricultura

irrigada no Semiárido, transforma-se numa vitrine para o capital e para o Estado

exibirem à sociedade a importância das ações desenvolvidas com vistas a modernizar a

produção no campo, tornando-o mais eficiente esendo uma estratégia para acabar com a

pobreza rural. Compreender o que isso representa implica reconhecer como o poder

político e ideológico do agrohidronegócio se sustenta, inclusive quando se apropria do

produto do trabalho camponês, ocultando o potencial da agricultura camponesa e sua

importância para a sociedade.

Uma das soluções para essa questão seria a criação de uma feira ou, ainda, um

local no próprio CEASA, onde os produtos advindos dos acampamentos e

assentamentos localizados nessa região fossem comercializados separadamente, como

forma de dar visibilidade aos produtos da luta pela terra e pela água no Semiárido

baiano. Fazer essa demarcação territorial é uma importante forma de persuasão e de

enfrentamento político e simbólico do campesinato contra o capital e o Estado,

colocando em xeque o discurso modernizante do agrohidronegócio.

Como as terras do vale do Salitre são bastante férteis, os acampados têm

conseguido diversificar a produçãoeobter boa produtividade, sem nenhum tipo de

assistência técnica.Em maio de 2014 iniciaram o período da terceira colheita de

melancia e melão e do plantio de cebola, como destaca um dos integrantes da frente de

massa do acampamento Abril Vermelho:

Essa região possui uma das melhores terras do Brasil, terra aprovada

pela EMBRAPA e pelos estudos que lidam com a questão do solo.

Essa terra é boa para a produção de frutas; tem aí agricultor que já

colheu quase três safras, tem outro que está colhendo a primeira safra,

outro que está na segunda safra, etc. Esse processo é contínuo. A safra

de melão, melancia, feijão de corda, milho, aipim (que é a mesma

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macaxeira), tomate, pimentão, pepino, e assim diversificando a

produção. Temos incentivado os acampados para não partir do ponto

de vista da monocultura que a gente está combatendo. Incentivamos a

produção de frutas, legumes, verduras, essas frutas de pequeno ciclo,

como o melão e a melancia. (Informação verbal, 06/05/2013).

Um dos aspectos interessantes detectados durante as visitas ao acampamento

Abril Vermelho foi o fato de os camponeses já estarem produzindo na área e, de acordo

com os relatos, algumas famílias já fizeram 3 colheitas, demonstrando que, mesmo sem

apoio do Estado, os camponeses têm conseguido viabilizar a produção, superando os

obstáculos próprios de um acampamento, inclusive a falta de infraestrutura. Como já

possuem uma história de vida no campo, as famílias são acostumadas a trabalhar na

agricultura esua habilidade tem contribuído, sobremodo, para o sucesso da produção.

Notou-se, por outro lado, haver o interesse, por parte de antigos moradores da região

que migraram para o Sudeste do país, na década de 1980, emvoltar a trabalhar na terra,

depois de décadas trabalhando e morando na cidade. Durante nossa permanência no

acampamento, tivemos contato com um casal que estava pleiteando, junto às lideranças

do acampamento, autorização para aderir ao movimento. Segundo esse casal de origem

pernambucana (zona rural do município de Sobral), mudaram-se ainda jovens para São

Paulo, em busca de melhores condições de vida, já que as condições de permanência no

campo naquela época eram desfavoráveis. Após 25 anos morando na cidade de São

Paulo, retornaram para o Nordeste e buscam retomar ao trabalho na terra. Esse é um

fato revelador de como a questão agrária é complexa, colocando elementos para se

pensar o acesso à terra no contexto de intensa mobilidade territorial e espacial do

trabalho, rompendo assim com a concepção enrijecida que nega a heterogeneidade das

identidades diversas da tessitura do campesinato nesse limiar de século XXI. Nesse

sentido, Thomaz Junior (2008a, p. 285) chama atenção para o fato de haver “[...] uma

rica trama de relações, de fragmentações, de valores, de significados, de subjetividades”

que não pode ser desconsiderada quando se trata da totalidade viva do trabalho.

A luta pela terra traz em si um conteúdo emancipatório, por evidenciar a

resistência a lógicas perversas e contraditórias, estabelecidas e consolidadas no contexto

da política agrícola e agrária brasileira. A produção de objetos e mercadorias no seio do

sistema sociometabólico do capital tem colocado, cada vez mais urgentemente, a

necessidade de repensar a produção e a apropriação do espaço geográfico frente à

reprodução da vida e dos sujeitos, rompendo assim a concepção dura de ciência e de

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desenvolvimento, pensados e disseminados a partir do modelo de sociedade capitalista.

Nessa mesma perspectiva, Breilh (2011, p. 76) destaca que:

La energía creadora y productiva agrícola debería encaminarse a

garantizar la reproducción de los sujetos vivos y de la vida en la

naturaliza – un requisito básico de sustentabilidade -, y no someterse a

la lógica del capital, que captura dicha energía para la producción de

médios de producción y mercancias.

A conquista da terra coloca em evidência a luta pelo/no território como espaço

de materialização de ideologias, consensos e projetos políticos, cuja coadunação ao

contexto das ações do Estado, atreladas ao capital, tem imposto às populações

camponesas e aos trabalhadores envolvidos na cadeia produtiva do agronegócio

situações bastante adversas na busca por atender às necessidades básicas de reprodução

familiar. Se, por um lado, as famílias acampadas no Abril Vermelho são invisibilizadas

pela população em geral e particularmente pelo Estado, por outro sua existência torna-se

evidente mediante os frutos de seu trabalho na terra.

O território,na qualidade de mediação espacial do poder (HAESBAERT, 2009),

passa a ser objeto do confronto entre camponeses, moradores das periferias urbanas,

capital e o Estado, visto que, no constante processo de reorganização territorial no

Semiárido baiano, a dimensão econômica tem prevalecido entre os agentes do capital,

sob forte ditadura do dinheiro156.

Após dois anos e oito meses de sua criação, o acampamento Abril Vermelho

vem demonstrando as potencialidades e a dinâmica do campesinato, expressando a

necessidade de pensar a questão agrária a partir de novas leituras e interpretações, para

entender o cenário obnubilado pelo discurso do agronegócio e suas múltiplas escalas

geográficas. Refletir sobre as diferentes estratégias de resistência do campesinato,sobre

o tecido social do trabalho bem como sobre suas formas de pertencimento são, na

verdade, possibilidades de seguir adiante, no enfrentamento constante ao capital e ao

Estado. Ao ouvir os acampados, percebeu-se que a posse da terra foi a única maneira

destes conseguirem relativa autonomia acerca do trabalho, mostrando que terra, trabalho

e soberania alimentar se apresentam indissociáveis no contexto da luta dos camponeses

caatingueiros. Ainda de acordo com as lideranças do MST, nenhum dos acampados do

Abril Vermelho vende força de trabalho nos lotes empresariais, pois a produção obtida

do acampamento é suficiente para a reprodução das famílias. Esse é um aspecto que

156 Termo tomado de empréstimo de Saquet (2013, p. 124).

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312

contrasta com a realidade verificada nas comunidades do Baixo Salitre, visto que muitos

salitreiros trabalham como diaristas nos lotes empresariais do Projeto Salitre.

A ocupação de parte das terras do Salitre representa a construção de um novo

território, com todos os desafios e problemas decorrentes da existência conflituosa dos

sujeitos que lutam pela/na terra e as cercas do agrohidronegócio. Vale ressaltar que

oacampamento Abril Vermelho está cercado pelo agrohidronegócio, cuja lógica

reprodutiva compromete consideravelmente a produção de alimentos pautados nos

princípios agroecológicos, a qualidade da água e a saúde dos camponeses, que correm o

risco de contraírem doençasem virtude da exposição indireta aos agrotóxicos utilizados

nas lavouras do perímetro irrigado do Salitre. Nesse sentido, a luta pela terra não se

resume apenas à conquista do “pedaço de chão”, visto que as lógicas, as sociabilidades e

as territorialidades camponesas conflitam com a lógica produtivista e destrutiva do

capital, exigindo a superação do modelo hegemônico de desenvolvimento adotado para

o campo, baseado na produção de mercadorias, mediante a superexploração dos

recursos naturais e dos trabalhadores. O enfrentamento ao agrohidronegócio perpassa

não apenas pela transposição das cercas e pelo controle sobre uma fração do território

capitalista; vai além, ao perspectivar novas possibilidades de uso desse território, tendo

como parâmetros formas de produção menos dependentes do capital.

