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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
JOSÉ APARECIDO LIMA DOURADO
DAS TERRAS DO SEM-FIM AOS TERRITÓRIOS DO
AGROHIDRONEGÓCIO: conflitos por terra e água no Vale do
São Francisco (BA)
PRESIDENTE PRUDENTE (SP)
Julho de 2015
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
JOSÉ APARECIDO LIMA DOURADO
DAS TERRAS DO SEM-FIM AOS TERRITÓRIOS DO
AGROHIDRONEGÓCIO: conflitos por terra e água no Vale do
São Francisco (BA)
Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação em
Geografia da Faculdade de Ciência e Tecnologia da
Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho”
(FCT/UNESP), como requisito obrigatório para obtenção
do título de Doutor em Geografia, com orientação do
Professor Doutor Antonio Thomaz Junior.
PRESIDENTE PRUDENTE (SP)
Julho de 2015
FICHA CATALOGRÁFICA
Dourado, José Aparecido Lima.
D774d Das terras do Sem Fim aos Territórios do Agrohidronegócio: conflitos
por terra e água no vale do São Francisco. - Presidente Prudente: [s.n], 2015
361 f. : il.
Orientador: Antonio Thomaz Junior
Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de
Ciências e Tecnologia
Inclui bibliografia
1 Agrohidronegócio. 2. Conflitos por terra e água. 3. Vale do São
Francisco. I. Dourado, José Aparecido Lima. II. Thomaz Junior, Antonio. III.
Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Tecnologia. IV. Das
Terras do Sem Fim aos Territórios do Agrohidronegócio : conflitos por terra e
água no vale do São Francisco.
Câmpus de Presidente Prudente
Faculdade de Ciências e Tecnologia
Departamento de Geografia
Rua Roberto Simonsen, 305 CEP 19060-900 Presidente Prudente SP.
Tel (18) 3229-5650 - Fax (18) 3221-8212
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
Prof. Dr. ANTONIO THOMAZ JUNIOR
Orientador
___________________________________
Prof. Dr. CARLOS ALBERTO FELICIANO
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
__________________________________
Profa. Dra. GUIOMAR INEZ GERMANI
Universidade Federal da Bahia (UFBA)
__________________________________
Prof. Dr. MARCELO RODRIGUES MENDONÇA
Universidade Federal de Goiás (UFG)
_____________________________________________
Profa. Dra. SONIA MARIA RIBEIRODE SOUZA
CEGeT/CETAS
______________________________________
JOSÉ APARECIDO LIMA DOURADO
Candidato
RESULTADO: ___________________________
Presidente Prudente, _____ de ____________ de 2015.
DEDICATÓRIA
Aos meus pais, pelo amor, dedicação e respeito.
A Ednar,
camponesa “minha” rainha e guerreira, que entre rezas e preocupações torceu para que o
sonho fosse realizado. O amor, o carinho e os cuidados, mesmo à distância, foram a
força propulsora para a continuidade da caminhada.
A Miguel (in memoriam),
cujos ensinamentos serão sempre lembrados. Mesmo nos momentos finais (e mais
difíceis) de sua vida, ensinou-me que a coragem e a fé são fundamentais para enfrentar
os desafios do cotidiano.
Aos meus irmãos e irmãs,
pela ajuda irrestrita e pela torcida.
Aos amigos Jackes e Carla,
pela amizade e acolhida em Irecê.
A Patrícia, Erika e Minéia,
amigas maravilhosas que facilitaram, sobremodo, a pesquisa.
Aos camponeses e camponesas,
cuja luta tem clareado o horizonte, trazendo à tona a esperança de uma sociedade
emancipada.
AGRADECIMENTOS
Ao chegar ao final dessa caminhada, faz-se necessário agradecer às pessoas
que, ao seu tempo e modo, contribuíram para que tal empreitada fosse realizada. De
antemão, e para me eximir da possibilidade de qualquer esquecimento, quero externar a
todos os meus mais sinceros e profundos agradecimentos. Ressalto que a ausência e o
recolhimento ao longo dos últimos quatro anos não foram suficientes para distanciar-me
de antigas amizades, ou mesmo impedir que novas fossem construídas, muitas delas em
função da própria pesquisa.
O “estar aqui” e o “finalizar a pesquisa” foram possíveis em função da ajuda
de pessoas conhecidas e, também, de muitos desconhecidos que, no desenrolar da
pesquisa, foram agregados, transformando-se em braços e olhos que auxiliaram na
árdua empreitada de construção da tese. Seguindo uma cronologia, agradeço àqueles
que são, em verdade, a minha essência, ou seja, meus pais – “Diná” e Miguel (in
memoriam) – meu todo e a melhor parte de mim, por quem tenho um amor e admiração
imensuráveis. Exemplos de ética, dignidade, sabedoria e força, possibilitaram que eu
aprendesse a “voar”, sem, contudo, retirar a responsabilidade que as minhas escolhas
exigiam. Vocês são o exemplo de que ternura e firmeza não são antagônicas no ato de
educar.
Aos meus irmãos José e Floriano, e irmãs, Maria (ou Ia), Marina, Dolores,
Marilene e Fau, cada um, a seu tempo e modo, contribuíram silenciosa e
significativamente para que eu estudasse e conquistasse esse sonho. Assim como eu,
eles angustiaram, torceram e vibraram com essa conquista.
Aos sobrinhos e sobrinhas, cuja admiração e respeito sempre impulsionaram
a minha caminhada.
Aos meus cunhados e cunhadas – irmãos e irmãs postiços –, pelo apoio.
Aos amigos de Irecê, Carla e Jackes, pela acolhida em sua casa, cujo zelo e
amizade fizeram com que eu os amasse como se fôssemos amigos de infância. Agrego a
essa família maravilhosa, a sempre meiga e sorridente Sheilla. Vocês permitiram que
minha estadia em Irecê fosse mais agradável.
Às famílias do Baixio de Irecê – camponeses e camponesas aguerridos –,
pelo acolhimento em suas casas e pelas longas histórias contadas, permitindo que eu
adentrasse em seus mundos e resgatasse memórias, muitas delas, envolvendo dor e
sofrimento. Senti-me honrado por vivenciar momentos de alegria, (re)união e de
partilha com vocês.
Ao orientador, Prof. Dr. Antonio Thomaz Júnior, pela orientação e
compreensão em relação aos motivos que fizeram com que eu assumisse a vaga do
concurso junto à Universidade do Estado do Amazonas. Sua trajetória acadêmica e seu
comprometimento político fizeram aflorar sentimentos, como respeito e admiração, ao
longo desses quatro anos de orientação.
À Universidade do Estado do Amazonas, pelo apoio irrestrito para que eu
desse continuidade ao processo de doutoramento.
Ao amigo Thomas Bauer, pelo apoio na reta final da elaboração da tese.
A Daiane da Costa Garcia, ou simplesmente “Dai”, pela importante ajuda
com os trâmites finais de entrega da tese.
A Helena Angélica de Mesquita, pelo incentivo incansável e carinho sempre
motivador.
Ao Grupo de Pesquisa GeografAR (Geografia dos Assentamentos em Área
Ruaral), pelo acolhimento e por socializar resultados de pesquisas.
Ao Núcleo de Pesquisa em Estudos Agrários, Território e Trabalho
(NUPEATT), pela colaboração e, principalmente, ao bolsista Edilson Peres Holanda,
pela elaboração dos fluxogramas da tese.
Ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da FCT/UNESP,
principalmente à Cinthia, sempre atenciosa e ágil em nossas demandas “urgentes”.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pela
concessão de bolsa pelo período de seis meses.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Geografia da
FCT/UNESP, por socializarem o conhecimento e agregar novas perspectivas à pesquisa.
Ao Grupo CEGeT, pelos momentos de discussão, amadurecimento teórico e
aprendizado.
Aos professores Marcelo Rodrigues Mendonça e Marcelo Dorneles
Carvalhal que compuseram a Banca do Exame de Qualificação, pela leitura crítica e
pelas valiosas contribuições dadas para a pesquisa.
A Sônia Maria Ribeiro, pela leitura atenta e criteriosa da tese, cujas
observações foram imprescindíveis na etapa final da pesquisa.
Aos amigos que ganhei em Presidente Prudente: Renata Prates, Andreia,
Guilherme Marini, Diógenes Rabello, Fredi, Cintia Lins, Sidney Todescato, Fernando
Heck, Cacá Feliciano, Soninha, Erika Moreira e Clediane.
Aos amigos Diógenes e Ana Paula, pela hospedagem em Presidente
Prudente, momentos de muita alegria e companheirismo.
A distância entre o Alto Solimões e o Pontal do Paranapanema foi, muitas
vezes, encurtada por meu “amigo agroecológico” Diógenes Rabello, a quem deleguei
muitas missões secretas, todas elas cumpridas com extrema competência. Sua ajuda foi
fundamental para a “compressão do espaço”, além de ajudar com questões de ordem
psicológica com boas doses de risadas.
A Patrícia, pela hospedagem em Petrolina, sempre recheada com muito
carinho, companheirismo, simplicidade e amor. Sua colaboração foi fundamental
durante as visitas ao Submédio São Francisco.
A Erika e Mineia, salitreiras guerreiras, cuja ajuda permitiu que eu tivesse
acesso a pessoas e informações essenciais para a pesquisa. Em diversos momentos
vocês foram meus “olhos” e “braços” em Juazeiro.
À CODEVASF, nas pessoas de Manuel Lima e Luís Alberto, pelas
entrevistas concedidas.
Aos diretores do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Rio Verde I, pelas
entrevistas e por autorizar nossa participação nas reuniões dos associados.
À CPT, por disponibilizar os estudos e levantamentos realizados juntos às
comunidades do Baixio de Irecê.
Ao MST, na pessoa de Paulo César, por autorizar as visitas aos
acampamentos e assentamento, de maneira sempre respeitosa, gentil e acolhedora,
permitindo-nos visualizar novos horizontes na luta anticapital.
Para finalizar, agradeço aos salitreiros e salitreiras, por terem
disponibilizado seu tempo para contar suas histórias de vida, suas angústias, permitindo-
nos conhecer por dentro os desafios enfrentados pelos camponeses caatingueiros na luta
pela terra e pela água.
A todos, meus mais sinceros agradecimentos!
DOURADO, J. A. L. Das terras do sem-fim aos territórios do agrohidronegócio:
conflitos por terra e água no Vale do São Francisco (BA). Tese (Doutorado em
Geografia), Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Presidente
Prudente, 2015.
RESUMO
As políticas públicas voltadas para o fomento à irrigação no Nordeste brasileiro
promoveram, ao longo das últimas quatro décadas, profundas transformações no espaço
agrário da região semiárida. Inseridos no contexto da modernização conservadora da
agricultura, os projetos de irrigação criados pelo Departamento Nacional de Obras
Contra as Secas (DNOCS) e pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do Rio
São Francisco e Parnaíba (CODEVASF) transformaram-se na mola propulsora para o
desenvolvimento econômico regional, estando, em muitos casos, fortemente atrelados
ao grande capital e aos interesses e organismos externos, como é o caso da Política
Agrícola Comum (PAC) europeia. Investimentos públicos em obras de infraestrutura
hídrica, terras férteis, oferta de mão-de-obra e condições climáticas favoráveis
possibilitaram a territorialização do agrohidronegócio no vale do rio São Francisco,
transformando a região em mais uma “Califórnia brasileira”, com diversos projetos de
irrigação em fase de produção, de implantação ou em estudo. Com os investimentos
públicos, ocorreram a valorização e a especulação das terras às margens do Velho
Chico, com destaque para as regiões do Médio e Submédio São Francisco, onde estão
localizados, respectivamente, os projetos de irrigação Baixio de Irecê e Salitre,
considerados “duas transposições baianas” em função dos volumes de água requeridos
para a implantação desses empreendimentos. A criação desses perímetros irrigados
provocou a desterritorialização e o desterreamento de centenas de famílias camponesas,
que ao longo da história vivenciaram distintos processos desterritorializantes em função
das ações do Estado (construção da Barragem de Sobradinho) e da grilagem de terras
nos vales dos rios Verde e Jacaré, ou ainda em função da desapropriação de terras para
fins sociais. Esses novos arranjos espaciais têm ocasionado conflitos pela terra e pela
água por parte dos camponeses caatingueiros, que têm assumido as trincheiras do
enfrentamento ao grande capital e cujas ações apresentam-se ricas em conteúdo político
na luta anticapital, tornando-se fundamentais para a construção das (Re)Existências e
dos espaços de esperança.
Palavras-chave: Projetos de Irrigação. Agrohidronegócio. Luta pela terra e pela água.
Semiárido baiano. Campesinato.
DOURADO, J. A. L. Land worm to agrohidronegócio Territories: conflicts over
land and water in the São Francisco Valley (BA). Thesis (PhD in Geography),
Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho". Presidente Prudente, in 2015.
ABSTRACT
Public policies aimed at fostering irrigation in northeastern Brazil have promoted over
the last four decades, profound changes in the agrarian space of semiarid region. Within
the context of conservative modernization of agriculture, irrigation projects created by
the National Department of Works Against Drought (DNOCS) and the Development
Company of the Rio São Francisco and Parnaíba Valleys (CODEVASF) became the
driving force for development regional economic and is, in many cases strongly linked
to big business and the interests and external bodies, such as the Common Agricultural
Policy (CAP) European. Public investment in water infrastructure works, fertile land,
labor, labor supply and favorable weather conditions allowed the territorialization of
agrohidronegócio in the valley of the São Francisco river, transforming the region into
one more "Brazilian California", with several irrigation projects in production,
deployment or study. With public investment, occurred recovery and speculation of land
on the banks of the “Velho Chico”, especially the regions of the Middle and Lower-
middle São Francisco, where they are located, respectively, irrigation projects of Baixio
de Irecê and Salitre, considered "two transpositions Bahia "according to the volumes of
water required for the implementation of these projects. The creation of these irrigation
schemes led to the dispossession and the desterreamento of hundreds of peasant
families, who throughout history have experienced different deterritorializing processes
according to the state actions (construction of the Sobradinho Dam) and land grabbing
in the valleys of rivers and Green alligator, or in the light of the expropriation of land
for social purposes. These new spatial arrangements have caused conflicts over land and
water by the caatingueiros peasants who have taken the trenches of confronting big
business and whose shares are presented in rich political content in Anticapital fight,
making it fundamental for the construction of (Re) Inventories and hopes spaces
KEYWORDS: Irrigation Projects. Agrohidronegócio. Struggle for land and water.
Bahia semi-arid. Peasantry.
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Projetos de irrigação sob a gestão da CODEVASF – 2014......................... 56
Quadro 2: Projetos de irrigação sob a gestão do DNOCS – 2014............................... 57
Quadro 3: Empreendimentos de Energia Eólica da Renova....................................... 66
Quadro 4: Caracterização dos camponeses da pesquisa (2011-2014)......................... 81
Quadro 5: Sujeitos Entrevistados........................................................................... 84
Quadro 6: Área dos estabelecimentos agropecuários por utilização das terras na
Bahia, 1996/2006.................................................................................
118
Quadro 7: Metas do Programa BAHIABIO............................................................ 120
Quadro 8: Metas de Produção de Etanol nos Polos da Bahia.................................... 122
Quadro 9: Projeção de Cultivo de Oleaginosas na Bahia para o ano de 2012.............. 125
Quadro 10: Conflitos por água no Brasil – 2002/2013................................................ 167
Quadro 11: Número e causas dos conflitos pela água no Brasil, em 2013, por região
geográfica............................................................................................
168
Quadro 12: Conflitos pela água na Região Nordeste – 2012....................................... 169
Quadro 13: Conflitos pela água na Bahia – 2002/2013............................................... 169
Quadro 14: Índice de Gini – Bahia 1920/2006........................................................... 191
Quadro 15: Classificação do índice de Gini dos municípios do estado da Bahia............ 192
Quadro 16: Terras improdutivas nos municípios pertencentes à Diocese de Juazeiro
(BA) – 2003.........................................................................................
193
Quadro 17: Grau de distribuição da terra por número de municípios (1940-2006)......... 196
Quadro 18: Estabelecimentos no vale do rio Salitre, por grupos de área de 0 a 20ha e
de mais de 1.000ha................................................................................
197
Quadro 19: Barragens localizadas no rio Salitre e seus afluentes................................. 282
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Complexos Eólicos na Região Sudoeste da Bahia – 2013.............................. 65
Tabela 2: Conflitos por Terra na Bahia (1990-2014)....................................................... 130
Tabela 3: Eixo 1 – Parcerias Público-Privadas em Irrigação............................................ 133
Tabela 4: Eixo 2 – Implantação e Revitalização de Projetos de Irrigação....................... 136
Tabela 5: Eixo 3 – Agricultura Familiar e Pequenos Irrigantes...................................... 137
Tabela 6: Eixo 4 – Estudos e Projetos.......................................................................... 138
Tabela 7: Estimativa das Terras Devolutas por estado da Região Nordeste..................... 182
Tabela 8: Terras Devolutas – Municípios da Área da Pesquisa e seu entorno (BA)........ 185
Tabela 9: Cadastro de Imóveis Rurais – Xique-Xique (BA)......................................... 188
Tabela 10: Cadastro de Imóveis Rurais - Itaguaçu da Bahia – (BA)................................. 189
Tabela 11: Cadastro de Imóveis Rurais – Juazeiro
(BA).....................................................
190
Tabela 12: Índice de Gini dos municípios do Vale do Salitre – Bahia – 1920-
2006...........
198
Tabela 13: Transações de compra e venda de terras na área do Projeto Baixio de Irecê.... 224
Tabela 14: Superfície Agrícola Útil (SAU)........................................................................ 243
Tabela 15: Características Básicas do Projeto Salitre......................................................... 288
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Trabalhadores no mercado do produtor (CEASA) em Juazeiro (BA).............. 144
Figura 2 Atividades agropecuárias no Acampamento Abril Vermelho (1: Criação de
caprinos, 2: Colheita de cebola, 3: Colheita de batata doce e 4: Lavoura de
mandioca).................................................................................................
315
Figura 3: Práticas socioculturais das comunidades salitreiras (1: Samba de Véio, 2:
Samba de Braço, 3: Bumba-meu-boi e 4: Procissão de Nossa Senhora
Santana)
...........................................................................................................................
323
Figura 4: Jornal Carrapicho.............................................................................................. 324
LISTA DE FLUXOGRAMAS
Fluxograma 1: Esquema metodológico da pesquisa...................................................... 72
Fluxograma 2: Sujeitos da Pesquisa.............................................................................. 76
Fluxograma 3: Cadeia sucessória das terras do Projeto de Irrigação do Baixio de Irecê.. 228
LISTA DE ORGANOGRAMAS
Organograma 1: Camponês caatingueiro e a relação metabólica terra e água.................... 45
Organograma 2: Perspectiva (des)integradora do agrohidronegócio.................................. 161
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1: Vínculos com a terra nos vales dos rios Verde e Jacaré.................................. 239
LISTA DE MAPAS
Mapa 1 Localização da Área da Pesquisa....................................................................... 50
Mapa 2: Projetos de Irrigação do DNOCS e CODEVASF............................................ 54
Mapa 3: Territórios da Cidadania no Nordeste........................................................................... 61
Mapa 4: Centrais Geradoras Elioelétricas, Pequenas Centrais Hidroelétricas e Usinas 64
Hidroelétricas na Bahia.................................................................................................
Mapa 5: Polo de Produção do Sub Programa Etanol na Bahia................................................... 121
Mapa 6: Polo de Produção do Sub Programa Biodiesel na Bahia.............................................. 124
Mapa 7: Abrangência do Programa Mais Irrigação.................................................................... 134
Mapa 8: Processos Minerários no DNPM na Bahia.................................................................... 171
Mapa 9: Áreas de Expansão do Agrohidronegócio na Bahia..................................................... 176
Mapa 10: Terras Devolutas na Bahia............................................................................................ 183
Mapa 11: Concentração Fundiária na Bahia................................................................................. 194
Mapa 12: Perímetro Irrigado do Baixio de Irecê.......................................................................... 236
Mapa 13: Localização da Bacia do Rio Salitre............................................................................. 269
Mapa 14: Projeto Irrigado do Salitre............................................................................................. 291
LISTA DE FOTOS
Foto 1: Parque Eólico Alto Sertão I, Município de Caetité (BA) – 2014...................... 63
Foto 2: Stands de implementos agrícolas e da Agricultura Familiar na EXPOAGRI,
em Juazeiro, 2013........................................................................................
88
Foto 3: Stands de implementos agrícolas e da Agricultura Familiar na EXPOAGRI,
2013..........................................................................................................
89
Foto 4: Reunião com camponeses atingidos pelo Projeto Baixio do Irecê, Itaguaçu da
Bahia (BA).................................................................................................
90
Foto 5: Reunião com camponeses atingidos pelo Projeto Baixio do Irecê no município
de Xique-Xique (BA)..................................................................................
90
Foto 6: Trabalhador diarista pulverizando agrotóxico em lavoura de melão – Projeto
Salitre.......................................................................................................
142
Foto 7: Camponês durante a pesca no rio São Francisco - Comunidade do Roçado,
município de Xique-Xique (BA)..................................................................
145
Foto 8: Camponês em seu roçado de mandioca e melancia, às margens do rio São
Francisco – Comunidade de Roçado, Xique-Xique (BA)................................
146
Foto 9: Entrada da Fazenda da CODEVERDE em Xique-Xique (BA)......................... 208
Foto 10: Tomada de água do Projeto Baixio de Irecê. Comunidade Nova Boa Vista
(Xique-Xique)............................................................................................
237
Foto 11: Acampamento do MST na área do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê –
Xique-Xique...............................................................................................
259
Foto 12: Assentamento Vale da Conquista – Sobradinho (BA)..................................... 301
Foto 13: Plantação de batata, milho e banana – Assentamento Vale da Conquista,
Sobradinho (BA).........................................................................................
303
Foto 14: Lavoura de milho irrigada por mangueiras – Assentamento Vale da
Conquista, Sobradinho (BA).........................................................................
304
Foto 15: Perímetro irrigado do Assentamento Vale da Conquista, Sobradinho (BA). Ao
fundo, aerogeradores do Parque Eólico da Renova Energia...............................
305
Foto 16: Acampamento Abril Vermelho – Município de Juazeiro (BA).......................... 306
Foto 17: Compra de produtos por atravessadores no Acampamento Abril Vermelho...... 308
Foto 18: Camponês do Acampamento Abril Vermelho – Juazeiro (BA).......................... 313
Foto 19: Camponês da comunidade de Curral Novo expondo os produtos derivados do 320
umbu durante a 24ª da FENAGRI – Juazeiro.................................................
Foto 20: Stand da agricultura familiar na 24ª FENAGRI/Juazeiro................................. 321
Foto 21: Reunião, na comunidade de Baraúna, para debater sobre a importância do
Jornal Carrapicho........................................................................................
325
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABEEÓLICA - Associação Brasileira de Energia Eólica
ACM – Antônio Carlos Magalhães
ANA - Agência Nacional das Águas
ANEEL - Agência Nacional de Energia Elétrica
APP - Áreas de Preservação Permanente
APRIR - Associação dos Pecuaristas da Região de Irecê
ATER - Assistência Técnica e Extensão Rural
BA – Bahia
BAHIABIO – Bahia Biocombustíveis
BAMIN - Bahia Mineração
BID - Banco Mundial
BIRD - Banco Interamericano de Desenvolvimento
BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Social
BPA – Boas Práticas Agrícolas
CBHS - Comitê de Bacia Hidrográfica do rio Salitre
CBHSF - Comitê de Bacia Hidrográfica do São Francisco
CCEE - Câmara de Comercialização de Energia Elétrica
CDRU - Concessão de Direito Real de Uso
CE – Ceará
CEASA - Centro de Abastecimento
CEBs - Comunidades Eclesiais de Base
CEMIG – Companhia de Eletricidade de Minas Gerais
CETA - Coordenação Estadual de Trabalhadores Acampados, Assentados e
Quilombolas
CHESF - Companhia Hidroelétrica do rio São Francisco
CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CODEVASF – Companhia de Desenvolvido dos Vales dos Rios São Francisco e
Parnaíba
CODEVERDE - Companhia de Desenvolvimento do Rio Verde
COELBA - Companhia de Energia Elétrica da Bahia
COOPERIRECÊ - Cooperativa Agropecuária Mista Regional de Irecê
CPT – Comissão Pastoral da Terra
CVSF - Comissão do Vale do São Francisco
CVSF - Companhia Vale do São Francisco
DNOCS – Departamento Nacional de Obras Contra as Secas
DNPM - Departamento Nacional de Produção Mineral
EIA - Estudos de Impactos Ambientais
EMSA - Empresa Sul Americana de Montagens
EPI – Equipamento de Proteção Individual
EUA - Estados Unidos da América
EXPOAGRI - Exposição Agropecuária da Região de Irecê
FENAGRI - Feira Nacional da Agricultura Irrigada
FETRAF - Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar
FIOL - Ferrovia de Integração Oeste-Leste
FNE - Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste
FUNDIFRAN - Fundação de Desenvolvimento Integrado do São Francisco
GARRA - Grupo de Apoio e de Resistência Rural e Ambiental
GEIDA - Grupo Executivo de Irrigação e Desenvolvimento Agrícola
GEOFRAFAR – Geografia dos Assentamentos Rurais
GGA - Gerenciamento Global Ampliado
GTA - Grupo Interministerial do Açúcar
GW – Giga Watts
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IDH - Índice de Desenvolvimento Humano
IFOCS - Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas
IG – Indicação Geográfica
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
INEMA - Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos
IOCS - Inspetoria de Obras Contra as Secas
IRPAA - Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada
ITRUL - Imobiliária de Terrenos Rurais e Urbanos
LANDSAT – Land Remote Sensing Satellite
LER - Leilão de Energia de Reserva
MDA - Ministério de Desenvolvimento Agrário
MG – Minas Gerais
MI - Ministério da Integração
MME - Ministério de Minas e Energia
MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
MW – Mega Watts
OIT – Organização Internacional do Trabalho
ONG – Organização Não Governamental
PA – Pará
PAC – Política Agrícola Comum
PAC – Programa de Aceleração do Crescimento
PCH - Pequena Central Hidrelétrica
PDRI - Projetos de Desenvolvimento Rural Integrado
PDT - Política de Desenvolvimento Territorial
PE – Pernambuco
PECSR - Projeto Especial de Colonização Serra do Ramalho
PND - Plano Nacional de Desenvolvimento
PNI - Plano Nacional de Irrigação
PNSH - Plano Nacional de Segurança Hídrica
POLONORDESTE - Programa de Desenvolvimento Integrado do Nordeste
POSGEO – Pós-Graduação em Geografia
PPA – Plano Plurianual
PPI - Programa Plurianual de Irrigação
PPPs - Parcerias Público-Privadas
PROÁLCOOL – Programa Nacional do Álcool
PROFIR - Programa de Financiamento de Equipamentos de Irrigação
PROINE - Programa de Irrigação do Nordeste
PRONI - Programa Nacional de Irrigação
PROTERRA - Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do
Norte e Nordeste
PTDRS - Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável
RIMA - Relatório de Impactos Ambientais
RN – Rio Grande do Norte
RPAs - Regiões Produtivas Agrícolas
SAG – Superfície Agrícola Geográfica
SAU - Superfície Agrícola Útil
SEAGRI - Secretaria de Agricultura do Estado da Bahia
SEI - Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia
SENIR - Secretaria Nacional de Irrigação
SEPLAN - Secretaria Planejamento do Estado da Bahia
SINPRI - Sindicato dos Produtores Rurais de Irecê
SNCR – Sistema Nacional de Crédito Rural
STR – Sindicato dos Trabalhadores Rurais
SUDENE - Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste
SUVALE - Superintendência do Vale do São Francisco
TM - Thematic Mapper
UAVS - União das Associações do Vale do Salitre
UC – Unidade de Conservação
UE – União Europeia
UFBA – Universidade Federal da Bahia
UNEB – Universidade do Estado da Bahia
VBP – Valor Bruto de Produção
VERACEL - Vera Cruz Celulose
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO.......................................................................................................... 19
INTRODUÇÃO............................................................................................................... 25
CAPÍTULO I - TECENDO OS FIOS DA “MEADA”: A TRAJETÓRIA
METODOLÓGICA DA TESE......................................................................................
33
1.1 Sobre tecelões, teares e fios: a pesquisa na Ciência Geográfica............................. 34
1.2 Quando o território da vida se confunde com o território da pesquisa:
entendendo os porquês do Semiárido baiano................................................................
48
1.3Trajetórias caatingueiras: a construção metodológica da pesquisa....................... 70
1.4 Os sujeitos da pesquisa: perspectivas híbridas........................................................ 74
1.5 A organização das informações.............................................................................. 92
CAPÍTULO II - POLÍTICAS PÚBLICAS DE IRRIGAÇÃO E A GEOGRAFIA
DO AGROHIDRONEGÓCIO NO SEMIÁRIDO BAIANO...................................... 96
2.1 Política de Irrigação no Brasil: resgate histórico e fundamentos polítcos.... 97
2.2 Novo Modelo de Irrigação: transferência disfarçada do papel do Estado para o
capital privado............................................................................................................... 105
2.3 Programa Estadual de Bioenegia - BAHIABIO: (des)construção de
consensos......
114
2.4 Programa Mais Irrigação: retalhos do tecido desenvolvimentista......................... 131
2.5 As águas do Semiárido brasileiro correm para o mercado global........................ 148
CAPÍTULO III - TRAMAS DO AGROHIDRONEGÓCIO E A QUESTÃO
AGRÁRIA NA BAHIA................................................................................................... 155
3.1 Tramas do Agrohidronegócio e reorganização territorial do Semiárido
baiano............................................................................................................................ 156
3.2 Avanço das fronteiras do capital e os conflitos por água no Brasil...................... 165
3.3 Polígono do Agrohidronegócio na Bahia e a usurpação dos territórios
camponeses...................................................................................................................
172
3.4 Questão fundiária e terras devolutas na Bahia:dualidade “terra de ninguém”
versus propriedade privada.................................................................................. 180
3.5 Estrutura fundiária e os desafios para o acesso à terra no Vale do Salitre............ 195
3.6 Grilagem de terras públicas, expropriação camponesa e violência no Baixio de
Irecê (BA)...................................................................................................................... 200
3.7 O campo movediço da legalização da grilagem de terras no Semiárido baiano: o
movimento das “peças” no tabuleiro, sob o controle do Estado e do capital.............. 210
3.8 Legalizando a Barbárie no Semiárido baiano: do uso comunal ao cercamento
das terras no Baixio de Irecê......................................................................................... 219
CAPÍTULO IV - PROJETO DE IRRIGAÇÃO BAIXIO DE IRECÊ:
REORDENAMENTO DO TERRITÓRIO PELO
AGROHIDRONEGÓCIO...................................................................................... 230
4.1 Caracterização da rede hidrográfica da região do Projeto de Irrigação Baixio de
Irecê............................................................................................................................... 231
4.2 Usos do território e disputas territoriais no Semiárido baiano................................ 233
4.3 Organização, resistência e contradições: o desafios da luta pela terra das
famílias camponesas do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê...................................... 249
4.4 Ocupação do MST no Projeto de Irrigação Baixio de Irecê: conflito e
estranhamento de classe no contexto da luta pela terra e pela água....................... 260
CAPÍTULO V - PROJETO SALITRE: FACES CONTRADITÓRIAS DO
AGROHIDRONEGÓCIO NO SEMIÁRIDO BAIANO............................................. 267
5.1 Breve histórico da ocupação e dos conflitos no Vale do rio Salitre..................... 268
5.2 Projeto Salitre, agrohidronegócio e disputas territoriaise de classe no Submédio
São Francisco........................................................................................................ 288
5.3 A chegada do “estranho”: a conflitualidade entre o MST e os salitreiros.............. 294
5.4 Acampamento Abril Vermelho: expressões polissêmicas da luta pela terra e pela
água no vale do rio Salitre............................................................................................. 297
5.5 Mobilização social e múltiplas resistências no Submédio São Francisco.............. 316
5.5.1 Territorialização do campesinato na FENAGRI: disputas veladas no
território do agrohidronegócio em Juazeiro/Petrolina.............................................. 318
5.5.2 Resgate das práticas socioculturais e (Re)Existência camponesa no vale do
Salitre....................................................................................................................... 321
CONSIDERAÇÕES FINAIS – AGROHIDRONEGÓCIO E LUTA
ANTICAPITAL: PENSANDO A CONSTRUÇÃO DOS ESPAÇOS DE
ESPERANÇA................................................................................................................... 328
REFERÊNCIAS.................................................................................................... 341
ANEXO................................................................................................................ 356
19
APRESENTAÇÃO
Vocês que fazem parte dessa massa
Que passa nos projetos do futuro
É duro tanto ter que caminhar
E dar muito mais do que receber
E ter que demonstrar sua coragem
À margem do que possa parecer
E ver que toda essa engrenagem
Já sente a ferrugem lhe comer
O povo foge da ignorância
E sonham com melhores tempos idos
Esperam nova possibilidade
De verem esse mundo se acabar.
(Zé Ramalho, “Admirável gado novo”)
As alterações no desenho espacial e territorial no campo brasileiro no pós-
1970 têm exigido novas interpretações do espaço agrário no Semiárido nordestino, com
vistas a entender as tramas do capital e do trabalho, materializadas nos territórios em
disputa entre o agrohidronegócio e o campesinato. A crise do sistema sociometabólico
do capital (MÉSZÁROS, 2007) impôs aos países capitalistas profundas transformações
e ajustes nos mais diferentes setores, principalmente na economia. A junção entre a
crise do padrão de acumulação mundial (e a consequente reestruturação produtiva do
capital) e as políticas públicas implantadas pelo Estado no Nordeste brasileiro
exerceram papel central para a conformação do fenômeno analisado nesta pesquisa, ou
seja, a expansão do agrohidronegócio (MENDONÇA e MESQUITA, 2007; THOMAZ
JUNIOR, 2009) e as disputas territoriaisno Semiárido baiano.
A justificativa política e ideológica utilizada pelo Estado perante a
população era o discurso forjado a partir da necessidade de superar o atraso e o
isolamento do Nordeste em relação ao restante do país bem como de potencializar o
desenvolvimento brasileiro. Nos anos de 1970, as necessidades de expandir a oferta de
energia para atender a demanda do recente parque industrial instalado no Centro-Sul e
de integrar regionalmente o país colocavam-se como prioridades para o governo
daquela época.
Nesse contexto, o Estado planejou e executou ações na região Nordeste com
vistas a promover o desenvolvimento e o progresso nacional, a partir de duas vertentes:
a construção de Sobradinho, que passaria a gerar energia a ser consumida, inclusive, em
outras regiões do país, exercendo papel econômico estratégico e a construção de
20
diversos perímetros irrigados, aos quais atribuiria a responsabilidade de alavancar a
economia regional e reduzir os efeitos das secas. Assim, em toda extensão semiária
nordestina, novas paisagens foram criadas em virtude do fomento, por parte das
políticas públicas, à irrigação, surgindo “ilhas de desenvolvimento” em meio a um
sertão repleto de mazelas sociais, muitas delas decorrentes da histórica concentração da
terra, tão marcante nessa região.
Contraproducentes, a implantação dos perímetros irrigados e a
modernização da agricultura foram, ao longo dos anos, provocando a expulsão das
“velhas” formas de uso e exploração da terra, frente à imposição de novos modelos de
organização espacial pautados na lógica da produção de mercadorias. Ainda como efeito
dessa modernização, entendida aqui como conservadora, cabe destacar seus efeitos
nefastos sobre o “ethos de campesinidade” (WOORTMANN e WOORTMANN, 1997)
dos camponeses caatingueiros (em seus diferentes matizes), levando muitos a incorporar
o discurso da empregabilidade e do assalariamento como solução para a pobreza rural.
Os perímetros irrigados, muitos deles transformados em polos frutícolas integrados ao
mercado global, como é o caso de Juazeiro/Petrolina, passaram a polarizar
investimentos públicos e privados, sob forte influência do grande capital, de organismos
e de normas internacionais, como é o caso da Política Agrícola Comum (PAC) e do
Banco Mundial.
Ao longo das últimas quatro décadas, a opção por parte do Estado em
priorizar a construção de obras de infraestrutura hídrica no Semiárido nordestino
permitiu as condições adequadas para a territorialização do capital, aproveitando-se dos
grandes incentivos fiscais, da disponibilidade de mão de obra, de terras férteis, água e
condições climáticas favoráveis. O expansionismo do capital nessa fração do território
nordestino deu-se, inclusive, mediante a incorporação de terras “improdutivas”
ocupadas pelos camponeses, transformadas em terra de negócio (MARTINS, 2004) no
circuito da produção de mercadorias. A modernização capitalista promoveu a chegada
do “estranho”, atraído pelo discurso midiático da empregabilidade e das facilidades
oferecidas à reprodução do capital.
Como resultado da modernização conservadora da agricultura, muitas
famílias camponesas foram expulsas de suas terras (em virtude da grilagem, da
indenização por interesse social, ou da especulação fundiária), tendo como destino as
periferias urbanas, as áreas de terras devolutas afastadas dos cursos d’água ou, ainda, as
fazendas onde passaram a vender sua força de trabalho. Outra parte foi incorporada
21
pelas atividades agrícolas dos perímetros irrigados como assalariados rurais ou diaristas,
assimilando o discurso da empregabilidade e da geração de renda, tão bem defendido e
propalado pelo Estado e pelo capital. Na contramão dessa história, outros tantos sujeitos
desterritorializados/desterreados passaram a vivenciar a experiência da luta pela terra
através dos movimentos sociais do campo, protagonizando importantes ações de
enfrentamento e resistência ao modelo hegemônico colocado em execução para o
campo brasileiro.
Os investimentos públicos em obras de infraestrutura hídrica viabilizaram a
introdução da fruticultura irrigada no Semiárido nordestino, anteriormente ocupado com
os currais e algodoais, transformando a realidade de muitos lugares, que passaram a
conviver com uma agricultura moderna, relativamente tecnificada e altamente
dependente do pacote tecnológico da revolução verde. Em decorrência desse avanço do
capital sobre as terras do Nordeste seco, os camponeses e seus modos de vida tornaram-
se obsoletos e passaram a representar um entrave para a produção de mercadorias.
Assim, muitos camponeses vivenciaram a desterritorialização e o desterreamento,
processos coexistentes no cerne dos projetos desenvolvimentistas executados na região
semiárida nordestina. Nesse sentido, os conceitos de território (OLIVEIRA, 2003),
desterritorialização (HAESBAERT, 2009) e desterreamento (THOMAZ JUNIOR,
2009) são recorrentes para fazermos as “leituras” do espaço agrário no Semiárido
baiano, frente às profundas mutações ocorridas na organização espacial e nas relações
de trabalho e de produção.
Como forma de não capitularmos aos discursos midiáticos e aos consensos
sociais deles decorrentes, buscamos, a partir do enfrentamento capital versus trabalho e
da relação capital-Estado, entender os desdobramentos da expansão do
agrohidronegócio no Semiárido baiano, com foco na luta pelo acesso à terra e à água,
cujas ações, desencadeadas pelos camponeses e por movimentos sociais, trazem em seu
cerne elementos explicativos e ricos em conteúdos políticos sobre a emancipação social
frente ao destrutivismo do sistema sociometabólico do capital. Tais lutas têm permitido
fazer o enfrentamento por dentro do tecido social do capital, colocando para os
camponeses e movimentos sociais o desafio de superar a fragmentação da classe
trabalhadora, de modo a fortalecer a organização social e pressionar o Estado para que
as políticas públicas estejam atreladas às demandas das populações do campo,
historicamente colocadas à margem dos benefícios dos investimentos públicos.
22
As disputas por terra e água no Semiárido baiano expressam o dinamismo e
a complexidade inerentes à questão agrária, bem como os resultados nefastos das
políticas públicas voltadas para a irrigação nessa região, pois estas assumem relevante
papel no tocante à territorialização do agrohidronegócio, condição reveladora de seu
componente de classe. A organização desta tese, intitulada “DAS TERRAS DO SEM-
FIM AOS TERRITÓRIOS DO AGROHIDRONEGÓCIO: conflitos por terra e
água no vale do São Francisco (BA)”,representa o devir da construção do
conhecimento, o movimento das ideias, impossíveis de serem organizadas de forma
hermética, pois sua essência traz a dialética e as contradições do movimento do real.
Trata-se de uma pesquisa com horizontes abertos, pois fugimos da
concepção de produto acabado, ante a natureza dos fenômenos em análise. A
abordagem dialética não nos permite pinçar os fatos da realidade e entendê-los
separadamente, como se fossem independentes. O ir e vir expressos no corpo dos
capítulos representa a própria essência dos sujeitos e dos fenômenos pesquisados,
entrelaçados por saberes-fazeres (MENDONÇA, 2004) e por agentes externos.
Propusemos “costurar” a teoria e a empiria, de modo a revelar a pluralidade e a
complexidade da realidade vivenciada pelos camponeses caatingueiros, seus desafios
para se manterem na terra de trabalho bem como a reproduzir seus modos de vida.
Ademais, ao esgarçar os territórios em conflito, constatamos que as áreas onde estão
atualmente localizados muitos dos polos frutícolas no Semiárido nordestino foram os
mesmos locais de embates entre indígenas e colonizadores, como é o caso do vale do rio
Salitre no Submédio São Francisco, revelando quão nefasto, desigual e contraditório é o
processo de “desenvolvimento” sob os ditames do capital.
Do mesmo modo, ao analisarmos os desdobramentos das políticas públicas
de incentivo à irrigação no Semiárido baiano, concluímos que estas vão espalhando os
conflitos pelo território, ora como filetes e outras vezes como uma inundação (como nos
bons tempos do Velho Chico). Em cada canto e recanto vão produzindo efeitos
repetidos e deturpações novas, aos quais estão expostos os camponeses a quem cabe a
luta para romper com os grilhões do modelo de desenvolvimento que, embora privilegie
a produção de riqueza, é incapaz de suprimir a pobreza, pois essa é gerada para
alimentar o sistema sociometabólico do capital.
À primeira vista, os perímetros irrigados parecem ser a solução adequada
para democratizar o acesso à terra e à água no Nordeste seco. Na mira dos capitalistas,
esses espaços, subtraídos dos camponeses em sua grande maioria, são transformados no
23
locus da reprodução ampliada do capital, onde a crença-fetiche da modernidade
escamoteia a barbárie expressa, por um lado, pelo uso de modernas técnicas e máquinas
e, de outro, pela utilização de práticas arcaicas, como as condições precarizadas de
trabalho ou a superexploração do trabalhador, fatos registrados desde os primórdios do
período da industrialização na Inglaterra, que continuam atuais e repaginados sob o
verniz da tecnologia e do desenvolvimento.
Ao se tratar das políticas públicas, entendidas por nós como pilares para os
projetos desenvolvimentistas postos em execução pelo Estado, evidenciamos os
desafios postos para as pesquisas em geografia, ante a necessidade de desvelar as
contradições expressas no pensamento hegemônico pautado na perspectiva de um
modelo único de desenvolvimento para o Semiárido. Ao perpetuar essa lógica, coloca-
se por terra toda a riqueza inerente às práticas socioculturais dos camponeses
caatingueiros, envolvendo seus saberes-fazeres e sua relação com a terra. Ainda é
latente, no conteúdo dos projetos desenvolvimentistas implantados pelo Estado no
Semiárido nordestino, a concepção de colonialidade do poder (QUIJANO, 2000), pois
os sujeitos que historicamente ocuparam as áreas a serem modernizadas pelos
investimentos públicos não são considerados “aptos” ou não têm expertise para
ocuparem os perímetros irrigados.
Assim, as disputas territoriais no Médio e Submédio São Francisco
recolocam no debate a necessidade de se rever o modelo de irrigação implantado pelo
Estado, visto que tais investimentos acabam criando espaços altamente tecnificados e
sob o domínio de agentes externos (capitais, organismos financiadores, instituições
normatizadoras, etc.),priorizando a exportação de commodities, excluindo das lavouras
e/ou nelas incluindo, de forma marginalizada, os camponeses como mão de obra barata.
A (re)conquista do território pelos camponeses, por meio da luta pela terra e pela água,
representa uma importante ação emancipatória, como forma de enfrentamento da
despossessão e do desterreamento gerados pela territorialização do agrohidronegócio
nessa região.
Tamanhos desafios têm levado os camponeses, por meio da organização
social, resistirem às ações e aos discursos capituladores do Estado e do capital mediante
a afirmação da diversidade social e cultural desses protagonistas. Nesse cenário
conflituoso, os camponeses caatingueiros lutam para terem acesso à terra e à água, por
considerá-las fundamentais para a reprodução de seus modos de vida. Inúmeras ações
de (Re)Existência (MENDONÇA, 2004) têm sido travadas no Semiárido baiano,
24
transformando esse espaço num território de disputa entre o agrohidronegócio e o
campesinato. É por meio dessas ações que os camponeses vão construindo seus espaços
de esperanças, rumo à emancipação social, ou ainda, criando “modernidades
alternativas” (VELHO, no prelo) aos projetos hegemônicos ao vislumbrar outras formas
de relação com o trabalho e com a natureza.
Nascer no Sertão baiano e pesquisar os sujeitos nele residentes exigiu de
nossa parte abdicação e desprendimento de (quase) tudo o que se sabia sobre a realidade
vivenciada pelos camponeses caatingueiros, para enfim, reinterpretar as nuances
contraditórias envolvendo a modernização conservadora do Semiárido baiano e a
consequente expansão do agrohidronegócio nas regiões do Médio e Submédio São
Francisco. Revelar os enunciados falseadores que fazem reluzir o discursivo do
“progresso” e do “desenvolvimento” foi, desde o momento inicial dessa pesquisa, um
desafio para o pesquisador porque exigiu menções frequentes aos projetos
desenvolvimentistas implantados pelo Estado na região semiárida nordestina,
principalmente a partir dos anos de 1970, com o propósito de inserção da economia
regional nos mercados nacional e internacional. Ao denegar as práticas oficiosas e os
modos de vida dos camponeses caatingueiros, as políticas e projetos públicos
relacionados à expansão da irrigação no Semiárido nordestino deixam evidentes os
pactos de classe entre o Estado e os agentes do capital e a sua condição de não-
modernidade ao perpetuar a continuidade das estruturas de poder bem como a
manutenção da concentração fundiária. Ou seja, a expansão do agrohidronegócio no
vale do São Francisco apenas corrobora a ideia de que ainda não somos modernos
porque a ação do Estado sobre os territórios ocorre à revelia daqueles que serão
diretamente impactados com os seus desdobramentos, atribuindo à terra um duplo
sentido, ou seja, “cativeiro” e “sonho de liberdade”, sendo que esse último representa,
para uma parcela significativa dos camponeses, a necessidade da luta e da resistência.
Por último e não menos importante, cabe destacar que estar na Amazônia e
desenvolver a pesquisa no Semiárido colocou-nos o constante contato com a mistura,
com as dicotomias, levando-nos a estabelecer o duplo-vínculo entre a “Terra das
Águas” e o Sertão seco, as distintas relações entre os sujeitos com seus espaços de
morada e de trabalho. Esse ir e vir levou-nos a estabelecer uma constante mediação
entre naturezas-culturas distintas, resultando no espraiamento da forma de olhar e
compreender como estão conformados os territórios em disputa no Semiárido baiano.
25
INTRODUÇÃO
A cada mudança técnica, as verdades
científicas do passado devem ceder
lugar a novas verdades científicas.
(Milton Santos, 2008, p. 33).
Os perímetros irrigados representam, sob o ponto de vista da política do Estado,
a alternativa mais viável para promover o desenvolvimento regional do Semiárido
nordestino. Por outro lado, trata-se de uma aproximação com os modelos globalizantes
pensados para o campo (pacote tecnológico da Revolução Verde e a Política Agrícola
Comum – PAC1), com forte interferência externa em função dos mecanismos de
controle impostos por organismos internacionais e pelos mercados consumidores. Em
seu sentido mais profundo, essa opção política e econômica deve ser analisada no
contexto da reestruturação produtiva do capital, cujas fronteiras são redesenhadas (e
rasgadas) em busca das condições necessárias à sua reprodução ampliada. É mister
acrescentar que as políticas públicas executadas pelo Estado são imprescindíveis para
atrair o grande capital porque tem desdobramentos importantes no tocante ao acesso à
terra e à água. Sem os subsídios governamentais, as dificuldades de implementar a
irrigação no Semiárido seriam consideravelmente superiores, mesmo porque as áreas
ocupadas pela irrigação privada estão atreladas aos investimentos públicos. O princípio
trinário terra-água-trabalho constitui um elemento catalisador para a reorganização
espacial do Semiárido, assumindo função importante na divisão territorial do trabalho.
A execução de inúmeras políticas públicas permitiu que a terra e a água
continuassem concentradas e atreladas ao capital financeiro, via conglomerados agro-
químico-alimentares-financeiros (THOMAZ JUNIOR, 2009), pois o setor de insumos
químicos e agrotóxicos, as agroindústrias processadoras de frutas e as cadeias de
supermercados no Brasil e no exterior são os maiores beneficiados, apropriando-se da
riqueza produzida nas terrassemiáridas irrigadas. Criar perímetros irrigados não
representa uma democratização do acesso à terra e à água, exercendo um efeito
contraproducente àquele propalado pelos inflamados discursos de seus idealizadores
1 A PAC foi criada em 1962 pela União Europeia (UE), tendo como objetivos proporcionar aos cidadãos
de seus Estados Membros alimentos a preços acessíveis e garantir um nível de vida equitativo aos
agricultores.
26
bem como pelas políticas públicas direcionadas para incentivar a agricultura irrigada no
Nordeste semiárido.
Após um século de efetiva atuação do Estado no “combate” às secas, o Nordeste
semiárido continua a vivenciar o avanço da agricultura irrigada sobre terras até então
pouco valorizadas economicamente e sob o domínio dos camponeses e povos
tradicionais. De acordo com Silva e Martins (2006, p. 91),
Despontando como trajetória tecnológica hegemônica no bojo da
chamada Revolução Verde, o modelo euro-americano de
modernização agrícola caracterizou-se fundamentalmente pela prática
de uma agricultura altamente especulativa, voltada para o cultivo
contínuo de produtos com maiores níveis de rentabilidade.
Dessa forma, a agricultura irrigada no Semiárido exerce um papel central no
tocante à integração da região Nordeste ao mercado global, pois parte da produção de
frutas tem como destino os mercados europeu e estadunidense, conforme destacam
Sousa (2013) e Bezerra (2012). Enclaves são criados em meio ao Semiárido, com
infraestrutura hídrica voltada para culturas com elevado valor agregado no mercado
internacional, como é o caso das frutas, vinhos e produção de cana-de-açúcar e etanol,
construindo uma “nova” face para a região historicamente retratada como aquela em
que a seca era um obstáculo ao crescimento econômico.
Segundo levantamento feito pelo Banco Mundial (2004), entre os anos de 1970,
1980 e 1990, foram investidos mais de R$2 bilhões de reais em obras de irrigação,
abrangendo uma área aproximada de 600 mil hectares irrigados, divididos entre a
iniciativa privada (400.00 ha) e o setor público (200.00 ha). Devido a esses
investimentos, foram criados polos frutícolas de grande envergadura econômica, com
destaque para o Polo Juazeiro/Petrolina (maior polo frutícola da América Latina) e o
Polo Jaguaribe-Apodi (CE). Segundo dados da Agência Nacional de Águas (2003), a
região Nordeste ocupa a terceira posição no ranking de área irrigada, com destaque para
o estado da Bahia, o estado nordestino com a maior área irrigada, posição mantida ao
longo dos anos. A área irrigada na Bahia (aproximadamente 300 mil hectares)
representa 30,4% da irrigação da região Nordeste, sendo a irrigação por aspersão o
método mais utilizado no estado, tanto aspersão sem pivô (30,6%) quanto com pivô-
central (23,1%).
A irrigação (pública e privada) no Semiárido brasileiro encontra-se em fase de
expansão e de consolidação, conforme destacou estudo realizado pelo Banco Mundial
(2004), e conforme se pode comprovar, mais recentemente, com a destinação de
27
recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e do Programa Mais
Irrigação, ambos do governo federal, para a criação de novos projetos de irrigação ou
para a modernização dos já existentes, além da oferta de assistência técnica voltada para
incutir entre os irrigantes o modelo de agricultura empresarial. Essa parece ser uma
tendência que perdurará pelos próximos anos, pois somente os perímetros irrigados
Senador Nilo Coelho e Bebedouro, em Pernambuco, receberam em 2013 investimentos
da ordem de R$ 60 milhões, oriundos do Programa Mais Irrigação, destinados a
melhorias na infraestrutura existente e à ampliação da área cultivada. Ressalte-se que os
investimentos em modernização dos perímetros irrigados não contemplam todos aqueles
em fase de produção2, sendo determinante para a escolha a capacidade de estes espaços
transformarem-se em polos produtores de frutas para os mercados interno e externo.
Considerando a mobilidade do capital e sua irrefreável necessidade de
incorporação de novos espaços para viabilizar sua reprodução ampliada, a expansão da
agricultura irrigada no Semiárido baiano revela a seletividade espacial quando se trata
de direcionar recursos financeiros para melhorias desse setor. O redesenho espacial é
definido por agentes externos, com a introdução de novas relações de produção e com a
imposição de padrões de produção, de acumulação e de consumo, totalmente alheios à
realidade local,
[...] introduzindo relações novas no arcaico e reproduzindo relações
arcaicas no novo, um modo de compatibilizar a acumulação global,
em que a introdução das relações novas no arcaico libera força de
trabalho que suporta a acumulação urbano-industrial e em que a
reprodução de relações arcaicas no novo preserva o potencial de
acumulação liberado exclusivamente para os fins de expansão do
próprio novo. (OLIVEIRA, 2006, p. 60).
Contraditoriamente, muito da estrutura social, política e econômica arcaica é
mantida intacta, como forma de garantir a perpetuação da acumulação de capitais e de
manutenção do status quo. Assim, os investimentos públicos em irrigação não atendem
às demandas dos camponeses a quem, historicamente, foi negado o acesso à terra e à
água, pois, conforme as diretrizes do “Novo Modelo de Irrigação” implementado na
década de 1990, a proposta é fomentar cada vez mais a agricultura empresarial nos
perímetros irrigados, através da celebração das parcerias público-privadas (PPPs). Esse
2 Entre os projetos escolhidos para receber recursos do PAC para obras de modernização estão o Projeto
Tourão (Juazeiro-BA) e o Projeto Jaíba (MG).
28
direcionamento dado à irrigação em perímetros públicos expressa o idealismo neoliberal
em que o Estado
passa a priorizar a promoção de um ambiente favorável aos negócios
com vistas a atrair novos investimentos em detrimento de sua
intervenção direta na economia, seja por meio de empresas estatais,
seja por meio do controle sobre o processo econômico baseado em
instrumentos e políticas regulatórias. Inaugura-se um período sob a
dominância de práticas político-econômicas e do pensamento
neoliberal, que defendem um arcabouço institucional caracterizado
por direitos de propriedade privada fortalecidos, mercado livre e
comércio livre. Desregulação, privatização e a retirada do Estado de
muitas áreas de provisão social tornam-se processos comuns. O
Estado se torna um ator a serviço do capital e de sua estratégia de
globalização. (MARQUES, 2011, p. 4).
Seguindo essa lógica neoliberal, duas grandes obras hídricas foram executadas
nas regiões do Médio e Submédio São Francisco3, na Bahia, consideradas as
“transposições baianas do São Francisco” devido à magnitude destes empreendimentos.
Os projetos de irrigação Baixio de Irecê (em fase de implantação) e o Salitre (em fase de
produção) são as maiores obras de irrigação executadas atualmente no Brasil, somando
ambas um total aproximado de 100 mil hectares irrigáveis. Atendendo aos
direcionamentos do “Novo Modelo de Irrigação”, estes perímetros irrigados são
destinados, principalmente, para a agricultura sob os moldes empresariais, com foco na
fruticultura e na cana-de-açúcar. Produzir agrocombustíveis em projetos de irrigação
passa a ser uma realidade já no Projeto Salitre, com a presença da empresa
AGROVALE, maior produtora de cana-de-açúcar do Nordeste, perspectiva essa
vislumbrada para o Projeto Baixio de Irecê. Ou seja, os pequenos produtores vão
gradativamente sendo eliminados desses empreendimentos, demonstrando cada vez
mais que os investimentos públicos em obras dessa natureza estão atrelados à produção
de commodities agrícolas.
Assim, todas as travagens são eliminadas para que o capital possa apropriar-se
da infraestrutura hídrica e da terra, decorrentes de investimentos públicos. A expansão
do agrohidronegócio no Semiárido reforça e evidencia as contradições acerca da
organização espacial e do reordenamento do território do nordestino em virtude de
interesses econômicos e de políticas agrícolas externas. O fomento de atividades
agrícolas com forte dependência de água reforça e intensifica o controle sobre a terra e a
3 Para efeito de regionalização, utilizaremos nessa pesquisa a regionalização feita a partir da bacia do rio
São Francisco, sendo essa dividida em Alto São Francisco, Médio São Francisco, Submédio São
Francisco e Baixo São Francisco.
29
água, gerando disputas territoriais e de classe nessa fração do território brasileiro. Desse
modo, os territórios camponeses passam a enfrentar um forte processo de especulação
em decorrência de os discursos propagandearem as virtudes unilateralmente benéficas
da irrigação no Semiárido, cujo resultado é a expansão e integração das atividades
agrícolas ao mercado globalizado. Nesse contexto, as lavouras cultivadas nos perímetros
irrigados possuem pouca ou nenhuma relação com os mercados regionais,
desconsiderando as tradições alimentares das populações locais. Ou seja, a produção de
alimentos passa a ser integrada aos mercados globais, sobrepondo-se às práticas
agrícolas locais, cujas tradições advêm de gerações passadas e cuja perpetuação se deu
pelo trabalho familiar.
Esse interesse demonstrado pelo grande capital por regiões incorporadas, de
forma marginal, à economia global tem sua origem na reestruturação produtiva do
capital, momento em que coincide com o início de maciços investimentos públicos no
Semiárido para viabilizar a agricultura irrigada. Nesse sentido, as formas espectrais e
regressivas inerentes à expansão do agrohidronegócio no Semiárido baiano colocam-se
como um problema de pesquisa ante a territorialização e a monopolização do território
pelo capital e todos os desdobramentos decorrentes desse fenômeno.
A centralidade dessa tese é a indissociável relação entre a expansão do
agrohidronegócio no Semiárido baiano e as disputas pelo controle da terra e da água,
tendo como elementos analíticos os conflitos decorrentes da execução dos projetos
desenvolvimentistas nessa fração do território nordestino, bem como seus
desdobramentos materializados nos territórios camponeses. Ademais, a presente
pesquisa abarca os impactos dos projetos de irrigação e sua materialidade no contexto
da luta de classes inerente ao processo sociorreprodutivo do capital no Semiárido
baiano, atentando para os estranhamentos no interior dos movimentos contrários aos
megaprojetos de segurança hídrica voltados para a irrigação.
A proposta metodológica da tese sustenta-se em autores que abordam a
territorialização do capital e a monopolização do território pelo capital, com ênfase na
expansão do agrohidronegócio e seus desdobramentos nos territórios camponeses, com
o intuito de alcançar os seguintes objetivos: a) analisar a expansão do agrohidronegócio
e das disputas territoriais no Semiárido baiano tendo como vetor as Políticas Públicas
implantadas a partir da década de 1990, de modo a considerar as várias formas de
resistência impostas pelos Movimentos Sociais/sujeitos caatingueiros à barbárie
promovida pela ação do Estado e do grande capital; b) compreender como as Políticas
30
Públicas de desenvolvimento regional/territorial, implantadas pelo Estado a partir da
década de 1990, contribuem para a expansão do agrohidronegócio no Semiárido baiano;
c) cartografar as áreas de expansão do agrohidronegócio na Bahia; d)identificar quais
setores do agrohidronegócio despontam no Semiárido baiano; e) analisar como se
estabeleceu o conflito pela terra e pela água no Submédio São Francisco; g) entender
como ocorreu o processo de grilagem das terras atualmente ocupadas pelo Projeto de
Irrigação Baixio de Irecê; h) identificar as principais formas de luta pelo acesso à terra,
à água bem como as formas de resistência dos Movimentos Sociais/sujeitos
caatingueiros para se manterem na terra de trabalho.
Nessa perspectiva, a hipótese da presente investigação é que as políticas públicas
implantadas pelo Estado no Semiárido baiano para garantir a segurança hídrica acabam
fomentando a expansão do agrohidronegócio e as disputas territoriais (terra e água),
colocando em risco a manutenção dos modos de vida das populações camponesas
localizadas na faixa semiárida do estado da Bahia. Dessa forma, destacamos a
necessidade de conhecer profundamente a dinâmica do agrohidronegócio no Semiárido,
suas estratégias, alianças de classes e contradições, como medida para repensar o
modelo de desenvolvimento adotado para o campo brasileiro, pautado na produção de
commodities, de modo a correlacionar o contexto brasileiro com a realidade do Nordeste
semiárido, cada vez mais centrado na fruticultura irrigada e na produção de
agrocombustíveis.
Fazendo o caminho inverso daquele traçado pelos idealizadores e apologistas do
atual modelo de desenvolvimento territorial adotado para o Nordeste semiárido, buscou-
se entrelaçar a teoria aos resultados obtidos durante a imersão no universo pesquisado,
de modo a trazer à tona a voz daqueles que historicamente foram silenciados pelos
discursos hegemônicos e invisibilizados pela imagem de desenvolvimento atrelada ao
agrohidronegócio.
Para alcançar tal empreitada, a presente tese está organizada em cinco capítulos
seguidos das considerações finais. No Capítulo I,Tecendo os fios da “meada”: a
trajetória metodológica da tese,são abordadas questões concernentes à construção da
pesquisa, de maneira a entrelaçar a teoria aos sujeitos pesquisados – as motivações que
influenciaram o pesquisador na escolha do tema, a escolha e a caracterização dos
sujeitos, o recorte espaço-temporal, o método utilizado para interpretar o fenômeno em
questão, as categorias geográficas utilizadas –, além de refletir sobre a importância do
posicionamento político-ideológico que figura como pano de fundo para compreender
31
os desdobramentos da expansão do agrohidronegócio no Semiárido baiano.
O Capítulo II, intitulado Políticas públicas de irrigação e a geografia do
agrohidronegócio no Semiárido baiano,buscou fazer um resgate sobre a trajetória das
políticas públicas voltadas para a irrigação no Nordeste brasileiro, de modo a comprovar
como tais ações desempenhadas pelo Estado foram (e ainda são) determinantes para a
territorialização e expansão do agrohidronegócio no Nordeste semiárido. Evidenciou-se
como essas políticas públicas fazem parte de um projeto maior, cujo intuito é o
reordenamento do território para atender às demandas do grande capital em escala
global. Para tanto, foram considerados três programas governamentais voltados para a
irrigação, sendo dois em escala nacional e um em nível estadual, a saber: o Novo
Modelo de Irrigação e o Programa Mais irrigação, em escala nacional e o Programa
Bahia Biocombustíveis, implantado na Bahia.
No Capítulo III,Tramas do agrohidronegócio e a questão agrária na Bahia,
são tratadas questões relacionadas à estrutura fundiária da Bahia e, de modo particular,
como ocorreu o processo de apropriação de terras nos vales dos rios Jacaré e Verde.
Ademais, evidenciam-se as estratégias utilizadas pelo Estado para viabilizar o acesso à
terra e à água por parte dos agentes do capital, colocando em destaque as disputas
territoriais e de classes no campo, a partir da constituição do Polígono do
Agrohidronegócio na Bahia.
O Capítulo IV,Projeto de Irrigação Baixio de Irecê: reordenamento do
território pelo agrohidronegócio, apresenta as alterações verificadas ao longo das
décadas na formatação desse empreendimento, seus objetivos e possíveis
desdobramentos para a região, bem como os desafios enfrentados pelas comunidades,
no tocante à organização social das famílias expropriadas, para fazer o enfrentamento ao
Estado. Ademais, são analisadas as dissidências ocorridas entre os movimentos de luta
pela terra e pela água encampados pelos camponeses caatingueiros e pelo Movimento
dos Trabalhadores Sem Terra (MST).
Intitulado Projeto Salitre: faces contraditórias do agrohidronegócio no
Semiárido baiano, o Capítulo V volta-se à “modernização” da agricultura praticada no
vale do rio Salitre, como um elemento explicativo para a conflitualidade instalada nessa
região a partir da década de 1970. Nesse contexto, o Projeto Salitre é o território em que
se materializam os conflitos pela terra e pela água, assim como os exemplos das
múltiplas resistências levadas a efeito pelos camponeses salitreiros e acampados frente
aos ditames do Estado e do grande capital. Outrossim, são analisadas as estratégias
32
utilizadas pelos camponeses e por organizações sociais para disputar território com o
agrohidronegócio.
Nas Considerações Finais,Agrohidronegócio e luta anticapital: pensando a
construção dos espaços de esperança,defende-se a necessidade de repensar o modelo
de desenvolvimento adotado para o Semiárido, de modo a apontar a agricultura
camponesa como uma alternativa ao agrohidronegócio e os camponeses como sujeitos
importantes no contexto da luta anticapital. Nesse diapasão, as múltiplas resistências são
vislumbradas como componentes fundamentais para a construção dos espaços de
esperança, concebidos nessa pesquisa como os territórios camponeses – os territórios de
vida e de trabalho.
33
CAPÍTULO I
TECENDO OS FIOS DA “MEADA”: A TRAJETÓRIA METODOLÓGICA DA
TESE
O empreendimento científico, no seu
conjunto, revela sua utilidade de tempos em
tempos, abre novos territórios, instaura
ordem e testa crenças estabelecidas há muito
34
tempo. (KHUN, 2011, p. 61).
Este capítulo trata das questões metodológicas da pesquisa, buscando situar a
discussão sobre o agrohidronegócio no contexto da ciência geográfica. São apresentados
os marcos teórico-conceituais, bem como os parâmetros norteadores para a escolha do
tema, do recorte espaço-temporal e dos sujeitos da pesquisa, buscando categorizá-los a
partir de suas especificidades. Ademais, são explicitadas as técnicas utilizadas e como
contribuem para o levantamento das informações necessárias para sustentar as reflexões
a partir do entrelaçamento entre a teoria e a empiria, numa opção deliberadamente
política, com o intuito de fazer ecoara voz aos sujeitos que, em tantos momentos, foram
silenciados pelas personas do capital ou tiveram seus gritos negligenciados pelo Estado.
1.1 Sobre tecelões, teares e fios: a pesquisa na ciência geográfica
A convicção de que um fenômeno não foi ainda tão bem analisado ou que é
possível analisá-lo com maior aprofundamento é o que move a trajetória da elaboração
de uma Tese de Doutorado. Para alguns, trata-se de um posicionamento sensivelmente
modesto, enquanto para outros, de uma postura demasiadamente arrogante, dependendo
do ponto de vista como tal afirmação é analisada. De fato, a elaboração do
conhecimento científico requer uma gama considerável de adesões e pactos – teóricos,
metodológicos e conceituais –, de modo a revelar a natureza de um dado fenômeno (seja
ele social ou natural) cujas nuances sejam postas sob o crivo de determinações e regras,
com a finalidade de identificar, desconstruir ou validar aspectos que permitam
generalizar e/ou particularizar a materialidade daquilo que se configura como um
problema de pesquisa.
A busca pela construção de conhecimento acerca de um dado fenômeno significa
igualmente a adoção de uma opção política vinculada ao universo vivenciado pelo
pesquisador, cujas decisões e parâmetros de pesquisa validam um método próprio de
conceber os fenômenos, processos sociais e suas interações com a natureza.
O ato de pesquisar coloca múltiplos desafios porque condiciona a ação do
pesquisador à descoberta da realidade. Demo (2011, p. 22) destaca que a
realidade que se quer captar é a mesma para todos, mas para captar é
preciso concepção teórica dela, que pode ser diferente em todos,
dependendo do que se define por ciência, por método, ou do ponto de
35
partida e do ponto de vista, ou da ideologia subjacente, ou de
circunstâncias sociais condicionantes ou condicionadas por interesses
históricos dominantes.
Ao longo de sua história, a Ciência Geográfica tem passado por profundas e
sensíveis transformações, caracterizada por rupturas e permanências, ratificando a
complexidade do pensar e analisar o espaço produzido e apropriado pelo homem. A
divisão entre Geografia Humana e Geografia Física não tornou o fazer-Geografia uma
tarefa fácil, levando a fragmentações/compartimentações que acabam por impedir aos
geógrafos uma leitura totalizante de como se processa a produção capitalista do espaço.
A coalização de interesses entre o grande capital e o Estado – sujeitos
mediadores do modelo hegemônico de desenvolvimento, mascarado de sustentável –
escamoteia a barbárie intrínseca aos mecanismos utilizados para viabilizar a apropriação
das terras e das águas na América Latina, nas últimas décadas e oblitera a consciência
da população no sentido de legitimar os projetos desenvolvimentistas4 em execução.
Conforme Silva (2011, p. 3, grifo do autor), a
[...] ‘idéia de desenvolvimento’ instituída como meta a ser alcançada
por todas as sociedades nos mantém reféns da dicotomia superior-
inferior, criada a partir da noção de raça, que no passado classificou a
humanidade em civilizados-primitivos e no presente nos divide em
desenvolvidos- subdesenvolvidos.
Novas epistemologias ocidentalizadas sobre desenvolvimento pulverizam ainda
mais a totalidade espacial, num entrincheirado e fugidio processo de invisibilidade das
populações, para quem o “desenvolvimento” significa opressão e cujo consentimento se
faz a partir da interiorização de discursos externos, com o propósito de gerar opacidades
e silêncios em relação às desigualdades sociais. Por outro lado, o enclausuramento
aparentemente desaparece em virtude das mudanças espaciais provenientes dos
investimentos em infraestrutura e tecnologia. Procura-se, por meio de ações dessa
natureza, eliminar a imagem envelhecida de um determinado espaço, livrando-o de
enraizamentos ressentidos, mas, em contrapartida, promove uma linearidade das formas,
dos modos de vida e de sua função ante as demandas do mercado globalizado.
4 Há uma gama de autores (ALVES, 2014; GONÇALVES, 2012; CASTELO, 2012; SAMPAIO JR, 2012;
ALMEIDA, 2012 e PEREIRA, 2012) que vem analisando o atual contexto econômico-político
brasileiro a partir das ações implementadas pelo Estado desde a década de 1990, iniciadas no governo
de Fernando Henrique Cardoso até os massivos investimentos públicos em grandes obras (Programa de
Aceleração do Crescimento, por exemplo) feitos pelos governos Luís Inácio Lula da Silva e Dilma
Roussef. Respeitadas as devidas particularidades, esses autores vêm discutindo os novos rumos do
desenvolvimento no Brasil sob a perspectiva do novo (neo)desenvolvimentismo, analisando as
estratégias adotadas pelo Estado e pelo capital para superar a crise financeira que assola o mundo e
cujos desdobramentos afetam diretamente a economia brasileira.
36
No que tange à América Latina, entender as disputas pelos/nos territórios requer
a capacidade de fazer correlações e mediações para dar conta da totalidade dos
fenômenos e/ou processos, de modo a frear o anacronismo histórico e, por outro lado,
ressaltar os “antagonismos sistêmicos insuperáveis” (MÉSZÁROS, 2007, p. 21) do
sistema sociometabólico do capital. Ao priorizar, como recorte temático, as disputas
territoriais devido ao acesso à água,
[...] poderemos abordar facetas ainda mais complexas para o futuro da
sociedade, situações específicas do trabalho, novos vínculos e
significados para o espaço geográfico, especificidades das disputas
territoriais intrínsecas à luta de classes. (THOMAZ JUNIOR, 2011a,
p. 20).
A preocupação com o método no âmbito da Ciência Geográfica não é um
fenômeno recente. Humboldt (1845)5 procurou valorizar o método empírico e indutivo,
baseado em experimentos e observações. Ritter (1818)6, por sua vez, procurou
estabelecer um método para a Geografia baseado na simplificação e redução,
caracterizado por ser globalizador e não analítico. Passado todo esse tempo, essa
questão ainda não foi resolvida, não cabendo aqui uma digressão sobre o método na
ciência geográfica7. Todavia, faz-se necessário destacar que, do método descritivo-
quantitativo ao materialismo histórico-geográfico (HARVEY, 2012), a geografia
sempre conviveu com a necessidade de aproximação com outras áreas do conhecimento.
No contexto atual, essa aproximação visa a atender, em parte, a irrevogável
tarefa da Geografia de interpretar os fenômenos à luz das próprias condições históricas e
sociais, bem como a dimensão espacial dos fenômenos e até mesmo a materialidade das
forças produtivas/destrutivas no seio do capitalismo. Claval (2011, p. 305) nos lembra
que o
movimento que conheceram as ciências sociais desde o início dos
anos 1970 prossegue e aprofunda. Admite-se doravante que elas se
enganam quando tentam se assemelhar à física ou a biologia: a
sociedade não é uma máquina cujos movimentos seriam fáceis de
descrever e de modelar; não é um organismo semelhante às plantas e
aos animais. É feita de seres conscientes, que agem em função das
representações que se fazem do real; o investigador tem mais a
ganhar, aprofundando-se nas humanidades do que copiando as
ciências materiais e da vida.
O caminho percorrido durante a elaboração desta tese levou em consideração os
5 Cosmos, composta por quatro volumes (Cf. CAPEL, 2008, p. 34). 6 Erdkunde (cf. CAPEL, 2008, p. 57). 7 Sposito (2004) faz uma síntese de como ocorreu a evolução do método na ciência geográfica e sua
relação com a Filosofia.
37
domínios das novas formas de reparo social e temporal, por reconhecer a natureza
provisória e fluída das configurações espaciais, sociais, econômicas e culturais que
envolvem o fenômeno em questão, ou seja, a expansão do agrohidronegócio8 e as
disputas territoriais no Semiárido baiano. A nova lógica de concepção do espaço,
pautada no movimento e na fluidez, torna, por um lado, obsoletos os espaços, os
sujeitos e os modos de vida que não estejam em conformidade com os projetos
desenvolvimentistas pós-modernos e/ou que não projetem as luzes de tais projetos
(HARVEY, 2010). Por outro, o entrecruzamento contraditório e conflituoso entre o
moderno e o “arcaico”, entre o território camponês e o território do agrohidronegócio
coloca em evidência a sobreposição de sujeitos e de perspectivas político-econômicas
distintas, compondo um quadro extremamente complexo no cerne da geografia,
centrada na preocupação com o espaço social. O espaço como materialidade do
movimento e do conflito9, e o ser social como sujeito das transformações em sua
constante relação com a natureza, constituem a expressão da totalidade-síntese dos
contrários, condição essa extremamente desafiadora para os geógrafos que se propõem a
pensar a produção/apropriação do espaço a partir do desenvolvimento em espiral
(SPOSITO, 2004, p. 63).
O Semiárido baiano com suas transmutações em virtude da territorialização do
capital torna-se uma condição histórico-geográfica no processo de desvelamento do
cenário construído/apropriado pelos sujeitos que nele vivem e se reproduzem, exigindo
do pesquisador um esforço epistemológico para capturar o movimento da totalidade
socioespacial (a estrutura, a organização, as estratégias e as disputas). Pretende-se,
assim, colocar em debate as tramas e urdiduras do capital no território do Semiárido
baiano, reconhecendo que “não há esforço crítico sem risco” (SANTOS, 2008a, p. 25),
tendo como ponto de partida a organização dos espaços de vida e de reprodução dos
“camponeses caatingueiros.” (DOURADO, 2010).
Atualmente, no âmbito da geografia, as pesquisas qualitativas têm ganhado
8 Nossa inspiração para a discussão sobre o conceito de agrohidronegócio tem sua gênese nas obras de
Torres (2007), Mendonça e Mesquita (2007) e Thomaz Junior (2009). O avanço sobre a compreensão e
consolidação conceitual daquilo que entendemos como agrohidronegócio tem nos desafiado a
considerar as rupturas e disputas no cerne da expansão do grande capital no campo e seus rebatimentos
sobre a cidade, mais especificamente sobre os trabalhadores no contexto da reforma agrária e da
soberania alimentar, sem desconsiderar, todavia, o papel do Estado por meio das políticas públicas, haja
vista que estas são instrumentos mediadores importantes para o agrohidronegócio. 9 De acordo com Fernandes (2008b, p. 198, grifo do autor), o conflito “é o estado de confronto entre
forças opostas, relações sociais distintas, em condições políticas adversas, que buscam por meio da
negociação, da manifestação, da luta popular, do diálogo, a superação, que acontece com a vitória, a
derrota ou o empate”.
38
destaque, abarcando diversos tipos de enfoques teórico-metodológicos, aspecto
revelador de sua riqueza e complexidade, o que requer, por sua vez, aproximações com
outras áreas do conhecimento, como a antropologia e a sociologia, pelo pioneirismo
destas na utilização da pesquisa qualitativa. Tendo como pressuposto a apreensão do
espaço social, construído e transformado a partir das relações sociais, entendido aqui
como produto e processo do movimento do real, a presente pesquisa assume um caráter
eminentemente qualitativo por
[...] incorporar a questão do significado e da intencionalidade como
inerentes aos atos, às relações, e às estruturas sociais, sendo essas
últimas tomadas tanto no seu advento quanto na sua transformação,
como construções significativas. (MINAYO, 2006, p. 18).
Nesse campo, a geografia do trabalho tem se ocupado em desenvolver pesquisas
focadas no desvelamento das contradições do processo sociometabólico do capital (no
campo e na cidade), numa clara proposta de atualização dos referenciais marxistas.
Segundo Thomaz Junior (2010a, p. 226),
[...] há uma blindagem às ponderações que põem em questão a
atualidade e complexidade dos antagonismos não serem os mesmos da
época de Marx, entre burguesia e proletariado e, portanto, com pouca
capacidade explicativa da realidade do trabalho do século XXI. Ou
ainda, as contradições de hoje, do século XXI, nos remetem à ebulição
que povoa o universo do trabalho, ou as diferentes formas de
expressão do trabalho, que expressam os novos conteúdos das
contradições do capital, e com ele se antagonizam.
Corroboramos essa perspectiva acerca da ciência geográfica por entender que, na
atualidade, o arrefecimento decorrente dos referenciais (teórico-metodológico-
conceituais e políticos) marxistas acaba por engessar a abordagem dos fenômenos e/ou
processos, havendo, pois, a necessidade de se fazer a crítica da crítica, para avançar na
compreensão da totalidade espacial, superando a rigidez interpretativa acerca das
clivagens e contradições materializadas no território. Nessa empreitada, a construção de
uma geografia do trabalho encampada por Thomaz Junior (2003, 2008a, 2008b, 2008c,
2009, 2010c, 2010d, 2011ª, 2011b) tem exigido a aproximação com sociólogos
(ANTUNES, 2004, 2005, 2009; ALVES, 2001), filósofos (MÉSZÁROS, 2007),
cientistas políticos (MARX, 1982), bem como outros geógrafos tais como Moreira
(2007a) e Mendonça (2004). Ainda nesse universo de abordagem, Thomaz Junior
(2008b, p. 343, grifo do autor) adverte que
[...] mais do que romper com as blindagens teóricas, refazer os
caminhos da dinâmica geográfica do trabalho, repensar as novas
territorialidades, enfatizamos o papel central dos movimentos sociais,
39
nas nossas pesquisas, sendo, pois, essa a possibilidade para darmos
continuidade à nossa disposição de consolidar o trabalho como um
tema da Geografia, e a Geografia do trabalho uma aposta na
compreensão crítica (autocrítica) da sociedade atual, para além do
capital.
Da mesma forma, há o cuidado em apreender as continuidades e
descontinuidades do espaço, por concebê-lo (aqui entendido como elemento anterior ao
território) como resultado de processos históricos e cujas rugosidades (SANTOS,
2008b, p. 259) trazem em si a materialidade e a modernização dos fenômenos sociais,
influenciados diretamente pelo metabolismo social do capital. A reestruturação
produtiva do capital tem ocasionado a plasmagem de sujeitos e processos, a
fragmentação social e, consequentemente, a pulverização das ações e reivindicações,
dificultando assim a compreensão das lutas bem como a espacialização das disputas
territoriais, como é possível verificar na área de pesquisa quando a Comissão Pastoral
da Terra (CPT), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), as
comunidades do Baixio de Irecê e os Salitreiros10 atuam de forma fragmentada, mesmo
quando o objetivo é o mesmo, ou seja, o direito à terra, ao território e à água. Nesse
mundo de convergência/divergência é possível verificar que as lutas travadas pelos
camponeses contra os empreendimentos executados pelo Estado para garantir a
segurança hídrica ao grande capital carecem de um fortalecimento da ação política,
evitando assim a confusão sobre quem são os alvos e para onde deve ser direcionada a
ação emancipatória.
O que comumente tem ocorrido é uma desconexão entre a forma de pensar e agir
dos camponeses e seus interlocutores (leia-se MST e CPT) que passam a lutar entre si,
fortalecendo ainda mais o poder do Estado e do grande capital. Por conta dessa
fragmentação das ações anticapital, a capacidade de contestação acaba dissipando-se em
virtude da incompreensão de que o embate deva ser feito por meio da luta de classes.
Todavia, essas mesmas ações fragmentadas revelam o interesse coletivo em lutar pela
terra e pelo território, expressando haver consciência de classe no âmbito da
organização social das comunidades11 atingidas pelos projetos de irrigação Baixio de
10 Os moradores das comunidades localizadas às margens do rio Salitre, nos municípios de Campo
Formoso e Juazeiro, autodenominam-se salitreiros, como forma de reafirmação da identidade com o rio,
constituindo também um elemento de resistência e enfrentamento à expansão do capital bem como à
ação do Estado na região. A bacia do rio Salitre, afluente do rio São Francisco, é marcada por conflitos
pelo acesso à água devido à chegada de irrigantes do Centro-Sul do país e da região de Cabrobó (PE)
que migraram para a região na década de 1970/80, em função da valorização das terras naquela região. 11 O conceito de comunidade possui uma amplitude epistêmica, envolvendo inclusive territorialidades
identitárias. Importa para nós definir nossa concepção sobre esse conceito, aqui entendido como espaços
40
Irecê e Salitre. Em se tratando da construção da consciência de classes, Mészáros (2008,
p. 72, grifo do autor) expõe que o
desenvolvimento da consciência de classe é um processo dialético: é
uma “inevitabilidade histórica” precisamente na medida em que a
tarefa é realizada através da mediação necessária de uma atuação
humana autoconsciente. Isso requer, inevitavelmente, algum tipo de
organização – seja a constituição de partidos, ou de outras formas de
mediação coletiva – estruturada segundo as condições sócio-históricas
específicas que predominam em uma época particular, com o objetivo
estratégico global de intervenções dinâmicas no curso de
desenvolvimento social.
Por outro lado, essa complexidade do movimento do real coloca como desafio
para a ciência geográfica de base marxista a necessidade de avançar no entendimento da
concepção do que seria a classe trabalhadora hoje, partindo da premissa de que os
camponeses se juntem ao proletariado das fábricas/indústrias, integrando esse universo
como sujeitos com potencial revolucionário/emancipador. Para os marxistas clássicos, a
revolução seria feita apenas pelos trabalhadores das fábricas, por entenderem que a
capacidade de resistência dos camponeses à superexploração impediria que estes
buscassem a organização para lutar contra a estrutura de dominação social. De fato,
seria incoerente conceber a classe trabalhadora (e consequentemente a sua
conceituação) a partir de uma perspectiva rígida e estática, visto que esta se refaz
cotidianamente e sua historicidade revela as redefinições dos significados do ser que
trabalha. A plasticidade das diferentes expressões do trabalho humano ganha novo
significado nesse limiar de século XXI, muito embora seja importante destacar a
inexistência de concordância entre os marxistas sobre esse assunto, pois alguns teóricos
apresentam-se resistentes à atualização da formulação do conceito de classe
trabalhadora, com destaque para Lessa (2007). Para esse autor, não há
qualquer necessidade de novas categorias acerca do trabalho, do
trabalho abstrato, do trabalho abstrato produtivo e improdutivo, do
fundamento das classes sociais a partir do local que ocupam na
estrutura produtiva, etc. para a crítica revolucionária do mundo em
que vivemos. Tais categorias, tal como formuladas originalmente por
Marx, são rigorosamente atuais, imprescindíveis e suficientes.
(LESSA, 2007, p. 313.).
sociais pautados em relações de parentesco, vizinhança, religiosidade e localidade. Especificamente no
caso desta pesquisa, as comunidades tratadas tornaram-se, em função da grilagem de terras (1970/1980)
e da ação do Estado (1970 até a atualidade), espaços de luta em busca de permanência no campo e de
reprodução da família. Nesse contexto o território (de vida, de trabalho e de identidade) é construído a
partir do modus vivendi sertanejo e camponês, sofrendo interferências externas por parte do Estado e
dos agentes do capital a partir da criação de condições necessárias à territorialização e expansão do
agrohidronegócio nas regiões do Médio e Submédio São Francisco.
41
Numa perspectiva diferente e que corroboramos, Thomaz Junior (2013a)
defende a necessidade do alargamento conceitual tanto do termo trabalho quanto de
classe trabalhadora. Segundo esse autor, é cada vez mais difícil
afirmar e sustentar empírica e teoricamente que o proletariado é a
única classe da sociedade burguesa que continua produzindo o
conteúdo material da riqueza, através da transformação da natureza,
com fins à reprodução social e, portanto, portadora exclusiva do
significado da revolução. (THOMAZ JUNIOR, 2013a, p. 31).
A esse respeito, Antunes (2005, p. 52) defende a necessidade de ampliação do
conceito de classe trabalhadora como forma de abarcar sua nova morfologia, inserindo
nesse universo o “proletariado rural, os chamados bóias-frias das regiões
agroindustriais”, sujeitos com presença marcante nas áreas dominadas pelo
agrohidronegócio. Todavia, Thomaz Junior (2012, p. 226-7) alerta para o fato de
[...] não haver a menor possibilidade, por exemplo, de se utilizar as
teses defendidas por Antunes, Mészáros, Alves, Francisco de Oliveira,
para se entender o movimento da sociedade como um todo, porque
esses autores não dão conta das relações não capitalistas, ou seja, não
focam, por exemplo, o campesinato.
Vê-se que o debate travado pelos autores supracitados é profícuo e caracterizado
por divergências, aspecto que o torna bastante complexo e enriquecedor, permitindo a
reflexão sobre as questões contemporâneas acerca do trabalho, como condição
ontológica do ser social. Como forma de entender a estrutura dominante da sociedade
capitalista, defendemos que a unificação desses sujeitos é crucial para o avanço das
ações emancipatórias, pois revela as modificações históricas dos fenômenos sociais. No
plano político e ideológico, representa o fortalecimento organizativo necessário para a
apreensão dos mecanismos de dominação, além de avançar na desconstrução das
fronteiras de classe, na medida em que uma ação reivindicatória não suprime
necessariamente a luta de outro segmento social que se encontra unificado justamente
pelas relações de classes.
Nesse sentido, há um longo caminho a ser percorrido na busca pela superação
das lacunas teóricas existentes acerca da nova morfologia da classe trabalhadora, em
função do hibridismo inerente aos sujeitos que compõem o mundo do trabalho na
atualidade, cuja realidade revela a plasticidade e a mobilidade do trabalho (THOMAZ
JUNIOIR, 2011b). A “pureza” do camponês deu espaço a um sujeito híbrido que ora é
camponês, ora é operário, proletário (mototaxista, diarista nas agroindústrias e fazendas,
biscateiro, ambulante, trabalhadores sem terra ou com pouca terra), como destaca
42
Thomaz Junior (2006) e esse processo é fomentado pela crise e pela consequente
reestruturação do capital.
Esse hibridismo do ser camponês foi verificado na área da pesquisa, por meio
das entrevistas realizadas com as populações atingidas pela implantação dos perímetros
irrigados Baixio de Irecê e Salitre. É comum encontrar nas comunidades ribeirinhas do
Baixo Salitre pessoas que trabalham temporariamente nas lavouras do Projeto Salitre
como diaristas, caseiros, motoristas, entre outras funções. De acordo com Thomaz
Junior (2011a, p. 15) “[...] seja nos campos, seja nas cidades e seus respectivos
processos rurais e urbanos, é necessário reconstituir os mecanismos que marcam o fluxo
constante de sentidos, significados, conteúdos materiais e subjetivos de classe”. Nesse
sentido, a ação expansionista do agrohidronegócio tem colocado cada vez mais os
camponeses nas trincheiras do combate (político, ideológico), contra as investidas do
grande capital sobre seus territórios, fenômeno que salta aos olhos e se apresenta como
um assunto geograficamente inquietante e fomentador de pesquisas.
Diante do exposto, destacamos a importância e pertinência das contribuições
decorrentes da abordagem feita pela geografia do trabalho, cuja rede de pesquisadores
no campo da ciência geográfica, no Brasil, encontra em Thomaz Junior (2009, 2010a,
2012) sua expressão mais representativa. A geografia do trabalho busca fazer a “leitura”
do mundo reafirmando a centralidade da categoria “trabalho” , desde o ponto de vista
ontológico para entender o que se passa na contemporaneidade, com vistas a
interpretar/desvendar as múltiplas faces da degradação do trabalho no campo e na
cidade, até as estratégias e discursos hegemônicos adotados pelo capital em seu
processo sociorreprodutivo.
Ainda nessa perspectiva analítica, a geografia do trabalho procura entender a
nova morfologia da classe trabalhadora na contemporaneidade, bem como os desafios
postos pela necessidade de atualizar os referenciais marxistas, de modo que estes
possam contemplar as múltiplas faces do capital nesse limiar de século XXI. Ante o
exposto, Thomaz Junior (2011c, p. 17) nos concita a “[...] refazer o uso da dialética e do
conceito de práxis como referenciais teórico-metodológicos, ou seja, que as categorias e
os conceitos não estejam à frente da objetividade ontológica da sociedade.”
As clivagens, travagens e tramas do metabolismo social do capital colocam-se
como desafios para a interpretação do fenômeno da expansão do agrohidronegócio no
Semiárido baiano, sendo a geografia um aporte importante na busca pela “leitura” das
contradições materializadas no território. Sobre o papel da geografia no tocante à
43
compreensão do que se passa no mundo do trabalho hoje, Thomaz Junior (2010a, p.
500) ressalta que a Geografia
pode contribuir sobremaneira para o desvendamento das
manifestações territoriais do processo social, possibilitando-nos o
entendimento das transformações no mundo do trabalho a partir dos
rearranjos espaciais que dão forma e contornos e se fundamentam
sobre conteúdos sociais diversos, ou seja, enquanto processo histórico
de construção e transformação, que por sua vez, substantiva-se em
ordenamento territorial diferencial.
Apreender os fenômenos geográficos a partir dos referenciais da geografia do
trabalho coloca como desafio um universo caracterizado por novas fissuras e múltiplas
travagens no conteúdo da classe trabalhadora, bem como os processos de
expropriação/dominação/apropriação do trabalho vivenciados por milhões de
trabalhadores no campo e na cidade.Assim, faz-se necessário compreender os jogos
explicativos do capital, a intensificação da precarização do trabalho no campo e na
cidade, a produção/supressão de riquezas, a “despossessão” e os intensos processos de
descampesinização12, entendimento esse fundamental para avançar na construção de
uma sociedade anticapital.
Uma vez que o avanço do agrohidronegócio no Semiárido baiano contribui
diretamente para dissolver a relação metabólica terra e água, verifica-se o esgarçamento
do tecido social, que desestabiliza o cotidiano das famílias que vivem do trabalho na e
com a terra e interfere na organização do território, gerando diretamente aquilo que Bihr
(1998) define como “crise de sociabilidade”. Ainda nessa perspectiva, Thomaz Junior
(2011a, p. 15) toma como exemplo “[...] as práticas socioculturais que envolvem
diretamente as comunidades à memória da terra, ou seja, a terra vista não como
mercadoria, mas sim território de vida, da própria existência, o que significa que, ao
perdê-la, perde-se juntamente a possibilidade de existência”. É importante asseverar que
o trabalho, como ato teleológico, segue mediando a construção do espaço geográfico,
num constante par dialético – realização-estranhamento13 – de modo que a relação
capital versus trabalho coloca, no jogo de cena, o complexo de relações contraditórias,
tendo como impacto negativo ointemperismo das relações do homem com a natureza.
A reorganização espacial e o emaranhado político-ideológico que envolvem as
estruturas necessárias à territorialização do grande capital criam estratificações sociais
12 Para Carvalho (2005, p. 38) a instabilidade estrutural vivenciada pelo campesinato brasileiro gera “[...]
processos de ‘campesinização’, ‘descampesinização’ e ‘recampesinização’ [...]”. 13 O termo estranhamento é aqui entendido na perspectiva luckacsiana.
44
complexas que vão conflitar direta e indiretamente com as formas tradicionais de uso da
terra e da água. Não raro, eclodem disputas territoriais e processos des-re-
territorializantes, em virtude da execução de megaempreendimentos, aspecto revelador
de uma hidropolítica entre o Estado e o grande capital, em função do mercado virtual de
água.
O agrohidronegócio revela força e poder14 frente aos direitos das populações
camponesas tradicionais, por causa doarranjos políticos e econômicos estabelecidos na
esfera governamental, como forma de agilizar os processos legais sob o domínio do
aparelho do Estado. No tocante ao Semiárido baiano, a efetivação da política de
desenvolvimento territorial executada pelo Estado desde os anos de 1970 tem
promovido uma ressignificação do lugar/território, tanto no tocante à dimensão
simbólico-cultural (lugar) quanto no plano das relações de poder (território). Há, nesse
aspecto, a necessidade do alargamento dos horizontes analítico-interpretativos para
compreender e apreender as alterações ocorridas no plano das relações e espaços de
vivências dos camponeses caatingueiros (ribeirinhos ou não), porque tais
transformações não estão condicionadas especificamente à execução de um grande
empreendimento hídrico, como é o caso dos projetos de irrigação.
A relação metabólica do camponês caatingueiro com a terra e a água
(Organograma 1) passa a ser associada ao simbolismo e à cultura do atraso, concepção
sustentada pela equivocada defensa da agricultura irrigada, cuja produção é direcionada
ao mercado externo. A apropriação da terra e da água pelo camponês caatingueiro traz
em sua gênese os resquícios da estrutura agrária do tempo dos currais, cuja organização
estava centrada na agricultura de vazante (produção de cana-de-açúcar, principalmente)
e na criação de gado nas áreas de sequeiro. Para esse sujeito, a apropriação e o uso dos
recursos terra e água estão mediados por valores culturais (a policultura), valores
simbólicos (terra como território e a água como manifestação divina que potencializa o
trabalho e a produção de alimentos), de modo a viabilizar a reprodução do modo de vida
camponês. A associação terra-ága deve ser analisada a partir do trabalho como condição
ontológica do ser social, porque representa os meios que permitem ao camponês
caatingueiro a manutenção de suas práticas socioculturais e de seus modos de vida,
conferindo-lhe certa autonomia em relação aos atores hegemônicos (Estado, capital e
14 Arendt (1985, p. 24) afirma que “[...] o poder jamais é propriedade de um indivíduo; pertence ele a um
grupo e existe apenas enquanto o grupo estiver unido. No momento em que o grupo, de onde originara-
se o poder desaparece, o seu poder também desaparece.”
45
senhores das terras). O controle sobre a terra e a água permite ao grande capital e aos
proprietários de terras subtrair riquezas geradas pelo trabalho camponês ou pelos
assalariados das periferias urbanas que buscam o sustento da família trabalhando nos
perímetros irrigados. Ao visitar as comunidades da bacia do rio Verde (Itaguaçu da
Bahia) e do rio Salitre (Juazeiro) verificamos que os camponeses com acesso à terra e à
água dispõem de maior autonomia tanto do ponto de vista político quanto econômico.
Organograma 1 – Camponês caatingueiro e a relação metabólica terra e água
Org.: DOURADO, J. A. L., 2014.
Elab.: HOLANDA, E. P.
A apropriação social da natureza (LEFF, 2006) entre os distintos grupos que
historicamente ocuparam as terras semiáridas do Médio e Submédio São Francisco fica
seriamente comprometida, devido aos processos de valorização fundiária e especulação
financeira. O resultado é o desmantelamento das comunidades que têm sua dinâmica
46
totalmente alterada em função da chegada de pessoas para trabalhar nos canteiros de
obras, ou, ainda, pelos trabalhadores que buscam nos perímetros irrigados uma
oportunidade de emprego, fato que contribui sobremodo para o crescimento
desordenado da população dos municípios onde estão localizados os projetos de
irrigação.
Durante as visitas às comunidades em Xique-Xique, muitos entrevistados
fizeram referência aos “filhos do Baixio”, ao tratar das crianças que nasceram com a
chegada dos operários para trabalhar na obra do Projeto Baixio de Irecê, sendo elas
sequer reconhecidas pelos pais, que, ao término da obra, retornaram para seus locais de
origem, ficando mães e crianças abandonadas. Na região de Juazeiro, são os “filhos do
vento”, ou seja, crianças nascidas com a chegada dos operários para trabalhar na
implantação dos parques eólicos, principalmente no município de Sobradinho, vizinho a
Juazeiro.
As políticas de incentivo à irrigação, os megaempreendimentos de segurança
hídrica (a transposição do rio São Francisco15 e os projetos de irrigação) são evidências
do exercício de relações de poder projetadas no espaço, nas mais diferentes escalas,
temporalidades e situações. É essencial destacar a notoriedade adquirida pelos
megaempreendimentos hídricos na área da pesquisa, sendo disseminada a ideia de que o
desenvolvimento regional está restrito à execução desses projetos. Cria-se,no interior
das comunidades, um conflito entre os adeptos e os contrários aos empreendimentos
hídricos, o que, por sua vez, provoca desestabilidade entre os camponeses, com a
ocorrência de conflitos internos, devido à divisão das famílias e à negação dos modos de
15 O rio São Francisco é conhecido como o rio da integração nacional. “Essa denominação vem do fato de
ele ligar o Brasil desde o Sudeste – serra da Canastra, em Minas Gerais, onde nasce – até o Nordeste,
exatamente na divisa dos Estados de Alagoas e Sergipe, onde deságua no oceano Atlântico. Seu curso
pode ser dividido em quatro trechos diferenciados: o do alto São Francisco, que vai até a confluência
com o rio Jequitaí, em Minas Gerais; o médio São Francisco, onde começa o trecho navegável do rio e
segue até a barragem de Sobradinho, na Bahia; e o submédio e o baixo, entre Sobradinho e a foz.”
(RIMA, 2004, p. 13). Os municípios de Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique estão localizados no
Território da Cidadania (ou Identidade) de Irecê, composto por 20 municípios (América Dourada, Barra
do Mendes, Barro Alto, Cafarnaum, Canarana, Ibipeba, Ibititá, Ipupiara, Jussara, Lapão, Mulungu do
Morro, Presidente Dutra, São Gabriel, Uibaí, Central, Gentio do Ouro, Itaguaçu da Bahia, João Dourado
e Xique-Xique). Já o município de Juazeiro está localizado no Território da Cidadania Sertão do São
Francisco, composto por 10 municípios (Uauá, Campo Alegre de Lourdes, Canudos, Casa Nova,
Curaçá, Juazeiro, Pilão Arcado, Remanso, Sento Sé e Sobradinho). Na Bahia foram identificados 26
territórios da Cidadania pelo Programa Territórios da Cidadania, lançado pelo governo federal em 2008,
com o propósito de promover o desenvolvimento econômico e universalizar programas básicos de
cidadania por meio de uma estratégia de desenvolvimento territorial sustentável. Essas ações integram o
Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável (PTDRS). Para maiores informações sobre os
Territórios da Cidadania acesse www.territoriosdacidadania.gov.br/dotlrn/clubs/territoriosrurais/on-
community.
47
vida até então predominantes. Com a chegada dos projetos de modernização, tem-se
como resultado uma devastadora desagregação dos laços de sociabilidade interna, sem
que haja, por parte dos empreendedores (Estado e grande capital), o reconhecimento das
relações territoriais, sociais, culturais e étnicas existentes no local e cujas
especificidades não são contempladas com os planos de “remoção”, “reassentamento”,
“limpeza”. Camponeses, indígenas e quilombolas caatingueiros têm sua quietude e
tranquilidade perdidas em função dos processos desterritorializantes deflagrados pelos
projetos desenvolvimentistas, que ganharam novo fôlego a partir dos anos 2000, mais
especificamente com a implantação do PAC16 no governo Lula. Os discursos
governistas procuram destacar o crescimento obtido na mineração, no agronegócio, no
setor energético, com grande aumento de áreas agricultáveis que avançam sobre
florestas, margens e nascentes de rios e áreas de proteção constantemente invadidas e
destruídas por pastos, monocultivos (cana, soja, celulose, laranja), extração mineral ou
por barragens.
Entender a barbárie do capital em sua versão moderna e sua materialidade no
território requer, necessariamente, que demos conta do par dialético – ir e vir – em face
do conteúdo espacial perpassado por contradições, expressas pelo estranhamento dos
sujeitos sociais enquadrados em diferentes atividades urbanas e rurais, bem como
daqueles excluídos desse processo. Os conflitos por terra e água que emanam do
Semiárido baiano põem em cena novas territorialidades, devido ao processo histórico de
construção e transformação desse espaço para atender às novas demandas de
acumulação, das formas e contornos dos rearranjos do metabolismo societário do
capital, constituindo indicativos da edificação de movimentos de contestação da ordem
vigente. Porto-Gonçalves e Cuin (2013, p. 18) chamam a atenção para o seguinte
aspecto sobre a natureza do conflito:
O conflito é um conceito importante, pois aponta para uma dimensão
imanente às relações sociais e de poder. Indica que sobre um mesmo
tema, um mesmo objeto, diferentes indivíduos/grupos/classes/sujeitos
sociais têm visões/práticas distintas. O conflito é a contradição social
em estado prático. Tomá-lo como conceito central para análise dos
processos sócio-geográficos é fundamental, ainda mais quando se trata
de conflitos pela terra/água, necessários para a produção/reprodução
da vida. A luta pela terra/água mais que uma questão de economia, é
fundamental para a democracia, pois diz respeito a relações de poder
16 Alves (2014) define esses projetos como “neodesenvolvimentistas” inseridos no contexto do
capitalismo hipertardio, caracterizado ontogeneticamente pela “modernização conservadora”. Ainda
segundo esse mesmo autor, trata-se de um fenômeno causador de mudanças internas na morfologia das
classes e camadas sociais.
48
através do controle da terra/água.
A pilhagem da região do Semiárido e de seus povos, iniciada pelos donos dos
currais ainda no século XVII, quando tribos indígenas que ocupavam o São Francisco
foram dizimadas para dar lugar ao gado, continua pujante em pleno século XXI, com os
projetos desenvolvimentistas, como é o caso dos projetos de irrigação inseridos no
PAC. O que ocorreu de fato foi uma remodelagem tanto dos mecanismos quanto das
estratégias utilizadas, porém os fins possuem muitas similitudes porque trazem, em seu
cerne, a perspectiva de modernizar o território para facilitar a reprodução do grande
capital. A percepção desses fenômenos e/ou processos foi aguçada pelo fato deste
pesquisador ter crescido no Semiárido baiano e vivenciado as transformações
socioespaciais decorrentes da expansão do agrohidronegócio frutícola no município de
Livramento de Nossa Senhora. Essa expansão promoveu intensa migração campo-
cidade, precarização do trabalho e desmonte dos costumes e modos de vida das
comunidades camponesas desterritorializadas, para a construção do Perímetro Irrigado
do rio Brumado, voltado para a produção de manga para o mercado externo (Estados
Unidos da América, Europa e Japão).
1.2 Quando o território da vida se confunde com o território da pesquisa:
entendendo os porquês do Semiárido baiano
A capacidade de compreensão de um fato e/ou fenômeno é potencializada se
houver uma associação entre quem fala e aquilo do que se fala. O Semiárido abordado
nesta pesquisa é hibrido, plasmado, cuja inteireza revela um pouco de mítico, de
pobreza, de riqueza, de seca, de múltiplas culturas e de resistências (e por que não dizer
existências), tudo isso sublimado pelas contradições dos processos histórico-geográficos
que, ainda hoje, colocam em questão a eficiência e eficácia da técnica, da tecnologia e
da política, no tocante à solução dos problemas causados pelas secas.
O Semiárido das secas (amargo para os camponeses caatingueiros17) logo se
transmutaria em Semiárido do agrohidronegócio (fértil e provedor para as personas do
capital), revelando um imbricado e complexo processo de existência conflituosa entre
mundos-sujeitos, numa terra onde “secas” e “chuvas” são manipuladas para atender aos
17 Entende-se por camponês caatingueiro os sujeitos que vivem no campo, na região semiárida,
compreendendo os barranqueiros, geraizeiros, pescadores e os que vivem em áreas distantes dos rios,
com pouca ou sem terra, sendo caracterizados por práticas socioculturais distintas, porém hibridizados e
amalgamados pelas tramas espaciais intrincadas na própria dinâmica do “ser” camponês.
49
interesses das elites (locais, regionais, nacionais e agora também internacionais). Mais
ásperas que a paisagem adusta do Semiárido têm sido as ações voltadas a atender às
demandas do capital em sua ação expansionista, com aporte de grandes investimentos
públicos em obras de infraestrutura, como produtos de nefastas articulações políticas, ao
passo que as populações sertanejas ficam à mercê das medidas assistencialistas ainda
hoje “necessárias” ao enfrentamento das mazelas sociais existentes (e resistentes) no
Semiárido.
Eleger o Semiárido como cenário desta pesquisa não foi algo acidental. Trata-se
de uma decisão eivada de sentido político e também cultural, porque os desígnios da
seca são tão marcantes no Sertão que assumem uma materialidade na paisagem e
espaço, nos discursos e nas representações socioculturais. Nesse sentido, viver no
Semiárido foi preponderante para a escolha do tema e do território a serem analisados e
desvendados a partir do instrumental do materialismo histórico-geográfico, pois, como
destaca Harvey (2011, p. 115), “nossa única escolha é ser ou não consciente de como
nossas intervenções atuam e estar pronto a mudar de rumo rapidamente quando as
condições se colocarem ou quando as consequências não intencionais se tornarem mais
aparentes”.
Considerando a regionalização baseada no rio São Francisco, os municípios
localizados próximos ao seu curso estão divididos em: Alto São Francisco, Médio São
Francisco e Baixo São Francisco. Para a referida pesquisa escolhemos como recorte
espacial (Mapa 1) as regiões do Médio São Francisco (sendo analisados os municípios
de Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique) e o Submédio São Francisco (cujo foco de análise
foi o município de Juazeiro) por razões muito específicas, a saber: a) constituem duas
regiões de expansão do agrohidronegócio no Semiárido baiano, e no Médio São
Francisco esse fenômeno começa a se estruturar, ao passo que no Submédio São
Francisco já apresenta-se consolidado; b) nas referidas regiões temos a atuação
marcante por parte do Estado, através da implantação de grandes projetos de irrigação;
c) nelas há a ocorrência de conflitos por terra e água relacionados à implantação dos
perímetros irrigados; d) estão localizadas no Semiárido baiano.
O vale do São Francisco tornou-se bastante atrativo para o grande capital ao
longo das últimas quatro décadas, visto que a associação entre condições
edafoclimáticas favoráveis e a pisponibilidade de infraestrutura proporcionada pelo
Estado, garantem retorno financeiro aos investimentos realizados pelo setor privado,
principalmente nos perímetros irrigados, promovendo uma expansão considerável
50
destes por todo o seu vale.
51
Partindo dessa premissa, a escolha do Semiárido como espaço a ser analisado
deu-se em função das experiências vivenciadas por este pesquisador que, desde o curso
de Mestrado18, propôs-se a pensar e a analisar as singularidades dessa região a partir dos
efeitos da modernização da agricultura, devido à implantação dos projetos de irrigação e
à territorialização do grande capital no campo, através da fruticultura irrigada no
Perímetro Irrigado do Rio Brumado, no município de Livramento de Nossa Senhora
(BA). Desse modo, a construção teórica da presente tese emana do mundo vivenciado
pelo pesquisador, o lugar de onde advêm suas experiências cotidianas e com o qual se
tem laços de afetividade. Há, portanto, uma fusão entre os espaços analisados nesta
pesquisa e a vida do pesquisador, aspecto que, a nosso ver, facilita adentrar o cotidiano
dos camponeses caatingueiros, visualizar os conflitos e interpretá-los a partir do real.
Sobre essa relação entre o pesquisador e a pesquisa, Oliveira (1998) ressalta que
[...] promover a consonância entre pesquisa e biografia é altamente
estimulante, pois atribui vida ao estudo, retirando da produção
intelectual poeiras de artificialismo, que recobrem parte da pesquisa
acadêmica ou, senão isso, que acabam contribuindo para a
representação social da universidade como redoma, imagem que ainda
encontra ressonância no conjunto da sociedade.(OLIVEIRA, 1998, p.
19).
Ainda sobre essa escolha, concordamos com Castro (2008, p. 295) quando faz a
seguinte afirmação:
A Região Nordeste é um caso importante para investigação, seja pelo
descompasso que ela apresenta quando comparada com outras regiões
do país ou com a média nacional, seja pelo uso político da aparência
das causas da diferenciação, aceitas pelo senso comum, seja pela
ressonância que os políticos regionais obtêm no cenário nacional.
Diante disso, o pesquisador torna-se uma espécie de artesão intelectual que vai
lapidando a construção do conhecimento mediante a incorporação das experiências
vividas, sem, contudo, ceder às verdades cristalizadas. Ainda sobre a motivação que o
levou à realização da pesquisa, buscou-se respaldo em Oliveira (2008, p. 125) quando
esse revela sua paixão pela investigação ao dizer: “[...] não indaguei, pois, do
surgimento da paixão: apaixonei-me apenas; e entrei na corrente, deixei o barco correr.”
A escolha pelo Semiárido baiano, mais especificamente o vale do rio São Francisco, não
18 No ano de 2009 foi iniciado o curso de Mestrado em Geografia pela Universidade Federal de Goiás –
Campus Catalão, sob a orientação da professora Doutora Helena Angélica de Mesquita, cujo título é
“Modernização da agricultura: expropriação camponesa e precarização do trabalho no agronegócio da
manga em Livramento de Nossa Senhora (BA)”.
52
representa apenas uma ampliação da área de pesquisa iniciada durante o Curso de
Mestrado. Significa uma tentativa mais ousada com o intuito de trazer para o debate a
realidade vivenciada por milhões de sertanejos nordestinos que ainda hoje perecem
“vítimas de um sistema de opressão e opróbrio” (OLIVEIRA, 2008, p. 130), visto que o
desenvolvimento das forças produtivas não tem representado a emancipação desses
sujeitos cuja função dentro da engrenagem do grande capital se resume a favorecer a sua
reprodução ampliada.
Interessa analisar, no âmbito desta pesquisa, a expansão do agrohidronegócio e
as disputas territoriais no Semiárido baiano a partir dos projetos públicos de irrigação,
ainda que, não obstante, se tenha a compreensão de que esse fenômeno esteja associado,
em um ou outro momento, à expansão da mineração, de parques eólicos, à construção
de ferrovias e à produção de agrocombustíveis na região. Estas ações integram o
planejamento do projeto desenvolvimentista, pensado e executado para favorecer a
reprodução do capital e a consolidação da estrutura de dominação vigente.
Se, no limiar do século XXI, o Nordeste semiárido tem presenciado a
territorialização do grande capital, acreditamos que “[...] não se pode reconhecer
nenhum papel civilizatório para o grande capital no Nordeste; ali, como em outras
partes do Brasil, é ele a opressão, o obscurantismo, a negação do futuro” (OLIVEIRA,
2008, p. 131). Nesse contexto, colocamos em questão a validade dos projetos
desenvolvimentistas, bem como a racionalidade economicista utilizada para
fundamentar as ações do Estado, pautadas na perspectiva da modernização do território,
desconsiderando as alternativas emanadas da organização social, com base no respeito
aos limites da capacidade dos ecossistemas que compõem o bioma Caatinga e à
valorização das bases imateriais “[...] da cultura e dos valores identitários associados
aos territórios de vida e trabalho” (CARVALHO, 2012, p. 26).
Do Nordeste algodoeiro-pecuário (OLIVEIRA, 2008) ao Nordeste dos
perímetros irrigados, vê-se o surgimento de novas configurações, sendo notória a
articulação Estado-capital, cujo fio lógico é a implementação de megaprojetos, criando
novos circuitos de produção e apropriação do valor gerado pela mercadoria “água”. O
binômio terra-água protagoniza a reinvenção ideológica do “novo Nordeste”, fortemente
marcado pelos investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), como
é o caso dos projetos de irrigação Baixio do Irecê e Salitre, numa clara imposição de
modelo produtivo para essa região. O encurralamento das populações camponesas
constitui-se uma forma de externalização dos custos de um intenso e acelerado processo
53
de privatização da terra e do uso da água, sem que haja a possibilidade de debate e
escolha sobre qual modelo de desenvolvimento atende às demandas dos sujeitos que
vivem nesse território. Por outro lado, cabe destacar que não há mais uma clara
distinção entre o Nordeste semiárido e o Nordeste litorâneo, no que tange ao projeto de
superação das disparidades regionais, por entender que há uma convergência do capital
financeiro19, através da expansão da silvicultura no sul da Bahia, da fruticultura irrigada
e da cana-de-açúcar nas áreas de caatinga, mediada pela apropriação da água, cuja
racionalidade acaba por diluir o discurso da seca, revelando assim a contradição no seio
do próprio processo de expansão do capital, em terras semiáridas do Nordeste brasileiro.
A partir da década de 1960, houve nos estados do Nordeste a criação de diversos
perímetros irrigados pela CODEVASF (Quadro 1) e pelo DNOCS (Quadro 2), como
medida para minimizar as disparidades regionais a partir da criação de infraestrutura de
irrigação e geração de energia elétrica, com fortes impactos socioeconômicos para o
campo, por representar as bases para a agricultura moderna na região. Atualmente as
ações da CODEVASF estão concentradas nos sete polos de desenvolvimento: Norte de
Minas, Guanambi, Formoso/Correntina, Barreiras, Irecê, Juazeiro/Petrolina e Baixo São
Francisco. A política de desenvolvimento regional pensada para o Nordeste semiárido
ainda tem, nos perímetros irrigados (Mapa 2), um dos pilares para a atuação do Estado
no que diz respeito à geração de emprego, renda e garantia da segurança hídrica.
O projeto de “Integração” do rio São Francisco20, a implantação do Projeto
Baixio de Irecê e o Projeto Salitre foram contemplados com recursos do PAC, obras
ainda inacabadas. Trata-se de obras voltadas para o incremento da produção de etanol,
cana-de-açúcar e fruticultura, com vistas a atender às demandas de consumo tanto
interno (principalmente o Centro-Sul do país) quanto para exportação.
19 Fusão de capital industrial com capital bancário. 20 Segundo informações do Ministério da Integração Nacional, o Projeto de Integração do rio São
Francisco, além de gerar empregos e promover a inclusão social, irá garantir a segurança hídrica em
390 cidades localizadas nos estados da Paraíba, Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte, totalizando
12 milhões de pessoas.
54
55
Ao analisar o mapa 2 verifica-se que os perímetros irrigados estão
concentrados, em sua maioria, nos estados da Bahia (porção norte do estado),
Pernambuco e Ceará, com destaque para os polós Juazeiro/Petrolina (BA/PE), Tabuleiro
de Russas21 e Jaguaribe/Apodi (CE)22 e Baixo-Açú (RN)23. Os perímetros irrigados
constituem verdadeiras “manchas verdes” para onde convergem empresas do setor
alimentício (Del Monte Fresh Produce, por exemplo), de insumos e de máquinas. Essas
regiões são, atualmente, as maiores produtoras de manga, uva, banana do país. Os
investimentos feitos na região acabaram promovendo a modernização do território,
levando o Semiárido a adquirir importância singular no cenário nacional no tocante à
produção frutícola, principalmente manga, uva e banana. Em função desses
investimentosem construção de canais de irrigação, perímetros irrigados e barragens:
[…] novos conteúdos e impõe novos comportamentos graças às
enormes possibilidades de produção e sobretudo da circulação dos
insumos, dos produtos, do dinheiro, das idéias e informações, das
ordens e dos homens. É a irradiação do meio técnico-científico-
informacional que se instala sobre o território, em áreas contínuas no
Sudeste e Sul ou constituindo manchas e pontos no resto do país
(SANTOS e SILVEIRA, 2001, p.52).
Assim, em função da execução dos programas e projetos estatais, os vales
dos rios São Francisco, Parnaíba e Jaguaribe tiveram suas paisagens transformadas pela
geometria dos canais de irrigação, da açudagem e dos perímetros irrigados, cujos
territórios representam a delimitação entre o “moderno” e o “arcaico”, bem como a
divisão do Semiárido entre o DNOCS e CODEVASF. Vale destacar que, inicialmente, a
atuação do DNOCS estava direcionada para o incentivoda agricultura familiar ao passo
quea CODEVASF sempre esteve direcionada ao incentivodo agronegócio. Os
perímetros irrigados representam um reesenho do Semiárido, cuja espacialização
expressa linhas de tensão entre sujeitos e modelos de ocupação e usos distintos do
território. A atuação da CODEVASF dé-se, de forma mais expressiva, nos estados da
Bahia, Pernambuco e Minas Gerais (Quadro 1), sendo responsável por dotar o território
de condições favoráveis para a territorialização do agrohidronegócio.
21 O Perímetro Irrigado Tabuleiros de Russas está localizado nos municípios de Russas, Limoeiro do
Norte e Morada Nova, especificamente no baixo vale do Jaguaribe, conhecido como zona de Transição
Norte dos Tabuleiros de Russas. 22 A Chapada do Apodi compreende uma área de 2.421,8 km², englobando terrenos dos municípios de
Aracati, Jaguaruana, Quixeré, Limoeiro do Norte, Tabuleiro do Norte, Alto Santo e Potiretama (COSTA,
2009). 23 O Perímetro Irrigado Baixo-Açu esta situado nos municípios de Ipanguaçu, Alto do Rodrigues e
Afonso Bezerra.
56
Quadro 1 - Projetos de irrigação sob a gestão da CODEVASF – 2014
Projeto Extensão (ha) Situação Localização
Gorutuba 4.734 Em produção Minas Gerais
Jaíba 107 Em produção Minas Gerais
Lagoa Grande 1.538 Em implantação Minas Gerais
Pirapora 1.236 Em produção Minas Gerais
Lagoa Grande 1.538 Em produção Minas Gerais
Baixio do Irecê 59.375 Em implantação Bahia
Salitre 31.305 Em produção Bahia
Barreiras do Norte 1.652 Em produção Bahia
Ceraíma 408 Em produção Bahia
Curaçá 4.203 Em produção Bahia
Estreito I/III 5.884 Em produção Bahia
Mandacaru 420 Em produção Bahia
Maniçoba 4.160 Em produção Bahia
Mirorós 2.159 Em produção Bahia
Nupeba/Riacho Grande 2.853 Em produção Bahia
Piloto Formoso 408 Em produção Bahia
Formoso A/H 11.751 Em produção Bahia
SãoDesidério/Barreiras Sul 1.718 Em produção Bahia
Tourão 14.237 Em produção Bahia
Estreito 5.844 Emprodução Bahia
Ceraíma 2.430 Em produção Bahia
Projeto Marituba 4.200 Em implantação Alagoas
Itiúba 900 Em produção Alagoas
Boacica 2.762 Em produção Alagoas
Cotiguiba/Pindoba 2.232 Em produção Sergipe
Projeto Jacaré Curituba 3.105 Em implantação Sergipe
Betume 2.860 Em produção Sergipe
Propriá 1.177 Em produção Sergipe
Senador Nilo Coelho 18.563 Em produção Pernambuco
Total (ha) 203.894
Fonte: CODEVASF, 2012.
Org.: DOURADO, 2014.
Os perímetros irrigados Sertão Pernambucano (33.000ha), localizado na Bahia e
em Pernambuco e o Canal do Xingó (16.550ha), localizado nos estados da Bahia e de
Sergipe, estão em fase de estudo. Outros dois estão em fase de elaboração dos projetos:
Jequitaí (34.605ha), em Minas Gerais e Vale do Iuiú (88.306ha), na Bahia. No tocante
ao DNOCS (Quadro 2), sua atuação vem reduzindo significativamente na última
década, fato verificado pelo número de projetos em fase de implantação.
57
Quadro 2 - Projetos de irrigação sob a gestão do DNOCS – 2014
Projeto Área (ha) Situação Localização
Brumado 7.821 Em produção Bahia
Jacurici 1.100 Em produção Bahia
Vaza Barris 11.677 Em produção Bahia
Araras Norte 6.407 Em produção Ceará
Ayres de Souza 8.942 Em produção Ceará
Baixo Acaraú 12.407 Em produção Ceará
Curu-Paraipaba 12.347 Em produção Ceará
Curu-Pentecoste 5.016 Em produção Ceará
Ema 352 Em produção Ceará
Forquilha 3.327 Em produção Ceará
Icó-Lima Campos 10.583 Em produção Ceará
Jaguaribe-Apodi 13.229 Em produção Ceará
Jaguaruana 343 Em produção Ceará
Morada Nova 11.025 Em produção Ceará
Quixabinha 530 Em produção Ceará
Tabuleiros de Russas 18.915 Em produção Ceará
Várzea do Boi 12.878 Em produção Ceará
Engenheiro Arcoverde 920 Em produção Paraíba
São Gonçalo 5.548 Em produção Paraíba
Sumé 837 Em produção Paraíba
Boa Vista 249 Em produção Pernambuco
Cachoeira II 378 Em produção Pernambuco
Custódia 1.341 Em produção Pernambuco
Moxotó 12.395 Em produção Pernambuco
Caldeirão 1.543 Em produção Piauí
Fidalgo 5.444 Em produção Piauí
Gurguéia 13.533 Em produção Piauí
Lagoas do Piauí 6.689 Em produção Piauí
Platôs de Guadalupe 16.879 Em produção Piauí
Tabuleiros Litorâneos do Piauí 9.033 Em produção Piauí
Baixo-Açu 6.000 Em produção Rio G. do Norte
Cruzeta 506 Em produção Rio G. do Norte
Itans 247 Em produção Rio G. do Norte
Pau dos Ferros 2.265 Em produção Rio G. do Norte
Sabugi 1.092 Em produção Rio G. do Norte
Total (ha) 221.798
Fonte: DNOCS, 2014.
Org.: DOURADO, J. A. L.
Atualmente apenas o perímetro irrigado Santa Cruz do Apodi (4.024ha), no
Maranhão, está em fase de implantação, sob a responsabilidade do DNOCS. Segundo
informações disponibilizadas pelo Portal Brasil (2014) , os 26 perímetros irrigados em
58
fase de produção, sob a gerência da CODEVASF, alcançaram, em 2013, R$1,72 bilhão
em valor bruto de produção (VBP), um crescimento real de 14% em relação a 2012,
atingindo uma produção de 2,68 milhões de toneladas, principalmente de frutas, numa
área total cultivada de 90,9 mil hectares. Ainda de acordo com o Portal Brasil (2014), o
Polo Juazeiro/Petrolina exportou 59,86 mil toneladas de frutas em 2013, principalmente
manga e uva.
A CODEVASF tem atuação expressiva no Semiárido nordestino, abrangendo a
implantação de perímetros irrigados, obras relacionadas ao abastecimento de água
(construção de adutoras, estações de bombeamento de água, etc.), manutenção de
estradas vicinais e obras de saneamento básico em comunidades próximas aos
perímetros irrigados. A espacialização dos perímetros irrigados revela a importância
política das elites agrárias na Bahia e no Ceará, haja vista que estes empreendimentos
destinados à segurança hídrica acabam atraindo investimentos financeiros e fomentando
especulação imobiliária, bem como a valorização de terras, contribuindo para o
aquecimento e a valorização do mercado de terras.
É inegável que a implantação dos perímetros irrigados no Semiárido nordestino
tem ocasionado mudanças profundas na agricultura desenvolvida na região, a partir da
década de 1980 e mais acentuadamente nos anos 2000, com destaque para o Polo
Juazeiro/Petrolina (BA/PE), Jaguaribe-Apodi (CE), Tabuleiros de Russas (CE) e Baixo
Açu (RN), cuja agricultura se encontra fortemente marcada pela produção de frutas
(manga, melão e abacaxi, principalmente), além da produção de cana-de-açúcar pela
empresa Agrovale no município de Juazeiro (BA). Essa modernização, tanto no que se
refere às formas de uso e ocupação do solo bem como no âmbito da produção (sai de
cena o valor de uso e ganha destaque o valor de troca), sob encomenda das ideologias
desenvolvimentistas e a serviço do marketing do grande capital, vai reduzindo as
possibilidades de reprodução das existências camponesas, deformando e
descaracterizando-as a serviço de um modelo homogêneo para o campo. O fenômeno da
modernização agrícola trouxe progressos tecnológicos e científicos para o Semiárido,
introduziu culturas que, sem as alterações impetradas, seriam impossíveis de serem
cultivadas bem como o grande capital, na forma de máquinas, agrotóxicos, sementes
selecionadas (geneticamente modificadas), fertilizantes, monoculturas, produção
industrial e intensificou o assalariamento no campo. Ao tratar das transformações
recentes por que vem passando o Nordeste, Andrade (2005) observa a ocorrência de
profundas transformações na fisionomia, ao passo que as estruturas de poder continuam
59
sólidas.
A Bahia, o Ceará e o Rio Grande do Norte destacam-se por apresentar uma
dinâmica econômica centrada na fruticultura irrigada24. Isso revela a crescente
integração do Nordeste semiárido ao circuito da economia urbana, mediada pela
agricultura científica, tendo como desdobramentos novo patamar de relações entre
cidade e campo, em função do sopro de modernização das forças produtivas no campo.
As mudanças qualitativas e quantitativas decorrentes da modernização da agricultura
fomentaram diversos desdobramentos, tornando o espaço rural “[...] culturalizado,
tecnificado e cada vez mais trabalhado segundo os ditames da ciência” (SANTOS,
2012, p. 47), além de remodelarem totalmente determinadas cidades, como é o caso de
Juazeiro, Barreiras na Bahia, Petrolina em Pernambuco, Russas no Ceará, definidas por
Elias (2006) como “cidades do agronegócio”, devido às inovações tecnológicas e à
dinâmica econômica adquiridas por elas após a territorialização do grande capital.
Segundo Elias (2006, p. 209), o resultado foi
uma grande metamorfose e crescimento da economia urbana das
cidades próximas às produções agropecuárias modernas,
paralelamente ao desenvolvimento de um novo patamar de relações
entre cidade e campo, que se pode vislumbrar através dos diferentes
circuitos espaciais de produção e círculos de cooperação que se
estabelecem entre esses dois espaços.
Ainda nessa perspectiva, Santos (2008a, p. 49) defende que a
difusão de modernizações é assim responsável por notáveis diferenças
dentro de cada país, com a criação de pólos internos. A modernização
sempre vai acompanhada por uma especialização de funções que é
responsável por uma hierarquia funcional. Certamente, os pontos da
área que acolheram as modernizações ou os seus mais importantes
efeitos são também os mais capazes de receber outras modernizações.
Isso cria lugares privilegiados, com uma tendência polar.
Os fenômenos abordados por Santos (2008a) e Elias (2006) são facilmente
identificados na área da pesquisa, quando se observa a cidade de Juazeiro que, devido à
expansão do agrohidronegócio, tornou-se um polo regional com grande capacidade de
atração de pessoas (serviços e empregos) e capitais (setor agropecuário). Ao comparar
as cidades de Juazeiro e Sobradinho, verificamos diferenças latentes, pois cabe ressaltar
que a sede do município de Sobradinho localiza-se a 23 km de distância da cidade de
Juazeiro e, mesmo assim, não consegue exercer o mesmo poder de atração de pessoas,
serviços e capitais. O Polo Juazeiro/Petrolina possui expressividade no cenário
24 Para aprofundamento sobre a fruticultura irrigada no Nordeste semiárido, consultar Bezerra (2012) e
Souza (2013).
60
nordestino por representar um grande produtor frutícola, contando com uma
infraestrutura que possibilita o escoamento da produção por meio de transporte aéreo e
terrestre.
Para efeito de regionalização, esta pesquisa abrangerá o Médio e o Submédio
São Francisco, utilizando, portanto, como critérios para delimitação regional, a divisão
desse rio por regiões fisiográficas. Há, porém, outras formas de regionalização, como os
territórios de identidade25 (Mapa 3), divisão territorial feita a partir de 2007 pela
Secretaria de Planejamento do Estado da Bahia (SEPLAN), baseada nos aspectos
socioculturais e identitários, dividindo a Bahia em 27 territórios de identidade26.
Essa regionalização (territórios de identidade)é posterior às regiões econômicas,
que consideravam precipuamente as características econômicas dos municípios. As
regiões do Médio e Submédio São Francisco estão totalmente inseridas no Polígono das
Secas27, com predominância do bioma Caatinga28 e caracterizadas por longos períodos
de seca, cuja pluviosidade varia entre 350mm a 800mm. A temperatura média anual é
de 27º C, com elevado índice de evapotranspiração, podendo chegar a 3.000mm anuais,
com clima semiárido.
25 A partir de 2007, o Governo da Bahia passou a reconhecer a existência de 27 Territórios de Identidade,
constituídos a partir da especificidade de cada região. O território é conceituado como um espaço
físico, geograficamente definido, geralmente contínuo, a partir de critérios, como o ambiente, a
economia, a sociedade, a cultura, a política e as instituições, e uma população com grupos sociais
relativamente distintos que se relacionam, interna e externamente, por meio de processos específicos,
em que se pode distinguir um ou mais elementos que indicam identidade, coesão social, cultural e
territorial. Os municípios abrangidos por esta pesquisa pertencem ao Território de Identidade Irecê
(Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia) e Território de Identidade Sertão do São Francisco (Juazeiro). 26 Os territórios de identidade da Bahia são: Bacia do Jacuípe, Bacia do Paramirim, Bacia do Rio
Corrente, Bacia do Rio Grande, Baixo Sul, Chapada Diamantina, Costa do Descobrimento, Extremo
Sul, Irecê, Itaparica, Litoral Norte e Agreste Baiano, Litoral Sul, Médio Rio de Contas, Médio Sudoeste
da Bahia, Metropolitana de Salvador, Piemonte da Diamantina, Piemonte do Paraguaçu, Piemonte
Norte do Itapicuru, Portal do Sertão, Recôncavo, Semiárido Nordeste II, Sertão do São Francisco,
Sertão Produtivo, Sisal, Vale do Jequiriçá, Velho Chico, Vitória da Conquista. Disponível em:
http://www.seplan.ba.gov.br/territorios-de-identidade/mapa. Acesso em: 18/07/2014. 27 O Polígono das Secas trata-se de uma divisão regional efetuada em termos políticos-administrativos
criada em 1936, abrangendo atualmente os estados de Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba,
Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e o extremo norte de Minas Gerais. Desde a sua criação, essa
regionalização passou por várias alterações, sendo a mais recente feita no ano de 2005 com a ampliação
dos critérios para inclusão de novos municípios. O Polígono das Secas abrange 969.589,4 km², sendo
composta por 1.133 municípios localizados na área de abrangência do Semiárido, para onde são
direcionadas as políticas emergenciais de combate aos efeitos dos longos períodos de estiagem (secas),
com destaque para os recursos do Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE). 28 A Caatinga é o bioma que predomina na região do semiárido brasileiro, com uma população de cerca
22 milhões de pessoas – ou 11,8% da população nacional. Na Caatinga estão catalogadas 2.240
espécies de vegetais e animais, segundo informações publicadas no site da Associação Caatinga.
Disponível em: http://www.acaatinga.org.br/. Acesso em: 18/07/2014.
61
62
Para efeito de coleta de dados e visitas a campo, temos como referência os
municípios de Itaguaçu da Bahia, Xique-Xique e Juazeiro, todos na Bahia, por
constituírem os municípios diretamente atingidos pela implantação do projeto de
irrigação Baixio de Irecê (Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia) e do Projeto Salitre
(Juazeiro). A este último se agregam as comunidades localizadas na região do Baixo
Salitre29, cujo perímetro total da bacia é de 640km². O levantamento de dados
relacionados à estrutura fundiária foi realizado junto ao Cartório de Registros de
Imóveis e Hipotecas de Xique-Xique.
As principais atividades econômicas desenvolvidas na região são a agricultura
de sequeiro (lavouras temporárias), a criação de gado bovino e caprino, a agricultura
irrigada (às margens do rio Verde, do rio São Francisco, no Projeto Salitre e às margens
do rio Salitre) e a pesca artesanal. A agricultura de vazante é mais expressiva às
margens do rio São Francisco, principalmente no município de Xique-Xique e às
margens do rio Salitre, onde verificamos a predominância da agricultura camponesa
baseada no trabalho familiar, principalmente nas lavouras de cebola, alho, feijão,
mandioca, melão, milho, melancia e na criação de pequenos rebanhos de bovinos e
caprinos. Para Oliveira (2001, p. 56, grifos do autor),
[...] a presença da força de trabalho familiar é a característica básica e
fundamental da produção camponesa. É pois derivado dessa
característica que a família abre a possibilidade da combinação muitas
vezes articulada de outras relações de trabalho no seio da unidade
camponesa. É assim que o trabalho assalariado, ajuda mútua, e
parceria aparecem como relações que garantem a complexidade das
relações na produção camponesa.
A fruticultura irrigada está predominantemente localizada no Projeto Salitre,
com destaque para a produção de manga, melão e banana. Atrelados ao
agrohidronegócio, a atividade mineradora e a implantação de parques eólicos para
geração de energia nas regiões do Médio e Submédio São Francisco têm como resultado
a emergência de conflitos territoriais e de interesses, devido às novas possibilidades de
territorialização do grande capital frente às demandas de minérios e energia para atender
ao mercado, tanto interno (energia) quando externo (minérios).
A implantação de parques para a geração de energia eólica (Mapa 4) tem
avançado de forma vertiginosa sobre territórios camponeses, áreas de preservação
29 A bacia do rio Salitre faz parte da Bacia do Rio São Francisco, estando localizada na parte norte do
estado da Bahia. É composta por nove municípios (Várzea Nova, Ourolândia, Campo Formoso,
Mirangaba, Umburanas, Jacobina, Juazeiro, Miguel Calmon e Morro do Chapéu), estando totalmente
inserida no Polígono das Secas.
63
ambiental, sítios arqueológicos e territórios de povos tradicionais, explicitando assim os
problemas relacionados à produção de energia para atender ao modelo de
desenvolvimento em curso no país. Se, por um lado, a Amazônia representa a “nova”
fronteira hidroenergética brasileira30, o Semiárido é inserido na produção de energia
eólica de maneira abrupta, passando a receber grande montante de investimentos
financeiros, transformando-se num setor lucrativo para as empresas do setor.
Nesse cenário, ganha destaque o Grupo Renova Energia31 com atuação
destacada na Bahia, onde já possui unidades geradoras de energia eólica em
funcionamento. Em julho de 2012, foi concluído o primeiro complexo eólico na Bahia,
denominado Alto Sertão I (Foto 1), localizado nos municípios de Igaporã, Caetité e
Guanambi, região Sudoeste da Bahia.
Foto 1 - Parque Eólico Alto Sertão I, Município de Caetité (BA) – 2014.
Fonte: Renova Energia, 2014.
30 Para saber mais sobre o assunto consultar a tese defendida em 2014 pelo doutorando José Alves, junto
ao Programa de Pós-Graduação em Geografia pela FCT/UNESP com o título “As revoltas dos
trabalhadores em Jirau (RO): degradação do trabalho represada na produção de energia elétrica na
Amazônia”, sob a orientação do Prof. Dr. Antonio Thomaz Junior. 31 Empresa brasileira de geração de energia elétrica obtida a partir de fontes renováveis, como eólica,
solar e Pequena Central Hidrelétrica (PCH). Líder em geração eólica no Brasil e referência no
desenvolvimento de projetos de energia renovável, a empresa adota, como estratégia de negócios, o
desenvolvimento de projetos de forma integrada, da prospecção à implantação e operação de seus
parques geradores (RENOVA ENERGIA, 2012, p. 12).
64
65
A Renova possui mais de 1GW de capacidade instalada e contratada em
parques eólicos. Com a conclusão do Alto Sertão II, ocorrida em julho de 2012, a
companhia detém o maior complexo eólico da América Latina. Os leilões subsequentes,
LER 2010 (energia de reserva) e A-3 2011 (energia nova), demandaram
desenvolvimento de mais parques eólicos na mesma região da Bahia, promovendo
sinergia com os investimentos já em curso. O complexo eólico Alto Sertão II foi
concluído no final de 2012, localizando-se nos mesmos municípios que o Alto Sertão I
(Tabela 1). Os complexos eólicos Alto Sertão I e II totalizam juntos 29 parques eólicos
na Bahia.
Tabela 1 - Complexos Eólicos na Região Sudoeste da Bahia – 2013
Alto Sertão I Alto Sertão II
R$1,2 bilhão de investimento R$1,4 bilhão de investimento
3,9 mil empregos diretos e indiretos
gerados durante a construção
3,9 mil empregos diretos e indiretos
gerados durante a construção
254,4 MW de capacidade instalada 386,1 MW de capacidade instalada
14 parques eólicos 15 parques eólicos
184 aerogeradores 230 aerogeradores
Fonte: Renova Energia, 2013.
Org.: - DOURADO, J. A. L., 2013.
Para a produção de energia eólica são utilizados aerogeradores, com torres de 80
metros de altura e rotores de 82,5 metros de diâmetro, a uma velocidade média de 80
km/h. Na Bahia existem outros parques implantados, como é o caso de Sobradinho, nas
proximidades da Barragem de Sobradinho. Em 2014 (Quadro 3), a empresa Renova
Energia instalou mais um complexo gerador de energia eólica no estado da Bahia, com
capacidade de 212,8 MW de potência, totalizando 29 o número de parques eólicos neste
estado. A energia produzida é comercializada através de leilões de compra e venda
baseados em critérios e normas estabelecidos pelo Ministério de Minas e Energia
(MME), promovidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) e
operacionalizados pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE).
66
Quadro 3 - Empreendimentos de Energia Eólica da Renova
Projeto Localização Nº de
Parques
Prazo PPA
(anos)
Início de
Operação
Estimado
Capacidade
Instalada
(MW)
LER 2009*32 Bahia 14 20 Julho/2012 294,4
LER 2010 Bahia 6 20 Setembro/2013 153,0
A-3 2011** Bahia 9 19,8 Março/2014 212,8
Total - 29 - - 660,2
Fonte: Renova Energia, 2011.
Org.: DOURADO, 2013.
*LER - Leilão de Energia de Reserva (promovido pelo Governo Federal).
**A-3 – Leilão de fonte de energia nova (promovido pelo Governo Federal).
Além da Bahia, a Renova Energia atua nos estados do Ceará, Alagoas, Goiás,
Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Maranhão, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Rio
Grande do Norte, Rio Grande do Sul e Tocantins. Embora a produção de energia eólica
seja o carro-chefe desse grupo empresarial, ele atua também na geração de energia
fotovoltaica e por meio de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), cujo discurso se
baseia na produção de energia através de fontes renováveis. O primeiro projeto solar
fotovoltaico da empresa foi instalado na mineradora Yamana Gold, em Goiás, com
capacidade de 25,6 kWp, comercializados no mercado livre, em 2013. Segundo as
projeções feitas pela Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica), a
capacidade de geração de energia eólica no Brasil poderá saltar de 4.5 gigawatts atuais
(2014) para 14.4 gigawatts em 2018. Para o certame de outubro de 2014, foram inscritos
1.034 projetos de fornecedores de energia, sendo 626 eólicos, 400 solares e oito de
biogás e resíduos sólidos urbanos, ofertando 26.3GW de capacidade instalada.
Complexos eólicos, a mineração e o agrohidronegócio (soja, eucalipto, cana de
açúcar e frutas), pilares dos projetos desenvolvimentistas implantados na Bahia, têm
provocado profundas transformações socioespaciais, com desdobramentos ainda pouco
conhecidos, que certamente, porém, já ocasionam interferências nas condições de
reprodução de vida das populações atingidas, visto que tais empreendimentos são
implantados em áreas habitadas por populações tradicionais (quilombolas, Fundo e
32 A Renova foi a vencedora do primeiro leilão de energia de reserva dedicado à fonte eólica, o LER
2009, comercializando 294 MW de potência instalada. Segundo informações da própria empresa, suas
operações no mercado livre (ACL) iniciaram em 2011. Em acordo estratégico firmado com a Light
/Cemig, a Companhia teve garantida a comercialização de 400MW de capacidade instalada em energia
eólica.
67
Fecho de pasto00) e camponesas, ocorrendo, inclusive, a expropriação dessas
comunidades para que seja viabilizada a execução do projeto.
Embora não se trate de uma pesquisa focada na análise discursiva do
agrohidronegócio, não se despreza a importância assumida pelo discurso no contexto da
disseminação dos projetos desenvolvimentistas implantados pelo Estado e pelo capital
no Semiárido brasileiro, por reconhecer que esse discurso assume lugar de destaque na
construção do sentido ideológico daquilo que se define como o ato de “desenvolver”.
Nesse sentido, concordamos com Santos (2008b, p. 226) quando o autor faz a seguinte
afirmação:
O Estado exerce, pois, um papel de intermediário entre as forças
externas e os espaços chamados a repercutir localmente essas forças
externas. O Estado não é, entretanto, um intermediário passivo; ao
acolher os feixes de influências externas, ele os deforma, modificando
sua importância, sua direção e, mesmo, sua natureza. Isto significa que
a reorganização de um subespaço sob a influência de forças externas
depende sempre do papel que o Estado exerce.
O discurso do agrohidronegócio, pautado na perspectiva desenvolvimentista,
serve como um elemento de interpelação do sujeito, de “adestramento” do pensamento,
através da criação, no imaginário, da figura do moderno como algo determinado, como
forma de eliminar as resistências, atuando como integrador das práticas sociais.
Transladando do plano discursivo para a materialidade do espaço geográfico, embora se
aborde, no corpo desta pesquisa, a questão das secas como constructo imagético-
discursivo, ressaltamos não se tratar de um estudo com finalidade de abarcar o
fenômeno da escassez, suas circunstâncias e fatores responsáveis por sua ocorrência.
Para além do Nordeste seco, há a tentativa de afirmar o Semiárido como lugar de
grandes oportunidades financeiras, perspectiva propagada através de diversas
estratégias, entre as quais citamos os megaempreendimentos de infraestrutura e os
eventos para a divulgação e exposição dos produtos do agronegócio, como a Feira
Nacional da Agricultura Irrigada (FENAGRI), em Juazeiro e a Exposição Agropecuária
da Região de Irecê (EXPOAGRI), em Irecê.
Não há, pois, interesse em fazer um resgate das mazelas das secas, mesmo
reconhecendo que esse fenômeno (climático e social) ainda causa grandes problemas à
população do Semiárido, como de fato ocorreu entre 2012-2013, quando centenas de
municípios decretaram estado de calamidade em virtude da pior estiagem dos últimos
40 anos. O espaço compreendido pelo Semiárido baiano será analisado a partir da
expansão conflituosa e contraditória do agrohidronegócio pelos territórios dos
68
camponeses caatingueiros, inclusive daqueles que vivem às margens do rio São
Francisco, fenômeno esse gerador e potencializador dos conflitos pelo acesso à terra e à
água.
Trata-se, em sua essência, de uma tentativa de pensar o “novo” Semiárido,
fugindo do “discurso moderno” que busca na exegese das secas as justificativas e
argumentos para a autoafirmação, como instrumento de superação da condição de
marginalidade dos 22 milhões de sertanejos, aproximadamente, que povoam essa
região. Ao aprofundar a análise, percebemos que o “velho” ainda encontra-se reificado
na matriz do projeto desenvolvimentista33 do Estado e do grande capital que, ao
buscarem justificar, perante a sociedade, a relevância destas ações, acabam
contradizendo o próprio discurso estranhado, pois suas argumentações são respaldadas
na seca, que é usada como elemento persuasivo para a produção de mentalidades
governadas.
Os simbolismos da seca são, simultaneamente, negados e reafirmados pelos
agentes do capital, num contraditório e dialético processo de
reconstrução/desconstrução do imaginário social relacionado à ideia de catástrofe físico-
climática do Semiárido. Em pleno limiar de século XXI, a seca perpetua como um
importante instrumento de manutenção do status quo (no âmbito de distintas esferas de
poder econômico e político) e a que se recorre sempre quando há a necessidade de
fornecer evidências sobre a legitimidade das ações políticas, com o propósito de
promover o desenvolvimento regional. Embora essa concepção busque aparentemente
forjar no imaginário social uma ideia contra-hegemônica sobre o Semiárido, o que, na
verdade, ocorre é o fortalecimento das estruturas hegemônicas de poder político,
econômico e ideológico.
No âmbito desta pesquisa não há interesse em analisar a seca como um
fenômeno natural, muito embora reconheçamos que as “velhas secas” ocorrem em
“novos sertões”, atualmente bastante diferentes daqueles Sertões da Bahia em que o
padre Serafim Leite registrou, pela primeira vez, os efeitos da seca, ocorrida em 1559
(SANTOS, 1984, p. 17). Acreditamos que tal perspectiva de análise apresente um
33 Para Richard Peet (2007) há a necessidade de se repensar o projeto do desenvolvimento porque o termo
desenvolvimento ainda é cheio de significado. Esse mesmo autor defende a necessidade de “[...] fazer
um novo imaginário de desenvolvimento, no qual usemos nossos momentos mais criativos para pensar
diferentemente” (PEET, 2007, p. 36). Em sua opinião, o modernismo impõe uma crítica ao poder
capitalista, não confiando em nenhuma elite (empresarial, intelectual, científica, burocrática,
geográfica, racial ou patriarcal), abrindo espaço para as massas oprimidas expressarem o que pensam,
na perspectiva de um desenvolvimentismo popular.
69
corpus teórico bastante robusto em virtude dos diversos estudos já realizados, dos quais
destacamos os mais recentes centrados na abordagem da problemática da seca no
Semiárido brasileiro: o Projeto Áridas (1993); o Relatório sobre “Clima e
Disponibilidade de Água nas Bacias Hidrográficas do Semiárido, apresentado por
Carvalho (2008); o livro “A questão da água no Nordeste”, publicado pela Agência
Nacional de Águas (2012); e o livro “Impactos sociais e econômicos e variações
climáticas e respostas governamentais no Brasil”, organizado por Magalhães e Bezerra
Neto (1991).
Os espaços intersticiais das disputas territoriais travadas entre os projetos
desenvolvimentistas e os camponeses caatingueiros desvelam o “desenvolvimento
geográfico desigual” (HARVEY, 2011, p. 123), por expressarem as diferenças e
divergências entre modelos e processos tensos e contraditórios de concepção de
desenvolvimento do território. Essas transformações espaciais estão respaldadas na
crença-fetiche de que o modelo adequado para a promoção do desenvolvimento do
Semiárido deve basear-se em megaprojetos hídricos, sendo tal perspectiva,
historicamente, causadora de “desterreamento” (THOMAZ JUNIOR, 2009, p. 237) e
despossessão dos camponeses e demais setores marginalizados, tais como as
comunidades tradicionais (quilombolas, ribeirinhas, Fundos34 e Fechos35 de Pasto).
Desterreamento e despossessão aqui entendidos a partir de sua materialidade e
imaterialidade, em virtude da complexidade das transformações qualitativas e
quantitativas impetradas no espaço habitado/produzido/ocupado. O desmonte do
campesinato, via desterreamento, não significa sua total desvinculação da terra, pois, em
muitos casos, os camponeses desterreados retornam como assalariados rurais, mesmo
morando nas periferias urbanas, para onde se dirigiram após a perda da terra.
Mediante o resgate da história de vida36 dos camponeses atingidos pelo projeto
de irrigação Baixio de Irecê, teve-se a compreensão de que os processos de
desterreamento e despossessão começaram muito antes de sua implantação, quando
Airton Neves Moura, com a ajuda de pistoleiros, grilou as terras que eram usadas,
34 Nas comunidades que são Fundos de Pastos, as terras à solta são próprias para a criação de cabras e
bodes, em função do clima seco e vegetação de caatinga. 35 As comunidades de Fecho de Pasto dedicam-se, principalmente, à criação de gado, uma vez que
possuem grotas e um clima mais úmido, com nascentes e serras. 36 Para resgatar informações durante o período de grilagem de terras ocorrido nos municípios de Xique-
Xique e Itaguaçu da Bahia, fizemos uso da história oral, um importante instrumento para resgatar
informações sobre como ocorreu o processo de grilagem de terras que seriam ocupadas pelo projeto de
irrigação Baixio de Irecê.
70
coletivamente, pelas dezenas de comunidades tradicionais nos municípios de Xique-
Xique e Itaguaçu da Bahia. Retiraram-lhes a posse da terra, mas lhes era concedido o
seu uso mediante o pagamento de renda37, não configurando, portanto, o
desterreamento, que somente viria a acontecer com a construção do projeto de irrigação
Baixio de Irecê, haja vista que os camponeses não se enquadraram aos critérios,
estabelecidos pelo edital, de seleção de irrigantes para ocupar os lotes do perímetro
irrigado.
As alterações nas bases técnicas, econômicas e sociais impactam fortemente os
espaços agrícolas a partir da expansão dos capitais financeiros e (agro)industriais,
mediante a criação de redes e fluxos comerciais, com a intensificação da racionalização
do espaço agrário pela difusão da modernização agrícola. Ainda sobre os
desdobramentos dessa agricultura modernizada, Leff (2009, p. 32) destaca que “[...] o
avanço destas transformações agroprodutivas foi deixando pelo seu caminho um saldo
de destruição ecológica e de degradação ambiental nas regiões tropicais do Terceiro
Mundo”. Os investimentos estatais em infraestrutura hídrica no Semiárido brasileiro
possibilitaram a consolidação de um novo modelo de crescimento para o campo,
transformando radicalmente as relações sociais e de produção, fomentando uma
interdependência com os demais setores da economia, culminando numa profunda
divisão social e territorial do trabalho, com a especialização dos espaços e a
intensificação dos fluxos econômicos.
Após essas considerações sobre a inserção do pesquisador no lugar da pesquisa,
as mediações acerca da formulação do problema, bem como os elementos
influenciadores da definição do recorte espacial, faz-se necessário agora ressaltar a
trajetória da pesquisa, porque as descobertas não ocorreram de um só golpe. O avanço
na construção do conhecimento torna-se produto do encontro do pesquisador com o
pesquisado, do conhecido com o desconhecido, da teoria com o empírico, expressando
assim um processo dialético em que pesquisador e pesquisado estabelecem relações
cada vez mais complexas, abrindo possibilidades de conhecimento mútuo.
1.3 Trajetórias caatingueiras: a construção metodológica da pesquisa
A execução de uma pesquisa pode perfazer as mais variadas trajetórias,
dependendo dos objetivos e dos referenciais teórico-metodológicos adotados.
37 Esse assunto será aprofundado no decorrer da tese.
71
Especificamente nesse caso, optamos pela pesquisa quali-quantitativa por entender que
seu instrumental permite abordar as contradições sociais, as dimensões do cotidiano
vivido pelos sujeitos, cujo produto-saber gerado seja representante de diferentes formas
de ver/descrever/analisar o mundo. Considerando tais aspectos, concordamos com
Brandão (2009, p. 18) quando afirma que “todo conhecimento renovador é contestador.
Todo conhecimento contestador é um caminho aberto em direção à transformação”. O
processo de apropriação do território bem como as disputas nele materializadas podem
ser analisados/compreendidos sob o viés qualitativo, por presumir que, no campo
geográfico e, mais especificamente, no contexto agrário, tal abordagem responde
satisfatoriamente às exigências quando o que está em foco é a expansão do
agrohidronegócio e as disputas territoriais no Semiárido baiano.
Para a realização desta pesquisa fizemos revisão teórica, pesquisa de campo e
em fontes primárias e secundárias, tendo o cuidado de não mutilar os sujeitos nem
torná-los objetos “mortos” ou amorfos no ato do fazer-ciência. Assim, a busca por
desvendar as tramas sociais do agrohidronegócio em sua transparência plena e exata
colocou o pesquisador em alerta, porque o universo social em que estão imersos os
sujeitos da pesquisa está em constante movimento. Fez-se, portanto, necessário captar
as contradições, as lutas, os enfrentamentos, os paradoxos, tendo o pesquisador o
cuidado de fugir da mecanização e do adestramento da técnica. O que pretendemos
dizer é que, no caso específico desta pesquisa, os enigmas e lastros da investigação
científica exigiram do pesquisador a condição de reconhecedor do importante papel dos
sujeitos e de sua condição protagonista, pois, caso contrário, incorreríamos no erro de
violentar a realidade por desconhecer as raízes históricas da expansão do
agrohidronegócio no Semiárido baiano. Os dados e informações coletados encontram-se
no decorrer do texto, na forma de tabelas, fluxogramas, gráficos, quadros, fotografias e
mapas, analisados e interpretados à luz da interação entre a teoria e a prática, tendo
como aporte o materialismo histórico. Frente ao esforço de sintetizar, no plano
metodológico e teórico-conceitual, os caminhos desta pesquisa, apresentamos a seguir o
Fluxograma 1, contendo informações sobre as etapas de elaboração da presente tese.
72
Fluxograma 1 – Esquema metodológico da pesquisa
73
Org.: DOURADO, J. A. L., 2013.
Elab.: HOLANDA, E. P.
Ressaltamos que a pesquisa tem como categoria central o território, por entender
que a análise geográfica da dinâmica do agrohidronegócio está condicionada às relações
de poder e aos conflitos de classe estabelecidos entre os sujeitos sociais envolvidos.
74
Território38 aqui entendido a partir das relações de poder estabelecidas entre os sujeitos
sociais, ou seja, as “geometrias do poder”, como definidas por Haesbaert (2009, p. 143),
constituindo-se o resultado da (i)materialidade e multidimensionalidade decorrentes da
trama de relações em múltiplas escalas. Santos (2000) traz um conceito sobre território
que facilita o aprofundamento sobre as disputas travadas no Semiárido baiano entre os
camponeses, o Estado e o grande capital, a partir da concepção de “território usado”, ou
seja, o território
não é apenas o resultado da superposição de um conjunto de sistemas
naturais e um conjunto de sistemas de coisas criadas pelo homem. O
território é o chão e mais a população, isto é, uma identidade, o fato e
o sentido de pertencer àquilo que nos pertence. O território é a base do
trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais e da vida,
sobre os quais ele influi. Quando se fala em território deve-se, pois, de
logo, entender que se está falando em território usado, utilizado por
uma dada população. (SANTOS, 2000, p. 96, grifo nosso).
De fato, a concepção de território usado torna possível a percepção das
contradições e conflitualidades existentes a partir dos distintos modos de vida dos
camponeses e da perspectiva do agrohidronegócio, no Semiárido baiano. Esse
movimento inerente ao conceito de território é central em nossa análise do fenômeno de
expansão do agrohidronegócio no Semiárido baiano, devido aos processos de
territorialização-desterritorialização-reterritorialização (TDR)39. De acordo com as
evidências levantadas durante as visitas às comunidades do Baixio de Irecê e do Salitre,
é possível associar os processos de TDR a outro fenômeno, que denominamos de
descampesinização-recampesinização. Estes possuem profunda relação entre si e com os
projetos desenvolvimentistas implantados na região pelo Estado, expressando,
sobremodo, o território como produto das relações de poder estabelecidas numa
sociedade de classes. Para Oliveira (1988, p. 8), o território
deve ser entendido como síntese contraditória, como totalidade
concreta do modo de produção/distribuição/circulação/consumo e suas
articulações e mediações supraestruturais (políticas, ideológicas,
simbólicas, etc.) onde o Estado desempenha a função de regulação. O
território é assim, produto concreto da luta de classes travada pela
sociedade no processo de produção de sua existência.
Para contemplar a discussão, foram selecionados autores que articulam a
discussão sobre território com a questão agrária, tais como Montenegro Gómez (2008),
Thomaz Junior (2008a, 2008b), Fernandes (2008a) e Paulino (2008). Ao se objetivar
38 Saquet (2013) faz uma revisão profunda sobre a construção do conceito de território, resgatando a
história da formação e significação deste conceito a partir de diferentes paradigmas. 39 Para aprofundamento da discussão, consultar Haesbaert (2009).
75
conhecer a realidade, os aspectos estruturantes e as contradições de uma determinada
fração do espaço geográfico, há que se considerar os elementos que lhes confere
singularidade. Esse processo de elaboração do conhecimento é dialético e dialógico por
sua própria natureza, porque requer uma constante mediação e um devir inesgotáveis de
abstrações. Sobre isso, D’Incão (1975, p. 19) destaca que,
[...] se de um lado, cada conhecimento novo adquirido, como
resultado do esforço conjugado de reflexão teórica e observação da
realidade, exige uma nova volta à realidade observada, em busca de
um conhecimento mais profundo da mesma; de outro lado, cada nova
realidade percebida exige uma retomada do conhecimento, ao nível do
concreto da referida realidade.
A diversidade de sujeitos, processos, labor, trabalho, conflitos e espaços
abarcados pela pesquisa configura um desafio, porque representa, em sua gênese, a
essência do Semiárido, com todos os cenários naturais e sociais, territórios de vida e de
trabalho, cujas formas explícitas ou ocultas são essenciais para a construção do
conhecimento. Entende-se aqui trabalho como “condição ontológica do ser social”
(LUKÁCS, 2010), ou seja, o elemento fundante para o desenvolvimento do sujeito
social em seu processo de hominização. Ao geograficizar as teias, tramas, urdiduras e
contextos presentes no Semiárido baiano, verificamos não ser possível fazer uma análise
homogeneizantedo espaço em decorrência de sua realidade conflituosa, devido à
materialidade antagônica dos projetos em curso nessa região.
1.4 Os sujeitos da pesquisa: perspectivas híbridas
A escolha dos sujeitos não constitui uma tarefa das mais tranquilas porque
requer maturidade para selecionar aqueles que, através das experiências cotidianas
vividas, possam contribuir para a compreensão do fenômeno em análise, mediante o
relato e a reconstituição dos múltiplos tempos e espaços entrelaçados na história das
comunidades abrangidas pela pesquisa. Considerando o grande número de famílias que
são, direta e indiretamente, influenciadas de algum modo pelos projetos de irrigação no
Submédio São Francisco, bem como a dimensão geográfica da área pesquisada,
optamos por selecionar os sujeitos-chave (camponeses desterritorializados,
representantes de órgãos do governo, trabalhadores dos perímetros irrigados,
acampados, assentados, lideranças do MST, representantes de ONGs) para compor o
quadro de entrevistados. Assim, foram planejados três momentos de visitas à área da
pesquisa para a coleta de dados, sendo necessário destacar a dinâmica complexa do
76
campo como um elemento de difícil apreensão, em virtude do movimento dos sujeitos
que produzem e se apropriam dos territórios, os processos de desterritorialização em
curso na região e as lutas travadas pelos camponeses e comunidades tradicionais em
defesa dos territórios da vida. As visitas ao campo ocorreram em 2012, 2013 e 2014.
Mesmo sabendo da “facilidade”, da “economia” de tempo e de recursos
financeiros que a utilização da internet representa, decidiu-se por não realizar
entrevistas por email, por entender que o contato com os sujeitos possibilita um
feedback interessante, pois permite novos questionamentos, além da percepção das
emoções, desejos, sentimentos, angústias e aflições de quem fornece as informações.
Essa decisão foi tomada por entendermos a necessidade de visualizar as contradições do
espaço in loco e como forma de aproximação das pessoas a serem entrevistadas. Nessa
perspectiva, corrobora-se Marafon (2009, p. 388) quando afirma que “uma das funções
mais importantes dos trabalhos de campo é transformar as palavras, os conceitos em
experiências, em acontecimentos reais para a concretização dos conteúdos”, por
entender que o encontro com os sujeitos pesquisados é importante para a compreensão
do fenômeno em análise.
Inicialmente a distância física entre os sujeitos pesquisados e o pesquisador foi
um obstáculo a ser superado, para o qual contamos com a colaboração de diversos
intermediários que permitiram o acesso e o contato com pessoas cujas vivências
conferem movimento e vivacidade a esta pesquisa. Assim, o “estar lá, escrever daqui”
foi tornando-se cada vez menos um problema para a execução da pesquisa. As
impressões sobre o fenômeno em análise advêm tanto de quem escreve como de quem é
descrito, tendo o pesquisador a preocupação em não apenas interpretar um problema,
mas falar de dentro dele; falar dos e com os sujeitos, por acreditar que o pesquisador
deve se assumir como “artesão, pertinaz, paciente, atento, sensível e, ao mesmo tempo,
[...] zelador do consórcio entre teoria e prática” (OLIVEIRA, 1998, p. 20).
A escolha dos sujeitos a serem entrevistados obedeceu a alguns critérios, de
modo que as informações obtidas fossem fidedignas à realidade, podendo dessa forma
serem analisadas com profundidade. A primeira imersão a campo nos revelou uma
problemática interessante: como classificar sujeitos tão híbridos? Essa difícil tarefa
exigiu um trabalho silente e atento para não relativizar a figura dos pesquisados,
submetendo-os ao autoritarismo de uma caracterização a priori. Por não possuírem
características homogêneas, cabe-nos a responsabilidade de informar sobre quais
camponeses tratamos nessa pesquisa, pois o termo “camponês” pode não elucidar a
77
complexidade própria dos sujeitos aos quais nos referimos. Estes sujeitos se
reconhecem como camponeses, pescadores, quilombolas, assentados, acampados,
posseiros, fundos de pasto40, diaristas, possuindo múltiplas identidades territoriais e
laborais, dependendo do tempo e do lugar.
Adotando os mesmos critérios de seleção, nos municípios-referência, para a
coleta de dados, selecionamos os seguintes sujeitos (Fluxograma 2):
Fluxograma 2 – Sujeitos da Pesquisa
Org.: DOURADO, J. A. L., 2013.
Elab.: HOLANDA, E. P.
1- Camponeses das comunidades circunvizinhas ao Projeto Baixio de Irecê cujas
terras foram griladas nas décadas de 1970 e 1980. Foram feitas três visitas às
comunidades do Baixio de Irecê (2012, 2013 e 2014). O contato com as
comunidades foi feito por intermédio da CPT, que atua na região mobilizando as
famílias camponesas no processo de enfrentamento à CODEVASF. Participamos de
2 reuniões no município de Itaguaçu da Bahia e 2 em Xique-Xique, realizadas pela
CPT com famílias das 19 comunidades localizadas no entorno do projeto de
irrigação. Nas entrevistas realizadas e nas histórias orais colhidas, percebemos que
os camponeses sentiam necessidade em descrever como ocorreu a grilagem das
terras que ocupavam coletivamente, inclusive relatando a atuação dos pistoleiros na
região, sob o comando do Sr. Airton Moura. A participação nas reuniões de
mobilização permitiu-nos ter acesso a ricos e esclarecedores depoimentos e relatos
40 Segundo dados disponibilizados por Germani (2007, p. 10), a Bahia possui 386 comunidades
quilombolas e 340 comunidades de Fundo e Fecho de Pasto. Em se tratando do Médio São Francisco, já
foram registradas 61 comunidades quilombolas e 19 comunidades de Fundo de Pasto.
78
sobre como ocorreu todo o processo de expulsão e sujeição dos camponeses à
Companhia de Desenvolvimento do Rio Verde (CODEVERDE), a quem pagariam
renda da terra.
2 Camponeses das comunidades do vale do rio Salitre. O contato com o povo
salitreiro possibilitou-nos apreender o significado que a terra e a água têm para as
comunidades que margeiam o rio Salitre, afetadas pelos resultados das políticas
públicas implantadas pela CODEVASF nessa região, com o objetivo de garantir a
segurança hídrica para a reprodução do capital. Esses sujeitos também contribuíram
para a compreensão dos sentimentos, dos saberes, das experiências sociais e
simbólicas dos camponeses caatingueiros, bem como da atividade produtiva e da
importância do trabalho na terra, das lutas travadas nos/pelos territórios
camponeses, ante a atuação do Estado e do capital na busca pela apropriação e pelo
controle da água e da terra. Foram entrevistados 2 salitreiros acusados pelo
assassinato dos empresários na década de 1980, fato que permitiu entender a
tecedura do conflito pelos e com os sujeitos.
3 Camponeses acampados no projeto de irrigação Baixio de Irecê e Projeto Salitre.
As entrevistas e conversas informais com esses sujeitos evidenciaram a
complexidade da luta pela terra e pela água no Semiárido baiano, por aglutinar
sujeitos “de longe” e “de perto”, ou seja, além de salitreiros, existem acampados
que vieram de outros municípios baianos – como é o caso dos camponeses
expropriados pela construção da Barragem de Sobradinho – e de outros estados
(Pernambuco e Alagoas), com pouca ou muita experiência em ocupações de terra.
4 Camponeses do assentamento Nova Conquista (Sobradinho). Esse assentamento foi
criado para assentar as famílias que ocuparam uma área de terra no Projeto Salitre.
Durante as entrevistas, os camponeses expuseram os dramas vividos na luta pela
terra e os desencantos em relação às promessas feitas pela CODEVASF e, até
aquele momento, não cumpridas.
5 Gerente regional da CODEVASF (Irecê). A partir da entrevista com o representante
local da CODEVASF, buscamos identificar como a estatal concebe a participação
dos camponeses no contexto do Projeto Baixio de Irecê, quem serão os reais
beneficiados com o empreendimento e quais os seus desdobramentos para as
comunidades atingidas. Entrevistamos o gerente local duas vezes, a primeira vez
em 2013 e a segunda em 2014 após a ocupação feita pelo MST na área do projeto.
6 Gerente regional da CODEVASF (Juazeiro). A entrevista com o representante da
79
CODEVASF em Juazeiro permitiu levantar elementos importantes para
compreender a relação estabelecida entre o Estado e os camponeses, havendo
urgência por parte da estatal em fazer o “esvaziamento da área”, mediante ações
sutis de abandono, de esquecimento, ou ainda pela não instalação de infraestrutura
prometida aos camponeses.
7 Representantes do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada
(IRPAA)41. Durante a primeira visita à área da pesquisa, verificamos que o IRPAA
tem atuado, na região, com o propósito de revitalizar atividades desenvolvidas
pelos camponeses, como forma de fortalecê-los a partir da perspectiva da
sobrevivência com o Semiárido. Assim, procuramos identificar as principais ações
dessa ONG na região e quais seus desdobramentos para as comunidades atendidas.
8 Representantes da Comissão Pastoral da Terra (CPT Nacional e CPT/Irecê). A
mobilização das comunidades do Baixio de Irecê tem sido feita pela CPT,
perspectivando promover a coesão social entre os camponeses caatingueiros e
assim unificar as reivindicações e fortalecer os laços identitários entre os
camponeses, de modo que estes se reconheçam como donos das terras, outrora
ocupadas coletivamente e atualmente disponibilizadas para o grande capital.
9 Lideranças do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). As entrevistas e
conversas informais com as lideranças do MST permitiram identificar diferenças
entre os elementos que norteiam a luta pela terra no Submédio São Francisco. A
euforia do acampamento trouxe à tona as divergências entre o MST e a CPT, quanto
às medidas a serem adotadas para fazer o enfrentamento à CODEVASF. Essa
relação conflituosa fez emergir o conteúdo político-ideológico e social expresso
pelas distintas formas de organização e de luta propostas pela CPT e pelo MST,
sendo suas experiências cotidianas um ponto divergente na leitura que cada uma faz
da realidade da situação e nas decisões a serem tomadas no enfrentamento ao
Estado.
10 Representante da Diocese de Barra, o bispo Dom Luiz Cappio. No auge da
execução da obra de transposição do São Francisco, Dom Luiz Cappio
protagonizou dois momentos de enfrentamento ao empreendimento, quando fez
greve de fome, dando notória visibilidade internacional para os movimentos sociais
41 O IRPAA é uma Organização Não Governamental sediada em Juazeiro, na Bahia que atua há mais de
20 anos em comunidades rurais da região desenvolvendo ações de apoio e assistência técnica à agricultura
camponesa através de diversos projetos, tendo como perspectiva a convivência com o Semiárido.
80
e organizações populares que contestavam a viabilidade e a necessidade do projeto
da transposição. Nesse sentido, fez-se premente entender como Dom Luiz Cappio
concebia a implantação do Projeto Baixio de Irecê, pois os municípios impactados
pelo empreendimento pertencem à Diocese na qual o religioso é o representante
máximo da Igreja Católica.
11 Presidenta da União das Associações do Vale do Salitre (UAVS). A criação da
UAVS ocorreu para aglutinar as comunidades e suas reivindicações frente à
CODEVASF. Ao visitar as comunidades do Vale do Salitre sentimos a necessidade
de entender como essas comunidades do Baixo Salitre buscaram cobrar ações
compensatórias por parte do Estado, visto que estas não seriam contempladas pelo
Projeto Salitre, em função das exigências do edital para seleção de irrigantes.
12 Representantes do Comitê de Bacia Hidrográfica do rio Salitre (CBHS). O CBHS
tem buscado, por meio da discussão sobre a necessidade de revitalização do rio
Salitre, questionar as ações da CODEVASF junto às comunidades salitreiras, por se
tratar de medidas mitigadoras simplistas e aligeiradas que não contemplam as
demandas locais.
13 Presidentes de Sindicatos Rurais dos Municípios de Xique-Xique, Itaguaçu da
Bahia e Juazeiro. Fez-se necessário entender como os sindicatos de trabalhadores
rurais entendem a problemática dos perímetros irrigados, na área da pesquisa e se
há alguma ação com o objetivo de organizar os associados para fazer algum tipo de
reivindicação junto aos órgãos competentes.
14 Trabalhadores do Projeto Salitre. Verificar qual a opinião dos trabalhadores do
Projeto Salitre em relação à implantação desse empreendimento para a população
local foi uma estratégia para analisar as diversas e antagônicas visões sobre a
expansão do agrohidronegócio na região de Juazeiro, porque entra em cena a
questão da geração de emprego e renda. As informações coletadas foram
importantes para compreender como o Estado busca “cooptar” determinados
sujeitos das comunidades atingidas pelos empreendimentos hídricos, como forma
de legitimação junto à sociedade, por meio do convencimento e da manipulação dos
reais propósitos da execução dos referidos investimentos na região.
15 Empresários rurais do Projeto Salitre. Através das entrevistas com os empresários
rurais, pudemos entender como a ideia de desenvolvimento, a partir de uma
concepção positiva da modernização/tecnificação do território com base na
agricultura industrial, ganha destaque num contexto rodeado por uma agricultura
81
camponesa com sérios problemas de acesso à terra e à água.
Todo o conteúdo das entrevistas foi transcrito sem efetuar alterações nos
discursos orais dos sujeitos, por entender que estes são produtos e reflexos de suas
experiências cotidianas: de nada adiantaria buscar “acessar” esse universo se não
houvesse a perspectiva de compreendê-lo e valorizá-lo. Ao tornar públicas as longas
conversas tidas com os sujeitos, houve o cuidado em protegê-los e manter o seu
anonimato, pois nossos interlocutores confiaram em nós e sentiram-se à vontade para
expor suas histórias, mesmo sabendo que estas seriam utilizadas para fins acadêmicos;
procuramos “[...] colocá-los ao abrigo dos perigos aos quais nós exporíamos suas
palavras, abandonando-as, sem proteção, aos desvios de sentido.” (BOURDIEU, 2008,
p. 9). Embora as falas tenham sido preservadas (transcritas ipsis litteris), no ato da
transcrição muito se perde desses momentos com os sujeitos, como a entonação de voz,
a linguagem do corpo, gestos, as pausas (e silêncios), os suspiros, olhares, lapsos e
ênfases dadas a determinadas passagens históricas.
Os camponeses de que tratamos nessa pesquisa possuem origem e tradições
socioculturais e políticas heterogêneas. Não se trata de sujeitos com um único modus
operandi, ou seja, o trabalho na terra. Os sujeitos sociais a que nos referimos
desenvolvem diferentes (e complementares) atividades, dependendo do período do ano,
oscilando entre atividades com a terra seca (caatinga), a terra molhada (vales úmidos,
lameiros, brejos e os perímetros irrigados), com forte influência do regime das chuvas e
das águas do rio São Francisco e seus afluentes, desenvolvendo ainda atividades não
agrícolas. Há, também, distintos modos de vida (modus vivendi), cujas expressões
fenomênicas do trabalho são marcadas pela plasticidade,42 visto que estes sujeitos são
camponeses, pescadores-camponeses ou camponeses-pescadores, trabalhadores
assalariados, revelando os “sentidos polissêmicos do trabalho, em cada tempo e lugar”
(THOMAZ JUNIOR, 2006, p. 151). Caracterizá-los exigiu um esforço de nossa parte,
no sentido de distingui-los para que suas atitudes, identidades territoriais, atividades
42 A discussão sobre plasticidade do trabalho no âmbito da geografia ganhou robustez a partir das
teorizações feitas por Thomaz Júnior, quando esse autor debruça sobre as diferentes expressões e
sentidos do trabalho. De acordo com esse autor, quando nos ocupamos com “a (des)realização e as
novas identidades do trabalho territorialmente expressas na plasticidade que se refaz continuamente,
estamos preocupados com os desdobramentos para os trabalhadores da constante redefinição de
profissões, habilitações, especializações, inserções autônomas etc., entremeada, em vários casos, com
experiências de despossessão. Essa trajetória de fragmentações atinge em cheio o trabalho, e são essas
as evidências mais profundas do estranhamento que acrescentam desafios à compreensão do trabalho,
na perspectiva de classe”. (THOMAZ JUNIOR, 2009, p. 41).
82
laborais e formas organizativas sejam compreendidas a partir de seus contextos de
vivência, ou seja, seus modos de vida. Para uma maior clareza em relação à
caracterização, os camponeses informantes desta pesquisa foram subdivididos em
quatro grupos (Quadro 4).
Quadro 4 - Caracterização dos camponeses da pesquisa (2011-2014)
Informantes Categoria de uso e posse
da terra
Localidade
anterior
Organização de
que participa
Salitreiros Agregados, posseiros e
proprietários de terra,
assalariados (agrícolas e
não-agrícolas) e
acampados
Salitre
Associações
Comunitárias e o
IRPAA
Acampados
Posseiros
Comunidades do
Vale do Salitre,
Comunidades do
Baixio de Irecê,
Pernambuco e
Alagoas
MST, CPT e STR
Camponeses
do Baixio de
Irecê43
Agregados, ribeirinhos44,
beraderos/brejeiros45,
posseiros, fundos de
pasto, proprietários de
terra, assalariados e
pescadores
Pilão Arcado,
Sento Sé, Casa
Nova, Remanso,
Xique-Xique e
Itaguaçu da Bahia
Sindicatos de
Trabalhadores
Rurais46 e CPT
Assentados Posseiros Sobradinho MST
Organização: DOURADO, J. A. L.
Fonte: Trabalho de Campo, 2012, 2013 e 2014.
As famílias expropriadas pela construção da Barragem de Sobradinho que
43 Em determinadas situações foram realizadas entrevistas coletivas com os camponeses respeitando a
localidade de origem dos mesmos. A quantidade de camponeses que compunha cada grupo variou de
acordo com a representatividade das comunidades nos encontros de mobilização realizados pela CPT.
Foram realizadas entrevistas com grupos de 4, 6, 8 e 10 camponeses. Faz-se necessário destacar nosso
conhecimento acerca das metodologias “Grupo Focal” e “Grupo de Discussão”, todavia, por questões
teórico-conceituais não fizemos uso destas técnicas. Para saber mais sobre a técnica Grupo Focal,
aconselhamos consultar Silva (2012). Sobre Grupo de Discussão, ver Turra Neto (2011). 44 Aquele que vive à beira do rio. 45 Os brejeiros são os moradores de faixas estreitas de solo fértil às margens de pequenos rios (conhecidos
localmente como “riachos”) que correm em meio à Caatinga. No Baixio de Irecê identificamos uma
área com essas características nas proximidades do Rio Verde, onde são cultivadas lavouras de ciclos
curtos (feijão, milho, melancia, verduras, mandioca e folhagem para os animais). Estrela (2004) define
“beradero” como sendo aquele que vive à beira dos rios e das atividades desenvolvidas na beirada do
rio, cujas práticas socioculturais são marcadas pela relação que estes sujeitos estabelecem com o rio. 46 Algumas lideranças dos sindicatos de trabalhadores rurais integraram, no passado, a FETRAF
(Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar) e o CETA (Coordenação Estadual dos
Trabalhadores Acampados, Assentados e Quilombolas).
83
vieram para a região do Baixio de Irecê ocuparam-se com a agricultura de sequeiro e
passaram a criar animais nas áreas de fundo de pasto, além de trabalhar como agregados
ou diaristas, condição bem distinta de seu modo de vida antes da desterritorialização,
em função do barramento do rio, haja vista que a relação terra-rio-trabalho foi
interrompida, obrigando-os a profundas alterações no tocando à forma de uso e de
ocupação da terra e nas relações de trabalho. A ocupação das margens do rio São
Francisco representava, do ponto de vista econômico, a possibilidade de reprodução da
família, cuja renda era, predominantemente, originária da agricultura praticada nas ilhas
e nas margens do rio e da pesca artesanal. Por outro lado, a proximidade com o rio São
Francisco, os chamados “beraderos”, era um elemento diferenciador do modo de vida
desses camponeses, em relação àqueles que viviam distantes do rio.
A ocupação da região do rio Verde ocorreu, segundo os relatos orais feitos pelos
camponeses, há aproximadamente dois séculos, em função do extrativismo animal e
vegetal, principalmente por camponeses que trabalhavam como agregados nas fazendas
localizadas às margens do São Francisco. Nas áreas de “brejos”, ou seja, a faixa de terra
úmida próxima ao rio Verde, é desenvolvida uma agricultura voltada para o
autoconsumo. Os camponeses moradores dos “brejos” articulam a agricultura com a
criação de caprinos e bovinos, esta última praticada na área de sequeiro, conhecida
localmente como “caatinga”. A pesca artesanal, embora seja praticada por muitos
moradores, não possui tanta expressividade, como ocorre entre os “beraderos”,
contribuindo pouco para a dieta nutricional dos camponeses. Essa articulação entre
agricultura e pecuária constitui uma importante estratégia de resistência e de reprodução
camponesa, podendo os “brejos” serem considerados algo similar ao que Harvey (2012)
denominou de “espaços de utopia”. Agricultura, pecuária e pesca não possuem “caráter
residual” entre os camponeses, havendo em alguns casos a relação de cooperação, como
verificamos na produção de farinha. O que há de fato é a alternância de atividades,
conforme o período do ano: na entressafra agrícola, a pecuária ganha destaque, ao passo
que, nos períodos chuvosos, a agricultura e a pesca tornam-se mais vantajosas para os
camponeses.
A área abrangida pela bacia do rio Verde integra parte das terras que eram
ocupadas coletivamente e que foram griladas por Airton Moura. De acordo com as
pesquisas desenvolvidas pelo Grupo GeografAR47 (2010), a região do Submédio São
47 O Grupo de Pesquisa GeografAR – A Geografia dos Assentamentos na Área Rural
(POSGEO/UFBA/CNPq), sob a coordenação da professora Guiomar Germani, busca analisar o
84
Francisco concentra grandes extensões de terras devolutas ainda não tituladas pelo
Estado. Acreditamos que a existência de terras devolutas foi um dos motivos que
levaram à grilagem de terras na região do Baixio de Irecê, pois os camponeses
ocuparam sem o título da terra, facilitando assim a atuação dos grileiros.
Após a definição dos sujeitos participantes da pesquisa, fez-se necessário
delimitar a amostragem dos entrevistados em cada uma das categorias (Quadro 5).
Considerando as particularidades da pesquisa, optou-se por utilizar, como modelo, a
amostragem por saturação de Turato (2003), cujas entrevistas foram realizadas até o
ponto em que os resultados passaram a se repetir, servindo apenas como confirmação
para as informações já obtidas.
Foram entrevistados 116 camponeses. Em Xique-Xique48 entrevistamos 50
camponeses moradores das seguintes comunidades: Nova Boa Vista, Boa Vista,
Carneiro, Curral do Meio, Roçado, Muritiba, Tapera de Cima, Sítio e Vista Nova. Em
Itaguaçu da Bahia49 foram entrevistados 40 camponeses moradores das comunidades
Conceição, São João, Muquém, Várzea da Cerca, Esconso, Poço Grande, Pau Seco,
Nova Vereda. Em Juazeiro50 entrevistamos 20 camponeses que moram nas
comunidades de Alfavaca, Capim de Raiz, Campo dos Cavalos e 4 lideranças do MST.
Em Sobradinho foram entrevistados 2 assentados do Assentamento Nova Conquista.
Além dos camponeses, entrevistamos 2 lideranças da CPT/BA no município de Irecê, 2
funcionários do IRPAA no município de Juazeiro, 10 trabalhadores do Projeto Salitre, 2
gerentes regionais da CODEVASF (Irecê e Juazeiro), 3 empresários rurais no município
de Juazeiro, 1 liderança da Igreja Católica e 2 representantes do Comitê de Bacia
Hidrográfica do rio Salitre (Quadro 5).
processo de (re)produção do espaço no campo baiano, a partir da correlação de forças que se define pela
ação política dos sujeitos sociais organizados. 48 Dos 50 camponeses entrevistados em Xique-Xique, 1 era o presidente do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais desse município. 49 Dos camponeses entrevistados em Itaguaçu da Bahia, 2 estão na presidência do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais da cidade. 50 Dentre os camponeses entrevistados, está a presidente da União das Associações do Vale do Salitre
(UAVS).
85
Quadro 5 – Sujeitos Entrevistados.
Sujeitos entrevistados Número de
entrevistados Local
Camponeses 116
Itaguaçu da Bahia, Xique-
Xique, Juazeiro e
Sobradinho
ONG 2 Juazeiro
CPT 2 Irecê
Representante da Igreja
Católica 1 Barra
CODEVASF 2 Irecê e Juazeiro
Trabalhadores do Projeto
Salitre 10 Juazeiro
Empresários Rurais 3 Juazeiro
Representantes do CBHS 2 Juazeiro
Total de entrevistados 138
Org.: DOURADO, J, A. L., 2013
Alguns moradores da comunidade de Nova Boa Vista trabalharam na fase inicial
da obra de construção do canal de irrigação do Projeto Baixio de Irecê, onde é feita a
captação de água do rio São Francisco, nas proximidades dessa comunidade.
Consequentemente, essa é a comunidade em que a CPT enfrenta maiores dificuldades
de mobilização contra a construção do projeto de irrigação, pelo fato das famílias que
tiveram algum membro trabalhando nas obras acreditarem que foram beneficiadas e
que, com o término do empreendimento, conseguirão novamente trabalho.
Para efeito de coleta de dados, a década de 1990 foi o recorte temporal definido
para a pesquisa, por entendermos que é a partir desse momento que são criadas as
condições estruturais e conjunturais para a expansão da agricultura mecanizada no
Semiárido brasileiro e, especificamente no caso baiano, para a implantação dos
perímetros irrigados, forjando novas lógicas de produção e organização do espaço.
Ressaltamos, todavia, que os dados relacionados aos conflitos pela terra e pela água
começaram a ser registrados pela CPT a partir da década de 1980.