A promessa modernizadora propagada no Semiárido usurpa aos camponeses

caatingueiros o direito à terra e ao território. Os projetos de irrigação acabam impondo

delimitações aos territórios fluidos, áreas usadas, coletivamente, pelos camponeses no

vale do Salitre. O processo de reestruturação produtiva ocorrido Vale do São Francisco

provocou transformações na forma de acesso e de uso da terra, isto é, provocou

mudanças na concepção dos projetos de irrigação, de reforma agrária e de crédito

fundiário. Em relação à agricultura, verifica-se uma forte tendência à expansão

dasrelações comerciais em contraposição àspráticas da produção para o autoconsumo

(de sequeiro e nas áreas úmidas nos vales próximos aos rios) protagonizadas pelos

camponeses caatingueiros. Os territórios camponeses ocupados com a produção para o

autoconsumo transformam-se em “pontos luminosos” com a inserção da agricultura

globalizada, pautada na fruticultura irrigada, ocasionando:

[...] severas transformações na divisão social do trabalho, na criação

de novas categorias como o trabalhador assalariado agrícola,

acentuando as desigualdades sociais, em detrimento da manutenção

dos saberes locais historicamente construídos, próprios dos

agricultores familiares camponeses e das comunidades de resistência. (MARINHO et al., 2011, p. 294).

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313

A inversão da terra de trabalho em terra de negócio interfere diretamente na

natureza das ações laborais, nos sentidos do trabalho que passam a ser mediados

exclusivamente pela extração da mais-valia dos trabalhadores da cadeia produtiva da

fruticultura irrigada. Tem-se, dessa maneira, a transformação do camponês em

trabalhador assalariado, peça importante no processo de reprodução ampliada do capital,

em terras semiáridas nordestinas. Ao analisar o conteúdo político da ocupação realizada

pelo MST no Projeto Salitre, depara-se com os desafios enfrentados pelos camponeses

diante dos imperativos do capital em tempos de crise, visto que, ao entrarem na terra,

novos obstáculos se colocam aos acampados. Superadas as dificuldades iniciais próprias

da construção do acampamento, as lavouras encontradas no Abril Vermelho são, em sua

essência, uma resposta contundente ao discurso do Estado e do capital, atribuindo ao

agronegócio a responsabilidade pela produção de alimentos no Brasil.

Durante as visitas ao acampamento Abril Vermelho, constatou-se o caráter

emancipatório que a “posse da terra” representa para as 400 famílias acampadas:

significa para eles a possibilidade de existência a partir de referenciais culturais,

políticos e sociais diferentes do agronegócio. Ao apresentar os produtos do trabalho na

terra (Foto 18), os camponeses expressam saberes, fazeres, racionalidades e

sociabilidades que, mesmo metamorfoseadas, evidenciam o movimento da vida em sua

diversidade.

Foto 18 – Camponês do Acampamento Abril Vermelho – Juazeiro (BA).

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Fonte: Trabalho de Campo, maio de 2013.

Autor: DOURADO, J. A. L.

As expressões fenomênicas, a partir da imersão no acampamento Abril

Vermelho, revelaram a tentativa dos movimentos sociais em propor e construir

alternativas à lógica do agronegócio. O acesso à terra e à água vai, paulatinamente,

devolvendo às famílias acampadas a possibilidade de viverem dignamente a partir de

seu trabalho, sem que, para isso, homens e mulheres estejam atrelados exclusivamente

ao trabalho assalariado nas lavouras dos projetos de irrigação, nos subempregos na

cidade, inclusive na cadeia produtiva do agrohidronegócio, como é caso do

CEASA/Juazeiro, cujas condições de trabalho são extremamente degradantes.

Durante as entrevistas, os acampados ressaltaram que as condições de vida

melhoraram significativamente através da renda obtida com a venda dos produtos

produzidos no acampamento, permitindo-lhes fazer projeções para o futuro. Destaca-se

que todos os membros da família acabam envolvidos com o trabalho nas lavouras,

demonstrando a capacidade de absorção da agricultura familiar camponesa, como um

setor importante na geração de emprego e renda. Não olvidemos, por outro lado, a

importância da produção do acampamento no tocante à reprodução das famílias

acampadas, visto que aquela tem viabilizado a alimentação das 400 pessoas, e o valor

obtido com a venda do excedente é utlilizado para comprar o que não é produzido pelos

acampados. Além das plantações de milho, cebola, alho, melão, mandioca, melancia,

hortaliças (alface, coentro, couve) e feijão, criam-se caprinos, galinhas e porcos (Figura

2). Segundo as lideranças do MST, o acampamento Abril Vermelho representa um

modelo de ocupação que deu certo, pois, mesmo sem a infraestrutura adequada, os

camponeses têm alcançado ótima produção, colocando em xeque a própria ideia

disseminada pela CODEVASF de que os projetos de irrigação destinados à agricultura

camponesa são inviáveis porque os camponeses não conseguem produzir. O

assentamento Vale da Conquista encontra-se numa situação desfavorável em relação ao

acampamento Abril Vermelho, no que se refere às condições de trabalho e às lavouras

cultivadas pois, neste último, as famílias já conseguem obter uma renda com o comércio

dos produtos e sua permanência no campo dá-se de forma digna, o que não ocorre com

os acampados do Vale da Conquista.

Embora a produção agroecológica seja um ideal defendido pelas lideranças do

acampamento, a concretização dessa perspectiva apresenta-se como uma tarefa difícil,

uma vez que o acampamento faz limite com as lavouras do perímetro irrigado, onde se

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registra intenso uso de agrotóxicos. Não há como criar barreiras para impedir que as

lavouras cultivadas na área sob o domínio dos acampados sejam atingidas pelos

agrotóxicos usados no perímetro irrigado, tanto na produção de frutas quando nos

cultivos de verduras e feijão. Mesmo não sendo possível produzir de forma

agroecológica no contexto atual, as lavouras cultivadas pelos camponeses do Abril

Vermelho não recebem aplicação de agrotóxicos, tornando os alimentos mais saudáveis

e livres de contaminação química. Se a produção não é agroecológica, faz-se necessário

mencionar a utilização, por parte dos camponeses, de muitas práticas agroecológicas

envolvendo saberes e fazeres advindos da convivência na/com a terra: a ajuda mútua, a

socialização dos alimentos entre os acampados, a própria ideia de que a terra deve

cumprir a sua função social, além de melhorar as condições econômicas de vida dos

camponeses.

Figura 2: Atividades agropecuárias no Acampamento Abril Vermelho (1: Criação de

caprinos, 2: Colheita de cebola, 3: Colheita de batata doce e 4: Lavoura de mandioca)

Fonte: Trabalho de Campo, 29 de abril de 2014

Autor: DOURADO, J. A.L.

Como os níveis de produção têm sido satisfatórios, um novo desafio apresenta-

se para as lideranças do MST em Juazeiro: reunir as condições adequadas para que os

próprios acampados façam a comercialização de seus produtos no mercado. Entre os

obstáculos para que esse desafio seja superado, estão os R$80.000,00 mensais cobrados

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pelo aluguel de um boxe no CEASA157e a falta de espaços com infraestrutura adequada

à comercialização de produtos pelos próprios camponeses. Uma feira onde os

camponeses pudessem vender seus produtos seria um importante componente político,

por permitir a ampliaçãoda relação entre os camponeses e o comércio local.Grosso

modo, romperiacom o isolamento entre o campesinato e a sociedade local, favorecendo

o diálogo entre os diferentes sujeitos (agricultores e consumidores), conforme defende

Bogo (1999). Além do conteúdo político, a feira forjaria sociabilidades entre

camponeses e consumidores, criando relações de confiança e um canal de comunicação

direta entre quem produz e quem consome os alimentos.

Ainda de acordo com uma dessas lideranças, a organização dos acampados

através de associação é a alternativa mais adequada para viabilizar a comercialização

direta dos produtos com os consumidores e empresários no próprio CEASA, eliminando

assim o atravessador. Como as demandas e reivindicações são diversas, a prioridade

para o momento é acelerar o processo de negociação para legalizar a situação do

acampamento, tornando-o assentamento. Somente depois dessa etapa será possível a

criação de uma associação para organizar os camponeses, fortalecendo ainda mais a luta

e potencializando os ganhos com a venda dos excedentes produzidos através do trabalho

na/com a terra.

5.5 Mobilização social e múltiplas resistências no Submédio São Francisco

Pensar as (Re)Existências protagonizadas pelos camponeses em detrimento dos

discursos do capital e do Estado nos obriga a repensar a clássica ideia de enfrentamento

via ocupação de terra e incorporar outras dimensões das lutas,travadas em diferentes

espaços e momentos históricos. Na busca pela emancipação ou autonomia, os

camponeses têm diversificado as estratégias para disputar território com o

agrohidronegócio. Quando o espaço em análise se refere ao Semiárido nordestino, o

dualismo expresso pelos termos arcaico-moderno coloca-se como um primeiro

obstáculo para entender as relações materializadas no território, porque envolvem

concepções políticas e econômicas antagônicas.