Durante as entrevistas fizemos uso de gravador, com o propósito de registrar os
diálogos junto aos entrevistados. A utilização do gravador não substituiu a confecção do
diário de campo, no qual foram registradas as sensações dos entrevistados, reveladas
através das expressões, angústias, pausas e agitações, bem como a nossa percepção da
paisagem das comunidades rurais, do acampamento e assentamento, dos projetos de
86
irrigação e do Centro de Abastecimento (CEASA). As histórias contadas, os relatos dos
moradores das comunidades sobre seus costumes e tradições, os festejos, as labutas com
as “roças”, relembrados com certo saudosismo, permitiram-nos ter contato com as
histórias de vida e do lugar, dando-nos elementos para podermos refletir sobre as
experiências vividas em campo e fazermos as correlações e mediações entre o real, seus
movimentos e a teoria, na busca de exercitar a “leitura geográfica” do Semiárido baiano
a partir dos conflitos e contradições materializados no território, como expressão do
movimento do trabalho.
Segundo Venâncio e Pessôa (2009, p. 318-9), por mais que
os gravadores, as câmeras fotográficas, os questionários e os roteiros
de entrevistas sejam técnicas indispensáveis, não conseguem registrar
as emoções momentâneas, tanto por parte do pesquisador quanto por
parte dos entrevistados, nem tampouco conseguem registrar a nossa
percepção da paisagem e a organização dos espaços de vivência dos
moradores. É, pois, essa a importância de o pesquisador ter sempre em
mãos um diário para fazer os registros.
Assim, o diário de campo tornou-se uma memória valiosa sobre o ethos
camponês, as práticas socioculturais, transformações e permanências no espaço/lugar,
sobre os conflitos e contradições, elementos fundamentais na tentativa de compreender
o fenômeno em análise. Revisitado sempre quando necessário, o diário de campo
tornou-se um instrumento importante para a leitura e interpretação do fenômeno
analisado, através das revelações registradas durante os momentos de conversas
informais, memórias, “brincadeiras” e observações sobre a paisagem, sobre o cotidiano
dos sujeitos. Em muitos casos, as conversas informais foram o recurso mais adequado
para “garimpar” as informações junto aos sujeitos, porque alguns entrevistados já são
bastante idosos e, caso disséssemos que iríamos gravar a entrevista, poderiam sentir-se
desconfortáveis para relatar os fatos. A utilização da História Oral51 foi fundamental
para a reconstituição das experiências vivenciadas pelos camponeses, trazendo à tona os
mundos vividos através das palavras, o mundo sentido e percebido pelos sujeitos.
Corroboramos o pensamento de Mattos e Senna (2011, p. 107), quando as autoras
destacam que a“história oral, enquanto método e prática do campo de conhecimento
histórico, reconhece que as trajetórias dos indivíduos e dos grupos merecem ser
ouvidas, também as especificidades de cada sociedade devem ser conhecidas e
51 De acordo com Thompson (1992, p. 47) foi a partir de 1948 que a North American Oral History
Association passou a criar a tradição da história oral como técnica moderna de documentação histórica,
com destaque para os trabalhos de Allan Nevins, historiador da Universidade de Colúmbia, que passou a
gravar as memórias de pessoas importantes da vida americana.
87
respeitadas”.
Na verdade, os momentos de História Oral52tornaram-se encontros de troca, de
envolvimento com o universo, por conta da riqueza de detalhes que o resgate das
lembranças possibilita. Para Thompson (1992, p. 17),
[...] a história oral pode dar grande contribuição para o resgate da
memória nacional, mostrando-se um método bastante promissor para a
realização de pesquisa em diferentes áreas. É preciso preservar a
memória física e espacial, como também descobrir e valorizar a
memória do homem. A memória de um pode ser a memória de muitos,
possibilitando a evidência dos fatos coletivos.
Para a realização da metodologia História Oral com os interlocutores da
pesquisa, fizemos uso de gravador digital para registrar as informações, de modo a
evitar que estas fossem perdidas, sendo as falas posteriormente transcritas (ipsis litteris),
permitindo acesso a informações pouco conhecidas e registradas sob a forma de textos
escritos. Inicialmente, procuramos estabelecer uma relação de confiança com os
sujeitos, de modo a evitar que utilizassem de “discursos prontos” para responder às
nossas indagações. A reação por parte daqueles com quem utilizamos a História Oral foi
de tranquilidade e satisfação, ante o exercício de resgate das memórias pouco
“utilizadas”, principalmente porque traziam à tona momentos de angústia e sofrimento
vivenciados ao longo de suas “labutas” no campo. Ao defender o uso dessa
metodologia, Thompson (1992, p. 137) afirma que “a evidência oral pode conseguir
algo mais penetrante e mais fundamental para a história [...] transformando os objetos
de estudo em sujeitos”.
Ante a abrangência da pesquisa, os trabalhos de campo foram programados para
acontecer em três momentos complementares: fevereiro e março de 2012, abril e maio
de 2013 e abril e maio de 2014. A primeira visita realizada em fevereiro e março de
2012 teve como propósito o reconhecimento da área da pesquisa bem como estabelecer
contatos com os sujeitos e instituições a quem recorreríamos na busca pelas
informações. Esse trabalho de campo abrangeu os municípios de Xique-Xique, Itaguaçu
da Bahia, Irecê e Juazeiro, sendo possível conhecer as comunidades atingidas pela
construção dos Perímetros Irrigados, bem como as áreas de plantio, tanto no Projeto
52 Não é propósito nesta pesquisa abordar os debates contrários e favoráveis à utilização dessa
metodologia de pesquisa. Incorre, pois, destacar nossa concordância com os teóricos que defendem a
viabilidade da História Oral para tratar de importante instrumento de resgate de fatos e, por outro lado,
nossa distância deles, por entender que esta constitui-se uma metodologia que permite acessar elementos
marcados pela subjetividade, um dos motivos pelos quais recebe fortes críticas de teóricos contrários à
sua utilização.
88
Salitre como nas lavouras às margens dos rios São Francisco, Verde e Salitre. Essa
primeira visita à área de pesquisa foi importante porque sanou muitas incertezas e, por
outro lado, levou-nos a incorporar novos elementos à análise, em função dos detalhes
surgidos durante as visitas às comunidades e do levantamento prévio de informações
sobre os conflitos acerca da terra e da água no Submédio São Francisco. Após a
primeira inserção a campo, o universo dos sujeitos a serem entrevistados foi sendo
delimitado com maior clareza e segurança. O leque de assuntos os quais se encontram
entrelaçados à pesquisa exigiu de nós diversos exercícios contínuos (teóricos,
metodológicos e conceituais), com vistas a não tratar de maneira parcelar o fenômeno,
impedindo assim a compreensão das contradições contemporâneas da sociedade do
capital e a corrosão social a ela inerente. Os desafios impostos pelo objeto de pesquisa
vão desde o ponto de vista epistemológico até a dimensão ontológica dos sujeitos
pesquisados e suas expressões geográficas, perpassando pela sobreposição de barbáries
encobertas pelo verniz da modernidade, decorrentes dos projetos desenvolvimentistas.
Nesse sentido, é importante trazer para o debate Turra Neto (2011, p. 343), para quem
[...] a forma como a pesquisa de campo é realizada indica e influencia
os dados disponíveis e a forma da escrita. Então, o que se tem como
resultado de uma pesquisa é fruto de um processo contingente e
contextualizado de investigação, no qual são determinantes as opções
do/a pesquisador/a. Os resultados seriam outros, se outras fossem as
opções e os caminhos metodológicos percorridos.
Em abril e maio de 2013 foi realizado um trabalho de campo com duração de 30
dias, de modo que pudemos acompanhar a lida nas lavouras, as reuniões comunitárias,
os cuidados com as criações, as dúvidas e angústias cotidianas; ao visitá-los, recebemos
frutos de seu trabalho, tivemos contato com seus modos de vida, suas atitudes, crenças e
contradições materializadas no território. Fizemos refeições, dormimos em suas casas,
tendo acesso às memórias que estavam “adormecidas”, como se fossem doadas em
profusão. Essa vivência com os sujeitos da pesquisa foi fundamental para apreender a
complexidade territorial, como estratégia para fugir da simples observação dos
elementos que compõem a paisagem dos lugares visitados e revelar a essência dos
fenômenos geográficos. Para Thomaz Junior (2005, p. 35), ir além das evidências
paisagísticas
significa entender que na sociedade de classes [...] a relação homem-
meio [...] é mediada pela propriedade privada das condições de
existência, portanto, uma relação ecológica (histórica) de poder. (...)
Significa saber ainda que as relações sociais de trabalho e de produção
são condição e limite da organização da sociedade. (THOMAZ
89
JUNIOR, 2005, p. 35).
Visitamos comunidades nos municípios de Itaguaçu da Bahia, Xique-Xique,
Juazeiro e Sobradinho, num constante perambular diário, sem que, das 20 comunidades
visitadas, houvesse uma sequer que tivesse fechado suas portas, negando-se a colaborar.
Ao contrário, ao saber o motivo da visita, logo começavam os relatos sobre a grilagem
das terras, sobre o conflito pela água no Salitre, entre tantos outros fatos que iam,
paulatinamente, permitindo-nos visualizar os sujeitos e as contradições materializadas
no território do Médio e Submédio São Francisco, sujeitos e contradições que teríamos
a responsabilidade de analisar/compreender/interpretar. Nesse interstício, não foi tarefa
fácil lidar emocionalmente com as informações coletadas durante o trabalho de campo,
porque, ao descrever os fatos, os pesquisados exteriorizavam sensações vividas que, em
muitas vezes, representavam momentos de muito sofrimento e incertezas, convocando-
nos a uma constante reavaliação de nossa postura frente à realidade pesquisada.
O período em que realizamos o trabalho de campo em 2013 coincidiu com a data
de realização da Exposição Agropecuária de Juazeiro/Petrolina, sendo possível observar
como se vêm estabelecendo as disputas entre campesinato e agronegócio por espaço,
durante o evento, para expor os produtos (Fotos 2 e 3):
Foto 2 -Stands de implementos agrícolas e da Agricultura Familiar na EXPOAGRI em Juazeiro,
2013
Fonte: Trabalho de Campo, 2013.
90
Autor: DOURADO, J. A. L.
Foto 3-Stands de implementos agrícolas e da Agricultura Familiar na EXPOAGRI, 2013
Fonte: Trabalho de Campo, 2013.
Autor: DOURADO, J. A. L.
Ainda nesse contexto, destacamos a participação nas reuniões de mobilização
promovidas pela CPT (Fotos 4 e 5) junto às comunidades atingidas direta e
indiretamente pela implantação do Projeto Baixio do Irecê, o que nos possibilitou o
contato com as famílias das Comunidades de Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique. Outro
momento enriquecedor foi a participação em reuniões dos Comitês de Bacia
Hidrográfica do São Francisco (CBHSF) e do rio Salitre (CBHS), realizadas em maio
de 2013, para discutir questões relacionadas à situação dos rios, como a implementação
dos planos de revitalização, bem como a necessidade de debater sobre os múltiplos usos
da água, tanto no que se refere ao rio Salitre quanto ao rio São Francisco.
91
Foto 4 – Reunião com camponeses atingidos pelo Projeto Baixio do Irecê, Itaguaçu da Bahia
(BA)
Fonte: Trabalho de Campo, abril de 2013.
Autor: DOURADO, J. A. L.
Foto 5 – Reunião com camponeses atingidos pelo Projeto Baixio do Irecê no município de
Xique-Xique (BA)
92
Fonte: Trabalho de Campo, abril de 2013.
Autor: DOURADO, J. A. L.
Em Juazeiro, as comunidades do Baixo Salitre foram inseridas na pesquisa após
a primeira visita a campo em 2012, devido ao fato de haver ocorrido conflitos pelo
acesso à água na década de 1980, quando dois fazendeiros morreram em confronto com
os salitreiros53, revelando assim a emergência dos conflitos nessa região, decorrente da
territorialização da agricultura mecanizada, visto que os conflitos pela água foram
deflagrados devido ao uso indiscriminado de água do rio Salitre por agricultores vindos
do Centro-Sul do país. Esse foi um período de intensa migração de proprietários de
terras das áreas onde a expansão da agricultura baseada no pacote tecnológico estava em
curso no Brasil para outros estados, em busca de terras baratas e aptas à mecanização,
especialmente que contassem com disponibilidade hídrica54. De acordo com Reis (1986,
p. 44), o
cotidiano das atividades de produção, no Vale do Salitre, esteve
vinculado diretamente, ao rio, o ritmo de vida de sua população, o
desempenho e a intensidade de qualquer atividade sempre estiveram
articulados à sua existência e às possibilidades que a organização do
uso de suas vazantes apresentava.
As visitas serviram para a aproximação com lideranças dos movimentos sociais,
presidentes de sindicatos rurais, lideranças comunitárias, representantes de órgãos de
53 Esse conflito já foi estudado por Reis (1986). 54 Cf. THOMAZ JUNIOR, 2010b.
93
governo, camponeses e organizações não governamentais, sujeitos essenciais para a
compreensão das tramas, urdiduras e meandros que envolvem o fenômeno em análise.
Os diferentes círculos de interações entre categorias de pessoas, as relações espaço-
territoriais, as diferentes racionalidades e territorialidades que permeiam os caminhos
entre o “moderno” e o “tradicional” no Semiárido baiano foram sendo desvelados no
decorrer dos trabalhos de campo, em função das conversas, entrevistas, História Oral55 e
observações sobre a dinâmica local e as evidências reveladas pela diversidade
biogeográfica e social do Semiárido, no Submédio São Francisco. Destaca-se aqui que,
através das entrevistas junto aos representantes do governo e aos camponeses, pôde-se
verificar a existência de “contra-racionalidades ou de outras-racionalidades”
(BRANDÃO, 2009, p. 47) expressas, por um lado, pelas paisagens-sujeitos do
Semiárido e, em contraposição, pelos monumentos da modernidade e do progresso,
como as megaobras de infraestrutura hídricas (os canais de irrigação) e as extensões
homogêneas das lavouras de frutas e cana-de-açúcar, denunciando neste último caso,
“[...] a derrocada da biodiversidade e de uma correspondente humana
sociobiodiversidade.” (BRANDÃO, 2009, p. 48).
Após a qualificação da tese realizada em fevereiro de 2014, retornamos a campo
para realizar a última etapa de visitas, com o propósito de atender às demandas
apresentadas pela banca avaliadora. Retomamos as visitas às comunidades no Baixio de
Irecê (Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique) e no Baixo Salitre, para atualizar os dados
relacionados ao processo de implantação dos projetos, ao atendimento às reivindicações
feitas pelas comunidades atingidas e para buscar informações sobre as ocupações feitas
pelo MST. Durante o trabalho de campo, o MST ocupou uma área no Projeto Baixio de
Irecê, causando grande tumulto entre as famílias das comunidades circunvizinhas ao
projeto. A inexistência de articulação entre o MST e as famílias que lutam pela posse da
terra no Baixio de Irecê provocou muita confusão e incertezas, fato que levou a CPT a
realizar várias reuniões com as comunidades para esclarecer os fatos. Acompanhamos a
visita feita pelos representantes da CPT ao acampamento do MST, momento em que
percebemos o delineamento de um conflito entre estratégias de atuação o qual impedia o
55 Existem vários tipos de História Oral. A História Oral de Vida é similar à História Oral Temática,
ocorrendo em alguns momentos, uma complementaridade entre ambas. A primeira é mais subjetiva,
enquanto a segunda é mais direcionada, objetiva, havendo uma maior participação por parte do
investigador, no sentido de dar os direcionamentos desejados ao discurso do interlocutor/colaborador.
Para esta pesquisa, utilizamos a História Oral de Vida, de modo a dar liberdade ao sujeito de expor
sobre sua trajetória de vida, embora o que interessava ao pesquisador fossem as experiências
relacionadas ao trabalho na/com a terra, apesar de reconhecermos que, em alguns momentos, foi
necessário fazer demarcações temporais para facilitar o resgate das memórias por parte dos sujeitos.
94
estabelecimento de um diálogo entre as lideranças. Durante as reuniões entre a CPT e as
comunidades do Baixio de Irecê, verificamos haver sérios entraves a uma possível
integração das pautas de reivindicações de integrantes do MST e de famílias do Baixio
de Irecê, na luta pela terra. Nesse período ocorreu a XVI EXPOAGRI com o tema
“Baixio de Irecê: levando esperança para a economia da região”, realizada pela
Associação dos Pecuaristas da Região de Irecê (APRIR) e pelo Sindicato dos
Produtores Rurais de Irecê (SINPRI)56.
1.5 A organização das informações
Para a pesquisa, fez-se necessário o levantamento de dados em fontes
secundárias, visando a aprofundar a análise sobre o fenômeno em questão. Nesse
sentido, foram levantadas informações nos sites do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE, 2010), Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia
(SEI), Secretaria de Agricultura do Estado da Bahia (SEAGRI), Secretaria de
Planejamento do Estado da Bahia (SEPLAN), Ministério da Integração (MI), Agência
Nacional das Águas (ANA), CBHSF, CODEVASF, DNOCS, Instituto do Meio
Ambiente e Recursos Hídricos (INEMA), Comissão Pastoral da Terra e o Grupo
GeografAr.
No site do IBGE foram coletados dados dos municípios pesquisados, referentes
ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), à Produção Agrícola Municipal, a
Censos Agropecuários a partir da década de 1970. Na SEI foram coletados dados
socioeconômicos dos municípios que integram a região do Submédio São Francisco. Na
SEAGRI obtivemos informação sobre os Territórios da Cidadania. Os investimentos em
infraestrutura hídrica na região Nordeste foram coletados junto ao Ministério da
Integração Nacional, CODEVASF e DNOCS, com ênfase na construção de perímetros
irrigados. Informações socioeconômicas da área da Bacia do São Francisco foram
levantadas através da ANA e do CBHSF. No tocante aos aspectos socioeconômicos da
bacia do rio Salitre, a coleta de dados foi feita através do INEMA. Os conflitos sobre
terra foram coletados junto aos Cadernos de Conflitos no Campo, publicados
anualmente pela CPT (sequência 1990-2013). Os dados sobre os conflitos pela água
passaram a ser registrados pela CPT a partir de 2002. Recorreu-se também a fontes
56 Na edição realizada em 2013, a Feira gerou mais de R$5 milhões em negócios (comercialização de
animais, máquinas e equipamentos), segundo dados do Jornal Dois Pontos (2014).
95
documentais particulares e ao Cartório de Tabelionato do município de Xique-Xique,
para verificar a cadeia sucessória das terras desapropriadas para a implantação do
Projeto de Irrigação Baixio de Irecê.
Durante os trabalhos de campo, além das entrevistas fizemos o registro
fotográfico das paisagens e dos sujeitos, sendo a fotografia muito utilizada na Geografia
para subsidiar as análises e as interpretações dos fenômenos e/ou processos. Para
Mansur (2008, p. 406) fotografar “é eternizar os momentos para que as próximas
gerações possam olhar, sentir e aprender, com aqueles registros, o que hoje estamos
construindo”. As fotografias são utilizadas nesse trabalho com dois propósitos básicos:
primeiro, mostrar a força e os desdobramentos do poder vigente, suas tramas e
urdiduras; segundo, ressaltar as imagens da resistência do campesinato no Semiárido
baiano, pois “ao mostrar a invasão na cultura, os costumes, a tradição, enfim a vida de
um povo, essas imagens geram memórias e cultivam a pedagogia da resistência”
(MANSUR, 2008, p. 406).
Ao registrar aspectos do cotidiano da lida camponesa, seus momentos de
organização e luta, propusemos renovar a imagem da cultura camponesa, como forma
de enfrentamento à repaginação do agronegócio e sua linguagem ideológica. Ao
fotografar os símbolos e signos do progresso e do desenvolvimento – projetos
desenvolvimentistas – no Semiárido baiano, nosso intuito foi desvelar o caráter
concentrador, excludente e expropriatório, próprio do agrohidronegócio e sua cadeia
ideológica. Ainda sobre o papel da fotografia para a compreensão dos fenômenos
investigados no âmbito da Geografia, Justiniano (2005, p. 187) destaca que a imagem
ilustra e documenta eventos naturais e sociais que ocorrem num
determinado tempo e lugar e deve ser acompanhada de outras
informações, com localizações geográficas, ângulo de visada, registro
de hora e da data e relato do fato observado. Essas anotações serão
importantes na composição dos trabalhos, na verificação de resultados
e no acompanhamento dos fenômenos ao longo do tempo.
Essa escolha metodológica parte do pressuposto de indissociabilidade entre o
comprometimento do pesquisador com o fenômeno/sujeito pesquisado, conforme
destaca Mendonça (2004, p. 54):
A escolha teórico-metodológica é eivada de significados, de
trajetórias, de posicionamentos políticos. Qualquer interpretação e/ou
análise espacial exige o nível de comprometimento social do
pesquisador. A prioridade a determinadas categorias, as formas de
construir o texto e a maneira de ver o papel da ciência geográfica são
modos de dizer como pensam ‘as coisas do espaço’, e a possibilidade
de alterá-las está diretamente relacionada à escolha metodológica que
96
não é aleatória ou espontânea, mas, sim, política e social.
Os produtos cartográficos apresentados para localização, espacialização e
mapeamento de dados da área da pesquisa do Semiárido e do estado da Bahia foram
elaborados a partir de cartas-base do IBGE, da ANA e de imagens de satélite
LANDSAT 5 (Land Remote Sensing Satellite) e seu TM (Thematic Mapper). A
metodologia associada às técnicas de pesquisa permitiu elucidar como o
agrohidronegócio “territorializa” o Semiárido baiano, desencadeando profundas
metamorfoses sociais, econômicas e políticas bem como conflitos entre camponeses, o
Estado e o grande capital. Ao reconhecer a validade do pensamento de Santos (2008b)
quando este concebe o espaço como resultado da acumulação desigual de tempos,
buscamos capturar, através das entrevistas, da História Oral e das observações diretas, o
movimento constante de (re)configuração dos territórios, cuja essência são as ricas
relações sociais e de trabalho, assim como os saberes-fazeres em seu devir ininterrupto,
ora desigual ora combinado, forjados no contexto da luta de classes e em diferentes
espaço-temporalidades.
O “eu estava lá, escrevo daqui” (GEERTZ, 1989) teve como propósito captar as
sensações, as imagens, os medos, os sonhos e as texturas (e tecelagem) das contradições
em que estão imersos os pesquisados, de modo que pudéssemos arregimentar
informações necessárias à compreensão das sutis evidências dos (des)encontros de vida,
dos saberes-fazeres, das formas regressivas do sistema sociometabólico do capital,
materializadas no Semiárido baiano, território secularmente ocupado por sujeitos com
características heterogêneas e com hábitos/costumes distintos, na desconfortável
fronteira entre “modernidade/progresso” e as práticas tradicionais.
97
CAPÍTULO II
POLÍTICAS PÚBLICAS DE IRRIGAÇÃO E A GEOGRAFIA DO
AGROHIDRONEGÓCIO NO SEMIÁRIDO BAIANO
98
A água é a matriz da cultura, a base da vida.
[...] a água tem papel central no bem-estar
material e cultural das sociedades por todo o
mundo. (SHIVA, 2003,p. 44).
Este capítulo tem como objetivo compreender como as Políticas Públicas de
desenvolvimento regional/territorial implantadas pelo Estado a partir da década de 1990
contribuem para a expansão do agrohidronegócio no Semiárido baiano. Nesse caso
específico, daremos ênfase às políticas de irrigação, por entender que a segurança
hídrica possui centralidade quando se trata da perspectiva do planejamento regional para
a região Nordeste semiárida. Ressaltamos a necessidade de fazer um resgate histórico
sobre como se constituíram as bases institucionais, técnicas e de infraestrutura que
viabilizaram as condições necessárias para a expansão do grande capital nessa fração de
território nordestino. Para efeito de análise, focaremos três programas voltados para a
99
irrigação, dois em escala nacional e um em nível estadual: o Novo Modelo de Irrigação
e o Programa Mais irrigação, em escala nacional e o Programa Bahia Biocombustíveis,
implantado no estado da Bahia.
2.1. Política de Irrigação no Brasil: resgate histórico e fundamentos políticos
Os primeiros indícios da utilização da irrigação no Brasil foram registrados,
indiretamente, em 1881, no Rio Grande do Sul, sob o domínio da iniciativa privada,
com foco na produção de arroz. Durante muito tempo a irrigação permaneceu numa
condição de ostracismo, adquirindo destaque principalmente nas três últimas décadas do
século XX. Embora não fosse restrita ao Nordeste brasileiro, é nessa região que a
irrigação ganhou destacado papel político, sendo usada como importante instrumento
para alavancar o planejamento/desenvolvimento regional. Tal importância fica evidente
através da criação de diversos órgãos pelo Estado,cuja atuação fica limitada
geograficamente ao Nordeste semiárido, para tratar da questão da seca. Essa limitação é
um aspecto revelador do poder político e econômico da elite regional, em sua maioria
composta por grandes proprietários responsáveis pela produção algodoeira e pela
pecuária. Não olvidemos que o discurso dessa elite baseou-se na palavra-chave “seca”,
pois, ela
representa falta de chuva, mas também miséria, analfabetismo,
doença, descapitalização, natureza hostil etc. Mas a seca é também, na
base do discurso, produtora de uma solidariedade social que equaliza
todos diante da sua força, produtores grandes e pequenos,
proprietários ou não. A seca é também percebida como falta d’água e
como necessidade de recursos para obtê-la. O significado destes
conteúdos vai muito além da relação entre natureza e atividade
produtiva, sendo mais evidente na relação entre a natureza e a
produção de um imaginário político, socialmente equalizador e
institucionalmente eficiente para a obtenção de recursos financeiros e
de poder. (CASTRO, 2008, p. 306).
Na primeira metade do século XX foram criadas várias instituições com o
propósito de planejar, executar e gerenciar as atividades relacionadas à infraestrutura
hídrica, saneamento e combate aos efeitos diretos das secas. Em 1909 foi criada a
Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS)57 através do Decreto 7.619 de 21 de
outubro de 1909, editado pelo presidente Nilo Peçanha, a qual teria como
responsabilidade realizar estudos sobre o Semiárido e estabelecer as bases técnico-
57 Mais informações, consultar http://www.dnocs.gov.br/php/comunicacao/registros.php?f_registro=2&.
100
científicas para atuar em ações emergenciais contra os efeitos dos longos períodos de
estiagem. Esse órgão teve seu nome alterado em 1919 para Inspetoria Federal de Obras
Contra as Secas (IFOCS), mantendo como ações prioritárias a execução de obras de
infraestrutura hídrica, como açudes públicos, em propriedades particulares. Em 1945,
mediante o Decreto-Lei 8.846 de 28 de dezembro, sofreu nova alteração, passando a ser
denominado Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), tornando-se
autarquia federal pela Lei 4.229 de 01 de junho de 1963. Ressaltamos que até o final da
década de 1950, esse era o principal órgão governamental de “socorro” às populações
acometidas pelos efeitos das secas, construindo açudes, estradas, pontes, portos,
ferrovias, hospitais, campos de pouso, implantando redes de energia e construindo
hidrelétricas58.
Em 1948, foram criadas simultaneamente a Companhia Hidroelétrica do Rio São
Francisco (CHESF) e a Comissão do Vale do São Francisco (CVSF), sendo esta última
transformada, em 1967, em Superintendência do Vale do São Francisco (SUVALE) e,
em 1974, na Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (CODEVASF).
Desde 2002, a CODEVASF passou a exercer mandato também sobre a bacia do rio
Parnaíba. Assim, o DNOCS ficou encarregado de promover a agricultura de base
familiar, enquanto a CODEVASF atuaria de forma sistematizada na promoção do
agronegócio. A criação do Banco do Nordeste, em 1952, teve como principal objetivo
financiar as ações voltadas à modernização do território através da construção de
infraestrutura hídrica (perímetros irrigados, barragens, canais), rodovias, além dos
financiamentos voltados à produção agrícola.
Os avanços obtidos com a irrigação, até a década de 1960, não foram
expressivos porque as ações desenvolvidas até então pelo Estado foram desarticuladas e
descontínuas, no tempo e no espaço. Com o objetivo de promover o desenvolvimento e
reduzir as disparidades socioeconômicas em relação às regiões Sudeste e Sul, foi criada
em 15 de dezembro de 1959, por meio da Lei 3.692, a Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) num cenário político ameaçador para as
elites dominantes que se viam ameaçadas pelos líderes populistas e de esquerda, com
uma crescente adesão por parte dos assalariados do campo e da cidade, que se
colocavam adeptos às teses revolucionárias. Ianni (2004) faz uma interessante análise
sobre as razões que levaram a criação da SUDENE, pois segundo esse autor, a
58 Como exemplo, citamos os grandes açudes de Orós, Banabuiú, Araras, a rodovia Fortaleza-Brasília e o início
da construção da barragem de Boa Esperança.
101
SUDENE
surgiu num momento em que se revelaram de modo particularmente
aberto e intenso os antagonismos da sociedade do Nordeste. Ou
melhor, ela foi criada numa época em que as desigualdades
econômicas e sociais naquela região adquiriram conotações políticas
de cunho pré-revolucionário. No momento em que camponeses e
operários rurais deixaram de acomodar-se às soluções de estilo
oligárquico (consubstanciadas nos padrões de controle social e
liderança política próprios do coronelismo), nesse momento os grupos
dominantes no Nordeste e o governo federal (incluindo o Executivo e
o Legislativo) decidiram agir politicamente, no sentido de controlar ou
dominar as tensões crescentes na região. Aliás, a SUDENE não foi
senão uma das soluções dadas ao agravamento das contradições
políticas no Nordeste. (IANNI, 2004, p. 210-11).
Ao ser criada, a SUDENE teve a responsabilidade de elaborar planos
emergenciais de combate às secas, estabelecendo as formas de ajuda às populações
afetadas pelos prolongados períodos de escassez de chuvas. Esses planos tinham como
objetivo gerar empregos mediante a construção de obras públicas, o abastecimento de
gêneros alimentícios e a assistência sanitária. Tais planos emergenciais foram sendo
alterados desde sua criação: em 1976, eram denominados de frentes de serviço,
passando a ser chamados de frentes de trabalho em 1980 e, após 1987, receberam o
nome de frentes produtivas de trabalho, perdurando essa denominação até os anos 2000.
Como resultado da criação da SUDENE, houve a definição geográfica de sua área de
atuação, que abrangeria os estados do Maranhão, Piauí, Bahia, Sergipe, Alagoas, Ceará,
Rio Grande do Norte, Pernambuco, Paraíba e o norte de Minas Gerais. A secretaria
executiva da SUDENE ficou sob a responsabilidade de Celso Furtado durante o período
de 1959 a 1964. Em 2001 esse órgão foi extinto, acusado de favorecimentos.
Nos anos 1960, novas diretrizes foram adotadas pelo Estado, com destaque para
a criação do Grupo Executivo de Irrigação e Desenvolvimento Agrícola59(GEIDA) em
1968 e a elaboração do Programa Plurianual de Irrigação (PPI) em 1971, durante o
chamado “milagre brasileiro”, com metas ambiciosas a serem executadas, como a
irrigação de 40 mil hectares no Nordeste até 1980. Esse programa lançou as bases para a
política de irrigação para o Brasil, abrindo espaço para a
iniciativa privada, orientando a implantação do Programa Nacional
para o Aproveitamento Racional das Várzeas Irrigáveis
(PROVÁRZEAS) e o Programa de Financiamento de Equipamentos
59 O GEIDA foi responsável pela realização de um amplo e pioneiro estudo sobre as possibilidades de irrigação
no Semiárido, determinando a viabilidade técnico-econômica de 73 projetos, sendo 62 localizados no
Nordeste. Além disso, traçou as diretrizes que constituíram a primeira fase do Plano Nacional de Irrigação
(PNI).
102
de Irrigação, além do estabelecimento de diretrizes e metas
comandadas pelo setor público, mas estimulando a iniciativa
privada(COELHO NETO, 2009, p. 8).
Após estudos feitos pelo GEIDA, 1/3 da área total do país foi considerada
favorável à implantação de projetos de irrigação, sendo a região Nordeste subdividida
em duas partes: A e B, na qual a parte B referia-se ao vale do São Francisco, sob a
jurisdição da CODEVASF, enquanto a parte A seria de responsabilidade do DNOCS.
Outro importante instrumento para a expansão do capital no campo foi a instituição do
Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte e
Nordeste (PROTERRA) em 1971, pois, segundo Germani (1993, p. 239), esse foi um
instrumento de “modernización y capitalización de los sectores que ya detenían tierra,
dando como resultado una aceleración del processo de acumulación y concentración del
capital”. Ainda na década de 1970, mais especificamente em 1972, foi lançado o
primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), tendo a segunda etapa sido
implantada em 1979. O PND acabou incorporando o Programa de Irrigação Nacional.
De acordo com Germani (1993, p. 216),
A nível de la planificación se produjo también un cambio significativo
entre el I e II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND). El I PND,
em vigor durante el período de 1972 a 1974, privilegiaba los aspectos
cuantitativod del “desarrollo”. Mientras que el II PND, en el período
de 1975 a 1977, durante el gobierno Geisel, rechazaba la teoria
economicista del período anterior y proponía políticas consideradas
más bien distributivas.
A Política de Irrigação Nacional60 encarou a irrigação como uma estratégia para
promover o desenvolvimento regional mediante a geração de emprego e para reduzir os
efeitos das secas, garantindo assim maior estabilidade aos empregos. Segundo Gomes
(1979, p. 416), as
metas de criação de emprego e geração de renda que poderiam parecer
ambiciosas são postas na sua exata ordem de grandeza quando
comparadas com as necessidades globais da região nordestina,
especialmente na semi-árida. Uma avaliação do desemprego e do
subemprego totais por toda essa região, em 1980, indicou um número
igual a 6,5 milhões, o que se compara de forma desproporcional aos
230 mil empregos a serem gerados pelo PPI, se este programa vier a
ser totalmente implantado.
Embora a Política Nacional de Irrigação não tenha atingido as metas
relacionadas à geração de empregos, sua implementação pelo Estado criou
60 Sua regulamentação, no entanto, só ocorreu em 29 de março de 1984, mediante a edição do Decreto n.º
89.496.
103
[...] condições favoráveis para a territorialização do grande capital no
Semiárido nordestino, visto que mediante a aplicação de recursos
públicos, passou a dotar frações desse território de infraestrutura
(barragens/açudes, canais de irrigação, adutoras, rodovias),
possibilitando o desenvolvimento de atividades agrícolas (produção de
frutas tropicais, por exemplo) com vistas a atender à demanda dos
mercados do Centro-Sul do país, bem como o mercado internacional.
Em função dessas ações, o Semiárido nordestino se transformou em
um grande produtor frutícola, assumindo lugar de destaque no cenário
nacional, visto que além dos fatores naturais (água, terra e
luminosidade) o capital tem à sua disposição mão de obra barata em
abundância e de fácil acesso. (DOURADO, 2014, p. 9).
Em outubro de 1974, foi criado o Programa de Desenvolvimento Integrado do
Nordeste (POLONORDESTE) pelo Decreto 74.794 de 30 de outubro de 1974, no então
governo de Ernesto Geisel. Esse programa selecionou áreas específicas para a sua
execução, a saber: a) áreas de vales úmidos, b) áreas de serras úmidas, c) áreas de
agricultura seca, d) áreas de tabuleiros costeiros e, e) áreas da pré-Amazônia. Baseado
na ideia de desenvolvimento formulada por Perroux, nos anos de 1950, sobre os polos
industriais, o POLONORDESTE fez uma adaptação dessa teoria para o campo,
mediante a concepção dos polos rurais centrados a partir de pequenos núcleos urbanos.
Basicamente, a implementação desse programa ocorreu através dos Projetos de
Desenvolvimento Rural Integrado (PDRI). Germani (1993, p. 217) afirma que a
orientação do POLONORDESTE
[...] estaba recomendada, apoyada y subsidiada por el Banco Mundial,
por el Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola de las
Naciones Unidas (FIDA), por el Banco Interamericano de Desarrollo
(BID) y por la Organización de los Estados Americanos (OEA). El
programa tenia um alcance geográfico de 850.000km², distribuídos em
diez estados y abarcando más de 700 municípios, em um total de 40
Proyectos de Desarrollo Rural Integrado.
Trata-se de uma tentativa, por parte do Estado, de promover a modernização
planificada – pontual e acelerada – de determinadas frações do território, mediante a
criação de enclaves modernos, numa região com fortes desigualdades econômicas e
sociais, no contexto do regime autoritário. O objetivo de promover o desenvolvimento
de regiões consideradas pontos nodais é confirmado por Sorj (1986, p. 103), ao afirmar
que a
ação do Polonordeste inicialmente caracterizaria as regiões onde iria
atuar, e depois, através de uma ação conjunta dos diversos órgãos
federais e estaduais que atuam no Nordeste, procuraria criar as
condições infra-estruturais, creditícias, assistenciais e de pesquisa,
104
com o objetivo de promover a modernização da agropecuária do local.
Concretamente, o POLONORDESTE serviu para viabilizar a expansão e a
reprodução ampliada do capital, sem que ocorressem mudanças significativas nas
estruturas política e agrária no Nordeste, baseando-se na perspectiva de mudar um
pouco para que as antigas estruturas políticas e de poder permanecessem invioladas.
Muitas das áreas em que receberam aportes financeiros oriundos desse programa
tornaram-se polos regionais de irrigação, como Juazeiro-Petrolina (BA/PE), vale do Açu
(RN) e chapada do Apodi (CE). Para Bursztyn (1984), a ação do Estado acabou por
priorizar determinadas zonas geográficas e, consequentemente, determinados grupos
sociais, beneficiados com tais investimentos. Como consequências da execução dos
PDRI, Germani (1993, p. 220) ressalta “a proletarizción agraria y aburguesamento
agrário, com mínimas expresiones de concreción efectiva. Y, em médio, la ampliación
de uma massa campesina que tiene connotaciones de subproletariado y se debate en la
indentificación ideológica, social y política”.
Em1978, durante o governo de João Figueiredo, foi implantado, por meio do
Decreto nº 86.146, o Programa Nacional para Aproveitamento Racional das Várzeas
Irrigáveis (PROVÁRZEAS), com o objetivo de incorporar economicamente as áreas de
várzeas à produção agrícola, através do saneamento agrícola, drenagem e irrigação sob
os moldes do pacote tecnológico da Revolução Verde. Dando sequência a esse
programa, implantou-se, em 1982, o Programa de Financiamento de Equipamentos de
Irrigação (PROFIR) através do Decreto nº 86.912.Tais programas foram fundamentais
para a expansão da irrigação no Nordeste, em função dos subsídios governamentais
(50% do valor gasto) para a aquisição de sistemas e equipamentos de irrigação.
(BANCO MUNDIAL, 2004).
O Programa de Irrigação do Nordeste (PROINE) foi implantado em 1986, tendo
como uma de suas atribuições disponibilizar infraestrutura e equipes técnicas para
favorecer aos agricultores que já dispunham de experiência em irrigação. Em 1996, foi
instituído, pelo Ministério da Agricultura, o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da
Fruticultura Irrigada no Nordeste. A década de 1990 marcou a criação do Programa
Brasil em Ação pelo governo federal, colocando em evidência a perspectiva neoliberal,
defendida pelo então presidente da república, Fernando Henrique Cardoso. Até meados
dos anos 1990, registrou-se um processo de estagnação da agricultura irrigada devido à
retirada de financiamentos em função da extinção dos programas PROVÁRZEAS e o
105
PROFIR, voltando, entre 1996/98, a aumentar a área irrigada, com destaque para a
irrigação privada, a fruticultura irrigada no Semiárido nordestino, a produção de grãos
no Oeste baiano e de café no Norte do Espírito Santo, principalmente.
Contemplando as medidas propostas no Plano Plurianual (PPA), 1996 a 1999, o
Programa Brasil em Ação contou com investimentos da ordem de 79 bilhões de reais
para investimentos em áreas prioritárias, como obras de infraestrutura (transportes,
energia elétrica, combustíveis, etc.), abrangendo outras áreas, tais como saúde,
abastecimento d'água, saneamento, produção de alimentos, habitação e emprego.
Considerando os propósitos desta pesquisa, abordaremos o projeto Novo Modelo
de Irrigação, que integra o Programa Brasil em Ação, lançado em agosto de 1996,
porque a execução do mesmo traz implicações de ordem técnica, ideológica e
econômica, contribuindo, de fato, para que o grande capital possa reproduzir-se de
forma ampliada, consolidando um novo paradigma para a agricultura irrigada pública.
Os anos 2000 marcaram a retomada das grandes obras hídricas, como a
transposição do São Francisco, a construção de perímetros irrigados, grandes açudes e o
lançamento do Programa Mais Irrigação em 2012, inseridas no Plano Plurianual 2004-
2007 – Brasil de Todos, definido pelo Governo Federal. O Plano Plurianual envolve
uma gama de ações governamentais direcionadas ao combate à miséria, ao desemprego
e à fome, com ênfase aos problemas do Nordeste brasileiro. O Programa Mais Irrigação,
embora formulado numa conjuntura política diferente daquela em que ocorreu o
planejamento e a execução do Programa Brasil em Ação, revelou que estas políticas
públicas voltadas para o fomento da irrigação estavam concatenadas com o propósito de
expandir a participação do setor privado na agricultura irrigada, no âmbito dos
perímetros públicos de irrigação e reduzir a ação do governo na gestão dos mesmos. As
projeções do Plano Plurianual de 2012-2015 são bastante otimistas e favoráveis ao
capital privado, porque prevê recursos da ordem de R$6,9 bilhões a serem investidos na
criação e modernização de perímetros irrigados. Assim, espera-se ampliar, em 193.137
hectares, a área irrigada nos perímetros já existentes e implantar novos projetos de
irrigação, alcançando 200.000 hectares, privilegiando as parcerias público-privadas.
Pode-se dizer que, excluindo a produção de arroz no Sul do Brasil, os cultivos
irrigados são recentes e sua evolução pode ser dividida em quatro fases: a) Primeira
fase: vai da metade do século XIX até meados dos anos de 1960, período caracterizado
por ações isoladas, com predomínio do governo federal e sem uma estrutura de
programas e projetos; b) Segunda fase: iniciada no final dos anos de 1960 com a
106
criação do GEIDA, permaneceu até a primeira metade dos anos de 1980. Destaca-se
nesse período a concepção de “lotes empresariais” nos perímetros irrigados. Destaca,
nesse contexto, o lançamento do I Plano Nacional de Irrigação com forte
direcionamento para a iniciativa privada; c) Terceira fase: deu-se mediante a instituição
do Programa de Irrigação do Nordeste (PROINE) e do Programa Nacional de Irrigação
(PRONI), ambos em 1986, estabelecendo as prioridades do governo federal e a divisão
de funções entre o Estado e a iniciativa privada; d) Quarta fase: a implantação do Novo
Modelo de Irrigação nos anos de 1990 marcou o redirecionamento da Política Nacional
de Irrigação, dando evidência ao papel do agronegócio no âmbito dos perímetros
públicos irrigados, cuja área total irrigada atingiu 2.870.000 hectares, segundo dados da
Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL, 1999).
Em estudo sobre os impactos e externalidades sociais da irrigação no Semiárido
brasileiro publicado em 2004,o Banco Mundial afirma que a irrigação não deveria ser
uma das prioridades do governo para o desenvolvimento regional e a redução da
pobreza no Semiárido, revelando ainda constrangimentos e políticas institucionais
restritivas que impactam negativamente os resultados dos investimentos em irrigação no
Semiárido. Dos onze perímetros irrigados analisados, apenas quatro apresentaram
valores positivos (ex post), a saber: Tourão, Curaçá, Mandacaru, na Bahia, e Bebedouro
em Pernambuco. Entre os direcionamentos desse estudo, destacamos o incentivo à
modernização dos projetos, com vistas a promover a participação do setor privado no
desenvolvimento da agricultura irrigada, a modernização da infraestrutura necessária, a
expansão de novas áreas de irrigação destinadas ao crescimento agrícola, à mitigação da
pobreza e à geração de empregos. Essas recomendações feitas pelo Banco Mundial
estão em consonância com a proposta norteadora do Novo Modelo de Irrigação, tendo
sido incorporadas pelo governo, em suas diferentes escalas, como é possível constatar
ao analisar a conformação dos projetos e programas relacionados ao incremento da
irrigação no pós-1990.
Os investimentos feitos pelo Estado para viabilizar a expansão da irrigação no
Semiárido não acabou com as desigualdades regionais, tendo, contraditoriamente,
produzido e reproduzido as desigualdades inter-regionais, mediante a criação de
“espaços” econômicos e/ou polos de desenvolvimento regionais, dos quais destacamos
Juazeiro-Petrolina, norte de Minas Gerais (Projeto Jaíba), Açu-Mossoró, Baixo
Jaguaribe e Alto Piranha, concentrando aproximadamente 70% da área irrigada no
Nordeste Semiárido. Ianni (2004, p. 170) alerta para o fato de que “[...] o Nordeste
107
também tem sido uma vasta e riquíssima ‘fronteira’ do capitalismo” com a expansão e
fortalecimento do grande capital financeiro, com forte acentuação dos antagonismos de
classes como produto do “desenvolvimento desigual e combinado”. Vê-se que esse
conjunto de órgãos e de investimentos governamentais, ao visar o desenvolvimento
econômico, acaba beneficiando grupos privilegiados que são os grandes proprietários da
região, sem resolver problemas essenciais e responsáveis pelas desigualdades sociais e
econômicas, como destaca Prado Júnior (2007, p. 118):
Medidas de fomento e amparo à produção, e visando ao
desenvolvimento econômico, mas orientadas unicamente por
considerações de ordem tecnológica e econômica geral, podem
reverter afinal, (...), em benefício exclusivo de reduzidos grupos
privilegiados que são os grandes proprietários da região, sem tocar em
fatores essenciais responsáveis pelo subdesenvolvimento da região
que se pretende erradicar, e que é o baixo nível de vida de uma
população reduzida praticamente ao mínimo da subsistência animal.
Na seção seguinte abordaremos quais os desdobramentos dos programas Novo
Modelo de Irrigação, Mais irrigação e Bahia Biocombustível (BAHIABIO) para a
agricultura irrigada no Semiárido num contexto de “globalização perversa” (SANTOS,
2000, p. 37), de avanço do grande capital e de reestruturação das relações de produção,
mediante o incentivo da produção camponesa sob os moldes do agronegócio.
2.2 Novo Modelo de Irrigação: transferência disfarçada do papel do Estado para o
capital privado
O Programa Brasil em Ação implantado na década de 1990, durante o governo
de Fernando Henrique Cardoso, é composto por 42 empreendimentos, dos quais 16 são
projetos na área social e 26 na área de infraestrutura, abrangendo os seguintes setores:
saúde, habitação, emprego, saneamento, água, turismo, agricultura, educação,
comunicações, transportes e energia. Inserido no Programa Brasil em Ação, o projeto
Novo Modelo de Irrigação, com financiamento de R$2.487 bilhões tinha como objetivo
promover e consolidar o desenvolvimento sustentável de áreas irrigadas e irrigáveis.
Com esse projeto, a irrigação passou a ser concebida como negócio, cuja base deve ser a
iniciativa privada, responsável pela construção das obras de infraestrutura e toda a parte
envolvendo a produção, processamento e comercialização, além de buscar estabelecer
relações de parcerias entre o mercado consumidor, todos os componentes da cadeia
produtiva e o governo. Havia, pois, um forte interesse em alterar a legislação de
108
irrigação vigente (Lei n.º. 6662/79), para modernizar a agricultura praticada nos
perímetros públicos de irrigação, através do fomento à adoção do pacote tecnológico e
da especialização da produção, atendendo às demandas do mercado externo. Destaca-se
que essa medida é estratégica para o agronegócio porque busca uma solução para
“eliminar” as práticas camponesas no interior dos perímetros de irrigação, visto que, em
determinadas situações, parte dos lotes são direcionados para atender a população
desalojada pela desapropriação das terras de interesse público.Essa incorporação dos
camponeses aos perímetros irrigados traz obstáculos à expansão da agricultura
comercial porque os camponeses acabam ocupando os lotes com a policultura, cuja
produção é direcionada para o autoconsumo, sendo os excedentes comercializados
localmente.
O Novo Modelo de Irrigação é uma evidência de que as terras semiáridas do
Nordeste já estavam no cálculo do capital, aguardando o momento ideal para serem
incorporadas à lógica do agronegócio, com a “mercantilização da terra, a produção para
o mercado em lugar da produção para o autoconsumo” (IANNI, 2004, p. 180), em que a
terra é transformada em objeto e meio para a reprodução do grande capital. Ao analisar
os documentos oficiais, não constatamos nenhuma abordagem sobre a questão agrária,
sobre o acesso à terra por parte dos camponeses historicamente condicionados aos
ditames da elite agrária regional nordestina, revelando a perspectiva de “mudar alguma
coisa para nada modificar” (IANNI, 2004, p. 183). Há, como direcionamento, a
destinação de uma parcela mínima (20% dos lotes) para as populações desalojadas ou a
sua incorporação como mão de obra nos projetos de irrigação, predominando os lotes
empresariais61.
Entre as recomendações do Novo Modelo de Irrigação destacamos a gestão dos
perímetros irrigados na perspectiva do Gerenciamento Global Ampliado (GGA), com
protagonismo do setor privado, ficando ao Estado o papel de implementar a
infraestrutura hídrica e tratar da estrutura fundiária, inclusive resolvendo questões
relacionadas à desapropriação das terras. Tal proposta deixa evidente a supremacia do
setor privado como gerenciador do setor relacionado à agricultura irrigada com
incentivo ao agronegócio, tido como modelo ideal para os projetos de irrigação.
Analisar esses novos espaços modernizados – os perímetros irrigados e seus impactos
61 Os projetos públicos de irrigação são geralmente divididos em lotes familiares (até 6 hectares), lotes
empresariais (30 hectares em média) e lotes para profissionais de Ciências Agrárias (máximo de 10% da área
total de um Projeto, para efeito de demonstração e orientação técnica aos agricultores familiares).
109
sobre os espaços urbanos – é desafiador porque os investimentos feitos em
infraestrutura vão conformando as mudanças sociais e territoriais, tendo como resultado
o “acirramento da divisão social e territorial do trabalho no setor, transformando as
tradicionais relações cidade-campo” (ELIAS, 2006, p. 115) bem como o surgimento de
conflitos pela terra e pela água. Nessas áreas há o direcionamento das atividades com
vistas a garantir a especialização e a integração das atividades para atender às demandas
do agrohidronegócio, além de contar com uma remodelagem das práticas camponesas,
devido à necessidade de o grande capital agregar terras, água e mão de obra barata para
viabilizar a sua reprodução ampliada.
No contexto do Novo Modelo de Irrigação, embora a abertura e o favorecimento
ao setor privado se constituam pano de fundo para a sua implantação, não fica claro
como a iniciativa privada atuaria, quais seriam suas responsabilidades e sua relação com
o Estado. Esses delineamentos se tornariam mais claros a partir dos anos 2000, com a
possibilidade de estabelecer as chamadas “Parcerias Público-Privadas” (PPPs) mediante
a concessão de direito real de uso (CDRU), por um período que pode variar entre 30 e
45 anos. Durante esse período, a gestão do perímetro irrigado ficaria sob a
responsabilidade da empresa e/ou do consórcio vencedor da licitação, com autonomia
para direcionar as atividades agrícolas a serem desenvolvidas, tendo como base a
concepção de “empresa-mãe”, ou seja, uma empresa responsável por fazer a exploração
e a gestão do perímetro irrigado. A área destinada aos lotes familiares também estaria,
nesse modelo de gestão, subordinada à “empresa-mãe”. Como os projetos de irrigação
são em sua totalidade criados pelo Estado, deverão ter ao menos uma parcela mínima de
seus lotes destinada a assimilar parte da população impactada com a desocupação da
terra.
Esse incentivo à irrigação no Semiárido não é neutra porque, segundo Germani
(1993, p. 501), “la decisión de utilizarla, la tecnología adoptada y los resultados están
fuertemente permeados de connotaciones políticas dependiendo de la realidade que se
presenta, donde el papel del Estado ocupa um protagonismo importante.” Os programas
e projetos implantados pelo governo federal não contemplam todos os perímetros
irrigados existentes no Semiárido brasileiro, sendo escolhidos os mais promissores para
receber os investimentos, na perspectiva de se tornarem projetos-modelo para os
demais. Como exemplo de projetos inseridos na proposta do Novo Modelo de Irrigação
para receber financiamento, temos o Projeto Jaíba (MG),o Projeto Salitre (BA) e o
Projeto Acaraú (CE). Esses projetos são selecionados para receber investimentos
110
públicos para que sua estrutura técnica e organizacional seja modernizada, tornando-se
atrativos para a iniciativa privada.
Desde a criação dos primeiros projetos de irrigação, na década de 1960, até o
momento atual passaram-se 50 anos, havendo grandes alterações na base de reprodução
do grande capital, no papel do Estado, na divisão territorial do trabalho e na relação
capital-trabalho, ao passo que as políticas e os programas governamentais voltados para
atender à realidade do Semiárido brasileiro têm mantido intacta uma questão histórica e
sem solução ainda hoje, ou seja, a propriedade da terra. A questão agrária não se
configura como um elemento a ser tratado pelas políticas públicas que abrangem a
irrigação, pois, de acordo com a Política Nacional de Irrigação, a criação dos perímetros
irrigados não tem por função fazer reforma agrária. Inicialmente, a preocupação era com
o armazenamento de água que, embora necessário, nunca resolveu a problemática da
seca no Nordeste semiárido, e a validade da “solução hídrica” já foi refutada. Para
Germani (1993, p. 507), acumular água
por si solo, no era una solución para el problema que se presentaba.
Primero porque el problema no era tanto de falta de agua sino
principalmente de la distribución irregular del régimen de lluvias.
Segundo porque la oligarquia sertaneja se aproprio de la construcción
de los azudes, reforzando la estrutura de la tierra del semiárido
nordestino que se caracterizaba por la articulacíon latifúndio-
minifundio-capital mercantil.
Em muitos casos, a construção de açudes intensificou ainda mais o processo de
subjugação dos camponeses em relação aos proprietários das terras, porque o acesso à
água ficava restrito àqueles que se submetiam aos ditames dos “senhores da água”,
como aponta Oliveira (2008, p. 178, grifos do autor):
O Dnocs dedicou-se, sobretudo, à construção de barragens para
represamento de água, para utilização em períodos de seca, e a
construí-las nas propriedades de grandes e médios fazendeiros: não
eram barragens públicas, na maioria dos casos. Serviam, sobretudo,
para sustentação do gado desses fazendeiros, e apenas marginalmente
para a implantação de pequenas ‘culturas de subsistência’ de várzeas,
assim chamadas ribeiras das barragens. O investimento do Dnocs
reforçava, num caso como noutro, a estrutura arcaica: expandia a
pecuária dos grandes e médios fazendeiros, e contribuía para reforçar
a existência do ‘fundo de acumulação’ próprio dessa estrutura,
representado pelas ‘culturas de subsistência’ dos moradores, meeiros,
parceiros e pequenos sitiantes.
Embora criado para atuar em escala nacional, o DNOCS ficou limitado à região
de mais antigo povoamento e de estrutura socioeconômica (acesso limitado à terra e à
111
água, associação entre latifúndio-minifúndio, currais eleitorais, algodão-pecuária) sob o
controle dos coronéis, em muitos casos também representantes políticos. Essa estrutura
de poder, arcaica em sua natureza, permitiu que o poder político e econômico dos
coronéis perpetuasse e, em muitos casos, fosse fortalecido porque, como destaca
Oliveira (2008, p. 179), se trata de uma estrutura que favoreceu o “enriquecimento e o
reforço da oligarquia”.
Quando o Estado adota a política de implantação de perímetros irrigados na
década de 1960, as contradições envolvendo o acesso à terra e à água tornam-se ainda
mais acentuadas porque os critérios de elegibilidade62 do irrigante desconsideram
totalmente a realidade local dos camponeses moradores das terras ocupadas pelos
projetos de irrigação. Segundo Germani (1993, p. 534),
la intervención del Estado en la implantación de los proyectos
públicos de regadio implica uma desarticulación de las comunidades
existentes em las áreas expropriadas sin que existia la obligación de
tenerlas em cuenta en los proyectos. Esto trae como consecuencia el
desalojo de um gran número de personas a veces mucho más grande
que el número de personas asentadas em los proyectos, a los que se
añaden los problemas causados por los retrasos en la implantación del
perímetro.
Bursztyn (1984) destacava o fato de que os camponeses expropriados pela
execução de obras para garantir a segurança hídrica no Semiárido não tinham prioridade
no acesso aos lotes, tornando-se, em sua maioria, mão de obra disponível para trabalhar
nas lavouras comerciais. Passados 30 anos, essa visão não foi superada no âmbito da
esfera governamental, embora esta considere que a inserção dos camponeses na
agricultura irrigada, como força de trabalho, já justifica os investimentos feitos na
criação dos projetos de irrigação. Ante o exposto, podemos afirmar que o Novo Modelo
de Irrigação não é tão “novo” assim porque seu intento é reafirmar a importância de
garantir as condições para a reprodução do grande capital nos perímetros irrigados,
mediante o acesso à infraestrutura financiada com recursos públicos pelo setor privado.
Embora essa perspectiva não estivesse explícita no corpo da Política Nacional de
Irrigação, o fato é que, desde a sua implantação, a orientação sempre esteve voltada para
o fomento à agricultura destinada a atender às demandas do mercado.
A criação dos polos agrícolas a partir dos perímetros irrigados acaba atraindo
62 Entre os critérios de elegibilidade dos colonos estão: a) idade – os candidatos não podem ter acima de 45 anos;
b) estado civil - apenas homens casados podem se candidatar; c) número de filhos – ter pelo menos dois filhos;
d) escolaridade – não podem ser analfabetos; e) preparo - os candidatos passam por uma entrevista para
verificar se possuem aptidão para a agricultura empresarial.
112
empresas de grande porte, nacionais e multinacionais, além de desencadear
significativas alterações nas técnicas e nos instrumentos utilizados na produção
(máquinas, insumos, tipos de lavouras e exploração dos recursos naturais – terra e
água), acentuando os riscos e os acidentes de trabalho. Por outro lado, há a
reconfiguraçãodas relações de produção entre os camponeses, que passam a utilizar,
mesmo que de forma subalterna, o pacote tecnológico que é a base do
agrohidronegócio, fato que leva muitos ao endividamento, à subordinação e à perda da
terra. Articulada dessa maneira, a Política Nacional de Irrigação gera uma modernização
agrícola com caráter conservador, limitadaà introduçãodo uso de insumos químicos e
mecanização da produção, conservando sem alteração a estrutura anacrônica da
propriedade e das relações sociais.
A Lei nº 12.787, promulgada em janeiro de 2013, trouxe reformulações no
arcabouço legal, institucional, regulatório bem como no sistema de gestão, créditos e
subsídios da Política Nacional de Irrigação, a saber:
I – incentivar a ampliação da área irrigada e o aumento da
produtividade em bases ambientalmente sustentáveis; II – reduzir os
riscos climáticos inerentes à atividade agropecuária, principalmente
nas regiões sujeitas a baixa ou irregular distribuição de chuvas; III –
promover o desenvolvimento local e regional, com prioridade para as
regiões com baixos indicadores sociais e econômicos; IV – concorrer
para o aumento da competitividade do agronegócio brasileiro e
para a geração de emprego e renda; V – contribuir para o
abastecimento do mercado interno de alimentos, de fibras e de energia
renovável, bem como para a geração de excedentes agrícolas para
exportação; VI – capacitar recursos humanos e fomentar a geração e
transferência de tecnologias relacionadas a irrigação; VII – incentivar
projetos privados de irrigação, conforme definição em
regulamento. (BRASIL, 2013. Grifos nossos).
Outrossim, nesse mesmo contexto, foi criada a Secretaria Nacional de Irrigação
(SENIR), que tem entre as diretrizes estabelecidas pelo art. 19º do decreto nº
8.161/2013, “promover os negócios da agricultura irrigada” e “promover a
implementação de projetos de irrigação e drenagem agrícola”. Ou seja, o propósito da
política de irrigação atual é respaldar as ações de expansão do agrohidronegócio em
áreas com restrições tanto do ponto de vista ambiental (disponibilidade hídrica) quando
econômico (oferta de infraestrutura). Faz-se necessário destacar o papel do Estado ante
a seara de discursos usados para justificar os investimentos públicos em novos projetos
de irrigação bem como na revitalização de muitos outros. Pontes et al. (2013, p. 3214)
afirmam que as
políticas agrícolas no semiárido brasileiro, desde os anos 1960, vêm
113
acompanhadas da implantação dos perímetros irrigados como
estratégia geopolítica de expansão seletiva da fronteira agrícola, na
perspectiva da indução do desenvolvimento. Os perímetros irrigados
são áreas delimitadas pelo Estado para implantação de projetos
públicos de agricultura irrigada que, em geral, possuem significativo
potencial agricultável, caracterizado pelos solos férteis, presença
hídrica, clima favorável e abundante força de trabalho. Estes
elementos conjugados às infraestruturas implementadas (canais,
piscinas etc.) favorecem ampla produtividade agrícola. Tal estratégia
é, agora, retomada pelo governo com grande ênfase e, certamente,
vem ao encontro deste capital transnacional que aqui se instala para
produzir commodities agrícolas, a partir de terra, água e mão de obra,
facilidades de infraestrutura e de financiamento, além de condições
políticas e institucionais favoráveis.
Segundo as estimativas, até 2015 serão investidos R$6,9 bilhões na construção e
na revitalização de perímetros irrigados, visando à ampliação da área abrangida pelos
perímetros já existentes em 193.137 ha e a instalação de 200.000 ha em novos
perímetros. A perspectiva é aumentar em 100% a gestão privada das áreas irrigadas,
com ênfase nas parcerias público-privadas (PONTES et al., 2013).
A geografia histórica dos programas e projetos voltados à questão hídrica no
Semiárido revela a existência de nexos entre o Estado, o capital e as elites agrárias
regionais, cujas forças sociais impõem aos camponeses e às populações tradicionais
diversos obstáculos à sua permanência em seus lugares de morada e à reprodução de
suas práticas. A despossessão dos direitos territoriais em nome do progresso e do
desenvolvimento revela como as relações são desiguais e combinadas na produção
desses novos espaços, completamente dependentes e subordinados aos interesses do
capital. Ao analisar os efeitos da implantação dos projetos de irrigação, Germani (1993,
p. 537) destaca que antes,
en el espacio de la roza, el trabajo tenía como sentido garantizar los
médios necessários a la supervivência del grupo doméstico. Ahora, la
producción em el área de regadio cambia la óptica y el trabajo passa
de estar limitado en la manutención del grupo familiar para a la
realización de um saldo elevado de produto-renta, del cual dependerá
su permanência, o no en el proyecto. De esta manera, el trabajo queda
marcado por una dependência total al mercado y del control de las
instituciones responsables de inversiones.
A fetichização acerca da implantação de perímetros irrigados, envolta no manto
da “modernização conservadora” da agricultura no Semiárido, tem um forte
componente de classe em que a tecnologia é utilizada para embasar as críticas à
produção camponesa – tida como insuficiente e superada – bem como à desvalorização
114
do trabalho na/com a terra, como meio de reprodução, para torná-lo meramente produtor
de mercadorias, viabilizando a extração de mais-valia. Como ressalta Marx (2009, p.
578), só é “[...] produtivo o trabalhador que produz mais-valia para o capitalista,
servindo assim à auto-expansão do capital”. Acreditamos ser impossível analisar as
políticas públicas implantadas com o escopo de planejamento/desenvolvimento
regional, com base na problemática das secas, sem considerar a dialética da oposição
entre camponeses versus latifundiários, sendo estes últimos resquícios da estrutura
produtiva do “Nordeste” algodoeiro-pecuário (OLIVEIRA, 2008, p. 176), agora
metamorfoseado em agrohidronegócio, continuando, porém a atrair e a cooptar os
investimentos feitos pelo Estado em benefício próprio. De fato, o capital não se mantém
sem a interferência do Estado, sendo este responsável por instrumentalizar o espaço
para viabilizar a reprodução ampliada bem como preservar seu sistema orientado para a
expansão e acumulação, que é em sua essência “irreformável e incontrolável”
(MÉSZÁROS, 2007, p. 58).
Ao contrário daquilo que apregoam os discursos inflados acerca do
desenvolvimento local/regional/sustentável, essas políticas públicas (programas e
projetos) exercem um importante papel para o sistema sociometabólico do capital, por
meio da introdução de corretivos parciais e mecanismos de controle social, no campo e
na cidade, utilizando forças desiguais para manter a “ordem estabelecida”. O Novo
Modelo de Irrigação é, em sua essência, o resultado inexorável do imperativo das
intervenções radicais do Estado em zonas especiais de desenvolvimento econômico,
com favorecimento dos governos estaduais à expansão do grande capital em sua busca
pelo controle sobre a terra, a água e o trabalho, mediante o estabelecimento de relações
de poder iníquas. Dada a importância que o controle da terra e da água tem para a
expansão do grande capital no campo, Thomaz Junior (2011a, p. 313) chama atenção
para o seguinte aspecto:
A evidente vinculação entre a expansão das áreas de plantio das
commodities com a disponibilização dos recursos terra e água tem sido
imprescindível para as estratégias do capital. Assim, a posse da terra e
da água nos remete a refletir o papel do Estado no empoderamento do
capital e seus efeitos, no quadro social da exclusão, da fome e da
emergência da reforma agrária e da soberania alimentar. É dessa
complexa e articulada malha de relações que estamos focando esse
processo, no âmbito do agrohidronegócio, por onde nos propomos
entender os desafios para a sociedade, para os moradores das cidades e
dos campos, ou seja, a dinâmica geográfica da reprodução do capital
no século XXI e os cenários que põem, para os trabalhadores.
115
As determinações destrutivas do capital sobre o campo causam a despossessão, a
subordinação, a proletarização e a precarização das relações de trabalho e da própria
existência humana, porque submetem as populações ao fetichismo do espaço-
mercadoria, formatado sob a perspectiva irracional do desenvolvimento (in)sustentável.
Essa irracionalidade sistêmica, embora pareça contraditória para o próprio sistema
sociometabólico do capital, é, na verdade, responsável por sua perpetuação, mediante a
interiorização e consolidação do ideário do capital, envolvendo, inclusive, a “[...]
expropriação do savoir faire do trabalho” (ANTUNES, 2001, p. 190). Irracionalidade,
irreformabilidade e incontrolabilidade são características próprias do sistema do capital,
conforme destaca Mészáros (2007), pois, para viabilizar sua reprodução, este promove
uma revolução nas forças produtivas, ao passo que sustenta relações hegemônicas e
antagônicas para continuar edificando seu processo sociometabólico. O incremento
tecnológico verificado no campo no Semiárido, via projetos de irrigação, tem provocado
alterações nos valores da produção societal, passando de valor de uso para valor de
troca, submetendo os camponeses a situações de alienação e estranhamento.
Na realidade, os projetos desenvolvimentistas pautados na disseminação das
grandes obras de segurança hídrica pressupõem um reducionismo da irrigação como
fábula, consagrada no discurso único fundamentado na produção de imagens e no
imaginário de superação da miséria e da pobreza dos camponeses caatingueiros
provocadas pela seca. Todo o aparato ideológico e político que sustenta as ações de
criação dos programas e projetos voltados para o incentivo da irrigação no Nordeste
semiárido busca, maciçamente, disseminar a ideia de que essa alternativa seja a
condição elementar para a melhoria nas condições de vida desses moradores e para o
aumento da oferta de empregos.
A uniformidade entre o Estado e os agentes do capital (empreiteiras,
latifundiários, empresas do setor alimentício e de implementos agrícolas – máquimas,
insumos e agrotóxicos) fica evidente no culto aos projetos de irrigação para atender a
interesses externos. A perversidade sistêmica inerente a tal proposta tem relação com os
redesenhos espaciais e a reorganização do território para atender às demandas do capital
em sua reestruturação produtiva, camuflando, por outro lado, as mazelas sociais criadas
em decorrência do avanço do processo de globalização (dos costumes, da agricultura, da
alimentação, da economia, etc.) e do sucumbimento de práticas socioculturais centradas
nas relações não capitalistas de produção. Outras possibilidades são, todavia,
116
descartadas, sem que estas sejam debatidas ou que os sujeitos envolvidos sejam
consultados sobre quais as suas competências, suas demandas e particularidades.
Primeiro, criam-se os programas e projetos direcionados para a agricultura irrigada,
pautada nos moldes empresariais, para depois informar aos camponeses diretamente
impactados a sua incapacidade de atender aos requisitos necessários para terem acesso
aos possíveis benefícios proporcionados pelos programas e projetos criados. Outras
possibilidades devem ser pensadas para a região semiárida nordestina, de modo a
romper com a lógica sistêmica, perpetuadora de mazelas sociais, pautada na produção
de riquezas através da agricultura irrigada e a viabilizar a supressão da pobreza
mediante o favorecimento de atividades pautadas no trabalho familiar e na distribuição
da terra e da água, como importantes alterações para superar a privatização dos projetos
de irrigação implantados com recursos públicos.
2.3 O Programa Estadual de Bioenergia - BAHIABIO: (des)construção de
consensos
O discurso do desenvolvimento sustentável ganhou força no contexto da crise
ambiental criando uma forte demanda por fontes alternativas de energia. Ao tratar dos
sentidos e significados intrínsecos à discussão sobre a agrocombustíveis, Moreira
(2007b, p. 44) destaca que o assunto deve ser entendido na perspectiva do “biopoder e o
bioespaço”, sem desconsiderar o seu viés geopolítico, visto que a expansão da produção
dos chamados combustíveis limpos e renováveis ocorre, inclusive, sob a forma de
commodities, havendo para tal propósito a necessidade de reestruturar as formas de
organização da agricultura. Por outro lado, acaba por reforçar a hegemonia do capital
porque organiza as relações sociais e de produção a partir da perspectiva do grande
capital, desestruturando relações não capitalistas de produção, como verificamos com a
atual proposta do governo baiano em seu Programa BAHIABIO, ao fomentar a
produção de matéria-prima para os agrocombustíveis em áreas tradicionalmente
ocupadas com lavouras para o sustento das famílias.
Nesse cenário, em que o Estado e as elites agrárias incorporam e disseminam o
discurso ufanista de que o Brasil deve assumir a responsabilidade por liderar a transição
da hegemonia do petróleo para os agrocombustíveis, tem-se a elaboração de novos
fundamentos para justificar o paradigma produtivo, recorrendo ao discurso
ambientalista para respaldar as mediações do capital em seu processo expansionista.
117
Essa realidade, acrescida das características hidrológicas, tem constituído um fator
delimitador dos espaços a serem reconstruídos e reelaborados, para atender às demandas
internas e externas em relação a determinados produtos, com destaque,no caso
brasileiro, para a produção de açúcar, café, carne de frango, suco de laranja e etanol.
Especificamente no tocante à região Nordeste, a fruticultura irrigada representa o
“carro-chefe” da política agrário-agrícola das áreas semiáridas, fortemente marcadas
pela expansão dos perímetros irrigados e pela inserção dos agricultores camponeses nos
projetos arquitetadose implantados hierarquicamente, sem que haja discussão,nas
comunidades atingidas,acerca de qual modelo de desenvolvimento se adéqua à realidade
local. Ao optar pelo modelo de desenvolvimento para o Semiárido pautado na
agricultura monocultora e grande consumidora de água, diversos são os
desdobramentos, pois, além de reduzir as reservas desse recurso, tanto no que se refere
às águas superficiais quanto subterrâneas, há ainda outro aspecto igualmente
preocupante que é a contaminação por agrotóxicos, pois sabe-se que a monocultura está
baseada na utilização intensiva de insumos químicos. Ademais, para Marinho et al.
(2011, p. 273-4), esse contexto
gera um tensionamento por mudanças socioespaciais que se
materializam em transformações no modo de vida, nas relações de
trabalho e no modo de lidar com a terra. Somam-se ainda as
fragilidades das políticas públicas direcionadas ao homem do campo,
que privilegiam o cambate às secas ao invés de promover a
convivência com o semiárido. O resultado desse processo é o
“surgimento” de um novo personagem no meio rural: o trabalhador do
agronegócio.
Há uma harmonização das políticas públicas pautadas nos princípios neoliberais,
associadas às políticas reguladoras do Estado, materializadas e entrelaçadas no espaço,
com vista ao favorecimento dos “projetos de desenvolvimento eco-destrutivos63”
(LEFF, 2009, p. 188). A Bahia, importante propulsora do agrohidronegócio no contexto
nordestino, passa por rearranjos no âmbito da política governamental, com vistas à
adequação da realidade regional, baseada na produção de commodities agrícolas (café,
soja e fruticultura em ascensão), ao processo produtivo atualmente centrado no fomento
aos agrocombustíveis, atendendo ao chamado do desenvolvimento sustentável para a
produção de “energia limpa”. Nesse contexto, o governo do estado da Bahia lançou, em
63 Leff, 2009, p. 188 define como projetos de desenvolvimento eco-destrutivos as hidroelétricas, a expansão da
fronteira agrícola, a pecuária nos trópicos úmidos, a revolução verde e os cultivos transgênicos.
118
2008, o Programa Estadual de Bioenergia, BAHIABIO64, com o intuito de tornar a
Bahia autossuficiente na produção de energia, sem alterar a produção de alimentos. O
propósito do programa é transformar a Bahia pioneira no tocante à “substituição de
energia de origem fóssil pela renovável, pois possui condições climáticas para a
produção da maioria das oleaginosas para o biodiesel e a cana-de-açúcar para etanol,
bem como área disponível para incremento na produção dessas matérias-primas
(BAHIABIO, 2008, p. 7)”. Exemplificando essa questão, Fabrini (2010, p. 77) destaca
que
[...] a produção de biodiesel se realiza no PNPB (Programa Nacional
de Produção e Uso de Biodiesel) e conta com importante participação
estatal na sua realização. Governos estaduais também têm feito a
gestão e investimentos para a produção de biodiesel na pequena
agricultura.
A implementação desse programa tem como horizonte a incorporação de
aproximadamente 2 milhões de hectares à produção de agrocombustíveis, expandindo a
área agrícola pelos três domínios ecológicos (Semiárido, Cerrado e Mata Atlântica),
incorporando várias bacias hidrográficas com potencial para outorga de água para
irrigação (São Francisco, Rio de Contas, Corrente, Paraguaçu, Prado e Jequitinhonha).
Ressalte-se que algumas dessas bacias já se encontram bastante degradadas, por conta
da superexploração dos recursos hídricos devido ao seu uso intensivo para atender às
demandas de água para irrigação.Entre estas, destacam-se as bacias do rio São Francisco
e do Rio Corrente, sendo a primeira voltada para a fruticultura irrigada e a segunda para
a produção de soja, no oeste baiano.
Esse cenário desenvolvimentista traz à tona a necessidade de discutir e/ou
problematizar qual o papel do campesinato no contexto da produção de
agrocombustíveis, visto que a proposta do Programa BAHIABIO acoplar a agricultura
de base familiar aos interesses agroindustriais do setor de agroenergia, como se
estivéssemos tratando de sujeitos iguais num contexto de relações horizontalizadas,
expressas a partir da perspectiva do “agronegócio familiar”. Cabe destacar que os
agrocombustíveis estão associados à “produção em cadeia e mercados globais
monopolizados por corporações nacionais e estrangeiras” (FABRINI, 2010, p. 81) e,
nesse universo, detectam-se fortes contradições na proposta implementada pelo Estado
64 Esse programa tem como objetivo “incentivar e desenvolver a produção de bioenergia na Bahia, visando
atender às demandas dos mercados interno e externo, através de dois subprogramas: Etanol e Biodiesel, sendo
que os resíduos originados por esses subprogramas também serão computados e adicionados, através da
Cogeração de Energia e Crédito Internacional de Carbono, entretanto, parte será destinada para Biomassa para
fertilização (adubo orgânico) e arraçoamento animal.” (BAHIABIO, 2008, p. 8).
119
que, ao perspectivar o uso do território camponês a serviço do mercado de
agrocombustíveis, coloca em risco os componentes territoriais (simbólicos e materiais)
que foram construídos historicamente e que se expressam sob a forma de saberes e
práticas camponeses – uso de sementes crioulas, uso da terra e da água, relações
solidárias e produção para o autoconsumo, entre tantos outros –, como materialidade de
uma lógica diferenciada da produção capitalista fundamentada na produção de
mercadorias e no valor de troca. A terra e o território, trunfos para os camponeses
caatingueiros, acabam sendo incorporados sob a perspectiva dos agrocombustíveis,
sofrendo metamorfoses em seus componentes político, cultural e econômico, trazendo à
tona as contradições do projeto brasileiro de produção de agrocombustíveis, do qual o
Programa BAHIABIO é uma célula.
A expansão e a consolidação desse modelo de desenvolvimento agropecuário
para as terras não contempladas com projetos de irrigação no Semiárido baiano devem
ser analisadas a partir de seu componente político, pois representam a estratégia,
adotada pelo capital e pelo Estado, de extrair renda da terra nos territórios camponeses,
sem que haja expropriação das terras (sejam elas tituladas ou não) e de exercer controle
sobre o trabalho, cujos produtos passam a ser apropriados pelo segmento dos
agrocombustíveis em detrimento da produção de alimentos. Assim novas fronteiras de
acumulação vão sendo delimitadas com o propósito de inserção dos lugares na lógica do
capitalismo globalizado, tendo como desdobramentos dois processos extremamente
danosos para os sujeitos que vivem nas terras semiáridas: primeiro, desafia a identidade
da autonomia camponesa e, segundo, extrai de forma avassaladora os recursos
territoriais mediante a modernização das forças produtivas, cujo processo é altamente
espoliativo das populações tradicionais que historicamente ocuparam esses rincões do
Semiárido baiano. Em nossa compreensão, a execução do Programa BAHIABIO nada
mais é que a dilatação da fronteira agrícola no Semiárido, como estratégia para extração
de renda mediante a transferência de recursos entre as regiões brasileiras, aproveitando
assim da mão de obra barata, dos investimentos públicos e da manutenção das arcaicas
estruturas fundiária e de poder que, ainda hoje, permanecem marcantes no Nordeste
semiárido. Nesse sentido, concordamos com Brandão (2010, p. 67), quando o autor
destaca que o Brasil
forjou economias urbano-regionais e rurais de natureza bastante
complexa, submetidas a estruturas políticas arcaicas de um pacto de
dominação, que soldou um contrato social produtor de diversas
expressões de desigualdades e gerador de intoleráveis privações
120
materiais, atém de sufocar a reprodução ampliada de forças produtivas
avançadas.
No período de 1996 a 2006, a área dos estabelecimentos agropecuários manteve-
se estável, ao passo que a área ocupada pelas lavouras temporárias e permanentes
ganhou um aumento acima de 50% (Quadro 6). Esse crescimento na área ocupada pelas
lavouras permanentes e temporárias representa um ponto nodal para a implantação do
Programa BAHIABIO, mediante a incorporação da agricultura camponesa à produção
de matéria-prima para o mercado dos agrocombustíveis.
Quadro 6 - Área dos estabelecimentos agropecuários por utilização das terras na Bahia,
1996/2006
Utilização de terras Área dos estabelecimentos
agropecuários (ha) Área dos estabelecimentos
agropecuários (%) 1996 2006 1996 2006
Total 29.842.900 29.767.590 100 100
Lavouras permanentes 1.348.743 2.646.271 4,52 8,47
Lavouras temporárias 2.698.49 3.665.970 9,4 13,26
Áreas em descanso ou
produtivas não
utilizadas
2.984.290 2.016.815 10 6,77
Pastagens 14.489.768 12.901.698 48,55 46,66
Matas e florestas 7.136.561 9.301.335 23,91 33,64
Fonte: BAHIABIO, 2008.
Org.: DOURADO, J. A. L., 2013.
Ainda com base nas informações do Quadro 6, detecta-se um jogo de
representações, por parte do Estado, na busca do dessubstanciamento do camponês
caatingueiro de seu ser, para reduzi-lo à pura força de trabalho, quando da sua
incorporação ao sistema de produção de matéria-prima para a produção de
agrocombustíveis. Há uma apropriação da natureza e uma captura dos sujeitos, quando
os camponeses são coisificados, num duplo processo de superexploração – tanto dos
recursos naturais (terra e água) quanto da força de trabalho –, que, regido pelos ditames
do mercado dos agrocombustíveis, passa a ser determinado por fatores externos e
definido por agentes hegemônicos. Terra, água e força de trabalho assumem valores
intercambiáveis no contexto da racionalidade econômica, devido à procura de novos
setores de investimentos, capazes de satisfazer às demandas expansionistas do capital.
Sobre a produção de agrocombustíveis pelo campesinato, Fabrini (2010, p. 75) coloca a
seguinte contradição:
121
[...] se de um lado, o agrocombustível produzido pelo agronegócio
apresenta um conjunto de limites e prejuízos sociais, [...] movimentos
camponeses, sindicatos de trabalhadores rurais e agricultores
familiares têm demonstrado simpatia à agroenergia, principalmente o
biodiesel, quando praticado pelos pequenos agricultores.
Apresentando uma concepção diferenciada de produção de
agrocombustível do agronegócio, entidades e movimentos entendem
que os pequenos agricultores devem participar do projeto dos
agrocombustíveis. Portanto, não são necessariamente contra a
produção de agrocombustível, mas contra produção hegemonizada
pelos setores dominantes no campo ligados ao agronegócio.
A proposta da implantação do Programa BAHIABIO é promover a expansão do
agronegócio a partir da integração da agricultura empresarial à agricultura camponesa e
essa incorporação dos territórios camponeses à lógica do agrohidronegócio tem como
horizonte as áreas de produção de alimentos, que passariam a fornecer matéria-prima
para a produção de etanol e biodiesel. Vê-se que, no contexto do Programa BAHIABIO,
os camponeses são reduzidos à carapaça do capital esuas realidades e demandas são
ultrajadas em nome de um “[...] sistema de controle reprodutivo social fetichista e
alienante, que subordina absolutamente tudo ao imperativo da acumulação de capital
(MÉSZÁROS, 2007, p. 41)”, camuflado no/pelo discurso da energia limpa e renovável.
Os atuais projetos desenvolvimentistas em curso no Nordeste brasileiro têm
buscado mistificar ideologicamente a premissa de que as parcerias público-privadas
(PPP) são a alternativa mais viável para a superação das desigualdades sociais e
econômicas regionais. A Petrobrás, segundo informações da coordenação regional da
CODEVASF na região de Irecê, já manifestou interesse em firmar parceria para fazer a
gestão do projeto de irrigação Baixio de Irecê.
Surge, nesse contexto, um círculo vicioso de relações de dominação e
subordinação, pois a agricultura praticada pelas famílias camponesas do Semiárido
passa a ser mediada pela lógica perversa do capital, sujeita a regras e regulações do
mercado as quais acabam por redefinir os processos e as dinâmicas locais, ficando os
camponeses cada vez mais dependentes dos agentes dominantes do setor dos
agrocombustíveis. Nesse diapasão, há um esforço do capital em empreender processos
de sobreposição das “mediações de primeira ordem”65que caracterizam as práticas
socioculturais locais a um conjunto alienante de “mediações de segunda ordem”66,
subvertendo assim a interação entre os camponeses caatingueiros com o Semiárido.
65 Cf. Mészáros, 2007, p. 40. 66 Cf. Mészáros, 2007, p. 41.
122
Sobre essas mediações, Mészáros (2007, p. 41) destaca que, se
compararmos as mediações de primeira ordem com as bem
conhecidas determinações estruturais hierárquicas das mediações de
segunda ordem do capital, percebemos que tudo se altera com o
surgimento do capitalismo de modo quase irreconhecível. Pois todas
as demandas mediadoras primárias devem ser modificadas de modo a
adequar-se às necessidades auto-expansivas de um sistema de controle
reprodutivo social fetichista e alienante, que subordina absolutamente
tudo ao imperativo da acumulação do capital.
Embora afirmem que a implantação do Programa BAHIABIO não afetará a
produção de alimentos, é necessário destacar que as práticas tendenciosas formuladas ao
longo do último século, com o intuito de promover a superação das desigualdades
sociais do Nordeste semiárido, revelam as crescentes escassezes associadas, cuja criação
serve unilateralmente a um conjunto de imperativos visando à manutenção das relações
de dominação bem como à reprodução do sistema sociometabólico do capital. De
acordo com o Programa BAHIABIO (2008, p. 10), a Bahia possui
uma superfície de 565.000 km², com amplas possibilidades de
produção de cana-de-açúcar em condições de sequeiro, bem como
irrigada, para se tornar um importante pólo de produção de etanol.
Para a produção em condições de sequeiro o Estado da Bahia dispõe
de uma área superior a 300 mil hectares, localizada na região do
Extremo Sul que, também, conta com infra-estrutura de portos e de
aeroportos internacionais, malha rodoviária que percorre toda a região
e uma boa oferta de energia elétrica e de telecomunicações. A
disponibilidade de solo e de clima favorável da região tem
possibilitado a obtenção de produtividade média de colmo de 85 t/ha.
As metas para o Programa BAHIABIO (Quadro 7) são audaciosas, pois buscam
a incorporação da agricultura camponesa para possibilitar a extração de valor, de mais-
valia, sem que haja a despossessão, muito embora as famílias camponesas fiquem
sujeitas à subjugação/desrealização, haja vista que a produção focada prioritariamente
na produção de alimentos básicos parece estar atrelada aos interesses do grande capital,
visto que o processamento da matéria-prima produzida pelo campesinato será feita pelo
capital agroindustrial/agroenergético.
Quadro 7 - Metas do Programa BAHIABIO
Etanol 6,2 milhões de m³
Biodiesel 1,23 milhão m³
Cogeração de energia 3.672,69 GW
Crédito internacional de carbono 4,54 milhões de toneladas
Fonte: SEAGRI/SPA, 2008.
Org.: DOURADO, J. A. L., 2013.
123
A produção de matéria-prima para o etanol67 foi planejada a partir da instalação
de três polos canavieiros na Bahia: Recôncavo, Vale do São Francisco e Extremo
Sul(Mapa 5). A incorporação de terras semiáridas para a produção de agrocombustíveis
coloca em risco a produção de alimentos pela agricultura camponesa, que passaria a
produzir oleaginosas (mamona, pinhão manso, amendoim, entre outros), num processo
de subordinação às corporações responsáveis pelo processo da matéria-prima.
67 O Programa BAHIABIO estabeleceu metas a serem alcançadas, não havendo, todavia, um prazo para serem
atingidas.
124
125
Em virtude da localização na região semiárida do estado, a produção canavieira
no vale do São Francisco seráatravés de irrigação com água desse rio, por exigência
climática (Quadro 8). Ressalte-se que esse polo abrangerá os municípios do Médio e
Submédio São Francisco, região onde há a forte presença do agronegócio, desenvolvido
nas áreas dos projetos públicos de irrigação. Segundo dados do Programa BAHIABIO
(2008, p. 11) a bacia do rio São Francisco possui um “[...]considerável potencial para
produção de cana-de-açúcar nos Projetos de Irrigação Salitre, Baixio de Irecê, Corrente
e Médio São Francisco (Muquém, Igarité/Barra, Mocambo/Cuscuzeiro e Santa Maria da
Vitória), todos em implantação ou em fase de estudo”.
Quadro 8 - Metas de Produção de Etanol nos Polos da Bahia68
Polo Área propícia ao cultivo de cana-de-
açúcar (ha) Meta de Produção (mil m²)
Extremo Sul 300.000 2.167
Baixio do Irecê 40.000 340
Salitre 20.000 170
Médio São Francisco 60.000 510
Corrente 30.000 255
Cerrados do Oeste 210.000 1.785
Sudoeste 60.000 510
Canal do Sertão 60.000 510
Total 780.000 6.247
Fonte: SEAGRI/EBDA, 2007.
Org.: DOURADO, J. A. L., 2013.
Buscando atender às demandas internacionais de biodiesel, principalmente da
Europa, Ásia e Estados Unidos da América (EUA), há uma articulação, na esfera
governamental,com vistas a viabilizar o direcionamento das atividades no campo, de
modo a criar as condições necessárias à reprodução do grande capital. A PAC europeia
tem contribuído para esse avanço da produção de commoditiesagrícolas, sobretudo, da
produção de grãos (os chamados feed-grains)para a ração animal e da produção de
etanol (cana-de-açúcar e oleaginosas). Essas estratégias para “desenvolver” a região
semiárida colocam, como elemento fundante, a incorporação dos camponeses à lógica
do mercado externo da produção de agrocombustíveis, gerando despossessão, miséria e
subordinação, além da precarização das relações de trabalho, pois os camponeses
transformam-se em trabalhadores para o capital. Nesse contexto, as relações de trabalho
no campo passam a ser mediadas pelo mercado externo, sem haver alterações na
68 Considerando uma produtividade média de 100 t/ha para as áreas irrigadas e 85 t/ ha para as áreas de sequeiro
e uma produção de 85 litros de álcool por tonelada de cana.
126
estrutura fundiária e sem muitas alterações no tocante à utilização de máquinas: um
exército de reserva de lugares e de trabalhadores tem sido convocado a contribuir para
efetivar a reprodução ampliada do capital.
No tocante à produção de biodiesel (Mapa 6), as áreas a serem incorporadas
sobrepõem, em alguns casos, os projetos de irrigação e, em outras situações,abrangem
terras historicamente ocupadas por populações tradicionais (fundos de pasto,
quilombolas, ribeirinhos), fato que traz uma série de desdobramentos em função da
reorganização produtiva do território, mediante lógicas externas às práticas
socioculturais locais.
Destaque-se que a agricultura camponesa se insere na produção de
agrocombustíveis por meio das lavouras de mamona, pinhão manso e dendê,
principalmente (Quadro 9). Esse ajuste espacial nada mais é que uma alternativa
encontrada pelo sistema sociometabólico do capital para garantir os níveis de
acumulação, tendo como resultado a especulação fundiária, a exploração de renda da
terra, fazendo uso, inclusive, de relações não capitalistas de produção, inerentes ao
modus vivendi do campesinato. Observa-se que esse fenômeno traz em seu bojo a
dualidade contraditória expressa pelo “moderno”, ou seja, a produção de energia limpa e
pelo “arcaico”, materializado nas relações não capitalistas de produção. Do prisma do
agronegócio, isso representa uma oportunidade para expandir seus domínios e superar
as clivagens espaciais e os obstáculos à realização do processo de acumulação.
Contraditoriamente, para a agricultura camponesa, esse modelo desenvolvimentista traz
riscos à soberania alimentar, à produção de alimentos voltada para os ciclos curtos, bem
como à sinergia entre o campo e a cidade, pelo fato de desencadear rupturas e
fragmentações mediante o estabelecimento de padrões de produção que desconsideram
as demandas locais. Podemos tomar como exemplo muitos perímetros irrigados
implantados no Semiárido nordestino, pelo fato destes terem uma produção mais
direcionada aos mercados europeu e estadunidense que ao mercado local/regional.
127
128
Quadro 9 - Projeção de Cultivo de Oleaginosas na Bahia para o ano de 2012
Oleaginosa Área a ser cultivada (mil ha) *
Algodão 580
Mamona 290
Amendoim 17
Girassol 60
Pinhão Manso** 60
Dendê*** 120
Soja 850
Total 1.237 Fonte: SEAGRI/SPA, 2007.
Org.: DOURADO, J. A. L., 2013.
*Área do Sudoeste e do Oeste somadas.
**Representando também outras oleaginosas inovadoras, como Crambe,
Moringa e Licuri.
***A partir de 2014.
Estas ações fazem parte da estratégia adotada pelo Estado para fomentar o que se
entende por desenvolvimento territorial rural e para delegar a responsabilidade de
superação da pobreza no campo, sem que haja, por parte dos sujeitos atingidos
diretamente por tais políticas,envolvimento na construção de mecanismos efetivos de
participação social. Tais programas implantados pelo Estado para atender às demandas
do sistema sociometabólico do capital consideram o território fundamental para que seja
possível desenvolver economicamente o Nordeste semiárido. Essa vem constituindo-se
uma característica não apenas da região Nordeste brasileira mas da América Latina
como um todo, porque serve como paradigma instrumentalizador e direcionador do
pensar o território e do agir no território.
Embora procurem considerar as particularidades físicas e econômicas locais, as
políticas de desenvolvimento territorial rural implantadas no Semiárido fazem uma
abordagem enviesada do território como um corpus categorial norteador de medidas,
sem considerar seu caráter conflituoso. Para Montenegro Gómez (2008, p. 252-3), a
proposta de desenvolvimento territorial atual concebe o território como
territorio de la cooperación, la solidariedad y la articulación de
intereses. El territorio del consenso emerge, de esta forma, como
figura privilegiada para pensar soluciones para el medio rural
latinoamericano, como si ese consenso fuese neutro, como si los
intereses y dominaciones atávicas y recientes, de repente,
desapareciesen.
Aspectos sociais, culturais e simbólicos são deixados num segundo plano,
devido à abordagem economicista feita no âmbito do ordenamento territorial. Quando
129
considerados, tais elementos são reconfigurados de modo a atender à proposta de
desenvolvimento pautado numa perspectiva hegemônica de reprodução do capital,
havendo, pois, um forjamento do consenso acerca daquilo que seria o moderno e o
progresso. Isso fica evidente quando as particularidades locais são utilizadas como
atrativo para a criação de nichos de mercado, como é o caso da organização da produção
em pequena e média escalas, baseadas em produtos cujo atrativo para a sua
comercialização é a identidade territorial. Analisando os limites do consenso forjado no
conteúdo das políticas de desenvolvimento territorial, Montenegro Gómez (2008, p.
270) ressalta que
Bajo la apariencia de um consenso que se propone mejorar la
situación de la sociedad en su conjunto a través del desarrollo, lo que
tenemos es una imposición de la lógica capitalista que refuerza la
dominación y la expropriación de la mayoría de la sociedad, y,
paralelamente, un ataque feroz contra aquellos que no aceptan ese
consenso reificado, aquellos que están en el lado “malo”, aquellos que
no quieren hacer parte de la sociedad tal como es, en fin, aquellos que
luchan y resisten por formas sociales justas e igualitarias.
Ainda sobre o desenvolvimento territorial pensado a partir das políticas públicas
caracterizadas pela defesa da expansão do capitalismo no campo e da demanda que isso
gera acerca da criação de consensos, Germani (2010, p. 296) se soma a Montenegro
Gómez (2008) ao afirmar que o
Estado cria as representações no imaginário social necessárias ao
estabelecimento do consenso desejado à eficácia institucional na
gestão espacial, dentre as quais se destaca a construção ideológica de
uma identidade territorial de “pertencimento” entre os diversos grupos
sociais, sendo desconsideradas as contradições espaciais que se
evidenciam estruturalmente no modo de produção capitalista.
Não se pode perder de vista o fato destas políticas afetarem diretamente as
relações de trabalho no campo, porque interferem na identidade laboral dos camponeses
a partir do momento em que o trabalho na terra passa a ser regido por outras lógicas,
alheias aos modos de vida locais, ocasionando desencaixes nos territórios. Os territórios
são os mesmos e são outros, num contraditório movimento de negação-afirmação
verificado no contexto dos projetos desenvolvimentistas em curso no Semiárido baiano,
onde os camponeses caatingueiros “[...] desaparecem, não de todos os lugares, mas
daqueles onde a chegada dos recursos ‘de fora’ impede a existência de seres tão ‘de
dentro’ (BRANDÃO, 2009, p. 91, grifos do autor)”. As comunidades camponesas
(agropastoris e extrativistas) localizadas na região do Médio e Submédio São Francisco
130
têm sofrido interferências em seu cotidiano devido às instabilidades decorrentes dos
diversos projetos desenvolvimentistas em curso, como é o caso do Projeto Baixio de
Irecê, e à implantação de parques eólicos, à extração de minérios e construção de
infraestrutura (rodovias e ferrovias) para viabilizar o acesso à produção e o seu
escoamento até os mercados consumidores, ou mesmo até os locais de transbordo onde
os produtos são embarcados para o mercado externo.
A produção e reprodução das diversas comunidades camponesas (agropastoris e
extrativistas), muitas delas tradicionais de Fundo de Pasto, ficam ameaçadas porque os
sujeitos que as compõem não têm lugar no atual modelo de organização do espaço
agrário regional. As comunidades camponesas transformaram-se em verdadeiros
obstáculos ao desenvolvimento do capital no Semiárido baiano, em virtude da
resistência que elas têm colocado às políticas de modernização do território a serviço do
grande capital.
A lógica social dos territórios sofre metamorfoses em virtude do “envolvimento
estranhado e manipulado69”, forjado pelas políticas desenvolvidas do Estado em
consonância com os interesses do capital, no momento em que aquele estabelece o que e
como será cultivado, rompendo assim com tradições seculares de práticas de trabalho na
terra. Nesse contexto, faz-se necessário analisar cuidadosamente asintencionalidades do
Programa BAHIABIO, pois acreditamos que ele exerce um papel desagregador das
identidades territoriais além de ocultar uma relação antagônica entre o campesinato e o
agrohidronegócio. Esse conflito político-ideológico fica evidente quando há um esforço
para encobrir os processos desterritorializantes-desagregadores geradospelas
interferências decorrentes da execução de um projeto da magnitude do Programa
BAHIABIO, cuja abrangência e cujo montante de recursos alocados revelam um intenso
processo de incorporação de novas áreas à lógica expansionista do grande capital. Esse
fato traz à tona uma “[...] difusão geográfica das relações de mercado capitalista e sua
expansão a novos âmbitos de reprodução social” (TEUBAL, 2008, p. 141).
Os tempos e os usos dos espaços no Semiárido passam a ser regidos por relações
capitalistas baseadas na produção de matéria-prima para atender às demandas do
mercado dos agrocombustíveis. Não se trata apenas de uma mudança nas estruturas
produtivas, visto que abarcam outras dimensões do cotidiano das famílias sertanejas,
69 Termo emprestado de Antunes (2005, p. 27). Esse autor usa o termo para fazer uma crítica a Coriat que,
segundo Antunes, utiliza acriticamente a expressão “envolvimento incitado” para tratar da falência do Projeto
Saturno que objetivava a automatização e robotização da planta da General Motors nos fins dos anos 1970.
131
envolvendo também aspectos culturais, ambientais e sociais, inclusive a relação entre o
camponês e a soberania alimentar, já que o Programa BAHIABIO não contempla a
produção de alimentos. Esse é um aspecto importante e merecedor de uma análise
aprofundada porque rompe com a relação metabólica do camponês caatingueiro com a
terra, cujo trabalho na terra passa a não estar vinculado à produção de alimentos. As
regiões a serem incorporadas à produção de oleaginosas e cana-de-açúcar no Semiárido
são, historicamente, povoadas por famílias camponesas com marcante trajetória na
agricultura de base familiar, voltada ao cultivo de gêneros para o autoconsumo e
comercialização de excedentes. Por outro lado, há uma sobreposição de projetos e
interesses hegemônicos nesse emaranhado de ações do Estado.A produção de etanol,
por exemplo, a partir da cana-de-açúcar irrigada, no polo Médio São Francisco e no
polo Juazeiro, ocorrerá, inclusive, em áreas de perímetros públicos de irrigação,
inicialmente pensados para a produção frutícola.
A produção de agrocombustíveis no Semiárido baiano deve ser analisada com
base nas correlações entre o discurso do desenvolvimento sustentável e as estratégias do
capital para criar condições favoráveis a sua reprodução ampliada,mediante a
incorporação de áreas que, até então, exerciam papel marginal, devido a sua
configuração pouco atrativa para captar recursos capazes de modernizar o território,
viabilizandoe intensificando, assim, os fluxos comerciais. De acordo com o Programa
BAHIABIO (2008, p. 7), a
Bahia [...] é forte candidata a liderar internamente a substituição de
energia de origem fóssil pela renovável, pois possui condições
climáticas para a produção da maioria das oleaginosas para o biodiesel
e a cana-de-açúcar para etanol, bem como área disponível para
incremento na produção dessas matérias-primas.
Respaldado pelo discurso ambientalista, o Estado impõe novas lógicas para as
populações do campo, buscando utilizar como moeda de troca a geração de emprego e
renda, aspectos que acabam por restringir a resistência em relação aos projetos dessa
natureza. No momento atual, caracterizado pela desregulação do mundo do trabalho,
cujos níveis de desemprego atingem índices assustadores afetando o campo e a cidade, a
criação de postos de trabalho acaba por configurar um instrumento de barganha
eficiente junto à população, que fica à mercê de políticas territoriais enviesadas,
explicitando assim o movimento contraditório e desigual do desenvolvimento do
capitalismo.
132
A valorização do espaço via políticas de ordenamento territorial, como o
Programa BAHIABIO, traz à tona conflitos em virtude das lógicas contraditórias de
apropriação do espaço geográfico e o Estado não impetra nenhum esforço para
solucionar a questão agrária, perpetuando assim a concepção de “Sertão para os de
fora”, ao passo que milhões de famílias camponesas na região semiárida da Bahia
continuam sem o acesso à terra e à água. Germani (2010, p. 291) afirma que “a questão
agrária é, essencialmente, uma questão territorial e que toda questão territorial expressa
relações de poder e, numa sociedade estruturada em classe, significa, constantes
enfrentamentos”.
Nesse sentido, as transformações ocorridas no espaço agrário no vale do rio São
Francisco não se restringem apenas à produção ou à tecnologia. Tais mudanças
interferem diretamente na relação do camponês caatingueiro com a terra, com a água e
com o trabalho, numa dinâmica dos contrários, devido às novas relações de produção
baseadas em atividades regidas por novos mecanismos de coerção, de modo a facilitar e
a intensificar a exploração da força de trabalho. O Programa BAHIABIO traz, em seu
cerne, a conciliação entre campesinato e agrohidronegócio num jogo de forças
extremamente desigual porque, de um lado, estão grandes agentes do capital ao passo
que, na outra ponta, estão as famílias camponesas, a quem é imposto um regime de
trabalho e de produção alheio às suas tradições. Esses processos são altamente seletivos
e fomentam uma relação de extrema dependência do mercado, na qual os camponeses
caatingueiros passam a disputar terra, território e água com o grande capital, havendo,
pois, uma desorganização da agricultura tradicionalmente praticada nas comunidades.
Ao observar a sequência histórica de conflitos por terra na Bahia (1990-2014),
percebemos que o menor número de ocorrências foi entre 2000 e 2001 (Tabela 2). Nos
demais anos os números registrados mantiveram-se acima de 20 ocorrências,
demonstrando que as duas últimas décadas foram marcadas por intensos processos de
disputas envolvendo, de um lado, ribeirinhos, quilombolas, indígenas, camponeses,
quebradeiras de coco, seringueiros, pescadores, fundos de pasto e, de outro, o grande
capital em suas múltiplas faces (agrohidronegócio, mineração, energia eólica, ferrovia).
133
Tabela 2 - Conflitos por Terra na Bahia (1990-2014)
ANO Nº de conflitos Nº de Famílias
envolvidas
1990 62 22.058
1991 53 24.622
1992 29 11.789
1993 21 4.480
1994 44 3.922
1995 43 7.510
1996 54 8.123
1997 42 6.638
1998 45 7.258
1999 62 6.021
2000 16 3.731
2001 7 1.337
2002 24 1.073
2003 30 5.043
2004 38 11.577
2005 61 8.760
2006 41 3.244
2007 22 2.969
2008 39 4.131
2009 23 3.675
2010 43 4.327
2011 57 4.774
2012 63 4.180
2013 37 3256
2014 76 11.899
Fonte: Cadernos de Conflitos no Campo (CPT), 1990-2014.
Org.: DOURADO, J. A. L., 2015.
Embora, por um lado, o número de conflitos por terra tenha sofrido um aumento
exponencial, houve, por outro, uma redução significativa na quantidade de famílias
envolvidas na luta pela terra na Bahia, até 2013, apresentando um aumento exponencial
no ano de 2014, conforme pode ser visualizado na Tabela 2.A redução do número de
conflitos por terra ocorrido na última década coincidente com a posse de Luís Inácio
Lula da Silva à Presidência da República. Os conflitos abrandaram no início do governo
Lula e, em função dos seus programas sociais, os movimentos de luta pela terra
134
passaram a enfrentar dificuldades para mobilizar as pessoas para os acampamentos,
fenômeno esse que carece de um aprofundamento analítico para compreender quais as
suas razões, como destaca Medeiros (2014, p. 28):
A progressiva queda apresentada pelos números contabilizados pela
CPT indica que essa linguagem parece estar perdendo a eficácia.
Caberia investigar melhor as razões disso, mas sem dúvida a opção do
Estado, sob diferentes argumentos, por reduzir as desapropriações
combina-se com a institucionalização de outras políticas de garantia
de renda, como a consolidação do Programa Bolsa Família e a
progressiva valorização do salário mínimo, que apresentou ganhos
reais ao longo do tempo. Afinal, os acampamentos são alimentados
pela possibilidade de acesso à terra. Quando este horizonte se
distancia, outras alternativas são acionadas. Tudo indica também que,
ao longo da década analisada, as organizações porta-vozes dos
trabalhadores foram perdendo sua capacidade de mobilizar para as
formas de luta que se consagraram como eficazes ao longo das duas
décadas anteriores e outras demandas ganharam espaço (MEDEIROS,
2014, p. 28).
Ainda sobre os conflitos por terra, Pietrafesa (2013, p. 72) destaca que o
conflito agrário se efetiva quando movimentos propõem novas formas
de produzir o espaço e novas bases para a apropriação dos espaços
rurais. As ações dos movimentos sociais entram em choque imediato
com as seculares formas de organização do mundo rural brasileiro, em
que o Estado normalmente se coloca a serviço do capital, enquanto é
lento no atendimento às reivindicações camponesas.
A usurpação de territórios camponeses devido à territorialização do grande
capital sob a chancela governamental constitui-se um sério risco à reprodução do modo
de vida dos sujeitos que historicamente ocuparam essas terras (quilombolas,
camponeses, ribeirinhos, fundos de pasto, indígenas, entre outros). Assim, a luta pela
terra representa a possibilidade de permanecer nos territórios da vida, ou ainda, de
entrar na terra de trabalho, revelando dessa forma um processo de recampesinização.
Por outro lado, representa também uma estratégia de resistência, por parte dos
camponeses, frente às investidas do capital, que tem buscado incorporar aos seus
domínios terras públicas e de uso coletivo, além de beneficiar-se dos investimentos
públicos direcionados à inserção do campesinato na produção de matéria prima para a
indústria de agrocombustíveis, como é o caso do Programa BAHIABIO.
2.4 – Programa Mais Irrigação: retalhos do tecido desenvolvimentista
135
O Programa Mais Irrigação (Mapa 7), lançado pelo governo federal em
novembro de 2012, prevê investimentos de R$ 10 bilhões com o fomento e a
consolidação do modelo de gestão adotado para os perímetros irrigados atuais. Segundo
o discurso do governo, o propósito é fomentar a valorização da economia regional, gerar
emprego e renda e garantir a produção de alimentos com qualidade. Ao todo, 16 estados
brasileiros foram contemplados com recursos provenientes desse programa, sendo R$ 3
bilhões do PAC e R$ 7 bilhões oriundos de iniciativas privadas, no regime das parcerias
público-privadas, a serem investidos em projetos de irrigação nos nove estados da
região Nordeste, além de Goiás, Roraima, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do
Sul e Tocantins.
A proposta do Programa Mais Irrigação é abranger 538 mil hectares, totalizando
66 projetos organizados em quatro eixos: a) parcerias público-privadas; b) implantação
e revitalização; c) agricultura familiar e pequenos irrigantes; d) estudos e projetos.
Aoperacionalização do projeto compreendem a implantação, operação e manutenção da
infraestrutura de irrigação existente por um período de 35 anos, através de processo de
licitação.
De modo geral, essa política segue basicamente as mesmas diretrizes pensadas e
formuladas na década de 1970, havendo apenas ajustes com vistas a incorporar
elementos políticos e econômicos atuais à ação de expansão das forças produtivas.
Observando-se a espacialização dos programas e projetos, constata-se que o Estado
continua a sustentar a função de partner no que se refere à penetração do capital em
terras semiáridas na Bahia, assim como no Semiárido brasileiro como um todo. As
consequências políticas, econômicas e socioculturais desse processo são multiescalares
porque estão inseridas no contexto de movimento sociometabólico do capital. A
tentativa, por parte do Estado, de criar uma unidade entre perspectivas antagônicas –
agricultura camponesa e agronegócio –, no Semiárido baiano, desconsidera um feixe de
práticas e elementos simbólicos que permeia a relação dos sertanejos com o seu
território.
Nesse aspecto, Porto-Gonçalves (2010, p. 138) afirma que o
desafio é, portanto, o de construir relações sociais e de poder com base
em outros valores, emancipatórios, emanados entre os próprios
protagonistas (horizontalidade, reciprocidade, radicalização
democrática, igualdade, diversidade e autonomia) no próprio
movimento de luta com/contra esse sistema-mundo e suas hierarquias.
136
Ainda hoje, mesmo depois de severas e consistentes críticas, a compreensão que
se tem do Semiárido é o espaço a ser transformado a partir da racionalidade pautada na
dependência do mercado, ou seja, na tentativa de “modernizar” o território para que haja
uma ressignificação tanto dos sujeitos quanto do território, no sentido de incorporá-los à
política de desenvolvimento. Para Carvalho (2012, p. 30), os
diferentes projetos de intervenção manifestam e expressam as
ideologias e os diferentes sentidos de desenvolvimento territorial para
o Semiárido e, nesse contexto, apresenta-se a proposta de
“Convivência”, muitas vezes se conflitando com as demais, por
abarcar outra racionalidade de desenvolvimento.
No Eixo 1 do Programa Mais Irrigação serão contemplados oito projetos,
perfazendo um total de 189 mil hectares nos estados da Bahia, Ceará, Minas Gerais,
Pernambuco e Piauí (Tabela 3).
Tabela 3 - Eixo 1 – Parcerias Público-Privadas em Irrigação
Projeto Extensão (ha) Estado
Baixo Acaraú 4.144 Ceará
Platôs de Guadalupe 10.632 Piauí
Pontal 7.717 Pernambuco
Canal do Sertão 45.000 Bahia/Pernambuco
Nilo Coelho 22.957 Pernambuco
Salitre 26.206 Bahia
Baixio de Irecê 48.000 Bahia
Jaíba 24.745 Minas Gerais
Total 189 mil hectares
Fonte: Planalto, 2013.
Org.: DOURADO, J. A. L., 2013
No tocante à formalização das parcerias público-privadas, estas serão
desenvolvidas a partir de duas perspectivas: exploração agrícola e infraestrutura e
operação das áreas. A exploração agrícola refere-se ao direitoreal de uso da terra
conquistado pela empresa vencedora da licitação, permitindo-lhe sua exploração e
cobrança de tarifa de irrigação competitiva por um prazo de 45 anos. Em contrapartida,
deverá fazer a ocupação produtiva da área e garantir a integração, em área mínima de
25% do perímetro irrigado, com agricultores familiares.
137
138
Na Bahia, os recursos do Programa Mais Irrigação estão orçados em R$ 636,5
milhões, dos quais R$ 632,5 milhões serão investidos em nove Perímetros Irrigados:
Salitre, Formoso, Curaçá, Baixio de Irecê, Maniçoba, Estreito, Mirorós,
Mucambo/Cuscuzeiro e Iuiú. A Bahia concentra a maior parte dos investimentos da
CODEVASF, cujo montante de recursos destinado à irrigação é da ordem de R$ 1,6
bilhão, sendo responsável por 136,9 mil hectares de lavouras irrigadas dos 141,9 mil
hectares incluídos no programado do governo federal. Os 5 mil hectares restantes são de
responsabilidade da Secretaria Nacional de Irrigação (SENIR) do Ministério da
Integração Nacional (MI).
Para o Eixo 1, a CODEVASF investirá R$ 427,7 milhões, sendoR$ 222,7
milhões no Projeto Baixio de Irecê eR$250 milhões no Projeto Salitre, abrangendo um
total de 74,2 mil hectares. Destaca-se que há forte tendência ao incentivo à produção de
matéria-prima para atender ao mercado de agrocombustíveis, tanto no Baixio de Irecê
quanto no Salitre. O Projeto Pontal receberá R$ 166 milhões do PAC, direcionados à
produção de algodão, frutas, legumes e hortaliças, além da produção de leite e peixe.
Os recursos alocados para o Eixo 2 (Tabela 4) do Programa Mais Irrigação estão
voltados o fortalecimento e a reestruturação dos projetos de irrigação já existentes em
oito estados: Bahia, Minas Gerais, Ceará, Goiás, Tocantins, Rio Grande do Sul,
Roraima e Piauí, num total de 133 mil hectares. A Bahia ficará com R$ 62,2 milhões
direcionados para os seguintes projetos: Formoso (12.558 ha), Curaçá (4.345 ha) e
Maniçoba (5.006 ha). O projeto Formoso, localizado no município de Bom Jesus da
Lapa, ficará com R$ 29,3 milhões para a reabilitação da infraestrutura de irrigação de
uso comum do perímetro.
139
Tabela 4 - Eixo 2 – Implantação e Revitalização de Projetos de Irrigação
Projeto Extensão (ha) Estado
Passarão 1.000 Roraima
Tabuleiros Litorâneos 5.985 Piauí
Tabuleiros de Russas 6.376 Ceará
Maniçoba 5.006 Bahia
Curaçá 4.345 Bahia
Formoso 12.558 Bahia
Rio Formoso 28.500 Tocantins
Luís Alves do Araguaia 3.797 Goiás
Gorutuba 2.286 Minas Gerais
Jequitaí 18.000 Minas Gerais
Canal Jaguari 17.000 Rio Grande do Sul
Canal Taquarembó 15.000 Rio Grande do Sul
Arambaré 10.650 Rio Grande do Sul
Total 133 mil hectares
Fonte: Planalto, 2013.
Org.: DOURADO, J. A. L., 2013.
No eixo 3 (Tabela 5), estão concentrados os projetos de irrigação de
interesse social, ou seja, aqueles que não têm vocação para a expansão do
agrohidronegócio. Nesse eixo estão previstas ações de implantação e otimização de
perímetros irrigados destinados à produção familiar, perfazendo um total de 61 mil
hectares em 11 estados, dos quais 25 mil ha na região Nordeste.
Para a implantação e revitalização de perímetros irrigados, a CODEVASF
direcionará R$ 72,5 milhões para os Perímetros Irrigados de Mirorós (2.095 hectares) e
Estreito (2.735 hectares). Destaque-se que Mirorós entrou em colapso em 2012, devido
ao esgotamento hídrico da barragem de onde é captada a água para a irrigação, em razão
da exploração irracional de água pelos irrigantes. Durante a pesquisa de campo nos
municípios de Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique, um dos entrevistados, da CPT,
mencionou que há pretensão por parte dos irrigantes de Mirorós de se organizarem para
reivindicar lotes no projeto Baixio de Irecê, fato que, se concretizado, acirrará ainda
mais os conflitos pela terra e pela água.
140
Tabela 5 - Eixo 3 – Agricultura Familiar e Pequenos Irrigantes
Projeto Extensão Estado
Várzea de Flores 1.729 Maranhão
Ayres de Souza 615 Ceará
Araras Norte * Ceará
Icó-Lima Campos 4.263 Ceará
Várzea do Boi 630 Ceará
Santa Cruz do Apodi 26.732 Rio Grande do Norte
Pau dos Ferros 657 Rio Grande do Norte
Cruzeta 196 Rio Grande do Norte
São Gonçalo 2.404 Paraíba
Sumé 274 Paraíba
Moxotó 8.596 Pernambuco
Boa Vista 131 Pernambuco
Bebedouro * Pernambuco
Pariconha * Alagoas
Boacica 3.334 Alagoas
Itiúba 894 Alagoas
Delmiro Gouveia * Alagoas
Betume 2.865 Sergipe
Cotinguiba-Pindoba 2.237 Sergipe
Propriá 1.177 Sergipe
Manoel Dionísio * Sergipe
Jacaré-Curituba * Sergipe
Marreca-Jenipapo * Piauí
Mirorós * Bahia
Estreito 2.735 Bahia
Jonas Pinheiro * Mato Grosso
Itamaraty II * Mato Grosso do Sul
Fonte: CODEVASF, 2012.
Org.: DOURADO, J. A. L., 2013.
* Informação não disponibilizada pelos órgãos competentes.
O Eixo 4 (Tabela 6) compreende os estudos para a implantação de projetos de
irrigação. Serão contemplados 18 projetos, sendo 15 novos e 3 já implantados,
totalizando 155 mil hectares.
141
Tabela 6 - Eixo 4 – Estudos e Projetos
Projeto Extensão (ha) Estado
Baixada Maranhense 5.000 Maranhão
Boa Esperança/Rio Brasileiro 5.000 Maranhão
Tabuleiro São Bernardo * Maranhão
Salinas 2.000 Piauí
Platôs de Guadalupe – 3ª Etapa 5.000 Piauí
Ibicutinga 15.000 Ceará
Mendubim 8.300 Rio Grande do Norte
Vertente Litorânea 3.000 Paraíba
Eixo Norte – Trecho VI 34.000 Pernambuco
Canal Xingó * Pernambuco
Serra Negra 6.000 Pernambuco
Terra Nova 8.000 Pernambuco
Inhapi 4.300 Alagoas
Rio de Contas 2.000 Bahia
Mucugê-Ibicoara 3.000 Bahia
Iuiu 30.000 Bahia
Mucambo-Cuscuzeiro 6.000 Bahia
Imburuçu * Goiás
Fonte: Planalto, 2013.
Org.: DOURADO, J. A. L., 2013.
*Dados não informados.
Juntos, os perímetros irrigados de Baixio de Irecê e Salitre receberão R$ 472,7
milhões do PAC os quais se somarão aos investimentos privados. A cartografia das
ações do Programa Mais Irrigação revela haver uma sobreposição de investimentos por
parte do governo federal, com vistas a criar infraestrutura para viabilizar a subordinação
da agricultura familiar à lógica do mercado bem como expandir o agrohidronegócio a
partir dos perímetros irrigados. Nesse sentido, cabe destacar que se mudam as
nomenclaturas dos programas, todavia, ao observar a sua localização, percebe-se haver
uma fragmentação dos investimentos com o propósito de desviar o foco e favorecer
assim a implantação dos projetos sem maiores resistências. Os desdobramentos de tais
projetos são mutáveis e imprevisíveis porque o desenvolvimento geográfico desigual
está conformado de maneira a beneficiar os centros de acumulação de capital bem como
os atores hegemônicos que atuam para organizar as bases do sistema para viabilizar sua
reprodução.
A implantação do Programa de Bioenergia – BAHIABIO, assim como o
Programa Mais Irrigação, expressa a criação e a inserção de novos espaços com o
propósito de reproduzir as hegemonias de classe da burguesia agrária e industrial e o
142
contínuo fluxo de capitais, como estratégias para fugir das restrições e incertezas
intensificadas nos períodos de crise.
Para Harvey (2011, p. 174), é
também muito claro que a reprodução do capitalismo implica a
realização de novas geografias e que a criação de novas geografias,
por meio da destruição criativa do velho, é uma forma de lidar com o
problemapermanente da absorção do excedente de capital.
A adoção desse modelo de desenvolvimento para o Semiárido não considera a
necessidade de requalificar o debate sobre a questão agrária, sobre a estruturação das
políticas públicas e ações governamentais, bem como os referenciais adotados para a
conformação da dinâmica socioespacial. Esses referenciais devem ser colocados sob o
crivo da crítica para que algumas questões sejam superadas, como é o caso do simulacro
discursivo acerca do termo “desenvolvimento”. Mais uma vez, as fontes alternativas de
energia são desvirtuadas e passam a ser utilizadas como pano de fundo para a atuação
do grande capital, incorporando a ideia de sustentabilidade para camuflar os interesses
econômicos das corporações controladoras da produção de agrocombustíveis. Thomaz
Junior (2011, p. 316) chama atenção para o fato de que,
[...] ao mesmo tempo em que o capital impõe mudanças na matriz
energética dos países para prevalecer seus interesses econômicos,
estratégicos, logísticos, ele o faz através de princípios excludentes,
amplificando em demasia as desigualdades sociais, a concentração de
riqueza, de terra, de renda e de poder. As variações de lugar para
lugar, na adoção/sofisticação de formas regressivas, nas relações de
trabalho, na subordinação de camponeses e médios produtores à
sistemática oligopólica, evidenciam toda a indiferença do capital com
o meio ambiente, por meio das práticas destrutivas e degradantes que,
juntos, impactam profundamente nas formas de uso/ exploração do
território.
No que tange ao Nordeste semiárido, o Estado sempre adotou a postura de
enfrentamento em relação à semiaridez, considerando-a um problema a ser combatido
através da criação de “ilhas úmidas”, ou seja, os perímetros irrigados, enfeixando o
domínio simbólico e discursivo hegemônico materializado nas ações, intervenções e
programas de planejamento regional e, mais recentemente, de ordenamento territorial.
Em seu discurso durante o lançamento do Programa Mais Irrigação (13/11/2012), a
presidenta Dilma Roussef fez a seguinte afirmação:
Nós vamos derrotar a seca e vamos usar para isso o que existe de
melhor no mundo da tecnologia. Nós não vamos medir esforços. […].
A irrigação permanente e terras constantemente aproveitadas, sem
sombra de dúvidas, são a melhor resposta para seca também. Nós
queremos esse modelo bem sucedido e esperamos que ele se espalhe
143
pelo Brasil, recriando oportunidades de produção e esperança
(Informação verbal, 13/11/2012).
Resguardadas as devidas particularidades, o discurso da presidenta Dilma
Roussef deixa transparecer que há uma espécie de “Nova Aliança para o Progresso”70,
só que agora o ataque ao campesinato se efetiva via dependência do mercado, através de
sua inserção/integração ao modelo de produção pautado na lógica do agronegócio. O
problema a ser combatido continua sendo a seca, uma espécie de “coisa demoníaca”,
que se combate com a expansão de infraestrutura hídrica, na perspectiva de superar a
condição de “espaço periférico”, mediante sua inserção nas estruturas produtivas dos
setores agro-químico-alimentares-financeiros, como pressuposto do agrohidronegócio
(THOMAZ JUNIOR, 2009). À margem desse aspecto, que se refere diretamente à
dotação de fixos para viabilizar a territorialização do agrohidronegócio nas terras
semiáridas da Bahia, tem-se um outro, tão interessante quanto este, que é a diluição da
questão agrária na questão hídrica, ou seja, sob o ponto de vista econômico e social, os
problemas sociais do Semiárido deixam de existir no momento em que há a inserção dos
camponeses caatingueiros no universo do agronegócio.
Ao mesmo tempo, o Estado e o capital vão, sub-repticiamente, assumindo o
controle dos territórios camponeses, colocando-os à disposição do agrohidronegócio sob
os ditames de umas poucas empresas, que passam a concentrar sob seu domínio os
meios de produção, como bem exemplifica a presença da Agrovale no polo
Juazeiro/Petrolina.
Nessa mesma perspectiva de análise e concepção em relação aos problemas que
afetam o Semiárido, Elmo Vaz, o atual presidente da CODEVASF, durante o ato de
lançamento do Programa Mais Irrigação, ressalta que, com
os recursos previstos no programa Mais Irrigação, poderemos
alavancar e modernizar nossos projetos, além de implementar muitos
outros projetos de irrigação, e com isso aumentar muito a
produtividade dos perímetros – e, de alguma forma poder contribuir
para diminuir a desigualdade desse país (Informação Verbal,
13/11/2012).
70 Segundo Oliveira (2008), na década de 1960 o estadunidense Merwin Bohan elaborou um relatório intitulado
Northeast Team Survey Report, documento conhecido no Brasil como relatório Bohan, em que fazia
recomendações explícitas para conter o movimento das Ligas Camponesas. Esse programa foi dividido em
duas partes: a primeira consistia num programa de caráter eminentemente assistencialista, com o intuito de
desarticular e esvaziar politicamente o movimento das Ligas Camponesas. A segunda parte desse programa
referia-se a um programa de esvaziamento demográfico no Nordeste, com o propósito de minimizar as
pressões agrárias e urbanas, tudo isso elaborado com o intuito de evitar que o Nordeste caísse em mãos das
forças populares.
144
A análise dos referidos discursos permitem defini-los como uma síntese das
contradições que, há aproximadamente um século, vêm pautando as ações do Estado no
tocante ao enfrentamento dos resultados das secas, tidas como trágicas. Os desvios e
equívocos de tais políticas implementadas ao longo desse tempo revelam, entre outras
coisas, os limites das ações “desde sempre” adotadas para combater problemas atuais,
cujas arrumações feitas pelo Estado abrem espaço para a introdução de novas formas de
relação do camponês caatingueiro com a terra e a água.
A teia de relações que se tece a partir dos projetos implantados pelo Estado,de
um lado, traz em seu cerne a concentração de terras, devido à lógica do agronegócio e,
de outro, interfere diretamente na soberania dos camponeses caatingueiros, devido ao
fato de estes estarem atrelados à produção de produtos específicos, fato que vai de
encontro à sua maneira de trabalhar a terra, haja vista que a agricultura familiar no
Semiárido tem como um de seus pilares a policultura, associando a produção de
alimentos para o consumo interno com a produção de ração para os animais, utilizados
para o trabalho na agricultura. Tal surto de desenvolvimento por que passa o Nordeste
semiárido traz como resultado uma precarização existencial71do campesinato
caatingueiro, que perde seus referenciais sociais, culturais e econômicos, passando
repentinamente a integrar uma lógica avessa e alheia à sua vontade.
Ainda nesse universo, destaca-se a questão do trabalho, visto que a geração de
emprego é um dos elementos utilizados como instrumento de barganha, para justificar a
criação dos perímetros irrigados na região semiárida nordestina e, desta forma, evitar o
surgimento de movimentos de resistência aos processos desterritorializantes deles
decorrentes.
As visitas à área da pesquisa permitiram verificar que os empregos gerados a
partir da criação dos perímetros irrigados configuram-se como subempregos, cujas
relações de trabalho são extremamente precarizadas, colocando-se a necessidade de
repensar nas condições em que os trabalhadores da cadeia produtiva da fruticultura
irrigada participam do processo de criação de mercadorias (materiais ou imateriais) bem
como da geração de riquezas. Se por um lado os projetos de irrigação, através da
fruticultura irrigada, geram empregos, por outro trazem novos problemas como o
aumento significativo da população urbana, fenômeno detectado pelo Banco Mundial
(2004) em relação ao polo Juazeiro/Petrolina, cuja população não consegue ser
71 Termo tomado de empréstimo de Alves, 2013.
145
absorvida pela agricultura irrigada nem pelo setor de serviços relacionados ao
agrohidronegócio frutícola.
Cabe destacar que essa “modernização mercadológica” da agricultura coloca em
risco a saúde dos trabalhadores dos perímetros irrigados, em função da possibilidade de
contaminação dos trabalhadores devido do uso de agrotóxicos (inseticidas, acaricidas e
fungicidas), sem equipamento de proteção individual (EPI), revelando um dos lados
perversos do trabalho na fruticultura irrigada (Foto 6). Muitos dos agrotóxicos utilizados
nas lavouras dos perímetros irrigados são classificados como extremamente ou
altamente tóxicos: Classe I – Abamectina, Difenoconazol, Tepraloxidym, Diazinona e
Propiconazol –, extremamente tóxicos e Classe II – Cletodim, Carbofurano, Carbaril,
Flutriafol e Fenitrotiona – considerados altamente tóxicos.
Foto 6 – Trabalhador diarista pulverizando agrotóxico em lavoura de melão – Projeto Salitre.
Fonte: Trabalho de Campo, maio de 2013.
Autor: DOURADO, J. A. L. D.
Outro aspecto a ser retratado é a contaminação do solo e da água (superficial e
subterrânea) pelo uso de agrotóxicos e fertilizantes, colocando em risco a saúde das
populações camponesas próximas aos perímetros irrigados, ameaçadas pela
pulverização (aérea ou terrestre), pois muitas comunidades estão cercadas pelos
monocultivos de frutas. Rigotto et al. (2011) apresentaram importantes resultados de
146
uma pesquisa realizada no Baixo Jaguaribe, polo frutícola no estado do Ceará, fato que
nos coloca em alerta em relação à realidade do Submédio São Francisco, região onde
estão localizados diversos perímetros irrigados (polo Juazeiro/Petrolina). Pontes et al.
(2013, p. 3218) destacam que
[...] esses impactos não vêm sendo monitorados ou reconhecidos
pelas instâncias responsáveis no Estado; ocultar os agravos à
saúde, a precarização do trabalho e a contaminação ambiental
fazem parte da estratégia de sustentação desse modelo de
desenvolvimento.
A conformação das relações de trabalho e de produção no contexto do
agrohidronegócio da fruticultura irrigada, no Projeto Salitre, coloca como desafio a
necessidade de ir para além das aparências, de modo a desnudar o trabalhado estranhado
e fetichizado, tanto nas lavouras quanto no Centro de Abastecimento (CEASA), também
conhecido como Mercado do Produtor. No campo ou na cidade, verifica-se que os
empregos gerados a partir da fruticultura irrigada no Projeto Salitre são, em sua maioria,
informais, sendo os trabalhadores diaristas, oriundos das comunidades da bacia do rio
Salitre (os salitreiros) e das periferias de Juazeiro. Trabalho precarizado,
subcontratações, são algumas das formas que o capital e os proprietários de terras têm
utilizado para extrair mais-valia da força-de-trabalho, em sua maioria advinda do
campo, expulsa pelas políticas agrárias e agrícolas excludentes.
No maior polo frutícola do Nordeste brasileiro, o desrespeito às leis trabalhistas
e a absorção precária de mão de obra são aspectos recorrentes, trazendo à tona uma das
faces contraditórias do sistema sociometabólico do capital, ou seja, a produção de
riqueza e a supressão da pobreza, haja vista que os índices de produção e produtividade
alcançados nos perímetros irrigados da região do Submédio São Francisco são
utilizados para invisibilizar a massa de miseráveis que perambula pelas ruas do centro
da cidade de Juazeiro.
Ao visitar o Projeto Salitre e o CEASA, constatamos situações totalmente
inadequadas de trabalho, estando os trabalhadores, em sua maioria, expostos a riscos de
acidentes, de contaminação e desamparados pelos direitos trabalhistas. “Livres” do jugo
da terra e donos apenas da força de trabalho, muitos dos camponeses que migraram para
a cidade de Juazeiro ou Petrolina retornam, como trabalhadores diaristas ou
assalariados, aos perímetros irrigados ou ao Mercado do Produtor (Figura 1).
147
Figura 1 – Trabalhadores no Mercado do Produtor (CEASA) em Juazeiro (BA)
Fonte: Trabalho de Campo, 2014.
Autor: DOURADO, J. A. L.
Por outro lado, as formas pelas quais o atual reordenamento territorial do Semiárido
vem sendo constituído a partir da segurança hídrica, numa clara relação exteriorizada com a
natureza, desconsideram as práticas socioculturais, o trabalho na/com a terra, o simbólico e a
própria relação metabólica terra-água-trabalho materializada nos territórios semiáridos. A
cotidianidade do camponês caatingueiro que vive nas proximidades do rio São Francisco
expressa signos e significados, frutos de heranças culturais, tendo por elementos aglutinadores
o rio e a água como provedores da vida. Nesse sentido, as expressões culturais, as práticas
sociais envolvendo a agricultura e a pesca – uso e apropriação dos recursos dos territórios –
são mediadas pela convergência entre as relações afetivas, parentais e/ou através da própria
sociabilidade camponesa. No momento atual em que o Semiárido vivencia o expansionismo
do capital no campo, a introdução de novos costumes, funções e a disseminação de lógicas
totalmente distintas da realidade local colocam em risco as práticas de uso e a exploração dos
recursos naturais, baseadas em conhecimentos adquiridos através das relações cotidianas e
tidos como “bens comuns” aos sujeitos.
148
Embora reconheçamos que as relações estabelecidas pelos camponeses caatingueiros
são parte de um sistema dinâmico e mutável, faz-se necessário destacar que os projetos
desenvolvimentistas implantados no Semiárido baiano reconfiguram, de modo acelerado, as
relações sociais e os usos do território, baseados no pertencimento, disseminando a concepção
da produção de bens de troca. A água, o rio, a pesca (Foto7), a agricultura (Foto8), no
contexto do “progresso” e da modernização do território, ganham um caráter mercadológico,
ao passo que, para as populações tradicionais, esses elementos integrados ao sistema de
relações passado-presente têm o papel de garantir a manutenção da identidade, dos saberes
ancestrais e até mesmo a possibilidade de reconstruir, a partir de parâmetros e princípios
endógenos, a tessitura e a gestão do território que habitam. Ao que se apresenta nesse cenário
de aceleradas transformações socioespaciais, a reapropriação social da natureza, de que nos
fala Leff (2006), tem sido colocada em risco pelos megainvestimentos feitos pelo Estado,
interferindo sobremodo no conjunto de práticas relacionadas ao modo de pensar, produzir e
ocupar o território pelas populações sertanejas, num processo de reedição de valores que
atentam contra a identidade territorial dos camponeses caatingueiros.
Foto 7 – Camponês durante a pesca no rio São Francisco - Comunidade do Roçado,
município de Xique-Xique (BA).
Fonte: Pesquisa de Campo, abril de 2013.
Autor: DOURADO, J. A. L.
149
Foto 8 – Camponês em seu roçado de mandioca e melancia às margens do rio São Francisco –
Comunidade de Roçado, Xique-Xique (BA).
Fonte: Pesquisa de Campo, abril de 2013.
Autor: DOURADO, J. A. L.
Para o camponês caatingueiro, terra e água não constituem unicamente recursos
naturais: estão para além disso, pois representam terra de trabalho e água de trabalho.
Sua existência possui íntima relação com esses bens naturais: é deles que advém o
sustento econômico de sua família, são eles os elementos que compõem a sua
identidade. O tempo e o uso dos espaços estão atrelados ao universo simbólico “terra-
água”, com reflexos na organização do roçado, nos apetrechos de pesca, nas relações
com seus pares, entre tantos outros exemplos, expressando haver, por parte das
populações camponesas do Semiárido, uma “mistificação da água”, cujo contexto deve
ser analisado a partir das relações intersubjetivas e das trocas de saberes envolvendo
esses bens naturais – terra e água. A identidade construída a partir das interações entre
os ciclos físicos (estiagem e chuva) e as construções simbólicas (práticas socioculturais,
mitos e interações físico-sociais) confere aos camponeses e à Caatinga uma riqueza e
uma complexidade existencial não consideradas pelas políticas de desenvolvimento
150
territorial. A Caatinga deve ser compreendida a partir de suas feições geográfica,
climatológica, geológica, econômica e social, de modo a fomentar a desconstrução
discursiva da seca como tragédia climática, entendendo-a como um fenômeno social.
De acordo com Carvalho (2012, p. 95), a água
adentra como um elemento repleto de significação para a elaboração
da territorialidade sertaneja, uma vez que, por si mesma, é um
elemento que carrega toda uma simbologia que regula o universo
material e imaterial das populações em todo o mundo.
O camponês caatingueiro que vive às margens do rio São Francisco não vivencia
a seca como escassez hídrica porque as áreas de cultivo estão relacionadas ao regime do
rio – cheia e vazante. Além do mais, o ciclo das águas do rio representa um agente
delimitador do que e ondese planta. Por outro lado, esse mesmo sujeito sofre os efeitos
discursivos e político-ideológicos da seca devido aos diversos projetos implantados ao
longo de toda a bacia do rio São Francisco, tendo, como resultados, transformações nas
atividades socioeconômicas, culturais, perda dos referenciais históricos e geográficos.
Associados a esses efeitos, tem-se ainda a ruptura da relação metabólica terra e água,
sendo essa um aspecto gerador de conflito entre os camponeses do Semiárido e os
setores do capital.
A questão agrária no vale do rio Salitre se associa aos conflitos pelo acesso à
água, revelando o caráter contraditório da lógica de acumulação privada, tanto da terra
quanto água, de modo que há uma concentração dos proveitos (os perímetros irrigados)
e a socialização dos rejeitos (a degradação dos recursos naturais e a exploração do
trabalhado, o subemprego). De fato, o constante movimento expansivo do capital no
baixo Salitre tem levado a um o processo de estranhamento dos homens em função das
mediações de segunda ordem, como bem destaca por Mészáros (2007). Dentro desse
emaranhado de relações/mediações, há uma obnubilação da subjetividade do camponês
caatingueiro bem como do trabalhador da fruticultura irrigada os quais, em virtude dos
apelos do capital e do Estado, acabam por incorporar um discurso favorável aos
empreendimentos relacionados à infraestrutura hídrica no Semiárido. Durante as visitas
às comunidades nos meses de abril e maio de 2013, constatou-se que surgem novos
fetiches relacionados tanto ao consumo quanto às sociabilidades que passam a ser
direcionadas/reconstruídas a partir de referenciais bem consolidados, expressos pela
relação sociedade-natureza. Tais desdobramentos revelam a importância do pesquisador
fazer imersões na área a ser analisada, para estabelecer contato direto com os sujeitos da
151
pesquisa bem como observar a paisagem (cenário) e seus elementos, concordando com
Thomaz Junior (2005, p. 39) quando este afirma ser o trabalho de campo um
“laboratório geográfico por excelência”.
2.5 – As águas do Semiárido brasileiro correm para o mercado global
O novo cenário agrário/agrícola do Semiárido revela que o capital agroindustrial
continua sua expansão pelo campo brasileiro, com o objetivo de (re)organizar os
territórios, de modo que estes possam ser ocupados com atividades favoráveis à sua
reprodução ampliada. Os redimensionamentos em curso são parte integrante da
reestruturação produtiva do capital no setor agrícola, num processo de forte dependência
ao setor industrial, mediante a mecanização do campo e a utilização intensiva de
insumos agrícolas. Esse fenômeno não ocorre de forma homogênea no território, cujas
contradições desencadeiam conflitos territoriais devido às divergências de modelos e
projetos de desenvolvimento entre os diversos sujeitos que compõem o mosaico sócio-
político e cultural do Semiárido.
Se a expansão do agrohidronegócio representa a modernidade em terras até
então fadadas ao atraso, a contraposição à rusticidade do ser e do lugar revela, por outro
lado, como o Estado e o capital atuam, conjuntamente, para colocar em execução
projetos destinados à agricultura irrigada visando a atender ao mercado externo. Não se
trata apenas de questões conjunturais que se apresentam no horizonte como desafiadoras
e merecedoras de uma profunda análise. A manutenção das velhas relações de poder e
subserviência e o papel do Sertão da divisão territorial do trabalho revela que o “novo”
projeto desenvolvimentista posto em execução nessa fração da região Nordeste traz em
seu cerne os ranços de outros contextos históricos, cujos desdobramentos foram o
fortalecimento das desigualdades sociais e a manutenção do status quo.
Para Ab’Saber (1999, p. 7), conhecer
mais adequadamente o complexo geográfico e social dos sertões secos
e fixar os atributos, as limitações e as capacidades dos seus espaços
ecológicos nos parece uma espécie de exercício de brasilidade, o
germe mesmo de uma desesperada busca de soluções para uma das
regiões socialmente mais dramáticas das Américas. O Nordeste seco.
Os investimentos feitos em obras voltadas à criação de uma infraestrutura
hídrica na região semiárida evidenciam a ineficácia do Estado no tocante à resolução de
uma questão estrutural para as comunidades camponesas, o acesso à água
historicamente represada e protegida pelas cercas, resquício de “uma estrutura agrária
152
particularmente perversa” (AB’SABER, 1999, p. 7) que perdura até os dias atuais.
Desde sempre, as obras realizadas pelos órgãos do governo, como a
CODEVASF e o DNOCS, provocaram intensos processos de desterritorialização e
“descampesinização” (CARVALHO, 2005),abrindo espaço para a desestruturação dos
territórios comunitários e a reorganização do espaço para o capital financeiro sob o
domínio dos conglomerados agro-químico-alimentar-financeiros. Entendemos por
descampesinização, as alterações ocorridas a partirda implantação dos perímetros
irrigados voltados para a agricultura modernizada baseada no uso intensivo de
agrotóxicos, na produção de mercadorias para o mercado e no trabalho assalariado,
levando assim a uma ruptura de práticas agrícolas fundamentadas em saberes
tradicionais. Nas áreas que antes eram utilizadas para a produção de alimentos para o
sustento familiar, passa a predominar a produção regida pela lógica do mercado,
promovendo profundas transformações na paisagem e fomentando o surgimento de
conflitos em os diferentes sujeitos que produzem o território. Urge alterar essa maneira
de conceber a conformação do pensamento genérico acerca da política de irrigação
implantada no Nordeste porque nela o controle da água, como instrumento de
empoderamento social, não é evidenciado, haja vista que isso poderia causar
desdobramentos políticos indesejáveis e induzir ações contrárias aos discursos imbuídos
de intento de naturalizar a falta de acesso à água e de deslegitimar os conflitos
relacionados ao seu uso e controle.
Grandes áreas do Semiárido brasileiro foram modernizadas mediante a
tecnificação do território, assumindo papel de destaque no cenário nacional, como
grandes produtoras de frutas tropicais direcionadas ao mercado internacional. O
slogan“desenvolvimento” impele o capital, em sua marcha expansionista destrutiva,
sobre os vales férteis que outrora eram ocupados pela agricultura camponesa, tendo
como pano de fundo o “progresso” trazido pelo capitalismo triunfante. A conformação
do Semiárido como fronteira agrícola para a fruticultura irrigada se expressa através das
muitas áreas nas quais o agronegócio impera e, junto com ele, toda uma teia de relações
de poder, dominação e articulações políticas e ideológicas, no intuito de consolidar as
suas bases e perpetuar as desigualdades sociais.
O agrohidronegócio tem expandido seus tentáculos em todos os biomas
(Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, ambientes costeiros,Pantanal, Pampa e Amazônia),
na busca de apropriação da água, justamente nos lugares onde o seu acesso e a
propriedade da terra não representem custos elevados. Terras planas, fertéis, mão de
153
obra disponível e barata, associada à disponibilidade hídrica tornam-se atrativos para os
investidores que buscam condições adequadas para suas atividades econômicas. Além
dos impactos verificados na modernização das forças produtivas, tem-se uma
reorganização socioeconômica em função da expansão das atividades agroindustriais,
sendo marcantes as disputas (intra e intercapital) sobre uma mesma porção territorial.
No Centro-Sul do Brasil, mais especificamente, no Polígono do Agrohidronegócio72, a
grilagem de terras tem constituído um componente político importante para viabilizar a
agricultura baseada no modelo agroexportador-monocultor, cujo papel é o de
legitimar/legalizar o grilo no contexto da requalificação da dinâmica expansionista do
agronegócio canavieiro. Segundo Thomaz Junior (2010a, p. 103-4), outro
dispositivo também importante em relação às disputas que
requalificam a dinâmica expansionista do agronegócio canavieiro tem
a ver com a garantia de terras para a produção da matéria-prima. Os
expedientes que emprega contemplam a formalização de contratos de
parceria e de compra e venda, com proprietários regulares, via de
regra pecuaristas decadentes, mas seus responsáveis também estão
apostando no futuro do empreendimento como um todo, através da
tentativa de legitimar grandes extensões de terras devolutas, com
pendências jurídicas e improdutivas, o que se efetiva por meio de
contratos de arrendamento, pois, assim dividem os “riscos” com os
grileiros, usufruem dos preços mais baixos e podem contribuir para a
regularização dessas terras, o que lhes garantirá prioridade na sua
aquisição, depois de regularizadas juridicamente, mediante a vidência
do Decreto 578.
A reestruturação espacial do capital vem promovendo a inserção de novos
lugares, inclusive de regiões pouco desenvolvidas economicamente, em seu circuito de
reprodução, assumindo, em muitos casos, um caráter “civilizatório”. Essa mobilidade
leva em consideração diversos aspectos, como a existência de mão de obra barata
disponível, infraestrutura adequada, recursos hídricos e o apoio por parte do Estado para
evitar movimentos contrários à presença do grande capital na região. Na busca por
lugares com as condições favoráveis à reprodução do lucro e à geração de riquezas, o
capital tem gerado disputas nos mais diferentes ambientes, ao avançar por territórios sob
o domínio de camponeses e de populações tradicionais, como destacam Siqueira e
Zellhuber (2006, p. 112), ao afirmarem que a
causa geradora destes conflitos, no fundo, é a lógica capitalista do uso
dos chamados "recursos hídricos", que pode ser resumido como
72 Thomaz Junior (2010a) faz uma discussão sobre os conflitos territoriais decorrentes da expansão das plantas
processadoras e agroindustriais do setor canavieiro no Pontal do Paranapanema (SP), colocando em evidência
as estratégias utilizadas pelo capital, em seu processo expansionista, para ter acesso e controle sobre as terras
férteis e planas e com disponibilidade hídrica, aptas à mecanização.
154
hidronegócio, termo que engloba todos os tipos de negócios que se
fazem hoje com a água ou relacionados a ela. É pelos caminhos das
águas que avança o capital no campo, interferindo, ocupando e
remodelando o espaço antes de posse e uso tradicional de
comunidades indígenas, quilombolas, extrativistas, agroextrativistas.
As principais faces do hidronegócio podem ser resumidas na produção
de energia hídrica, irrigação, carcinicultura (criação de camarão, que
consome 50 mil litros por quilo), saneamento ambiental, água
engarrafada. Como um país de grande potencial hídrico e agrícola,
relativamente pouco utilizado até agora, o Brasil tende a se tornar,
cada vez mais, grande exportador de água em produtos agrícolas e
agrocombustível (etanol e agrodiesel). E não está fora de cogitação a
privatização dos serviços de água e esgoto, através das Parcerias
Público-Privadas (PPPs).
Na Bahia, um dos exemplos emblemáticos desse fenômeno é a produção de
eucalipto, introduzida na década de 1980. Desde então, tem ela avançado sobre o
Extremo Sul, causando profundas transformações socioespaciais (uso da terra e da água,
expansão urbana, concentração fundiária, redução dos postos de trabalho no campo,
migração campo-cidade, entre outros), muito embora as atividades tradicionais, como a
pecuária, a agricultura para o autoconsumo e a pesca, continuem a desempenhar papel
importante para região. A territorialização de empresas, como a Veracel, Bahia Sul e
Aracruz, além das mudanças na paisagem, introduziu o Extremo Sul Baiano na
dinâmica econômica nacional e internacional, desencadeando, segundo Pedreira (2004),
a desestruturação da produção camponesa e a migração para a cidade. Inicialmente,
houve um crescimento significativo de postos de trabalho, devido à necessidade de mão
de obra para a instalação das plantas industriais e para o cultivo dos bosques, ocorrendo
posteriormente uma queda vertiginosa na quantidade de empregos, como demonstram
Almeida et al. (2008, p. 14), ao afirmarem que houve “crescimento no número de
empregados temporários entre 1970 a 1985 de 225%, saindo de 7.105 em 1970 para
23.111 trabalhadores em 1985. Já em 1995 esse número cai para 2.398 trabalhadores, ou
seja, uma redução de 863%, comparando-se com os anos de 1985 e 1995”.
A territorialização do grande capital em terras do Semiárido nordestino
configura novas paisagens, cria “ilhas” de crescimento econômico, modifica
culturalmente os lugares a partir da inserção de novas relações econômicas, sociais e de
trabalho, num intenso processo de des-re-territorialização. Soja, eucalipto, frutas, cana-
de-açúcar, camarões, e oleaginosas para a produção de agrocombustíveis têm avançado
sobre os territórios camponeses, indígenas e quilombolas, ocasionando conflitos e danos
155
socioambientais sem precedentes na história agrária brasileira. Tal afirmação pode ser
elucidada se observarmos os dados disponibilizados pelo Caderno de Conflitos no
Campo 2012 (CPT, 2012, p. 26-7), onde se verifica que, dos 63 conflitos por terra no
estado da Bahia, 20 estão relacionados à construção da Ferrovia de Integração Oeste-
Leste (FIOL), destinada ao escoamento da produção de soja (Tocantins e Oeste baiano)
e de minério de ferro no Semiárido baiano (município de Caetité), cuja exploração seria
feita pela empresa Bahia Mineração (BAMIN).
Grandes extensões dos vales dos rios e dos perímetros irrigados no Semiárido
estão sob o domínio do agrohidronegócio. Nessas áreas predominam a monocultura, a
concentração de terras, o trabalho precarizado nas lavouras e nas agroindústrias e o uso
intensivo de agrotóxicos. Vale do Rio Açu (RN), Mossoró (RN), Baixo Jaguaribe (CE)
e região do Médio São Francisco (BA) ganharam notoriedade pelo fato de
transformarem-se num“mar verde” em pleno Semiárido. Conforme destaca Gomes
(2010, p. 61), como
consequência da territorialização do capital no campo, há um
incremento da oligopolização do espaço agrícola brasileiro,
acompanhado de um paralelo processo de fragmentação deste,
culminando numa nova divisão territorial do trabalho diretamente
relacionada ao setor agrícola.
Na Bahia, tanto a atuação do DNOCS quanto da CODEVASF tiveram como
desdobramentos a criação de vários projetos de irrigação, principalmente no vale do rio
São Francisco, num processo de reorganização socioespacial a partir de lógicas
totalmente alheias à realidade local. Atualmente, dois grandes empreendimentos na área
de irrigação vêm sendo implantados na região do vale do São Francisco, mais
especificamente no Médio São Francisco, fatos que demonstram que a política de
irrigação no Semiárido ainda continua com força, embora tenha sofrido algumas
mutações, devido ao processo de reestruturação produtiva do capital. Além das obras da
transposição do rio São Francisco, os projetos de irrigação do Baixio do Irecê (BA), do
Projeto Salitre, em Juazeiro (BA), representam, segundo o discurso do Estado, a
locomotiva desenvolvimentista para a região, mediante a oferta de emprego e a
superação da miséria, discurso exaustivamente utilizado quando o que está em jogo são
os interesses do grande capital. Deste modo, a
espacialização dos perímetros irrigados e das plantas
agroprocessadoras de frutas e das monoculturas, demonstra o
movimento do capital no Semi-árido nordestino, evidenciando as
regiões onde o capital concentra suas ações de maneira intensificada e
156
articulada, com o propósito de reproduzir-se. A eleição dessas áreas
não se trata de um movimento despretensioso ou “natural”. Trata-se
de um conjunto de estratégias, na busca incessante pelo acesso e
controle da água. (DOURADO, 2011, p. 116).
A expansão das áreas irrigadas no Semiárido baianotraz elementos para análise
das controvérsias que perpassam a modernização desse território na perspectiva do
agrohidronegócio, porque os prejuízos são socializados e a riqueza concentrada, com a
formação de cidades-polo como é o caso de Juazeiro. Os hidroterritórios (TORRES,
2007) se constituem num ambiente conflituoso, porque colocam em disputa modelos de
desenvolvimento antagônicos, revelando as urdiduras do capital e do Estado para
garantir o controle de áreas com abundância hídrica. Mesmo com todo o aparato
midiático, aspersonas do capital não conseguem camuflar o fato de que a criação dos
perímetros irrigados acaba fomentando a plasticidade e a mobilidade do trabalho, tanto
nas comunidades próximas à sua localização quanto na cidade. A demarcação de
territórios pelo capital em função da disponibilidade de água é uma realidade neste
limiar de século XXI, com sérios agravos para os milhões de miseráveis de todo o
mundo e, principalmente,da América Latina, a quem foi atribuída a responsabilidade de
prover a manutenção do “desenvolvimento” do restante do planeta devido à riqueza de
sua sociobiodiversidade. Harvey (2011, p. 147) defende que o
direito a participar na construção da geografia do capitalismo é (...)
um direito em disputa. Embora as relações de poder na atual
conjuntura favoreçam, sem dúvida, a combinação de capital e Estado
sobre todo o resto, há importantes forças de oposição. E tanto o capital
quanto o Estado hoje estão na defensiva, suas alegações de que para o
benefício de todos estão criticamente desacreditadas, assim como suas
alegações de que são os benfeitores da humanidade como agentes da
acumulação do capital baseada no mercado.
Nos Brasil, os conflitos por água eclodem em todos os lugares, até mesmo em
regiões com grandes rios, como é o caso da região Norte, colocando a necessidade de
repensar o paradigma vigente do “desenvolvimento” e “modernidade”. O Semiárido,
com sua histórica escassez hídrica, não tem constituído um fator limitante para o grande
capital, haja vista que a seca possui gradações diferenciadas de influência na vida dos
sujeitos que compõem o mosaico social, político, econômico e cultural do Sertão.
Para os detentores do capital, o Semiárido representa uma oportunidade ímpar de
ampliação dos lucros e da extração de renda e riqueza,pois se utilizam de expedientes
para garantir seus propósitos, tais como velhas estruturas e ideias que, ao serem
reformuladas, transformam-se em elementos sustentadores da barbárie instalada.
157
Nesse contexto, a geograficização da expansão do agrohidronegócio no
Semiárido deve representar uma possibilidade de cindir as “subtotalidades” locais, de
modo a dotá-las de valores e elementos que permitam pensar a modernização do
território a partir de uma lógica que não seja baseada na concepção equivocada do
agronegócio, como o único meio de promover o desenvolvimento do campo. O modus
vivendi dos múltiplos sujeitos que compõem os territórios do Semiárido não deve ser
desconsiderado na luta contra o capital, mesmo que, nesse embate de forças desiguais, o
agrohidronegócio busque, através do apoio do próprio Estado, (des)construir uma nova
racionalidade da água, atribuindo-lhe valor econômico em detrimento de todo o legado
simbólico-cultural que os camponeses caatingueiros trazem em suas relações sociais.
158
CAPÍTULO III
TRAMAS DO AGROHIDRONEGÓCIO E A QUESTÃO AGRÁRIA NA BAHIA
A terra é, pois, um instrumento de trabalho
qualitativamente diferente de outros meios
159
de produção. Quando alguém trabalha na
terra, não é para produzir a terra, mas para
produzir o fruto da terra. O fruto da terra
pode ser o produto do trabalho, mas a
própria terra não o é. (MARTINS, 1990, p.
159-160).
Este capítulo aborda questões relacionadas à estrutura fundiária da Bahia e, de
modo particular, como ocorreu o processo de apropriação de terras nos vales dos rios
Jacaré e Verde e os vínculos desse processo com os conflitos motivados pelo acesso à
água. Buscamos fazer um resgate histórico da estrutura fundiária da região que abrange
os municípios de Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique, com o propósito de conhecer a
origem das terras onde esta sendo implantado o Projeto de Irrigação Baixio de Irecê,
para verificar a veracidade das acusações de grilagem de terras ocorrida nessa região.
Ademais, serão evidenciadas as estratégias utilizadas pelo Estado para viabilizar o
acesso à terra e à água por parte dos agentes do capital, colocando em destaque as
disputas territoriais e de classes no campo, a partir da constituição do Polígono do
Agrohidronegócio na Bahia.
3.1 Tramas do Agrohidronegócio e reorganização territorial do Semiárido baiano
O desafio de analisar a conformação do agrohidronegócio exige conceber tal
processo numa perspectiva integradora, tanto do ponto de vista de sua espacialização e
materialização no território quanto em suas articulações político-ideológicas porqueo
mesmo se encontra envolto no manto desenvolvimentista cujo caráter “civilizatório”
exige que o espaço seja reorganizado para viabilizar sua expansão destrutiva. O
fenômeno expansionista do agrohidronegócio abrange múltiplas questões, desde a posse
da terra até os efeitos destrutivos da intensificação da exploração e precarização do
trabalho, num ambiente cuja aura reluz modernidade, eficiência e desenvolvimento.
Irrefreável, o capital, em sua mobilidade destrutiva, vai costurando o tecido espacial
para criar as condições necessárias à sua territorialização, numa meticulosa articulação
envolvendo o Estado e as elites regionais, de modo a criar vínculos locais para facilitar
seu estabelecimento numa dada região.
Os vínculos locais são necessários porque contribuem para que as metas, planos
160
e programas sejam alcançados, ao passo que a movimentação do capital pelo espaço
reflete uma tendência mundial de seu metabolismo social em marcha para as áreas ainda
pouco exploradas e/ou com um potencial promissor para a produção de mercadorias.
Sob o escopo de gerar riquezas, emprego e renda, o capital disputa territórios com
camponeses e populações tradicionais, agora conclamados a “usufruírem” dos
benefícios do mundo moderno e de todas as (des)realizações inerentes à realidade atual
em que predominam as relações capitalistas de produção (e de descarte dos
trabalhadores), cujos valores éticos e morais passam a ser monetarizados e definidos em
função do lucro. De maneira geral, a territorialização do capital nos lugares é marcada
inicialmente pelo aumento do número de empregos (fase inicial de implantação dos
canteiros de obras e das plantas agroprocessadoras) e, em seguida, pela sua consequente
e imediata redução, num fenômeno caracterizado pela dilatação-contração do mercado
de trabalho. O discurso respaldado na geração de emprego e renda é uma base
importante para convencer as populações locais sobre os benefícios advindos da
chegada do “estranho”.
Nesse universo marcado por profundas contradições e pela reificação das
relações sociais de produção ante à falsa ideia de “autonomia” atribuída ao capital, faz-
se urgente debruçarmos sobre os espaços de expansão do agrohidronegócio na região
Nordeste do Brasil e, de modo particular, no Semiárido baiano, por entendermos que tal
fenômeno sublima o paradigma desenvolvimentista e fortalece, entre os sujeitos, a
concepção de inevitabilidade do progresso sob os moldes atuais, com profunda aversão
aos modos de vida (e expressões do trabalho) que fogem radicalmente das formas
(des)realizadas do trabalho cujo modelo colonial de apropriação e organização espacial
gera disputas territoriais e de classes.
Na atual configuração do agrário brasileiro, a hegemonia do “latifúndio
moderno-colonial” (PORTO-GONÇALVES; CUIN, 2013, p. 18) tem sido sustentada
por políticas públicas voltadas para garantir a segurança hídrica bem como para criar as
condições de acomodação das plantas agroprocessadoras e facilitar o escoamento da
produção.Se por um lado o Estado atua no sentido de absolutizar a importância da
modernização da produção agrícola, enfrenta, em contrapartida, resistência às ações levadas a
cabo para eliminar as formas de produção e de ocupação do espaço pautadas em pressupostos
obstaculizantes ao desenvolvimento das forças produtivas no campo. Thomaz Junior (2010, p.
97) ressalta que de
[...] forma consorciada, dispor de terra e água, mais ainda, controlá-
161
las,possibilita ao capital condições para a prática da irrigação, o que
reforça e intensifica a expansão territorial sobre as melhores terras
para fins produtivos. Ou seja, o acesso às terras, seja pela titularidade
(legal ou grilada), seja por meio de contratos de arrendamento etc., é a
garantia que o capital, identificado como agronegócio (grandes grupos
econômicos nacionais e transnacionais), requer para reproduzir-se e
apropriar-se dos meios de produção e controlar o tecido social,
mediante o acionamento dos dispositivos das esferas da produção, da
circulação, da distribuição, do consumo, bem como especulativos.
No centro desse fenômeno estão as ações que colocam em trincheiras opostas
trabalhadores versus capital, revelando as fissuras no interior das políticas públicas e
dos projetos desenvolvimentistas executados pelo Estado. Na rota do desenvolvimento
estão populações tradicionais, camponeses, indígenas, entre tantos outros sujeitos,
considerados “opositores bárbaros” ao processo expansionista do capital em sua
tentativa de controlar as terras planas, férteis e com disponibilidade hídrica, como é o
caso das áreas onde estão localizadas as dezenas de perímetros irrigados no Semiárido
nordestino, revelando “[...] o conteúdo e os significados do processo expansionista do
agronegócio em geral.” (THOMAZ JUNIOR, 2010a, p. 96).
A territorialização do agrohidronegócio dá-se a partir de uma perspectiva
desintegradora. O start inicial desse fenômeno representa uma evolução do
agronegócio, com dependência direta dos recursos hídricos em decorrência da
commoditização da agricultura, inclusive de regiões até recentemente ocupadas com
lavouras para o autoconsumo. Terra e água são, no contexto da agricultura modernizada,
indissociáveis para a racionalidade do capital, cuja expansão vem ocorrendo por áreas
historicamente caracterizadas por déficit hídrico, fazendo aflorar, em meio à região
semiárida, verdadeiros oásis com uma agricultura irrigadatecnificada. Já na década de
1970, vales e chapadas em toda a extensão semiárida, desde Minas Gerais até o
Maranhão, foram alvos de investimentos públicos que promoveram uma valorização das
terras e despertaram o interesse do capital (agora financeiro e transnacionalizado).
Inicialmente a preocupação era liberar a terra sob o jugo da agricultura camponesa,
utilizando para tanto medidas legais, como é o caso da Política Nacional de Irrigação
que não contempla a construção de perímetros irrigados para reforma agrária.
Com a consolidação da irrigação no Nordeste semiárido e em virtude da própria
mobilidade do capital em busca de novas áreas a serem incorporadas ao processo
produtivo, houve alterações profundas na dinâmica territorial das regiões onde estão
localizados os perímetros irrigados. Os impactos são os mais diversos, encimados na
162
supervalorização da geração de emprego e renda, enquanto outros efeitos foram, em
contrapartida, invisibilizados e somente agora passaram a ser mensurados, como o uso
intensivo de agrotóxicos e todos os perigos decorrentes dessa prática (surgimento de
doenças, contaminação da água), danos ambientais, segregação socioespacial,
flexibilização e precarização das relações de trabalho, especulação imobiliária, entre
tantos outros. Sobre os desdobramentos negativos do atual modelo de agricultura em
franca ascensão no Semiárido nordestino, Rigotto et al. (2013, p. 67) relatam que o
uso intensivo de agrotóxicos é consequência da forma de produção do
agronegócio que parte do desmatamento e da destruição da
biodiversidade dos biomas para implantar o monocultivo de
commodities em grandes extensões, através da imposição de intenso
ritmo de produção à terra. Faz parte das transformações em curso nos
processos de produção e nas relações de trabalho no campo, a partir da
mecanização agrícola, da superexploração da força de trabalho e da
introdução da biotecnologia com organismos geneticamente
modificados, como é o caso dos transgênicos. Fortemente apoiado
pelas políticas de desenvolvimento agrícola dos governos
(financiamento, infraestrutura, flexibilização da legislação,
impunidade, entre outros), este complexo de sistemas agrícolas,
industriais, de mercado e financeiro controlado por corporações
transnacionais, gera impactos que repercutem sobre toda a população
brasileira.
Os resultados das pesquisas realizadas por Rigotto et al. (2011, 2012) no estado
do Ceará, mais especificamente no município de Limoeiro do Norte, Chapada do Apodi,
são bastante emblemáticos sobre os efeitos nefastos do agronegócio para o ambiente e
para a saúde dos trabalhadores e da população que vive no entorno dos perímetros
irrigados. O atual modelo de agricultura privilegiado pelas políticas públicas e projetos
desenvolvimentistas postos em execução no Semiárido corrobora o papel assumido pelo
Brasil no cenário mundial, como um dos maiores produtores de commodities para
exportação, num contexto de dominação do capital transnacional, altamente vinculado
aos “conglomerados agro-químico-alimentares-financeiros.” (THOMAZ JUNIOR,
2010d, p. 98). De modo marcante, o agrohidronegócio tem provocado movimentos de
territorialização, desterritorialização e reterritorialização do trabalho, no campo e na
cidade, colocando inúmeras travagens para os trabalhadores e camponeses que passam a
sofrer os efeitos da superexploração da mão de obra, bem como a dissolução de modos
de vida tradicionais frente à imposição de novas relações fundamentadas na produção de
mercadorias e na extração da mais-valia.
Muitos camponeses desterreados pela implantação dos perímetros irrigados
acabam retornando a esses mesmos espaços, agora como mão de obra assalariada, fato
163
verificado nas comunidades do Baixo Salitre, em Juazeiro. Isso, por sua vez, não ocorre
mediante a posse da terra, dando-se exclusivamente através da venda diária da força de
trabalho. Um segundo grupo consegue inserir-se nos perímetros irrigados através dos
processos seletivos, tornando-se irrigantes. Algum tempo depois, porém, muitos, não
conseguindo adaptar-se à agricultura irrigada sob os moldes empresariais, acabam
desistindo dos lotes. Sobre essa questão, Pontes et al. (2013, p. 3217) reforçam que os
camponeses,
expropriados de suas terras por conta da pressão exercida pelos
latifundiários, veem-se diante da alternativa infernal de aceitar o
emprego oferecido na grande empresa, passando de trabalhadores
autônomos para assalariados do agronegócio. Evidencia-se ainda a
sazonalidade nos vínculos trabalhistas, com contratos que duram
somente seis meses, correspondentes ao período da plantação até a
colheita dos frutos, momento em que a empresa necessita de mais mão
de obra. Ao final desse período, grande parte dos trabalhadores é
demitida, configurando-se assim uma - força de trabalho descartável.
Há também aqueles que retornam aos territórios do agrohidronegócio (leia-se
perímetros irrigados) na condição de acampados, fato que revela a pluralidade de
fenômenos no âmbito da questão agrária no Semiárido nordestino, conforme detectamos
no Projeto Salitre, através do acampamento Abril Vermelho. As ocupações feitas pelos
camponeses nos perímetros irrigados revelam as tensões, fissuras e conflitualidade no
cerne dos projetos desenvolvimentistas executados pelo Estado, revelando também o
caráter destrutivo do sistema de acumulação capitalista.
Devido à revalorização da agricultura irrigada pelo Estado nos anos de 1990,
ocorreu o resgate dos projetos hídricos no Semiárido brasileiro com a construção de
diversos perímetros irrigados e a modernização de muitos já existentes, por meio de
vários programas governamentais como o PAC. Nesse contexto, terra e água assumem
conotações antagônicas para camponeses e para empresas do setor frutícola,
representando para os primeiros, terra e água de trabalho, ao passo que, para o segmento
empresarial, trata-se de uma forma de obtenção de lucros e extração de mais-valia,
mediante a subtração das riquezas oriundas da exploração da força de trabalho, da terra
e da água.
Eivada de contradições, a territorialização do agrohidronegócio ocorre por meio
da integração entre espaço, território, lugar e paisagem, num processo de coalização de
forças políticas e econômicas, com diversos desbobramentos (Organograma 2).
164
Organograma 2 – Perspectiva (des)integradora do agrohidronegócio
Org.: DOURADO, J. A. L.
Elab.: HOLANDA, E. P.
O espaço como categoria partner da atuação do homem sofre os efeitos da
presença do grande capital mediante a intensificação dos fluxos materiais e imateriais
(pessoas, serviços, informações e transações comerciais), sob uma nova racionalidade
165
bastante distinta daquela anterior à chegada da fruticultura irrigada na região. Arraigado
no ideal de progresso e desenvolvimento, o Estado tem direcionado grandes volumes de
recursos financeiros para obras de infraestrutura hídrica (transposição do São Francisco,
Projeto Salitre e Projeto Baixio de Irecê), dando uma significativa contribuição para
promover a mercantilização da água. Não está na pauta de discussão da esfera
governamental pensar na desconcentração do controle sobre a água no Semiárido
nordestino, ou seja, reforma hídrica, fato que, associado à concentração fundiária, acaba
gerando movimentos de resistência encampados pelos camponeses, conforme
detectamos nas regiões do Médio e Submédio São Francisco. No bojo do planejamento
governamental está o interesse em expandir e fortalecer as ações do grande capital,
usando para tanto o aparato discursivo do desenvolvimento que substitui a ideia de
progresso colapsada a partir de 1929 com a crise do capitalismo. Assim, o termo
desenvolvimento passa a ser uma espécie de classificação para dividir o planeta em dois
polos: de um lado, os países desenvolvidos e, na outra esfera, os países
subdesenvolvidos, ou seja, aqueles que foram explorados e garantiram, com sua miséria,
o desenvolvimento dos exploradores. Conforme Castoriadis (1987, p. 140), o termo
desenvolvimento
[...] começou a ser empregado quando se tornou evidente que o
progresso, a expansão, o crescimento não eram virtualidades
intrínsecas, inerentes a todas as sociedades humanas, cuja efetivação
(realização) se pudesse considerar como inevitável, mas propriedades
específicas – dotadas de um valor positivo – das sociedades
ocidentais.
Nesse mesmo direcionamento, Dourado e Thomaz Junior (2012, p. 4) tecem
críticas à postura adotada pelos países ditos “em desenvolvimento”, ao destacar que a
concepção de desenvolvimento é usada como retórica para sustentar o
planejamento eexecução de grandes obras, de modo a anular ou
deslegitimar quaisquer ações contrárias à sua implementação. A
retórica do “desenvolvimento sustentável”, por exemplo, é uma das
máximas que caracterizam o discurso do capital e do Estado ao
justificarem o investimento em determinados setores, como a
construção de hidrelétricas, a produção de agrocombustíveis (tidos
como energia limpa), a exploração mineira, implantação de parques
eólicos, construção de rodovias, ferrovias e projetos de irrigação. Não
seria exagero afirmar que essa perspectiva de desenvolvimento acaba
por privatizar os territórios, controla e disciplina aqueles que
historicamente estiveram vinculados a eles.
De modo articulado, a efetivação dos investimentos públicos em obras de
166
infraestrutura hídrica sob os ditames da racionalidade do capital tem promovido
diversos processos de territorialização-desterritorialização-reterritorialização, sendo o
Estado o agente precípuo nesse universo contraditório, em que a pujança de
investimentos em programas e projetos não tem conseguido alterar a estrutura de poder
no Semiárido – destituir do poder os donos da terra e da água. De acordo com Thomaz
Junior (2010, p. 98-9), a
posse da terra e da água nos remete a refletir o papel do Estado no
empoderamento do capital e seus efeitos no quadro social da exclusão,
da fome, e da emergência da reforma agrária e da soberania alimentar.
É dessa complexa e articulada malha de relações que estamos focando
esse processo no âmbito do agrohidronegócio, por onde nos propomos
entender os desafios para a sociedade, para os moradores das cidades e
dos campos, ou seja, a dinâmica geográfica da reprodução do capital
no século XXI e os cenários que põem para os trabalhadores.
O Estado acaba transformando-se num importante agente deflagrador dos
conflitos, mas, em contrapartida,incorpora o papel de mediador na relação capital versus
trabalho, frente aos movimentos sociais contrários à execução dos empreendimentos,
exigindo, ainda, acesso aos benefícios decorrentes desses investimentos. Nesse sentido,
ao territorializar-se o agrohidronegócio, promove processos desterritorializantes e cria
micropoderes em conflitos, ao colocar em rota de colisão diferentes frações da classe
trabalhadora que passam a disputar entre si o território sob o domínio do grande capital
ou do Estado. Essas disputas internas fragmentam a luta de classes, sendo tais
dissidências um desafio a ser superado pelos movimentos sociais, para unificar a luta,
potencializar a ação política da classe trabalhadora e superar a (des)identidade do
trabalho. Outro elemento a ser destacado são as relações complementares e conflitantes
engendradas no contexto da territorialização do agrohidronegócio, porque as
articulações realizadas entre os movimentos de contestação procuram estabelecer pactos
para fortalecer o embate contra os atores hegemônicos. Através da coalisão de forças
políticas, os sujeitos desterritorializados abrem trincheiras para disputar com o grande
capital os territórios alvos de investimentos públicos, como forma (re)existir aos
processos homogeneizantes intrínsecos à globalização econômica e à massificação
cultural e social dela decorrentes.
Quando analisamos a expansão do agrohidronegócio pelo Semiárido baiano,
verificamos uma tendência de homogeneização dos modos de vida, com uma
consequente descaracterização dos aspectos simbólicos e culturais das populações que
vivem no campo, mediante a introdução de formas de uso e de ocupação da terra
167
divergentes daquelas costumeiramente feitas pelos camponeses e povos tradicionais.
Para os camponeses, as práticas culturais estão relacionadas às memórias de seus
antepassados, pautadas em relações com a terra; não como uma mercadoria, mas como
“[...] território de vida, da própria existência” (THOMAZ JUNIOR, 2013b, p. 10).
Questionar a legitimidade do agrohidronegócio significa para os camponeses a
possibilidade de defender sua própria existência e sua autonomia (mesmo que parcial)
em relação ao grande capital.
A territorialização do agrohidronegócio interfere na dinâmica do campo,
reorganizando-o para atender suas necessidades, fato que acaba por comprometer
significativamente as formas de organização social que possam obstaculizar sua
reprodução. Sabe-se que as ações dos conglomerados agro-químico-alimentares-
financeiros possuem forte dependência da subtração ou da subordinação dos espaços
ocupados pelo campesinato e por povos tradicionais, fato causador de disputas pelo
território, conforme constatamos nos projetos de irrigação Baixio de Irecê e
Salitre.Devido à cooptação feita pelaspersonas do capital aos sujeitos atingidos pelos
grandes empreendimentos, ocorre, muitas vezes, um estranhamento de identidade entre
os camponeses, que se colocam em campos opostos e cujos ideais representam
perspectivas políticas e econômicas antagônicas. Isso cria identidades estranhadas no
interior do campesinato, quando determinados sujeitos passam a defender a viabilidade
e/ou a importância dos projetos executados pelo Estado e pelo grande capital,
provocando dissidências na luta de classes. Os fluxos migratórios de trabalhadores para
as cidades onde são implantados os projetos de irrigação, em busca de emprego,
constituem outro fator desencadeador de identidades estranhadas, pois o contato entre as
populações camponesas e os “de fora” gera conflitos, em decorrência de diversos
fatores, inclusive culturais, políticos e religiosos. Essa convivência entre os de “dentro”
e os de “fora” não ocorre de maneira harmônica, haja vista que as identidades
territoriais interferem, sobremodo, na forma como os sujeitos ocupam o espaço e
produzem seus territórios.
De outro modo, e não menos representativo, destacamos as alterações
verificadas na paisagem73, como desdobramentos da reorganização da dinâmica
73 A paisagem não constitui um elemento de pesquisa para os geógrafos marxistas, tendo essa categoria
maior importância para a geografia física e a geografia cultural ou humanística. Percebe-se, então,
segundo Schier (2003, p. 85), “que não existe uma geografia que sirva ao estudo, em todos os níveis, da
paisagem. Pois sua complexidade torna impossível qualquer análise geográfica sob a luz de uma única
abordagem. Assim, toma-se então que o olhar a partir de uma determinada abordagem constrói um filtro
168
socioespacial para adequar-se aos interesses do capital. Desflorestamento de grandes
áreas, barramento de rios, construção de plantas agroprocessadoras, motomecanização
da produção, intensificação da exploração dos recursos naturais (terra, água e florestas)
são alguns dos efeitos da presença do grande capital, fato desencadeador de profundas
mudanças na paisagem geográfica. Paisagem aqui entendida como uma composição de
elementos naturais e sociais, cuja construção dá-se pela relação homem-natureza,
mediada pelo trabalho. Assim, a (des)construção da paisagem nas áreas hegemonizadas
pelo grande capital expressam valores precipuamente econômicos, desconsiderando
outras representações simbólicas (culturais e religiosas, por exemplo). Sucessivas
adições e subtrações realizadas pelo capital e pelo Estado provocam alterações na
paisagem, por meio da introdução de novos elementos, ou ainda, de novas formas de
exploração da terra, tornando-a cada vez mais tecnificada e “moderna”.
3.2 Avanço das fronteiras do capital e os conflitos por água no Brasil
O Brasil é mundialmente reconhecido pela riqueza em água doce, devido à
grandiosidade dos rios que cortam o território nacional concentrando 13,8% de toda a
água doce do planeta e à presença do Aquífero Guarani que abrange uma área de
840.000 km, englobando porções dos estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas
Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. As reservas
permanentes desse aquífero (água acumulada ao longo do tempo) é da ordem de 45.000
Km³.
Desigualmente distribuída pelas cinco regiões brasileiras, temos dois extremos,
ou seja, de um lado a região Norte, onde se localiza a maior bacia hidrográfica do
mundo e, de outro, a região Nordeste, onde se registra um elevado déficit hídrico em sua
porção semiárida. A água no Brasil encontra-se assim distribuída:a região Norte tem
aproximadamente 68,5%, o Centro-Oeste 15,7%; o Sudeste 6%; o Sul 6,5% e o
Nordeste 3,3%, sendo o sertão pernambucano a região com a menor disponibilidade de
água por pessoa/ano (1.270 m³). Para Malvezzi (2008, p.82-3), o
problema do Nordeste, após a construção de 70 mil açudes que
armazenam 37 bilhões de metros cúbicos de água, está na sua
distribuição. Essa água é suficiente para as demandas domésticas. Daí
que ressalta o que essa abordagem propõe, e a paisagem, seja física ou cultural, exige uma filtragem
mais ampla que, algumas vezes, foge até mesmo das questões geográficas mais clássicas, necessitando
uma filtragem científica, cultural, filosófica, política, entre outras, mostrando um caráter
multidisciplinar no seu estudo”.
169
a reivindicação das adutoras que cumpram esse papel distributivo.
Segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), 530 obras seriam
suficientes para atingir aproximadamente 1.300 municípios,
oferecendo segurança hídrica a 34 milhões de nordestinos que vivem
no meio urbano.
Em 2002 a CPT passou a registrar os conflitos pela água74 e, desde então, esses
dados têm permitido analisar a intrínseca relação existente entre o modelo atual de
desenvolvimento adotado para o Brasil e o fenômeno de apropriação/mercantilização da
água. Atendendo aos preceitos neoliberais, a Política Nacional de Recursos Hídricos (lei
nº 9.433/97) implementou um modelo mercantil de gestão hídrica favorável à
privatização do uso da água, com destaque para a outorga como instrumento que
viabiliza a exploração da água sob os ditames das leis de mercado. Sobre esse assunto,
Malvezzi (2011, p. 86) afirma que a água
passou a ser vista com mercadoria, como um bem a ser privatizado e
mercantilizado, ainda que seja pelo “jeitinho” brasileiro da outorga. O
argumento da normatização do uso da água pela outorga – instrumento
de controle do uso - é legítimo, mas ele é apenas o pretexto para o uso
intensivo da água de forma legal e tantas vezes ilegal, além de
predadora. Mesmo que funcionasse como instrumento de
normatização, a outorga não garante a equidade social no uso da água,
já que o capital tem o poder de reservar para si volumes que as
populações não têm.
A atuação do Estado tem alargado as “fronteiras” do capital sobre diferentes
frações do território brasileiro, inclusive por regiões ditas pouco desenvolvidas, o que
tem gerado diversos conflitos pelo acesso e pelo controle da água. Atualmente, no
Brasil, há uma relação direta entre os grandes empreendimentos executados pelo Estado
e a questão da água, porque tais projetos desenvolvimentistas são fortemente
dependentes de grandes volumes desse bem natural. Irrigação (fruticultura), mineração,
monocultivos (soja, eucalipto), associados à geração de energia hidrelétrica (construção
de barragens) e à mineração, têm protagonizado disputas pelo território entre o capital e
as comunidades camponesas e povos tradicionais. Para Gonçalves (2013, p. 93) é
[...] clara a disputa entre grandes empresas de capital nacional e/ou
estrangeiro pelos territórios – terra e água - de comunidades
camponesas. Estes conflitos envolvem e prejudicam principalmente
comunidades de pescadores, ribeirinhos, indígenas, quilombolas,
pequenos agricultores, assentados pela reforma agrária, dentre outras.
74 A CPT entende os conflitos pela água como “ações de resistência, em geral coletivas, para garantir o
uso e a preservação das águas e de luta contra a construção de barragens e açudes, contra a apropriação
particular dos recursos hídricos e contra a cobrança do uso da água no campo, quando envolvem
ribeirinhos, atingidos por barragens, pescadores, etc.” (Conflitos no Campo no Brasil, 2006, p. 10).
170
No cerne desses conflitos, estão formas distintas de uso e de apropriação da
água, pautadas por racionalidades antagônicas e mediadas por correlações de forças
desiguais entre os sujeitos. De um lado, está o Estado exercendo a função de direcionar
recursos públicos para a execução de projetos, visando ao crescimento econômico do
Brasil, principalmente através do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES)
e, no outro horizonte, estão os sujeitos que buscam, por meio do enfrentamento, manter
o domínio sobre os territórios de vida e de trabalho. Segundo Pacheco (2013, p. 98), os
conflitos sociais existem porque a água está ameaçada como bem
comum. O aprisionamento da água para uso privado, para a sua
mercantilização direta ou na forma de minérios, energia, insumo na
produção agrícola e industrial, é o que a torna escassa e motivo de
disputa. A água pode ser tratada como um mero recurso natural, na
visão de empresas e, muitas vezes, de governos, ou como um bem
essencial à própria vida. A disputa se dá por interesses e formas
radicalmente diferentes de se relacionar, e os conflitos se intensificam
entre a visão diversa do capital viabilizado pelos governos e a visão
cosmológica dos povos e comunidades tradicionais.
Ao longo dos últimos 11 anos, houve um aumento vertiginoso nos casos de
conflitos pela água (Quadro 10) no Brasil, passando de 8 ocorrências (1.227 famílias
envolvidas) em 2002 para 93 casos em 2013 (envolvendo 26.976 famílias), em todas as
regiões do país, inclusive naquelas com maior infraestrutura e aparato estatal de
fiscalização. O Estado, como grande empreendedor das obras hídricas, tem socializado
os custos e privatizado os seus benefícios, pois os empreendimentos financiados com
recursos públicos são entregues para o capital privado, como é o caso das hidrelétricas e
dos projetos de irrigação. Em 2013 foram registrados 104 casos de conflitos pela água
no Brasil, envolvendo 31.426 famílias. Quando a edição do Caderno de Conflitos no
Campo 2013 já havia sido finalizada, chegou até o conhecimento da CPT a ocorrência
de mais 11 conflitos, não sendo, porém, mais possível inseri-los, pois os dados já
tinham sido analisados pelos autores.De acordo com Pacheco (2013, p. 98), entre as
causas dos conflitos
temos: 44 casos provocados pela construção de barragens e
hidrelétricas (42,31 %); 31 ocorrências deflagradas por mineradoras
(29,8 %); 15 casos por destruição e poluição (14,4 %) e 11
correspondem, especificamente, à apropriação e impedimento de
acesso (10,6%), embora todas as formas apresentadas acima também
representem expropriação e impedimento de acesso.
Nesse cenário desenvolvimentista, os camponeses e os povos tradicionais
passam a enfrentar um novo agente desterritorializante, ou seja, os grandes grupos
171
econômicos, tais como a Odebrech e a Camargo Correia, além dos velhos e novos
coronéis donos das terras e da água.
Quadro 10 – Conflitos por água no Brasil – 2002/2013
Ano Casos Famílias Ano Casos Famílias
2002 8 1.227 2008 46 27.156
2003 20 9.601 2009 45 40.335
2004 60 21.449 2010 87 39.442
2005 71 32.463 2011 68 27.571
2006 45 13.072 2012 79 31.784
2007 87 32.747 2013 93 26.967
Org.: DOURADO, J. A. L.
Fonte:Conflitos no campo, 2013.
As causas dos conflitos são diversas (Quadro 11) e, mesmo enfrentando vários
movimentos de resistência, o Estado tem seguido adiante com a execução de obras
extremamente polêmicas, como a hidrelétrica de Belo Monte (PA), a transposição do
São Francisco e o Projeto Baixio de Irecê. Além dessas, há uma agenda de planejamento
para a construção de hidrelétricas e perímetros irrigados em vários estados brasileiros
nos próximos anos. O represamento dos rios é a principal causa de conflitos nas regiões
Norte e Sudeste, com destaque para os empreendimentos barrageiros na Amazônia, a
nova fronteira hidroenergética do Brasil. A mineração constitui outra atividade
econômica geradora de conflitos, principalmente no Nordeste e Sudeste do país. O
Centro-Oeste,entre todas as regiões brasileiras, possui o menor número de ocorrência de
conflitos pela água.
Quadro 11 – Número e causas dos conflitos pela água no Brasil em 2013 por região
geográfica
Região Casos Uso e
Preservação
Barragens
e açudes
Apropriação
Particular
Nordeste 37 27 8 2
Norte 27 6 19 2
Sudeste 18 8 9 1
Centro-Oeste 3 1 2 0
Sul 8 3 5 0
Total 93 45 43 5
Org.: DOURADO, J. A. L.