É nesse universo prenhe de contradições que passamos a analisar como os

camponeses têm organizado e pensado o enfrentamento às ações desagregadoras,

157 Valor informado por uma das lideranças do MST em Juazeiro, referente ao ano de 2013.

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pautadas no discurso falacioso do desenvolvimento econômico e da geração de emprego

e renda. Tais promessas feitas pelo capital e pelo Estado têm figurado, ao longo dos

tempos, no processo de reestruturação espacial do Semiárido baiano, como argumentos

“sólidos” capazes de ofuscar as críticas feitas por seus opositores. É nesse embate que

propomos pensar outras formas e estratégias de (Re)Existência protagonizadas pelos

camponeses no Submédio São Francisco, num contexto com forte presença do

agrohidronegócio, cuja territorialização é favorecida pelos investimentos públicos com

obras de infraestrutura para garantir a disponibilidade hídrica à fruticultura irrigada e à

produção de cana-de-açúcar.

Programas de grande envergadura como o PAC e o Mais Irrigação, na esfera

federal, alavancam as investidas do grande capital e potencializam o mercado de terras e

uma série de outros setores atrelados a esse segmento econômico. A arquitetura desses

projetos tem como finalidade eliminar a ociosidade dos recursos, tornando-os

exploráveis e colocando-os no circuito reprodutivo do capital, com vistas à

maximização dos lucros. Na verdade, o sequenciamento e o encadeamento destes

programas é fundamental para a manutenção do circulo vicioso que envolve privilégios

políticos, contratos fraudulentos com empresas do setor de construção civil, pactos com

grandes proprietários de terras e que, do outro lado, coexiste com o empobrecimento da

maioria da população. Ao analisar os programas voltados para o fomento da irrigação

no Semiárido baiano, constatamos haver uma interdependência sistêmica entre eles, pois

a criação de um programa depende de outro para ser efetivado e com isso são utilizados

nomes distintos e recursos financeiros de origem diversa para a execução de uma

mesma ação.

Como estratégia para enfrentar essas relações desiguais, muitas comunidades nas

regiões do Médio e Submédio São Francisco têm buscado fortalecer-se politicamente

através da organização social, com vistas a unificar as bandeiras de luta e

reivindicações. Nesse sentido, reconhecemos a multiplicidade de ações praticadas pelos

camponeses, como forma de afirmação e reafirmação de seus modos de vida, saberes,

fazeres e ações políticas. A ocupação e o acampamento são exemplos emblemáticos

dessas ações, embora não sejam os únicos. Ante o exposto, concordamos com Fabrini

(2007, p. 9, grifos do autor) quando o autor destaca que a “[...] resistência camponesa

não se limita à ação/organização nos movimentos sociais, ou seja, as lutas camponesas

não devem ser interpretadas somente na esfera dos movimentos sociais: o“movimento

camponês” é mais amplo do que os “movimentos sociais”.

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Os territórios conquistados pelos camponeses – inclusive a Feira Nacional da

Agricultura Irrigada (FENAGRI) – reluzem as contradições vivas do embate capital-

trabalho, as quais não se restringem apenas ao controle da terra e da água, mas

acontecem também no plano discursivo e midiático. O “estar” na FENAGRI não diz

respeito apenas à presença física. O ocupar/territorializar esse espaço é, para os

camponeses, uma estratégia para serem “vistos” diferentemente da maneira como foram

retratados ao longo do tempo, ou seja, até então têm sido tratados como sujeitos

detentores de modos de vida atrasados, dependentes do assistencialismo governamental

e sem espaço no mundo atual, pois são controlados pelo agronegócio que abocanha

volumes expressivos de recursos financeiros das instituições públicas de fomento e

gasta milhões de reais em marketing para convencer a sociedade sobre sua própria

importância econômica e eficiência produtiva.

Para entender os processos dinâmicos que envolvem a construção das

(Re)Existência camponesa no contexto das disputas territoriais no Submédio São

Francisco, analisaremos como vem ocorrendo a participação dos camponeses na

FENAGRI, o conteúdo político dessa ação bem como seus desdobramentos políticos.

Por outro lado, refletiremos sobre as iniciativas de mobilização e organização social

verificadas entre as comunidades do Baixo Salitre, por meio do resgate de práticas

socioculturais, da formação política e do estímulo ao engajamento da juventude em

relação aos principais problemas e/ou desafios vivenciados cotidianamente pela

população local.

5.5.1 Territorialização do campesinato na FENAGRI: disputas veladas no território

do agrohidronegócio em Juazeiro/Petrolina

Realizada anualmente nas cidades de Juazeiro (BA) e Petrolina (PE), em regime

de alternância, a FENAGRI, considerada a maior feira da fruticultura irrigada da

América Latina, representa um espaço de encontro entre investidores do setor agrícola,

grandes produtores e empresários da agroindústria (voltada para o processamento de

frutas) e agricultores camponeses. Na 25ª edição, realizada em 2014 na cidade de

Petrolina, no período de 28 a 31 de maio, a rodada de negócios movimentou R$40

milhões, volume comemorado pelos organizadores do evento, que contou ainda com

momentos de debate, com a participação de grandes empresas compradoras de frutas do

país e sete empresas âncoras de países como Espanha, EUA, Rússia, Canadá e

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Alemanha, sobre a introdução de novas culturas no vale do Submédio São Francisco,

maior polo frutícola do Nordeste brasileiro.

Durante a última edição da FENAGRI, foram expostos 180 estandes com os

arranjos produtivos e as novidades tecnológicas da agricultura nas áreas de produção,

manejo, insumos, equipamentos, comercialização e logística. O espaço onde é realizada

essa feira é dividido em duas partes: uma ocupada com os estandes empresariais e outra

destinada aos agricultores camponeses. Ao acompanhar a realização desse evento nos

anos de 2013 e 2014, identificamos distintas territorialidades em seu interior, cujo

surgimento dá-se a partir das relações assentadas no território, com diferentes

desdobramentos sociais, políticos, econômicos e culturais. Ou seja, a FENAGRI é, no

contexto atual, um território de lutas, onde campesinato e agronegócio expõem não

apenas produtos, como também as lógicas distintas de produção e de consumo do

espaço.

Nos estandes destinados à agricultura camponesa, os visitantes não se limitam a

olhar/admirar os produtos ou a conhecer as novas tecnologias criadas através dos

investimentos em pesquisas. Nesses locais, caracterizados pela aproximação entre

aqueles que expõem e aqueles que visitam, há uma verdadeira degustação dos

resultados do trabalho camponês, de sua inventividade e capacidade de reprodução. É o

espaço onde as relações são menos formais e mais descompromissadas, envolvendo,

muitas vezes, descobertas em relação às potencialidades dos sujeitos que vivem no/do

campo. Pela própria característica dos produtos vendidos pelos camponeses e pela

possibilidade de poder comprá-los, o contato e a aproximação entre quem vende e quem

consome contribuem para transformar a visão pejorativa sobre o campo, muitas vezes

tipo como o “lugar do sofrimento”.

Assim, novas concepções e formas de pensar o campo vão sendo engendradas

através do estabelecimento de forças locais, numa espécie de microfísica do poder

(FOUCAULT, 1979), expressa por uma aparente harmonia entre sujeitos e

racionalidades antagônicas. Embora seja um espaço criado para o grande capital, a

FENAGRI vem se constituindo como um território forjado, um trunfo (RAFFESTIN,

1993) para os camponeses nos interstícios das relações capitalistas e um exemplo

marcante de territorialização do campesinato. Advertimos sobre nossa discordância em

relação aos autores que defendem que esses camponeses sejam um exemplo do

“pequeno agronegócio”, produto da política de desenvolvimento territorial rural (DTR)

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ou desenvolvimento local implantadas pelo Estado, conforme defende Abramovay

(1994).

Ao analisar a presença dos camponeses na FENAGRI, acreditamos ser mais

adequado, ao invés de taxá-los de “pequeno agronegócio”, pensar sobre a possibilidade

da construção da autonomia camponesa (que não é absoluta) em relação ao

assalariamento e à subjugação da força de trabalho ao agrohidronegócio. Utilizando os

recursos de que dispõem e aperfeiçoando o conhecimento sobre o uso de produtos da

própria região, como é o caso do umbu (Foto 19), muitas comunidades do Semiárido

nordestino passaram a agregar valor à produção, tendo um aumento significativo na

renda familiar, além de agregar a família no processo produtivo.

Foto 19 - Camponês da comunidade de Curral Novo expondo os produtos derivados do

umbu durante a 24ª da FENAGRI - Juazeiro

Fonte: Trabalho de Campo, 2013.

Autor: DOURADO, J. A. L.