Fonte:Conflitos no Campo, 2013.
Analisando os casos de conflitos pela água na região Nordeste (Quadro 12),
a Bahia registrou o maior número entre todos os estados, envolvendo movimentos de
camponeses e de comunidades tradicionais no enfrentamento aos projetos de irrigação e
172
de mineração, principalmente. Em 2013, a atividade mineradora foi responsável por 15
conflitos, com destaque para os municípios de Pindaí (10 casos) e Caetité (5
ocorrências), envolvendo comunidades tradicionais e o Projeto Pedra de Ferro/Bamin75,
ambos localizados na região semiárida do Sudoeste baiano. Já no estado do Ceará, duas
obras do PAC (Barragem do Figueiredo e Eólica Icaraí) e uma obra do DNOCS (Projeto
de Irrigação Tabuleiro de Russa, em Limoeiro do Norte) foram as principais
responsáveis pelos 4 conflitos registrados. Em Pernambuco, o estado com o segundo
maior índice de conflitos, 2 dos 5 casos foram deflagrados por obras do PAC
(Complexo Suape e a transposição do São Francisco). Somados os conflitos nos estados
nordestinos, obteve-se o total de 4.182 famílias envolvidas, em sua maioria camponeses
e populações tradicionais que lutam contra os projetos hegemônicos do Estado
executados em benefício da reprodução do capital, em terras até então pouco
valorizadas economicamente.
Quadro 12 - Conflitos pela água na Região Nordeste – 2013
Estado Nº de
Conflitos
Nº de
Famílias
Alagoas 2 66
Bahia 21* 259
Ceará 4 465
Maranhão - -
Paraíba 3 1300
Pernambuco 5 892
Piauí - -
Rio Grande do Norte 1 1200
Sergipe 1 **
Total 37 4.182
Org.: DOURADO, J. A. L.
Fonte:Conflitos no Campo, 2013.
* Com os dados atualizados o número de conflitos na Bahia passa para 27
casos.
**Dados não informados.
Em 2013 foram registrados 21 conflitos pela água na Bahia. A sequência
histórica dos conflitos pela água na Bahia registrada pela CPT (Quadro 13) acompanha
a tendência ascendente do Brasil. Ao resgatar os últimos quatro anos (2010, 2011, 2012
e 2013) registrados pela CPT, constatou-se haver uma supremacia dos conflitos
75 O minério de ferro é exportado, em sua grande maioria, para a China e o Japão, com total isenção de
ICMS e com taxas extremamente reduzidas de royalties, repassados para municípios e estados
mineradores.
173
deflagrados pela mineração (ferro, urânio e ouro, principalmente), trazendo à tona os
desdobramentos do avanço dessa atividade sobre os territórios camponeses e
quilombolas.
Quadro 13 – Conflitos pela água na Bahia – 2002/2013
Ano Número de conflitos Número de famílias
envolvidas
2002 1 23
2003* - -
2004 4 395
2005 7 775
2006 3 750
2007 2 725
2008 7 1.964
2009 2 1.230
2010 15 5.230
2011 9 1.151
2012 8 720
2013 21 259
Org.: DOURADO, J. A. L.
Fonte:Conflitos no Campo, 2013.
* Não foram registrados conflitos pela água nesse ano, na Bahia.
A análise das informaçõesdisponibilizadas pelo Departamento Nacional de
Produção Mineral (DNPM), relacionadas à mineração na Bahia (Mapa 8), permite
visualizar que as regiões da Chapada Diamantina e a região Norte são aquelas com
maior quantidade de pedidos de autorização/requerimento de pesquisa e pedidos de
concessão/requerimento de lavras. No Extremo Sul, é a territorialização dos
monocultivos de eucalipto a causadora do aquecimento do mercado de terras e da
expropriação de camponeses e indígenas, causadores, por sua vez, de disputas
territoriais envolvendo o acesso à terra e à água, como é o caso registrado no município
de Mucuri, devido à presença da empresa Suzano/Fibria Papel Celulose.
Os conflitos decorrentes da implantação dos perímetros irrigados Baixio de Irecê
e Salitre comparecem, na edição de 2008, como um conflito por terra; todavia, esses
movimentos configuram-se como conflitos pelo acesso à água. Nesse mesmo ano,
muitos conflitos tiveram como propósito solidarizar com o ato de Dom Luiz Cappio
contra a transposição do São Francisco.
O crescimento do número de conflitos pela água na Bahia está relacionado ao
processo de valorização das commodities agrícolas e minerais no mercado internacional.
Essas tensões trazem à tona a necessidade de repensar o modelo de desenvolvimento
174
adotado para o Brasil, porque não alteram as estruturas de poder político e econômico.
Para Thomaz Junior (2012, p. 11), as
disputas por água nos territórios de expansão do agrohidronegócio –
perímetros irrigados, áreas de mineração, expansão da soja e da
silvicultura, na região do Semi-árido baiano – trazem à tona as
contradições expressas pelo modelo de desenvolvimento adotado para
essa região, bem como as reivindicações das comunidades tradicionais
(quilombolas, ribeirinhas), camponeses e povoados que ainda hoje não
têm acesso à água, ficando estes impossibilitados
175
172
Em pleno século XXI, a perspectiva quinhentista de explorar até a exaustão é a
tônica das atividades praticadas pelos grandes grupos econômicos nacionais e
estrangeiros, sem respeitar a existência de outras lógicas materializadas no território. A
subordinação às leis de mercado leva o Estado a imprimir uma proposta
desenvolvimentista em que camponeses e povos tradicionais são transformados em
obstáculos diretos à concretização de tal perspectiva, porque esses sujeitos, sempre
sobrepujados/não contemplados/alienados/afastados/distanciados das políticas públicas
e do acesso aos benefícios oriundos dos investimentos estatais, foram, ao longo da
história, ocupando os espaços que atualmente despertam o interesse do grande capital.
Mesmo depois de enfrentar todos os revezes decorrentes do processo de reestruturação
produtiva do capital, associados aos desastres da Revolução Verde, a opção adotada
para promover o crescimento econômico brasileiro tem sido a incorporação de novas
áreas à lógica destrutiva do capital e sua incessante corrida para acumular lucros. Tal
cenário nos credencia a perspectivar o agravamento dos conflitos porque camponeses e
povos tradicionais, cada vez mais, serão pressionados a ceder seus territórios para o
capital, levando-os a protagonizar movimentos de resistência à consolidação do
agrohidronegócio, que avança num avassalador processo de supressão dos obstáculos à
sua territorialização, utilizando para tanto o poder político e midiático.
3.3 Polígono do Agrohidronegócio na Bahia e a usurpação dos territórios
camponeses
O final dos anos 1970 e início da década de 1980 representam, no âmbito da
Bahia, o marco inicial daquilo que viria a se conformar atualmente como o Polígono do
Agrohidronegócio, representado pela soja, eucalipto, fruticultura irrigada e a produção
de agrocombustíveis. A perspectiva de tratar a territorialização do capital a partir da
ideia de polígono é um esforço analítico-metodológico com o objetivo de demonstrar
como a integração do território à lógica destrutiva do capital vai açambarcando novas
áreas e tecendo tramas entre estas e as antigas, de modo a entrelaçar atividades
aparentemente distintas, mas com um único propósito, ou seja, a reprodução ampliada
de riquezas pautada no “trabalho estranhado76” (ANTUNES, 2004, p. 141). Na
76 Antunes (2004) destaca que a relação do trabalhador com o produto de seu trabalho torna-se
estranhada quando aquele (o trabalhador) não reconhece que a riqueza gerada por seu trabalho acaba
sendo apropriada pelo capital.
173
determinação do Estado como agente organizador do espaço, as ações convergem para
criar mecanismos capazes de articular as políticas de incentivos financeiros e a oferta de
terra e água, viabilizando assim o empoderamento do capital. Nessa seara, temos a
combinação de práticas modernas e arcaicas, cuja acomodação entre si é vital para a
consolidação do projeto hegemônico do capital, em que o papel do Estado é
indispensável para legitimar suas ações e mecanismos, tanto no que se refere ao
domínio da terra e da água quanto ao controle social exercido sobre os camponeses e
trabalhadores da terra envolvidos em ações de resistência e de luta pela conquista ou
permanência nos territórios. Ao debruçar sobre esse assunto, Thomaz Junior (2010, p.
91-92) defende que a
evidente vinculação entre a expansão das áreas de plantio das
commodities com a disponibilização dos recursos terra e água tem
sido imprescindível para as estratégias do capital. Assim, a posse da
terra e da água nos remete a refletir o papel do Estado no
empoderamento do capital e seus efeitos no quadro social da exclusão,
da fome, e da emergência da reforma agrária e da soberania alimentar.
Nesse imbróglio, o que temos é o capital financeiro ultrajado e atuando em
distintas atividades no campo, mas, em sua essência, similares devido à dependência de
grandes volumes de água bem como de terras férteis para a agricultura empresarial.
Nesse jogo de cena vale tudo, desde práticas seculares como a grilagem de terras até a
implementação de políticas públicas com a intenção de desfocar a questão agrária e de
forjar um consenso, entre os grupos sociais, sobre as condições de acesso à terra e de
permanência na terra bem como de acesso à água.
Dilui-se, através da negação, a existência de perspectivas distintas e conflitantes
acerca da posse e do uso da terra e da água, em nome do propalado desenvolvimento
territorial rural, mediante a homogeneização do planejamento e da gestão territoriais,
em que o território constituía síntese das relações contraditórias estabelecidas do capital
versus trabalho e do enfrentamento daqueles menos favorecidos que veem, na luta pela
terra, uma possibilidade de emancipação como contraposição à valorização do mundo
das coisas e à “desvalorização do mundo dos homens” (ANTUNES, 2004, p. 143).
O planejamento dos primeiros perímetros irrigados iniciou na década de 1970,
seguindo a lógica da integração regional à economia nacional, como forma de promoção
do desenvolvimento a partir da agricultura irrigada. Tais empreendimentos seguem o
curso do rio São Francisco e seus afluentes. Na Bahia, a maior concentração de
perímetros irrigados está no Submédio São Francisco. Com o processo de modernização
174
da agricultura verificado na região do Cerrado brasileiro, a região oeste da Bahia foi
incorporada à fronteira agrícola a partir da expansão da soja, principalmente nos
municípios de Barreiras e São Desidério. Também na década de 1980, foram
implantadas na Bahia as primeiras unidades de cultivo de eucalipto, no extremo sul do
estado, transformando-se atualmente na segunda maior região produtora de eucalipto do
país. O desenvolvimento da atividade citrícola na região do Litoral Norte da Bahia
ocorreu na década de 1970 (SANTOS, 2009, p. 30), mediante incentivos do Estado,
representando o desenho do processo de territorialização do capital nessa porção do
território baiano. Assim, o desenho do agrohidronegócio na Bahia foi constituído por
diferentes atividades agrícolas, tendo em comum a forte dependência em relação aos
recursos hídricos, pois se trata de lavouras que demandam grandes volumes de água.
(Mapa 9).
O avanço desses ramos do agrohidronegócio associados à implantação dos
parques eólicos e da mineração evidencia as disputas entre diferentes segmentos da
burguesia, impondo aos camponeses situações de conflitualidade pela posse e pelo uso
da terra e da água, visto que, em seus diferentes momentos de expansão, o capital tem
incorporado novas áreas à sua lógica sociorreprodutiva, em sua essência desigual e
contraditória, colocando sérios obstáculos para a permanência desses sujeitos em seus
territórios de vida (morada e trabalho). Fernandes (2008a, p. 199) entende que a
conflitualidade é
[...] uma propriedade dos conflitos e está relacionada, essencialmente,
à propriedade da terra, à renda da terra, à reprodução capitalista do
capital, consequentemente à concentração da estrutura fundiária e aos
processos de expropriação dos camponeses e assalariados por diversos
meios, escalas e bases sociais, de cunho técnico, econômico e político.
A expansão do agrohidronegócio na Bahia revela novas formas de gestão e de
controle do território baiano a partir da hegemonia da lógica econômica, pautada na
ocupação intensiva do espaço e dos recursos naturais nele existentes bem como na
superexploração do trabalho e na desrealização do modo de vida camponês. Na busca
pelas condições adequadas para produzir e extrair riquezas, o capital tem subordinado e
proletarizado os camponeses, precarizado as relações de trabalho no campo, além de
destituir os camponeses dos meios de produção, levando muitos a engrossarem os
acampamentos na luta pela terra, tida como uma estratégia para garantir trabalho e,
consequentemente, o sustento da família.
O resultado dessa expansão do agrohidronegócio tem sido a disputa por
175
território, cujo germe anticapitalista está presente na área da pesquisa, através dos
acampamentos do MST, tanto no Projeto Salitre quanto no Projeto Baixio de Irecê, bem
como na organização das comunidades que circundam estes empreendimentos e cuja
população está contabilizada pelo capital para o processo de assalariamento. Essas
disputas territoriais e de classe revelam a complexidade da nova geografia do espaço
agrário no Semiárido baiano, transformado em “mar de cana”, em “Califórnia
brasileira77”, havendo, ainda, a possibilidade de inseri-lo na lógica da produção de
agrocombustíveis a partir das oleaginosas, rompendo barreiras naturais e criando
“espaços novos para a acumulação” (HARVEY, 2006, p. 66).
Preocupado em entender essa nova realidade inerente ao agrohidronegócio,
Thomaz Júnior (p. 308) destaca que é
[...] importante a familiarização com as nomenclaturas específicas do
hidronegócio e que, acreditamos, nos permitirão estreitar um campo
de investigação de muito significado teórico, político, estratégico e
geográfico para a compreensão da nova divisão territorial do trabalho,
no Brasil, e toda a ordem de desdobramentos para a luta de classes e
para as ações políticas em torno da Reforma Agrária, da Soberania
Alimentar e Energética etc., sendo, pois, a água agregada ao campo de
disputas e de domínio de novos territórios. Contudo, não podemos nos
esquecer de que essa natureza de conflito, que polariza os interesses
políticos, estratégicos e de classe, opondo capital (agronegócio) e
movimentos sociais envolvidos na luta pela terra e pela água, deve ser
considerada quando estamos refletindo a reorganização do espaço
brasileiro. No entanto, temos que pensar que a água deve ser garantida
para outras formas de uso, outras formas de vida, ou que não se
restrinja às atividades humanas.
77 Numa referência ao Tenesse Valey, nos EUA.
176
177
Na verdade, o fenômeno é novo, mas suas bases foram preparadas no passado.
Os projetos públicos de irrigação são, em sua essência, a garantia dada pelo Estado ao
capital para que este possa extrair renda e lucro, produzir e/ou perpetuar dominação
política, além de inserir novas frações do território semiárido no circuito da produção
especializada, com destaque para as interferências externas, como é o caso da PAC78,
criada pela União Europeia em1962, com o objetivo de proporcionar alimentos a preços
acessíveis e de garantir um nível de vida equitativo aos agricultores, tendo, para tanto,
estabelecido normas rigorosas para a agricultura, como a certificação globalgap79, no
caso da produção de frutas, homogeneizando os padrões de produção de acordo com os
parâmetros europeus. O selo globalgap possui uma série de exigências em termos de
Boas Práticas Agrícolas (BPA), organizadas em várias vertentes atuando
conjuntamente: agronômica, social, segurança alimentar, bem-estar animal e animal. A
PAC europeia interferiu na agricultura praticada no mundo, mediante o estabelecimento
de uma série de normas que subordinam os agricultores a diferentes segmentos do
grande capital, tais como as empresas certificadoras, produtoras de insumos,
transportadoras, fabricantes de embalagens e as empresas avaliadoras. Em relação a
essas condicionantes da PAC europeia, Sousa (2013, p. 179) destaca:
Vê-se que a existência de um selo faz parte da política de qualidade
dos produtos propagandeados pela reforma da PAC em 1992 para
atender aos grandes produtores que exigiam do Estado o
desenvolvimento de um referencial de certificação com aceitação
generalizada dentro da área dos países membros da PAC. O
EUREPGAP criado por estes vinha acirrar a competição porque
propagandeava as boas práticas Agrícolas (Good Agriculture Practices
– GAP), realçando a importância da Produção Integrada e da proteção
das condições de trabalho agrícola. Em contrapartida, era também uma
estratégia para impedir a produção dos pequenos agricultores uma vez
que para obter o selo era preciso dispor de certo capital.
78 A PAC tem como propósito a modernização das explorações agrícolas, tendo muitos agricultores da
UE recebido subvenções para a modernização dos edifícios e das máquinas das suas explorações,
além do melhoramento genético dos animais e das suas condições de criação. Para saber mais, acesse
http://ec.europa.eu/agriculture/50-years-of-cap/files/history/history_book_lr_pt.pdf 79 Segundo Berger (2009, p. 19) “O GLOBALGAP é hoje uma organização privada que estabelece
normas voluntárias para a certificação de produtos agrícolas em todo o mundo, cujo secretariado está
baseado na Alemanha. O seu objectivo é estabelecer normas de Boas Práticas Agrícolas (BPA) que
incluem diferentes requisitos para os vários produtos, adaptáveis a toda a agricultura mundial. O
GLOBALGAP conta com membros voluntários que se dividem em três grupos:
produtores/fornecedores, retalhistas/distribuidores alimentares e membros associados (ex.
fornecedores de factores de produção para a agricultura, organismos de certificação)”. Disponível em:
http://www.infoqualidade.net/SEQUALI/PDF-Sequali-07/Page%2019-22.pdf. Acesso em:
15/02/2015.
178
Com uma estrutura produtiva bipolar – terra e água – associada à disponibilidade
de força de trabalho barata e abundante, a agricultura irrigada tem incorporado novas
áreas do Semiárido baiano, representando um trunfo territorial para o capital, e,
contraditoriamente, possibilita a recriação e/ou a reprodução do campesinato, quando
este rejeita a sua incorporação aos perímetros irrigados na condição de força de trabalho
proletarizada e se insere na luta pela terra.
As políticas públicas e incentivos fiscais implantados pelo Estado, desde os anos
1960, na região Nordeste semiárida acabaram fomentando o modelo de
desenvolvimento para o campo altamente dependente de grandes extensões de terra e
grande volume de água. Associada a essas medidas, a reestruturação produtiva do
capital, iniciada nos anos 1970, incorporou áreas até então pouco atrativas ao seu
processo expansionista, fenômeno que teria como desdobramento um constante repensar
das ideias e de concepções sobre a região semiárida brasileira. De obstáculo natural à
produção agrícola e ao desenvolvimento econômico e social da população, as condições
edafoclimáticas singulares do Semiárido seriam tratadas, no limiar do século XXI, como
verdadeira “benesse” no processo de produção de mercadorias. Aqui, o dipolo
modernização/conservação serve ao capital, porque permitiu que alterações fossem
efetuadas para promover os interesses de mercado, sem tocar na propriedade fundiária,
como destaca Castro (2008, p. 293).
Há, nesse sentido, diferentes e conexos processos que vão tecendo a malha de
significados do movimento em defesa da modernização do território, cujo
entrelaçamento de projetos e programas criou as bases e as condições necessárias para
que o capital pudesse reproduzir-se de forma ampliada. Vai, por outro lado, ocorrendo
também a destruição e/ou o esfacelamento dos meios de existência dos camponeses e
dos trabalhadores da terra, como materialidade dos interesses antagônicos e
hegemônicos nos espaços em transição, aqui entendidos como o Semiárido, em razão da
mudança de abordagem do Nordeste, de “região-problema” para o Semiárido “das
oportunidades”. Essa alteração no discurso revela as contradições e as disputas entre
duas lógicas de reorganização do território: uma conservadora, que ainda vê nas
intempéries climáticas uma forma de acumulação de capitais, e outra moderna, que
concebe as particularidades do Nordeste seco como um fator essencial para a geração de
riquezas, sob o domínio da tecnologia, conforme ressalta Castro (2008). Duas lógicas
aparentemente antagônicas; todavia, o que se verifica é a tentativa de rearticulação do
capital que busca superar os ranços do algodão e da pecuária para privilegiar a
179
agricultura irrigada, baseada na produção de frutas e nos agrocombustíveis.
As intervenções do Estado, desde a criação do que viria a ser o DNOCS na
década de 1910, seriam determinantes para a mudança na racionalidade do Semiárido,
que passaria de hostil a “bondoso”, concepção essa muito útil e usada pelos
parlamentares em seus discursos elitistas, para justificar a necessidade de execução de
obras técnicas a fim de “resolver” o problema das secas. Os resultados das intervenções
dos órgãos responsáveis por incentivar e incrementar a irrigação na região semiárida,
além de não solucionarem a situação de desigualdade social, acentuaram, em muitos
casos, as injustiças sociais, ou ainda, acabaram gerando ainda mais injustiça e
desigualdade sociais.
Na contramão da História, a questão agrária nunca figurou como centralidade no
âmbito das políticas públicas, tampouco no tocante à atuação dos órgãos
governamentais. Se, por um lado, não há o reconhecimento da questão agrária, essas
mesmas políticas públicas assumem a responsabilidade de camuflar os conflitos, a
concentração de terras bem como a organicidade e a dinâmica das populações que
vivem no campo e cuja permanência em seus territórios exige intensas disputas com os
agentes do Estado e do capital, em decorrência da valorização e da especulação de suas
terras, revelando haver uma correlação desigual de forças desiguais. Germani (2010)
evidencia como a questão agrária é diluída nas ações do Estado com vistas a promover o
desenvolvimento territorial rural – como é o caso da Política de Desenvolvimento
Territorial (PDT), proposta pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) –,
transformando o território em uma unidade de planejamento. Tais ações pautadas na
discussão sobre identidade acabam, estrategicamente, promovendo o esquecimento do
conflito. O Programa de Crédito Fundiário e o Programa Cédula da Terra são, segundo
Germani (2010), exemplos da reforma agrária de mercado executada pelo governo de
Fernando Henrique Cardoso. Ainda segundo essa autora, o
Programa Cédula da Terra, que vigorou no período de 1997-2002,
como projeto piloto, sendo sucedido pelo Crédito Fundiário, não deve
ser confundido com assentamento de reforma agrária e faz parte da
proposta de “reforma agrária de mercado” empreendida pelo Banco
Mundial que foi implementada durante o governo do Fernando
Henrique Cardoso na perspectiva de construção do Novo Mundo
Rural. Entra neste quadro de formas de acesso a terra por fazerem
parte da política fundiária do Estado que, mesmo que tenha sido
implantada pelo processo direto de luta de seus integrantes considera-
se decorrente do processo mais amplo de luta pela terra empreendida
pelos grupos sociais organizados. Esta política foi estabelecida com o
claro propósito de apresentar aos demandantes de terra a opção de
180
“uma reforma agrária pacífica”, pois a aquisição da terra é resultado
de uma negociação de compra, intermediada pelo Estado (GERMANI,
2010, p. 286. Grifos da autora).
Nesse diapasão, essas políticas têm gerado disputas pelo/no território e pelo
controle da terra e da água, visto que a reestruturação dos espaços pelo grande capital
leva a uma especialização destes, colocando em risco os modos de vida das populações
que historicamente ocuparam a região. As transformações não se limitam apenas aos
aspectos econômicos e aos da paisagem, sendo registradas também metamorfoses nas
práticas socioculturais, nas relações de trabalho e de produção. A (mono)cultura da soja,
da cana-de-açúcar, do eucalipto, da laranja, da manga, abacaxi e uva, eivadas de
componentes políticos e ideológicos, colocam em risco outras expressões sociais, como
a cultura camponesa baseada no trabalho familiar, na produção para o autoconsumo
e/ou voltada para os ciclos curtos e nas relações solidárias.
As novas formas de trabalho baseadas no assalariamento é o aspecto fundante
dessa transformação espacial, decorrente da expansão do agrohidronegócio na Bahia,
revelando a plasticidade e a mobilidade do trabalho, pois se trata de atividades agrícolas
com significativo uso de máquinas, principalmente no caso da soja e do eucalipto,
requerendo pouca mão de obra. Outro elemento político importante nesse processo
expansionista do capital no campo é a grilagem de terras, como detectado nos
municípios de Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique, fenômeno que antecedeu a
implantação do Projeto Baixio de Irecê. A grilagem de terras é uma estratégia muito
utilizada nas áreas de expansão do agrohidronegócio, como constatou Thomaz Junior
(2010b) ao pesquisar a expansão do agrohidronegócio no Pontal do Paranapanema (SP),
onde a produção de cana de açúcar em terras griladas é um instrumento para viabilizar a
sua legalização perante o Estado. A redução dos postos de trabalho é uma característica
similar nessas áreas, cujas monoculturas avançaram sobre os territórios camponeses
ocupados a partir de outras lógicas, diferentemente da concepção economicista própria
da agropecuária capitalista.
3.4 - Questão fundiária e terras devolutas na Bahia: dualidade “terra de ninguém”
versus propriedade privada
A propriedade da terra no Brasil, desde os seus primórdios, ocorreu de maneira
desigual devido à estratégia utilizada pela Coroa portuguesa para fazer a gestão da
181
Colônia. Conforme relata Oliveira (2001, p. 28), primeiro “[...] foram as capitanias
hereditárias e seus donatários, depois foram as sesmarias. Estas, estão na origem da
grande maioria dos latifúndios do país, fruto da herança colonial.”. Se a origem da
concentração fundiária no Brasil remonta ao período colonial, atualmente esse desigual
processo de apropriação de terras constitui um dos pilares para a existência e para a
expansão do agrohidronegócio nas diversas regiões brasileiras, com extensas áreas
ocupadas com a produção de commodities (Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste, Sul e parte
da região Amazônica). Num país onde existem “superlatifúndios80”, a desigual
distribuição da terra interfere diretamente nas relações de trabalho no campo, levando os
camponeses a adotarem diferentes e complexas estratégias para manter a sua
reprodução. Luta pela terra, permanência de relações não capitalistas de produção
(parcerias, por exemplo) e a expansão do assalariamento no campo são apenas alguns
dos elementos envoltos na seara da questão agrária no Brasil.
Em se tratando da Região Nordeste, a estrutura fundiária concentrada é o
resultado do período colonial, com forte presença de grandes propriedades e áreas de
terras devolutas. Sobre essa região, Oliveira (2001, p. 32) destaca a seguinte realidade:
[...] o Nordeste que tem uma estrutura fundiária herdada do período
colonial, apresentava em 1985 uma elevadíssima participação dos
estabelecimentos de menos de 10 ha. Estes representavam mais de
70% do total, ficando, entretanto, com apenas pouco mais de 5% da
área total da região. Enquanto os latifúndios com mais de
1.000hectares, que representavam tão-somente 0,4% dos
estabelecimentos, ficavam com mais de 32% da área total.
Embora seja histórica a concentração fundiária no Nordeste brasileiro, a
conjuntura atual no tocante ao modelo de desenvolvimento adotado para as áreas
semiáridas não permite visualizar alterações em se tratando da propriedade da terra,
porque cada vez mais o agronegócio incorpora novos territórios, que passam a ser
organizados sob a lógica da agricultura globalizada. Fruticultura irrigada, soja,
silvicultura e a produção de agrocombustíveis tensionam o espaço agrário nordestino
em decorrência da necessidade de novas áreas a serem anexadas, contribuindo,
sobremodo, para manter elevado o índice de concentração de terra.
A estratégia adotada pelo Estado para reduzir as desigualdades regionais
mediante programas e projetos pautados na modernização conservadora do território
(inclusive no tocante à agricultura) criou “novos subespaços dinâmicos” (BARCELAR,
80 Termo tomado de empréstimo de Oliveira (2001, p. 32).
182
2000, p. 1), ou “novos arranjos territoriais81” (ELIAS, 2011, p. 153), onde são
constatadastransformações expressivas em sua estrutura produtiva e social. Esse
agrohidronegócio moderno e globalizado expande-se, inclusive, por terras com
pendências jurídicas, especialmente as devolutas. Os estados nordestinos com maior
concentração de terras devolutas (Tabela 7) são, respectivamente, Bahia (22.838.662 ha),
Piauí (9.914.132 ha), Maranhão (6.174.443 ha), Ceará (5.870.419 ha) e Pernambuco (3.635.924
ha). Sergipe é o estado com a menor área de terras devolutas (563.325 ha).
Tabela 7 - Estimativa das Terras Devolutas por estado da Região Nordeste
Unidade da
Federação
Superfície
Territorial
Área
Cadastrada
Áreas
Indígenas
Unidades de
Conservação
Terras
Públicas Devolutas
Maranhão 33.198.329 19.158.864 1.908.388 8.076.591 20.941 6.174.443
Piauí 25.152.919 13.322.447 2.643.951 47.430 9.914.132
Ceará 14.882.560 8.771.543 14.455 924.718 60.054 5.870.419
Rio Grande
do Norte 5.279.679 3.328.221 43.334 192.738 1.897.883
Paraíba 5.643.984 3.812.972 31.570 28.278 4.029 1.931.603
Pernambuco 9.831.162 5.781.845 109.362 659.057 32.600 3.635.924
Alagoas 2.776.766 1.477.826 9.598 56.433 770 1.298.338
Sergipe 2.191.035 1.625.883 4.316 57.469 533 563.325
Bahia 56.469.267 33.919.105 113.832 3.786.884 18.309 22.838.662
Fontes: SNCR/INCRA e IBGE.
Ano: 2003.
Em se tratando da Bahia, a maior extensão de terras devolutas está
localizada principalmente no vale do São Francisco (Mapa 10), ou seja, as terras que
pertenciam à Sesmaria Casa da Ponte.Trata-se de áreas cobiçadas pela burguesia
agroindustrial e financeira, sendo a manutenção do latifúndio improdutivo e das terras
griladas um importante instrumento catalisador para a permanência do grande capital na
região, como é o caso da Odebrecht, presente no vale dos rios Verde e Jacaré,
representada pela CODEVERDE.
81 Regiões Produtivas Agrícolas (RPAs), conforme Elias (2011, p. 153).
183
184
Longe de serem assépticas aos interesses próprios da burguesia, as terras
devolutas exercem um destacado papel no desenvolvimento das forças produtivas, não
raro associadas ao inexorável progresso e desenvolvimento. A incorporação dessas
terras ao sistema de produção de mercadorias exerce um papel importante no
rebaixamento dos custos de produção, elevando, por outro lado, os níveis de
acumulação. Acrescente-se que não se pode perder de vista o fato de que essas terras,
em muitos casos, impulsionam as ações de cunho territorial, porque a pressão exercida
sobre elas pelo capital gera novas demandas e potencializa os conflitos e a violência no
campo, já que o capitalismo não pode existir sem os meios de produção e sem a força de
trabalho. Assim, é importante resgatar Luxemburgo (1988, p. 33), quando a autora
ressalta que o “[...] capital não conhece outra solução senão a da violência, um método
constante da acumulação capitalista no processo histórico, não apenas por ocasião de
sua gênese, mas até mesmo hoje.”
Um dos artifícios utilizados pelo Estado para facilitar e expropriação é torná-la
“área de interesse social”; assim, evitam-se maiores problemas no tocante a possíveis
reivindicações e contestações por parte das populações que ocupam os locais de
interesse para o grande capital. A título de exemplificação, a construção da Ferrovia de
Integração Oeste-Leste expressa bem essa realidade, pois, ao cortar o estado da Bahia
no sentido oeste-leste, passou por terras com pendências jurídicas (terras devolutas,
áreas reivindicadas por populações tradicionais, etc.) e o Estado fez uso desse artifício
para superar toda e qualquer possibilidade de impedir a execução da obra. Assim ocorre
com as terras desapropriadas para a implantação de perímetros irrigados, construção de
hidrelétricas, complexos portuários, entre tantos outros empreendimentos.
SegundoOliveira (2012), tanto os municípios que integram essa pesquisa quanto aqueles
que estão localizados em seu entorno possuem grandes extensões de terras devolutas,
conforme apontam os dados daTabela 8.
185
Tabela 8 - Terras Devolutas – Municípios da Área da Pesquisa e seu entorno (BA)
Terras Devolutas 2003 (ha) (%) 2010 (ha) (%)
Barra 1.229.944,87 100% 993.194,71 81%
Casa Nova 860.206,32 89% 811.415,20 84%
Irecê 19.757,76 59% 16.213,56 48%
Itaguaçu da Bahia 327.721,79 74% 322.996,19 73%
Jussara* (43.527,77) -53% -25.250,16 -31%
Muquém de São
Francisco
166.440,44 58% 191.327,85 67%
Pilão Arcado 1.127.021,81 96% 1.045.841,27 89%
Remanso 348.398,78 74% 358.392,68 76%
Sento Sé 1.024.333,77 81% 738.757,46 59%
Xique-Xique 357.281,15 60% 384.789,35 65%
Curaçá 593.746,96 92% 565.983,39 88%
Juazeiro 546.539,99 86% 535.471,90 84%
Sobradinho 118.924,60 90% 115.512,28 87%
BAHIA Total 31.087.213,14 55% 28.713.581,16 51%
Fonte: Estatísticas Cadastrais do INCRA. In: OLIVEIRA, A. U. et alii, Atlas da Terra no
Brasil, CNPq, 2012.
Adaptação: DOURADO, J. A. L.
* O dado em negrito significa que o município tem registrado no Cadastro do INCRA área
maior do que aquela do município. São os “beliches fundiários” ou títulos em andares.
Considerando os municípios da área da pesquisa, todos apresentam percentuais
de terras devolutas acima de 60% de sua extensão. Essa realidade merece atenção
especial, por parte do Estado, no sentido de pensar ações que levem em consideração
esse contexto, pois, embora sejam “terras de ninguém”, essas áreas são ocupadas por
populações remanescentes de quilombos, Fundos de Pasto e camponeses,
historicamente à margem das políticas públicas, tanto aquelas voltadas para o campo,
como as de saúde, de educação, de assistência social e de tantos outros direitos
garantidos pela Constituição Federal de 1988. Ao se pensar uma política pública para o
campo, na Bahia, deve-se ter em conta toda essa particularidade, como forma de superar
um universo de contradições e de círculos viciosos sustentadores da concentração
fundiária, cujas prioridades devem ser definidas para atender às reais necessidades das
populações que vivem no campo, retirando das políticas públicas seu caráter
“civilizador”, pois, muitas vezes, o resultado destas é diametralmente oposto. Com 51%
de sua extensão territorial definidos como terras devolutas (28.713.581,16ha), o campo
baiano, mais especificamente, os vales do rio São Francisco e de seus afluentes estão
sujeitos às constantes investidas, tanto por parte do Estado quanto do grande capital,
pautadas em alternativas hegemônicas. O fetichismo da modernização torna-se o
186
propulsor das regras e práticas exploratórias direcionadas para a incorporação dessas
áreas de terras devolutas ao sistema de acumulação, de modo a criar uma visão
consolidada de obsolescência dos sujeitos que, ao longo dos tempos, ocuparam essas
terras, na tentativa de torná-los invisíveis perante a sociedade em geral. Corroborando
essa análise, Almeida (2006, p. 18, grifo do autor) diz que:
As ocorrências de conflito que envolvem os Fundos de Pasto referem-
se principalmente aos municípios de Pilão Arcado, Remanso, Campo
Alegre de Lourdes, Casa Nova, Sobradinho, Sento Sé, Senhor do
Bonfim, Oliveira dos Brejinhos, Brotas de Macaúbas, Uauá, Curaçá e
Canudos. Todos eles localizados no Estado da Bahia. As comunidades
acham-se ameaçadas por grileiros, que compram pequenas
propriedades, passando em seguida a se apossar das "terras de uso
comum" das comunidades tradicionais de Fundos de Pasto.
Encontram-se ameaçadas também por projetos de irrigação, que se
apropriam de suas terras fazendo uso generalizado de agrotóxicos e
poluindo as águas potáveis; por empresas mineradoras; por carvoarias
que representam, hoje, para estas comunidades o maior perigo para
sua sobrevivência, pois, devastam toda a cobertura vegetal da caatinga
para fabricar carvão, através de desmatamentos clandestinos,
queimando também pastos e fruteiras e utilizando formas de trabalho
forçado e de trabalho infantil; são ameaçadas, ainda, pela implantação
do Parque Nacional Boqueirão da Onça, que por ser uma UC
(Unidade de Conservação) de proteção integral, prevê o deslocamento
compulsório de famílias das comunidades de Fundos de Pasto da
região de Sobradinho (BA).
Na prática, essas terras devolutas permanecem ainda hoje um campo aberto para
a expansão da agricultura capitalista, inseridas no processo de produção de mercadorias
a partir de uma organização social, com total subordinação do trabalho ao capital. Como
a quantidade de terras demarcadas como territórios tradicionais é insignificante, as
populações que no passado ocupavam essas terras na condição de agregados, escravos e
sitiantes, principalmente, enfrentam, desde os anos de 1970, constantes ameaças de
expulsão, devido à valorização das terras por causa dos projetos relativos ao
desenvolvimento do Nordeste. Harvey (2006, p. 64, grifo do autor) ressalta que o
capitalismo apenas consegue escapar de sua própria contradição por
meio da expansão. A expansão é, simultaneamente, intensificação (de
desejos e necessidades sociais, de populações totais, e assim por
diante) e expansão geográfica. Para o capitalismo sobreviver, deverá
existir ou ser criado espaço novo para acumulação.
Ao longo das últimas décadas, em função de investimentos públicos feitos pelo
Estado, principalmente, muitas barreiras espaciais foram derrubadas, possibilitando ao
capital a sua expansão, sendo, em determinados casos, fundamental o controle sobre a
terra e a água, cuja exploração dá-se de forma intensa, pois, conforme destaca
187
Luxemburgo (1988, p. 23), “[...] em função de sua natureza e de sua forma de
existência, o capital não admite nenhuma limitação”. Em virtude dessa destrutividade
promovida pelos antagonismos do capital globalizando entrelaçado82, pode-se constatar
que seu avanço pelo campo, mediante a produção agrícola moderna e voltada para as
demandas externas (muitas vezes baseada nas commodities agrícolas), tem sido
acompanhado pelo aumento da concentração da terra ao longo das décadas.
Considerando o total de imóveis rurais83 cadastrados pelo INCRA (2013) e a
área total por eles ocupada, pode-se afirmar que os municípios de Xique-Xique,
Itaguaçu da Bahia e Juazeiro possuem significativa concentração de terras, (Tabelas 9,
10 e 11). Quando analisado sob o ponto de vista da distribuição dos imóveis, o
município de Xique-Xique (Tabela 9) possui 1.517 imóveis cadastrados, dos quais
1.168 possuem menos de 50 hectares, num total de 9.750,21 hectares. Os imóveis com
extensão de 50 a menos de 1.000 hectares perfazem um total de 310, abrangendo
75.515,24 hectares. Os imóveis entre 1.000 e menos de 10.000 hectares somam 38
unidades, num total de 128.662,40 hectares. Nesse município há 1 imóvel com
46.941,80 hectares, os quais somados aos 128.662,40 hectares dos 38 imóveis com mais
de 1.000 hectares perfazem um total de 175.604,20 hectares.
82 Termo tomado de empréstimo de Mészáros (2007, p. 51). 83 O INCRA utiliza o termo “imóvel” rural, ao passo que o IBGE utiliza o termo “estabelecimento” rural.
188
Tabela 9 - Cadastro de Imóveis Rurais – Xique-Xique (BA)
Total de Imóveis rurais: 1.517
Total de área cadastrada (em hectares): 260.869,66
Classe de Área Total de
Imóveis Total de Área (ha)
Mais de 0 a menos de 1 0 0,00
1 a menos de 2 292 383,60
2 a menos de 5 416 1.165,40
5 a menos de 10 148 978,29
10 a menos de 25 196 3.127,30
25 a menos de 50 116 4.095,62
50 a menos de 100 94 6.504,40
100 a menos de 250 90 12.703,57
250 a menos de 500 76 22.671,96
500 a menos de 1000 50 33.635,31
1.000 a menos de 2.000 17 22.663,40
2.000 a menos de 2.500 5 10.729,10
2.500 a menos de 5.000 6 19.340,00
5.000 a menos de 10.000 10 75.929,90
10.000 a menos de 20.000 0 0,00
20.000 a menos de 50.000 1 46.941,80
50.000 a menos de 100.000 0 0,00
100.000 e Mais 0 0,00
Fonte: INCRA, 2013.
Org.: DOURADO, J. A. L.
O município de Itaguaçu da Bahia possui 1.221 imóveis cadastrados no INCRA
em 2013, totalizando 215.190,12 hectares (Tabela 10). Desse total, 838 imóveis
possuem menos de 50 hectares (12.924,10 hectares), 368 imóveis possuem área de 50 a
menos de 1.000 hectares, (82.129,05ha). Os imóveis com extensão entre 1.000 e 10.000
hectares somam 15 unidades, abrangendo 47.195,04 hectares. Há apenas 1 imóvel com
72.951,93 hectares, de propriedade da CODEVERDE.
189
Tabela 10 - Cadastro de Imóveis Rurais - Itaguaçu da Bahia – (BA)
Total de Imóveis rurais: 1.221
Total de área cadastrada (em hectares): 215.190,12
Classe de Área Total de
Imóveis Total de Área (ha)
Mais de 0 a menos de 1 4 2,45
1 a menos de 2 80 96,84
2 a menos de 5 197 636,83
5 a menos de 10 151 1.037,22
10 a menos de 25 185 2.978,06
25 a menos de 50 221 8.172,70
50 a menos de 100 109 7.730,10
100 a menos de 250 103 14.152,30
250 a menos de 500 120 36.223,75
500 a menos de 1000 36 24.012,90
1.000 a menos de 2.000 8 10.437,17
2.000 a menos de 2.500 1 2.158,60
2.500 a menos de 5.000 1 3.345,75
5.000 a menos de 10.000 4 31.253,52
10.000 a menos de 20.000 0 0,00
20.000 a menos de 50.000 0 0,00
50.000 a menos de 100.000 1 72.951,93
100.000 e Mais 0 0,00
Fonte: INCRA, 2013.
Org.: DOURADO, J. A. L.
No tocante ao município de Juazeiro (Tabela 11), foram cadastrados em 2013
pelo INCRA 7.974 imóveis (349.287,19 hectares), sendo 6.518 imóveis com menos de
50 hectares (81.424,24 hectares), 1.426 imóveis de 50 a menos de 1.000 hectares
(203.443,56 hectares) e 30 imóveis entre 1.000 e 10.000 hectares, totalizando 64.419,36
hectares. Nesse município não foi registrado, segundo dados do INCRA (2013), nenhum
imóvel com extensão maior que 10 mil hectares, sendo o município com menor
concentração de terras entre os abrangidos por esta pesquisa.
190
Tabela 11 - Cadastro de Imóveis Rurais – Juazeiro (BA)
Total de Imóveis rurais: 7.974
Total de área cadastrada (em hectares): 349.287,19
Classe de Área Total de
Imóveis Total de Área (ha)
Mais de 0 a menos de 1 178 98,15
1 a menos de 2 521 667,12
2 a menos de 5 1.516 4.538,19
5 a menos de 10 1.434 9.910,35
10 a menos de 25 1.772 27.662,50
25 a menos de 50 1.097 38.547,97
50 a menos de 100 773 52.832,15
100 a menos de 250 388 51.516,49
250 a menos de 500 216 67.576,37
500 a menos de 1000 49 31.518,55
1.000 a menos de 2.000 21 31.837,16
2.000 a menos de 2.500 3 6.243,10
2.500 a menos de 5.000 5 21.133,10
5.000 a menos de 10.000 1 5.206,00
10.000 a menos de 20.000 0 0,00
20.000 a menos de 50.000 0 0,00
50.000 a menos de 100.000 0 0,00
100.000 e Mais 0 0,00
Fonte: INCRA, 2013.
Org.: DOURADO, J. A. L.
Os municípios de Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia possuem estrutura fundiária
mais concentrada que o município de Juazeiro, realidade expressa pelo número de
imóveis acima de 5.000 hectares (1 imóvel em Juazeiro, 4 imóveis em Itaguaçu da
Bahia e 10 imóveis em Xique-Xique). Ao analisar os dados gerais da estrutura fundiária
da Bahia, constata-se que esse estado se caracteriza por um elevado grau de
concentração fundiária (Quadro 14), cuja realidade traz à tona as contradições do
desenvolvimento do capitalismo no campo e a permanência histórica do domínio da
terra por uma reduzida fração de sujeitos, sendo a concentração fundiária uma das
principais causas das disputas territoriais, da miséria no campo e da violência nesses
territórios.
191
Quadro 14 – Índice de Gini – Bahia 1920/2006
Ano Índice de Gini
1920 0,734
1940 0,784
1950 0,794
1960 0,779
1970 0,795
1975 0,805
1980 0,821 1985 0,835
1995/96 0,829 2006 0,838
Fonte:Censos Agrícolas e Agropecuários do IBGE, 2006.
Elaboração: Projeto GeografAR, 2010.
A série histórica revela que a concentração de terras na Bahia vem ocorrendo de
forma acentuada (Quadro 14). A ideia de que a divisão do território em municípios
levaria a uma maior desconcentração das terras (151 em 1940 para 417 em 2006) não se
confirma quando se analisam os dados, pois o que de fato aconteceu foi um aumento
significativo na quantidade de municípios com índice de concentração de terra
considerada forte a muito forte (31 em 1940 e 283 em 2006) e muito forte a absoluta (2
em 1940 e 19 em 2006). Segundo Germani (2010, p. 278-9)
[...] parte dessas terras são terras devolutas, isto é, patrimônio público
que está sendo apropriado individualmente como mercadoria, seja
como reserva de valor ou como valor de troca. Estima-se que mais de
55% do território baiano esteja nessa situação, isto é, constituído por
terras devolutas, mas que o Estado não sabe onde e com quem estão e,
portanto, não tem o controle desse patrimônio público.
Os dados referentes à evolução do índice de Gini84 da Bahia demonstram um
aumento na concentração de terras a partir da década de 1970, fenômeno que pode ser
atribuído à modernização da agricultura no contexto da reestruturação produtiva do
capital. Em meio a esse cenário, ganham destaque a monopolização da terra e o controle
sobre os recursos hídricos bem como as novas (e velhas) formas de degradação do
trabalho, responsáveis pelo desencadeamento de ações de resistência. O avanço do
grande capital sobre o espaço agrário baiano, mediante a apropriação de riquezas
84 O índice de Gini é um indicador de desigualdade utilizado para verificar o grau de concentração de terra e de
renda. Esse índice varia no intervalo de zero a 1, sendo que quanto mais próximo de 1, maior é a
desigualdade na distribuição e, quanto mais próximo de zero, menor é a desigualdade.
192
geradas pelo uso da terra e da água e o controle social sobre o trabalho, tem sido
facilitado pelo favorecimento dos investimentos públicos em obras de infraestrutura e
em programas de financiamentos, como o PROINE, o PROVÁRZEAS,
POLONORDESTE85, em dezenas de perímetros irrigados implantados a partir de 1970.
Esses programas foram fundamentais para a expansão da fronteira agrícola no Nordeste
semiárido porque possibilitaram a criação dos chamados polos agroindustriais, atraindo
para a região novas atividades econômicas. Combinando formas regressivas e formas
destrutivas, o capital amplia suas ramificações no campo baiano, de modo a integrar
todos os biomas (Caatinga, Cerrado e Mata Atlântica) sob os mais diferentes segmentos,
seja ele agroindustrial (lavouras voltadas para o mercado externo) ou de infraestrutura
(parques eólicos, ferrovia, e complexo portuário).
Ao analisar o índice de Gini dos municípios da Bahia (Quadro 15), verificamos
que 69,78% destes são caracterizados por um alto grau de concentração da estrutura
fundiária. Somadas as categorias forte a muito forte e muito forte e absoluta, o índice de
concentração atinge 73,61%. Se considerado o número de municípios classificados com
concentração de média a forte esse percentual atinge 94,95% do total de municípios
baianos. Do total de 417 municípios, 4 não foram classificados porque o IBGE não
disponibilizou os dados referentes à concentração fundiária.
Quadro 15 – Classificação do índice de Gini dos municípios do estado da Bahia
Classes Categorias Nº. de Municípios %
0,000 a 0,100 Nula 0 0
0,101 a 0,250 Nula e Fraca 0 0
0,251 a 0,500 Fraca a Média 1 0,23
0,501 a 0,700 Média a Forte 105 25,17
0,701 a 0,900 Forte a Muito Forte 291 69,78
0,901 a 1,000 Muito Forte a Absoluta 16 3,83
Não classificados - 4 0,95
TOTAL 417 100
Fonte: IBGE, INCRA.
Org.: Projeto GeografAR, 2003.
Adaptado por: DOURADO, J. A. L., 2014.
85 Programa de Desenvolvimento de Áreas Integradas do Nordeste, criado pelo Decreto nº 74.794, de 30/10/74,
com o objetivo de modernizar as atividades agropecuárias de determinados polos agrícolas do Nordeste.
193
Os municípios de Barra, Riachão das Neves, Barreiras, Correntina, Jaborandi,
Cocos, Ibicoara, Castro Alves, Brejões, Rodelas, Rio Real, Entre Rios, Inhambupe, São
Sebastião do Passé, Camaçari e Itagimirim apresentam concentração da terra
considerada de muito forte a absoluta(Mapa 11). Juazeiro e Itaguaçu da Bahia possuem
índice de concentração fundiária considerado de forte a muito forte. Entre os municípios
abrangidos pela pesquisa, Xique-Xique é aquele com a menor concentração fundiária
(de média a forte).
Da área cadastrada da Bahia (33.919.105ha), 6.725 imóveis foram declarados
como improdutivos, totalizando 17.677.507 hectares. Desse número de imóveis
cadastrados como improdutivos, 221 estão localizados na área da Diocese de Juazeiro,
totalizando 864.332 hectares de terras improdutivas (Quadro 16).
Quadro 16 - Terras improdutivas nosmunicípios pertencentes à Diocese de Juazeiro
(BA) – 2003
Município Nº de imóveis improdutivos Área total (ha)
Campo Alegre de Lurdes 7 29.193
Casa Nova 18 49.010
Curaçá 20 70.391
Juazeiro 39 95.887
Pilão Arcado 4 81.899
Remanso 16 45.598
Sento Sé 103 470.434
Sobradinho 9 13.508
Uauá 5 8.412
Total 221 864.332 Fonte: IBGE, 2003.
Org.: D OURADO, J. A. L.
194
195
Ao analisar os dados do Quadro 16,verificamos que os municípios estão
localizados na área de influência do Rio São Francisco, ou seja, uma região com as
condições adequadas para a expansão do agrohidronegócio. Juazeiro, polo
agroindustrial da região, possui o segundo maior número de imóveis declarados como
improdutivos, sendo superado apenas por Sento Sé que totaliza 103 imóveis. Ao que
nos parece, a propriedade fundiária como reserva de valor ainda se configura como um
importante negócio para os grandes proprietários de terra, constituindo um instrumento
singular de acumulação pela via rentista, valendo-se inclusive dos investimentos e
subvenções públicos. Aí temos a materialização do conflito de classe, a intocabilidade
da questão agrária/fundiária protagonizada pela agricultura modernizada e engendrada
nos discursos sustentados pela ideia de progresso técnico-científico, eficiência produtiva
e crescimento econômico. O Estado, ao longo dos últimos 50 anos, buscou através de
uma racionalidade hegemônica, sustentar suas ações, no Semiárido, em alavancas
ideológicas poderosas e indispensáveis para que as rápidas e profundas transformações
promovidas na agricultura fossem reforçadas perante o conjunto da sociedade e
adotadas acriticamente como algo desejável per se.
3.5 Estrutura fundiária e os desafios para o acesso à terra no Vale do Salitre
A manutenção da estrutura fundiária arcaica e a política agrícola que prioriza o
agronegócio são responsáveis pelas contradições no campo brasileiro. O
desenvolvimento como metástase fica explícito quando o Semiárido é alvo de diversas
ações do Estado com vistas à criação de infraestrutura hídrica, geralmente grandes
investimentos em obras faraônicas baseadas no modelo desenvolvimentista que
privatiza os recursos naturais, como é o caso do acesso à terra e à água, via projetos de
irrigação.
Na Bahia, mais especificamente no vale do São Francisco, a concentração da
terra é acentuada, ocupando as obras de infraestrutura hídrica um papel destacado nesse
cenário atual de expansão do agrohidronegócio.
196
Quadro 17 -. Grau de distribuição da terra por número de municípios (1940-2006)
Ano Total de
Municípios
Fraca a
média
Média a
forte
Forte a
muito forte
Muito forte a
absoluta
Nº % Nº % Nº % Nº %
1940 151 30 19,87 88 58,28 31 20,53 2 1,32
1960 193 13 6,74 100 51,81 78 40,41 2 1,04
1970 334 15 4,49 156 46,71 157 47,00 6 1,80
1995/6 415 6 1,45 133 32,05 261 62,89 15 3,61
2006 417* 1 0,23 109 26,14 283 67,87 19 4,55 Fonte: IBGE, 2006.
Elaboração: GeografAR, 2010.
* Os dados de cinco municípios apresentam inconsistência e não permitem efetuar o cálculo.
A concentração fundiária na Bahia (Quadro 17) eleva-se ao longo das últimas
décadas, principalmente a partir da década de 1990 quando há a intensificação da
política de irrigação nas áreas semiáridas e a expansão da fronteira agrícola para o oeste
do estado, com a chegada da soja. A expansão e consolidação do agrohidronegócio
contribui, sobremodo, para a concentração devido a necessidade de extensas áreas para
os monocultivos (soja, algodão, milho, eucalipto, laranja, manga, banana e uva). De
fato, a execução de obras, como a construção de perímetros irrigados associada a outros
empreendimentos voltados à modernização agrícola, não tem contribuído para fomentar
o acesso à terra. A essas informações, deve-se acrescentar o Índice de Gini da série
1920 a 2006.
No tocante ao vale do Salitre, a situação não sofre alterações, já que os nove
municípios da bacia possuem estrutura fundiária concentrada (Quadro 18), um dos
motivos pelos quais torna a região bastante conflituosa. Verifica-se que, em pleno
século XXI, a conformação da propriedade da terra continua similar à de séculos
passados, em que poucos mantêm sob seu domínio grandes extensões de terra, ao passo
que a maioria não dispõe de terra suficiente para retirar a renda necessária para a
manutenção da família.
197
Quadro 18 - Estabelecimentos no Vale do Rio Salitre por grupos de área de 0 a 20ha e
de mais de 1.000ha
Município Grupos de área
(ha)
Nº de
estabelecimento
(%)
Área (%)
Campo Formoso De 0 a 20 65,03 6,42
Mais de 1.000 0,85 31,81
Jacobina De 0 a 20 65,37 10,32
Mais de 1.000 0,15 9,49*
Juazeiro De 0 a 20 64,92 7,26
Mais de 1.000 0,56 40,36
Miguel Calmon De 0 a 20 57,65 7,77
Mais de 1.000 0,08 12,28*
Mirangaba De 0 a 20 60,72 7,15
Mais de 1.000 0,32 13,84*
Morro do Chapéu De 0 a 20 52,24 4,88
Mais de 1.000 1,19 31,14
Ourolândia De 0 a 20 47,43 7,17
Mais de 1.000 0,14 7,88*
Umburanas De 0 a 20 54,68 6,85
Mais de 1.000 0,85 23,43
Várzea Nova De 0 a 20 51,88 6,27
Mais de 1.00 0,64 29,51 Fonte: Censo Agropecuário, 2006.
Elaboração: GeografAR, 2010.
*No Censo Agropecuário de 2006, os casos em que foram registrados menos de três
estabelecimentos por grupo de área, a área total é desinformada pelo IBGE. Para efeito deste
quadro, tais dados foram estimados.
Com base nos dados do Censo Agropecuário de 2006, a concentração de terras
no vale do Salitre é considerável, com destaque para os municípios de Campo Formoso,
Juazeiro, Umburanas e Várzea Nova, cujas porcentagens são expressivas considerando-
se a relação entre o número de estabelecimentos e a área. Pode-se dizer que a
concentração de terra em todos os municípios integrantes da bacia do Salitre é
considerada um fator limitante para o desenvolvimento das condições favoráveis para a
manutenção das famílias no campo. Em todos os municípios, o número de
estabelecimentos com área até 20 ha é superior a 50%; juntos, porém, somam menos de
10% da área total. A histórica concentração de terra traz também, em seu bojo, o
domínio sobre os mananciais hídricos, deixando as famílias camponesas reféns dos
“senhores das terras e das águas”. A questão agrária na Bahia, mais especificamente no
Médio São Francisco, configura-se como uma questão hídrica porque a água encontra-
198
se sob o poder dos donos das terras, cujas estruturas de poder econômico e político
continuam latentes ainda hoje. O Estado tem papel importante nesse contexto, ao
assumir a função de modernizador do território através da disponibilização de meios
técnicos para viabilizar a expansão do agrohidronegócio na região. Todos os municípios
do Vale do Salitre possuem Índice de Gini superior a 0,6 (Tabela 12).
Tabela 12 - Índice de Gini dos municípios do Vale do Salitre – Bahia – 1920-2006
Município 1920 1940 1950 1960 1970 1980 1985 1996 2006
Ourolândia 0,645 0,680
Umburanas 0,691 0,742
Várzea
Nova
0,710 0,747
Miguel
Calmon
0,640 0,688 0,698 0,732 0,781 0,761 0,754 0,753
Mirangaba 0,716 0,779 0,774 0,753 0.768
Morro do
Chapéu
0,923 0,633 0,656 0,691 0,716 0,741 0,763 0,760 0,783
Jacobina 0,889 0,719 0,706 0,705 0,722 0,772 0,803 0,790 0,793
Juazeiro 0,937 0,571 0,758 0,618 0,798 0,726 0,865 0,828 0,828
Campo
Formoso
0,972 0,788 0,768 0,817 0,822 0,786 0,813 0,794 0,831
Fonte: IBGE, 2006.
Elaboração: Projeto GeografAR, 2010.
De acordo com os dados, pode-se verificar uma elevação no Índice de Gini, o
que leva a perceber que as políticas de irrigação no Médio São Francisco, via
implantação de perímetros irrigados, não têm contribuído para a desconcentração de
terra. Com a modernização do território com vistas a atender as demandas do capital
(nacional e internacional), ocorre um processo de especulação imobiliária que gera dois
fenômenos inter-relacionados: por um lado, esse processo provoca a desterritorialização
das famílias camponesas e, de outro, impede o acesso das famílias sem terra a um
pedaço de chão para produzir sua existência, pois a disputa por terra entre campesinato
e agronegócio nas regiões do Médio e Submédio São Francisco tem-se acentuado na
última década, verificando-se com isso o surgimento de acampamentos e assentamentos
em Juazeiro, Sobradinho e Xique-Xique. Essa realidade agrária da Bahia traz à tona
uma questão territorial, já que há, contraditoriamente, aqueles que lutam pelo acesso à
terra, colocando-se no front de disputas com os detentores de grandes propriedades. A
luta por terra e território coloca, como elemento de análise, a necessidade de reconhecer
a legitimidade das reivindicações dos sujeitos que buscam, no acesso à terra, condições
199
dignas de existência e da manutenção de modos de vida pautados em práticas
socioculturais, frutos da relação metabólica terra-território-água. Segundo Germani
(2010, p. 281), toda
questão territorial expressa relações de poder de uma sociedade e isso
é muito mais visível numa sociedade estruturada em classes sociais
como é a nossa. Assim, as relações de poder significam
enfrentamentos, e, que contrapõem os que detêm grandes extensões de
terra com os grupos sociais que lutam para “entrar” na terra e para
nela permanecer.
Se partirmos da premissa de que a questão agrária é, em sua essência, uma
questão territorial, faz-se necessário ressaltar as linhas de força que estão a manejar os
traçados para o redesenho do semiárido baiano, porque a geometria do poder nessa
região revela razões, estratégias e distintos campos de micropoderes em que os sujeitos
reivindicam apropriação diferente em relação ao uso do território. De fato, há uma
expansão seletiva dos espaços a serem incorporados à lógica global de acumulação de
capital, sendo os perímetros irrigados vetores de indução da modernização agrícola na
região semiárida nordestina. Como resultado, têm-se especulação imobiliária,
concentração fundiária e expulsão dos camponeses da terra, em virtude das condições
adversas de produção, pois os cultivos de ciclo curto voltados para o autoconsumo
deixam de ser a principal atividade praticada, cedendo lugar para as lavouras
direcionadas a atender às demandas do mercado nacional e internacional, de frutas
principalmente.
Numa reformulação discursiva, o Semiárido torna-se o lugar promissor para “os
de fora”, ao passo que, para os “de dentro”, terra e água continuam pouco acessíveis,
principalmente no tocante às políticas executadas pelo Estado, porque os propósitos
destas é fortalecer as estruturas de poder e de classe. Para as comunidades do Baixio de
Irecê e do vale do Salitre, terra e água estão atreladas à reinvenção específica do
Nordeste, na qual a inserção destes sujeitos (salitreiros e camponeses das comunidades
dos vales dos rios Verde e Jacaré) na terra e/ou no território é feita de maneira marginal
ou precarizada.
3.6 Grilagem de terras, expropriação camponesa e violência no Baixio de Irecê
(BA)
200
Compreender as estratégias utilizadas pelo campesinato em sua busca pela
reprodução requer superar uma espécie de “anacronismo histórico”, em virtude da
hegemonia adquirida pela ideia de progresso e desenvolvimento. Por conseguinte, tudo
aquilo que não potencializa o modo de reprodução sociometabólica do capital é
completamente inadmissível, porque assevera possibilidades distintas daquelas pensadas
pelo próprio sistema. Ou seja, a obliteração de alternativas de uso e de ocupação do
território/espaço distintas da lógica desenvolvimentista torna-se central para a estrutura
do sistema do capital, favorecendo sua perpetuação, inclusive utilizando a própria
estrutura do Estado para ampliar os obstáculos, mediante a institucionalização de
práticas e de formas de organização social sustentadas em valores que dispensavam os
acordos e contratos formais estabelecidos sob as prescrições da lei.
No século XX, o vale do São Francisco vivenciou profundas transformações
capituladoras, não se limitando apenas às formas de uso e de ocupação da terra. Tais
mudanças foram mais profundas porque atingiram as bases da racionalidade
substantiva, num contraditório movimento de negação/reafirmação de relações
historicamente criadas, transformadas por circunstâncias atuais em obstáculos à ordem
social vigente, subjugada à tirania do capital. Essa região começou a ser desbravada em
1553, quando as “entradas” foram direcionadas para o interior da Colônia, em busca de
mão de obra escrava para os canaviais e engenhos através das frentes pioneiras de
ocupação. A ocupação dessa região foi direcionada à pecuária extensiva, constituindo
um imenso “curral”, universo em que as figuras do fazendeiro e do vaqueiro
representavam a dualidade riqueza-subordinação, dualidade que tem na propriedade da
terra sua existência. Associada à criação de gado, foi desenvolvida uma agricultura para
o autoconsumo praticada pelos camponeses nas áreas de vazante e de ilhas, ocupadas,
principalmente, com culturas de milho, feijão, mandioca e arroz, além da produção nos
“lameiros”. O algodão e a cana-de-açúcar representavam produtos mais “nobres”, tendo
o primeiro se destacado nas áreas de sequeiro enquanto os canaviais se localizavam nas
proximidades dos rios, sendo a produção de rapadura uma importante fonte de renda
para as famílias86. Associada às atividades agropecuárias, a pesca artesanal constituía
um recurso econômico e fonte de alimento para as populações que tinham uma relação
de proximidade com o Rio São Francisco e suas ilhas, seus afluentes e lagoas marginais,
86Essa é uma característica marcante no vale do Rio Salitre que será aprofundada adiante.
201
essas últimas muito utilizadas para a pesca e a agricultura, principalmente a produção de
arroz. Segundo Estrela (2009, p. 1), de modo geral,
catingueiros, brejeiros e beraderos tinham acesso a terra através de
formas seculares – a posse, a agregacia, o foro e a moradia sob
condição -, em estreita relação com fazendeiros, em geral, absenteístas
que açambarcaram as terras devolutas, arvorando-se em proprietários.
Para garantir a sobrevivência, praticamente todos recorriam a
pluriatividade.
Durante quatro séculos, poucas foram as alterações verificadas nos processos e
nos sujeitos que compunham o mosaico social87, político e econômico do vale do São
Francisco. O Vale era um imenso território sob o domínio dos coronéis, marcado por
uma forte concentração fundiária, tendo as relações políticas centradas no mandonismo
e no clientelismo. Essa realidade passaria por significativas mudanças no século XX,
mais especificamente a partir da década de 1970, quando o Estado, através de diferentes
políticas, confere ao Rio São Francisco a responsabilidade pelo desenvolvimento
regional. Desde então, a construção de hidrelétricas, projetos de irrigação, projeto de
colonização88e a implantação de infraestrutura (pontes sobre o Rio São Francisco89)
promoveram uma reestruturação produtiva das atividades econômicas que alteraram
significativamente o quadro regional, com destaque para as relações de produção na
agricultura. Embora, em decorrência das Políticas Públicas implantadas pelo Estado no
Semiárido nordestino, em especial no vale do São Francisco, tenha ocorrido uma
modernização do território nessa região, trata-se de um fenômeno conservador porque
as mudanças verificadas contribuíram para a permanência da concentração fundiária, da
estrutura de poder e da subalternidade de muitas famílias camponesas. Ainda segundo
Estrela (2009, p. 1), a
chamada modernização conservadora do campo, no que toca ao Vale
do Rio São Francisco, consubstanciou-se através de política públicas,
que se não significaram ponto de inflexão no sentido de atender
amplas demandas dos moradores da região, rompendo com seu
isolamento e com a enorme pobreza, possibilitaram a criação de uma
série de medidas que culminaram com a inserção da região no circuito
87 Esse mosaico social era composto por sujeitos como o cabra, o coronel, o cangaceiro, o vaqueiro, o
barqueiro, o pescador, o ribeirinho, o camponês entre outros. 88O Projeto de Colonização Serra do Ramalho (PECSR) foi idealizado para abrigar parte das famílias
expropriadas pela construção da Barragem de Sobradinho. Todavia, os camponeses desterritorializados
e realocados para o PECSR não se adaptaram às novas condições de vida, visto que saíram das bordas
do rio São Francisco, passando a morar em área de caatinga, promovendo um movimento de volta para
as bordas do lago de Sobradinho. Com isso, o PECSR passou a ser utilizado para assentar camponeses
de áreas vizinhas e até mesmo de outros estados, como Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul,
contribuindo para reduzir os conflitos agrários nesses estados, conforme destaca Machado (1987). 89 Pontes construídas em Juazeiro, Ibotirama e Bom Jesus da Lapa, que permitiram a conexão com
Salvador e Brasília.
202
nacional de produção, abrindo-a, inclusive, ao capital monopolista,
representado, sobretudo, pelo agronegócio.
É comum aos projetos desenvolvimentistas executados pelo Estado assumirem,
por um lado, o “papel civilizador” e, em outros casos, explicitarem a concepção de que
os lugares receptores desses investimentos são verdadeiros “desertos”, desconsiderando
as tramas de relações estabelecidas pelas comunidades/sujeitos existentes nesses locais.
Com isso, a valorização da terra foi uma das consequências mais expressivas para a
região onde inúmeras comunidades tradicionais (Fundos90 e Fechos de Pastos,
quilombolas, camponeses, ribeirinhos e indígenas) estavam secularmente localizadas,
gerando tensionamentos, conflitos e expropriação. Sobre o processo de valorização das
terras em virtude da atuação do Estado, Sorj (1986, p. 106) destaca:
Os processos de valorização da terra e a impossibilidade dos
camponeses de oferecer uma resistência organizada, determinou que
esse período se caracterizasse por uma ofensiva geral contra os
pequenos produtores, em particular naquelas áreas onde, através de
infra-estrutura, incentivos fiscais ou programas especiais, o Estado
favoreceu uma rápida valorização das terras.
A atuação do Estado fomenta, contraditoriamente, novas formas de acesso à
terra mediante a execução de políticas públicas (especialmente aquelas voltadas para o
desenvolvimento territorial), distintas daquelas historicamente existentes na região,
como o uso coletivo das chamadas terras devolutas, onde se fazia o criatório de animais
(bovinos, caprinos, ovinos e equinos) e se praticava o extrativismo animal e vegetal.
É no interior desse contexto que começa a se desenhar o processo de grilagem de
terra no Baixio de Irecê, ou seja, nos municípios de Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia,
nos vales dos rios Verde e Jacaré, afluentes do Rio São Francisco. Já na década de 1960
havia planos para a criação de um projeto de irrigação abrangendo áreas dos municípios
de Itaguaçu da Bahia, Xique-Xique, Sento Sé e Jussara. Segundo informações de um
dos entrevistados no município de Itaguaçu da Bahia91, a chegada do Sr. Nely92 na
90 O conceito de Fundo de Pasto é bastante amplo e começou a ser formulado na década de 1970. De
modo geral, refere-se à apropriação de território no Semiárido baiano, caracterizado pelo criatório de
animais em terras de uso comum, articuladas com áreas denominadas de lotes individuais. Nos Fundos de
Pasto no Semiárido baiano as atividades estão baseadas na criação de bodes, ovelhas ou gado na área
comunal, com cultivo de lavouras para o autoconsumo nas áreas individuais, práticas essas associadas ao
extrativismo vegetal nas áreas de refrigério e de uso comum. Esses sujeitos são pastores, lavradores e
extrativistas.
91 Entrevista realizada em abril de 2014. Trata-se de um dos integrantes da presidência do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Rio Verde, município de Itaguaçu da Bahia.
92 Engenheiro agrônomo com experiência na produção de cebola, em Cabrobó (PE).
203
região do Baixio de Irecê foi um dos indícios da existência de interesse, por parte do
Estado, em implantar um projeto agropecuário nessa área. Inicialmente foi introduzido o
cultivo de cebola, mas havia a proposta de cultivo de uva, seguindo a perspectiva do
modelo de agricultura irrigada desenvolvida em Cabrobó (PE).
Conforme relatos dos camponeses moradores da Comunidade de Muquém, em
Itaguaçu da Bahia, a chegada do grileiro Airton Neves Moura na região ocorreu no ano
de 1974. Ainda de acordo com as informações obtidas através das entrevistas e da
história oral junto aos camponeses, o grileiro Airton Neves Moura era cunhado de
Antônio Carlos Magalhães, político influente, eleito várias vezes para o cargo de
governador da Bahia. Com o propósito de obter a posse ilegal das terras, a estratégia
adotada por esse grileiro foi a compra da fazenda Baixa Funda, incorporando as terras
ao redor dessa propriedade. Essa fazenda serviu de base para justificar as ações de
grilagem das terras, cujos domínios fronteiriços eram ampliados sem qualquer
obstáculo, porque não havia limites definidos da área usada coletivamente pelos
camponeses e, quando se tratava de áreas cercadas, estes não tinham nenhum
documento legal que lhes garantisse a posse da terra. Através dos depoimentos,
verificamos que, na região onde se registrou a grilagem de terras, existiam fazendas cuja
base econômica era a pecuária extensiva, tendo a agricultura uma função secundária,
desenvolvida nos vales úmidos dos rios Verde e Jacaré. Nessas fazendas, muitas
famílias camponesas com pouca terra trabalhavam como meeiros, parceiros, ou via
assalariamento, buscando uma fonte de renda complementar, como forma de superar as
dificuldades decorrentes dos períodos de longa estiagem, ou até mesmo da falta de
terras nos vales úmidos dos rios para as atividades agrícolas.
A grilagem das terras era feita através de coação e violência por parte de Airton
Neves Moura e seus “jagunços”. Quando visitava as comunidades, o grileiro estava
sempre acompanhado de “funcionários” armados e com um grande arsenal de munição,
aterrorizando as famílias. Em todos os relatos colhidos durante a pesquisa junto às
comunidades do Baixio de Irecê, a ação do grileiro foi retratada como violenta e sem
muitos episódios de enfrentamento por parte dos camponeses, havendo apenas dois
casos em que estes buscaram impedir a grilagem, sem, todavia, obter êxito. O poder
público não se manifestou em relação ao processo de expropriação das famílias, ficando
os camponeses à mercê do coronelismo velado das autoridades locais. Ressalte-se que o
momento político vivido pelo Brasil, na primeira metade dos anos 1970, era marcado
por forte repressão por parte do governo militar, o que dificultava qualquer ação dos
204
camponeses, haja vista os resultados da perseguição enfrentada pelas Ligas
Camponesas. Airton Neves Moura, segundo os relatos dos camponeses, possuía forte
ligação política com o então prefeito de Xique-Xique, Reinaldo Braga93. Outro indício
de que a atuação do grileiro foi negligenciada pelas autoridades locais é o fato da
Companhia Vale do São Francisco (CVSF) já ter solicitado, em 1961, a realização de
estudos nos municípios de Xique-Xique, Itaguaçu da Bahia, Jussara e Sento Sé, com o
propósito de assentar as famílias desalojadas pela construção da Barragem de
Sobradinho94. Como resultado desses estudos, foi identificada uma extensa área de
terras férteis adequadas para a irrigação, conforme aponta o Relatório de Diagnóstico
Ambiental, elaborado pelo Consórcio Baixio de Irecê.
A inundação de extensas áreas do Médio São Francisco, [...] que seria
provocada pela elevação das águas do então futuro reservatório de
Sobradinho, criando problemas sociais e geoeconômicos para a
população a ser deslocada, levou a Comissão do Vale do São
Francisco a abrir concorrência em março de 1961 para realização de
estudos e investigações gerais objetivando determinar as
possibilidades hidroagrícolas das Bacias dos Rios Verde e Jacaré
(região de Irecê) assim como as possibilidades de fixação nessa região
das populações a serem deslocadas pela elevação do nível das águas
do rio São Francisco, a montante da Barragem de Sobradinho. Os
estudos constataram a existência de uma grande área favorável ao
desenvolvimento da agricultura irrigada (INTERNACIONAL
ENGENHARIA S.A; MAGNA ENGENHARIA LTDA;
GROUPEMENT D’ÉTUDES ET DE RÉALISATIONS DES
SOCIETÉS D’AMÉNAGEMENT RÉGIONAL, 1989, p. 12).
Após os estudos feitos sobre o Baixio de Irecê a pedido da CVSF,ante a
perspectiva de valorização das terras, a grilagem se iniciou, sendo as terras griladas
transformadas em reserva de valor. Com os resultados dos estudos feitos sobre essa
região, houve uma forte especulação em relação à propriedade da terra e sobre os
mananciais hídricos, evidenciando aquilo que Torres (2007) vai definir como
“hidroterritórios”, em virtude dos conflitos decorrentes da territorialização do grande
capital nas áreas com disponibilidade hídrica. Instalava-se, desta forma, uma nova
concepção de propriedade naquela região, levando à desterritorialização dos
camponeses ou ainda à sua subjugação aos donos das terras, obrigando muitas famílias a
93 Reinaldo Braga foi eleito para o cargo de deputado estadual no pleito eleitoral de 2014.
94 De acordo com PEREIRA (1987, p.11), a construção do lago de Sobradinho provocou a expropriação
de 26 mil propriedades e deslocamento compulsório de mais de 72 mil pessoas, incluindo a reconstrução
em outras áreas de quatro cidades: Casa Nova, Sento Sé, Remanso e Pilão Arcado, que tiveram novas
sedes construídas pela Companhia Hidrelétrica do Vale do São Francisco (CHESF), assim como
redistribuição de terras em compensação por parte das propriedades rurais submersas, contando com a
construção de agrovilas, como o PEC/Serra do Ramalho.
205
migrarem para as cidades de Xique-Xique, Itaguaçu da Bahia ou para São Paulo. O
cercamento das terras de uso comum introduziu um elemento novo para o cotidiano dos
camponeses, significando mais um obstáculo à sua reprodução. As disputas territoriais
eclodiram, no contexto do Baixio de Irecê, muito antes de se divulgar a implantação do
projeto de irrigação, sendo frequentes as agressões e perseguições do grileiro e seus
jagunços aos camponeses, conforme podemos verificar por meio do depoimento da Sra.
M. A. da S. (61 anos):
Eu morava lá [Muritiba]. Carregava água daqui [Comunidade de
Roçado]para lá. Nóis pegava água daqui para lá. Meus meninos não
podiam nem com um carote de água. Nós fiquemos la, trabaiemos,
plantemos. Nessa terra mermo. Nóis ficamo lá muito tempo, nunca
tinha parecido ninguém. Tem quase 20 anos quando eu pensei
apareceu um povo lá, mandado de Antônio Carlos Magalhães. Quando
eu vi eu fiquei com medo. Eu estava até sozinha lá apareceu um carro
tudo cheio de gente. Eu disse: oxê é puliça! Ai ele chegou e perguntou
está com medo, senhora? Eu disse: eu tô porque nunca vi esse tanto de
gente aqui. Não senhora, a gente tá aqui conhecendo as terra. Essas
terra aqui é de Antônio Carlos Magalhães, a gente tá fazendo uma
pesquisa. Cadê seu marido? Eu disse: Ele tá no mato, foi buscar uma
rama para fazê um remédio para os menino. [...]. Eles conversou
muito com eu, perguntou o que é que eu fazia para comer. Eu falei: a
gente caça no mato, pranta mandioca, eu prantava mandioca lá atrais.
Eu relava era no ralo. Eu fazia um ralinho de lata de leite, um ralin
bem feitinho e ralava a mandioca, depois espremia bem esprimidinho
e colocava no sol para secar um pouquinho, quando secava eu passava
no caco para dar meus filhos. Quando nos pensamos que não ele falou
que na quarta feira ele vinha em Xique-Xique e queria conversar com
o “véi” que ia indenizar nóis, perguntou quantos anos a gente tava ali
e eu disse 11 anos. Pois eu vou indenizar ocêis aqui, nóis tava com
uma roça cheia de melancia, ai ele eu vou indenizar ocêis, ai ele disse
fala para seu marido que aqui ele não tira mais uma vara. Ai eu falei tá
bom. Na quarta feira ele foi para Xiquei-Xique e encontrou com o
homem. O homem chamava Mariano. Ah, ele era cabo extra de
Antônio Carlos Magalhaes. Você não corta mais um pau, não faz mais
roça. Você pode se retirar de lá que lá tem dono. Ai Ciço veio e já
aqui fora e ai no terreno dessa muiê aí, fez uma barraquinha de lona ai
nóis ficamos lá no terreninho com um mucado de filho lá debaixo de
uma lona. Outro homem estava desorientado porque trabaia num
terreno lá e os engenheiros chegou lá e falou para ele não tirar mais
um pau e era para ele ir embora. Um homem nos deu uma dica boa:
aqui nessa beira de rio vocês pega um lugar que só tem mato, num
lugar de matagal, num pega lugar onde tem roça de ninguém. Nóis
veio para cá para esse lugar, fizemos uma barraquinha de lona no
primeiro ano a gente fez uma tarefa só, ai trabaiamo, trabaiamo. Eu
tinha um menino ai eu fiquei comendo e trabaiano dentro da roça.
Hoje está lá uma roçona. Ele paga, ele tem a escritura do INCRA
desse que a gente mora lá, todo ano ele paga imposto. Já fez até aquele
negócio no Banco. E lá sabe o que eles fez? Queimaram a casa,
quebraram os pote, eu tinha um rádio véi eles quebraram tudo,
tacaram fogo nas cerca. Ocê pode crê que morava lá nesse lugar tão
206
ruim, um lugar desse não é bom para vir buscar água aqui na beira do
rio, eu ainda sinto saudade de lá, eu gostava de lá, o povo fala
assim:ocê tá é doida, bom ocê tá é hoje. Mas de vez em quando eu
sinto falta, aquela vontade de ir lá. O que nóis comia lá [pausa] a gente
comia caça sem farinha, depois deu para pegar umas caça e vender
aqui na beira do rio. Ai eu vinha aqui ou mandava o menininho, ele
vinha sozinho. Eu ficava com pena dele e vinha atrais dele porque eu
tinha medo da onça comer ele. Graças a deus tá todo mundo vivo. Oia,
eu sinto falta, mas nem é bom sentir falta de um lugar desse não.
[Suspiros] Eu sofri demais lá. Quando acaba eles nem pagou nada,
enganou nóis. Nóis não ia sair de lá não. Não pagou todo mundo. Se
ficasse saia com pontapé. Ameaçava se não saísse. Lá quem mandava
era Antônio Carlos Magalhães, Félix Mendonça. O Airton Moura era
cunhado de Antônio Carlos Magalhães, tinha todo apoio dele. Antônio
Carlos Magalhães era o governador da Bahia, como é que a gente não
saia meu irmão? Esse Airton Moura grilava terra de todo mundo lá no
Sanharó. Quanta cerca ele arrancou do povo lá no Sanharó. Depois
que Airton morreu veio a CODEVERDE e a CODEVASF e ficou com
as terra. Depois da CODEVERDE ninguém teve mais nada. Se a gente
já tinha sido mandado embora de lá, aí ninguém quis mais saber de
nada (Informação verbal, 14/04/2014).
Analisando o relato feito pela camponesa moradora da Comunidade de Muritiba,
no município de Xique-Xique, é possível identificar vários elementos que configuram o
modo de vida das comunidades de Fundo de Pasto localizadas no Semiárido baiano,
cujas práticas cotidianas estão baseadas na coletivização do uso das terras, do
extrativismo vegetal e animal e dos saberes tradicionais, expressos na fala da
entrevistada através do uso de ervas e de plantas coletadas na caatinga para a produção
artesanal de remédios, como chás, xaropes, compressas, entre tantos outros. Ressalte-se
que, embora essas comunidades do entorno do Projeto Baixio de Irecê possuíssem as
características de comunidades tradicionais de Fundo de Pasto, nenhuma delas é
legalmente reconhecida como tal.
Após a audiência pública realizada em maio de 2014 pelo Ministério Público
Federal, no município de Xique-Xique, para tratar da representação pública impetrada
pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itaguaçu da Bahia, pelo Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Xique-Xique e pela Paróquia Senhor do Bonfim de Xique-
Xique – Bahia, Comissão Pastoral da Terra (CPT/BA), é que surgiu a proposta de
buscar o reconhecimento dessas comunidades como Fundos de Pasto. Antes disso, a
CPT já vinha fazendo a discussão junto às comunidades; todavia, essa ideia de
autodenominar Fundo de Pasto95 não tinha obtido muita adesão por parte dos
95 Para Ferraro Júnior e Bursztyn (2008, p. 1) “ao se reconhecer e ser reconhecido como fundo de pasto
(FP) uma comunidade e o conjunto destas comunidades acumulam forças para ocupar espaços mesmo em
situações de conflito”.
207
camponeses. Segundo afirmou o agente da CPT/Irecê, o Ministério Público Federal tem
visitado algumas comunidades para coletar depoimentos dos camponeses, a fim de
requerer o reconhecimento dessas comunidades como Fundos de Pastos, de tal forma
que as terras griladas por Airton Neves Moura nos anos 1970/80, hoje sob o domínio da
CODEVASF, sejam devolvidas aos camponeses.
Nesse sentido, temos uma questão importante no interior do movimento de
mobilização social, decorrente da atuação da CPT junto às comunidades. Gradualmente
os camponeses estão reconhecendo a necessidade de buscar novas estratégias para fazer
o enfrentamento ao Estado, sendo o reconhecimento das comunidades como Fundos de
Pastos uma possibilidade de retomarem as terras que outrora ocupavam coletivamente,
sem ter que pagar renda. Ferraro Junior e Bursztyn (2008, p. 8, grifos dos autores)
afirmam que na Bahia
destacam-se quatro grandes grupos de populações tradicionais:
indígenas, quilombolas, FP e pescadores (inclui ribeirinhos e
marisqueiras). Há ainda as ‘comunidades terreiro’ (também
reconhecidas pela PNPCT) e os ‘geraizeiros’ que não estão
organizados, mobilizados e tampouco mapeados, e que vêm se
articulando com os FP. Entre os geraizeiros há ainda um grupo
bastante diferenciado que é reúne as comunidades dos brejos da Barra,
também denominados brejeiros.
Devido à extensão da área e à quantidade de famílias, não é possível definir
quantas famílias ainda criam animais nas terras que eram da CODEVERDE, mas ficou
evidente, durante as entrevistas, que essa prática não foi extinta, até porque, depois que
parte dessas terras passaram para o domínio da CODEVASF, não houve mais a
cobrança de renda.
A cobrança de renda foi mencionada por diversos camponeses, sendo
confirmada através do contrato assinado pelas partes envolvidas (ver anexo 1) e
mediante depoimento de um camponês (74 anos), morador da Comunidade de São João,
em Itaguaçu da Bahia:
O Sr. Já morava na região quando a CODEVERDE chegou?
Oxente! Já! Eu sou filho daqui. Nasci bem perto daqui. A
CODEVERDE chegou com a proposta: era para pagar ou tinha que
tirar as criação. Você tem 8 bezerros e paga 1 para a CODEVERDE.
Saísse de onde saísse você tinha que comprar um bezerro para pagar.
Eu paguei foi muita renda. Tinha vez que eles vinham panhá e saia
daqui 3, 4 bezerros. De um ano para outro lá chegou a ter 60 gado lá.
[Fazenda Pioneira] (Informação verbal, maio de 2013, grifos do
autor).
208
Os animais recolhidos dos camponeses eram levados para uma das sedes da
CODEVERDE, nesse caso a Fazenda Pioneira (Foto 9), em Itaguaçu da Bahia e
ficavam sob os cuidados dos funcionários até atingirem o ponto de comercialização.
Desde 2012 a CODEVERDE não fez mais o recolhimento de animais nas comunidades
do Baixio de Irecê.
Foto 9 – Entrada da Fazenda da CODEVERDE em Xique-Xique (BA).
Fonte: Trabalho de Campo, fevereiro de 2012.
Autor: DOURADO, J. A. L.
Em outra entrevista, a cobrança de renda por parte da CODEVERDE também foi
ressaltada pela entrevistada (55 anos), moradora da Comunidade Nova Vereda, em
Itaguaçu da Bahia:
A gente planta no Poço Grande. A gente cria gado e criação96. Mas
para criar gado a gente paga. Quem cobra esse gado? Quem pega é
umas pessoa que trabalha pra CODEVERDE que fica na Pioneira,
rapaz que trabalha com eles né! Quando é aquele tempo eles vem
pegar. De 8 bezerros nascido a gente paga 1. Quem pega os bezerro é
os empregados, não é os donos não. Antes quando a gente era novo,
era assim absoluto97 que nem fala o povo, não tinha cerca mas hoje é
tudo fechado. A gente tem que criar na área da CODEVERDE. Não
tem como criar nas terra da gente mesmo porque é pouca. A gente
96 Criação é um termo utilizado pelos camponeses da região para designar caprinos e ovinos.
97 Absoluto quer dizer criar os animais livremente sem ter que pagar renda para o dono da terra.
209
vive dos bichin (sic) que cria. (Informação verbal, abril de 2013,
grifos do autor).
A região que compreende os vales dos rios Verde e Jacaré, ou seja, a área do
Baixio de Irecê representava um lugar de refúgio para os camponeses caatingueiros por
motivos diversos, como o desalojamento decorrente da construção da Barragem de
Sobradinho, a grande seca de 1972/73, a disponibilidade de água para a agricultura e a
existência de terras devolutas que poderiam ser utilizadas sem o jugo dos senhores das
fazendas. Em virtude da origem dos sujeitos bem como da diversidade territorial do
local de proveniência, fica evidente a diversidade de campesinatos na região do Baixio
de Irecê, conforme destaca Marques (2008, p. 70):
A diversidade de campesinatos existente em cada formação territorial
resulta de processos históricos complexos, a partir dos quais cada
grupo local determina sua própria maneira de se relacionar com a terra
e a natureza, conformando tradições distintas, o que, por sua vez está
intimamente vinculado às relações estabelecidas entre o grupo e as
várias formas de capital e seus respectivos mercados, organizados em
escalas diferenciadas.
Segundo relatos dos camponeses, existiam muitas fazendas de gado na região,
cujos donos residiam em outros locais, sendo comum entre os camponeses trabalharem
como diaristas, parceiros ou meeiros nessas fazendas, mediante a associação de formas
de produção não capitalistas com a reprodução de relações capitalistas, pois essa
articulação entre assalariamento e “agricultura de borda” constituía-se uma importante
estratégia de reprodução desse campesinato, em muitos casos subordinado ao fazendeiro
pecuarista. Essa subordinação sofreria alterações com a grilagem de terras porque, ao
invés do fazendeiro pecuarista, o campesinato com características de Fundo de Pasto
passava a ser subordinado à CODEVERDE. Essa empresa era formada pelo Banco
Econômico, pelo Grupo Odebrecht e o Bahema-Caterpillar, nomes que comparecem em
diversas transações de compra e venda de terras na área do atual Projeto Baixio de Irecê,
revelando as engrenagens da ação das personas do capital no processo de grilagem das
terras nos municípios de Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique, acentuando a sujeição do
trabalhador ao espaço de morada e de trabalho.
Como a questão central para o capital é viabilizar a extração da mais-valia,
torna-se imperioso transformar todos os sujeitos em trabalhadores, de modo a torná-los
disponíveis no circuito produtivo. Deste modo, a eliminação dos modos de vida pouco
favoráveis ao processo sociometabólico do capital constitui uma importante etapa para a
libertação do sujeito do jugo da terra, tornando-o livre para vender sua força de trabalho
210
para os proprietários dos meios de produção. Nessa perspectiva, Luxemburg (1983, p.
315) afirma que o
capital não pode desenvolver-se sem os meios de produção e forças de
trabalho existentes no mundo inteiro. Para estender, sem obstáculos, o
movimento da acumulação, necessita dos tesouros naturais e das
forças de trabalho existentes na superfície da terra. Mas como estas se
encontram, de fato, em sua grande maioria, acorrentadas a formas de
produção pré-capitalistas – este é o meio histórico da acumulação de
capital – surge, então, o impulso irresistível do capital de apoderar
daqueles territórios e sociedades.
Tem-se, nesse universo, a transformação da terra de trabalho em terra de
negócio98, conforme destaca Martins (1980), configurando novas relações no território a
partir da interferência de atores externos. Essa modernização da agricultura (e do
território) reflete um conjunto de alterações no uso da terra e da água, inclusive quando
se trata das ações do Estado, pautadas nas relações de mercado, não significando
necessariamente mudanças no plano do valor no tocante aos modos de vida dos
camponeses, porque suas práticas cotidianas estão entrelaçadas a valores tradicionais
que interferem na organização do tempo, do espaço e do trabalho. A partir da criação e
da expansão dos perímetros irrigados, acentuam-se os conflitos territoriais, traduzidos,
inclusive,pelas divergências entre concepções, projetos de sociedade e perspectivas de
futuro. Instala-se uma disputa político-ideológica, tendo como pano de fundo o
antagonismo entre o território dos povos do campo e o território do capital.
As Políticas Públicas voltadas ao incentivo da irrigação revelam os
direcionamentos daquilo que poderíamos denominar de geografia da grilagem de terras
e da expropriação camponesa. O resultado dessa reorganização espacial, incluindo a
própria existência de fazendas na região, cria as bases para a territorialização do grande
capital no Semiárido baiano, esboçando as particularidades da geografia das águas a
qual, nas últimas quatro décadas, ganha destaque em função das disputas territoriais e
de classes, no âmbito da demarcação de novas áreas propícias aos
megaempreendimentos agroindustriais, ocasionando redefinições campo-cidade e na
relação capital versus trabalho.
3.7 O campo movediço da legalização da grilagem de terras no Semiárido baiano:
o movimento das “peças” no tabuleiro sob o controle do Estado e do capital
98 A compreensão que temos sobre esses termos baseia-se nas reflexões realizadas por Martins (1991,
1995 e 2001).
211
Antes de adentrar nas minúcias da grilagem de terras nos municípios de
Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique, faz-se necessário debruçar sobre a origem das terras
devolutas no Semiárido baiano99 para compreender como se constituem as grandes
propriedades bem como aquelas áreas usadas coletivamente pelos camponeses
caatingueiros e pelas populações tradicionais (comunidades quilombolas, Fundos e
Fechos de Pastos, ribeirinhos, entre outras). Em sua obra Os donos do poder, Faoro
(1987) menciona a existência de um “mundo novo”, referindo-se ao Sertão, que, no caso
da Bahia, passaria a pertencer predominantemente às Sesmarias100 da Casa da Ponte e
Casa da Torre101, perspectiva corroborada por Ferraro Junior e Bursztyn (2008), cujas
dimensões territoriais eram desconhecidas. Destacamos que, durante a realização de
História Oral com um camponês (70 anos) morador da Comunidade de Muquém, em
Itaguaçu da Bahia, este afirmou que o grileiro Airton Neves Moura mencionava ter
comprado do “Conde da Ponte” as terras que reivindicava como suas e de quem não
repassava nenhuma outra informação que o identificasse. Ao analisar as informações e
resgatar a historicidade da organização territorial do Semiárido baiano, conclui-se que
esse “Conde da Ponte” a que se referia o Sr. Airton Neves Moura era, na verdade, o
dono da Sesmaria da Casa da Ponte, desagregada no final do século XVIII. Esse fato
revela o profundo conhecimento, por parte do grileiro, da estrutura fundiária da região,
por reconhecer a própria condição das terras, tendo total liberdade para forjar os
99 Germani (2010, p. 14) estima que aproximadamente 55% do território baiano sejam constituídos de
terras devolutas.
100 Terras cedidas pelo Rei de Portugal ou por seus prepostos para pessoas de sua confiança com o
propósito de ocupação e colonização.
101 A constituição dos latifúndios, no Brasil, muitas vezes se confunde com a história das Capitanias
Hereditárias. Especificamente no caso do Nordeste brasileiro, Garcia d’Ávila, homem de confiança de
Tomé de Souza e funcionário da Coroa, foi um dos nomes de destaque, obtendo sesmarias no litoral e no
sertão. Este sesmeiro tornou-se o maior criador de bovinos, em toda a colônia, adentrando sertão com o
domínio sobre várias sesmarias, estabelecendo vários currais, principalmente ao longo do rio São
Francisco. Nesse desbravamento do sertão acabou arregimentando uma enorme quantidade de índios que
passaram a trabalhar sob seu comando como vaqueiros, plantadores e jagunços e cujo patrimônio ficou
conhecido pelo nome de Casa da Torre. Nesse processo de desbravamento do Sertão, muitas ocorreram
muitos conflitos entre os desbravadores/colonizadores e indígenas e entre os colonizadores e
missionários. De acordo com Santos (2012, p. 6) no “final do século XVII, a mando das ‘mulheres da
Torre’ (assim eram chamadas vulgarmente a viúva do Francisco Dias d’Ávila, Leonor Pereira Marinho e
sua mãe Catarina Fogaça, irmã do Francisco Dias d’Ávila), o procurador da Casa da Torre de Tatuapara,
Antonio Gomes de Sá, expulsou os jesuítas Filipe Bourel e mais quatro missionários das aldeias de Acará,
Curumambá e Sorobabé. Os confrontos entre missionários e a Casa da Torre não eram novidades, pois,
em março de 1669, o segundo Garcia d’Ávila já havia destruído as igrejas das missões do Itapicuru,
Geremoabo e Caimbé ou Massacará. Neste mesmo ano, a guerrilha dos d’Ávila também destruíra as
missões de Santo Inácio, Santa Cruz e a de São Francisco Xavier, fundadas pelos padres João de Barros e
Jacob Roland em 1666.”
212
documentos necessários para comprovar a posse legal das terras usurpadas, ante a
certeza da impunidade em relação às barbáries cometidas contra os camponeses.
O apossamento coletivo de terras, por parte dos camponeses e fazendeiros,
ocorreu tanto no período das sesmarias até 1822, quanto após a sua extinção e a
constituição da chamada Lei de Terras102, de 1850. Essa lei demonstrou o poder de
articulação das classes dominantes, como explica Bursztyn (1995, p. 41):
Antevendo o fim da escravatura, que decorreria necessariamente do
fim do tráfico negreiro da África para o Brasil, efetivado em 1850
devido a pressões do governo inglês, as classes dominantes tomaram
providências de ordem legal para encaminhar o processo de
substituição do escravo sem prejuízo para a economia da grande
lavoura, principalmente café e cana. [...]. Tal lei instituía um novo
regime fundiário para substituir o regime de sesmarias suspenso em
julho de 1822 e não mais restaurado.
Entre 1822 e 1850, o Brasil ficou sem uma legislação que regulamentasse a
propriedade da terra e, conforme ressalta Torres (2011, p. 44-45), apesar da
vacância legal entre 1822 e 1850 favorecer aqueles que já possuíam
terras aumentar ainda mais suas propriedades, negros libertos,
vaqueiros, brancos pobres, também constituíram posses sobre terras
públicas, e nos fundos das fazendas de gado das sesmarias
parcialmente abandonadas, fazendo surgir, em grande parte, a forma
de exploração comunal, na região Nordeste da Bahia, que viria a ser
conhecida como fundo de pasto.
A promulgação da Lei de Terras representou o encerramento de um ciclo e, ao
mesmo tempo, funcionou como base para a perpetuação da concentração da terra. Com
a fragmentação das Sesmarias da Casa da Ponte e Casa da Torre103 iniciada no final do
século XVIII, abriu-se a possibilidade de se anexarem novas terras àqueles que já as
possuíam, bem como de constituírem propriedades aqueles que ainda não possuíam
terras. Para Ferraro Junior e Bursztyn (2008, p. 8), esta
desagregação, relacionada à decadência do ciclo do açúcar no
nordeste, permitiu que os antigos vaqueiros, ajudantes e suas famílias
mantivessem seu modo de vida e produção, independente do gado e
102 Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850. Lei de Terras, como ficou conhecida a lei nº 601 de 18 de
setembro de 1850, representou a primeira iniciativa adotada para estabelecer a propriedade privada no
Brasil. Até aquele momento, não havia nenhum documento que regulamentasse a posse de terras e, diante
à conjuntura econômica e social que se delimitava para o país, com os indícios do fim da escravidão, o
governo foi pressionado a criar mecanismos para obstaculizar a propriedade da terra pelos antigos
escravos. A Lei de Terras foi aprovada no mesmo ano da lei Eusébio de Queirós, que previa o fim do
tráfico negreiro e tinha como horizonte a abolição da escravatura no Brasil. Assim, essa Lei, nada mais é
que uma ação orquestrada pelos grandes fazendeiros e políticos latifundiários se anteciparam para impedir
que negros alforriados se tornassem donos de terras.
103 Para saber mais sobre a Sesmaria Casa da Torre, consultar Calmon (1983).
213
do mando senhorial. A posse das terras da caatinga baiana pelos
conjuntos de famílias foi obtida por compra no período de
desmembração das sesmarias (primeira metade do século XIX) ou
pelo uso das terras devolutas.
As sesmarias avançaram para o interior e com elas os currais104 de gado, para
posteriormente aquelas entrarem em colapso no final do século XVIII, ficando muitos
espaços ociosos enquanto outros eram ocupados por camponeses na forma de
arrendamento ou posse simples. Por não atenderem ao dispositivo da Lei de Terras,
essas áreas seriam novamente incorporadas ao domínio do Estado, sendo denominadas
terras devolutas105 aquelas que foram dadas em sesmarias e, por terem caído em
comisso106, foram devolvidas à Coroa. Para Ferraro Junior e Bursztyn (2010, p. 388), as
terras devolutas são áreas onde geralmente “[...] vivem posseiros e outros povos, muitas
vezes em tensão com outros grupos interessados na sua ocupação. São territórios da
desconstrução e reconstrução do campesinato, nos quais surge um padrão camponês de
ocupação [...]”, áreas em que persistem, em pleno século XXI, comunidades
agropastoris e sobre as quais há um forte tensionamento, por parte do grande capital, na
busca por novos espaços para a sua reprodução ampliada.
De modo geral, a ocupação do Semiárido deu-se a partir dos vaqueiros e
posseiros, sendo estes últimos os que, na maioria das vezes, ocupavam as bordas das
fazendas, ou seja, as faixas de terras menos férteis, denominadas “terras fracas”.
Segundo Bloch (1996, p. 20), o
povoamento do vale do São Francisco pelos portugueses começou no
século XVII, com a catequização ou eliminação dos índios, deixando
lugar à criação de gado em grandes latifúndios, maior atividade
econômica da região até meados do século XX. [...] Além da pecuária
e da agricultura de subsistência praticada no sequeiro, havia também a
agricultura de várzea, que se aproveita das margens férteis do São
Francisco.
Os camponeses107que ocupavam as áreas do Semiárido baiano tinham como base
de reprodução familiar a pecuária e a agricultura para o autoconsumo, sendo aquela
104 Prado Junior denominou esse período de “civilização do gado” (PRADO JUNIOR, 1997) porque todas
as atividades que floresceram no Semiárido, com toda sua riqueza cultural, religiosa e diversidade
econômica estavam intrinsecamente relacionadas às atividades rurais, com destaque para a pecuária.
105 Decreto-lei 9.760/1946, de 5 de setembro de 1946, dispõe sobre os bens imóveis da União. De acordo
com o artigo 5º dessa lei, terras devolutas são as terras que não estão em uso público federal, estadual ou
municipal, ou que não estejam sob o domínio particular.
106 Multa imposta pelo não cumprimento do acordo entre a Coroa portuguesa e o sesmeiro.
107 Segundo Ferraro Junior e Bursztyn (2010, p. 390), o termo camponês, no Nordeste, refere-se a duas
concepções: aos assalariados rurais e aos que ainda não foram totalmente expropriados dos meios de
214
caracterizada por ser de sequeiro e esta desenvolvida nos vales úmidos dos rios, brejos e
lameiros, como aponta Germani (2005, p. 6013):
A agricultura implantou-se no vale em paralelo com o processo de
povoamento. Em princípio voltada para a subsistência, a agricultura
conserva, até hoje, as mesmas características, sendo a exploração
pecuária sempre mais extensiva do que o cultivo da terra. De maneira
geral, os pequenos produtores, proprietários ou não, têm ocupado
áreas de vazantes ou algumas ilhas disseminadas sobre o leito do rio,
sujeitas a desaparecer com as enchentes.
Ainda sobre as particularidades da agricultura praticada no Médio São
Francisco, antes da intervenção do Estado, através de políticas públicas de incentivo à
irrigação, Germani (2005, p. 6014) expõe que nas
vazantes cultivavam-se culturas temporárias, como: milho, feijão,
mandioca e arroz, e a produção obtida nos brejos voltava-se
praticamente para o abastecimento intrarregional. A cana-de-açúcar
não atingiu o mesmo nível de importância alcançado na Zona da Mata,
uma vez que, na região predominava a existência de pequenos
engenhos que produziam rapadura e/ou aguardente, tendo sido
utilizada também como reserva forrageira. O algodão, que se destacou
como sendo a cultura mais antiga da região, entrou em declínio diante
da expansão da pecuária.
Na região de Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique, era comum a presença de
camponeses morando nas fazendas onde trabalhavam, havendo casos em que os
proprietários das terras doavam pequenas glebas para que estes pudessem desenvolver
uma agricultura voltada para o autoconsumo nos dias “livres”, como forma de
complementar a renda obtida com o assalariamento. Conhecidos como sitiantes ou
agregados, parte desses camponeses possuía pequenas propriedades em áreas de
sequeiro, sendo insuficientes para a criação de animais, levando-os a buscar o
assalariamento parcial.
Em outros casos, a agricultura e a pecuária extensiva eram praticadas nas áreas
comunais, como verificado nas 20 comunidades circunvizinhas do Projeto Baixio de
Irecê, cujas terras eram ocupadas dessa forma há aproximadamente um século,
conforme relatos dos camponeses. Ante a atuação do Estado, essas terras passariam a
ser cobiçadas, inicialmente pelos grileiros e, posteriormente, pelo grande capital devido
à possibilidade de implantação da infraestrutura hídrica, não havendo mais espaço para
o antigo morador/sitiante, o posseiro, o ribeirinho ou o vaqueiro. Mediante a
produção, e a “[...] gênese do sertanejo se ajusta a essa segunda acepção do campesinato nordestino que,
em algumas regiões, manteve a posse da terra em comunidades pastoris, nas quais se incluem os Fundos
de Pasto”.
215
possibilidade de investimentos a serem feitos pelo Estado, as terras passariam a ser
valorizadas e transformar-se-iam em objeto de cobiça e conflito, aprofundando dessa
maneira as contradições e as barbáries no âmbito do metabolismo do capital, em terras
semiáridas, na Bahia.Transformada em reserva de valor, a terra grilada viabilizou
aextração de renda a ser transformada em lucro pela CODEVERDE,pelo fato desta
cobrar pagamento dos camponeses para que pudessem criar os animais soltos na área
sob seu domínio. Essa cobrança passou a fazer parte do universo das famílias das
comunidades localizadas na área onde seria implantado o Projeto Baixio de Irecê.
Percebeu-se, através do resgate da historicidade das comunidades mediante o uso da
História Oral, que não havia a preocupação, por parte dos camponeses, de ter a
propriedade da terra porque o interesse desses sujeitos era apenas usá-la para a
reprodução familiar.
Temos, nesse caso, a sobrevalorização do direito à propriedade privada da terra,
ao passo que sua função social constituía uma realidade através do uso coletivo das
áreas pelos camponeses108 para a criação de animais, agricultura, extrativismo vegetal e
animal. O uso da terra é aqui entendido como um valor próprio da identidade
camponesa, carregada de hibridismo, porque a historicidade do campesinato do
Semiárido baiano é repleta de contradições e sua “trajetória não é linear”, como aponta
Woortmann (1990, p. 16). A historicidade dos camponeses que vivem no Semiárido
baiano tem uma longa trajetória de desterritorialização, fuga e reterritorialização, seja
pelo avanço da pecuária, seja pelos projetos desenvolvimentistas, iniciados com a
construção de Sobradinho109 que inundou aproximadamente 4.214 km². Conforme
destaca Woortmann (1990, p. 12), para o camponês a terra é:
expressão de uma moralidade; não se vê a terra em sua exterioridade
como fator de produção, mas como algo pensado e representado no
contexto de valorações éticas. Vê-se a terra, não como natureza sobre
a qual se projeta o trabalho de um grupo doméstico, mas como
patrimônio da família, sobre a qual se faz o trabalho que constrói a
família enquanto valor. Como patrimônio, ou como dádiva de Deus, a
terra não é simples coisa ou mercadoria.
108 Oliveira (1986, p. 70) define esse sujeito como “camponês-posseiro”.
109 Os resultados decorrentes da construção do Lago de Sobradinho trouxeram grandes impactos
negativos para as populações atingidas, direta ou indiretamente, por esse empreendimento, pois
submergiram 350 km de margens férteis do rio, além das ilhas onde também se praticava a agricultura
itinerante, numa estimativa de que, da área total inundada, 40% era agriculturável, conforme afirma
Pereira (1987).
216
A proliferação das ações de injustiça, opressão e desterritorialização tiveram sua
continuidade com os projetos de irrigação e, mais recentemente, com a mineração e com
os parques eólicos que avançam sobre os territórios dos camponeses e das populações
tradicionais, para atender aos ditames do mercado global. Por isso, é necessário analisar
os desdobramentos da expansão dos empreendimentos no Semiárido baiano sob o
comando do grande capital e com o consentimento do Estado, porque a análise espacial
desse fenômeno revela um elemento importante para a compreensão de como vem
ocorrendo a mobilidade do capital, nessa região, em busca de novas formas de
acumulação. Determinadas frações do território semiárido baiano que, até o início dos
anos 1990, não haviam despertado interesse do grande capital, ou seja, os topos das
serras e as terras de sequeiro, distantes do vale do Rio São Francisco, passam a ser
incorporadas a uma nova estrutura socioeconômica, com base na expansão do
capitalismo “financeirizado” no campo. Enquanto há uma dilatação dos territórios sob o
domínio do grande capital, tem-se um “encolhimento” dos territórios camponeses,
fazendo emergir, na contramão desse fenômeno, movimentos de contestação dessa
lógica perversa e desigual. Esse “próspero” e “novo” Semiárido revela o “atraso” e o
ufanismo inerentes aos projetos desenvolvimentistas pautados na globalização perversa,
à qual se atribui a responsabilidade de reduzir as desigualdades sociais, como enfatizam
os representantes do Estado em seus discursos. Assim sendo, conforme afirma Bursztyn
(1984, p. 165, grifo do autor),
o Estado tem um papel decisivo na expansão capitalista, através da
criação de enclaves no Nordeste. Nestes “lócus” privilegiados pela
ação planejada, novos grupos sociais aparecem, enquanto outros
reduzem. E essa mudança não se limita à esfera dos trabalhadores,
onde os assalariados são cada vez mais importantes em relação aos
parceiros, moradores e arrendatários. Também no topo da hierarquia
social o Estado cria novos grupos: uma parcela dos velhos
latifundiários tornam-se capitalistas modernos e uma “pequena
burguesia” rural, outrora inexistente, começa a aparecer como um
produto direto dos programas de desenvolvimento regional.
Os resultados dos programas de desenvolvimento regional/territorial
influenciaram diretamente a dinâmica do espaço agrário no Semiárido baiano, havendo
uma sobreposição de ações e políticas públicas com vistas a reconfigurar as atividades
econômicas locais/regionais, criando um extraordinário mosaico geográfico de
produção de riquezas e miséria. Há, nesse sentido, um amálgama de formas “arcaicas” e
“modernas” necessário ao pleno desenvolvimento do capitalismo, num processo
recíproco de retroalimentação que emana do controle social e da despossessão
217
crescentes no presente. Através dos programas e projetos direcionados à irrigação, a
agricultura praticada no Semiárido tem sido incorporada à produção agropecuária
globalizada, exigindo significativos investimentos em correção de solos, fertilizantes,
agrotóxicos, máquinas e sistemas de irrigação. Políticas públicas dessa natureza
representaram (e ainda hoje representam) grandes obstáculos para os camponeses pelo
fato destes não disporem de recursos financeiros para modernizar a produção e porque,
em geral, não há por parte dos formuladores o propósito em alterar a realidade. Por
meio da aliança terra-capital manteve-se “[...]intocada a estrutura do poder no
campo”(DELGADO, 2001, p. 31), garantindo a perpetuação dos mecanismos de
valorização especulativa dos capitais, ao passo que a estrutura fundiária permaneceu
congelada, sendo incontestável a concentração de terras. Destacamos, nessa seara, o
“Projeto Sertanejo”, pois este contribuiu para fomentar a valorização e grilagem de
terras, aumentando a “vulnerabilidade das populações locais e de suaconsequente
desterritorialização.” (FERRARO JUNIOR e BURSZTYN, 2010, p. 395).
Aliás, muitas das Políticas Públicas (programas e projetos) formuladas para o
Semiárido brasileiro, desconsideram as potencialidades e particularidades dos sujeitos
que residem na região, excluindo-os do acesso aos benefícios decorrentes dos
investimentos feitos pelo Estado, por não terem expertise para acessá-los, como é
possível verificar através dos procedimentos adotados para a escolha daqueles que irão
ocupar os lotes nos projetos de irrigação. Quando os camponeses e trabalhadores locais
são absorvidos nas obras de construção dos perímetros irrigados, ou mesmo depois, nas
atividades agrícolas, estes ocupam funções com baixa remuneração e de caráter
temporário, configurando condições precárias de trabalho, expressas pelo
assalariamento temporário nos canteiros de obras, em muitos casos intermediado pela
terceirização dos contratos de trabalho e pela informalidade, situação comum, inclusive,
nas lavouras dos perímetros irrigados. Esses, entre tantos outros fenômenos, colocam
novos e complexos desafios para a análise e a compreensão da classe trabalhadora
atualmente, porque, segundo Antunes (2005, p. 82), a “classe trabalhadora, hoje,
também incorpora o proletariado rural – que vende a sua força de trabalho para o capital
-, de que são exemplos os assalariados das regiões agro-industriais, [...].”
Ocorre, na verdade, a captura dos espaços de vida e de trabalho, sendo estes
transformados em “territórios para o consumo” (HARVEY, 2005), tornando-se mais
dinâmicos para o capital, e assumindo, consequentemente, a condição de territórios dos
conflitos e das disputas, numa simbiose entre desenvolvimento e
218
“subdesenvolvimento”, pautada na “autoconcepção eternizante do capital”
(MÉSZÁROS, 2002, p. 605).
A região do Baixio de Irecê elucida bem essa realidade porque as comunidades –
bastante heterogêneas e detentoras de distintos modos de vida – passaram a sofrer as
interferências diretas dos megaprojetos executados pelo governo durante o período da
ditadura militar. Em decorrência da construção da Barragem de Sobradinho, a
identidade territorial das comunidades sofreu alterações porque muitas famílias
desalojadas foram reassentadas nessa área, o que confere características bastante
heterogêneas aos modos de vida dos camponeses. Em 2013, durante um encontro de
mobilização promovido pela CPT/Irecê na Comunidade de Roçado, no município de
Xique-Xique, um camponês (32 anos) fez o seguinte relato:
Minha família veio “corrida” de Sobradinho para cá. Quando chegou
aqui foi para uma área de catinga. Aqui passou um sofrimento danado
com medo de Airton Moura que veio tomando terra de todo mundo.
Agora a gente está assim: o que sobrou que a CODEVASF não pegou
corre o risco de ser tomado pelas mineradoras e pela energia eólica. A
gente fica desesperado porque terra não tá fácil e a gente não é mais
menino. É triste viu viver assim. [...]. (Informação verbal,
26/05/2013.Grifo nosso).
Os projetos desenvolvimentistas executados pelo Estado e o grande capital têm
ocasionado a mobilidade forçada do campesinato no Semiárido baiano, gerando
múltiplos processos de expropriação, conforme expõe o camponês A. da S. P. (62 anos),
morador da Comunidade de Carneiro, município de Xique-Xique:
A gente foi retirado das ilhas e da margem do São Francisco pela
CHESF para a construção de Sobradinho;daí a gente foi para a Serra
do Rumo, e quando nós já estava produzindo e criando, fomos
expulsos pelos jagunços que queimaram tudo: casa, roça, até os
poleiros das galinhas.E agora vem esse projeto para tirar nós de novo
da terra. (Informação verbal, 26/05/2013).
Considerando os relatos dos camponeses, é possível constatar diferentes agentes
e/ou processos expropriatórios presentes na história do campesinato caatingueiro,
revelando o movimento do capital na busca por sua reorganização espacial, mediante a
incorporação de novas áreas para atender às demandas do mercado. Na década de 1970,
no ápice da reestruturação produtiva do capital, ocorreu o boom dos projetos de
irrigação e a construção de hidrelétricas no São Francisco. No momento atual,
associados aos projetos de irrigação, tem-se a explosão da mineração e dos parques
eólicos, colocando novos e complexos elementos para a análise da
219
mobilidade/territorialização do capital sobre terras semiáridas baianas. Essa inserção
revela as marcas, as contradições históricas e o conteúdo territorial impressos na
configuração espacial do espaço agrário no Semiárido baiano, onde modernização e
pobreza estão separadas por tênues limites recobertos com “mantos” que escondem a
degradação das condições de trabalho e de vida das populações que vivem no campo.
Quando entra em cena a implantação dos perímetros irrigados, no primeiro
momento, a total desinformação por parte da população local em relação aos
empreendimentos cria uma expectativa sobre a possibilidade de melhoria nas condições
de vida, pois, historicamente, o acesso à terra e à água constituiu um problema no
Nordeste semiárido, estando associado ao latifúndio – baseado na pecuária extensiva, na
monocultura do algodão e no coronelismo – e ao controle político. Com isso, temos
cada vez mais um processo de controle da massa trabalhadora, com a intensificação do
assalariamento no campo, em virtude das alterações na agricultura, do pacote
tecnológico e das mudanças nas relações de trabalho. Assim como na cidade, o trabalho
no campo passa a ser cada vez mais precarizado, fragmentado e alienado, porque, junto
com a modernização da agricultura, vem o grande capital, apropriando-se das terras e da
água e, consequentemente, fomentando os processos des-reterritorializantes e a “lógica
empresarial” entre os próprios camponeses.
3.8 Legalizando a Barbárie no Semiárido baiano: do uso comunal ao cercamento
das terras no Baixio de Irecê
Antevendo a possibilidade de valorização das terras localizadas entre os vales
dos rios São Francisco, Jacaré e Verde, ocorreu o esbulhamento do campesinato que
ocupava coletivamente a vasta faixa de terras que abrange os municípios de Itaguaçu da
Bahia, Xique-Xique, Jussara e Sento Sé. Airton Moura teria, na década de 1970, o papel
de fazer a “limpeza” da área para viabilizar a apropriação das terras pelo capital,
transformando-as em reserva de valor, ante à possibilidade de implantação nessa área do
maior projeto de irrigação da América Latina. Esse trabalho de “limpeza” foi feito desde
a margem direita do rio São Francisco, nas mediações do município de Xique-Xique –
aproximadamente no povoado de Boa Vista – até as margens do Rio Jacaré,
atravessando o vale do rio Verde, no sentido leste-oeste, numa extensão de
aproximadamente 100km e na direção norte-sul (50km), até as imediações dos
povoados de Lajes, em Itaguaçu da Bahia.
220
Airton Moura comparece como primeiro agente no complexo processo de
compra de terras, nos municípios de Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique, por importantes
grupos econômicos como a Odebrecht, Banco Econômico, Bahema e COPENER,
posteriormente agrupados com o nome de CODEVERDE. Diversas estratégias foram
utilizadas por Airton Moura e seus jagunços no processo de grilagem, como ameaças de
morte, esbulho, queima de casas e cercas, violência psicológica e processos fraudulentos
de compra de terras dos camponeses que talvez pudessem comprovar o direito de
propriedade.
É necessário destacar que as áreas usadas coletivamente pelas famílias
camponesas, entre os vales dos rios São Francisco, Verde e Jacaré, eram, justamente,
aquelas que despertavam pouco interesse entre os sesmeiros e, posteriormente, entre os
grandes fazendeiros, porque estavam relativamente distantes das margens do rio São
Francisco. Buscando ter a posse da terra, as famílias camponesas adentraram a Caatinga
e passaram a ocupar-se com a pecuária extensiva – sendo predominante a criação de
caprinos sob o regime de “bode solto” ou compáscuo110 – e com a agricultura nos vales
úmidos dos rios Verde e Jacaré. Ressalte-se que a interiorização da pecuária foi um dos
pilares do processo de ocupação do sertão, constituindo uma verdadeira “civilização do
couro111”, conforme destaca Abreu (1963). Sobre a mobilidade do campesinato em
busca de terras disponíveis para fazer sua roça, Martins (1990) afirma que essa
ocupação dura apenas o tempo necessário à chegada do grileiro ou do fazendeiro.
“Expropriação”, segundo Oliveira (2001, p. 110), é apenas uma das faces da questão
agrária no Brasil, estando associada a outro fenômeno, o da exploração, ambos
verificados nas comunidades do Baixio de Irecê. Ainda no tocante aos aspectos que
envolvem a expropriação camponesa, Martins (1990, p. 50) afirma:
[...] a expropriação constitui uma característica essencial do processo
de crescimento do capitalismo, é um componente da lógica da
reprodução do capital. O capital só pode crescer, só pode ser
reproduzir, à custa do trabalho, porque só o trabalho é capaz de criar
riqueza. Por isso, uma lei básica do capital é a de subjugar o trabalho.
Não há capitalismo sem subjugação do trabalho.
110 Termo muito usado no Direito Civil. Refere-se à comunhão de pastos entre camponeses/proprietários.
111 Sobre essa civilização do couro, Andrade (1982, p. 65) descreve: “De couro era a porta das cabanas,
rude leito aplicado ao chão, e mais tarde a cama para os partos, de couro todas as cordas, a borracha para
carregar água, o mocó ou alforje para levar comida, a mala para guardar roupa, a mochila para milhar o
cavalo, a peia para prendê-lo em viagem, as bainhas de facas, as brocas e os surrões, a roupa de montar no
mato, os bangüês para curtumes ou para apanhar sal, para os açudes o material de aterro era levado em
couros por juntas de bois, que não calcavam a terra com seu peso, em couro pisava-se o tabaco para o
nariz”.
221
Nos vales dos rios Verde e Jacaré existiam (e ainda existem) fazendas,
resultantes do desmembramento da Sesmaria Casa da Ponte, abrigando muitas famílias
que trabalhavam na condição de agregados, posseiros, vaqueiros, diaristas, com forte
presença de relações não capitalistas de produção, expressas pela coexistência da
agricultura de “borda” ou “marginal” voltada para a produção de gêneros alimentícios,
enquanto os fazendeiros se dedicavam à pecuária de gado bovino, nas áreas de caatinga
e ao cultivo de cana-de-açúcar, nos vales úmidos dos rios, para a produção de rapadura
e forragem para o rebanho durante os períodos de estiagem.
A expropriação dos camponeses pela ação do grileiro Airton Neves Moura
promoveu transformações nas relações de trabalho entre as famílias das comunidades do
Baixio de Irecê. A ocupação comunal dessas áreas constituía uma estratégia de
reprodução do campesinato caatingueiro, sendo este, em sua essência, caracterizado por
não ter terra, ou seja, eram camponeses que viviam, em sua maioria, na condição de
agregados112, parceiros, meeiros, arrendatários e trabalhadores rurais (vaqueiros e
jagunços) em fazendas da região. Historicamente, parte desse campesinato sempre
esteve subordinado aos fazendeiros, a quem pagavam renda113 diretamente, sem a
presença de intermediários. Por outro lado, uma parcela desse campesinato adquiriu
relativa autonomia em relação ao fazendeiro, devido à aquisição de terras, via compra,
por meio de doação feita pelos próprios fazendeiros como forma de pagamento e/ou
gratidão por serviços prestados, ou, ainda, mediante a ocupação de terras devolutas. Em
se tratando do processo de formação do campesinato no Semiárido, os autores Ferraro
Junior e Bursztyn (2010, p. 485-6) reforçam que o:
esfacelamentodas grandes sesmarias – como das Casas da Pontee da
Torre –, entre o final do século XVIII e iníciodo século XIX,
decorrente da queda da economiado açúcar, permitiu o
estabelecimento e a formação de um campesinato advindo de famílias
de vaqueiros, agregados e outros recém-chegados, num processo de
acampesinamento relacionadoao apossamento comunal das terras. O
descontrole do Estado sobre essas terras, o desinteresse econômico por
112 Martins (1994, p. 35-36) explica minuciosamente como se constituíam as relações entre o agregado e o
fazendeiro. Segundo esse autor, a relação entre esses sujeitos “[...] era essencialmente a relação de troca –
troca de serviços e produtos por favores, troca direta de coisas desiguais, controlada através de um
complicado balanço de favores prestados e favores recebidos. Nesse plano, a natureza das coisas trocadas
sofria mutações – pelo fato de viver e trabalhar autonomamente nas terras de um fazendeiro, um agregado
podia retribuir-lhe defendendo o seu direito de se assenhorear de mais terras, de litigar com fazendeiros
vizinhos, etc. com isso, o agregado, defendia também o seu direito de estar na terra do fazendeiro. Mas
não podia defender o direito de estar na terra, sem fazer dessa terra propriedade do seu fazendeiro. A sua
luta era luta do outro”.
113 Martins (1980, p. 163) defina esse pagamento como “renda pré-capitalista”.
222
elas e o seu relativo isolamento geográfico são aspectos que
favoreceram seu desenvolvimento. No sertão, essas condições
perduraram sem alterações bruscas e exógenas até as décadas de 1970
e 1980, quando o cercamento de grandes áreas criou choques com os
usos costumeiros.
Analisando a realidade das comunidades circunvizinhas ao projeto de irrigação
Baixio de Irecê, vê-se que o intuito do grilo da terra não foi a expropriação para a
introdução de uma nova atividade econômica. O que ocorreu, de fato, foi a apropriação
da terra como reserva de valor, tornando-a mercadoria, já com vistas aos possíveis
lucros a partir da realização de investimentos públicos em obra de infraestrutura hídrica
na região. As terras, até então, utilizadas de maneira comunal foram cercadas e os
camponeses passaram a ser obrigados a pagar renda à CODEVERDE pela criação de
animais nessa área. Temos, nesse contexto, aquilo que Martins (1980, p. 175) define
como a “sujeição da renda da terra ao capital”, ou seja, o grande capital procura tornar-
se proprietário de terra, ao vislumbrar lucros mediante a especulação imobiliária, sem o
intuito de desenvolver atividades agrícolas, num processo de unificação do capitalista e
do proprietário de terras. Sobre essa questão, Oliveira (2001, p. 49) afirma que
[...] o desenvolvimento do modo capitalista de produção no campo se dá
primeiro e fundamentalmente pela sujeição da renda da terra ao capital,
quer pela compra da terra para explorar ou vender, quer pela
subordinação à produção do tipo camponês. O fundamental para o
capital é a sujeição da renda da terra, pois a partir daí, ele tem as
condições necessárias para sujeitar também o trabalho que se dá na
terra.
Inicialmente, a despossesão dos camponeses, teve a função de assegurar a
propriedade privada sobre as terras devolutas, tendo os agentes da grilagem utilizado,
para tanto, traços de (i)legalidade. Esse seria um passo importante para a transformação
da terra de trabalho em terra de negócio, conforme explica Martins (1991, p. 55):
Quando o capital se apropria da terra, esta se transforma em terra de
negócio, em terra de exploração do trabalho alheio; quando o
trabalhador se apossa da terra, ela se transforma em terra de trabalho.
São regimes distintos de propriedade, em aberto conflito um contra o
outro. Quando o capitalista se apropria da terra, ele o faz com o intuito
do lucro, direto ou indireto. Ou a terra serve para explorar o trabalho
de quem não tem terra; ou a terra serve para ser vendida por alto preço
a quem dela precisa para trabalhar e não a tem. Por isso, nem sempre a
apropriação da terra pelo capital se deve à vontade do capitalista de se
dedicar à agricultura.
Ressaltamos que a inexistência de organização política, por parte das famílias
camponeses moradoras das comunidades localizadas entre os vales dos rios São
223
Francisco, Verde e Jacaré, nos municípios de Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia,
favoreceu, sobremodo, a apropriação das terras por Airton Moura. As organizações
sociais existentes na região, durante aquele período – como a Grupo de Apoio e de
Resistência Rural e Ambiental (GARRA), Fundação de Desenvolvimento Integrado do
São Francisco(FUNDIFRAN) e Coordenação Estadual de Trabalhadores Acampados e
Assentados (CETA) – estavam focadas em organizar as famílias desalojadas pela
construção de Sobradinho. Após a “limpeza” da área situada à margem esquerda do rio
São Francisco, mediante a despossessão dos camponeses, as terras passaram a ser
incorporadas por grandes grupos econômicos com atuação em setores diversificados.
Após o levantamento da cadeia sucessória de 15 propriedades localizadas na região em
que os camponeses mencionam ter ocorrido a grilagem de terras, identificamos alguns
nomes que sempre comparecem nas transações de terras, a saber: Airton Moura, Banco
Econômico, Bahema, Copener/Copene, Gustavo Colaço Dias, João Medeiros Borges e
Eulina Borges de Sena.
A elaboração da cadeia sucessória foi feita com base na documentação cedida
pelo Cartório de Registro de Imóveis e Hipotecas – Comarca de Xique-Xique – a pedido
da CPT/Irecê, sendo esta responsável por atuar junto às comunidades impactadas pelo
Projeto de Irrigação Baixio de Irecê (Tabela 13).
224
Tabela 13 – Transações de compra e venda de terras na área do Projeto baixio de Irecê
Propriedade Extensão
(ha)
Município Proprietário
Atual
Vendedor Ano de
compra
Cadeia
sucessória
(anos)
Fazenda
Codeverde
12.362 Itaguaçu da
Bahia
CODEVASF CODEVERDE 2011 145
Fazenda
Codeverde
31.827 Itaguaçu da
Bahia
CODEVASF CODEVERE 2011 145
Fazenda Boa
Vista
2.853 Xique-Xique CODEVASF CODEVERDE 2011 33
Baixio de
Irecê –
ETAPA I
1.406 Xique-Xique CODEVASF José Carlos
Ferraz Ribeiro
2002 33
Gleba da
Fazenda
André
2.423 Xique-Xique
e Itaguaçu da
Bahia
CODEVASF ITRUL* 2011 94
Fazenda
André
8.333 Xique-Xique
e Itaguaçu da
Bahia
CODEVASF José Cralos
Ferraz Ribeiro
2011 94
Fazenda Boa
Vista – Gleba
I
143 Xique-Xique
e Itaguaçu da
Bahia
CODEVASF CODEVERDE 2009 37
Fazenda
Codeverde –
Gleba 2
637 Xique-Xique CODEVERDE Banco
Econômico
2012 146
Fazenda
Codeverde –
Gleba 3
229 Xique-Xique CODEVERDE Banco
Econômico
2009 146
Fazenda
Santa Izabel
36.165 Itaguaçu da
Bahia
CODEVERDE Copene 1992 32
Fazenda
Codeverde
72.084 Itaguaçu da
Bahia,
Xique-Xique
e Sento Sé
CODEVERDE Banco
Econômico
2009 145
Fazenda Boa
Vista
135 Xique-Xique
e Itaguaçu da
Bahia
CODEVASF CODEVERDE 2011 38
Fazenda Boa
Vista
10.834 Xique-Xique CODEVASF CODEVERDE 2010 33
Fazenda
Baixio de
Irecê I
8.802 Xique-Xique
e Itaguaçu da
Bahia
CODEVASF CODEVERDE 1999 38
Fazenda Boa
Vista
2.250 Itaguaçu da
Bahia
CODEVASF Empresa Agro
Indústria
2010 37
225
Área total 176.071 hectares
Elaboração: DOURADO, J. A. L.
Fonte: Cartório de Registro de Imóveis e Hipotecas, Xique-Xique, 2013.
*Imobiliária de Terrenos Rurais e Urbanos LTDA.
Foram cedidas 15 certidões que nos possibilitaram levantar informações sobre os
processos de compra e venda das propriedades, de modo a entender as teias que
envolvem a movimentação das peças no complexo tabuleiro do mercado de terras nos
vales dos rios Verde e Jacaré. Com base nos dados da Tabela 13,percebe-se que a
CODEVASF não desapropriou pequenos agricultores114, pois as únicas áreas com
menos de 200ha são oriundas de desmembramentos de fazendas maiores, revelando as
estratégias adotadas pelos grandes proprietários para a venda das terras para a
CODEVASF. Alguns nomes são recorrentes nos registros de compra e venda de terras
emitidos pelo Cartório de Registro de Imóveis e Hipotecas de Xique-Xique, com
destaque para Airton Neves Moura, Banco Econômico, Bahema, Copene/Copener,
Gustavo Colaço Dias, João Medeiros Borges, José Medeiros Borges e Eulina Borges de
Sena.
Conforme menciona a Ação Civil Pública Coletiva impetrada pela Comissão
Pastoral da Terra/Irecê, pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itaguaçu da Bahia e
pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xique-Xique, junto ao Ministério Público
Federal, a primeira transação de compra de terra feita por Airton Neves Moura na região
foi com Eulina Borges de Sena, herdeira de José de Medeiros Borges, cujo inventário
seria utilizado para atribuir caráter de legalidade à origem da propriedade das terras.
Outro nome recorrente é o de João de Medeiros Borges, também citado nos documentos
de compra e venda de terras, fazendo uma alternância entre eles quanto às transações
envolvendo terras nos vales dos rios Verde e Jacaré.
De acordo com informações contidas nos registros emitidos pelo Cartório de
Registros de Imóveis e Hipotecas, Gustavo Colaço Dias115 adquiriu terras nessa região
em três momentos distintos: 1976, 1979 e 1985. Tratava-se de um influente empresário
do setor sucroalcooleiro, acionista da Agrovale, uma das maiores produtoras de cana de
açúcar e etanol do Nordeste brasileiro, com expressiva atuação no município de
114 Para o IBGE, o pequeno agricultor é aquele que possui propriedade que varia entre 0 e 200 hectares.
115 Nascido em 1926, faleceu dia 05/09/2014 na cidade de Recife (PE). Ao longo de sua trajetória, atuou
em diferentes funções: Diretor Vice-Presidente da Federação das Indústrias de Pernambuco, Diretor Vice-
Presidente do Centro das Indústrias de Pernambuco, Diretor Presidente do Sindicato da Indústria do
Açúcar no Estado de Pernambuco e Membro do Grupo Interministerial do Açúcar (GTA). Disponível em:
http://www.agrovale.com/?sessao=noticia&cod_noticia=326. Acesso em: 19/11/2014.
226
Juazeiro (BA), com aproximadamente 21.000 hectares de cana-de-açúcar plantados,
uma vez que, com a criação do PRÓ-ÁLCOOL pelo governo federal em novembro de
1975, passou-se a especular sobre a produção de agrocombustíveis no projeto de
irrigação a ser implantado nos municípios de Itaguaçu da Bahia, Xique-Xique e Sento
Sé, nos vales dos rios Verde e Jacaré. Essa região aglutinava um elenco de
características favoráveis à expansão de empreendimentos capitalistas baseados na
modernização do campo: terras férteis, área planas, proximidade com o rio São
Francisco, grande quantidade de áreas utilizadas de forma comunal e falta de
organização política por parte dos camponeses. Em decorrência disso, essas terras
passaram a ser cobiçadas para a produção de agrocombustíveis, como revela a presença
dos grupos econômicos Copene, Copener e Agrovale, do setor de agroenergia.
O Banco Econômico, de propriedade do banqueiro Ângelo Calmon de Sá,
também possuía terras na atual área do Projeto Baixio de Irecê, conforme comprova os
registros de imóveis e hipotecas, sendo citado em 7 transações de compra e venda.
Ainda segundo os registros, o Banco Econômico vendeu três propriedades para o Grupo
CODEVERDE, totalizando 72.950 hectares, cujas operações foram realizadas nos anos
de 2009 e 2012. Esse banco esteve envolvido no escândalo financeiro dos cheques
administrativos sem cobertura, durante o período da ditadura militar, sendo abafado
pelo fato de seu dono possuir grande influência política116. Esse mesmo banco sofreu
intervenção do Banco Central em 1995, entrando em liquidação judicial em 1996117: os
bens dos controladores ficaram bloqueados, a pedido do Ministério Público da Bahia,
durante 10 anos (1996 a 2006) para pagamento de dívidas junto aos credores, sendo o
bloqueio suspenso em 2006 pelo próprio Ministério Público da Bahia.
Embora algumas cadeias sucessórias remontem ao século XIX (1867), a maior
parte dos registros de compra e venda ocorreu após a década de 1970, revelando o
emaranhado e complexo processo de apropriação das terras dos vales dos rios Verde e
Jacaré. Ao confrontar as informações obtidas através das entrevistas e História Oral com
as certidões de compra e venda, conclui-se que a ocupação dessa região ocorreu bem
antes dessa década, pois as famílias já se encontravam naquelas terras há
116 Ângelo Calmon de Sá foi Ministro da Indústria e Comércio no governo do general-presidente Ernesto
Geisel.
117Mais informações sobre as operações do Banco Econômico podem ser obtidas em
http://www.muco.com.br/index.php?option=com_content&id=462:escandalo-banco-
economico&Itemid=53. Acesso em 20/11/2014.
227
aproximadamente 4 gerações: chegamos a entrevistar camponeses com 93 anos de
idade. Segundo Cruz (2013, p. 18), muitas destas
comunidades já existem há mais de 200 anos. As de menos tempo de
existência são as comunidades que foram povoadas por famílias
expulsas pela Barragem de Sobradinho. A maioria delas são
comunidades pequenas, porém existem algumas consideradas grandes,
como é o caso de Boa Vista, com mais de 300 famílias. Estima-se um
total de 800 famílias camponesas.
Ainda sobre as famílias ocupantes das terras dos vales dos rios Verde e Jacaré,
Cruz (2013, p. 18) afirma:
Muitos destes camponeses são sobreviventes e remanescentes da
grilagem5 (na década de 1980), que houve em algumas comunidades
dos Municípios de Itaguaçu da Bahia, Xique-xique e Jussara e da
expulsão provocada pelo processo de construção da barragem de
Sobradinho, também nesta década.
O nome de Airton Neves Moura consta em 11 das 15 certidões analisadas, sendo
uma figura central nas transações de compra e venda de terras. A partir da compra de
uma propriedade de posse de João Medeiros, Airton Neves Moura amplia seu domínio
sobre extensas áreas de terras tradicionalmente ocupadas pelas comunidades dos
municípios de Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique.
Para a implantação do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê, a CODEVASF
comprou terras de propriedade da CODEVERDE (7 propriedades), de José Carlos
Ferraz Ribeiro, da ITRUL e da Empresa Agro Indústria, totalizando 66.956ha. O Grupo
CODEVERDE ainda detém em seu domínio 109.115ha, conforme informações do
Cartório de Registro de Imóveis e Hipotecas de Xique-Xique. O Fluxograma 3, a seguir,
sintetiza as transações realizadas a partir da década de 1970 nessa região.
228
Fluxograma 3 – Cadeia sucessória das terras do Projeto de Irrigação do Baixio de Irecê
Fonte: CPT/Irecê
Adaptação: DOURADO, J. A. L., 2014.
Pertencente ao Grupo Odebrecht118, a CODEVERDE ainda possui extensas
áreas de terras na região (109.115ha), fato que revela seu interesse em investir no setor
118 A Odebrecht Agroindustrial produz e comercializa etanol e açúcar, abastecendo os mercados brasileiro
e internacional, e energia elétrica originada da biomassa. Atua, do cultivo à colheita, na produção de 22,5
milhões de toneladas de cana-de-açúcar, de forma 100% mecanizada, desde o preparo do solo e a escolha
de variedades adequadas, até a produção, venda e entrega dos produtos.
229
dos agrocombustíveis, pois se trata de áreas planas e propensas à mecanização,
favorecendo a produção de açúcar e etanol a partir da cana de açúcar irrigada, nos
moldes da empresa Agrovale. De acordo com o dirigente local da CODEVASF em
Irecê, a ideia é estimular a vinda de grandes empresas do setor de agrocombustíveis para
o Projeto de Irrigação Baixio de Irecê, tendo em vista o interesse do Estado em fomentar
as chamadas parcerias público-privadas. Isso revela a lógica do “mercado de terras” na
região dos vales dos rios Verde e Jacaré, ante a expectativa do grande capital se
apropriar da infraestrutura hídrica disponibilizada pelo Estado e necessária à sua
reprodução ampliada. Contraditoriamente, a CODEVERDE adquiriu vasta extensão de
terras e, até o momento, não buscou implementar nenhuma atividade econômica
expressiva, tendo a área sido o destino para os animais recolhidos junto aos
camponeses, como forma de pagamento119.
Ante o exposto, a propriedade e a concentração da terra devem ser entendidas a
partir de suas contradições, pois estão inseridas na lógica capitalista de transformação
desse bem natural em mercadoria. A aquisição de terras por grandes grupos
econômicos, conforme verificamos nos vales dos rios Verde e Jacaré, traz à tona os
processos de expansão das grandes propriedades, da concentração fundiária e da
valorização capitalista da terra, atentando contra os interesses das famílias camponesas,
colocando grandes desafios para a reprodução de seus modos de vida.
119 Renda-em-produto (OLIVEIRA, 1986, p. 77).
230
CAPÍTULO IV
PROJETO DE IRRIGAÇÃO BAIXIO DE IRECÊ: REORGANIZAÇÃO DO
TERRITÓRIO PELO AGROHIDRONEGÓCIO
231
[...] mais do que resistência, o que se tem é
R-Existência posto que não se reage
simplesmente a ação alheia, mas, sim, que
algo pré-existe e é a partir dessa existência
que se R-Existe. (PORTO-GONÇALVES,
2006, p. 165).
Neste capítulo faremos um resgate histórico de como ocorreu o processo de
implantação do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê, apresentando as alterações
verificadas, ao longo das décadas, na formatação do empreendimento, seus objetivos e
possíveis desdobramentos para a região, bem como os desafios enfrentados pelas
comunidades no tocante à organização social das famílias expropriadas para fazer o
enfrentamento ao Estado. Ademais nos debruçaremos sobre as dissidências ocorridas
entre os movimentos de luta pela terra encampados pelos camponeses caatingueiros e
pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o qual ocupou a área do projeto
de irrigação em maio de 2014.
4.1 Caracterização da rede hidrográfica da região do Projeto de Irrigação Baixio
de Irecê
No que diz respeito à hidrografia, merecem destaque o rio Verde120, o riacho
Vereda do Lajedo, o rio Jacaré, o rio Recife e o riacho Ferreira, cruciais para a
manutenção da fauna e da flora da região. Em relação ao relevo, ocorrem na área do
projeto duas feições morfológicas: a superfície pediplanizada, ascendente no sentido
Sul-Sudeste (SSE), com declividade inferior a 1%, desenvolvendo-se,
aproximadamente, entre as cotas de 395m no vale do rio São Francisco, e de 450m na
parte sul. A segunda superfície pediplanizada, a mais antiga, encontra-se no topo das
serras quartzíticas, representada pela serra do Rumo.
O rio Verde é um tributário do São Francisco, cortando diversas comunidades
impactadas pelo Projeto de Irrigação Baixio de Irecê. No período de 1981 a 1985 foi
construída pela CODEVASF a Barragem Manoel Novais, com capacidade para represar
158,4 milhões de m³ de água, no município de Ibipeba, com a finalidade de assegurar a
disponibilidade hídrica para a população da microrregião de Irecê (aproximadamente
120 Curso de água intermitente, que corta a área do projeto no sentido Norte-Sul, desaguando a
montante do reservatório de Sobradinho.
232
250 mil habitantes) e para o Perímetro Irrigado de Mirorós121 (3.300ha). A barragem de
Mirorós, com altura máxima de 75,0 m, comprimento de 340,0 m, possui 2 comportas e
vazão de 1.000 m³/s, abrangendo uma superfície máxima de 780ha. A água acumulada
atende às seguintes demandas: a) adutora do Feijão, com 250 km de canais, sob a
responsabilidade da Embasa, para atendera 15 municípios (América Dourada, Barra do
Mendes, Barro Alto, Canarana, Cafarnaum Central, Ibipeba, Ibititá, Irecê, João
Dourado, Jussara, Lapão, Presidente Dutra, São Gabriel e Uibaí), com vazão de 700
litros/segundo; b) Perímetro de Irrigação Mirorós, cuja vazão é de1.300 litros/segundo,
para irrigar uma área de 2.055 ha; e c) Vazão de perenização do rio Verde, com vazão
de 250 litros/segundo. Para atender a essas três finalidades, são captados da Barragem
Manoel Novais 5,0 m3/s.
Com o aumento do consumo de água em virtude da expansão da área cultivada,
a água tornou-se escassa, com impactos negativos para os irrigantes do Projeto Mirorós
e para os camponeses cujas terras estão localizadas a jusante da barragem. Passou-se a
registrar uma concorrência entre o abastecimento humano (500 l/s) e a irrigação (1.300
l/s).Nesse cenário de uso intenso e concentrado da água do reservatório, entre 2007 e
2008 eclodiram conflitos pela água na região122, pois o rio Verde já não conseguia
chegar até as comunidades situadas em suas margens, no baixo curso. Como os
irrigantes do Projeto Mirorós são pessoas influentes no cenário político e econômico
locais, houve negligência por parte do órgão responsável pela gestão do perímetro
irrigado em não traçar um plano emergencial de gestão das águas da barragem, levando-
a ao colapso. Como medida emergencial, foi construída pelos governos federal e
estadual a adutora do São Francisco para atender inicialmente aos municípios da
microrregião de Irecê (Irecê, América Dourada, Jussara, São Gabriel, Central e João
Dourado)com investimentos da ordem de R$182,4 milhões, advindos do Programa
Água para Todos123, vinculado ao PAC. Esse sistema adutor fará a captação de água
121 O Perímetro de Irrigação Mirorós entrou em operação em 1996. Possui cerca de 2.055 ha
irrigáveis, sendo 1.037 ha em áreas de pequenos produtores e 1.018 ha em áreas empresariais. A área
irrigável está distribuída entre 241 lotes agrícolas, sendo 201 de pequenos produtores e 40 de
empresas agrícolas, com predominância do cultivo de banana.
122 Para saber maiores informações sobre os conflitos pela água na Barragem de Mirorós, consultar a
monografia para a obtenção do título de Bacharel em Geografia intitulada “Conflitos pelo uso da água
envolvendo a Barragem Manoel Novais (Mirorós): o caso dos irrigantes do município de Itaguaçu da
Bahia” de autoria de Tassio Barreto Cunha (2009). Disponível em :
http://www.geociencias.ufpb.br/leppan/gepat/files/conflito_barragem.pdf. Acesso em: 22/10/2013.
123 De acordo com informações do Ministério da Integração, a Bahia é o estado que mais investe em
obras de abastecimento na região Nordeste. Atualmente, estão sendo investidos R$ 300 milhões em
várias obras, em parceria com o governo estadual, por meio do programa Água para Todos. Para
233
diretamente do rio São Francisco, em Nova Iguira, localidade de Xique-Xique,
percorrendo um total de 132 km até os municípios atendidos, beneficiando um número
aproximado de 350 mil habitantes.
Com o colapso da Barragem Manoel Novais, os municípios abastecidos pela
adutora do Feijão passaram a ser atendidos pela adutora do São Francisco. Instalada a
crise hídrica nessa região em 2008, houve a necessidade de intervenção da Agência
Nacional de Águas (ANA, 2012) que, em parceria com órgãos estaduais, editou uma
série de resoluções em que são estabelecidas as outorgas de usos da água para todos os
usuários e as cotas de nível de água do reservatório para os respectivos controles.
Devido à crise hídrica, os irrigantes e políticos locais passaram a pressionar a
CODEVASF, solicitando deste órgão a concessão de uma área no Projeto de Irrigação
Baixio de Irecê para os agricultores que haviam perdido suas lavouras pela escassez de
água na Barragem Manoel Novais. A gerência regional da CODEVASF em Irecê não
apresentou objeções em relação à proposta; todavia, não houve, até o momento,
nenhuma decisão quanto a destinar uma área específica do perímetro irrigado para os
irrigantes de Mirorós. Cabe destacar que, como o processo seletivo dos ocupantes da
Etapa I do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê segue normas estabelecidas por meio de
edital, os selecionados foram exatamente os agricultores de Mirorós, pelo fato destes
atenderem aos requisitos exigidos para participar da concorrência de editais para
obtenção de lotes em perímetros públicos irrigados.
4.2 Usos do território e disputas territoriais no Semiárido baiano
A perspectiva desenvolvimentista adotada pelo governo militar gerou uma
reconfiguração espacial no território brasileiro por meio do esgarçamento das fronteiras
e da criação de redes e tessituras capazes de viabilizar não apenas a integração do país
como também a criação de infraestrutura para promover o desenvolvimento das regiões
mais atrasadas economicamente. No afã desenvolvimentista, o Estado investiu na
constituição de complexos produtivos voltados para o aproveitamento dos recursos
naturais, como estratégia para promover o desenvolvimento do Brasil. Aqui nos
interessa mencionar a construção da hidrelétrica de Sobradinho, porque, em virtude da
grande quantidade de famílias desalojadas pelo represamento do rio São Francisco,
maiores informações consultar http://www.ouvidoriageral.ba.gov.br/2013/05/24/adutora-do-sao-
francisco-beneficia-330-mil-pessoas-da-regiao-de-irece/.
234
houve a necessidade de se pensar um local para abrigá-las. Inicialmente, a proposta de
implantação do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê estava associada à Barragem de
Sobradinho, tendo esse projeto por objetivo a construção de agrovilas para onde seriam
reassentados os expropriados do Sobradinho. Segundo documentos oficiais, a escolha
da área localizada entre os vales dos rios Verde e Jacaré levou em consideração algumas
particularidades, como a disponibilidade de terra e água, baixo custo de adução de água
por tratar-se de uma região plana, “desabitada”, sem aproveitamento agrícola e, ainda, a
inexistência de organizações populares capazes de oferecer resistência ao processo de
“limpeza” da área.
Desde os anos de 1960 até a atualidade, o projeto original passou por profundas
alterações devido aos pressupostos econômicos e aos diversos estudos124 feitos para
verificar a viabilidade técnica com o propósito de otimizar o aproveitamento da área.Os
estudos, projetos de engenharia, execução de obras, fornecimentos de consultoria para
apoio à supervisão e fiscalização das obras foram feitos pela CODEVASF, contando
com a colaboração do consórcio entre a CODEVERDE e a Libyan Arab Foreign
Investiments (LAFICO)na elaboraçãodo trabalho de revisão do Projeto Básico da
CODEVASF, tendo como foco a exploração do empreendimento por grandes empresas.
Esse trabalho teve como propósito fornecer à CODEVERDE elementos para que o
consórcio pudesse analisar sua futura participação na concorrência para a gestão do
Projeto Baixio do Irecê, nos moldes da parceria público-privada (PPP)125.
Em 1961 foi aberta a primeira concorrência para a elaboração de estudos de
viabilidade para a utilização das bacias dos rios Verde e Jacaré para abrigar as famílias
futuramente desalojadas pela construção de Sobradinho. A CVSF passou a realizar
124 Entre os anos de 1988 e 1994, foi elaborado o estudo de viabilidade técnica e econômica e o
projeto básico das principais obras de adução pela CODEVASF. De 1995 e 1998, a CODEVASF
revisou o Lay-Out e fez a adequação do estudo de viabilidade e projeto básico do Projeto Baixio do
Irecê. No período de 1999 a 2001, a CODEVASF elaborou o Projeto Executivo da Etapa 1A do
Baixio de Irecê. A pedido da CODEVASF, nos anos de 2002 e 2003 foi feita a reavaliação da
viabilidade do Baixio Irecê. Nos anos de 2005 e 2006, o consórcio CODEVERDE/LAFICO realizou
os estudos de viabilidade técnica, ambiental, financeira, legal, e socioeconômica para o
estabelecimento de concessão do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê. Em 2007/2008, a
CODEVERDE solicitou a revisão do Projeto Básico do Projeto Baixio de Irecê. Recentemente, a
CODEVASF contratou a elaboração do Projeto Executivo do Canal Principal CP-0, entre os km 27,02
e 42,00 e do seu perímetro irrigado, do Projeto Baixio de Irecê, estudo iniciado em 2010 e concluído
em 2011.
125 A PPP é um contrato organizacional, de longo prazo de duração, por meio do qual se atribui a um
sujeito privado o dever de executar obra pública e/ou prestar serviço público, com ou sem direito à
remuneração, por meio da exploração da infraestrutura, mas mediante uma garantia especial e
reforçada prestada pelo Poder Público, utilizável para a obtenção de recursos no mercado financeiro.
(MAGNA ENGENHARIA, 2013, p. 11).
235
estudos sobre a referida área, objetivando determinar as possibilidades hidroagrícolas
dessa regiãoe sua capacidade de receber os camponeses expropriados pela elevação do
nível das águas do rio São Francisco, a montante da Barragem de Sobradinho. Como
resultado desse diagnóstico, foi detectada a existência de 380.000 hectares favoráveis à
irrigação, conformeaponta o Relatório de Diagnóstico Ambiental (1989).
Nos anos de 1970, devido à conjuntura internacional, ocorreram alterações na
proposta de implantação do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê, pois, devido à crise do
petróleo ocorrida em 1972 e à implantação do PROÁLCOOL em 1985, havia, por parte
do Estado, intenção de fomentar a introdução da cana-de-açúcar na região, para a
produção de etanol.
Com base nesses estudos básicos, na preocupação de minimizar o
fluxo migratório das populações rurais e no contexto do Programa
Nacional do Álcool (PROALCOOL) incentivado pelo Governo
Federal a CODEVASF contratou em abril de 1981 a elaboração do
Antiprojeto de Irrigação e Drenagem do Baixio de Irecê, envolvendo
uma área de 234.000ha, área esta que logo a seguir foi ampliada de
mais 50.000ha para incluir áreas potencialmente irrigáveis ao sul dos
limites do levantamento de solos existentes. (RELATÓRIO DE
DIAGNÓSTICO AMBIENTAL, 1989, p. 2-3).
O Projeto Baixio de Irecê, incluído no Programa Mais Irrigação em 2012,
localiza-se ao Norte da região do Médio São Francisco, a 500 km de Salvador, entre os
paralelos 10° 24’ e 10º 39’ ao Sul, e entre os meridianos 42° 05’ e 42° 35’ a Oeste de
Greenwich(Mapa 12), à margem direita do rio São Francisco, abrangendo terras dos
municípios de Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia, na bacia do rio Verde. O investimento
total estimado para a implantação do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê é de R$4,1
bilhões, abrangendo a infraestrutura de irrigação, agrícola e de agroindústria. Está
previsto, no projeto, a construção de um aeroporto na área do perímetro irrigado, por
onde será escoada parte da produção.
Nas proximidades do Projeto Baixio de Irecê estão localizados três projetos de
assentamentos, sendo eles: Projeto de Assentamento São Caetano e Projeto de
Assentamento Sertão Bonito, no município de Itaguaçu da Bahia, e Projeto de
Assentamento Serra Azul em Xique-Xique. Esses assentamentos não são dotados de
infraestrutura hidríca para viabilizar a irrigação e a água para o consumo é obtida, em
sua maioria, através da construção de cisternas de placas pelo Programa Um Milhão de
Cisternas (P1MC) desenvolvido pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA).
Predomina nos assentamentos a criação de caprinos, a agicultura de autoconsumo
236
durante o período chuvoso ou ainda nos vales úmidos. No caso do aAssentamento Serra
Azul, a pesca artesanal é uma importante fonte de alimento, em função da proximidade
com o rio São Francisco.
237
A captação de água é feita norio São Francisco, nas proximidades da
comunidade Nova Boa Vista, a 40 km da sede do município de Xique-Xique, cuja
vazão é de aproximadamente 63m³/s (Foto 10). A demanda média de energia elétrica
pelo sistema de captação e adução da água do Rio São Francisco até os lotes é de 120
MW/ano, a ser fornecida mediante convênio firmado entre a Companhia Hidrelétrica do
São Francisco (CHESF) e a Companhia de Energia Elétrica da Bahia (COELBA).
Considerado uma “transposição baiana do Rio São Francisco” em virtude de seu
gigantismo, trata-se do maior perímetro irrigado em construção da América Latina, cuja
obra recebeu R$547 milhões destinados do PAC.
Foto 10 – Tomada de água do Projeto Baixio de Irecê. Comunidade Nova Boa Vista
(Xique-Xique).
Fonte: CODEVASF, 2013.
Considerando as premissas da Política Nacional de Irrigação, o Projeto de
Irrigação Baixio de Irecê tem por objetivo básico alcançar as seguintes metas: a)fixar o
homem à terra, evitando o êxodo rural; b)elevar o nível de renda das famílias do campo;
c)incrementar a produção agrícola, visando a atender ao crescimento interno, bem como
exportar o excedente; d) dar continuidade à implantação de indústrias de processamento
de produtos agrícolas, mediante a criação de um polo agroindustrial na região; e)tornar
produtivas áreas que podem ser aproveitadassomente por intermédio da irrigação,
devido ao baixo índice pluviométrico anual.
238
Embora as obras da Etapa I (A e B) já tenham sido concluídas, estando aptas à
ocupação, as comunidades atingidas pela construção do empreendimento continuam
buscando mecanismos para ocupar a área e alterar a formatação do projeto atual. Está
em andamento, junto às comunidades de Xique-Xique e de Itaguaçu da Bahia,
mobilizadas pela Comissão Pastoral da Terra, a formalização de uma representação
pública contra a CODEVASF. A reivindicação das 19 comunidades é que as terras
sejam destinadas aos agricultores locais oriundos dos povoados impactados pelo
empreendimento, pois essas terras eram usadas de forma coletiva, pelos camponeses,
para criação de animais.
A implantação desse empreendimento é bastante conturbada e tem sua origem na
década de 1960, antes mesmo da Usina Hidrelétrica de Sobradinho e a consequente
formação do lago, que expropriou aproximadamente 72 mil famílias de suas terras.
Inicialmente, em 1961, a ideia era reassentar as famílias desalojadas. A execução dessa
obra afeta diretamente 19 comunidades, das quais oito estão localizadas no município
de Itaguaçu da Bahia (São João, Muquém, Esconço, Poço Grande, Conceição, Várzea
da Cerca, Pau Seco e Nova Vereda) e 11 em Xique-Xique (Nova Boa Vista, Boa Vista,
Carneiro, Roçado, Curral do Meio, Tapera, Sítio, Muritiba, Vista Nova, Volta da
Caatinga e Maravilha), totalizando aproximadamente 712 famílias, de acordo com o
levantamento da CPT em Irecê. Ressalte-se que esse número de famílias pode ser maior
porque, em consequência das limitações financeiras, algumas localidades não foram
contempladas em sua totalidade, no levantamento.
De acordo com o Diagnóstico Ambiental (1993), tratava-se de uma área com
pouca densidade fundiária, sendo a agropecuária a única atividade desenvolvida nas
terras que seriam ocupadas pelo referido projeto. Esse, segundo o Diagnóstico, teria
sido o fator preponderante para a seleção da área, visto que apenas à margem esquerda
do rio Verde estaria a maior densidade fundiária, com a incidência acentuada de
propriedades com menos de 100 ha. Na margem direita do rio, concentravam-se os
estabelecimentos com área superior a 2.000 ha. Em contraposição, os levantamentos
feitos pela CPT, nos municípios de Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia, detectaram a
existência de aproximadamente 712 famílias vivendo nas 19 comunidades, dados que
colocam em xeque os argumentos apresentados pela CODEVASF para a escolha do
local onde deveria ser implantado o Projeto Baixio de Irecê.
239
Basicamente, toda a área situada entre osrios Verde e Jacaré foi incorporada pela
CODEVERDE. As pequenas propriedades localizavam-se à margem esquerda do rio
Verde. De acordo com levantamentos feitos pelo Relatório do Diagnóstico Ambiental
(1993), foram identificadas 179 propriedades: 38,6% dos responsáveis pelos
estabelecimentos definiam-se como proprietários, 41,3% como posseiros, 14% como
parceiros e 6,1% como arrendatários (Gráfico 1). Naquela época, 76% da área era
recoberta por Caatinga, 17,75% com pastagens e 6,5% por lavouras.
Gráfico 1 – Vínculos com a terra nos vales dos rios Verde e Jacaré
Fonte: Relatório de Diagnóstico Ambiental, 1989.
Elaboração: DOURADO, J. A. L., 2013.
Ressaltamos que estes dados foram extraídos do documento elaborado pelos
agentes interessados em criar as condições favoráveis para a implantação do Projeto
Baixio de Irecê, o que nos leva a analisá-los com ressalvas, visto que a área de
abrangência do mesmo é bastante considerável, podendo haver inconsistência nos
dados, ante a quantidade de comunidades atingidas pelo empreendimento. Merece
destaque o percentual de camponeses sem o título da terra, já que, somados os
posseiros, parceiros e arrendatários, temos 61,4% de camponeses sem terra, à mercê dos
grileiros e proprietários de terras da região. Sem a propriedade legal das terras, a ação
do grileiro Airton Neves Moura e seu grupo foi facilitada, porque as famílias que
240
ocupavam as terras passaram a ser coagidas a abandonarem suas casas, devido às
ameaças feitas pelo grileiro, inclusive pelo fato deste garantir ter toda a documentação
que comprovaria a propriedade das terras.
Mediante o contexto supracitado, por ser uma área de uso comunal e voltada
principalmente para a criação de gado (bovino, caprino e ovino, principalmente), o
percentual identificado como Caatinga não significa que esta era uma área não utilizada
pelas comunidades. Pelo fato de os animais serem criados “soltos”, ou seja, sem
divisões entre as propriedades, a vegetação era mantida porque os arbustos compunham
parte significativa da pastagem consumida pelos animais. Germani (1993, p. 533, grifos
da autora) chama atenção para o seguinte aspecto sobre a escolha das áreas as serem
implantados os perímetros irrigados:
Normalmente las áreas seleccionadas para establecer los proyectos de
regadio no son áreas desabitadas. Al contrario, cuando las áreas
elegidas son tierras fértiles em los márgenes de ríos perenes – lo que
ocorre generalmente estas ya están ocupadas por uma gran cantidade
de pequenos produtores que hace tiempo descubrieron, cultivan y
ocupan estas tierras. Quizás de uma manera no tan “racional” ni tan
“moderna” como la que prevê el proyecto de regadio. Aunque no
obstante, de uma manera que les permite reproducirse como pequenos
produtores. Reproducción ésta que será interrumpida com la
expropriación del área para la implantación del proyecto.
Com o espectro da implantação do projeto de irrigação, as bacias dos rios Verde
e Jacaré, afluentes do São Francisco, passaram a sofrer especulação a partir de 1966,
quando a CODEVASF apresentou os resultados de um estudo em que foram detectados
380.000 ha irrigáveis na área de confluência entre esses dois rios e o São Francisco. Ao
optar por utilizar outras áreas para o reassentamento das famílias desterritorializadas
pelo lago de Sobradinho, como é o caso de Serra do Ramalho126, a proposta de criação
do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê é abandonada pelo Estado, retomando os estudos
somente em 1979.
Motivado pelo PRÓ-ALCOOL127, o governo federal apresentou em 1982,
através da CODEVASF, a proposta de criação de um projeto voltado para o plantio de
126 Parte das famílias desalojadas pela construção de Sobradinho foi reassentada no município de Serra
do Ramalho, distante das bordas do lago, numa região com características diferentes daquelas a que
estavam acostumadas, inclusive com a sua própria relação com o rio São Francisco, eliminando assim
a relação metabólica terra-água que estes camponeses caatingueiros estabeleciam em seu cotidiano, ao
trabalhar a/na terra.
127 O Programa Nacional do Álcool (PROÁLCOOL) foi criado pelo Brasil em 1975, com o propósito
de substituir, em larga escala, a utilização do petróleo por etanol nos veículos. Essa foi a alternativa
241
cana-de-açúcar em 233.000 hectares, na região já denominada de Baixio de Irecê,
baseado na perspectiva da parceria público-privada.Dessa área, 161.000 ha seriam
destinados às grandes empresas voltadas ao cultivo de cana, enquanto os 72.200 ha
restantes seriam ocupados por pequenas e médias empresas voltadas à produção
diversificada, principalmente a de frutas. O processo de especulação fundiária no Baixio
de Irecê acentuou-se, significativamente, a partir de 1986, quando o então Presidente da
República, José Sarney, implementou o Programa Irrigação no Nordeste (PROINE),
período em que muitas empresas se instalaram às margens dos rios Verde e Jacaré,
adquirindo aproximadamente 100.000 ha de terras. Destacam-se, entre essas empresas, a
Odebrecht, a Bahema, o Banco Econômico, a Copene/Copener, que se unificaram
formando a CODEVERDE, grupo que seria responsável por implantar o Polo
Agroindustrial Rio Verde.
Entre 1986 e 1988, o projeto ficou paralisado devido às negociações realizadas
entre a CODEVERDE e a CODEVASF, visto que a criação de um projeto desta
magnitude somente seria viável por meio do estabelecimento de parceria com o Estado,
a quem ficaria a responsabilidade de disponibilizar a infraestrutura básica e o
financiamento necessário para a instalação das empresas. Ressalte-se que o Banco
Mundial (BID) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BIRD) demonstraram
interesse em financiar o Projeto de Irrigação Baixio de Irecê, que passaria por
reformulações em 1992 e cuja perspectiva seria implantar a infraestrutura e cedê-la para
a iniciativa privada. Ao analisar as informações coletadas em campo e por meio de
consulta a acervos particulares, verificamos que as ações arquitetadas pelo
Estadoseguiram duas vertentes: num primeiro momento fez-se a mobilização política
para a criação deste empreendimento e, posteriormente, houve a apropriação (legal e
ilegal128) das terras, visto que a área abrangida pelo Projeto Baixio de Irecê incorpora
terras que antes eram utilizadas coletivamente por diversas comunidades, tanto em
Itaguaçu da Bahia quanto em Xique-Xique. Tais comunidades já vivenciam os efeitos
da implantação do empreendimento, pois as áreas de uso coletivo,agora em posse da
CODEVASF, encontram-se cercadas, impedindo a criação de animais soltos. Como as
encontrada pelo governo para a crise do petróleo, deflagrada em 1973. Esse programa atingiu seu auge
na safra de 1986-87, quando o país produziu 12,3 bilhões de litros de etanol.
128 Durante as entrevistas realizadas com camponeses nos municípios de Itaguaçu da Bahia e Xique-
Xique, muitos mencionaram ter vivenciado a grilagem de terras feita por Airton Neves Moura, que
usou de métodos violentos, inclusive incendiando algumas casas daqueles que se recusavam a sair das
terras.
242
famílias possuem propriedades pequenas, o uso comum destas terras constituía uma
estratégia de reprodução do campesinato na região, viabilizando a criação de gado
(bovino, caprino, ovino e equino) que exercia o papel de “moeda” a ser utilizada em
momentos de crises/secas e, em casos atípicos, quando ocorria o adoecimento de
familiares.
Em 1993 foi entregue pelo consórcio liderado pela CODEVERDE o relatório
intitulado “Diagnóstico Ambiental”, apresentando as características gerais do
empreendimento, estudo esse iniciado em junho de 1988. O Estudo de Impactos
Ambientais (EIA) e o Relatório de Impactos Ambientais (RIMA) foram elaborados
entre 1992 e 1993, após uma redefinição da área de abrangência do projeto. Nesse
mesmo ano, foi fundada a Cooperativa Agrícola do Vale do Rio Verde
(COOPEVERDE) nas terras da CODEVERDE, ante a necessidade de atender às
exigências da CODEVASF/Banco Mundial para o financiamento de um projeto piloto,
implementado pela COOPEVERDE, baseado na irrigação de aproximadamente 320 ha,
com cultivo de manga e uva.
Entre 1993 e 1994 ocorreram novas expulsões de camponeses, relatadas pelos
moradores das comunidades, divulgadas, na época, pelo jornal A Tarde(1994) que
publicou uma matéria intitulada “Relatório sobre violência em Irecê não é muito claro”,
a qual evidencia a falta de clareza em relação à ação dos técnicos responsáveis pela
obra. Após décadas de estagnação, o então Presidente da República, Luís Inácio Lula da
Silva, iniciou as obras de construção da infraestrutura do perímetro irrigado Baixio de
Irecê, sem atentar para as reivindicações das comunidades afetadas pelo
empreendimento.
A concepção atual do Projeto Baixio de Irecê compreende uma superfície bruta
total de 95.118,6 ha, dos quais 61.956,5 ha correspondem à superfície agrícola
geográfica (SAG) ou irrigável, 24.701,6 ha são de reserva legal e 2.258 ha de áreas de
preservação permanente (APP). Da superfície agrícola geográfica, 59.630,8 ha referem-
se à superfície agrícola útil (SAU), sendo o restante da área ocupada pela infraestrutura
e por obras do projeto, que já possuem 42 km de canais construídos, devendo chegar a
84 km. A implantação do empreendimento está prevista para ser feita em 9 etapas, das
quais a primeira já foi executada e compreende a construção da infraestrutura de
captação de água do rio São Francisco e os 42km do canal principal. A divisão da obra
em etapas tem como propósito possibilitar possíveis correções, caso haja alguma
demanda a partir da finalização de cada uma das etapas. Na infraestrutura da etapa já
243
concluída, foram gastos R$227 milhões, provenientes do PAC. Para o fomento da
produção, serão disponibilizados R$272,7 milhões, provenientes do Banco do Nordeste,
por meio do Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE).
Em 2014 foram alocados R$13,8 milhões para prosseguimento da implantação
da II etapa do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê. Entre os investimentos, R$12
milhões serão destinados para obras complementares na rede de drenagem e na rede
viária da etapa II. Além desses serviços, serão realizados também o projeto executivo da
estação de bombeamento principal (R$2,3 milhões), o completo georreferenciamento da
etapa I do projeto (R$144,5 mil) e a contratação do fornecimento, carga, transporte e
descarga de tubos e peças de aço fundido que comporão as adutoras, tomadas d’água
dos lotes irrigados e os tanques de amortecimento unidirecional (R$1,8 milhão).
As obras desse empreendimento foram executadas pela Odebrecht e pela
Empresa Sul Americana de Montagens (EMSA). A proposta é destinar 22% da área
para lotes de pequenos agricultores e 78% para empresas e, da área destinada às
empresas,30,4% corresponde a grandes empresas e 69,6% a médios produtores(Tabela
14). Desde a sua formulação original, a estrutura do projeto foi sendo alterada conforme
novos estudos de viabilidade foram realizados. Ressalta-se que a Superfície Agrícola
Útil compreende apenas a parte passível de ser ocupada com as lavouras, excluído áreas
a serem utilizadas para a construção de plantas industriais, área de preservação,
agrovilas, etc.
Tabela 14 - Superfície Agrícola Útil (SAU)
Áreas SAL Parcelamento
da Área (ha)
Número de
Setores
Número de
Lotes
Área Média
dos Lotes (ha)
Pequenos
Produtores
12.989 9 2.156 6,0
Médios
Produtores
32.433 16* 1.052 30,0
Empresas 14.189 8* 121 120,0
Área Total (ha) 59.611
(*) Na Etapa I os lotes destinados às empresas não estão agrupados em setores.
Fonte: RIMA/Projeto Baixio de Irecê.
Org.: DOURADO, 2013.
Existem várias especulações em relação à gestão do referido projeto,o qual será
baseado no modelo PPP. A CODEVERDE e a Petrobrás já manifestaram interesse em
244
investir no Projeto Baixio de Irecê e,em junho de 2013,foi lançado o edital Nº.
36/2013129 de Concessão de Direito Real de Uso (CDRU)130, pela CODEVASF, para
seleção dos irrigantes que irão ocupar a Etapa I da área destinada à agricultura familiar.
As fases do processo de seleção compreendem inscrição, pré-seleção e apresentação de
documentos de habilitação. Ter experiência em agricultura – irrigada e não irrigada –
está entre os critérios para concorrer a um dos lotes no Projeto Baixio de Irecê. Para
essa etapa, foram destinados 5.308,29 hectares, dos quais 4.207,85 são irrigáveis e
1.110,43 ha não irrigáveis. Os lotes foram divididos em 3 categorias: lotes para
pequenos irrigantes, cooperativas e lotes empresariais. A área para os pequenos
irrigantes compreende 47 unidades de 6 hectares e 120 lotes de 17 hectares. Para os
médios produtores foram destinados 38 unidades de 31 hectares. Para as cooperativas e
associações, destinaram-se 11 unidades entre 23 e 138 hectares.
Nessa primeira fase, a CODEVASF vendeu todos os lotes de 6 e 31 hectares.
Dos 120 lotes com 17 hectares foram vendidos 50. Já, dos lotes destinados às
associações e cooperativas, apenas um foi comprado pela Cooperativa Agropecuária
Mista Regional de Irecê (COOPERIRECÊ). Para a segunda etapa, serão
disponibilizados 14.000 hectares, divididos em lotes empresariais a serem ocupados
com lavouras de grãos (milho e soja) e algodão. Segundo informações do chefe do
escritório da CODEVASF em Irecê, Luís Alberto Barbosa, três empresas manifestaram
interesse em concorrer à gestão do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê: Petrobrás
(energia e etanol), o Grupo Maia (Luís Eduardo Magalhães) e Grupo Tomaselli (Mato
Grosso). O Grupo Maia e o Grupo Tomaselli teriam suas atividades, na região,
direcionadas para a produção de milho, soja e algodão. A fruticultura ficará restrita à
Etapa I dos lotes pertencentes aos pequenos irrigantes, pois há o interesse por parte da
CODEVASF em privilegiar a ocupação do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê com a
produção de commodities (soja e cana-de-açúcar).
Ao analisar o histórico de criação do Projeto Baixio de Irecê, verificamos que a
CODEVERDE comparece como um ator importante, tanto no que se refere à questão
fundiária quanto na própria gestão do referido empreendimento, já que a opção pelo
modelo baseado na parceria público-privada favorece principalmente esse grupo. Num
129 O edital 36/2013 foi lançado, em 03 de setembro de 2013, pelo então presidente da CODEVASF,
Elmo Vaz.
130 A CDRU possibilita o uso produtivo da área por um período de 35 anos, podendo os agricultores
oferecerem o direto real de uso como garantia para financiamentos.
245
primeiro momento, a CODEVERDE assumiu o controle da maior parte das terras entre
os vales dos rios Verde e Jacaré, através de transações bastante suspeitas e sob fortes
indícios de grilagem de terras, para serem desapropriadas e indenizadas pela
CODEVASF. Após os investimentos estatais, inclusive a regularização fundiária, a
antiga proprietária de terras (nesse caso, a CODEVERDE), torna uma das interessadas
em assumir a gestão do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê. Assim, esse consórcio se
beneficiaria duplamente com a implantação do empreendimento na região,
demonstrando a face perversa e contraditória dos projetos desenvolvimentistas
executados sob o frágil discurso da geração de emprego e renda. O anacronismo
histórico relativo à questão agrária se expressa, nesse contexto, de diferentes maneiras,
quando as comunidades impactadas pelo Projeto de Irrigação Baixio de Irecê são
desconsideradas de todo o processo de discussão sobre a importância, a necessidade, a
viabilidade do empreendimento e sobre quem serão os beneficiados com a sua
execução.
De fato, a execução desse projeto possui muitas questões sem solução, com
muitas incongruências em relação ao número de famílias atingidas, à forma como as
famílias atingidas serão beneficiadas, uma vez que a conformação da obra demonstra
haver fortes indícios de que tais investimentos públicos serão direcionados à
territorialização do agrohidronegócio na região, por meio da implantaçãode toda uma
infraestrutura hídrica e da disponibilização de terras agricultáveis à produção de
agrocombustíveis, já que a Petrobrás aparece como uma das prováveis concorrentes à
gestão do empreendimento. Devido às mobilizações e às reivindicações feitas pelas
comunidades sob a organização da CPT/Irecê, a CODEVASF comprometeu-se a assinar
um termo de compromisso com a prefeitura de Xique-Xique para a doação de 667
hectares, com valor estimado de R$400.000, para o desenvolvimento de projetos que
visem à inclusão social e produtiva das famílias residentes nos povoados Carneiro e
Curral do Meio, através da sua regularização fundiária. Para a primeira fase, estima-se
que 200 famílias serão beneficiadas. À prefeitura de Xique-Xique caberá a incumbência
de elaborar um plano diretor de desenvolvimento para definir o ordenamento territorial
e o modelo de exploração agrícola da área. A viabilização das obras de infraestrutura e
assistência técnica e extensão rural (ATER) ficará sob a responsabilidade da
CODEVASF, através de recursos do Programa Mais Irrigação e do Plano Brasil Sem
Miséria.
246
Vê-se que essa proposta feita pela CODEVASF é uma estratégia para tentar
desarticular a organização das famílias, porque essa medida não atende às demandas e
às reivindicações feitas pelos camponeses. Esse fogo cruzado entre o Estado e as
comunidades revela quão contraditória é a ação da CODEVASF, que utiliza essa doação
como medida compensatória para mitigar os impactos do empreendimento sobre as
comunidades localizadas na área e no entorno do Projeto Baixio de Irecê. Segundo
depoimento do assessor local da CPT/Irecê,
“[...] essa é mais uma ação da CODEVASF no sentido de ‘enganar’ as
comunidades e evitar que estas reivindiquem na justiça o direito às
terras da área do Baixio de Irecê. Nossa preocupação tem sido alertar
as comunidades do Baixio para que não caiam mais nas armadilhas da
CODEVASF que tem utilizado de diversas estratégias para excluir as
famílias camponesas das terras historicamente ocupadas por elas.
[...].” (Informação verbal, 03/05/2014, grifo nosso).
Todo o aparato discursivo utilizado pelo Estado acerca dos resultados advindos
do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê tem como premissa cultivar um pensamento
subordinado ao conhecimento autorizado pelo mais forte, ou seja, a indissociabilidade
entre a irrigação e o “progresso”, como forma de salvar da condição de débeis e
primitivos os camponeses caatingueiros.Durante uma reunião de mobilização feita pelo
CPT com as comunidades do Baixio de Irecê, em 2013, a CODEVASF fez-se presente e
solicitou a palavra para informar aos presentes sobre a doação de uma faixa de terra
para as famílias, de modo a viabilizar a implementação do propalado “projeto de
inclusão social”. Durante a exposição de um dos técnicos da CODEVASF, um dos
camponeses fez o seguinte questionamento:
Camponês: Oh, seu “dotô”, qual é a área que o senhor está dizendo
que vai doar para a gente? É a área da cerca do projeto pra lá pro o
canal ou da cerca pra comunidade?
Representante da CODEVASF: É da cerca do projeto para as
comunidades.
Camponês: Então, vocês não está doando terra nenhuma pra gente
porque a gente já tá aqui há muito tempo e a gente não aceita que essa
terra seja dada para outras famílias não. Se não for da cerca pro o
canal a gente não quer não. (Informação verbal, 05/05/2013. Grifo
nosso).
Nesse momento tornam-se visíveis os resultados da atuação das reuniões e dos
encontros de formação, feitos pela CPT com os camponeses, demonstrando oposição às
ações da CODEVASF no tocante à implantação do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê,
tendo as reuniões e encontros ampliado a capacidade de reivindicar outras perspectivas
de desenvolvimento social para o Semiárido. As resistências travadas revelam os
247
indicativos da superação daquilo que Silva (2011) define como “aridez mental”, ou seja,
a superação do pensamento (neo)colonial entre os camponeses de que o
desenvolvimento do Semiárido acontecerá a partir dos grandes megaprojetos executados
pelo Estado.
A implantação do Projeto Baixio de Irecê constitui-se o fio condutor para a
territorialização do modelo agroenergético/frutícola na região e produtor de
commodities, mediante a expansão da agropecuária capitalista em territórios construídos
a partir de relações não capitalistas, conforme enfatiza Frei Cappio. Segundo esse líder
religioso, o Projeto de Irrigação Baixio de Irecê está pautado na mesma lógica da
transposição do São Francisco, pois é
uma obra autoritária que se impõe. Chuta todo mundo e faz aquilo que
eles querem, o que eles bem entendem sem olhar a realidade do povo
que vive lá, e as reais necessidades daquela população. Eles colocam
na cabeça um projeto tipicamente econômico como é o projeto da
transposição e impõem e não respeitam nada que leve em
consideração a população que está por ali. Esta reunião que tivemos
com os comunitários é o mesmo estilo. Interessante: de Xique-Xique
saiu o Baixio de Irecê, que é um projeto econômico e sai a adutora,
que é um projeto social. Esse de levar agua para a população tudo
bem. Agora o Baixio de Irecê poderia também ser um projeto
interessante se respeitasse a questão social e ambiental, mas é
tipicamente econômico e não quer nem saber. (Informação verbal,
08/05/2014).
A conformação desse empreendimento assume papel de destaque na engrenagem
de expansão e de consolidação do capital no Semiárido baiano e, a nosso ver, apresenta-
se similar ao que Thomaz Júnior (2010a, p. 92) denomina de “Polígono do
Agrohidronegócio”. Na Bahia, o desenho espacial do Agrohidronegócio se expressa a
partir de quatro regiões bem delimitadas: o Extremo Sul da Bahia, com a expansão da
silvicultura dominada pela empresa Vera Cruz Celulose (VERACEL), o Litoral Norte
com a citricultura, o Oeste baiano, com a presença hegemônica da soja e o polo de
Juazeiro em sua confluência com Petrolina (PE), centrado na fruticultura. Ainda na
região de Juazeiro, destaca-se a Agrovale, empresa que atua tanto na produção frutícola
quanto no segmento agroindustrial canavieiro, com uma área plantada de
aproximadamente 21 mil hectares.
A reorganização espacial do Médio São Francisco, na perspectiva da criação de
infraestrutura hídrica, torna a região apta à expansão da agricultura capitalista sob o
espectro do agrohidronegócio. Terras planas e férteis, disponibilidade de água, mão de
obra ociosa e barata, apoio por parte do Estado e convencimento da população das
248
benesses do empreendimento por meio do discurso do “progresso” e “desenvolvimento”
da região revelam o desenho, as tramas e urdiduras da geografia do agrohidronegócio no
Semiárido baiano. Ante o exposto, concordamos com Thomaz Junior (2010a, p. 97)
quando este destaca que, de
forma consorciada, dispor de terra e água, mais ainda, controlá-las,
possibilita ao capital condições para a prática da irrigação, o que
reforça a expansão territorial sobre as melhores terras para fins
produtivos. Ou seja, o acesso às terras, seja por titularidade (legal ou
grilada), seja por meio de contratos de arrendamento etc., é a garantia
que o capital, identificado como agronegócio (grandes grupos
econômicos nacionais e transnacionais), requer para reproduzir-se e
apropriar-se dos meios de produção e controlar o tecido social,
mediante o acionamento dos dispositivos das esferas da produção, da
circulação, da distribuição, do consumo, bem como especulativos.
Nesse contexto, o Projeto de Irrigação Baixio de Irecê configura-se como ponto
nodal daquilo que, hipoteticamente, acreditamos ser o Polígono do Agrohidronegócio
na Bahia, consolidandoo marco teórico-conceitual da expressão fenomênica detectada
no Centro-Sul do Brasil por Thomaz Júnior (2010a). Aprofundando na compreensão das
disputas territoriais (intra e intercapital), verifica-se haver uma (des)ordem provocada
pelos projetos desenvolvimentistas em voga na Bahia, cujos conteúdos e significados do
expansionismo do capital revelam dois processos antagônicos que, em momentos
específicos, tornam-se complementares, quando se trata do avanço sobre novas áreas.
Sobre os propósitos do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê, a liderança da
CPT/Irecê enfatiza que esse projeto
vai favorecer ao agronegócio. Outro aspecto é que as famílias não
participam desse processo. Existem várias experiências no Nordeste
brasileiro de convivência com o Semiárido, experiências de
agroecologia que tem garantido a sustentabilidade das famílias e que,
muitas vezes, não são levadas em consideração. E um projeto com
essa envergadura a gente percebe o quanto isso vai ser prejudicial as
famílias porque as mesmas têm uma forma de vida diferenciada e esse
projeto terá 70% de sua área irrigada será para cana. A gente tem visto
o quanto a monocultura tem provocado uma riqueza que sai, que é
exportada, e na verdade, as famílias atingidas que estão no entorno
desses grandes empreendimentos de monocultura e projetos são
utilizadas como mão de obra barata como muitos já percebem que as
famílias camponesas da região não tem mão de obra qualificada.
(Informação verbal, 14/04/2013).
249
Essa opinião contrária à implantação do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê é
partilhada por muitas famílias que buscam, através da organização social, reivindicar as
terras das quais foram expropriadas, conforme depoimento abaixo:
A senhora é a favor da implantação do Projeto de Irrigação baixio
de Irecê?Eu não sou a favor não. Porque benefício [o Projeto de
Irrigação Baixio de Irecê] ele não trouxe e nem vai trazer para a gente.
Algumas pessoas foram beneficiadas porque trabalhou nesse projeto,
mas dinheiro não é tudo. Enquanto estava trabalhando tinha o dinheiro
e depois quando a firma foi embora e não veio mais, o pessoal está
vivendo de que? Tá sobrevivendo da roça que tem porque dali planta
um pasto, cria um gado, cria uma ovelha, É do rio São Francisco de
onde tira um peixe para comer e vender. (Camponesa moradora da
Comunidade do Roçado, 46 anos).
Em essência, os investimentos feitos pelo governo federal através do PAC e do
Programa Mais Irrigação possuem relação intrínseca com os programas estaduais para o
desenvolvimento territorial na Bahia, mediante a sobreposição de atividades
agroindustriais, com destaque para a cana,a soja, o milho e o algodão no oeste baiano, a
fruticultura e a atividade canavieira no polo de Juazeiro e, por outro lado, mediante a
incorporação de novas áreas até então mantidas como reserva de valor. Ainda nesse
universo, territórios camponeses são incorporados através do Programa BAHIABIO,
colocando assim a geopolítica de domínio do capital no campo, sob a expressão
fenomênica do agrocombustível – através da mamona, do amendoim, do pinhão manso
e do dendê –, em áreas tradicionalmente ocupadas com atividades agrícolas voltadas
para a produção de alimentos para o autoconsumo.