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Com a ajuda do Instituto Regional de Pequena Agropecuária Apropriada

(IRPAA), muitas comunidades do Submédio São Francisco, inclusive do vale do

Salitre, têm conseguido garantir a reprodução da família sem romper com os vínculos

com a terra, com o trabalho familiar e com a produção artesanal, tendo como matéria-

prima o extrativismo. Preocupados em ressaltar a produção (orgânica e agroecológica),

os membros de IRPAA têm buscado fortalecer os camponeses a partir de seus próprios

referenciais de mundo, de seus conhecimentos, suas práticas socioculturais. Pautado na

perspectiva da convivência com o Semiárido, o IRPAA seleciona comunidades e/ou

famílias para desenvolver “projetos-pilotos”, no intuito de comprovar a viabilidade das

ações/técnicas propostas. Essa entidade sem fins lucrativos (ONG) tem atuado junto a

diversas comunidades, prestando assessoria técnica com o propósito de aprimorar e de

fortalecer as técnicas conhecidas pelos camponeses, contribuindo para que os sujeitos

tenham melhores condições de permanecerem na terra, mediante a adoção de

“tecnologias alternativas” ou “apropriadas” (Foto 20).

Foto 20 : Stand da agricultura familiar na 24ª FENAGRI/Juazeiro

Fonte: Trabalho de Campo.

Autor: DOURADO, J. A. L.

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Ao reelaborar antigas práticas – da qual utilizamos como exemplo o doce de

umbu, feito e consumido tradicionalmente entre os camponeses do Semiárido baiano –,

novas possibilidades surgem a partir do trabalho de assessoria técnica e extensão rural,

na perspectiva da convivência com o Semiárido. Isso significa mostrar, no palco/cenário

do agrohidronegócio, a viabilidade de outros modelos de desenvolvimento para essa

região, diferentes dos megaprojetos implantados pelo Estado cujos impactos positivos

para as populações atingidas são efêmeros e irrisórios.

5.5.2 Resgate das práticas socioculturais e (Re)Existência camponesa no vale do

Salitre

A agricultura camponesa no vale do Salitre sofreu os reveses decorrentes do

processo de modernização do campo, tendo muitos vínculos de solidariedade desfeitos

decorrência das políticas públicas implementadas pelo Estado e da presença marcante

do agronegócio nessa região. Durante décadas, viu-se a expansão do agronegócio

desagregar os modos de vida das comunidades, promover a perda da autonomia e o

ascendente assalariamento entre os camponeses, muitos transformados em mão de obra

para a fruticultura irrigada. Como a história do vale do Salitre está marcada por uma

sequência de conflitos pelo acesso à água, as comunidades buscaram,no decorrer das

décadas, organizar-se para reivindicar, junto ao Estado, uma solução para esse

problema.

Predominantemente, essa organização ocorreu muito mais em decorrência de

vínculos de parentesco e de solidariedade que por motivações político-ideológicas.

Reconhecendo essa particularidade, algumas lideranças locais das comunidades do

Baixo Salitre perceberam a importância de resgatar práticas socioculturais, como uma

das estratégias a serem utilizadas para forjar novas sociabilidades entre as famílias

camponesas.Como ponto de partida, procuraram agregar os sujeitos, destacando as

formas comunitárias de relações, como a ajuda mútua, as festas, a religião, o lazer, entre

tantas outras expressões da cultura das comunidades salitreiras, as quais perderam

visibilidade em consequência da introdução de novos costumes e de uma racionalidade

distinta daquela que fundamentava as suas relações cotidianas, devido aos processos

modernizantes vivenciados pós-década de 1970. Sobre essas formas comunitárias de

relações, Fabrini (2007, p. 28-9) afirma:

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As ações comunitárias ainda se manifestam na solidariedade entre as

famílias e vizinhos como na troca de dias de serviço, mutirões para

plantação, cuidado com as lavouras, colheitas, etc. Outras atividades

podem indicar o “espírito” comunitário, como o lazer e as

festividades, visitas aos vizinhos em finais de semana, reuniões

religiosas, seja na sede da comunidade onde está a capela, seja nas

residências.

Com o intuito de fortalecer a luta e o território camponês, essas lideranças

comunitárias têm promovido encontros em Alfavaca, Baraúna, Curral Novo e Tapera,

para realizar festejos, como o Samba do Véio, a Roda de Braço, São Gonçalo e

comemorações religiosas, como a procissão de Nossa Senhora Santana (Figura 3). A

construção de alternativas para as comunidades salitreiras afetadas pelas políticas

públicas de irrigação bem como pela expansão do agrohidronegócio nessa região torna-

se viável e necessária no processo de coesão social para garantir força e fortalecer

politicamente os sujeitos de tal forma que estes possam fazer o enfrentamento às ações

homogeneizantes do capital bem como tensionar o Estado para que os investimentos

públicos feitos nessa região contemplem as necessidades da população local. Essas

iniciativas vão, paulatinamente, agregando os camponeses mediante o resgate e a

construção de sociabilidades, importantes para fortalecer a organização e a participação

social, com vistas a alcançar a coesão na busca de melhorias para as comunidades.

Figura 3: Práticas socioculturais das comunidades salitreiras (1: Samba de Véio, 2:

Samba de Braço, 3: Bumba-meu-boi e 4: Procissão de Nossa Senhora Santana)

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Fonte: Filhos do Salitre, 2014

Autor: DOURADO, J. A. L.

Além das manifestações culturais, o Jornal “O Carrapicho” (Figura 4), elaborado

por jovens das comunidades de Alfavaca e Baraúna,encontra-se na sua 2ª edição e tem a

função de envolver os adolescentes no processo de discussão sobre os principais

problemas que afetam a região do Baixo Salitre bem como sobre assuntos do cotidiano

das comunidades. Trata-se de uma estratégiaque se utiliza da educomunicação para

despertarnos adolescentes o interesse pelo envolvimento político, de modo que eles

possam participar ativamente das tomadas de decisões coletivas, além de problematizar

assuntos/temas em evidência no momento. Na 2ª edição, a reportagem principal trata da

chegada da empresa Agrovale no Projeto Salitre, com destaque para as consequências

socioambientais para a população salitreira e o enfrentamento entre agronegócio e

agricultura camponesa. Assim, há uma democratização das informações, abordadas sob

a ótica dos sujeitos que vivenciam diretamente a realidade do Salitre.

Figura 4: Jornal Carrapicho

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Fonte: Filhos do Salitre, 2014.

Como a construção do Jornal Carrapicho é coletiva e feita pelos próprios

salitreiros, seus idealizadores têm promovido reuniões nas comunidades para apresentar

o material e debater sobre a importância desse veículo de informação para o incentivo à

participação dos jovens nas discussões sobre questões relativas à realidade do vale do

Salitre, de modo a contribuir para a construção e o fortalecimento da identidade

territorial. Durante essas reuniões para avaliar os resultados do jornal (Foto 21), são

discutidos quais os temas serão tratados na edição seguinte, exigindo que os jovens

debatam sobre os assuntos mais recorrentes e significativos para as comunidades

salitreiras. Ao decidir sobre os assuntos, os jovens assumem deliberadamente uma

postura política em relação ao conteúdo do jornal, expressa pela maneira como os temas

são tratados.

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Foto 21 – Reunião na comunidade de Baraúna para debater sobre a importância do

Jornal Carrapicho.

Autor: Filhos do Salitre, 2015.

Além destas ações, algumas lideranças das comunidades têm realizado reuniões

de formação com o intuito de discutir e viabilizar a formação de associações

comunitárias, iniciativa importante para viabilizar o acesso a muitas políticas públicas

que atendam às demandas locais. Como a presença do agrohidronegócio e a atuação do

Estado são marcantes nessa região, faz-se urgente a organização comunitária,

viabilizando encontros regulares para discutir os principais problemas e demandas das

comunidades e assim pensar em ações reivindicatórias junto ao poder público e criar

possíveis barreiras ao expansionismo do capital sobre as terras do vale do Salitre.

Quando se trata de trabalho, os moradores mais jovens (crianças e adolescentes,

principalmente) das comunidades do Baixo Salitre têm como perspectiva o

assalariamento nas lavouras dos perímetros irrigados, pois a produção voltada para o

autoconsumo representa, para eles, uma possibilidade remota porque, após a

consolidação da irrigação nessa região pelas políticas públicas, cada vez a venda da

força de trabalho nos projetos de irrigação tornou-se a única fonte de renda para muitas

famílias.

As ações de mobilização têm motivado as comunidades e inserido os jovens no

movimento de resgate das antigas práticas socioculturais, num outro contexto histórico

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diferente daquele vivenciado por seus antepassados (pais e avós). Quando utilizamos o

termo “resgatar”, é preciso esclarecer que esse processo não representa uma tentativa de

trazer do passado tradições desencaixadas e esvaziadas de conteúdo social, ou seja, um

tipo de imposição aos costumes atuais. Os anacronismos devem ser evitados quando se

trata da mobilização social, porque a dinâmica espacial traz em seu cerne as marcas do

tempo. Por isso, ter clareza sobre as limitações destas ações, como deflagradoras de

mobilização social, pressupõe uma condição elementar para a promoção da coesão entre

os sujeitos, no campo de lutas por interesses coletivos. Os componentes político e

ideológico não podem ser secundarizados no palco da luta de classes, cada vez mais

fragmentada e heterogênea. Embora as lideranças tenham percebido a importância dessa

estratégia para atrair interlocutores, muitas pessoas, por motivos diversos, distanciaram-

se das associações comunitárias, fragilizando as ações de enfrentamento ao Estado e ao

capital. Outros, mesmo integrando essas entidades, pouco participavam dos momentos

de discussões sobre assuntos de interesse coletivo, como o da chegada da Agrovale ao

Projeto Salitre e o daimplantação do Eixo Sul158 da transposição do São Francisco, que

impactarão diretamente o vale do Salitre.

A (Re)Existência camponesa não significa necessariamente a participação dos

sujeitos nos movimentos sociais, embora esta seja a maneira de maior destaque e

visibilidade. Há outros exemplos menos notórios sob o ponto de vista de sua

abrangência, porém não menos importantes, porque agregam sujeitos que não tiveram

em sua trajetória um envolvimento político-ideológico com os movimentos sociais.

Considerando essas particularidades, Fabrini (2007, p. 30) afirma:

Neste sentido, o camponês, organizado nos movimentos sociais ou

fora deles, numa prática de relações sociais “geografada” localmente,

desenvolve um conjunto de manifestações que garante sua existência

e, conseqüentemente, incomoda a parcela dominante da sociedade que

não lhe reconhece como sujeito e classe social. Portando, é possível

concluir que a luta camponesa é mais ampla do que os movimentos

sociais, ou seja, existe um “movimento camponês” que não se realiza

exclusivamente nos movimentos sociais.

A territorialização camponesa no espaço criado para enaltecer o

agrohidronegócio (a FENAGRI) e a promoção do resgate das práticas socioculturais das

158 A Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) contratou

estudo de viabilidade técnica e econômica da transposição do Eixo Sul do Rio São Francisco. Caso seja

autorizada, a obra contará com investimentos de cerca de R$ 4 bilhões, para construir aproximadamente

400km de canal que levará a água do São Francisco para a Barragem de São José. A obra contemplará a

Bahia, garantindo o suprimento hídrico das bacias hidrográficas de Tatauí, Salitre, Tourão/Poções,

Itapicuru e Jacuípe.

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comunidades salitreiras têm incentivado novas sociabilidades e novos territórios são

forjados, criando pontos de tensão entre os agentes hegemônicos, porque trazem à tona

outras realidades do campo, muitas vezes escamoteadas/negadas pelos discursos e ações

do Estado. Por outro lado, a tentativa de agregar as comunidades através de atividades

culturais constitui uma estratégia para incorporar aqueles sujeitos para os quais a luta

pela terra e pela água não se constitui uma realidade objetiva. O hábito de reunir-se,

mesmo que de forma “descompromissada”, representa uma possibilidade real de

fortalecimento comunitário, criando as condições favoráveis para a introdução de uma

discussão direcionada para a questão da luta pela terra e pela água. Especificamente

nesse contexto, a terra é o elemento que une os sujeitos, e a água representa a condição

para a reprodução da família por meio do trabalho.

Porém, esse esforço para agregar os sujeitos/comunidades sem, necessariamente,

uma perspectiva delimitada de enfrentamento político pode enfraquecer as ações de luta

pela terra e pela água no vale do Salitre. Isso pode ocorrer, porque o campo é um espaço

de luta, um território em conflito, onde há, consequentemente, a presença de agentes

antagônicos que buscam impor seus interesses sobre os demais, sobrepujando-os,

inclusive, por meio da imposição de novas lógicas que interferem diretamente em seus

modos de vida. A luta fragmentada/desarticulada ou a organização descaracterizada do

conflito favorece o controle social por parte do capital, que age justamente num aspecto

essencial para o campesinato, ou seja, o trabalho, cuja historicidade encontra-se atrelada

a outros elementos fundamentais para a recriação camponesa: a terra, a água e a família.

Reconhecer essa limitação representa um aspecto importante para que sejam construídos

vínculos não apenas pautados em laços de solidariedade e parentesco, transcendendo-se

para o engajamento político, de modo a construir forças locais para o enfrentamento ao

capital e ao Estado e a superar as travagens existentes no contexto da luta de classes.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

AGROHIDRONEGÓCIO E LUTA ANTICAPITAL: PENSANDO A

CONSTRUÇÃO DOS ESPAÇOS DE ESPERANÇA

Hay una relación clara entre la explotación y

la dominación: No toda dominación implica

explotación. Pero ésta no es posible sin

aquella. La dominación es, por lo tanto, sine

qua non del poder, de todo poder.. Esta es

una vieja constante histórica. La producción

de un imaginario mitológico es uno de sus

más característicos mecanismos. La

“naturalización” de las instituciones y

categorías que ordenan las relaciones de

poder que han sido impuestas por los

vencedores/ dominadores, ha sido hasta

ahora su procedimento específico.

(QUIJANO, 2000, p. 379. Grifos do autor).

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Imersas em decisões e posicionamentos políticos, ideológicos e teórico-

conceituais, as reflexões que colocamos sob o crivo da crítica científica são construções

do pensamento elaboradas a partir do mergulho na historicidade dos conflitos pela terra

e pela água no Semiárido baiano e na sociabilidade de “homens simples” (MARTINS,

2008), ou seja, dos camponeses caatingueiros e suas distintas identidades

territoriais/laborais. Essencialmente fluido, o fenômeno analisado não admite

concepções engessadas por esta ou aquela matriz teórica e, ao se ignorar a riqueza e a

complexidade da teia de relações estabelecidas entre os sujeitos, no front de batalha

contra as ações dos atores hegemônicos, corre-se o risco de interpretar inviesadamente

os fatos, impedindo-os de serem entendidos dialeticamente, de fora para dentro e vice-

versa. Essa possibilidade apresentou-se para nós, durante toda a pesquisa, como o “fio

da navalha”, pois, na condição de filho de camponeses caatingueiros com profundo

conhecimento da labuta cotidiana desses sujeitos para permanecerem na terra de

trabalho, foi necessário desconstruir muitas ideias formuladas ao longo da vida e

interpretar o fenômeno à luz da ciência geográfica.

Relegados muitas vezes à condição de coadjuvantes, os camponeses e povos

tradicionais vivenciaram ao longo dos últimos 40 anos os efeitos da atuação do Estado e

do grande capital, num constante reordenamento espacial para atender a interesses de

uma minoria. Na tentativa de fazer o enfrentamento, esses sujeitos procuram adotar

estratégicas diversas, com vistas a alcançar a emancipação, o direito a existir e resistir à

concepção de inevitabilidade do desenvolvimento sob os moldes eurocêntricos.

Impregnados da ideologia do desenvolvimentismo, os projetos executados pelo Estado

no Semiárido brasileiro estão atrelados à macroestrutura do poder do capital, cuja

sustentação se dá mediante fortes campanhas midiáticas. Promotores de iniquidade, de

desterritorialização e de profundas alterações na dinâmica socioespacial das regiões

onde estão alocados, esses empreendimentos são utilizados, em discursos inflamados e

utópicos, para veicular a ideia de que são os responsáveis por reduzir a pobreza e as

desigualdades regionais.

A escolha do tema e do recorte espacial para a pesquisa refletiram o desejo do

pesquisador de apreender o movimento do real, suas contradições e relações

multiescalares, visto que a expansão do agrohidronegócio no Semiárido baiano ocorre

em decorrência de uma série de políticas públicas, de projetos e programas

governamentais, aos quais se atribuem um caráter civilizatório, enquanto os modos de

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vida e a organização social dos camponeses e povos tradicionais são ultrajados, sendo

estes sujeitos considerados obstáculos para o progresso.

Assim, trabalhamos com a hipótese de que as políticas públicas voltadas para os

projetos de irrigação implementados pelo Estado no Semiárido baiano promovem a

territorialização do agrohidronegócio e geram disputas territoriais e de classes,

expressas por meio dos conflitos pela terra e pela água. Terra de trabalho e água de

trabalho são disputadas por agentes antagônicos e sob perspectivas totalmente díspares,

pois, para uns, o domínio desses bens naturais significa a possibilidade de locupletar, ao

passo que, para outros, representa a condição precípua para a sua reprodução como

sujeitos detentores de um ethos camponês.

O reordenamento do território passa a ser definido por interesses externos,

objetivando a atender às demandas de grandes grupos econômicos e do capital

financeirizado, de tal forma que as políticas públicas voltadas para a irrigação têm um

papel fundamental na introdução e na consolidação de um modelo de agricultura

altamente insustentável e gerador de desigualdades sociais. Atrelados à “modernização”

da agricultura no Semiárido baiano, ocorrem processos destrutivos, como a

desterritorialização camponesa, a concentração e valorização fundiária, conflitos por

terra e por água, a precarização das relações de trabalho e a intensificação do uso de

agrotóxicos.