Até o momento, muitas são as dúvidas dos moradores das comunidades
atingidas pela implantação do Projeto Baixio de Irecê, que têm buscado organizar-se,
através da CPT, para reivindicar o direito à terra, à água e ao território. Atualmente há
um processo de mobilização das comunidades, com o propósito de fazer o
enfrentamento junto à CODEVASF, para reivindicar terras no Projeto Baixio de Irecê.
Sob a orientação da CPT, as famílias buscam apoio junto ao Ministério Público
Estadual, mediante representação pública, solicitando do órgão responsável pela
implantação do empreendimento o atendimento às reivindicações feitas, entre elas a
destinação das terras do referido projeto para os camponeses das 19 comunidades
localizadas na área do projeto e em seu entorno.
Nesse sentido, percebemos que a luta pela terra e pela água no Semiárido baiano
traz um componente, político e de classes, marcante, cuja expansão do capital no campo
250
tem submetido as populações camponesas do Médio e Submédio São Francisco a
intensos processos desterritorializantes, visto que os projetos desenvolvimentistas
implantados pelo Estado (projetos de irrigação, produção de agrocombustíveis, entre
outros), têm como fundamento a produção de mercadorias, interferindo diretamente na
organização dos territórios.
4.3 Organização, resistência e contradições: os desafios da luta pela terra das famílias
camponesas do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê
O processo de expropriação camponesa nos vales dos rios Verde e Jacaré, desde
os anos 1970, evidenciou uma realidade marcada por contradições desencadeadas pela
antiga concentração fundiária característica dessa fração do território baiano. Conforme
destacam Olalde, Oliveira e Germani (2007), ainda nesse período histórico (1970)
ocorreu, de modo acentuado, a partilha territorial e política dessa região, com a criação
de novos municípios sem provocar alterações na estrutura fundiária, porque essa
partilha se deu entre a elite local e à revelia das desigualdades sociais, marcantes nesses
espaços modelados sob os resultados da reestruturação produtiva impulsionada pela
atuação do Estado.
Pode-se considerar a década de 1970 um marco no tocante à questão agrária no
Médio São Francisco, por causa de determinados acontecimentos envolvendo a Igreja
Católica e as elites locais. Esse momento histórico, de profundas inquietações políticas,
econômicas e sociais, não se restringia apenas ao sertão da Bahia: refletia a realidade
vivenciada pela América Latina com os governos ditatoriais, com o aguçamento da
problemática ambiental e social, com a crise paradigmática envolvendo as ciências,
tendo como desdobramento a rejeição da racionalidade ocidental e da “colonialidade do
poder” (QUIJANO, 2000). Em decorrência das turbulências internas no centro de poder
da Igreja Católica131 durante os anos de 1970, a Diocese de Barra, sob influência da
131 No período de 1962 a 1965 ocorreu o Concílio Vaticano II, no qual foram apontadas novas diretrizes
para a relação entre a Igreja e seus fiéis, tendo ele ainda estabelecido uma nova maneira dessa instituição
conceber as relações sociais e seus vínculos com os Estados Nacionais. A partir do Concílio do Vaticano
II, outros eventos foram realizados, como a II Conferência de Medelin, na Colômbia, em 1968 e a III
Conferência de Puebla, no México, em 1979. A realização da II Conferência de Medelin acabou
dividindo a Igreja latino-americana em duas vertentes: uma progressiva, pautada na defesa da justiça
social e a outra, conservadora, pautada na fé e na espiritualidade. Essa divisão teve rebatimentos em
diversos países latino-americanos, inclusive no Brasil, com o envolvimento de vários religiosos com as
questões sociais, com destaque para os movimentos de luta pela terra.
251
Teologia da Libertação, resolveu desfazer de alguns de seus bens para viabilizar a
criação de uma entidade que atuasse no combate à pobreza e promovesse o
desenvolvimento social. Como a Diocese de Barra estava localizada numa das regiões
mais pobres, isoladas e “atrasas” da Bahia, a quantidade de imóveis, especialmente as
duas fazendas, causava certo desconforto ao bispo daquela época, Dom Thiago Gerard
Cloin.
Sob influência dos ideários da Teologia da Libertação, juntos, o Bispo Dom
Thiago Gerard Cloin e o Padre Jesuíta Fred da Costa e Silva criaram, em 6 de agosto de
1971, a Fundação de Desenvolvimento Integrado do São Francisco (FUNDIFRAN)132.
Para viabilizar a criação dessa entidade, a Diocese de Barra fez várias doações de
imóveis, inclusive do Palácio Episcopal, fato que trouxe grande descontentamento por
parte da elite local barrense, que passou a questionar o propósito e o produto dessas
ações praticadas pela Igreja.
Os anos de 1970 coincidiram com a sindicalização dos trabalhadores rurais
(pequenos produtores, assentados, assalariados e pequenos proprietários), ocorrida no
cerne da criação da FUNDIFRAN e com a inserção da Igreja nas causas relacionadas à
questão agrária. Nesse diapasão, surgiram,durante o período do regime militar, os
primeiros sindicatos133 de trabalhadores rurais da região, ante a necessidade de repensar
a realidade contraditória decorrente da expansão da monocultura do feijão: em
consequência dos incentivos dados pelo Estado aos grandes produtores, Irecê se tornara
a “capital do feijão”. De acordo com informações disponibilizadas pelo Plano Territorial
de Desenvolvimento Rural Sustentável – Território de Irecê (PTDRS), a organização, a
formação política e a mobilização dos sindicatos estavam no arco de atuação da
FUNDIFRAN, tendo como primeiro resultado de seu trabalho a:
[...] mobilização dos sindicatos da época para a criação do Pólo
Sindical da região, que acontecia de forma itinerante, ou seja, as
reuniões aconteciam em cada Sindicato da região, isto de dois em dois
meses, na qual estas eram assessoradas pela FUNDIFRAN e pela
FETAG. (PTDRS, 2010, p. 69).
Esses sindicatos de trabalhadores rurais tiveram a importante função de fazer o
enfrentamento aos processos de grilagem de terra, ocorridos na região de Xique-Xique,
132 Para um aprofundamento sobre o processo de criação da FUNDIFRAN, consultar Estrela (2011).
133 Os primeiros sindicatos de trabalhadores rurais da região são: Irecê, Canarana, Uibaí, Xique-Xique e
Presidente Dutra (1971), Barra do Mendes (1974), Jussara (1976), Ibipeba (1977) e Gentio do Ouro
(1979).
252
Itaguaçu da Bahia e Jussara, principalmente, e aos grandes latifundiários (coronéis) que
mantinham sob seu controle os camponeses sem ou com pouca terra. Clientelismo,
paternalismo e mandonismo eram marcantes nas relações estabelecidas entre os
latifundiários da região e os camponeses. A atuação da FUNDIFRAN junto aos
camponeses despertou desconfiança entre a elite local (proprietários de terras e
políticos), que passou a combatê-la, utilizando para isso diversas estratégias, como a
disseminação entre os camponeses da ideia de que a entidade tinha o propósito de
instalar o socialismo. Em virtude dessa perseguição, houve a transferência da sede da
entidade, em meados dos anos 1980, para o município de Xique-Xique (1986-2000) e,
posteriormente, para Ibotirama – onde se encontra até a atualidade –, como forma de
afastar-se da poderosa elite barrense, já que até mesmo o exército teria começado a
cobrar explicações da diretoria da FUNDIFRAN sobre o papel dessa Fundação.
Nos anos 1990 surgiram outras organizações com menor expressividade, como a
CETA e o GARRA, que atuaram na luta pela terra, nos municípios que integram
atualmente o Médio São Francisco. As Comunidades Eclesiais de Base (CEB) também
tiveram um papel de destaque no processo de formação de militantes que atuariam junto
às organizações e movimentos sociais de luta pela terra, na região. À medida que
acentuavam os conflitos fundiários (grilagem, expulsão e concentração de terra) e as
desigualdades sociais no campo (pobreza e migração), novas entidades foram sendo
criadas, com o propósito de organizar e formar politicamente os camponeses para que
pudessem reivindicar seus direitos junto ao Estado e fazer o enfrentamento aos
latifundiários. Algumas das lideranças locais que colaboram com a CPT/Irecê, na
mobilização e organização das famílias impactadas pelo Projeto de Irrigação Baixio de
Irecê, atuaram em outras entidades, como o GARRA (um Integrante do STR de Xique-
Xique) e a FUNDIFRAN (o vice-presidente do STR de Rio Verde, Itaguaçu da Bahia).
Os anos 2000 foram marcados por momentos de tensão e reviravolta, no tocante
às organizações sociais envolvendo o acesso à água no Nordeste semiárido, devido ao
resgate do projeto de transposição134 do São Francisco pelo então Presidente da
República, Luís Inácio Lula da Silva. Caracterizado por constantes reviravoltas, o
134 O projeto atualmente em execução é um empreendimento do governo federal, sob a responsabilidade
do MI, destinado a, de acordo com esse Ministério, assegurar a oferta de água, em 2025, a cerca de 12
milhões de habitantes de pequenas, médias e grandes cidades da região semiárida dos estados de
Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Seu nome oficial, conforme já mencionado, é Projeto
de Integração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional, doravante
referido como Projeto de Transposição, como é conhecido (CASTRO, 2011, p. 11)
253
Projeto teve suas obras iniciadas em 2007, em meio a inúmeras manifestações
contrárias, encabeçadas por ONGs, por movimentos sociais e por membros do clero da
Igreja Católica, com destaque para os dois jejuns feitos pelo bispo da Diocese de Barra,
Dom Luis Flávio Cappio. Em 1992, Frei Cappio, junto com outras três pessoas, fizeram
a chamada Peregrinação pelo Rio São Francisco, da nascente, na Serra da Canastra
(MG), até a foz, começando no dia 04 de outubro de 1992 e terminando no dia 04 de
outubro de 1993. Passaram por todas as comunidades ribeirinhas, com o propósito de
dialogar com o povo sobre a importância do Rio, num trabalho de conscientização
ambiental, conhecer os motivos que estavam provocando a sua “morte” e chamar o
povo para a luta em defesa do Rio. Em 2003, o projeto da transposição foi resgatado
pelo governo federal, envolvendo articulações políticas com o governo do Ceará
(naquela época, Ciro Gomes), sendo esse projeto hídrico uma moeda de troca
(barganha) pelo apoio político recebido no processo eleitoral. Conhecedor da realidade
do rio e das populações ribeirinhas, Frei Cappio fez oposição ao projeto de transposição
assim que detectou que sua execução não beneficiaria os 12 milhões de sertanejos,
desconsiderando todas as manifestações contrárias à sua execução. De acordo com Frei
Cappio:
Quando (se) começou a falar no projeto de transposição, havia um
invólucro social de levar água para o povo – que é mentirosa – nós
aplaudimos; nossa, que maravilha!Agora o povo do Nordeste vai ter
água! Fomos estudar o projeto e, quando adentramos o mesmo e
conhecemos suas minúcias, nós percebemos que ele não tinha nada de
social e ambiental e nem estava preocupado com a dessedentação
humana e animal, sendo um projeto para a segurança hídrica dos
grandes projetos agroindustriais; um projeto tipicamente econômico.
Quando tomamos conhecimento, percebemos que não poderíamos
deixar o projeto acontecer. (Informação verbal, 08/05/2014).
O gerente da CODEVASF em Juazeiro tem opinião contrária ao líder religioso
no tocante ao projeto da transposição do São Francisco.Ao ser perguntado sobre os
motivos que desencadearam os diversos protestos contra a execução da obra, o Sr.
Emanuel Lima da Silva respondeu que as causas eram o
desconhecimento. Em alguns momentos, a crítica pela crítica, certo?
Eu, sinceramente, não vejo uma questão nessa transposição que não
seja uma questão ideológica. Porque está aí, um perímetro irrigado
desses.O Salitre, por exemplo, ele bombeia e põe água a 42 m³/s; a
vazão mínima do rio agora é 1100 m³/s. A vazão é normal.Agora, se
você considera a transposição do São Francisco projetada a 57 m³/s,
qual o efeito disso no geral? Você prefere matar o povo de sede e
254
deixar a produção morrer ou trabalhar com essa questão de projetos
estruturantes, que garantem vida, não só a vida animal – que nós
somos animais, agente e os animais – e algumas áreas que você
produz alimentos. O grande problema do futuro será alimentos. Tem
esse celeiro que você pode produzir, não só aqui, mas no Amazonas,
Tocantins, como no Mato Grosso ... tem que trabalhar com a visão de
futuro, você não pode trabalhar só pensando no hoje.Não vejo
sinceramente críticas com respaldo técnico; vejo mais como uma
questão ideológica ou a crítica pela crítica (Informação verbal,
15/05/2013. Grifos nossos).
Está-se, pois, diante de discursos antagônicos e pautados em argumentos
distintos, revelando como a perspectiva desenvolvimentista é forte no âmbito do
aparelho de Estado, como forma de impulsionar a territorialização do capital. Os
movimentos contrários à transposição entendem a obra como uma engrenagem para o
fortalecimento das estruturas de poder e para a consolidação do papel do Semiárido no
mercado nacional e internacional, como produtor de frutas, vislumbrando também a
produção de agrocombustíveis e grãos. Contraditoriamente, o Estado resgata o discurso
do “Brasil potência”, a “Pátria-mãe”, provedora de alimentos para justificar
investimentos na agricultura para exportação. A criação dos perímetros irrigados
possuem diferentes expressões e significados políticos, constituindo um ponto nodal na
convergência de interesses e discursos antagônicos. Nesse embate político-ideológico,
há o resgate de elementos para respaldar as ações e refutar/enfraquecer as críticas feitas
aos megaprojetos, tais como a questão ideológica, a produção de alimentos, a geração
de emprego e o tão propalado “desenvolvimento”. Sobre essa necessidade de
“consumo” do desenvolvimento na perspectiva hegemônica, Thomaz Junior (2006, p.
132) destaca:
É como se o projeto de desenvolvimento tivesse que ser único para o
conjunto da sociedade, contanto que seu recorte para o campo fosse
afinado aos interesses exclusivos de classe (das classes dominantes
nacionais e estrangeiras). Estas, representadas, pois, pelas grandes
empresas capitalistas relacionadas ao agronegócio, cujos vínculos se
estendem de forma mais ou menos expressiva ao capital industrial
(químico-agroalimentário), capital bancário e financeiro, aos
latifundiários e grileiros de terras públicas e devolutas.
Os projetos de irrigação estão, na proposta do Estado, umbilicalmente
relacionados ao progresso e desenvolvimento econômico do Semiárido brasileiro. Há,
pois, um jogo discursivo nas palavras “desenvolvimento”, “progresso” e “trabalho”,
cujos “significados” são conflitantes, embora utilizados para justificar a compreensão
255
dos sujeitos sobre um mesmo objeto. Sobre o sentido e a ideologia imbricados nas
palavras, Pêcheux (1988, p. 160, grifos do autor) destaca que
[...] o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição,
etc., [...] é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo
no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões,
proposições são produzidas [...]. As palavras, expressões, proposições,
etc,, mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles
que as empregam. [...] elas adquirem seu sentido em referência a essas
posições, isto é, em referência às formações ideológicas [...] nas quais
essas posições se inscrevem [...].
Sobre as tentativas de evitar a continuidade da obra da transposição, houve, por
parte do Frei Cappio, o interesse em dialogar pessoalmente com a Presidência da
República, o que acabou não ocorrendo. Depois de esgotadas todas as possibilidades de
diálogo com o governo federal, houve a decisão pelo primeiro jejum em 2005, com
duração de 11 dias, sendo, segundo o líder religioso, um “grito em desespero”. Sobre o
primeiro período de jejum, Frei Cappio afirmou:
Nós tínhamos um mote que dizia assim: quando a razão se estingue, a
loucura é o caminho. Quando os argumentos racionais não valem
mais, a loucura é o caminho. Seguindo esse pensamento nosso,
iniciamos o primeiro jejum de 2005, que pegou todo mundo de
surpresa, ninguém conhecia esse doido e, graças ao apoio CNBB, na
pessoa de Dom Geraldo Magella de Mello, esse grito ganhou respeito
no mundo inteiro e tornou-se conhecido porque, a partir disso, o
mundo inteiro tomou conhecimento dessa barbaridade que estava
acontecendo. O objetivo era esse: lançar um grito e esse grito ser
ouvido e foi ouvido. O Planalto se viu doido pelas manifestações e foi
incrível como essas manifestações, de repente,[...] se alastraram, de tal
forma que o presidente [Lula] se viu tão acossado que, no 11º dia do
jejum, mandou para lá o ministro Jacques Wagner para negociar. Após
dezenas de telefonemas para Brasília, porque eu estava em Cabrobó,
numa capelinha de São Sebastião, com o povo todo em volta rezando,
partilhando no meio do sol, Jacques Wagner e eu chegamos a uma
conclusão: o término do jejum. (Informação verbal, 08/05/2014).
As exigências feitas pelo bispo da Diocese de Barra para acabar com o jejum
foram as seguintes: a) suspensão imediata das obras, b) busca de alternativas para o
projeto e uma ampla discussão sobre este com a comunidade nacional e, c) iniciar um
sério trabalho de revitalização do rio São Francisco. Passados dois anos sem que tais
exigências tivessem sido cumpridas, em 2007, o bispo iniciou um novo período de
jejum, que durou 24 dias, sendo suspenso sem que as condições impostas pelo Frei
Cappio fossem atendidas, tendo este afirmado que o
projeto [transposição do São Francisco] caminhou até as eleições de
2010. Até ai caminhou. Dilma foi eleita e as obras pararam. Isso aqui
256
é importante: se os recursos investidos na transposição fossem
investidos no projeto da ANA [Agência Nacional de Águas], que
também era do governo, hoje todo o Nordeste tinha água para beber e
usar, com os recursos que foram gastos com o ralo da corrupção no
projeto da transposição. E agora, diante dessa seca terrível que
vivemos nesses dois últimos anos, a toque de caixa construíram a
adutora de Guanambi, a adutora de Irecê e ano passado foi inaugurada
a adutora de Floresta, no Pernambuco, para garantir água para o povo,
(Informação verbal, 08/05/2014, grifo nosso).
Aguerrido em sua postura contrária à execução do projeto da transposição do
São Francisco, Frei Cappio não adotou a mesma atitude frente à implantação do Projeto
de Irrigação Baixio de Irecê, cuja obra possui investimentos e impactos sociais,
econômicos e ambientais semelhantes àqueles da transposição. Embora a CPT/Irecê
venha desenvolvendo um trabalho importante de mobilização e assessoria junto às
comunidades impactadas pelo empreendimento, constatamos que a participação da
diocese de Barra nas ações de mobilização e enfrentamento à CODEVASF tem ocorrido
em momentos pontuais. Uma das prováveis causas para o pouco envolvimento de Frei
Cappio na luta contra a execução do Projeto de Irrigação do Baixio de Irecê seja a
decepção sua em relação ao Presidente Lula e ao Partido dos Trabalhadores (PT).
Já no final dos anos 1990, a CPT/Irecê fez uma denúncia sobre a situação de
desamparo a que estavam sujeitas as famílias dos vales dos rios Verde e Jacaré, após a
confirmação da implantação do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê. As primeiras ações
objetivando organizar as famílias ocorreram ainda em agosto de 2008, quando a
CPT/Irecê fez um mutirão de visita junto às comunidades para fazer um diagnóstico da
realidade das famílias que ocupavam a área onde seria implantado o perímetro irrigado.
O trabalho de acompanhamento feito por essa entidade começou em maio de 2010, visto
que, no período entre o diagnóstico (2008) até o início das atividades, fez-se necessário
angariar recursos financeiros para viabilizar as ações de acompanhamento e de
mobilização das comunidades. A metodologia utilizada pela CPT/Irecê no processo de
mobilização das famílias/comunidades está pautada na educação popular, com reuniões
periódicas de formação e de discussão com os camponeses sobre seus direitos
territoriais e sobre quais as ações a serem tomadas no processo de reivindicação da área
junto à CODEVASF. De acordo com a liderança da CPT/Irecê, as reuniões de discussão
dão ênfase aos seguintes assuntos:
a) Direitos à terra e ao território, conforme asseguram a Constituição
Federal e a Organização Internacional do Trabalho (OIT 69)e b)
orientação sobre os direitos socioambientais e organização. É
257
necessário que as comunidades despertem e se organizem para as
conquistas desses direitos, cuja metodologia é baseada na educação
popular. Dentro desse aspecto da formação, são feitas trocas de
experiências através de intercâmbio com outras comunidades que
sofrem impactos semelhantes, na perspectiva de que aquelas famílias
despertem e se organizem para lutar contra a implantação do projeto.
(Informação verbal, 16/04/2013).
Atualmente a CPT é a entidade com maior atuação na região do Médio São
Francisco, no tocante à organização social, muito embora existam associações e
sindicatos de trabalhadores rurais – Associação Comunitária da Fazenda Almas,
Associação Comunitária Rural de Guaxinim, Associações dos Produtores de Várzea
Grande, Associação dos Agricultores de Lajes e Associação Comunitária de Rio Verde
II e III – nos municípios de Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia. Mesmo com atuação
incisiva na região, desde 2008, a CPT não foi mencionada no “Relatório de
Compatibilização dos Documentos do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê” elaborado
pela Empresa Magma Engenharia.
A atuação da Igreja como liderança comunitária na região encontra-se
relativamente desmobilizada, havendo sido mais significativa na
década de 70, principalmente em função dos impactos sociais
advindos da formação do lago de Sobradinho. Foram identificados
como grupos mais atuantes no que se refere às questões sociais e
ambientais: a Ordem dos Franciscanos, vinculada à Diocese de Barra,
a FUNDIFRAN - Fundação para o Desenvolvimento Integrado do São
Francisco, sediada em Xique-Xique, e o Grupo de Apoio à Resistência
Rural e Ambiental – GARRA, com sede em Irecê. (MAGMA
ENGENHARIA, 2013, p.104).
Entre os desafios encontrados pela CPT no processo de organização das
famílias, está a descrença, por parte dos camponeses, em relação aos resultados que a
mobilização contra as ações da CODEVASF poderá trazer para eles. Essa desconfiança
deve-se a diversos fatores: primeiro, porque muitas dessas famílias vivenciaram os
desdobramentos do processo de desterritorialização provocado pela construção de
Sobradinho, bem como os revezes enfrentados pelos desalojados e a total omissão por
parte do Estado, que assumiu deliberadamente a defesa da necessidade de gerar energia
para viabilizar o “desenvolvimento” do país, em detrimento das 72 mil pessoas que
perderam suas terras (26 mil propriedades) e seus territórios, submersos pelas águas que
gerariam a energia para impulsionar o progresso para além das terras são-franciscanas.
Há, também, aquelas famílias que foram vítimas, nos anos 1970 e 1980, dos violentos
despejos decorrentes da grilagem de terras nos vales dos rios Verde e Jacaré, liderados
258
por Airton Neves Moura e seus jagunços, sem que o poder público local tomasse
qualquer atitude em defesa dos camponeses. Ressaltamos que algumas dessas famílias
expulsas das terras pelos grileiros haviam sido desalojadas pela construção de
Sobradinho, vivenciando um novo processo de perda da terra e do território. As
comunidades do Baixio de Irecê vivenciam, ao longo das últimas quatro décadas, vários
ciclos de expropriação que têm produzido sentimentos distintos, expressos ora sob a
forma de descrença em relação ao papel do Estado, ora de incerteza quanto à
permanência nas comunidades. De acordo com a liderança da CPT/Irecê, mesmo que as
comunidades ainda estejam fragilizadas,
[...] no início do trabalho isso era bem mais acentuado. Hoje as
comunidades já conseguem desmistificar a lógica do empreendimento.
Eles não se veem dentro do empreendimento, como é propagado. No
entanto, há também pessoas nas comunidades que acreditam no
empreendimento. Outro aspecto a ser mencionado é a falta de atuação
de outras organizações que possam contribuir nesse processo de
fortalecimento da luta das famílias camponesas. No entanto, nesses
últimos dias a gente tem percebido, devido à provocação da CPT, o
envolvimento dos dois sindicatos [Itaguaçu da Bahia e Xique-Xique].
Na verdade, outras organizações que tinham uma atuação muito forte
na região abraçam o discurso do governo com essa proposta de
desenvolvimento, recuado no enfrentamento de discutir os direitos
socioambientais dessas comunidades. (Informação verbal,
14/05/2013).
Como a identidade e a própria origem das famílias atingidas são heterogêneas,
há grande dificuldade em obter uma unidade, o que se reflete nas opiniões que os
camponeses têm em relação às medidas a serem adotadas no enfrentamento à
implantação do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê. De todas as comunidades atingidas,
direta e indiretamente, pelo empreendimento (total de 19 comunidades), aquela que
apresenta menor adesão ao movimento contra a criação do perímetro irrigado pela
CODEVASF é a Comunidade de Boa Vista porque, devido à proximidade desta com o
canteiro de obras do perímetro irrigado, muitos moradores trabalharam
temporariamente, exercendo diversas atividades, como porteiros, cozinheiras,
faxineiras, destocadores de floretas, dentre outras. Percebe-se que essa foi uma
estratégia bem sucedida por parte das empresas executoras da obra, evitando, assim,
problemas com os moradores, visto que esta comunidade está localizada a
aproximadamente 400 metros da tomada de água do perímetro irrigado. Pelo fato de
algumas pessoas terem trabalhado nas obras, ocorreu um processo de cooptação das
famílias, de modo que estas não participam das reuniões, o que dificulta a atuação da
259
CPT/Irecê. De todas as 19 comunidades, Boa Vista é a mais favorável à execução da
obra, por acreditar que o empreendimento promoverá o desenvolvimento local. Tem-se,
nesse contexto, um estranhamento entre as comunidades, levando à negação, por parte
de muitas famílias, de seus modos de vida e a adoção de uma racionalidade – propagada
por agentes externos – quase sempre contrária aos costumes locais.
Em 2013, após diversas reuniões junto às comunidades atingidas pelo Projeto de
Irrigação Baixio de Irecê, foi elaborada (06/11/2013) pelo Sindicato dos Trabalhadores
Rurais de Itaguaçu da Bahia, pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xique-Xique,
pela Paróquia Senhor do Bonfim de Xique-Xique e pela CPTuma Representação
Pública, protocolada junto ao Ministério Público Estadual. Como desdobramento dessa
Representação Pública, foi instaurado um Inquérito Civil (nº. 1.14.012.000011/2014-13)
pelo procurador da República, Samir Cabus Nachef Junior, a fim de apurar as
irregularidades denunciadas pelo documento protocolado pelo coletivo de comunidades
e entidades sociais.
No dia 20 de maio de 2014, foi realizada, na Câmara Municipal de Xique-Xique,
uma audiência pública sobre os impactos do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê para as
comunidades tradicionais de Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia. Foram convidados para
participar do evento: associações de representantes das comunidades tradicionais,
representantes da Comissão Pastoral da Terra, CODEVASF, Prefeitura Municipal de
Xique-Xique, Câmara Municipal de Xique-Xique, Prefeitura Municipal de Itaguaçu da
Bahia, Câmara Municipal de Itaguaçu da Bahia, Empresa Baiana de Desenvolvimento
Agrícola, Bahia Pesca, o juiz e o promotor estaduais em atuação no município de
Xique-Xique. A audiência contou também com a presença de Cristina Nascimento de
Melo,Procuradora da Repúblicaemembro do grupo de trabalho “Quilombos, Povos e
Comunidades Tradicionais da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão da Procuradoria
Geral da República”. No dia seguinte à audiência pública (21/05/2014), os procuradores
da RepúblicaCristina Nascimento de Melo e Samir Cabus Nachef Junior visitaram
várias comunidades, com o propósito de conhecer e registrar a realidade das
comunidades atingidas pelo Projeto de Irrigação Baixio de Irecê.
Em 02 de maio de 2014, como parte das ações deflagradas anualmente, durante
o mês de abril (Abril Vermelho), o MST ocupou a área do Projeto de Irrigação Baixio
de Irecê (Foto 11), com aproximadamente 200 famílias. Parte das famílias acampadas
veio para esta área, deslocada do Acampamento Abril Vermelho localizado no Projeto
260
Salitre, em Juazeiro (BA), apresentando, como pauta de reivindicação, o assentamento
de 1.000 famílias no perímetro irrigado.
Foto 11 – Acampamento do MST na área do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê –
Xique-Xique
Fonte: Trabalho de Campo, 2014.
Autor: DOURADO, J. A. L.
O acampamento das 200 famílias foi instalado nas proximidades do canal central
do projeto, de modo a facilitar o acesso à água: apesar de o perímetro ainda não ter sido
inaugurado, é necessário manter o canal com água para evitar danos na sua estrutura de
concreto. A ocupação foi realizada pelo MST sem qualquer consulta ou conhecimento
por parte da CPT e das famílias atingidas pelo perímetro irrigado, causando
instabilidade entre estas que passaram a temer e a rechaçar a presença dos acampados na
região, devido ao seu descontentamento com a ocupação das terras e por desconhecerem
o que representa o próprio MST no contexto da questão agrária brasileira. O
desconhecimento por parte das comunidades atingidas pelo Projeto de Irrigação Baixio
de Irecê em relação à presença e aos propósitos do MST, bem como a falta de
articulação entre as lideranças desse movimento social com a entidade que faz a
mobilização das famílias na luta pela terra e pela água nessa região geraram
discordâncias e enfraqueceram ainda mais a capacidade de enfrentamento ao Estado. Na
verdade, o que poderia consubstanciar a ação das famílias que lutam pela posse da terra
261
no Projeto de Irrigação Baixio de Irecê transformou-se num obstáculo a ser removido,
pois, os “de fora”, ou seja, os acampados atuam com referenciais (políticos, ideológicos)
diversos daqueles apresentados pelas famílias camponesas impactadas pelo
empreendimento.
4.4 Ocupação do MST no Projeto de Irrigação Baixio de Irecê: conflito e
estranhamento de classe no contexto da luta pela terra e pela água
As dificuldades de compreensão da complexa trama de relações que envolvem a
luta pela terra e pela água no campo brasileiro exigem constante repensar sobre a
própria identidade de classe bem como sobre os posicionamentos políticos e ideológicos
dos diferentes sujeitos envolvidos nesse processo. Os desafios, nesse universo, são
grandiosos porque envolvem não apenas o embate travado contra o Estado e contra o
grande capital mas também os conflitos entre os sujeitos que estão no front de batalha
contra os atores hegemônicos, revelando uma dissonância e falta de clareza no cerne da
luta de classes, frente às divergências político-ideológicas e metodológicas que há entre
os diferentes movimentos sociais e entidades, envolvidos na luta pela terra e pela água.
A luta de classes é indispensável para a compreensão das contradições do campo
brasileiro, caracterizado pelo desenvolvimento desigual e combinado, tendo de um lado
os interesses dos capitalistas e, de outro, os camponeses e os trabalhadores assalariados.
A explicação da (i)materialidade dos conflitos envolvendo a sujeição da renda da terra
ao capital, da alienação do trabalho, da mutilação/precarização do trabalho (em suas
diferentes formas de expressão) e da criação de novas formas de reprodução do capital
requer considerar o território como categoria analítica estruturada nas relações de poder,
visto que o capital só pode reproduzir num espaço desigual.
No conflituoso campo de ação, a produção e reprodução da desigualdade no
mundo contemporâneo e, mais especificamente, no campo brasileiro desencadeiam
disputas territoriais, permeadas, em muitos casos, por identidades territoriais que
interferem na maneira como ocorrerá a inserção do sujeito nas ações, coletivas e
individuais, de luta e de resistência aos processos desterritorializantes deflagrados pelos
agentes hegemônicos.
As tensões em jogo no cerne da organização das famílias atingidas pelo
empreendimento da CODEVASF no Médio São Francisco são diversas e evidenciam as
cisões no âmbito da luta de classes, que, por sua vez, revelam a necessidade de
262
aprofundar a análise sobre as questões identitárias. Concordamos com Bezerra (2013, p.
51), quando este afirma que:
[...] ainda não conseguimos captar a importância do debate sobre a
identidade no contexto da ofensiva do capital. Uma vez que, ela é
entendida como um traço crucial para compreendermos a sociedade
contemporânea e o apelo identitário não necessariamente representa
uma demanda pelo reconhecimento de uma subjetividade despida de
conteúdos políticos. Exemplos de identidades construídas no bojo da
luta social que se distanciam dos referenciais/representações
associadas ao proletariado puro podem ser observados na ação dos
movimentos sociais.
Pensamos que a identidade territorial pode ser um elemento importante ao tratar
das dissonâncias entre os discursos e as ações da CPT e do MST envolvendo o Projeto
de Irrigação Baixio de Irecê, por reconhecer a necessidade de interpretar como a
condição “de fora”, atribuída aos acampados por aqueles que se consideram “de dentro”
(as famílias atingidas pelo empreendimento), interfere na unificação da luta e cria
obstáculos à atuação das entidades e dos movimentos sociais imbuídos na luta pela terra
e pela água. Há que se entranhar na constituição do conflito instaurado a partir da
ocupação do MST na área do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê porque é, a partir
desta, que vem à tona uma questão cabal para o avanço naquilo que estamos definindo
como visão estranhada sobre o direito à terra e ao território. O que inicialmente parecia
ser um discurso uníssono, ou seja, a união de diferentes atores na luta pela terra e pela
água, demonstrou ser um desencontro entre o MST, de um lado, e a CPT e as
comunidades atingidas pela implantação do perímetro irrigado, de outro, com
perspectivas discrepantes e difusas, causando descontentamento de ambas as partes.
Trata-se de uma contradição marcante pelo fato de a luta envolver sujeitos com os
mesmos propósitos – a luta pela terra e pela água – e possuir diferentes significados, em
decorrência do modo de vida do camponês caatingueiro com forte apego à terra e um
enraizamento, expressos por meio da resistência a atos corriqueiros entre os acampados,
como o “sair de casa”, “dormir no barraco” e “deixar minha casinha”. Ao perguntar a
uma camponesa (43 anos) moradora da comunidade de Roçado sobre a sua opinião em
relação a juntar-se aos acampados do MST, obtivemos a seguinte reposta:
Eu acho muito difícil sair da casinha da gente, deixar os bichos
[cabras, galinhas e bois] pra ir ficar debaixo de uma lona lá. Eles
chamaram o pessoal pra juntar com eles, mas eu não achei jeito de ir
não. A gente já tem nossas coisinhas aqui. Não vai deixar o certo pelo
duvidoso. Quem vai cuidar? (Informação verbal, 21/05/2014).
263
Nesse momento, verificamos que cada um desses atores passou a fazer sua luta.
De um lado, o MST exigindo adesão das famílias/comunidades do Baixio de Irecê e, do
outro, a CPT e os camponeses num total descontentamento em relação à ocupação feita
pelo MST, por entenderem que tal ação coloca em risco a luta e o direito das
comunidades que foram expropriadas. Tem-se, nesse universo, uma confusão sobre qual
é o foco da luta e as divergências colocam-se como um desafio para o entendimento da
morfologia da questão agrária brasileira, graças à pulverização da classe trabalhadora no
embate entre MST, a CPT e famílias do Baixio de Irecê.
Longe de entender a subjetividade desvinculada do componente político,
partimos do pressuposto de que a incompatibilidade entre os sujeitos que protagonizam
a luta pela terra no Projeto de Irrigação Baixio de Irecê está para além das metodologias
adotadas pelas organizações que fazem o enfrentamento ao Estado. Os acampados
possuem um histórico de atuação, por meio de ocupações, distinto das famílias
camponesas do Baixio de Irecê, que sempre estiveram sob o jugo dos grandes
proprietários de terra da região. Embora tenham sofrido violentos processos de
expulsão, esses camponeses nunca vivenciaram a condição de acampados e, por isso,
demonstram grande resistência a essa ação política de territorialização do campesinato
em territórios em disputa. Destarte, a grilagem e o cercamento das terras nos vales dos
rios Verde e Jacaré não provocaram a perda da identidade territorial entre os
camponeses, tendo a casa, como espaço de moradia e vivência, e a comunidade, como
locus de convivência e de reprodução social, uma representação daquilo que poderíamos
definir como a imaterialidade do território que ora reivindicam.
De fato, a ocupação do MST no Projeto de Irrigação Baixio de Irecê causou
instabilidade nas comunidades e na CPT. Ante à ocupação, essa entidade e os
camponeses sentiram-se obrigados a repensar as atitudes tomadas até aquele momento,
avaliando se a ocupação seria mesmo a maneira mais adequada e rápida para atingir os
propósitos almejados, ou se continuariam a seguir os mesmos direcionamentos até então
adotados. Para tanto, A CPT realizou reuniões para consultar os camponeses sobre a sua
opinião e a sua percepção em relação ao MST. Mesmo com as lideranças do movimento
visitando algumas comunidades, convidando os camponeses para aderir ao
acampamento, esses sujeitos demonstraram receio e aversão ao movimento social,
percebendo-o muito mais como concorrentes que aliados, conforme expresso no
discurso do camponês (48 anos) da comunidade de Muquém, em Itaguaçu da Bahia:
264
Eu não vou juntar com esse povo não. Ninguém sabe quem é. E outra
coisa: essa terra tem que ser nossa e não deles. Eles não é daqui e
agora vão querer “invadir” a terra que a gente tá lutando para ter de
volta? Isso não é certo não. A gente tem que agir também.
(Informação verbal, 21/05/2014, grifo nosso).
A essência movente do discurso do camponês supracitado reafirma o
estranhamento entre a classe trabalhadora, demonstrando as fissuras existentes no
contexto da luta pela terra e pela água no Semiárido baiano, a partir da realidade
concreta e objetiva, enfatizando o acirramento das disputas pelo/no território. Assim
sendo, uma questão surge como desafio a ser resolvido: a expansão da luta pela terra e
pela água cria territórios em disputa entre os diferentes tipos de campesinato no
Semiárido baiano, saindo de cena a luta de classes e ganhando expressividade o fato de
que são os camponeses que passam a disputar o território entre si. Destarte, teríamos
mais um demonstrativo da contradição, no interior da luta pela terra e pela água, travada
no Semiárido baiano porque, mesmo havendo incompatibilidade entre as perspectivas
diversas, em relação ao modo de pensar e agir, no enfrentamento ao Estado e ao capital,
essas diferenciações não expressam interesses de classes antagônicas. Nesse caso, não
está presente o conflito do território do capital versus o território camponês135, ou, em
outros termos, os antagonismos existentes não são entre terra de trabalho e terra de
negócio. Embora o MST compreenda que a melhor forma de pressionar o Estado e fazer
o enfrentamento ao capital seja a ocupação, a CPT e as famílias impactadas pelo Projeto
de Irrigação Baixio de Irecê buscam alternativas, pressionando a realização de
audiências públicas, com o objetivo de denunciar, ao Ministério Público e à sociedade,
como as comunidades atingidas pelo referido empreendimento têm sido invisibilizadas
pelo discurso desenvolvimentista do Estado.
Mesmo quando os camponeses concebem a possibilidade de ocupar a área do
Projeto de Irrigação Baixio de Irecê não demonstram interesse em criar vínculo com o
MST. Durante a reunião realizada pela CPT na Comunidade de Muquém, em Itaguaçu
da Bahia, um camponês (54 anos) fez a seguinte colocação: “A minha proposta é a
seguinte: se unir com o MST é para ficar separado” (Informação verbal, 21/05/2014). O
discurso do camponês abriga o conflito entre diferentes sujeitos/agentes mediadores da
luta pela terra e pela água, deixando subentendido o significado atribuído à palavra
ocupação pelo camponês que defende a manutenção da “distância” em relação aos
integrantes do MST. No contexto dado, o confronto com outros posicionamentos e
135 Sobre essa discussão, consultar Martins (1994) e Marques (2008).
265
sujeitos traz à tona a diferenciação entre significados atribuídos a um mesmo ato, pois a
posição do sujeito é indissociável na construção do discurso, ou seja, “[...] o sujeito é
inseparável de um contexto da enunciação que se compõe da situação social imediata e
de um meio social mais amplo (...) as crenças, os valores – do grupo e da época [...]”.
(GUIMARÃES, 2009, p. 98).
O acompanhamento das reuniões realizadas nas Comunidades de Muquém
(comunidades de Itaguaçu da Bahia) e Roçado (comunidades de Xique-Xique)
possibilitou-nos verificar que estas são contrárias à adesão ao MST, por entender que a
presença do movimento social na região traz obstáculos à luta das famílias. Apenas a
comunidade de Boa Vista demonstrou aceitabilidade à ação do MST, tendo alguns
moradores visitado o acampamento para avaliar se aderiam à ocupação. Segundo
informações das lideranças do MST, essa ocupação faz parte de uma estratégia adotada
pelo movimento para forçar o governo federal a realizar uma “reforma agrária” nos
projetos de irrigação no Nordeste brasileiro, tendo como prerrogativa a incorporação das
famílias expropriadas pela implantação do perímetro irrigado. Uma das lideranças do
MST entrevistada no acampamento afirmou que “[...] a prioridade é para o povo do
lugar; eles [as famílias do Baixio de Irecê] são do lugar e conhecem a região”
(Informação verbal, 22/05/2014). Mesmo assim, percebemos que as lideranças no MST
não levaram em consideração o trabalho de base realizado pela CPT junto às famílias
bem como suas reivindicações e demandas, numa postura similar à adotada pela
CODEVASF, tornando invisível a existência dos sujeitos que historicamente ocuparam
aquela área. Ao constatar a resistência à ocupação, as lideranças do MST buscaram
fazer contato com algumas comunidades, realizando reuniões para explicar quais os
objetivos da ocupação e convidar as famílias para aderir ao movimento. Por outro lado,
a CPT viu-se forçada a reunir-se com os camponeses com o propósito de explicar-lhes o
que é o MST, sua origem e suas estratégias de atuação.
De modo geral, os camponeses esperavam um posicionamento da CPT sobre
como deveriam agir, se aderiam à ocupação ou se se mantinham coesos com o trabalho
da entidade. A liderança dessa entidade enfatizou, junto aos camponeses, que essa seria
uma decisão pessoal a ser tomada e que não iria interferir; todavia, haveria que se
considerarem as ações em andamento, como a representação pública e a audiência
agendada com o Ministério Público para tratar do Projeto de Irrigação Baixio de Irecê.
Em se tratando da postura da CPT, verificamos que a entidade não demonstrou adesão
ao MST, conforme se pode constatar na fala de seu representante local:
266
Em nenhum momento fomos procurados pelas lideranças do MST
para tratar do Projeto Baixio de Irecê, nem fomos informados sobre a
ocupação. Já temos um trabalho consolidado junto às famílias,
iniciado de forma efetiva desde 2008 e, ao que nos parece, era
desconhecido pelo movimento. No único momento que tivemos
contato com as lideranças do MST, estas cobraram de nós uma postura
que não condiz com nossa metodologia de trabalho. Jamais vamos
orientar os camponeses para que estes venham acampar. Isso é uma
decisão de cada um. Estamos dispostos a dialogar com o movimento,
mas isso não significa que vamos dizer para as famílias ocupar a área,
pois esse não é nosso papel enquanto entidade. Mobilização, formação
e assessoria são a base de nosso trabalho. Não temos condições
(recursos humanos e financeiros) para dar suporte para que essas
famílias venham acampar na área do projeto. Se fizéssemos isso,
estaríamos sendo irresponsáveis. (Informação verbal, 16/05/2014).
Acreditamos que faltou articulação, por parte do MST, para aglutinar as famílias
ao movimento de ocupação, fato que criou uma atmosfera de disputa entre o movimento
e a CPT. Sem o contato e diálogo prévios, as lideranças do MST passaram a cobrar uma
adesão das famílias sem levar em consideração os seus valores sociais, esperando
encontrar sujeitos “cativos” e fáceis de serem convencidos. Grosso modo, não levaram
em consideração que a ocupação tem rebatimentos diferentes a depender do sujeito:
para as famílias dos vales dos rios Verde e Jacaré, isso acarretaria mudanças na maneira
cotidiana de produzir e relacionar-se, transformando suas práticas socioculturais, ou
seja, sua própria campesinidade. Outra particularidade ignorada foi a territorialidade das
famílias, pois esta funciona como um fator que agrega força, identificação e laços
solidários. Para essas famílias, o ato de sair de suas casas e ir para o acampamento
significa viver um processo de desterritorialização, distanciamento dos laços de
consanguinidade, de afetividade, vizinhança e dos rituais familiares, estando
subordinados a novos membros e a novas regras, inclusive de acesso à terra, até então
desconhecidos.
Outros aspectos foram decisivos para acentuar o estranhamento entre o MST e
os camponeses, como o desconhecimento, por parte das famílias, dos ideais do
movimento, ou, ainda, a visão criminalizada em relação ao MST produzida pelos
discursos midiáticos. Por outro lado, a militância, característica marcante entre os
integrantes deste movimento social, constitui uma experiência não vivida pelas famílias
atingidas pelo Projeto de Irrigação Baixio de Irecê. Além disso, em nenhum momento
houve concordância, por parte das lideranças, seja do movimento social, seja da CPT,
em discutir a possibilidade de unificação das pautas de reivindicações acerca da luta
267
pela terra e pela água. Estando os sujeitos distantes e apresentando concepções
divergentes sobre os direcionamentos a serem adotados no enfrentamento ao Estado, o
que ocorreu foi o aumento do antagonismo entre esses sujeitos e uma “desordem” no
tocante aos interesses vinculados à órbita dos conflitos de classe.
Nesse contexto, a compreensão da trama de relações envolvendo as diferentes
formas de organização e deação política dos trabalhadores coloca-se como um desafio
para entender a “[...] dimensão da representação e da subjetividade da classe
trabalhadora [...]”(THOMAZ JUNIOR, 2009, p. 38), por acreditarmos que o
fortalecimento das ações anticapital perpassa pela superação da fragmentação no
interior da classe trabalhadora – cada vez mais heterogênea e multifacetada – e da
apreensão dos sentidos polissêmicos do trabalho.
CAPÍTULO V
PROJETO SALITRE: FACES CONTRADITÓRIAS DO
AGROHIDRONEGÓCIO NO SEMIÁRIDO BAIANO
268
Por meio do trabalho, o homem põe em
movimento as forças naturais do seu corpo,
afim de apropriar-se dos recursos da
natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida
humana. (Marx, 1982, p. 243).
Neste capítulo faremos um resgate de como ocorreu o processo de ocupação do
vale do rio Salitre, das principais atividades agrícolas desenvolvidas pelos camponeses
bem como dos desdobramentos da modernização da agricultura ocorrida nessa região, a
partir dos anos de 1970, mediante a introdução de novas lavouras, técnicas,
instrumentos, em decorrência das políticas públicas implementadas, na região, pelo
Estado. Ademais, analisaremos como ocorreu o conflito pela água envolvendo
empresários rurais e camponeses no Baixo Salitre, nos anos de 1980 e como essa
conflitualidade perdura até os dias atuais com a implantação do Projeto Salitre. Serão
tratadas as dissidências entre os salitreiros e os integrantes do MST, com vistas a refletir
sobre as fissuras e fragmentações no interior da luta pela terra e pela água, sobre o papel
do acampamento Abril Vermelho no enfrentamedo ao Estado e ao grande capital, bem
269
como sobre as estratégias adotadas pelos camponeses no contexto da mobilização e
organização social das comunidades do vale do Salitre para reivindicarem seus direitos
perante o Estado.
5.1 – Processo de ocupação e o surgimento dos conflitos no vale do rio Salitre
O rio Salitre nasce no município de Morro do Chapéu (Chapada Diamantina, no
local chamado de “Boca de Madeira”) e deságua em Juazeiro (povoado de Sabiá, à
jusante da Barragem de Sobradinho), cortando nove municípios (Morro do Chapéu,
Mirangaba, Juazeiro, Jacobina, Várzea Nova, Miguel Calmon, Ourolândia, Umburanas
e Campo Formoso) e abrangendo 20 comunidades situadas nas margens esquerda e
direita do rio. A bacia hidrográfica do rio Salitre (Mapa 13)está totalmente inserida no
Polígono das Secas, na região centro-norte da Bahia. Trata-se de uma sub-bacia do rio
São Francisco, caracterizando-se como um rio intermitente cujos limites são: a leste, as
bacias do rio Itapicuru e do Submédio São Francisco; a oeste, as bacias dos rios Verde e
Jacaré; ao sul, a bacia do rio Paraguaçu, especificamente a sub-bacia do rio Jacuípe.
Tomando-se por base o curso do rio, a bacia hidrográfica do rio Salitre foi dividida em
Alto Salitre, Médio Salitre e Baixo Salitre.
270
271
Após o “descobrimento”, os colonizadores realizaram-se algumas expedições,
em direção ao interior do país, as quais fracassaram devido à fome, a doenças e aos
ataques dos indígenas, até que expedicionários conseguiram “rasgar” o sertão e levaram
ao rei de Portugal informações, relatadas pelos nativos, sobre a existência de ouro
naquelas terras. Desde então, muitas outras expedições foram realizadas, tendo algumas
delas conseguido alcançar, já em 1596, o atual Submédio São Francisco, mais
especificamente, os locais onde estão localizadas a Serra da Borracha, em Curaçá,
Jacobina e o vale do rio Salitre, conforme afirma Pierson (1972). Sobre os primeiros
contatos entre os portugueses e os índios do vale do São Francisco, Gonçalves (1997, p.
13) destaca que os
primeiros contatos entre os índios do Vale do São Francisco e os
portugueses não foram, na maioria das vezes, violentos. Como a
maioria das expedições dos portugueses que andavam na região
procuravam minerais, não existiam motivos para confrontos
sistemáticos. Quase sempre os colonizadores mantinham posturas
gentis, uma vez que buscavam obter o máximo de informações.
Palmilharam amplamente as terras da região, mas não encontraram
ouro.
Quando a mão de obra escrava indígena ficou escassa no litoral, a solução
encontrada pelos colonizadores portugueses foi trazê-la do vale do Rio São Francisco,
sendo os índios caçados e escravizados para o trabalho nas lavouras de cana-de-açúcar.
Expedições mineradoras e escravizadoras de indígenas no sertão do São Francisco
perduraram até os anos de 1620, sem haver uma fixação dos expedicionários naquela
região. A ocupaçãoportuguesa efetiva do vale do rio Salitre deu-se por Francisco Dias
D’Ávila, a partir de 1624. As terras, concebidas sob a forma de sesmarias, ampliaram o
patrimônio da Casa da Torre, tendo-se nelas destacado as atividades de mineração e o
aprisionamento de índios, para trabalhar como escravos. O estabelecimento da pecuária
deu-se por volta dos anos de 1640, sendo implantados vários currais na região do vale
do rio Salitre, assim como em todo o curso do rio São Francisco, exigindo
investimentos menores para manutenção e reduzida mão de obra.Assim, a ocupação
dessa fração do território baiano ocorreu de forma complementar às atividades
econômicas desenvolvidas no litoral, baseadas na produção de cana-de-açúcar.
Associando mãodeobra escrava e trabalho servil, os senhores da Casa da Torre
expandiram seus domínios, sendo os currais implantados rapidamente, intensificando o
processo de ocupação pela atração que a pecuária exercia nos portugueses
desafortunados.
272
Os portugueses enfrentaram grande resistênciaao avanço da criação de gado no
Sertão, por parte dos povos autóctones, principalmente pelos índios Cariris, como
enfatizaAbreu (1988, p. 41):
No avanço para o sertão defrontaram os índios, em que sobressaíam os
Cariris, antigos dominadores do litoral, então acuados entre o São
Francisco e a Ibiapaba. A sua resistência foi terrível, talvez a mais
persistente em que os povoadores encontraram em todo o país; mas
atacados no São Francisco, no Piranhas, no Jaguaribe, no Parnaíba, do
Ceará, foram uns mortos, outros reduzidos a aldeamentos, outros
agregados a fazendas, [...].
Desse modo, pode-se observar que os mesmos locais já ocupados pelos índios,
nos primórdios da colonização portuguesa, no Semiárido nordestino são, atualmente, os
territórios do agrohidronegócio, os vales férteis onde estão localizados muitos dos
projetos de irrigação, considerados pelo Estado como modelo de agricultura de sucesso,
devendo ser propagado por gerar riqueza e desenvolvimento regional.
Aproximadamente pelos anos de 1670 a expansão dos currais, de forma
vertiginosa, sobre as terras férteis passaria a rivalizar com os índios Cariri136, sendo
estes desalojados e obrigados a fugir para as serras, ilhas e vale do rio São Francisco,
locais que, durante os períodos de estiagem, eram cobiçados pelos criadores, que
levavam os animais para pastar nos roçados feitos pelos indígenas, destruindo-os e
causando fome e medo entre os nativos. Esse conflito acentuou quando os índios, em
situações de fome, passaram a abater os animais para comer, causando revolta entre os
criadores portugueses. Assim, foi planejada uma expedição de caçada aos índios Cariris,
conforme destaca Gonçalves (1997, p. 36):
A reação dos criadores não demorou. O segundo Francisco Dias
D’Ávila, mandatário da Casa da Torre na ocasião, homem de ambição
e truculência extremadas, reuniu vaqueiros e donos de currais da
região, e conseguiu o apoio do governador da época – que lhe
concedeu pólvora, chumbo e uma ordem que determinavaque o Frei
Martin de Nantes colocasse os índios da Missão sob seu comando (do
segundo Francisco Dias D’Ávila), e ajudassem no combate aos
rebelados. O Frei, prontamente cumpriu a determinação, mas os índios
da Missão se recusaram a ir à luta sem a presença do missionário.
Após longa perseguição, em junho de 1676, na foz do rio Salitre, os índios
Cariris foram massacrados, episódio que ficou conhecido como “Chacina do Rio
Salitre”, devido ao extermínio de aproximadamente 800 índios, tendo os portugueses
136 O nome Cariri significa silencioso, quieto e calado.
273
realizado a “limpeza” da área para os currais. Ainda sobre a atuação dos portugueses no
sertão do São Francisco, Lins (1983, 21) relata que os criadores
não povoaram a região, em vez de povoarem-na, promoviam o seu
despovoamento, matando o gentio que a ocupava. Plantando currais
pelo ermo adentro, o explorador branco substituía por boiadas as
tribos que encontravam pelo caminho. Matando ou escravizando o
índio, o colonizador português, a princípio, realizou uma obra de
escravidão e extermínio de toda uma nação [...].
Assim, desde os primórdios da História, o vale do Salitre foi marcado por
grandes conflitos pela posse da terra entre portugueses e indígenas. Com a desagregação
da sesmaria Casa da Torre, restaram grandes fazendas que passaram a desenvolver
atividades consorciadas: criação de gado e produção de cana-de-açúcar. Os engenhos,
movidos por tração animal, localizavam-se nas margens do rio Salitre e as áreas de
criação de gado, nas terras de sequeiro, distantes do rio. Essas atividades eram divididas
em dois períodos: seis meses dedicados à pecuária (janeiro a junho) e seis meses
dedicados à produção de cana-de-açúcar (junho a dezembro), usada na produção de
rapadura para o autoconsumo, sendo o excedente comercializado localmente (nas
comunidades do Salitre e na cidade de Juazeiro) e em municípios mais distantes, como
Senhor do Bonfim. Como nem todos possuíam engenhos, havia uma relação de parceria
entre os fazendeiros e os camponeses. Estes pagavam aos donos dos engenhos renda
(em espécie ou em produto), para poder fazer a moagem da cana e produzir a rapadura,
havendo assim uma relação de submissão dos camponeses aos senhores dos engenhos.
A rapadura, a farinha e a carne seca (salgada e desidratada ao sol) compunham a dieta
alimentar dos moradores do Sertão semiárido – principalmente dos vaqueiros, dos
trabalhadores dos currais e dos camponeses – durante os meses de estiagem, quando a
oferta de verduras e legumes se reduzia drasticamente.
O trabalho nas lavouras de cana-de-açúcar envolvia todos os membros da família
– homens, mulheres e crianças – desde o trabalho na lavoura (preparo da terra, plantio,
limpeza e colheita) até a moagem no engenho. Havia, entre os camponeses pobres, a
realização de “batalhão”137 para executar tarefas, como o plantio e a colheita da cana-
de-açúcar. De acordo com A. M. (70 anos), morador da comunidade de Campo dos
Cavalos,
137 Espécie de mutirão realizado entre os camponeses pobres moradores das comunidades do
vale do rio Salitre.
274
[...] o pobre era plantador e não tinha condição de pagar 5 tostão. Pra
ninguém. Sabe como é que fazia? Dizia: amigo, amanhã eu estou
fazendo um batalhão para nós plantar minha roça. Ajuntava 5, 6, 8, 10
homens. Ninguém pagava não. Aquele tempo não tinha egoísmo. O
egoísmo é de um certo tempo para cá que o dinheiro apareceu. Todo
mundo querendo pisar um no outro. Todo mundo ia lá ajudar ele
plantar. Aquele dia era trocado. E assim todo mundo trabalhava. Era
comum. Só pagava diária o dono do engenho.
A divisão sexual do trabalho dava-se da seguinte maneira: o preparo da terra era
feito pelos homens; a limpeza das lavouras agregava homens, mulheres e crianças; o
corte da cana era trabalho dos homens; o transporte da cana-de-açúcar da lavoura até os
engenhos englobava homens, mulheres e crianças; o processo de moagem e a produção
da rapadura envolviam homens (moagem e trabalho nas caldeiras) e mulheres (colocar o
melado nas formas e desenformar as rapaduras). As crianças ficam responsáveis por
atividades que exigiam menos força física, como a função de buraqueiro. Havia várias
funções a serem desempenhadas nas lavouras de cana-de-açúcar e na produção de
rapadura, como destaca A. C. dos S. (73 anos), morador da comunidade de Alfavaca: “o
planteiro, o cambiteiro, foguista138, formeiro139, bagaceiro140, garapeiro141, carreiro142 e
o buraqueiro143”. Quanto ao trabalho nas lavouras de cana-de-açúcar, Reis (1986, p. 41)
pondera:
Para alimentar o engenho trabalhavam os cortadores de cana, os
cambiteiros que carregavam a cana apoiada por uns ganchos
(cambitos) presos às cangalhas dos jegues ou ainda em carro de boi. A
garapa era recolhida em bangüês de couro ou em dornas e levada para
os tachos de cobre, onde fervia até dar ponto. A tarefa de “dar ponto
no mel” para fazer a rapadura era do ponteiro, que na hora certa devia
passar o mel para as gamelas onde era batido e enformado pelas
mulheres.
A lavoura de cana-de-açúcar ocupava toda a extensão do vale úmido do rio
Salitre, constituindo uma das principais fontes de renda para as famílias, conforme
destaca M. da C. (Salitreira, 59 anos):
As pessoas plantavam a cana. Todo mundo que tinhas as propriedades
plantavam cana. Porque não era irrigação, era água do rio mesmo que
molhava aquela cana. O rio era perene, aí ele umedecia aquela terra e
não precisava irrigar a terra, era natural a “molhação” da cana. Eles
138 Colocava fogo na fornalha. 139 Colocava o melado nas formas e desenformava a rapadura. 140 Recolhia o bagaço do engenho. 141 Mexia a garapa na caldeira ou tacho. 142 Responsável por buscar a lenha para ser queimada na fornalha. 143 Responsável por orientar os cambiteiros no transporte da cana, evitando assim que os jumentos
caíssem em buracos no trajeto até os engenhos.
275
plantavam a cana e com seis meses estava boa para o corte. Tinha
aqueles donos de engenho. Não era todo mundo que tinha engenho,
eram algumas pessoas que tinham mais condição; tinham um engenho
de pau puxado a boi. Aquelas pessoas combinavam com o dono do
engenho aquele dia que ia cortar a cana. Tinha aquelas pessoas que
trabalhavam no corte da cana: mudar da cana, limpar da cana, cortar
da cana e trabalhar no engenho. Quem tinha a família com muita gente
não precisava colocar diarista. Quem não tinha precisava colocar
diarista. Quem não tinha terra trabalhava para os donos dos engenhos.
Por isso não faltava emprego no Salitre. (Informação verbal,
07/05/2014, grifo do autor).
Ainda sobre a importância da lavoura de cana-de-açúcar no vale do rio Salitre,
A. M. (70 anos), morador da comunidade de Campo dos Cavalos, afirma:
Todo o Salitre era cana. Todo mundo, de Curral Novo a Curral Velho,
toda a vazante era cana. Quem não podia comprar um engenho de
ferro tinha um engenho de pau. Aqueles homens, o finado Zé
Amorim, o finado Janjão, Simplício, Furtuoso, Miguel Muniz e
Miguelzinho do Curral Novo era quem podia colocar um engenho e
quem não podia plantava cana e dava de meia ao dono do engenho
para o dono apurar e partir a rapadura. [...]. O pagamento era feito em
rapadura. Se desse 10 mil rapaduras para aquele produtor, 5 mil era do
dono do engenho. Nem todos tinham o engenho para apurar e fazer a
rapadura. (Informação verbal, 18/04/2014).
Essas terras eram inundadas anualmente e permaneciam úmidas durante boa
parte do ano. Quando era necessário irrigar, havia um ajuste entre os camponeses, de
modo que era colocado um tronco de carnaúba com palhas no leito do rio, impedindo
parcialmente a passagem da água. Assim, a água represada transbordava e, através de
sulcos, era conduzida até as lavouras cultivadas próximas às margens do rio, sem
represar,contudo, toda sua vazão. Concluída a irrigação, eram retirados o troco e as
palhas de carnaúba e o fluxo de água era liberado para que outro camponês pudesse
realizar o trabalho de irrigação, sem prejuízos para o rio e para os ribeirinhos. Essa
técnica simples permitia irrigar as lavouras, dispensando o uso de motores (movidos a
diesel) para captar água, não havendo, conforme informações dos salitreiros
entrevistados, registro de conflitos pelo acesso à água naquela época.
A rapadura produzida no vale do rio Salitre era destinada ao autoconsumo,
constituindo um alimento importante na dieta alimentar dos salitreiros, substituindo o
uso do açúcar. Os excedentes eram comercializados nas feiras livres de Juazeiro, de
Senhor do Bonfim, de Januária e de Pirapora. O transporte da rapadura até as cidades
mineiras era feito por meio de barcos. Em consórcio com a cana-de-açúcar, outras
lavouras eram praticadas pelos salitreiros, como o feijão, o milho, o alho, a cebola roxa,
276
a batata, verduras, hortaliças, frutas (manga, goiaba, coco principalmente) além da
criação de animais de pequeno porte (aves, suínos e caprinos). Toda a produção era
voltada para o autoconsumo e os excedentes comercializados na própria comunidade ou
nas feiras livres de Juazeiro e em cidades circunvizinhas. A irrigação das lavouras de
verduras era feita utilizando-se latas para o transporte da água. Para se construírem os
canteiros nas margens do rio, onde eram cultivadas as hortaliças (principalmente o alho
e a cebola), usava-se um instrumento produzido artesanalmente, chamado pelos
salitreiros de passadeira, como descreve Silva (2013, p. 27):
Chamava-se de passadeiras um arranjo feito com a parte central da
palha de coqueiro e uma cabaça partida presa em uma das pontas,
instrumento este que era usado para retirar água do rio e molhar os
canteiros feitos a poucos centímetros do mesmo. A passadeira
constituía-se uma tecnologia de irrigação desenvolvida por
agricultores da região para tornar mais prática a molhação dos
canteiros.
A introdução da agricultura irrigada em moldes comerciais, para o cultivo da
cebola, principalmente, ocorreu no vale do São Francisco, no estado de Pernambuco,
sob incentivo da SUVALE. Essa modelo de agricultura rivalizava tanto com os grandes
proprietários de terras, resistentes a mudanças em suas bases econômicas (pecuária
extensiva) quanto com os ribeirinhos/beiradeiros, cujas atividades tinham como
propósito o sustento da família.
Em 1960 ocorreu uma grande cheia, permanecendo inundadas as áreas de
cultivo de cana-de-açúcar durante todo o ano, levando essa lavoura ao colapso, na
região do Salitre. A partir desse momento, novas culturas e técnicas de produção
agrícolas foram introduzidas na região, com a chegada de agricultores oriundos dos
municípios pernambucanos de Cabrobó, Santa Maria da Boa Vista, Orocó e Belém do
São Francisco. Entre essas culturas e técnicas, estão o cultivo da cebola amarela, até
então desconhecida pelos salitreiros, e o uso do motor movido a diesel, numa lógica
diferenciada daquela da agricultura praticada pelos camponeses do vale do rio Salitre.
Inicialmente, esses agricultores arrendaram terras, mas, com a consolidação da
agricultura comercial em decorrência dos solos férteis e da disponibilidade de água,
acabaram tornando-se grandes proprietários e essa região transformou-se num celeiro
agrícola, atraindo novos investidores. De acordo com Gonçalves (1997, p. 136), a
década de 1960
emerge no cenário regional como marco da modernização. Os
processos e os bens de inovação que vinham sendo introduzidos desde
277
a década de 1940 produziram reflexos que alteraram a paisagem
social, econômica e cultural do vale. A partir dos anos 60, as bases
gerais da vida dos habitantes do Vale foram tornadas obsoletas. Eram
insuficientes para dar sustentação às exigências advindas da nova
realidade insuflada pelo esforço modernizador dos planos e das
agências advindas da nova realidade do estreitamento de relações com
outras regiões do país que acresceram novos itens de consumo e de
valores culturais, trazendo necessidades e aspirações inéditas.
Esse período histórico pode ser considerado um marco no processo de
valorização fundiária, despertando o interesse dos empresários locais e de funcionários
de órgãos públicos. Ao perceberem o sucesso da agricultura comercial introduzida na
região, houve uma verdadeira corrida às terras do vale do Salitre, momento em que
muitos empresários das cidades de Juazeiro e de Petrolina compraram as chamadas
“posses secas”, ou seja, áreas de terras sem uma delimitação específica, conforme relata
M. C., da Comunidade de Tapera:
O pior de tudo não foram as pessoas que vieram trabalhar. O que eu
acho mais errado é que grilaram as terras. Gente daqui mesmo de
Juazeiro ia lá no Salitre e comprava um pedacinho de terra chamado
“posse seca”. Tinha um negócio de vender chamado posse seca. O que
é isso? Posse seca é você ter sua terra e vender lá no meio do mato um
pedacinho de terra. Chamava posse seca. Meu pai mesmo gostava de
fazer isso. Depois que a pessoa comprava essa posse seca tinha o
direito de cercar meio mundo. Teve um senhor mesmo lá, a gente na
época não ligava muito para isso. Nós ficamos no meio desse homem.
O nome dele é Alonso. Ele comprou posse seca de meu pai lá não sei
aonde, no “cafundó” e veio até a margem do rio fazendo cerca. Eu sei
que ele grilou muita terra lá e muita gente fez isso. Comprava um
pedacinho de terra lá dentro e cercava “meio mundo”. Ah, não tem
direito. Tem direito, sim. A posse seca não tinha metragem nenhuma
ai pegava e fazia cerca naquele pedaço de terra. Eu sei que muita
gente grilou terra lá. O que fez mais mal fez ao salitreiro foi isso.
Grilaram as terras. Hoje, mesmo, com esse Projeto Salitre, muita gente
do Salitre ficou sem indenização porque os donos que grilaram foram
os que venderam ao projeto, eles tinham documento da terra e tudo.
(Informação verbal, 26/04/2014, grifos do informante).
Ao analisar as informações relatadas pela salitreira M. C., percebemos como as
terras foram sendo incorporadas por pessoas externas às comunidades do vale do
Salitre, criando obstáculos para a permanência e a reprodução das famílias camponesas.
A grilagem de terras foi relatada por vários camponeses entrevistados. Segundo M.da
C., moradora da comunidade de Alfavaca, “eles não davam muita importância para as
terras de sequeiro” (Informação verbal, 28/04/2014), pois, naquela época, essas terras
eram destinadas para a criação de cabras, denominados fundos de pasto. Assim,
verifica-se a indissociabilidade entre terra e água quando se refere aos camponeses
278
salitreiros, pois, como destaca um dos técnicos do IRPAA, “a questão base dos
camponeses do Semiárido é terra; não é a vocação do clima”144. Desde o período da
colonização, as terras Semiáridas foram concentradas sob o domínio de uma elite
subserviente aos interesses da coroa portuguesa (capitanias e, em seguida, as sesmarias),
e as alterações ocorridas no decorrer do processo histórico foram insuficientes para
mudar a realidade marcada pelos latifúndios, ou seja, quebrar o monopólio das terras.
No final dos anos 60 e início dos anos 1970, a SUVALE implantou em Juazeiro
o Horto Florestal, para realizar experimentos objetivando comprovar a viabilidade
econômica da agricultura irrigada em larga escala, no Submédio São Francisco. A partir
dos resultados desses experimentos foram implantados dois projetos de irrigação: o
Projeto Bebedouro (PE) e o Projeto Mandacaru (BA). Juntamente com a implantação do
Horto Florestal em Juazeiro, foi introduzido o cultivo de uma nova espécie de tomate na
região do Salitre, por meio de José Massaki, de descendência japonesa, que morava no
Rio de Janeiro. Parte dos camponeses do vale Salitre passou a trabalhar como diaristas
para José Massaki, tendo aprendido a manusear a técnica de cultivo de tomates
utilizando varas como suporte para as plantas. No local onde funcionava o Horto
Florestal fica atualmente a Faculdade de Agronomia da Universidade do Estado da
Bahia (UNEB/Campus III - Juazeiro). Sobre esse contexto de mudanças na agricultura
do Submédio São Francisco, Silva (2013, p. 29) afirma que a
irrigação [...] era o elemento central dessa movimentação. O
novo jeito de usar a terra e explorar o rio exigia um pouco mais
da população salitreira do que estavam acostumados até então, a
exemplo da incorporação de novas técnicas de irrigação, maior
dedicação à administração da propriedade, contratação de mão
de obra. As novidades trazidas de outras regiões, como o
município de Cabrobó (PE) ou as técnicas que foram usadas
inicialmente por japoneses e grandes empresários que
adquiriram terras no Salitre por um baixo custo, se espalharam
rapidamente. As tecnologias usadas a partir de então para
desenvolver os monocultivos, ao mesmo tempo em que
inauguravam um certo progresso para a região, marcavam
também o início de uma nova relação dos salitreiros e salitreiras
com a agricultura, praticada, até então, de forma sustentável,
limitada, respeitando o curso espontâneo da natureza. (SILVA,
2013, p. 29).
Na década de 1970, ganhou destaque a consolidação da agrohidronegócio no
vale do São Francisco, inclusive na região do rio Salitre, trazendo uma série de
transformações econômicas, sociais e culturais, saindo de cena práticas socioculturais
144 Informação verbal, 04/05/2014.
279
locais com a entrada de novos costumes e tradições. Em associação aos novos cultivos,
houve a introdução do uso de agrotóxicos, principalmente nas lavouras de tomate. Até
então, segundo relato dos camponeses entrevistados, não havia, entre os salitreiros, o
uso de agrotóxicos nas lavouras, pois não era registrada a ocorrência de pragas nos
cultivos. De acordo com Silva (2013, p. 24), o
modo de vida camponês nesta região a cada década passava por
transformações provenientes do avanço da tecnologia produzido nos
centros urbanos. Neste ritmo, aos poucos, e de forma mais agressiva
depois dos anos de 1970, a agricultura irrigada passou a ganhar espaço
na região, fazendo do Vale do Salitre, inclusive, referência para outras
regiões do país no tocante à produção agrícola.
Nesse universo, a chegada da energia elétrica constituiu um aspecto importante
no tocante às transformações ocorridas na dinâmica econômica, socioambiental e
cultural do vale do Salitre, porque permitiu intensificar a agricultura irrigada através da
utilização de bombas movidas à eletricidade, viabilizando a exploração de maiores áreas
e de terras mais distantes da margem do rio.Em relação às transformações no espaço
agrário no vale do rio Salitre, cabe destacar que a
tendência de concentração de terra no Vale do Salitre intensificou-se a
partir dos anos sessenta. A grande corrida em busca de terras na região
deveu-se aos incentivos e subsídios oferecidos pelo Governo para a
agricultura nesse período; ao potencial dos solos da região; à
construção de estradas; à instalação de rede elétrica e à
disponibilidade de água e de áreas de sequeiro, consideradas
inapropriadas para a agricultura. Como consequência deste fenômeno,
muitos proprietários passaram a vender suas terras, parcelaram-nas e
foram perdendo o domínio das áreas devolutas onde criavam os
animais. Com isso, iniciou-se o processo de transformação desse
espaço agrário.(SILVA apud BARROS, 1992, p. 66).
Analisando as mudanças ocorridas, nessa região, a partir da segunda metade do
século XX, M. C. (59 anos), moradora da comunidade de Tapera, destaca que:
As mudanças foram quando chegou o pessoal de fora para plantar e
trouxeram o motor a diesel. Depois daí veio a energia. A energia foi a
mudança, porque aí o pessoal quando não tinha energia que
começaram a trabalhar com motor a diesel. O motor não tinha
potência para levar água para longe. Era só ali mesmo para plantar
cebola nas roças na beira do rio. Quando a energia chegou, os grandes
proprietários que já tinham grilado muitas terras por lá ou comprado,
começaram a levar água para o pé da serra, bem para longe. Aí foram
começando as mudanças. [...]. Quando a energia chegou e o pessoal
que tinha terras por lá, grandes terras, começaram a puxar água para
longe aí o rio começou a secar, porque antes não secava. [...]. A
grande mudança foi essa: primeiro foi quando chegou o pessoal de
fora para plantar e trouxeram os motores a diesel, já veio outros tipos
280
de cultivo e depois a energia que o pessoal levava agua para muito
longe, aí foi secando o rio e começou a bagunça. Aí o pessoal deixou
de plantar suas roças porque não tinha água, as pequenas culturas, aí
todo mundo começou a plantar grandes roças: tomate, melão e cebola
em grande quantidade e o pequeno foi deixando de mão porque não
tinha água. (Informação verbal, 26/04/2014).
Pode-se dizer que este momento marca uma nova etapa no tocante à exploração
dos recursos hídricos no rio Salitre. Antes da chegada dos irrigantes, os salitreiros
faziam a captação da água de maneira artesanal e sem causar grandes impactos para o
rio. Havia, entre os salitreiros, uma espécie de contrato informal e os laços de
vizinhança e de parentesco contribuíam, sobremodo, para o processo de organização do
modo como era “planejada” a irrigação das áreas próximas ao leito do rio, sem registros
de conflitos entre os camponeses. A gestão da água assim como o seu uso eram
compartilhados pelos salitreiros, tendo como base a ética e a moral camponesas.
Quando os irrigantes de origem pernambucana se instalaram na região, essa lógica foi
interrompida porque a agricultura passou a ser praticada sob os moldes empresariais,
tendo a produção o propósito único de gerar o acúmulo de riquezas. Esse momento
coincide com o fenômeno da “modernização” da agricultura, iniciado no Centro-Sul do
Brasil e com o surgimento dos conflitos por terra, na região do Pontal do Paranapanema
(SP).
Com incentivos governamentais, grandes áreas de sequeiro na região do Salitre
tornaram-se irrigáveis por meio de bombas elétricas, onde eram cultivados tomate,
cebola e melão, tendo como desdobramento um intenso processo de valorizadas das
terras. Estavam, pois, criadas as condições para a eclosão de intensos conflitos entre os
salitreiros e os grandes empresários, havendo forte pressão sobre as áreas ocupadas pela
agricultura camponesa, bem como pelo acesso à água.
Os anos de 1980 registraram os efeitos negativos das transformações ocorridas
no espaço agrário do vale do rio Salitre, culminando com a ocorrência de assassinatos
envolvendo disputas pela água. Com o aumento da irrigação pelo uso de bombas
elétricas, os camponeses do Baixo Salitre passaram a enfrentar constantes interrupções
no fluxo de água do rio, visto que toda a água era captada pelos grandes produtores de
melão e cebola na região do Alto Salitre, na comunidade de Goiabeira, no município de
Campo Formoso. A partir de 1978, a falta de água acentuou significativamente, sem
haver qualquer acordo entre os empresários, camponeses e prefeitos dos municípios que
281
integram a bacia do rio Salitre. Segundo o relato de um dos acusados pelo assassinado
de empresários, o conflito surgiu:
[...] no tempo que faltou água. O povo estava com as roças plantadas.
Logo apareceu muita gente aqui plantando tomate. A água já pouca.
Aconteceu que uma cambada acolá em cima, muito conhecida plantou
umas roças para lá. O riacho secou, mas ficou chorando uma aguinha,
a agua vinha. Os de lá pegava a água e a água não vinha cá. Os bichos
aqui morrendo de sede nos bebedor, as prantas morrendo de sede. Os
daqui inventaram de derrubar as canelas, derrubando as canelas em
cima a agua vem, porque a energia acaba. A água veio pouca porque
certamente tava pouca. Aí começou a briga. Um queria, outro queria.
Os que queria mais eram os que plantavam mais, eram os ricos. Secou
o riacho, mas lá soltavam água mais encima, aí eles prendiam a água
para molhar as prantas deles. Quando soltava, não dava mais para vir
cá. Aí um dia derrubaram as canelas e ficou essa novela. Aí veio o
pessoal de Juazeiro disposto a brigar – os que morreu. Eu fiquei preso
sete meses e nove dias por causa disso. Os outros ficaram presos três
dias. Foram presos sete acusados, mas para demorar assim só eu. Teve
um acusado que fugiu. Vendeu tudo aqui. Se ele voltar, vai preso
porque não foi ouvido. (Informação verbal, 28/04/2014).
A falta de uma gestão compartilhada por parte dos usuários do rio deflagrou um
sério conflito por água, na bacia do rio Salitre, envolvendo camponeses do Baixo Salitre
e dois empresários rurais do Alto Salitre. Na tentativa de impedir que os grandes
empresários retirassem toda a água do rio, os camponeses resolveram interromper a rede
elétrica, como estratégia para bloquear as grandes motobombas e permitir que a água
chegasse às comunidades próximas à foz do rio. Após o fornecimento de energia ter
sido suspenso, os dois empresários rurais dirigiram-se até Campo dos Cavalos para
reestabelecer a rede elétrica, encontrando, ao chegar à referida comunidade, os
camponeses aglomerados ao redor do poste de energia, para impedir qualquer ação com
vistas a retomar o fornecimento de energia. O confronto armado teve como
desdobramento a morte dos dois empresários rurais na comunidade de Campo dos
Cavalos, no dia 07 de fevereiro de 1984. Os empresários mortos no conflito com os
camponeses salitreiros eram da cidade de Juazeiro (supervisor do Banco do Brasil) e da
cidade de Cabrobó (comerciante de frutas e produtor de cebola). Naquela época, o bispo
Dom José Rodrigues, da diocese de Juazeiro, apoiava a luta dos salitreiros, tendo sido
acusado pelos políticos locais de ser o mandante dos crimes. Ainda sobre o surgimento
do conflito por água no vale do Salitre, A. C. dos S. (70 anos), morador da comunidade
de Campo dos Cavalos e acusado pelo assassinato, relatou que:
A energia chegou nos anos 1970. Aí quem tinha motor comprou
bomba elétrica. Aí, quando entrou os anos 80 os agricultores do Alto
Salitre usavam a água toda. De 15 a 20 km do rio São Francisco para
282
cima o rio secava e não chegava aqui. Aí foi quando teve a confusão;
as brigas. O povo derrubava as canelas da rede para poder as bombas
lá em cima não funcionar e a água descer para o povo molhar as
plantas: cebola, melão, tomate. Quem tinha plantação aqui no Baixo
Salitre. Confusão de morte que teve foi por causa de agua. Porque a
água só chegava até a goiabeira, no Alto Salitre. Eles puxavam tudo.
Esse pessoal que morreu, esses agricultores grandes que morreu, um
era supervisor do Banco do Brasil e o outro era comerciante de melão
e produtor de cebola. Ele era de Cabrobó. [...]. A briga de agua aqui é
porque esses dois agricultores grandes, poderosos, plantaram muito
melão lá na Goiabeira, botaram bombas grandes lá. Aí o povo jogava
arame e as canelas caía. Daí dois, três dias a água chegava. Aí o povo
colocava as bombas e molhavam as roças. Até que um dia o pessoal
derrubou as canelas ali na pista. O pessoal se aglomerou no pé do
poste para ninguém ligar as canelas até a agua chegar. O povo estava
com as plantas murchas sem molhar, roupa suja, quem tinha feijão não
tinha água para cozinhar, não tinha caminhão-pipa nem poço
artesiano. A água do riacho era usada para tudo. O povo ficou aí um
dia, dois dias, aí eles vieram para ligar a bomba. Eles vieram para ligar
a energia à força. Tinha cento e tantas pessoas no pé do poste. Aí
deram a testa. Eles [os empresários] estavam fortemente armados e
atiraram muito e o pessoal que estava aí ninguém saiu ferido. O povo
enfrentou eles com pedra e pau. Enquanto eles atiram em alguém,
tinha 20, 30 dos lados jogando pedra e pau neles. Até que eles
esmoreceu, aí dominaram eles, homens e mulheres. Todo mundo
desesperado com fome e com sede. (Informação verbal, 28/04/2014).
Confirmando a historicidade dos conflitos pela água no vale do Salitre, E. L. da
P., moradora da comunidade de Curral Novo, reafirma:
A questão mesmo era a água e o uso exagerado de alguns produtores
principalmente de pessoas que não eram da região que vieram em
busca das terras e do potencial que tem as terras do Salitre para
agricultura.Como alguns agricultores não tinham aquela consciência
de que a água era para todos, e não para quem tivesse um poder
aquisitivo maior, no caso dos produtores que vieram.Isso resultou na
revolta dos pequenos produtores. (Informação verbal, 26/04/2013).
Após as mortes terem ocorrido e o episódio ter repercussão nacional, sendo
noticiado pelo Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão e por jornais da região, o
então prefeito de Juazeiro, Jorge Cury, foi a Brasília buscar junto ao Presidente José
Sarney uma solução para a situação de conflito, estabelecida entre camponeses e
empresários no vale do rio Salitre. Após negociação, a ação emergencial adotada para
tentar conter os conflitos foi a construção de nove barragens galgáveis no leito do rio
Salitre, para fazer o bombeamento da água do rio São Francisco, tendo sido as obras de
construção iniciadas em 1984 e finalizadas em 1985, estando localizadas na região do
Baixo Salitre, mais especificamente no município de Juazeiro. Cabe destacar que desde
283
1982, o Estado, através da CODEVASF e do DNOCS, havia iniciado a construção de
seis barragens no rio Salitre e em seus afluentes (Quadro 19).
Quadro 19 – Barragens localizadas no rio Salitre e seus afluentes
Barragem Localização Ano de construção Responsável
Tamboril Morro do Chapéu 1982 CODEVASF
Caatinga do Moura Jacobina 1982 CODEVASF
Defino Campo Formoso 1982 DNOCS
Taquarandi Mirangaba 1988 CODEVASF
Ourolândia Ourolândia 1989/1993 Prefeitura de
Jacobina Fonte:CBHS, 2013.
Org.: DOURADO, J. A. L.
As barragens construídas no rio Salitre, entre os anos de 1980 e 1990, tinham
como objetivo perenizar o rio para viabilizar a irrigação em todo o seu vale. As
barragens galgáveis construídas no município de Juazeiro tinham o intuito de atenuar os
conflitos gerados pela retirada excessiva de água do rio e abastecer as comunidades
ribeirinhas, ficando, sob responsabilidade da União das Associações do Vale do Salitre
(UAVS), da CODEVASF e da Prefeitura, a manutenção e fiscalização das mesmas.
Através da execução dessa obra, foi possível transportar água do rio São Francisco, a
partir da foz do rio Salitre, para o leito deste rio, num processo de inversão artificial da
oferta de água e de seu curso, passando o mesmo a “correr para cima”, como dizem os
salitreiros. As nove barragens galgáveis estão localizadas nas seguintes comunidades:
Sabiá, Bananeira/Curral Novo, Horto (UNEB/Juazeiro), Campo dos Cavalos, Recanto,
Arame, Alfavaca e Angico. Entre os problemas relacionados à questão da irrigação no
vale do Salitre temos: métodos de irrigação incompatíveis com a disponibilidade hídrica
da bacia (sulco e inundação), tanto no Alto quando no Baixo Salitre (municípios de
Juazeiro, Várzea Nova, Jacobina e Ourolândia), além de elevada demanda hídrica e
escassez de água.
Em 1989, visando a disciplinar a agricultura desenvolvida no vale do rio Salitre
e em resposta aos conflitos ocorridos em 1984, o governo estadual, através da Portaria
077, delimitou a superfície a ser irrigada por família, cuja área máxima ficou restrita a 3
hectares para irrigação por inundação e 6 hectares para irrigação com gotejamento e
microaspersão. Na esfera municipal, foi editada a lei nº. 047/87 pela prefeitura de
284
Juazeiro, que proibiu a instalação de novas bombas e reservatórios, além de delimitar as
áreas irrigadas e de tabelar o uso da água. Atualmente, quem faz a fiscalização para
verificar se as referidas medidas estão sendo respeitadas é a UAVS, tendo esta
enfrentado dificuldades em executar essa função, conforme expôs a presidenta da
UAVS, E. L. da P., moradora da comunidade de Curral Novo:
Como a UAVS gerencia a águae tem um produtor que está plantando
muito, a gente teve que recorrer àPromotoria de Justiça.A UAVS teve
que levar um produtor porque a água da adutora não comporta grandes
áreas para ser irrigada por cada produtor.É estabelecido 3 hectares
para quem usa irrigação por inundação e 6 hectares para irrigação por
microaspersão e gotejamento. Nós temos um produtor que é do
movimento com a gente, que começou desde 2003 e hoje eu estou
ameaçada de morte. A gente não tinha espalhado muito essa coisa.
Mas a imprensa ainda não tem conhecimento porque nós temos os
funcionários da UAVS que usam o GPS para medir a área,
identificandoque ele tinha quase 40 hectares plantados. 40 hectares
não é para agricultura familiar; nenhum agricultor familiar tem 70
funcionários. Esse produtor tem uma área muito grande, inclusive essa
área ocupada por ele é da União, do Projeto Salitre. Ele ocupou essa
área e está causando esse conflito. [...]. Como a UAVS leva à frente as
questões que saem nas assembleias, eu como presidente fui
representar a UAVS na Promotoria. Acabou sobrando para mim.
Como a gente tem que acompanhar de perto o que ficou definido no
acordo com o promotor, o produtor e a UAVS, eu ficaria também
fazendo a fiscalização dessa área porque num prazo de 120 dias ele
tem que ficar com seis hectares para ele e 6 ha para o filho. Lá na
Promotoria ele aceitou muito bem, mas depois ele mandou um recado
dizendo que se eu fosse na propriedade dele ele mim mataria dentro
do carro da associação. A semana passada ele mandou outro aviso. Eu
ainda não voltei na Promotoria porque eu perguntei à pessoa que veio
trazer o recado dele se ela servia de testemunha. Ele disse: não, porque
eu tenho medo dele. Agora eu, não tenho medo dele. Eu sei que eu
tenho minha família. Agora, a questão de ele ser um grande produtor
hoje e ser da UAVS, de ter ficado rico, o dinheiro dele não intimida
não. Eu vou na propriedade dele. Agora, só que antes, eu vou à
promotoria conversar com o promotor [...]. (Informação verbal,
26/04/2013).
Outra entidade que vem atuando no sentido de contribuir com as discussões
sobre a gestão da água na bacia do rio Salitre é o Comitê de Bacia Hidrográfica do
Salitre (CBHS), criado em 2001. As reuniões têm permitido apresentar e discutir os
principais problemas da bacia hidrográfica do rio Salitre, enfatizando a urgência em
implementar ações de revitalização do rio e controle sobre o uso da água para irrigação.
Passados 30 anos desde as mortes ocorridas na comunidade de Campo dos
Cavalos, ainda hoje o vale do Salitre continua sendo um território em disputa, entre
campesinato e o agrohidronegócio, pelo controle da terra e da água, sem que o Estado
285
adote medidas capazes de resolver efetivamente a questão do acesso à água para os
salitreiros. Acusados e inocentados, os camponeses envolvidos diretamente nas mortes
ocorridas em 1984, hoje, já idosos, ainda têm registrados na memória os momentos de
angústia e sofrimento por causa do conflito com os empresários e toda a pressão, por
parte da elite local (política e econômica), para condená-los. Conflitos e mortes
envolvendo a questão hídrica mancharam a história e a imagem do vale do Salitre e o
incentivo à expansão do agrohidronegócio na região, por parte do Estado, criou, e
continua criando, as condições favoráveis para a deflagração das disputas territoriais.
Em 2003, aproximadamente 100 famílias do Baixo Salitre decidiram ocupar a fazenda
Santa Maria, de propriedade da CODEVASF, como forma de reivindicar lotes no
Projeto Salitre. Após as negociações entre a entidade proprietária das terras e os
acampados, ficou acordado o assentamento dessas famílias na área do Projeto Salitre.
Após a sua desocupação, a fazenda Santa Maria foi vendida pela CODEVASF. Visando
a atender parte das reivindicações feitas pelas comunidades do Baixo e Médio Salitre, a
CODEVASF executou o projeto de perenização do rio Salitre a partir de seu médio
curso,por meio da construção de duas adutoras145que levam água do São Francisco. Em
julho de 2005, foi inaugurada a adutora que leva água até a comunidade de Capim de
Raiz:com capacidade para irrigar uma área de 180 hectares, atende a aproximadamente
200 agricultores. Em decorrência do não cumprimento das promessas, as famílias
envolvidas, agora denominadas “Movimento dos Sem-Água”, voltaram a ocupar, em
2008, uma área do Projeto Salitre, passando a produzir lavouras de ciclos curtos (melão,
tomate, cebola e milho principalmente), forçando a entidade responsável pelo
empreendimento a realizar uma audiência pública com os acampados. Foi nesse
momento que ocorreram divergências entre os salitreiros e as lideranças do MST. Estes
exigiram a saída dos salitreiros da área ocupada, alegando que esta já havia sido
escolhida por eles para montarem o acampamento, fato que causou distanciamento entre
os movimentos.
Insatisfeitos com os desdobramentos da reunião com a CODEVASF, os
salitreiros ocuparam por 5 dias, em 2009, o canteiro de obras do projeto de irrigação.
Devido a essa ocupação, as lideranças do movimento foram convocadas a Brasília para
uma reunião com a Casa Civil da Presidência da República, que autorizou a construção
145 Os custos com energia elétrica para o bombeamento da água é pago pelos agricultores mediante a
cobrança de uma taxa de R$40 feita pela UAVS, através de contrato estabelecido entre essa entidade e a
CODEVASF. Após a ocupação do MST no Projeto Salitre, a UAVS suspendeu o pagamento da taxa,
alegando que o MST também faz uso de água do Projeto Salitre e não paga nenhuma taxa.
286
do Projeto Lindu. Visando a atender as reivindicações feitas pelas comunidades do
Baixo e Médio Salitre, a CODEVASF executou o projeto de perenização do rio Salitre a
partir de seu médio curso,por meio da construção de duas adutoras que levam água do
São Francisco.
Em setembro de 2010, mais especificamente no dia 21 de agosto desse ano,
ocorreu um novo conflito entre os salitreiros e os grandes empresários agrícolas: com a
derrubada de 16 postes,os salitreiros pretendiaminterromper o fornecimento de energia
elétrica, para forçar os grandes irrigantes do Médio e Alto Salitre a suspenderem a
captação de água, de modo que aqueles pudessem irrigar suas lavouras. Esse fato foi
amplamente noticiado pela rede de televisão local – TV São Francisco – afiliada da
Rede Globo de Televisão e o Jornal A Tarde, tendo este último veiculado uma matéria
com o título “Vândalos derrubam postes e 16 povoados de Juazeiro ficam sem energia”.