Num primeiro momento, procuramos detalhar o processo de construção da

pesquisa – as opções e escolhas feitas, o recorte espacial, o caminho percorrido, os

sujeitos de quem se fala –, de modo a situar a maneira como o tema do

agrohidronegócio seria abordado no corpo do trabalho, com vistas a evidenciar as

contradições inerentes ao seu expansionismo destrutivo. Situamos temporalmente os

fenômenos analisados, de modo a entender como as decisões tomadas pelo Estado,

importantes para o desenvolvimento das forças produtivas, não conduzem a uma

redução das desigualdades, nem mesmo promovam a emancipação do trabalhador. Do

mesmo modo, aprofundamo-nos no universo dos sujeitos da pesquisa, de modo a

entender os diferentes posicionamentos, ações e formas e interpretar a realidade a partir

das identidades territoriais.

Para negar o corolário do desenvolvimento, fizemos uma digressão sobre as

políticas públicas de irrigação implementadas pelo Estado, com foco na realidade da

região Nordeste brasileira, para demonstrar como os investimentos públicos

direcionados para o Semiárido têm asseverado os conflitos e as contradições em

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decorrência da tirania desumanizadora do capital. As áreas/regiões receptoras dos

investimentos públicos através dos perímetros irrigados são exatamente as mesmas onde

o agrohidronegócio busca territorializar-se, gerando fraturas no tecido social, cujos

antagonismos evidenciam o fetichismo do capital pelos territórios sob o domínio dos

camponeses e de povos tradicionais. Na esteira da modernização, a perspectiva

desenvolvimentista pautada na criação de perímetros irrigados é resgatada nos anos

1990, em resposta às demandas da economia globalizada, contando com investimentos

do PAC.

É nesse contexto que uma contradição se faz claramente visível, pois, constatou-

se haver uma sobreposição de investimentos para promover as condições favoráveis à

expansão da fruticultura irrigada voltada para o mercado externo ou, ainda, à produção

de agrocombustíveis em áreas de sequeiro e nos perímetros irrigados, conforme é a

perspectiva do Programa BAHIABIO implantado pelo governo estadual. Este não é um

caso isolado, pois a “mão invisível” do Estado, em suas múltiplas personificações, tem

atuado na modernização dos perímetros irrigados existentes, ou mesmo na construção

de novos espaços, travestindo-se com o discurso do desenvolvimento regional para

justificar os investimentos e segregar as populações locais e utilizando-se de regras

pseudodemocráticas para selecionar os beneficiados com capacidade técnico-econômica

para ocupar esses espaços. Para eliminar possíveis resistências aos imperativos do

capital, o Estado tem utilizado o “[...] ‘progresso’ como álibi para esmagar vidas

humanas em uma escala maciça” (MÉSZÁROS, 2007, p. 72, grifo do autor), de modo a

desonerar quaisquer críticas relacionadas aos investimentos feitos, pois, no contexto

atual, marcado por forte dormência do mercado de trabalho e com milhões de

desempregados em todo o mundo, colocar-se contrário à execução de projetos

sustentados pelo discurso da geração de emprego e de renda torna-se, antes de tudo,

uma postura imoral e desumana.

Problematizamos como o Estado, em pleno século XXI, resgata e reformula o

núcleo duro do planejamento regional para o Semiárido, idealizado e posto em execução

na década de 1970, ao projetar a agricultura irrigada como responsável pela grande

mudança histórica das desigualdades regionais. Na verdade, mesmo com diversos

estudos colocando em xeque a viabilidade econômica dos investimentos públicos feitos

em irrigação, o Estado continua pensando o Semiárido a partir de uma perspectiva

insustentável, com o apoio irrestrito à fruticultura irrigada e, mais recentemente, à

produção dos agrocombustíveis em projetos de irrigação, ambas altamente dependentes

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de grandes volumes de água. As contradições vivas não estão limitadas à mera exclusão

dos camponeses do acesso aos benefícios decorrentes dos investimentos em projetos de

irrigação, pois abarcam também a sua inserção marginal no processo produtivo, como

mão de obra barata a ser explorada nos territórios do agrohidronegócio.

Do outro lado e na rota do desenvolvimento, estão os camponeses e povos

tradicionais historicamente ocupantes das áreas cobiçadas pelo grande capital, alvo de

interesses econômicos e para onde convergem as ações políticas com a finalidade de

“liberar” a terra do jugo do atraso e disponibilizá-la para o progresso, transformando

esses espaços em territórios em disputa. Nesse sentido, o poder político e ideológico das

personas do capital coloca em questão os direitos que camponeses e comunidades

tradicionais têm à terra como meio de vida e de afirmação de sua identidade territorial,

ao disseminar implacavelmente a ideia de que não há alternativa ao modelo de

desenvolvimento posto para a sociedade atual. A noção predominante no contexto dos

programas e projetos postos em execução pelo Estado traz em sua gênese a

conformação de forças propositadamente imbuídas do esmagamento de todo e qualquer

movimento de resistência, utilizando o discurso do progresso para legitimar falsas

demandas e escamotear possíveis impactos negativos advindos da implementação de

tais medidas desenvolvimentistas. O “consenso” serve para suplantar as falhas e os

defeitos crônicos dessa política que concentra riquezas e fortalece o antagonismo de

classes no Semiárido baiano, ao passo que o papel de salvaguardar a reprodução do

metabolismo social do capital está diluído, falseadamente, nas ações de acomodação da

massa de camponeses, de povos tradicionais e de trabalhadores das periferias urbanas

nas “ilhas do agrohidronegócio”, encravadas no sertão da subsistência forçada, como

peças importantes para a produção de riquezas mediante a exploração da força de

trabalho e da mais-valia.

A Política de Irrigação Nacional (em seu passado e seu devir) nada mais é que

uma resposta à necessidade de reorganizar o espaço para atender aos mecanismos de

acumulação flexível. A acomodação dessa política teve como resultado a criação de

enclaves, com destaque para os fixos e fluxos – polos de irrigação ou “cidades do

agronegócio” –, conforme destaca Elias (2006), regiões para onde convergem os

investimentos públicos visando a atender às demandas do capital, principalmente no

tocante à disponibilidade hídrica e à oferta de terras. Tem-se, nesse contexto, um

processo de modernização conservadora da agricultura regional, sem haver

transformação na estrutura fundiária e hídrica, visto que terra e água continuam

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concentradas sob o poder de poucos. Esse conjunto de ações tem garantido ao grande

capital as condições favoráveis à sua territorialiazação, além de criar uma instabilidade

no campo e gerar estranhamento no interior da classe trabalhadora. Diante disso, o

contexto da luta pela terra e pela água faz-se num cenário em que o agrohidronegócio é

reconhecido como o modelo que “dá certo” e cuja produção, com alta tecnologia,

representa riqueza e modernidade, conforme destaca Thomaz Junior (2009) ao analisar

o processo de apropriação, pelo grande capital, de terras em áreas com significativa

disponibilidade hídrica, como se verifica no Centro-Sul do Brasil.

Assim, as tramas e urdiduras do agrohidronegócio revelam as estratégias

adotadas pelo grande capital e pelo Estado para usurpar os territórios camponeses, ao

destruir as condições em que estão assentadas relações não capitalistas de produção,

como aquelas existentes entre os camponeses das comunidades dos vales dos rios Verde

e Salitre, nas regiões do Médio e Submédio São Francisco, na Bahia. Ao analisarmos a

associação entre o Estado, os proprietários de terra e o grande capital, ficaram evidentes

como foram feitas, ao longo das últimas quatro décadas, as operações de “limpeza” da

área e a legalização das terras griladas pelo poder público, para viabilizar a entrega de

terras públicas (devolutas) ao domínio do capital. A grilagem foi, ao longo da história

do vale do São Francisco, um mecanismo recorrente e importante na apropriação pelo

capital das terras de uso coletivo ou sob o domínio dos camponeses, como estratégia de

manutenção dos níveis de geração e acumulação de riquezas.

Conjugando uso de insumos (agrotóxicos, fertilizantes, maturadores,

combustíveis, etc.), máquinas agrícolas e terras irrigáveis, o grande capital e o Estado

criam conjuntamente as tramas de um novo cenário desenvolvimentista para o

Semiárido, pautado, sob nossa concepção, na “colonialidade do poder” (QUIJANO,

2000), com bases arcaicas e corroídas pelo tempo. Em decorrência da necessidade de

reestruturar produtivamente os espaços, há uma atualização do colonialismo, tal como

interpretado por Casanova (2006), havendo uma utilização exacerbada do prefixo “neo”

e/ou do adjetivo “novo” para nominar antigas formas de planejar e executar as políticas

públicas e reordenar o território. Não obstante, no contexto atual, essas formas

reaparecem abrindo – novas e velhas – perspectivas econômicas para sustentar as

facetas da reprodução do capital. Isso fica explícito quando analisamos o “Novo Modelo

de Irrigação”, cuja maior novidade é o incentivo ao estabelecimento de parcerias

público-privadas para fazer a gestão dos perímetros irrigados, mais um elemento

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potencializador da exclusão a que as populações atingidas pelos projetos de irrigação

em todo Semiárido brasileiro estão sujeitas.

Ante as crises cíclicas do capitalismo e a urgência por parte do capital em

incorporar novos espaços à sua lógica sociorreprodutiva, tem-se verificado o avanço

deste sobre áreassob o domínio dos camponeses, povos indígenas e comunidades

tradicionais, pouco integradas à economia globalizada e situadas fora do mercado de

terras, tendo, como característica marcante, a variedade de formas de ocupação

tradicional das terras e dos usos da água. Os territórios desenhados pela ação do capital

estão inseridos no modelo de agricultura que conta com crédito rural, subsídios públicos

(isenção de impostos) e forte apoio midiático, cujas práticas agrícolas são altamente

dependentes de insumos e agrotóxicos (RIGOTTO et al., 2011), das quais destacamos a

fruticultura irrigada e os agrocombustíveis. São, notadamente, as duas bases agrícolas

da agricultura empresarial no contexto das políticas voltadas para a implantação e/ou a

modernização dos perímetros irrigados no Semiárido nordestino. Desse modo, “[...]

mesmo onde a irrigação introduziu uma agricultura moderna no semi-árido, a

“modernização” foi conservadora, inclusive da estrutura fundiária.” (BARCELAR,

2000, p. 14)

Por outro lado, a criação dos perímetros irrigados assume um papel central no

processo de “higienização” do Semiárido, pois sabe-se que o modo de vida do

camponês caatingueiro (em suas diferentes identidades e expressões laborais) tem sido

alvo de constantes ataques políticos e ideológicos por parte dos setores hegemônicos da

sociedade, para quem estes sujeitos estão predestinados a ser libertos do jugo da terra e

da agricultura de subsistência, mediante a venda da força de trabalho nos perímetros

irrigados, sob o domínio do agrohidronegócio. Atuando de fora para dentro (forças

centrípetas), o Estado tem assumido suas funções legais e políticas, ao compor a

dimensão coesiva entre o agrohidronegócio e a produção camponesa na perspectiva da

coexistência desigual de ambos. Ao negar a existência das disputas territoriais e de

classes no contexto dos perímetros irrigados, há um falseamento da realidade marcada

pelos conflitos e pelas ocupações, em que camponeses e movimentos sociais

reivindicam o acesso à terra e à água.

Enfatizamos, ao desnudar as tramas do agrohidronegócio no Semiárido baiano,

um conjunto de mediações que devem ser vistas como partes de um sistema orgânico

expresso pela associação do “Senhor capital” e da “Senhora terra”, aumentando as

iniquidades há muito tempo instauradas e levadas adiante através dos investimentos

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feitos pelo Estado. O rompimento da relação metabólica terra e água coloca-se como um

elemento importante a ser considerado, porque envolve dimensões e possibilidades de

uso e de ordenamento do território. Nesse sentido, o acesso à terra e à agua são

fundantes para que camponeses e povos tradicionais possam reproduzir, na qualidade de

ser social, pela via do trabalho. Dadas as determinações estruturais antagônicas, a

usurpação da terra num primeiro momento e sua posterior concessão temporária aos

camponeses, via pagamento de renda da terra, funcionam como uma dupla estratégia

para os grupos econômicos. Primeiro, a terra é transformada em mercadoria – terra de

negócio – de onde se extrai renda e sua função diverge daquela atribuída pelos

camponeses, que a têm como terra de trabalho. Por outro lado, a terra funciona, em

determinados momentos, como reserva de valor a ser utilizada para acessar recursos

públicos, quando há, por parte do Estado, o interesse em fazer a aquisição de terras para

executar algum empreendimento.

Por certo, as políticas implementadas pelo Estado com o propósito de promover

a expansão da agricultura irrigada no Semiárido nordestino tem favorecido,

sobremaneira, o mercado de terras, mediante crescente valorização fundiária de antigas

áreas ocupadas pela agricultura camponesa ou pela pecuária bovina, as quais agora

passam a contar com uma infraestrutura hídrica disponibilizada pelo Estado para que se

implantem os perímetros irrigados. Quando os perímetros irrigados são apresentados

como a alternativa viável - econômica, social e ambiental – para a região semiárida,

seus apologistas não hesitam em escamotear os mecanismos excludentes, inerentes ao

seu processo de implantação, como a desapropriação, em muitos casos, forçada,

utilizando-se da prerrogativa do “interesse social” para legitimar a expulsão dos

camponeses de seus territórios bem como dos mecanismos “democráticos” usados para

seleção dos irrigantes que ocuparão os lotes.

As alianças entre o Estado, o capital, as empreiteiras e as elites locais constituem

um círculo vicioso estabelecido para superar as travagens ao crescimento econômico

regional. Há que se destacar que a movimentação do mercado de terras no vale do rio

Verde foi intensa desde os anos de 1970, onde terras devolutas originárias do período

das sesmarias foram griladas por Airton Neves Moura e posteriormente adquiridas pela

CODEVERDE, cuja presença na região é marcada por aspectos nebulosos e atrelados

ao Estado.

A CODEVERDE tornou-se a maior proprietária de terras na região do vale do

rio Verde – suas propriedades abrangiam terras nos municípios de Xique-Xique,

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Itaguaçu da Bahia e Jussara – e, embora parte dessas terras tenha sido indenizada pela

CODEVASF, a Companhia de Desenvolvimento Rio Verde ainda possui grande

extensão de terra nas proximidades do projeto de irrigação. Além disso, há, por parte

desta Companhia, o interesse em concorrer ao processo em que será escolhida a

empresa-mãe que fará a gestão do perímetro irrigado, de acordo com informações

repassadas pelo órgão responsável pela execução do empreendimento.

Grilagem, ameaças, despejos, processos fraudulentos de compra foram algumas

das estratégias utilizadas pelos grileiros para fazerem a “limpeza” da área onde foi

implantado o Projeto de Irrigação Baixio de Irecê, o maior perímetro irrigado público da

América Latina, embora a CODEVASF não reconheça esses fatos, além de admitir que

o referido empreendimento não é direcionado para os camponeses desterritorializados,

uma vez que, segundo a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e

do Parnaíba, esses camponeses não dispõem de condições financeiras e não estão aptos

à agricultura irrigada sob os moldes empresariais. Nesse cenário polêmico e marcado

por contradições, verifica-se a ocorrência de conflitos pela terra e pela água como

elementos das disputas territoriais e de classe, envolvendo os camponeses e a

CODEVASF, a qual utiliza de diversos mecanismos para cooptar os camponeses ou

ainda invisibilizar e deslegitimar as reivindicações e a organização das famílias

camponesas atingidas com a implantação do empreendimento.

Nas comunidades atingidas pelo Projeto de Irrigação Baixio de Irecê, a luta pela

terra e pela água protagonizada pelos camponeses conta com o apoio da CPT, que faz a

mobilização social, realizando encontros para discutir as medidas a serem adotadas no

enfrentamento à CODEVASF. Fruto desse trabalho de mobilização, a realização de

audiências públicas com a presença dos envolvidos no processo (camponeses e

CODEVASF) tem permitido ampliar o debate sobre os impactos do empreendimento

para as comunidades localizadas em seu entorno, bem como evidenciar as condições

socioeconômicas das famílias camponesas dessa região, como forma de questionar a

legitimidade do montante de recursos públicos investidos na obra, já que o

empreendimento será voltado para as empresas, restando aos camponeses, como única

alternativa, serem incorporados como mão de obra barata e sem qualificação.

Com sua atuação junto às comunidades, a CPT tem conseguindo avanços

importantes enecessários à sua manutenção no contexto da luta pela terra e pela água,

cujo maior desafio tem sido estabelecer uma unidade entre as comunidades, para que

elas possam travar uma luta unificada contra os processos desterritorializantes

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encampados pelo Estado nessa região. O reordenamento territorial para atender aos

interesses e aos ditames do grande capital tem levado as comunidades a um processo de

mobilização, com destaque para as identidades territoriais no contexto da unificação da

luta. A chegada do MST ao Projeto de Irrigação Baixio de Irecê gerou conflito entre

camponeses e acampados, revelando as fissuras e a fragmentação no cerne da classe

trabalhadora e dos movimentos de luta pela terra. Essa incompatibilidade de

perspectivas, tanto políticas quanto ideológicas, gerou conflitos e criou travagens para

que camponeses e acampados pudessem elaborar uma pauta única de reivindicações.

Tal contradição não inviabiliza o movimento de resistência encampado pelos

camponeses e acampados do MST, muito embora enfraqueça a possibilidade de resistir

ao controle social executado pelo capital, o que, de fato, impõe limites à

recriação/reprodução do campesinato. Assim, Thomaz Junior (2012, p. 7) enfatiza que

“[...] é por meio das contradições imanentes ao metabolismo do capital que devemos

entender a existência camponesa”, cuja negação compreende uma possibilidade

histórica no interior do sistema vigente vinculado à produção de mercadorias, em que os

recuos e avanços são próprios da dialética da luta e da resistência.

É necessário sublinhar aqui as disputas territoriais e de classes no campo trazem

à tona o desejo de fortalecer as relações de poder a partir do pensamento único, como

estratégia para perpetuar antigas estruturas já desgastadas pelo tempo. Esse pensamento

hegemônico tem demandado constantes rearranjos por parte do capital, no sentido de

conferir-lhe um caráter moderno, embora muitas de suas práticas sejam arcaicas e

caracterizadas pelo dipolo barbárie e modernidade. O agrohidronegócio em termos

globais representa, à luz dos discursos hegemônicos, a oportunidade de se pôr fim às

iniquidades no campo, com vistas à promoção do crescimento econômico e à redução da

pobreza. Entretanto, a realidade atual desnuda as contradições desse modelo de

desenvolvimento para o campo marcado pela concentração fundiária; a superexploração

do trabalho; o trabalho em condições análogas à escravidão; a produção de

commodities; o uso de agrotóxicos e a consequente contaminação dos trabalhadores, do

ambiente e dos alimentos; a introdução da biotecnologia com organismos geneticamente

modificados e a supressão de práticas socioculturais pautadas no uso racional dos

recursos naturais. Sobre esse modelo agroexportador, Porto-Gonçalves e Santos (2012,

p. 80) destacam que se, “de um lado, vemos entre os apologistas desse modelo o

destaque para seu êxito econômico, é possível identificarmos o preço que a sociedade

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brasileira vem pagando, sobretudo os grupos sociais que vêm sendo vítimas da violência

imanente a esse processo”.

Para se compreender melhor a complexa trama de relações e a abrangência dos

rearranjos territoriais e de classes no âmbito da expansão do agrohidronegócio no

Semiárido baiano, fez-se necessário reconhecer a pluralidade dos sujeitos e de suas

identidades territoriais/laborais, por entendermos que a luta pela terra e pela água, nessa

região, envolve sujeitos com distintas perspectivas políticas e ideológicas. Reconhecer e

valorizar essas diferenças permitiu-nos que chegássemos ao entendimento de que as

travagens do processo social materializadas no espaço e seu constante redesenho a partir

das relações de poder – ou seja, a constituição dos territórios em disputa – envolvem

territorialidades muitas vezes construídas a partir do estranhamento entre aqueles que

protagonizam as lutas de resistência anticapital e contra-hegemônicas.

Se o consenso não se fez presente nas ações entre as comunidades atingidas pelo

Projeto de Irrigação Baixio de Irecê e os acampados do MST, de outra forma exigiu que

ambos repensassem as estratégicas adotadas até o momento, objetivando ponderar

outras possibilidades. Entendemos que tal conflito promoveu uma sociabilidade

estranhada, permeada pelo medo e por maneiras distintas de fazer resistência, trazendo à

tona as profundas fissuras na subjetividade da classe trabalhadora, cujos diferentes

elementos e perfis devem ser considerados ou particularizados na análise da dinâmica

territorial da relação capital-trabalho. Distintas formas de luta e de resistência geram

diferentes desdobramentos entre os sujeitos e sobre o espaço, e a leitura da pluralidade

das combinações e das contradições existentes por dentro das ações contra-hegemônicas

requer o mergulho profundo para entender como as relações, ora antagônicas ora

complementares, são construídas pelos atores sociais.

O avanço do capital sobre os mananciais hídricos no Semiárido dá-se de maneira

frenética e conta com amplo apoio do Estado, seja através da criação de leis, seja

mediante a implementação de planos e programas governamentais. Os desdobramentos

dessas ações são diversos, incluindo o fomento das disputas territoriais envolvendo o

acesso à terra e à água, conforme registrado nas regiões do Médio e Submédio São

Francisco e esse problema tende a agravar-se ainda mais, frente à perspectiva de

expansão do agrohidronegócio (fruticultura e agrocombustíveis).

Se, por um lado, os camponeses historicamente enfrentaram obstáculos ao

acesso à terra e à água de trabalho, de outro, os latifundiários sempre usufruíram da

condição de “senhores das terras/águas”, poder que lhes foi atribuído ainda

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recentemente pelo próprio Estado, ao garantir que recursos públicos fossem utilizados

para construir obras de segurança hídrica em propriedades particulares. Tais

contradições emergem com força, quando analisamos os conflitos pela água ocorridos,

ao longo dos últimos 30 anos, no vale do Salitre, em decorrência da “modernização” da

agricultura na região e do aumento excessivo da demanda por água, ocasionando mortes

num ambiente extremamente conflituoso. Haja vista que a bacia do rio Salitre

transformou-se num verdadeiro campo de batalha entre salitreiros, CODEVASF,

acampados do MST e grandes empresas entre as quais se destaca a AGROVALE. Nesse

cenário de “modernização”, houve uma destruição das relações não capitalistas de

produção, transformando o camponês num trabalhador para o capital – carapaça do

tempo –, sujeito fundamental para a produção de riquezas e extração de mais-valia nos

perímetros irrigados.

Incorreríamos num erro gravíssimo caso disséssemos que o conteúdo territorial

do Semiárido baiano não tenha sofrido alterações ao longo das últimas quatro décadas,

ao passo que estaríamos cometendo um equívoco banal se desconsiderássemos que a

estrutura política e econômica está assentada em ranços e práticas arcaicas, de modo a

agregar aspectos modernos e conservadores num mesmo espaço. As novas articulações

econômicas do Nordeste semiárido refletem uma tendência global do capitalismo, que é

o avanço das forças produtivas pautado em formas regressivas, sendo estas

fundamentais para a manutenção e para a ampliação das taxas de lucro. Quando

modernas plantas agroprocessadoras são instaladas em pleno Semiárido, rodeadas por

vastas plantações verdes e exuberantes, ou, ainda, quando centenas de containers

partem dessa mesma região, levando frutas para os mercados europeu e estadunidense,

defrontamo-noscom os territórios de “produção de riqueza e subtração da riqueza da

produção” (SOUSA, 2013), com a atuação hegemônica do capital, mediante a

associação com o trabalho assalariado desqualificado e desassistido pelas leis

trabalhistas.

Assim, informalidade, precarização do trabalho, mão de obra barata compõem

faces da mesma moeda, ou seja, dos projetos desenvolvimentistas implantados no

Semiárido baiano, cuja higienização do arcaísmo e transmutação para o moderno se dá

por meio dos imensos canais de irrigação, da suntuosidade dos perímetros irrigados, da

beleza das frutas e pelo discurso da “sustentabilidade” e da responsabilidade ambiental,

como apregoa a Agrovale, dona de grandes extensões de canaviais em Juazeiro.

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Barbárie e modernidade constituem o par dialético no contexto da expansão do

agrohidronegócio no Semiárido baiano. Então, libertar o trabalhador camponês das

amarras do capital apresenta-se como um desafio e o fardo do tempo histórico atual

(MÉSZÁROS, 2007), pois os projetos de irrigação em execução pelo Estado nessa

fração do território nordestino têm gerado inúmeros conflitos no acesso à terra e à água,

além de promover a subordinação do trabalhador aos ditames do capital, seja pela venda

da sua força de trabalho para o capital, seja pela via do consumo de máquinas, de

implementos agrícolas e de agrotóxicos, ou seja, o capital apropria-se da renda da terra

sem necessariamente ser o seu dono. Defendemos, nesse contexto, os projetos de

irrigação não como “fábulas” criadas pelo Estado, mas como possibilidade de viabilizar

terra e água para a produção de alimentos sob o controle dos camponeses e voltada para

os mercados locais. Quando os camponeses ocupam os projetos de irrigação Salitre e

Baixio de Irecê, ou mesmo reivindicam seus territórios junto ao Estado, estão, na

verdade, vislumbrando outras possibilidades para contrapor à territorialização do grande

capital e o consequente monopólio do território, de modo a preservar seus modos de

vida, com relativa autonomia em relação aos totalitarismos do sistema capitalista.

Enxergar o caráter emancipatório das lutas travadas pelos camponeses e

movimentos sociais contra os empreendimentos do Estado a serviço do grande capital

no Semiárido baiano faz-nos acreditar na possibilidade real de uma sociedade menos

excludente e pautada na mudança sistêmica, na superação das travagens que colocam

em risco as sociabilidades camponesas. Pensar como os sujeitos constroem e

reconstroem cotidianamente seus territórios requer urgentemente a adoção de estratégias

para combater as barbáries inerentes aos processos mutilantes e degradantes, intrínsecas

ao modelo de desenvolvimento adotado para o Semiárido baiano. Assim, a luta torna-se

uma condição essencial para a (Re)Existência!

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ANEXO1– Contrato firmado entre a empresa CODEVERDE e as famílias do Baixio de

Irecê.

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