A maneira como os meios de comunicação de massa – o aparato midiático a serviço da
burguesia - trataram o conflito revela as intenções e os pactos político-ideológicos da
mídia no país, historicamente firmada em favor da manutenção do status quo, visto que
busca criminalizar a ação dos salitreiros, colocando-os como “vândalos”, quando, na
verdade, estão reivindicando a solução de um problema que perdura há décadas. Para
Mendonça (2004, p. 98), ao
falsear a realidade, não se vislumbram as alternativas exequíveis,
forçando a opinião pública, informada equivocadamente, a se
posicionar, única e exclusivamente, na defesa do direito à propriedade.
A mídia televisiva e escrita exponencia e espetaculariza o conflito
agrário como ameaça à democracia. Ao procederem assim, estão
apenas dando continuidade ao padrão de tratamento a questão agrária
que prevaleceu nos últimos anos, marcado pela opção de criminalizar
os movimentos sociais, [...].
No ano de 2013 foi construída uma segunda adutora,com capacidade para irrigar
278 hectares, levando água até a comunidade de Junco, atendendo a 100 agricultores.
As adutoras não contemplam o abastecimento humano, tendo como propósito único
fornecer água para a agricultura e dessedentação animal. Embora tenha amenizado a
falta de água nas comunidades ribeirinhas, a conflitualidade ainda persiste, porque
muitos agricultores continuam retirando grande volume de água. A estratégia adotada
pelos camponeses revela a necessidade de o Estado (em suas diferentes instâncias)
adotar medidas conjuntas para solucionar a questão agrária e hídrica no vale do rio
Salitre. Medidas paliativas, como a construção dessas adutoras, têm contribuído para a
expansão da área irrigada e, consequentemente, para agravar as disputas pela água no
287
vale do rio Salitre. Ao problematizar os conflitos pelo acesso à água entre salitreiros e
empresários, E. L. da P., moradora da comunidade de Curral Novo, declara:
Esse conflito vem até hoje. Houveram aquelas mortes, mas, na
verdade, ele existe até hoje. O conflitohoje segue a mesma linha, mas
só que em outros locais. Antes, era aqui emCurral Novo, Campo do
Cavalos.Como o rio foi secando de baixo para cima, a problemática
continua na parte de cima. Só que agora, esse ano, não teve mais
porque teve muitas reuniões: CODEVASF, Igreja, UAVS. Hoje não
tem mais essa coisa de briga direta, do corpo a corpo, graças a Deus
não teve mais. Agora, o conflito continua. [...]. (Informação verbal,
26/04/2013).
Como repensar o modelo de desenvolvimento adotado para o Semiárido
nordestino não faz parte da proposta do Estado, o que vem ocorrendo é uma retomada
vertiginosa dos projetos de irrigação, com promessas alvissareiras para os sertanejos,
utilizadas como moeda de troca para amainar conflitos ou, até mesmo, evitar o seu
surgimento. Quando iniciou a discussão sobre o Projeto Salitre, havia a expectativa, por
parte dos salitreiros, de terem acesso à terra e à água, o que acabou não acontecendo
porque o projeto não beneficiou as comunidades desta região, cuja inclusão no
perímetro irrigado tem ocorrido de forma marginal, como mão de obra barata, na
fruticultura irrigada, na maioria das vezes precarizada. A expansão dos projetos de
irrigação no Semiárido nordestino tem fomentado a subcontratação, a terceirização, a
desregulamentação, bem como a intensificação da superexploração da força de trabalho.
Como preconiza a Política Nacional de Irrigação, a seleção dos irrigantes para o
Projeto Salitre foi regulamentada pelo edital nº. 18/2009146, sendo os salitreiros
“democraticamente” excluídos, por não atenderem às exigências do projeto. Em 2003,
quando perceberam que o Projeto Salitre era destinado ao agronegócio, as comunidades
passaram a reivindicar, junto à CODEVASF, a criação de um projeto que atendesse, de
maneira específica, os camponeses do Baixo Salitre, pois, de acordo com a presidente
da UAVS naquela época147, moradora da comunidade de Curral Novo, “o que ficou foi
a revolta. De 255 lotes, tem 8 salitreiros. É terrível porque esse povo achava que estaria
inserido no Projeto Salitre. No entanto, hoje tem muitos produtores que trabalham de
boias-frias no projeto”. (Informação verbal, 26/04/2013). O acordo firmado entre a
CODEVASF e as comunidades, em 2010, previa a aquisição de 2.000 hectares de terra,
num total de 1.100 hectares irrigados, com capacidade para assentar aproximadamente
146 Divulgado no Diário Oficial, nº. 59, de 27 de março de 2009. 147 A UAVS atualmente tem uma nova diretoria.
288
220 famílias salitreiras. Todavia, em reunião realizada no auditório da 6ª
Superintendência da CODEVASF/Juazeiro, no dia 18 de julho de 2014, com membros
do STR de Juazeiro e representantes da UAVS, o presidente dessa entidade federal,
Elmo Vaz, afirmou que o Projeto Lindu era inviável, porque os recursos financeiros
disponíveis contemplam apenas a compra de terras. Assim, mais uma vez, os
camponeses do Baixo Salitre são vítimas do Estado, cujas ações privilegiam o
agrohidronegócio em detrimento dos sujeitos que historicamente ocuparam essa região,
viabilizando a “aliança capital-Estado-trabalho”, como enfatiza Sousa (2010, p. 9).
Sustentada no discurso do “novo” e do “moderno”, a expansão da agricultura
irrigada no Semiárido baiano continua em ascensão, como se pode comprovar através
das discussões envolvendo a implantação do Canal Sertão Baiano148 (também
conhecido como o Canal do Eixo Sul da transposição), cujo propósito é transpor água
do rio São Francisco para 44 municípios ao norte do estado, percorrendo um total de
300 km do Semiárido, com cerca de 20m³/s de vazão. A proposta é que essa obra seja
inserida no Plano Nacional de Segurança Hídrica (PNSH), devendo ser construída em
parceria com o Ministério do Interior, a ANA e os governos estaduais. O objetivo do
PNSH é definir as principais intervenções e estratégias a serem adotadas, visando a
garantir recursos hídricos para o abastecimento humano e para atividades produtivas.
Baseado na ideia e no mito do progresso e da modernidade, o Estado tece a teia
de sustentação para a territorialização e para a reprodução do grande capital no
Semiárido nordestino, oferecendo como alternativa aos camponeses o assalariamento
nos “oásis” da fruticultura irrigada, cuja sustentação coloca em risco a existência de
outras lógicas de reprodução camponesa. Nesse aspecto, concordamos com Conceição
(2007, p. 79) quando a autora diz que o
discurso da modernização do campo, ao tempo que reforça o processo
de monopolização e da territorialização do capital, acentua a expulsão
dos camponeses da unidade de produção familiar, à medida que
permite o processo de subsunção do trabalho ao capital. Desprovidos
de possibilidades da terra como condição de vida, o Estado, pela
coação, impõe um discurso velado da submissão ao capital à medida
que favorece a crescente mobilidade do trabalho.
148 O projeto do Canal do Sertão Baiano, com valor total estimado em R$6 bilhões, visa a
atender, segundo seus defensores, a dessedentação humana e animal, o fortalecimento da
agricultura e o incentivo à pecuária. Todavia, assim como os Eixos Norte e Leste da
transposição, esse projeto é mais uma ação do Estado com vistas a garantir a segurança hídrica
para a expansão do agrohidronegócio na região semiárida nordestina.
289
Ainda nessa perspectiva, estamos de acordo com Gonçalves (1997, p. 176)
quando este reforça que não restam
dúvidas que os investimentos feitos na região do Submédio São
Francisco, ao longo desses 40 anos, alteraram o quadro econômico e
social, mas as manifestações do progresso que aqui mais se destacam
são exatamente aquelas que denunciam o seu lado podre, tendo no
pico a miséria que é o terreno que fertiliza todo tipo de desgraça. Isso
porque se prendeu um tipo de desenvolvimento onde o povo entrou
apenas como combustível, como matéria descartável, porque foi
expropriado de seus meios materiais e culturais de existência, porque
foi vislumbrado apenas para se posicionar no degrau mais baixo da
submissão. A estratégia do desenvolvimento foi vislumbrada através
de grandes empreendimentos agrícolas, industriais ou comerciais,
onde nosso povo entrou apenas como mão-de-obra desqualificada.
Ante o exposto, é possível associar as disputas envolvendo terra e água na bacia
do rio Salitre ao processo de “modernização” da agricultura, ocorrido nessa região a
partir dos anos de 1970, por meio de incentivos do Estado e pela ação de investimentos
privados, fato que possibilitou intensificar a captação de água do rio Salitre e ampliar a
área plantada. Desse modo, estavam, pois, criadas as condições para a eclosão de
intensos conflitos entre os salitreiros e os grandes empresários que passaram a ocupar as
terras do vale do rio Salitre. Essa situação conflituosa arrasta-se até os dias atuais,
gerando instabilidade entre as comunidades salitreiras e mobilidade do trabalho.
5.2 Projeto Salitre, agrohidronegócio e disputas territoriais e de classe no
Submédio São Francisco (BA)
O Projeto Salitre (Mapa 14)localiza-se à margem direita do rio São Francisco, no
município de Juazeiro e acesso a ele é feito pela BA-210, que liga Juazeiro a
Sobradinho, a 20 km da sede municipal. A discussão sobre a implantação do Projeto
Salitre surgiu como uma resposta aos conflitos pela água ocorridos na década de 1980.
Tabela 15 - Características Básicas do Projeto Salitre
Área irrigável (hectares) 31.305
Fonte hídrica Rio São Francisco
Vazão requerida (m³/s) 42
Vazão atual (m³/s) 6
Potencia de energia elétrica requerida
(KVA)
142.540,00
Pequenos Produtores 944 lotes (20% da área total do perímetro) Empresas 485 lotes (80% da área total do perímetro)
290
Principais culturais Abacaxi, abacate, manga, melão, acerola,
banana, limão, milho, tomate, uva,
algodão e cana-de-açúcar.
Sistemas de irrigação preconizados Microaspersão e gotejamento
População beneficiada 131.481
Número de empregos diretos 31.305
Número de empregos indiretos 626.116
Fonte: CODEVASF, 2013.
Organização: DOURADO, J. A. L.
O 1º Seminário sobre o Projeto Salitre ocorreu no ano de 1989, numa espécie de
audiência pública. Implantado, em 1996, com investimentos federais, estaduais e
municipais, foi considerado inicialmente, pelos próprios salitreiros, como uma
alternativa para sanar os problemas relacionados ao acesso à água no Baixo Salitre.
Todavia, ao perceberem que a obra atenderia ao agrohidronegócio, as comunidades do
Baixo Salitre começaram a reivindicar terra no perímetro irrigado, ocorrendo, em 2003,
a ocupação da Fazenda Santa Maria, de propriedade da CODEVASF, por 100 famílias.
Devido à mobilização, ficou acertado, entre a 6ª Superintendência Regional da
CODEVASF e as famílias salitreiras, que 100 lotes da Etapa I seriam destinados para os
camponeses acampados. Tal promessa, porém, não foi cumprida pela presidente do
órgão, por alegar que esse acordo não tinha respaldo legal. Mesmo recorrendo a Brasília
e buscando apoio junto a políticos regionais (deputados estaduais e federais), o acordo
não foi cumprido, tendo, como compensação, a proposta de implantação do Projeto
Lindu149, até o presente momento sem apresentar avanços. Segundo E. L. da P., o
projeto Lindu acaba sendo mais um projeto de reparação. Nós
conseguimos esse projeto em Brasília numa negociação, onde a gente
acampou no canteiro de obras do Projeto Salitre 15 dias antes de ser
lançado o edital. Quando a gente foi ler o edital e viu que os
concorrentes tinham que ter prática na agricultura, até aí a gente achou
bom, que tinha que ter uma contrapartida de 25% do custo do lote,
isso a gente já não tinha e exigia um grau de escolaridade. A gente
sabe que é histórico o analfabetismo no Nordeste e, principalmente,
em Juazeiro. Isso gerou uma revolta muito grande, a gente se
mobilizou. A gente foi para Brasília e conseguiu uma área para
implantar um projeto com 220 lotes na Baixa do Umbuzeiro e que irá
beneficiar apenas os salitreiros escolhidos pelas UAVS e que
participam dos movimentos. Houve depois uma discordância do povo
que dizia: ah, se é para o salitreiro tem que ser para todo mundo. Mas
a gente tem priorizado as pessoas que participam, que correm atrás,
149 Lindu era uma das lideranças camponesas que atuava no movimento contra a implantação do Projeto
Salitre nos moldes empresariais. Morador do povoado do Horto, faleceu acometido por um acidente
vascular cerebral sem ter concretizado o sonho de ver os salitreiros ocupando o Projeto Salitre.
291
que buscam, mesmo porque aqueles que não buscam não é por falta de
convite. (Informação verbal, 26/04/2013).
Ainda, como forma de organização social e fortalecimento das lutas, foi criada
em 2003 a UAVS, integrando atualmente 29 comunidades e 302 produtores. Em 2009
foi lançado pelo Ministério da Integração Nacional, via CODEVASF, o edital de
seleção150para a ocupação de 255 lotes para irrigantes familiares bem como o aviso de
licitação para a venda de áreas irrigáveis destinadas à implantação de empreendimentos
agrícolas, agropecuários e agroindustriais no perímetro151.
O Projeto Salitre (Mapa 14) faz parte do PAC, recebendo investimentos da
ordem de R$251,5 milhões, sob o formato das PPP. A previsão inicial era de que as
obras do perímetro irrigado seriam concluídas em 2015, porém encontram-se em atraso.
Quando concluído, serão 944 lotes para irrigantes familiares e 485 lotes empresariais,
integrados ao circuito produtivo da cadeia frutícola do polo Juazeiro/Petrolina, região
com condições favoráveis para o escoamento da produção.
A Etapa I do Perímetro Irrigado Salitre foi inaugurada no dia 05 de março de
2010, pelo então presidente Luís Inácio Lula da Silva, sendo destinados 255 lotes com
6,6 hectares para pequenos irrigantes e 66 lotes para médias empresas. Ressalte-se que
apenas 08 agricultores das comunidades do vale do Salitre foram contemplados com
lotes no perímetro irrigado do Salitre, fato que acabou gerando grande insatisfação entre
as comunidades, pois a implantação desse empreendimento na região foi realizada com
o propósito de sanar os conflitos pelo acesso à água nas comunidades localizadas na
parte baixa do Salitre.
150 Os critérios estabelecidos pelo edital para seleção dos irrigantes foram os seguintes: a) Experiência em
agricultura irrigada e sequeiro (25 pontos); b) Condições econômicas (10 pontos; c) Grau de instrução (15
pontos). Em caso de empate, seriam considerados os seguintes critérios de desempate: a) Comprovada
experiência em agricultura irrigada; b) Comprovada condição econômica; c) Comprovada escolaridade
(grau de instrução); d) Comprovada experiência em agricultura de sequeiro; e) Casado. 151 Edital Nº19/2009.
292
292
Percebe-se que os impactos positivos do Projeto Salitre são superdimensionados
por parte da CODEVASF, ao passo que os problemas decorrentes de sua implantação
sequer são mencionados, pois há um esforço no sentido de “limpar” todos os indícios
negativos que possam colocar em xeque a viabilidade e envergadura do referido
empreendimento, no tocante à promoção do desenvolvimento regional. De fato, poucas
foram as famílias beneficiadas diretamente, até o momento, com a implantação do
Projeto Salitre, pois o que vem acontecendo é a incorporação paulatina e instável dos
moradores das comunidades localizadas nas adjacências do perímetro irrigado, nas
lavouras irrigadas como diaristas ou arrendatários.
Desde os anos de 1960, os perímetros irrigados no Nordeste semiárido
assumiram o papel de expandir a fronteira agrícola por regiões, até então, pouco
atrativas para o grande capital, com destaque para a produção destinada ao mercado
externo. Se pensarmos a perspectiva dos perímetros irrigados no Semiárido baiano e a
conjugação de seus efeitos, conclui-se que estes cumprem um importante papel no
contexto da reestruturação produtiva do território nordestino, ao passo que trazem à tona
o hibridismo característico das políticas públicas de “modernização do campo”
implementadas pelo Estado na região semiárida nordestina.
Há uma constante inversão de perspectiva no cerne dos perímetros irrigados
porque a justificativa para a sua implantação é promover o desenvolvimento das
comunidades/famílias localizadas na área dos empreendimentos, porém, quando
instalada a infraestrutura hídrica, são adotadas medidas que privilegiam a agricultura
empresarial e promovem uma inclusão marginal dos camponeses no processo produtivo,
via mão de obra precarizada. Tem-se, nesse universo, um duplo processo de
desterritorialização porque os camponeses perdem o controle sobre os seus territórios e
ficam sujeitos a lógicas distintas que levam, muitas vezes, à desestruturação de seus
modos de vida.
Por não atender às demandas das famílias salitreiras, o Projeto Salitre
transformou-se num conflituoso campo de disputas, entre o campesinato, o Estado e o
agrohidronegócio, no Submédio São Francisco, sendo visto, por estes sujeitos, como um
território hídrico a ser desapropriado e reapropriado pelos salitreiros, revelando assim o
“conteúdo territorial do tensionamento vivo da luta de classes” (THOMAZ JUNIOR,
2011a, p. 17). Nessa correlação de forças desiguais envolvendo a luta pela terra e pela
água, torna-se imperioso pensar sobre os usos da terra e do território entre os sujeitos
293
sociais do campesinato e o capital, de modo a colocar em xeque a matriz paradigmática
desenvolvimentista uniformizada adotada para o campo, por concebê-la como um risco
para as comunidades camponesas, por causar esfacelamento da identidade individual e
coletiva, além de subjugá-las aos ditames do agrohidronegócio.
Cabe destacar que há um hibridismo dos sujeitos que se colocam no front de
batalha contra a entrega do Projeto Salitre para o grande capital.A materialidade do
conflito revela a complexidade da luta pela terra e pela água no vale do Salitre, em
decorrência do jogo de alianças políticas, do direcionamento e propósitos do Estado
bem como da conformação dos sujeitos que protagonizam os embates contra o sistema
sociometabólico do capital.
As pesquisas de campo permitiram identificar diferentes sujeitos e
territorialidades nas ações de resistência, cujas dimensões espaciais e territoriais estão
para além das delimitações geográficas da própria bacia do Salitre. Ao visitar o
acampamento Abril Vermelho no Projeto Salitre, verificamos que a luta pela terra e pela
água nessa regiãonão é produto apenas dos salitreiros, o que torna ainda mais complexa
a compreensão da dimensão reivindicatória que a concepção “Salitre para os salitreiros”
traz em seu cerne. As proliferações rizomáticas intrínsecas às disputas territoriais
desvelam novos vínculos e significados – tanto no que se refere ao espaço quanto ao
território – decorrentes da expansão do agrohidronegócio no Semiárido baiano.
Do ponto de vista da ciência geográfica, o cenário das disputas territoriais e de
classes no Semiárido baiano requer uma interpretação dos sujeitos sociais
historicamente desterreados e forçados a incorporar o discurso dos vencedores, (leia-se
do Estado e do capital), tendo suas práticas, saberes e modos de vida depreciados,
porque obstaculizam a dinâmica do capital, gerando anomalias ao seu processo
expansionista. Importa ressaltar que esses sujeitos se realizam pelo trabalho, aqui
entendido como condição ontológica do ser social e, por causa disso, o acesso à terra e à
água ganha uma dimensão profunda porque representa a materialidade de sua
(Re)Existência152, entendida, nesse contexto, como um emaranhado complexo de ações
que permite aos sujeitos resistir aos processos desterritorializantes e, por outro lado,
manter os seus costumes, suas formas de “ser” e “estar” no mundo. Assim, o par
dialético resistência-existência, no cerne da luta pela terra e pela água, representa um
152 Termo tomado de empréstimo de Mendonça (2004).
294
dos aspectos da conflitualidade materializada no território, em que construção e
desconstrução revelam quais interesses, sujeitos e racionalidades são hegemônicos.
5.3 A chegada do “estranho”: a conflitualidade entre o MST e os salitreiros
Considerando o contexto atual, a luta pela terra e pela água coloca-se como
travagem para a expansão e reprodução do capital no campo porque envolve questões
político-ideológicas entre sujeitos antagônicos. Isso, por si só, já tornaria a questão
complexa porque entra em cena a luta de classes como possibilidade emancipatória.
Nesse universo, a modernização conservadora da agricultura produz novas relações
sociais, quer de aproximação, quer marcadas pela conflitualidade, expressando a
inexistência de discursos únicos e formashomogêneas de pensar. É na multiplicidade de
pensamentos, na diversidade de discursos e concepções materializados no território que
buscamos analisar e interpretar a conflituosa relação estabelecida entre os camponeses
salitreiros e o MST, no Projeto Salitre, pois, através desta, é possível compreender como
a fragmentação, no interior da classe trabalhadora, se transforma num obstáculo à busca
pela emancipação social.
Quando o MST chegou à região do Salitre, as comunidades já estavam
organizadas e haviam começado a reivindicar junto à CODEVASF o “Projeto Salitre
para os salitreiros”. Nesse caso específico, a chegada do MST na região sofreu
resistência tanto por parte do Estado quanto pelas comunidades salitreiras que passaram
a ver, no movimento, um adversário que podia obstaculizar o atendimento das
reivindicações. Iniciou-se, assim, dois movimentos reivindicatórios: um de luta pela
terra, encampado pelo MST e outro, o “Movimento dos Sem-Água”, representado pelos
salitreiros, evidenciando o estranhamento no interior da classe trabalhadora, reforçado
pelas identidades territoriais. A gênese do interesse do MST pelo Projeto Salitre pode
ser verificada através do discurso do articulador regional do movimento, P. C. C. de S.:
A ideia de ocupar o Projeto Salitre surgiu desde quando surgiu a
discussão desse projeto. A CODEVASF, junto com o governo federal,
vem implementando esse projeto há muito tempo. Mas intensificou a
partir de 2003 com a vitória de Lula. A promessa era que o Projeto
Salitre teria 20% da área para empresários e 80% para pequenos
produtores e salitreiros. O Projeto Salitre era a esperança para todo o
povo – salitreiros e ribeirinhos – que achava que o governo federal ia
implementar um projeto que ia levar água para todo mundo e, como
essa região é típica na produção de frutas, todo mundo pensou que ia
295
começar a produzir frutas e desenvolver a produção na região. Só que
logo bateu a decepção quando saíram os primeiros lotes e nenhum
pequeno foi contemplado. Os critérios usados pela empresa só
contemplavam grandes empresários aqui do comércio, os funcionários
públicos e grandes empresas, como a Agrovale, do setor
sucroalcooleiro. Aí começou o conflito. (Informação verbal,
07/05/2013).
Mesmo com a participação de algumas famílias salitreiras na ocupação feita pelo
MST ao Projeto Salitre em 2005, percebe-se que a inexistência de um “pacto agrário”
entre esses sujeitos provocou uma cisão na luta contra o Estado e o capital, de modo que
enfraqueceu significativamente a potencialidade dos movimentos contestatórios. Ficou
evidente, a partir dos discursos da presidenta da UAVS e da liderança regional do MST
em Juazeiro, que nenhuma das organizações lutou contra a implantação do Projeto
Salitre, visto que esse representava, ainda em sua fase embrionária, a possibilidade dos
camponeses terem, a um só tempo, no Semiárido, o acesso à terra e à água, sem
necessariamente estarem sob o jugo dos latifundiários. Havia, de certo modo,
divergências no cerne das lutas travadas no Projeto Salitre, porque, para o MST, “quem
tem terra tem poder153”, numa clara referência a terra enquanto território, enquanto, para
o “Movimento dos Sem-Água”, formado pelos salitreiros, o acesso à água era a
prioridade. Embora compreendamos que terra e água são indissociáveis para reprodução
do campesinato caatingueiro, construíram-se, inicialmente, distintas bandeiras de luta
entre os sujeitos participantes do processo, causando distanciamento entre si. Terra e
água foram utilizadas de modo dissociado, talvez pela própria trajetória de vida dos
sujeitos. Para os salitreiros, a questão hídrica apresenta-se como o elemento aglutinador,
o escopo da luta, ao passo que, para os integrantes do MST, a questão agrária é a
centralidade dos embates, o polo irradiador do movimento e da organização camponesa
no enfrentamento ao latifúndio e ao agrohidronegócio. Em função dessas
particularidades, defendemos que terra e água são dimensões da questão agrária,
portanto, não devem ser tratadas de maneira dissociada, como destaca Porto-Gonçalves
et al. (2014, p. 157-8):
A questão da água está intimamente ligada à questão fundiária e, por
aí, à questão (da reforma) agrária, pelo fato de não se plantar sem
água. Em termos agrários e rurais, não se democratiza a água sem
democratizara terra! Registre-se que cerca de 70% do consumo global
153 Camponesa do acampamento Abril Vermelho, 02/05/2013.
296
de água não se dá no mundo urbano e tampouco na prática industrial,
mas sim na agricultura, número esse que deriva do uso intensivo da
água pelo modelo técnico-produtivo do agronegócio! Enfim, as
manifestações em torno da água sinalizam para as profundas
implicações entre o mundo rural e o mundo urbano, para a relação
sociedade-natureza. Isso se manifesta claramente seja no caso das
barragens tomando/alagando terras indígenas e de ribeirinhos, seja nos
casos em que há poluição das águas pelo avanço das monoculturas
empresariais que impedem camponeses/ribeirinhos e indígenas de
desenvolverem suas práticas agrícolas, de caça e coleta e, até mesmo,
sobreviverem.
Nesse diapasão, pensamos que a valorização do território e as complexas
relações nele estabelecidas podem ser aspectos importantes a serem considerados na
análise da luta pela terra e pela água no Projeto Salitre, porque, até o presente momento,
não ocorreu uma unificação das reivindicações, favorecendo um maior controle social
por parte do Estado e do capital. No acampamento Abril Vermelho, os salitreiros são
vistos como “estranhos” porque não se inserem nas atividades coletivas, pois, mesmo
tendo uma área para cultivo, todo o trabalho é feito individualmente;já, entre os
acampados do MST, a ajuda mútua,o envolvimento de todos com as tarefas cotidianas é
uma das premissas do acampamento. Assim, o acampamento para o salitreiro é um
espaço pouco representativo do ponto de vista do enfrentamento, sem conteúdo
simbólico e político, ao passo que, para os integrantes do MST,é um território
conquistado, representando poder frente ao agrohidronegócio e ao Estado, pois, como
destaca Feliciano (2006, p. 108) “[...] o sentido da ocupação como ação contestadora
também se dá na esfera política e simbólica”. O distanciamento entre os salitreiros e o
MST evidencia que a luta pela terra pode envolver diferentes perspectivas e vieses
ideológicos: para o salitreiro, trata-se de uma questão de pertença e de identidade
territorial, enquanto, para os integrantes do MST, as disputas territoriais estão
fundamentadas no embate político-ideológico de enfrentamento ao
agrohidronegócio.Ao analisar as relações entre os diferentes sujeitos acampados,
verificamos que esse território é produzido a partir de distintas perspectivas e “ganha
múltiplos sentidos”, conforme menciona Feliciano (2006). Ao se debruçar sobre o
processo de formação e territorialização do MST no Brasil, Fernandes (1996, p. 42)
define os acampamentos como:
[...] espaços e tempos de transição na luta pela terra. São, por
conseguinte, realidades em transformação. São uma forma de
materialização dos sem-terra e trazem em si os principais elementos
organizacionais do movimento. Predominantemente, são resultados de
ocupações.
297
É fato que a luta pela terra e pela água no Semiárido engloba uma ampla gama
de interesses, de sujeitos e de conteúdos políticos. Nesse sentido, concordamos com
Germani (2010, p. 281-2) quando a autora destaca que se pode
fazer uma distinção da luta pela terra – empreendida pelos
trabalhadores rurais sem terra – com a luta na terra empreendida pelos
povos e comunidades tradicionais, mas, não obstante suas
especificidades, estas têm um denominador comum que é a questão
agrária, entendida, também, como uma questão territorial.
As conquistas alcançadas pelos movimentos sociais e organizações comunitárias
no Submédio São Francisco junto à CODEVASF ainda são, do ponto de vista material,
pouco representativas porque sua concretização coloca-se num horizonte distante,
enquanto o avanço do capital sobre a área do perímetro irrigado faz-se de forma rápida,
deixando transparecer a sua hegemonia e superioridade. Embora a liderança do MST em
Juazeiro (Regional Norte) tenha mencionado que a maioria das famílias do
acampamento Abril Vermelho sejam salitreiras, o que podemos constatar, através da
exposição da presidenta da UAVS e das visitas ao acampamento, é que a fragmentação
perdura sem que haja lampejos de uma possível unificação no futuro. O Projeto Lindu e
o Abril Vermelho são indicadores dessa cisão, evidenciando as disputas territoriais no
cerne da luta pela terra e pela água, mediante a separação dos espaços e dos sujeitos que
fazem o enfrentamento ao Estado e ao grande capital. Mesmo verificando a presença de
alguns salitreiros junto aos acampados, sua relação é diferenciada e seu envolvimento
com o MST é superficial, visto que é sob o barraco de lona – no frio ou no calor - que a
coesão se materializa.
Por outro lado, é necessário reafirmar a importância das diferentes formas de
resistência ao capital, pois explicitam a heterogeneidade de sujeitos envolvidos na luta
pela terra e pela água no Semiárido baiano. Embora as sociabilidades, as memórias da
terra, as identidades territoriais tenham em comum a concepção da terra, não como
mercadoria, mas como território de vida mediado pelo trabalho, as possibilidades
emancipatórias podem apresentar distintas perspectivas, sem, contudo, descaracterizá-la
ou torná-la ilegítima.
5.4 Acampamento Abril Vermelho: expressões polissêmicas da luta pela terra e pela
água no vale do rio Salitre
298
É imperioso buscar novos horizontes para o modelo de desenvolvimento
pensado para o Semiárido nordestino – aqui, especificamente, a sua porção no estado da
Bahia –, visto que os postulados que referenciam a implantação dos projetos de
irrigação pautados na perspectiva empresarial não consideram as demandas e
particularidades locais e, ainda,transformam os territórios da vida em palco de riscos,
incertezas e vulnerabilidades. Esse modelo de desenvolvimento e suas expressões no
Semiárido baiano têm gerado uma fragmentação dos sujeitos e das realidades, sendo
estes concebidos a partir de uma visão desintegradora, o que impede a inteligibilidade
dos problemas que perpassam as uniformidades e a linearidade presentes na ideia de
modernidade, intrínseca ao agrohidronegócio.
Os diversos projetos desenvolvimentistas implantados no Semiárido baiano
constituem a base para a expulsão de camponeses de seus territórios, comprometendo a
base social e ecológica da Caatinga, visto que esse bioma tem sido,cada vez mais,
suprimido para ceder lugar a perímetros irrigados, à mineração, a barragens e, mais
recentemente, aos parques eólicos, que avançam sobre os lugares, até então, à margem
da sanha desenvolvimentista do capital. O crescimento econômico do país possui
intrínseca relação com a degradação/mercadorização da água – água de trabalho –,
colocando em risco as atividades produtivas tradicionais adaptadas às diferentes
condições socioecológicas da região.
A primeira ocupação feita pelo MST no Projeto Salitre ocorreuem 2007, após o
resultado do edital de seleção dos irrigantes para a Etapa I do perímetro irrigado,
quando os critérios estabelecidos pela CODEVASF inviabilizaram a participaçãodos
salitreiros, pois, entre as exigências, estavam ter experiência em irrigação, possuir
recursos financeiros para investir no lote e ter concluído o ensino médio. Ressalte-se
que os investimentos iniciais necessários para a manutenção de um lote no perímetro
irrigado era da ordem de R$30 mil reais. Para a presidenta da UAVS, trata-se de um
“edital excludente154” porque eliminou todas as possibilidade de os salitreiros
concorrerem aos lotes.
De acordo com a liderança do MST na região de Juazeiro, a primeira ocupação
no Projeto Salitre durou 1 ano, havendo a reintegração de posse da área pela Polícia
Federal. Em 2008, foi realizada nova ocupação com a participação de aproximadamente
1.000 famílias, momento em que a CODEVASF convocou as lideranças do movimento
154 Informação verbal, 26/04/2013.
299
para estabelecerem uma negociaçãoque envolveu a mobilização de várias instâncias do
governo (federal e estadual), para resolver a situação e liberar o empreendimento para as
empresas do setor frutícola e sucroalcooleiro.
A CODEVASFpropôs a criação de um assentamento para os acampados no
município de Sobradinho, a 23 km de Juazeiro, contemplando 600 famílias com lotes de
terra para viabilizar a produção familiar. Assim, implantou-se o assentamento Vale da
Conquista, nos arredores do perímetro urbano de Sobradinho, com a promessa de
atender às reivindicações das famílias acampadas no Salitre – moradia, água tratada e
terra regularizada, entre outras –, permitindo assim a viabilidade técnica para a
permanência dessas famílias na terra conquistada. De acordo com informações
disponibilizadas pela CODEVASF, foram alocados, para a implantação do
assentamento Vale da Conquista, R$13,5 milhões, recurso repassado ao INCRA para a
aquisição das terras (13 mil hectares) e para a regularização fundiária. Como parte do
acordo, foi construída uma adutora de 6400 metros para abastecer o assentamento,
embora tal informação tenha sido refutada pela liderança regional do MST. Segundo
esse líder e informante desta pesquisa, o INCRA disponibilizou água apenas para o
consumo humano. Ressalte-se que não houve nenhuma garantia, por parte da
CODEVASF, em relação aos demais acampados, um total de 400 famílias, segundo a
liderança do MST.
A escolha do local para o assentamento das famílias é um aspecto a ser
analisado, porque evidencia o interesse por parte do Estado em fazer a “limpeza” do
espaço para que o modelo tecnocrático de desenvolvimento adotado para o campo possa
prosperar. Essa decisão da CODEVASF levou em consideração a postura adotadapelo
Estado em ocultar as iniciativas de contestação ao modelo vigente, buscando manter os
camponeses afastados das áreas economicamente valorizadas e tecnicamente
modernizadas, pois a existência de conflitos pela posse da terra e pelo uso da água
podem causar desinteresse e desconfiança por parte dos empresários que buscam
lugares atrativos para realizar seus investimentos.
Os conflitos pela terra e pela água têm ocorrido justamente nos lugares que
receberam grandes investimentos do Estado, tornando-os atrativos para o grande capital,
evidenciando lógicas contraditórias de uso e de apropriação do espaço geográfico. Esses
investimentos,no Semiárido brasileiro, têm favorecido a territorialização do capital
financeiro, que passa a usufruir dos recursos públicos que viabilizam a produção, a
distribuição, a circulação e o consumo dos produtos. Novas territorialidades são criadas
300
na tentativa de eliminar os resquícios de atraso econômico dessa região, por considerá-
la como “espaços desabitados”, o que acaba gerando conflitos. Para Germani (2010, p.
289), o
Estado cumpre um importante papel nesse processo como agente de
produção e valorização do espaço quer através de seus investimentos
diretos, quer através de suas políticas em diferentes áreas, dimensões e
escalas. Uma ação que confirma ou exclui espacialidades e
territorialidades.
Diante dos conflitos, o Estado assume a função de mediador dos interesses de
sujeitos antagônicos, adotando medidas paliativas, com o intuito de provocar a
desmobilização dos movimentos sociais. Para garantir a saída do MST do Projeto
Salitre, a CODEVASF comprometeu-se a realizar uma série de ações, conforme relato
de P. C. C. de S.,pertencente à liderança do MST em Juazeiro:
Nesse acordo que a CODESVAF e o Governo Federal fizeram com os
Sem Terra, previa imediatamente após 60 dias a construção de casas,
regularização da terra e irrigação de 80 hectares para as 600 famílias.
Então as famílias foram lá para Sobradinho. Eles [o Governo Federal]
prometeram compraram 13 mil hectares, mas até hoje, compraram 5
mil apenas. Segundo eles, tem 2 mil ainda sendo incrementado e falta
comprar 6 mil. Dos 5 mil hectares que eles compraram a terra está lá
ainda sem funcionamento. A CODEVASF começou a viabilizar 80
hectares, mas parou no meio, largou lá no ponto de concluir. Depois
de quatro anos o pessoal continua acampado sem casa [...] o pessoal
está há quatro anos morando debaixo de barraquinho de lona. Tem
escola por causa da prefeitura de Sobradinho que tem feito um
trabalho no assentamento, mas não tem colégio. A escola está no
barraquinho, não está legalizada pelo Governo do Estado e por conta
disso a Prefeitura fala que não pode construir a escola. Então, a
situação dessas 600 famílias que se encontram lá é desumana.
(Informação verbal, 07/05/2013).
Durante a visita ao assentamento Vale da Conquista, constatou-se o caráter
polissêmico que a luta pela terra pode assumir no contexto das ações do Estado, o qual
se utiliza de tramas e urdiduras para deslegitimar o processo de resistência dos
camponeses, dos trabalhadores rurais e das políticas de assentamentos rurais. O
assentamento Vale da Conquista que, em sua gênese, constitui o chamamento
emancipatório, transformou-se num local sem as condições mínimas necessárias para
que as famílias assentadas possam ter uma vida digna (Foto 12), cujas condições
precárias de habitação, inexistência de serviços básicos e de apoio por parte dos órgãos
de Estado criam sociabilidades estranhadas.
301
Foto 12 – Assentamento Vale da Conquista – Sobradinho (BA).
Fonte: Trabalho de Campo, maio de 2013.
Autor: DOURADO, J. A. L.
Ao negar a legitimidade das reivindicações feitas pelas famílias
acampadas/assentadas, a CODEVASF reforça a imagem do agrohidronegócio como o
único ou o mais relevante modelo a ser adotado para incrementar economicamente a
região e, nesse sentido, deixa expostas as combinações regressivas do processo de
mobilização social em favor dos grandes empreendimentos e da agricultura capitalista.
A realidade do assentamento Vale da Conquista desconstrói o discurso do Estado, visto
que, segundo a gerência da 6ª sessão Regional da CODEVASF, o órgão tem dado todo
o apoio aos assentados, inclusive disponibilizando-lhes a infraestrutura adequada para
que possam produzir. Sobre a presença do MST no Projeto Salitre, a gerência da
CODEVASF em Juazeiro teceu críticas tanto no que se refere à legitimidade da ação
das lideranças do Movimento quanto às reivindicações feitas pelas famílias, por
acreditar que estas já foram atendidas:
Quanto ao MST, quando foi implantada a primeira etapa, eles tinham
ocupado as terras para pressionar o então presidente LULA que na
época atendeu as reivindicações. As reivindicações deles eram que
eles também queriam áreas para eles assentarem, queriam água tratada
302
e também queria ter casas. Na época do acordo que foi feito
envolvendo a Casa Civil da Presidência da República, a Presidenta
Dilma era a chefe da Casa Civil e o Pedro Bertoni era o preposto desse
processo e foi feito um acordo e o MST escolheu áreas no município
de Sobradinho. Compramos as áreas que eles queriam, mas há ainda
uma parte das terras que necessita fazer a regularização fundiária.
Fizemos a doação da terra que estava regularizada para o INCRA.
Fizemos um perímetro pequeno para a associação deles em
Sobradinho, só que o INCRA não cumpriu com sua parte no acordo.
Aí eles [os acampados] por não sei qual motivo, resolveram pressionar
o INCRA (vamos invadir de novo o perímetro da CODEVASF para
forçar uma negociação) como se foi assim: se agente provocar o
INCRA e não resolver, vamos criar um problema lá no Projeto. É um
desrespeito aos compromissos da CODEVASF. Só que politicamente,
você sabe como o MST age; então nós envolvemos o presidente da
CODEVASF, o Ministro da Integração, a Secretaria Geral da
Presidência da República e hoje esse assunto está sendo tratado pela
Secretaria Geral da Presidência da República, até porque a gente quer
concluir o processo. Enquanto eles [o MST] estiverem lá dentro é um
fator inibidor de atrativos, inclusive empresariais, pois nenhum
empresário vai querer implantar uma empresa numa área que pode ser
objeto de conflito; um conflito que ainda não está devidamente
regularizado. Então, nós estamos trabalhando juntos, dialogando com
o Movimento; o Movimento dialogando diretamente com a
Presidência da República para poder sanar e a gente espera que, até o
final desse ano, essa questão também esteja resolvida. (Informação
verbal, 04/05/2013).
Durante as entrevistas com os assentados, estes expuseram as dificuldades
enfrentadas no decorrer da luta pela terra, revelando aspectos do atraso que representa a
ação do Estado no âmbito da questão agrária, ou seja, a repaginação de práticas e
política arcaicas a serviço do agronegócio e das elites agrárias. Os signos e significados
da modernidade e do progresso retratados e difundidos pela cadeia ideológica do
agronegócio ficam, todavia, esvaziados de sentido com a absoluta miséria vivida por
centenas de famílias camponesas nos assentamentos/acampamentos do Médio São
Francisco. Se, por um lado, Juazeiro representa um polo de desenvolvimento para a
agropecuária capitalista, por outro, para os camponeses (salitreiros, não salitreiros) e
para os trabalhadores da cadeia produtiva do agronegócio, significa um território de
disputa e de materialização dos signos das relações de poder e das desigualdades
sociais, inerentes ao modelo socioeconômico impositivo que devassa a organização
social em busca do controle social dos trabalhadores. Nesse contexto, as estratégias
cotidianas de vivência dos camponeses caatingueiros bem como dos trabalhadores das
periferias das cidades de Juazeiro e Petrolina e até de municípios mais distantes revelam
as capilaridades internas e a arquitetura da luta pela terra no contexto do Projeto Salitre,
303
trazendo à tona novos conflitos e disputas que redefinem o cenário criado pelo discurso
desenvolvimentista.
Para Thomaz Junior (2008b, p. 290):
De forma orquestrada estão sendo destruídas as culturas tradicionais,
as comunidades camponesas, os empregos, as diferentes experiências
que se efetivam no dia-a-dia das lutas, nos grotões e em qualquer
lugar onde se apresentam as resistências e ocorrem os conflitos, com
base no modelo hegemônico e único de desenvolvimento que fascina e
atrai diferenciadas parcelas da sociedade às suas teses, sobretudo, à
necessidade intrínseca que esses pressupostos passam a ter como
condição para o ingresso na modernidade, sem antes se colocar em
questão os conteúdos do sistema metabólico e da estrutura de classes e
suas alianças, que lhes dão sustentação.
As entrevistas com a liderança do MST e com a gerência da CODEVASF
evidenciaram uma questão bastante comum no cerne das disputas políticas e ideológicas
travadas entre o Estado e os Movimentos Sociais. Segundo a CODEVASF, todas as
reivindicações feitas pelas famílias assentadas no Vale da Conquista já haviam sido
atendidas, inclusive a implantação do perímetro irrigado para viabilizar a produção
agrícola no assentamento, mas tal informação foi contestada pelo MST que destacou o
desrespeito aos acordos feitos durante as negociações com o governo federal. Ao visitar
o assentamento Vale da Conquista, verificou-se que as lavouras desenvolvidas pelos
assentados estão restritas a minúsculos cercados (quintais produtivos) – onde são
cultivados milho, batata, banana e feijão (Foto 13) –, havendo um único assentado, que
possui uma pequena área cultivada com milho, cuja irrigação é feita através de
mangueiras (Foto 14).
Foto 13 – Plantação de batata, milho e banana – Assentamento Vale da Conquista,
Sobradinho (BA).
304
Fonte: Trabalho de Campo, maio de 2013.
Autor: DOURADO, J. A. L.
Foto 14 – Lavoura de milho irrigada por mangueiras – Assentamento Vale da
Conquista, Sobradinho (BA).
Fonte: Trabalho de Campo, maio de 2013.
Autor: DOURADO, J. A. L.
O perímetro irrigado ao qual se referiu o gerente regional da CODEVASF, em
Juazeiro, sequer foi concluído, pois a obra foi paralisada sem justificativa, dificultando
significativamente a permanência na terra, devido ao fato de as famílias terem que
305
buscar fonte de renda em outras atividades, inclusive migrando para a cidade de
Juazeiro para trabalhar, como diaristas (boias-frias), nas lavouras do Projeto Salitre.
Deslocar as famílias acampadas para o município de Sobradinho foi uma estratégia bem
sucedida adotada pelo Estado para favorecer duplamente o capital: afastou os
“invasores” dos territórios do agrohidronegócio, sem eliminá-los da cadeia produtiva da
fruticultura, pois, em tempos de safra, os empresários recorrem a esses sujeitos para
trabalharem como diaristas. Essa reserva de mão de obra contribui para manter estável o
valor pago aos trabalhadores, de modo a não haver elevação com os custos, garantindo
as condições necessárias para a reprodução do capital.
No assentamento Vale da Conquista, a área foi desmatada, mas a infraestrutura
para irrigação está inacabada e inutilizada, não havendo uma previsão de quando as
obras serão retomadas, visto que, para a CODEVASF, o perímetro irrigado já foi
entregue aos assentados. Destaque-se que, enquanto os camponeses sofrem com os
desdobramentos das ações contraditórias do Estado, que busca deslegitimar e desvirtuar
a luta pela terra, grandes projetos desenvolvimentistas avançam sobre os territórios
camponeses, como é o caso do parque eólico da Renova Energia (Foto 15), no
município de Sobradinho, implantado no topo das serras. Essas áreas geralmente são
utilizadas pelos camponeses para a extração de madeira, coleta de mel, frutas silvestres,
fibra vegetal e para a criação de gado “solto”.
Foto 15 – Perímetro irrigado do Assentamento Vale da Conquista, Sobradinho (BA). Ao fundo,
aerogeradores do Parque Eólico da Renova Energia.
306
Fonte: Trabalho de Campo, maio de 2013.
Autor: DOURADO, J. A. L.
O Acampamento Abril Vermelho (Foto 16) foi criado, em abril de 2012, com
1.200 hectares do Projeto Salitre, dos quais 960 hectares estão ocupados com lavouras
desenvolvidas pelas 400 famílias acampadas. As famílias montaram acampamento
próximo a um dos canais de distribuição de água do Projeto Salitre e passaram a captar
água por meio de motobombas para irrigar as lavouras de milho, melancia, cebola,
melão, alho e hortaliças, além da criação de animais de pequeno porte, caprinos, ovinos,
suínos e aves. A CODEVASF, diante da resistência das famílias em permanecer na área,
tem adotado a postura de não interromper o fornecimento de água do canal, pois há um
forte interesse em manter o movimento “pacificado”, de modo a não prejudicar a
ocupação dos lotes empresariais.
Foto 16 – Acampamento Abril Vermelho – Município de Juazeiro (BA).
Fonte: Trabalho de Campo, maio de 2013.
Autor: DOURADO, J. A. L.
Não houve a divisão dos lotes entre as famílias, tendo cada uma delas recebido
em média 2 a 3 hectares para cultivar, havendo também a produção coletiva. O tamanho
dos lotes para o agricultor familiar é de 6 hectares, mas para que o acampado obtenha
307
essa quantia de terra terá que comprovar sua capacidade de trabalhar junto às lideranças
do MST que coordenam a ocupação. A área do acampamento ocupada com lavouras
ainda não dispõe de infraestrutura de irrigação e a água captada do canal de distribuição
do Projeto Salitre é levada até as plantações através de sulcos. Esse modo tradicional de
irrigação consome muita água por causa da infiltração, fator limitante para os
camponeses do acampamento Abril Vermelho porque, durante o período de irrigação
das lavouras, o nível de água do canal diminui significativamente.
Para fazer a gestão da água no acampamento, as lideranças do MST criaram um
comitê para monitorar o uso e a distribuição da água o que se mostrou eficiente até o
momento, já que nenhum conflito interno relacionado à água foi registrado, mesmo com
a expansão das lavouras. A água para o consumo humano também é retirada do canal de
irrigação, representando riscos para a saúde das pessoas, visto que a água pode estar
contaminada com agrotóxicos.
Em relação à água utilizada para o consumo humano no acampamento, a
liderança do MST na região destaca que,
[...] quando a gente ocupou, buscamos um local privilegiado. Nós
começamos a usar a água do canal que passa pelo acampamento, onde
controlamos o uso dentro do nosso acampamento. Criamos uma
coordenação de água e vamos distribuindo, deixando passar para
poder atender os colonos. Agora essa água não é adequada para
consumo humano; é própria para a produção, pois vem dos canais de
irrigação e os canais, como a agricultura aqui é bastante convencional,
usa-se muito agrotóxico. Como a água não é adequada para consumo,
a gente tem pedido para o pessoal tratar de forma artesanal a água,
enquanto que outros vão à comunidade próxima de Campos dos
Cavalos que tem um sistema de água para encher os botezinhos e traz
para o consumo humano, mas a nossa produção tá tranquilo.
(Informação verbal, maio de 2013).
Toda a produção agrícola do acampamento Abril Vermelho é direcionada ao
CEASA da cidade Juazeiro. Como os acampados não dispõem de transporte nem local
adequado para a comercialização dos produtos agrícolas, a compra é feita por
atravessadores e proprietários de galpões de frutas no próprio acampamento (Foto 17).
O CEASA de Juazeiro fornece frutas e verduras para o mercado do Centro-Sul do país,
além de exportar produtos para o mercado europeu155. É nesse local que os produtos do
trabalho e da resistência camponesa são “misturados” aos produtos do agronegócio,
155Cf. Bezerra (2012) e Sousa (2013).
308
invisibilizando, perante a sociedade, a importância da luta pela terra e pela água travada
diariamente entre o campesinato e o agronegócio.
Foto 17: Compra de produtos por atravessadores no Acampamento Abril Vermelho
Fonte: Trabalho de Campo, Maio de 2013.
Autor: DOURADO, J. A. L.
Pensamos que, assim como os sujeitos possuem uma identidade territorial, os
produtos trazem em si um conteúdo político e uma identidade relacionada ao seu
território, ou seja, o lugar, os propósitos e as formas como estes foram produzidos
refletem perspectivas político-ideológicas e correlações de forças desiguais. O capital já
se beneficia eficientemente dessa concepção, ao propor o selo de Indicação Geográfica
309
(IG), utilizado para agregar valor aos produtos e para alcançar nichos específicos de
mercado. Assim, acreditamos que, quando os produtos do acampamento Abril
Vermelho são comercializados no CEASA, os prejuízos são de ordemeconômica – em
virtude da presença da figura do atravessador – e política porque, para a sociedade, não
há uma distinção entre o que é produzido pelo agronegócio e pelo campesinato. Em
decorrência do discurso midiático que reproduz a ideia equivocada de eficiência e
produtividade do agronegócio, a comercialização, no CESASA, dos produtos
produzidos no acampamento Abril Vermelho fortalece ainda mais a pujança desse setor
perante a sociedade local, para quem fica evidente que toda a dinâmica do Mercado do
Produtor depende do agronegócio.
O CEASA, além de local do comércio dos produtos oriundos da agricultura
irrigada no Semiárido, transforma-se numa vitrine para o capital e para o Estado
exibirem à sociedade a importância das ações desenvolvidas com vistas a modernizar a
produção no campo, tornando-o mais eficiente esendo uma estratégia para acabar com a
pobreza rural. Compreender o que isso representa implica reconhecer como o poder
político e ideológico do agrohidronegócio se sustenta, inclusive quando se apropria do
produto do trabalho camponês, ocultando o potencial da agricultura camponesa e sua
importância para a sociedade.
Uma das soluções para essa questão seria a criação de uma feira ou, ainda, um
local no próprio CEASA, onde os produtos advindos dos acampamentos e
assentamentos localizados nessa região fossem comercializados separadamente, como
forma de dar visibilidade aos produtos da luta pela terra e pela água no Semiárido
baiano. Fazer essa demarcação territorial é uma importante forma de persuasão e de
enfrentamento político e simbólico do campesinato contra o capital e o Estado,
colocando em xeque o discurso modernizante do agrohidronegócio.
Como as terras do vale do Salitre são bastante férteis, os acampados têm
conseguido diversificar a produçãoeobter boa produtividade, sem nenhum tipo de
assistência técnica.Em maio de 2014 iniciaram o período da terceira colheita de
melancia e melão e do plantio de cebola, como destaca um dos integrantes da frente de
massa do acampamento Abril Vermelho:
Essa região possui uma das melhores terras do Brasil, terra aprovada
pela EMBRAPA e pelos estudos que lidam com a questão do solo.
Essa terra é boa para a produção de frutas; tem aí agricultor que já
colheu quase três safras, tem outro que está colhendo a primeira safra,
outro que está na segunda safra, etc. Esse processo é contínuo. A safra
de melão, melancia, feijão de corda, milho, aipim (que é a mesma
310
macaxeira), tomate, pimentão, pepino, e assim diversificando a
produção. Temos incentivado os acampados para não partir do ponto
de vista da monocultura que a gente está combatendo. Incentivamos a
produção de frutas, legumes, verduras, essas frutas de pequeno ciclo,
como o melão e a melancia. (Informação verbal, 06/05/2013).
Um dos aspectos interessantes detectados durante as visitas ao acampamento
Abril Vermelho foi o fato de os camponeses já estarem produzindo na área e, de acordo
com os relatos, algumas famílias já fizeram 3 colheitas, demonstrando que, mesmo sem
apoio do Estado, os camponeses têm conseguido viabilizar a produção, superando os
obstáculos próprios de um acampamento, inclusive a falta de infraestrutura. Como já
possuem uma história de vida no campo, as famílias são acostumadas a trabalhar na
agricultura esua habilidade tem contribuído, sobremodo, para o sucesso da produção.
Notou-se, por outro lado, haver o interesse, por parte de antigos moradores da região
que migraram para o Sudeste do país, na década de 1980, emvoltar a trabalhar na terra,
depois de décadas trabalhando e morando na cidade. Durante nossa permanência no
acampamento, tivemos contato com um casal que estava pleiteando, junto às lideranças
do acampamento, autorização para aderir ao movimento. Segundo esse casal de origem
pernambucana (zona rural do município de Sobral), mudaram-se ainda jovens para São
Paulo, em busca de melhores condições de vida, já que as condições de permanência no
campo naquela época eram desfavoráveis. Após 25 anos morando na cidade de São
Paulo, retornaram para o Nordeste e buscam retomar ao trabalho na terra. Esse é um
fato revelador de como a questão agrária é complexa, colocando elementos para se
pensar o acesso à terra no contexto de intensa mobilidade territorial e espacial do
trabalho, rompendo assim com a concepção enrijecida que nega a heterogeneidade das
identidades diversas da tessitura do campesinato nesse limiar de século XXI. Nesse
sentido, Thomaz Junior (2008a, p. 285) chama atenção para o fato de haver “[...] uma
rica trama de relações, de fragmentações, de valores, de significados, de subjetividades”
que não pode ser desconsiderada quando se trata da totalidade viva do trabalho.
A luta pela terra traz em si um conteúdo emancipatório, por evidenciar a
resistência a lógicas perversas e contraditórias, estabelecidas e consolidadas no contexto
da política agrícola e agrária brasileira. A produção de objetos e mercadorias no seio do
sistema sociometabólico do capital tem colocado, cada vez mais urgentemente, a
necessidade de repensar a produção e a apropriação do espaço geográfico frente à
reprodução da vida e dos sujeitos, rompendo assim a concepção dura de ciência e de
311
desenvolvimento, pensados e disseminados a partir do modelo de sociedade capitalista.
Nessa mesma perspectiva, Breilh (2011, p. 76) destaca que:
La energía creadora y productiva agrícola debería encaminarse a
garantizar la reproducción de los sujetos vivos y de la vida en la
naturaliza – un requisito básico de sustentabilidade -, y no someterse a
la lógica del capital, que captura dicha energía para la producción de
médios de producción y mercancias.
A conquista da terra coloca em evidência a luta pelo/no território como espaço
de materialização de ideologias, consensos e projetos políticos, cuja coadunação ao
contexto das ações do Estado, atreladas ao capital, tem imposto às populações
camponesas e aos trabalhadores envolvidos na cadeia produtiva do agronegócio
situações bastante adversas na busca por atender às necessidades básicas de reprodução
familiar. Se, por um lado, as famílias acampadas no Abril Vermelho são invisibilizadas
pela população em geral e particularmente pelo Estado, por outro sua existência torna-se
evidente mediante os frutos de seu trabalho na terra.
O território,na qualidade de mediação espacial do poder (HAESBAERT, 2009),
passa a ser objeto do confronto entre camponeses, moradores das periferias urbanas,
capital e o Estado, visto que, no constante processo de reorganização territorial no
Semiárido baiano, a dimensão econômica tem prevalecido entre os agentes do capital,
sob forte ditadura do dinheiro156.
Após dois anos e oito meses de sua criação, o acampamento Abril Vermelho
vem demonstrando as potencialidades e a dinâmica do campesinato, expressando a
necessidade de pensar a questão agrária a partir de novas leituras e interpretações, para
entender o cenário obnubilado pelo discurso do agronegócio e suas múltiplas escalas
geográficas. Refletir sobre as diferentes estratégias de resistência do campesinato,sobre
o tecido social do trabalho bem como sobre suas formas de pertencimento são, na
verdade, possibilidades de seguir adiante, no enfrentamento constante ao capital e ao
Estado. Ao ouvir os acampados, percebeu-se que a posse da terra foi a única maneira
destes conseguirem relativa autonomia acerca do trabalho, mostrando que terra, trabalho
e soberania alimentar se apresentam indissociáveis no contexto da luta dos camponeses
caatingueiros. Ainda de acordo com as lideranças do MST, nenhum dos acampados do
Abril Vermelho vende força de trabalho nos lotes empresariais, pois a produção obtida
do acampamento é suficiente para a reprodução das famílias. Esse é um aspecto que
156 Termo tomado de empréstimo de Saquet (2013, p. 124).
312
contrasta com a realidade verificada nas comunidades do Baixo Salitre, visto que muitos
salitreiros trabalham como diaristas nos lotes empresariais do Projeto Salitre.
A ocupação de parte das terras do Salitre representa a construção de um novo
território, com todos os desafios e problemas decorrentes da existência conflituosa dos
sujeitos que lutam pela/na terra e as cercas do agrohidronegócio. Vale ressaltar que
oacampamento Abril Vermelho está cercado pelo agrohidronegócio, cuja lógica
reprodutiva compromete consideravelmente a produção de alimentos pautados nos
princípios agroecológicos, a qualidade da água e a saúde dos camponeses, que correm o
risco de contraírem doençasem virtude da exposição indireta aos agrotóxicos utilizados
nas lavouras do perímetro irrigado do Salitre. Nesse sentido, a luta pela terra não se
resume apenas à conquista do “pedaço de chão”, visto que as lógicas, as sociabilidades e
as territorialidades camponesas conflitam com a lógica produtivista e destrutiva do
capital, exigindo a superação do modelo hegemônico de desenvolvimento adotado para
o campo, baseado na produção de mercadorias, mediante a superexploração dos
recursos naturais e dos trabalhadores. O enfrentamento ao agrohidronegócio perpassa
não apenas pela transposição das cercas e pelo controle sobre uma fração do território
capitalista; vai além, ao perspectivar novas possibilidades de uso desse território, tendo
como parâmetros formas de produção menos dependentes do capital.
A promessa modernizadora propagada no Semiárido usurpa aos camponeses
caatingueiros o direito à terra e ao território. Os projetos de irrigação acabam impondo
delimitações aos territórios fluidos, áreas usadas, coletivamente, pelos camponeses no
vale do Salitre. O processo de reestruturação produtiva ocorrido Vale do São Francisco
provocou transformações na forma de acesso e de uso da terra, isto é, provocou
mudanças na concepção dos projetos de irrigação, de reforma agrária e de crédito
fundiário. Em relação à agricultura, verifica-se uma forte tendência à expansão
dasrelações comerciais em contraposição àspráticas da produção para o autoconsumo
(de sequeiro e nas áreas úmidas nos vales próximos aos rios) protagonizadas pelos
camponeses caatingueiros. Os territórios camponeses ocupados com a produção para o
autoconsumo transformam-se em “pontos luminosos” com a inserção da agricultura
globalizada, pautada na fruticultura irrigada, ocasionando:
[...] severas transformações na divisão social do trabalho, na criação
de novas categorias como o trabalhador assalariado agrícola,
acentuando as desigualdades sociais, em detrimento da manutenção
dos saberes locais historicamente construídos, próprios dos
agricultores familiares camponeses e das comunidades de resistência. (MARINHO et al., 2011, p. 294).
313
A inversão da terra de trabalho em terra de negócio interfere diretamente na
natureza das ações laborais, nos sentidos do trabalho que passam a ser mediados
exclusivamente pela extração da mais-valia dos trabalhadores da cadeia produtiva da
fruticultura irrigada. Tem-se, dessa maneira, a transformação do camponês em
trabalhador assalariado, peça importante no processo de reprodução ampliada do capital,
em terras semiáridas nordestinas. Ao analisar o conteúdo político da ocupação realizada
pelo MST no Projeto Salitre, depara-se com os desafios enfrentados pelos camponeses
diante dos imperativos do capital em tempos de crise, visto que, ao entrarem na terra,
novos obstáculos se colocam aos acampados. Superadas as dificuldades iniciais próprias
da construção do acampamento, as lavouras encontradas no Abril Vermelho são, em sua
essência, uma resposta contundente ao discurso do Estado e do capital, atribuindo ao
agronegócio a responsabilidade pela produção de alimentos no Brasil.
Durante as visitas ao acampamento Abril Vermelho, constatou-se o caráter
emancipatório que a “posse da terra” representa para as 400 famílias acampadas:
significa para eles a possibilidade de existência a partir de referenciais culturais,
políticos e sociais diferentes do agronegócio. Ao apresentar os produtos do trabalho na
terra (Foto 18), os camponeses expressam saberes, fazeres, racionalidades e
sociabilidades que, mesmo metamorfoseadas, evidenciam o movimento da vida em sua
diversidade.
Foto 18 – Camponês do Acampamento Abril Vermelho – Juazeiro (BA).
314
Fonte: Trabalho de Campo, maio de 2013.
Autor: DOURADO, J. A. L.
As expressões fenomênicas, a partir da imersão no acampamento Abril
Vermelho, revelaram a tentativa dos movimentos sociais em propor e construir
alternativas à lógica do agronegócio. O acesso à terra e à água vai, paulatinamente,
devolvendo às famílias acampadas a possibilidade de viverem dignamente a partir de
seu trabalho, sem que, para isso, homens e mulheres estejam atrelados exclusivamente
ao trabalho assalariado nas lavouras dos projetos de irrigação, nos subempregos na
cidade, inclusive na cadeia produtiva do agrohidronegócio, como é caso do
CEASA/Juazeiro, cujas condições de trabalho são extremamente degradantes.
Durante as entrevistas, os acampados ressaltaram que as condições de vida
melhoraram significativamente através da renda obtida com a venda dos produtos
produzidos no acampamento, permitindo-lhes fazer projeções para o futuro. Destaca-se
que todos os membros da família acabam envolvidos com o trabalho nas lavouras,
demonstrando a capacidade de absorção da agricultura familiar camponesa, como um
setor importante na geração de emprego e renda. Não olvidemos, por outro lado, a
importância da produção do acampamento no tocante à reprodução das famílias
acampadas, visto que aquela tem viabilizado a alimentação das 400 pessoas, e o valor
obtido com a venda do excedente é utlilizado para comprar o que não é produzido pelos
acampados. Além das plantações de milho, cebola, alho, melão, mandioca, melancia,
hortaliças (alface, coentro, couve) e feijão, criam-se caprinos, galinhas e porcos (Figura
2). Segundo as lideranças do MST, o acampamento Abril Vermelho representa um
modelo de ocupação que deu certo, pois, mesmo sem a infraestrutura adequada, os
camponeses têm alcançado ótima produção, colocando em xeque a própria ideia
disseminada pela CODEVASF de que os projetos de irrigação destinados à agricultura
camponesa são inviáveis porque os camponeses não conseguem produzir. O
assentamento Vale da Conquista encontra-se numa situação desfavorável em relação ao
acampamento Abril Vermelho, no que se refere às condições de trabalho e às lavouras
cultivadas pois, neste último, as famílias já conseguem obter uma renda com o comércio
dos produtos e sua permanência no campo dá-se de forma digna, o que não ocorre com
os acampados do Vale da Conquista.
Embora a produção agroecológica seja um ideal defendido pelas lideranças do
acampamento, a concretização dessa perspectiva apresenta-se como uma tarefa difícil,
uma vez que o acampamento faz limite com as lavouras do perímetro irrigado, onde se
315
registra intenso uso de agrotóxicos. Não há como criar barreiras para impedir que as
lavouras cultivadas na área sob o domínio dos acampados sejam atingidas pelos
agrotóxicos usados no perímetro irrigado, tanto na produção de frutas quando nos
cultivos de verduras e feijão. Mesmo não sendo possível produzir de forma
agroecológica no contexto atual, as lavouras cultivadas pelos camponeses do Abril
Vermelho não recebem aplicação de agrotóxicos, tornando os alimentos mais saudáveis
e livres de contaminação química. Se a produção não é agroecológica, faz-se necessário
mencionar a utilização, por parte dos camponeses, de muitas práticas agroecológicas
envolvendo saberes e fazeres advindos da convivência na/com a terra: a ajuda mútua, a
socialização dos alimentos entre os acampados, a própria ideia de que a terra deve
cumprir a sua função social, além de melhorar as condições econômicas de vida dos
camponeses.
Figura 2: Atividades agropecuárias no Acampamento Abril Vermelho (1: Criação de
caprinos, 2: Colheita de cebola, 3: Colheita de batata doce e 4: Lavoura de mandioca)
Fonte: Trabalho de Campo, 29 de abril de 2014
Autor: DOURADO, J. A.L.
Como os níveis de produção têm sido satisfatórios, um novo desafio apresenta-
se para as lideranças do MST em Juazeiro: reunir as condições adequadas para que os
próprios acampados façam a comercialização de seus produtos no mercado. Entre os
obstáculos para que esse desafio seja superado, estão os R$80.000,00 mensais cobrados
316
pelo aluguel de um boxe no CEASA157e a falta de espaços com infraestrutura adequada
à comercialização de produtos pelos próprios camponeses. Uma feira onde os
camponeses pudessem vender seus produtos seria um importante componente político,
por permitir a ampliaçãoda relação entre os camponeses e o comércio local.Grosso
modo, romperiacom o isolamento entre o campesinato e a sociedade local, favorecendo
o diálogo entre os diferentes sujeitos (agricultores e consumidores), conforme defende
Bogo (1999). Além do conteúdo político, a feira forjaria sociabilidades entre
camponeses e consumidores, criando relações de confiança e um canal de comunicação
direta entre quem produz e quem consome os alimentos.
Ainda de acordo com uma dessas lideranças, a organização dos acampados
através de associação é a alternativa mais adequada para viabilizar a comercialização
direta dos produtos com os consumidores e empresários no próprio CEASA, eliminando
assim o atravessador. Como as demandas e reivindicações são diversas, a prioridade
para o momento é acelerar o processo de negociação para legalizar a situação do
acampamento, tornando-o assentamento. Somente depois dessa etapa será possível a
criação de uma associação para organizar os camponeses, fortalecendo ainda mais a luta
e potencializando os ganhos com a venda dos excedentes produzidos através do trabalho
na/com a terra.
5.5 Mobilização social e múltiplas resistências no Submédio São Francisco
Pensar as (Re)Existências protagonizadas pelos camponeses em detrimento dos
discursos do capital e do Estado nos obriga a repensar a clássica ideia de enfrentamento
via ocupação de terra e incorporar outras dimensões das lutas,travadas em diferentes
espaços e momentos históricos. Na busca pela emancipação ou autonomia, os
camponeses têm diversificado as estratégias para disputar território com o
agrohidronegócio. Quando o espaço em análise se refere ao Semiárido nordestino, o
dualismo expresso pelos termos arcaico-moderno coloca-se como um primeiro
obstáculo para entender as relações materializadas no território, porque envolvem
concepções políticas e econômicas antagônicas.
É nesse universo prenhe de contradições que passamos a analisar como os
camponeses têm organizado e pensado o enfrentamento às ações desagregadoras,
157 Valor informado por uma das lideranças do MST em Juazeiro, referente ao ano de 2013.
317
pautadas no discurso falacioso do desenvolvimento econômico e da geração de emprego
e renda. Tais promessas feitas pelo capital e pelo Estado têm figurado, ao longo dos
tempos, no processo de reestruturação espacial do Semiárido baiano, como argumentos
“sólidos” capazes de ofuscar as críticas feitas por seus opositores. É nesse embate que
propomos pensar outras formas e estratégias de (Re)Existência protagonizadas pelos
camponeses no Submédio São Francisco, num contexto com forte presença do
agrohidronegócio, cuja territorialização é favorecida pelos investimentos públicos com
obras de infraestrutura para garantir a disponibilidade hídrica à fruticultura irrigada e à
produção de cana-de-açúcar.
Programas de grande envergadura como o PAC e o Mais Irrigação, na esfera
federal, alavancam as investidas do grande capital e potencializam o mercado de terras e
uma série de outros setores atrelados a esse segmento econômico. A arquitetura desses
projetos tem como finalidade eliminar a ociosidade dos recursos, tornando-os
exploráveis e colocando-os no circuito reprodutivo do capital, com vistas à
maximização dos lucros. Na verdade, o sequenciamento e o encadeamento destes
programas é fundamental para a manutenção do circulo vicioso que envolve privilégios
políticos, contratos fraudulentos com empresas do setor de construção civil, pactos com
grandes proprietários de terras e que, do outro lado, coexiste com o empobrecimento da
maioria da população. Ao analisar os programas voltados para o fomento da irrigação
no Semiárido baiano, constatamos haver uma interdependência sistêmica entre eles, pois
a criação de um programa depende de outro para ser efetivado e com isso são utilizados
nomes distintos e recursos financeiros de origem diversa para a execução de uma
mesma ação.
Como estratégia para enfrentar essas relações desiguais, muitas comunidades nas
regiões do Médio e Submédio São Francisco têm buscado fortalecer-se politicamente
através da organização social, com vistas a unificar as bandeiras de luta e
reivindicações. Nesse sentido, reconhecemos a multiplicidade de ações praticadas pelos
camponeses, como forma de afirmação e reafirmação de seus modos de vida, saberes,
fazeres e ações políticas. A ocupação e o acampamento são exemplos emblemáticos
dessas ações, embora não sejam os únicos. Ante o exposto, concordamos com Fabrini
(2007, p. 9, grifos do autor) quando o autor destaca que a “[...] resistência camponesa
não se limita à ação/organização nos movimentos sociais, ou seja, as lutas camponesas
não devem ser interpretadas somente na esfera dos movimentos sociais: o“movimento
camponês” é mais amplo do que os “movimentos sociais”.
318
Os territórios conquistados pelos camponeses – inclusive a Feira Nacional da
Agricultura Irrigada (FENAGRI) – reluzem as contradições vivas do embate capital-
trabalho, as quais não se restringem apenas ao controle da terra e da água, mas
acontecem também no plano discursivo e midiático. O “estar” na FENAGRI não diz
respeito apenas à presença física. O ocupar/territorializar esse espaço é, para os
camponeses, uma estratégia para serem “vistos” diferentemente da maneira como foram
retratados ao longo do tempo, ou seja, até então têm sido tratados como sujeitos
detentores de modos de vida atrasados, dependentes do assistencialismo governamental
e sem espaço no mundo atual, pois são controlados pelo agronegócio que abocanha
volumes expressivos de recursos financeiros das instituições públicas de fomento e
gasta milhões de reais em marketing para convencer a sociedade sobre sua própria
importância econômica e eficiência produtiva.
Para entender os processos dinâmicos que envolvem a construção das
(Re)Existência camponesa no contexto das disputas territoriais no Submédio São
Francisco, analisaremos como vem ocorrendo a participação dos camponeses na
FENAGRI, o conteúdo político dessa ação bem como seus desdobramentos políticos.
Por outro lado, refletiremos sobre as iniciativas de mobilização e organização social
verificadas entre as comunidades do Baixo Salitre, por meio do resgate de práticas
socioculturais, da formação política e do estímulo ao engajamento da juventude em
relação aos principais problemas e/ou desafios vivenciados cotidianamente pela
população local.
5.5.1 Territorialização do campesinato na FENAGRI: disputas veladas no território
do agrohidronegócio em Juazeiro/Petrolina
Realizada anualmente nas cidades de Juazeiro (BA) e Petrolina (PE), em regime
de alternância, a FENAGRI, considerada a maior feira da fruticultura irrigada da
América Latina, representa um espaço de encontro entre investidores do setor agrícola,
grandes produtores e empresários da agroindústria (voltada para o processamento de
frutas) e agricultores camponeses. Na 25ª edição, realizada em 2014 na cidade de
Petrolina, no período de 28 a 31 de maio, a rodada de negócios movimentou R$40
milhões, volume comemorado pelos organizadores do evento, que contou ainda com
momentos de debate, com a participação de grandes empresas compradoras de frutas do
país e sete empresas âncoras de países como Espanha, EUA, Rússia, Canadá e
319
Alemanha, sobre a introdução de novas culturas no vale do Submédio São Francisco,
maior polo frutícola do Nordeste brasileiro.
Durante a última edição da FENAGRI, foram expostos 180 estandes com os
arranjos produtivos e as novidades tecnológicas da agricultura nas áreas de produção,
manejo, insumos, equipamentos, comercialização e logística. O espaço onde é realizada
essa feira é dividido em duas partes: uma ocupada com os estandes empresariais e outra
destinada aos agricultores camponeses. Ao acompanhar a realização desse evento nos
anos de 2013 e 2014, identificamos distintas territorialidades em seu interior, cujo
surgimento dá-se a partir das relações assentadas no território, com diferentes
desdobramentos sociais, políticos, econômicos e culturais. Ou seja, a FENAGRI é, no
contexto atual, um território de lutas, onde campesinato e agronegócio expõem não
apenas produtos, como também as lógicas distintas de produção e de consumo do
espaço.
Nos estandes destinados à agricultura camponesa, os visitantes não se limitam a
olhar/admirar os produtos ou a conhecer as novas tecnologias criadas através dos
investimentos em pesquisas. Nesses locais, caracterizados pela aproximação entre
aqueles que expõem e aqueles que visitam, há uma verdadeira degustação dos
resultados do trabalho camponês, de sua inventividade e capacidade de reprodução. É o
espaço onde as relações são menos formais e mais descompromissadas, envolvendo,
muitas vezes, descobertas em relação às potencialidades dos sujeitos que vivem no/do
campo. Pela própria característica dos produtos vendidos pelos camponeses e pela
possibilidade de poder comprá-los, o contato e a aproximação entre quem vende e quem
consome contribuem para transformar a visão pejorativa sobre o campo, muitas vezes
tipo como o “lugar do sofrimento”.
Assim, novas concepções e formas de pensar o campo vão sendo engendradas
através do estabelecimento de forças locais, numa espécie de microfísica do poder
(FOUCAULT, 1979), expressa por uma aparente harmonia entre sujeitos e
racionalidades antagônicas. Embora seja um espaço criado para o grande capital, a
FENAGRI vem se constituindo como um território forjado, um trunfo (RAFFESTIN,
1993) para os camponeses nos interstícios das relações capitalistas e um exemplo
marcante de territorialização do campesinato. Advertimos sobre nossa discordância em
relação aos autores que defendem que esses camponeses sejam um exemplo do
“pequeno agronegócio”, produto da política de desenvolvimento territorial rural (DTR)
320
ou desenvolvimento local implantadas pelo Estado, conforme defende Abramovay
(1994).
Ao analisar a presença dos camponeses na FENAGRI, acreditamos ser mais
adequado, ao invés de taxá-los de “pequeno agronegócio”, pensar sobre a possibilidade
da construção da autonomia camponesa (que não é absoluta) em relação ao
assalariamento e à subjugação da força de trabalho ao agrohidronegócio. Utilizando os
recursos de que dispõem e aperfeiçoando o conhecimento sobre o uso de produtos da
própria região, como é o caso do umbu (Foto 19), muitas comunidades do Semiárido
nordestino passaram a agregar valor à produção, tendo um aumento significativo na
renda familiar, além de agregar a família no processo produtivo.
Foto 19 - Camponês da comunidade de Curral Novo expondo os produtos derivados do
umbu durante a 24ª da FENAGRI - Juazeiro
Fonte: Trabalho de Campo, 2013.
Autor: DOURADO, J. A. L.
321
Com a ajuda do Instituto Regional de Pequena Agropecuária Apropriada
(IRPAA), muitas comunidades do Submédio São Francisco, inclusive do vale do
Salitre, têm conseguido garantir a reprodução da família sem romper com os vínculos
com a terra, com o trabalho familiar e com a produção artesanal, tendo como matéria-
prima o extrativismo. Preocupados em ressaltar a produção (orgânica e agroecológica),
os membros de IRPAA têm buscado fortalecer os camponeses a partir de seus próprios
referenciais de mundo, de seus conhecimentos, suas práticas socioculturais. Pautado na
perspectiva da convivência com o Semiárido, o IRPAA seleciona comunidades e/ou
famílias para desenvolver “projetos-pilotos”, no intuito de comprovar a viabilidade das
ações/técnicas propostas. Essa entidade sem fins lucrativos (ONG) tem atuado junto a
diversas comunidades, prestando assessoria técnica com o propósito de aprimorar e de
fortalecer as técnicas conhecidas pelos camponeses, contribuindo para que os sujeitos
tenham melhores condições de permanecerem na terra, mediante a adoção de
“tecnologias alternativas” ou “apropriadas” (Foto 20).
Foto 20 : Stand da agricultura familiar na 24ª FENAGRI/Juazeiro
Fonte: Trabalho de Campo.
Autor: DOURADO, J. A. L.
322
Ao reelaborar antigas práticas – da qual utilizamos como exemplo o doce de
umbu, feito e consumido tradicionalmente entre os camponeses do Semiárido baiano –,
novas possibilidades surgem a partir do trabalho de assessoria técnica e extensão rural,
na perspectiva da convivência com o Semiárido. Isso significa mostrar, no palco/cenário
do agrohidronegócio, a viabilidade de outros modelos de desenvolvimento para essa
região, diferentes dos megaprojetos implantados pelo Estado cujos impactos positivos
para as populações atingidas são efêmeros e irrisórios.
5.5.2 Resgate das práticas socioculturais e (Re)Existência camponesa no vale do
Salitre
A agricultura camponesa no vale do Salitre sofreu os reveses decorrentes do
processo de modernização do campo, tendo muitos vínculos de solidariedade desfeitos
decorrência das políticas públicas implementadas pelo Estado e da presença marcante
do agronegócio nessa região. Durante décadas, viu-se a expansão do agronegócio
desagregar os modos de vida das comunidades, promover a perda da autonomia e o
ascendente assalariamento entre os camponeses, muitos transformados em mão de obra
para a fruticultura irrigada. Como a história do vale do Salitre está marcada por uma
sequência de conflitos pelo acesso à água, as comunidades buscaram,no decorrer das
décadas, organizar-se para reivindicar, junto ao Estado, uma solução para esse
problema.
Predominantemente, essa organização ocorreu muito mais em decorrência de
vínculos de parentesco e de solidariedade que por motivações político-ideológicas.
Reconhecendo essa particularidade, algumas lideranças locais das comunidades do
Baixo Salitre perceberam a importância de resgatar práticas socioculturais, como uma
das estratégias a serem utilizadas para forjar novas sociabilidades entre as famílias
camponesas.Como ponto de partida, procuraram agregar os sujeitos, destacando as
formas comunitárias de relações, como a ajuda mútua, as festas, a religião, o lazer, entre
tantas outras expressões da cultura das comunidades salitreiras, as quais perderam
visibilidade em consequência da introdução de novos costumes e de uma racionalidade
distinta daquela que fundamentava as suas relações cotidianas, devido aos processos
modernizantes vivenciados pós-década de 1970. Sobre essas formas comunitárias de
relações, Fabrini (2007, p. 28-9) afirma:
323
As ações comunitárias ainda se manifestam na solidariedade entre as
famílias e vizinhos como na troca de dias de serviço, mutirões para
plantação, cuidado com as lavouras, colheitas, etc. Outras atividades
podem indicar o “espírito” comunitário, como o lazer e as
festividades, visitas aos vizinhos em finais de semana, reuniões
religiosas, seja na sede da comunidade onde está a capela, seja nas
residências.
Com o intuito de fortalecer a luta e o território camponês, essas lideranças
comunitárias têm promovido encontros em Alfavaca, Baraúna, Curral Novo e Tapera,
para realizar festejos, como o Samba do Véio, a Roda de Braço, São Gonçalo e
comemorações religiosas, como a procissão de Nossa Senhora Santana (Figura 3). A
construção de alternativas para as comunidades salitreiras afetadas pelas políticas
públicas de irrigação bem como pela expansão do agrohidronegócio nessa região torna-
se viável e necessária no processo de coesão social para garantir força e fortalecer
politicamente os sujeitos de tal forma que estes possam fazer o enfrentamento às ações
homogeneizantes do capital bem como tensionar o Estado para que os investimentos
públicos feitos nessa região contemplem as necessidades da população local. Essas
iniciativas vão, paulatinamente, agregando os camponeses mediante o resgate e a
construção de sociabilidades, importantes para fortalecer a organização e a participação
social, com vistas a alcançar a coesão na busca de melhorias para as comunidades.
Figura 3: Práticas socioculturais das comunidades salitreiras (1: Samba de Véio, 2:
Samba de Braço, 3: Bumba-meu-boi e 4: Procissão de Nossa Senhora Santana)
324
Fonte: Filhos do Salitre, 2014
Autor: DOURADO, J. A. L.
Além das manifestações culturais, o Jornal “O Carrapicho” (Figura 4), elaborado
por jovens das comunidades de Alfavaca e Baraúna,encontra-se na sua 2ª edição e tem a
função de envolver os adolescentes no processo de discussão sobre os principais
problemas que afetam a região do Baixo Salitre bem como sobre assuntos do cotidiano
das comunidades. Trata-se de uma estratégiaque se utiliza da educomunicação para
despertarnos adolescentes o interesse pelo envolvimento político, de modo que eles
possam participar ativamente das tomadas de decisões coletivas, além de problematizar
assuntos/temas em evidência no momento. Na 2ª edição, a reportagem principal trata da
chegada da empresa Agrovale no Projeto Salitre, com destaque para as consequências
socioambientais para a população salitreira e o enfrentamento entre agronegócio e
agricultura camponesa. Assim, há uma democratização das informações, abordadas sob
a ótica dos sujeitos que vivenciam diretamente a realidade do Salitre.
Figura 4: Jornal Carrapicho
325
Fonte: Filhos do Salitre, 2014.
Como a construção do Jornal Carrapicho é coletiva e feita pelos próprios
salitreiros, seus idealizadores têm promovido reuniões nas comunidades para apresentar
o material e debater sobre a importância desse veículo de informação para o incentivo à
participação dos jovens nas discussões sobre questões relativas à realidade do vale do
Salitre, de modo a contribuir para a construção e o fortalecimento da identidade
territorial. Durante essas reuniões para avaliar os resultados do jornal (Foto 21), são
discutidos quais os temas serão tratados na edição seguinte, exigindo que os jovens
debatam sobre os assuntos mais recorrentes e significativos para as comunidades
salitreiras. Ao decidir sobre os assuntos, os jovens assumem deliberadamente uma
postura política em relação ao conteúdo do jornal, expressa pela maneira como os temas
são tratados.
326
Foto 21 – Reunião na comunidade de Baraúna para debater sobre a importância do
Jornal Carrapicho.
Autor: Filhos do Salitre, 2015.
Além destas ações, algumas lideranças das comunidades têm realizado reuniões
de formação com o intuito de discutir e viabilizar a formação de associações
comunitárias, iniciativa importante para viabilizar o acesso a muitas políticas públicas
que atendam às demandas locais. Como a presença do agrohidronegócio e a atuação do
Estado são marcantes nessa região, faz-se urgente a organização comunitária,
viabilizando encontros regulares para discutir os principais problemas e demandas das
comunidades e assim pensar em ações reivindicatórias junto ao poder público e criar
possíveis barreiras ao expansionismo do capital sobre as terras do vale do Salitre.
Quando se trata de trabalho, os moradores mais jovens (crianças e adolescentes,
principalmente) das comunidades do Baixo Salitre têm como perspectiva o
assalariamento nas lavouras dos perímetros irrigados, pois a produção voltada para o
autoconsumo representa, para eles, uma possibilidade remota porque, após a
consolidação da irrigação nessa região pelas políticas públicas, cada vez a venda da
força de trabalho nos projetos de irrigação tornou-se a única fonte de renda para muitas
famílias.
As ações de mobilização têm motivado as comunidades e inserido os jovens no
movimento de resgate das antigas práticas socioculturais, num outro contexto histórico
327
diferente daquele vivenciado por seus antepassados (pais e avós). Quando utilizamos o
termo “resgatar”, é preciso esclarecer que esse processo não representa uma tentativa de
trazer do passado tradições desencaixadas e esvaziadas de conteúdo social, ou seja, um
tipo de imposição aos costumes atuais. Os anacronismos devem ser evitados quando se
trata da mobilização social, porque a dinâmica espacial traz em seu cerne as marcas do
tempo. Por isso, ter clareza sobre as limitações destas ações, como deflagradoras de
mobilização social, pressupõe uma condição elementar para a promoção da coesão entre
os sujeitos, no campo de lutas por interesses coletivos. Os componentes político e
ideológico não podem ser secundarizados no palco da luta de classes, cada vez mais
fragmentada e heterogênea. Embora as lideranças tenham percebido a importância dessa
estratégia para atrair interlocutores, muitas pessoas, por motivos diversos, distanciaram-
se das associações comunitárias, fragilizando as ações de enfrentamento ao Estado e ao
capital. Outros, mesmo integrando essas entidades, pouco participavam dos momentos
de discussões sobre assuntos de interesse coletivo, como o da chegada da Agrovale ao
Projeto Salitre e o daimplantação do Eixo Sul158 da transposição do São Francisco, que
impactarão diretamente o vale do Salitre.
A (Re)Existência camponesa não significa necessariamente a participação dos
sujeitos nos movimentos sociais, embora esta seja a maneira de maior destaque e
visibilidade. Há outros exemplos menos notórios sob o ponto de vista de sua
abrangência, porém não menos importantes, porque agregam sujeitos que não tiveram
em sua trajetória um envolvimento político-ideológico com os movimentos sociais.
Considerando essas particularidades, Fabrini (2007, p. 30) afirma:
Neste sentido, o camponês, organizado nos movimentos sociais ou
fora deles, numa prática de relações sociais “geografada” localmente,
desenvolve um conjunto de manifestações que garante sua existência
e, conseqüentemente, incomoda a parcela dominante da sociedade que
não lhe reconhece como sujeito e classe social. Portando, é possível
concluir que a luta camponesa é mais ampla do que os movimentos
sociais, ou seja, existe um “movimento camponês” que não se realiza
exclusivamente nos movimentos sociais.
A territorialização camponesa no espaço criado para enaltecer o
agrohidronegócio (a FENAGRI) e a promoção do resgate das práticas socioculturais das
158 A Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) contratou
estudo de viabilidade técnica e econômica da transposição do Eixo Sul do Rio São Francisco. Caso seja
autorizada, a obra contará com investimentos de cerca de R$ 4 bilhões, para construir aproximadamente
400km de canal que levará a água do São Francisco para a Barragem de São José. A obra contemplará a
Bahia, garantindo o suprimento hídrico das bacias hidrográficas de Tatauí, Salitre, Tourão/Poções,
Itapicuru e Jacuípe.
328
comunidades salitreiras têm incentivado novas sociabilidades e novos territórios são
forjados, criando pontos de tensão entre os agentes hegemônicos, porque trazem à tona
outras realidades do campo, muitas vezes escamoteadas/negadas pelos discursos e ações
do Estado. Por outro lado, a tentativa de agregar as comunidades através de atividades
culturais constitui uma estratégia para incorporar aqueles sujeitos para os quais a luta
pela terra e pela água não se constitui uma realidade objetiva. O hábito de reunir-se,
mesmo que de forma “descompromissada”, representa uma possibilidade real de
fortalecimento comunitário, criando as condições favoráveis para a introdução de uma
discussão direcionada para a questão da luta pela terra e pela água. Especificamente
nesse contexto, a terra é o elemento que une os sujeitos, e a água representa a condição
para a reprodução da família por meio do trabalho.
Porém, esse esforço para agregar os sujeitos/comunidades sem, necessariamente,
uma perspectiva delimitada de enfrentamento político pode enfraquecer as ações de luta
pela terra e pela água no vale do Salitre. Isso pode ocorrer, porque o campo é um espaço
de luta, um território em conflito, onde há, consequentemente, a presença de agentes
antagônicos que buscam impor seus interesses sobre os demais, sobrepujando-os,
inclusive, por meio da imposição de novas lógicas que interferem diretamente em seus
modos de vida. A luta fragmentada/desarticulada ou a organização descaracterizada do
conflito favorece o controle social por parte do capital, que age justamente num aspecto
essencial para o campesinato, ou seja, o trabalho, cuja historicidade encontra-se atrelada
a outros elementos fundamentais para a recriação camponesa: a terra, a água e a família.
Reconhecer essa limitação representa um aspecto importante para que sejam construídos
vínculos não apenas pautados em laços de solidariedade e parentesco, transcendendo-se
para o engajamento político, de modo a construir forças locais para o enfrentamento ao
capital e ao Estado e a superar as travagens existentes no contexto da luta de classes.
329
CONSIDERAÇÕES FINAIS
AGROHIDRONEGÓCIO E LUTA ANTICAPITAL: PENSANDO A
CONSTRUÇÃO DOS ESPAÇOS DE ESPERANÇA
Hay una relación clara entre la explotación y
la dominación: No toda dominación implica
explotación. Pero ésta no es posible sin
aquella. La dominación es, por lo tanto, sine
qua non del poder, de todo poder.. Esta es
una vieja constante histórica. La producción
de un imaginario mitológico es uno de sus
más característicos mecanismos. La
“naturalización” de las instituciones y
categorías que ordenan las relaciones de
poder que han sido impuestas por los
vencedores/ dominadores, ha sido hasta
ahora su procedimento específico.
(QUIJANO, 2000, p. 379. Grifos do autor).
330
Imersas em decisões e posicionamentos políticos, ideológicos e teórico-
conceituais, as reflexões que colocamos sob o crivo da crítica científica são construções
do pensamento elaboradas a partir do mergulho na historicidade dos conflitos pela terra
e pela água no Semiárido baiano e na sociabilidade de “homens simples” (MARTINS,
2008), ou seja, dos camponeses caatingueiros e suas distintas identidades
territoriais/laborais. Essencialmente fluido, o fenômeno analisado não admite
concepções engessadas por esta ou aquela matriz teórica e, ao se ignorar a riqueza e a
complexidade da teia de relações estabelecidas entre os sujeitos, no front de batalha
contra as ações dos atores hegemônicos, corre-se o risco de interpretar inviesadamente
os fatos, impedindo-os de serem entendidos dialeticamente, de fora para dentro e vice-
versa. Essa possibilidade apresentou-se para nós, durante toda a pesquisa, como o “fio
da navalha”, pois, na condição de filho de camponeses caatingueiros com profundo
conhecimento da labuta cotidiana desses sujeitos para permanecerem na terra de
trabalho, foi necessário desconstruir muitas ideias formuladas ao longo da vida e
interpretar o fenômeno à luz da ciência geográfica.
Relegados muitas vezes à condição de coadjuvantes, os camponeses e povos
tradicionais vivenciaram ao longo dos últimos 40 anos os efeitos da atuação do Estado e
do grande capital, num constante reordenamento espacial para atender a interesses de
uma minoria. Na tentativa de fazer o enfrentamento, esses sujeitos procuram adotar
estratégicas diversas, com vistas a alcançar a emancipação, o direito a existir e resistir à
concepção de inevitabilidade do desenvolvimento sob os moldes eurocêntricos.
Impregnados da ideologia do desenvolvimentismo, os projetos executados pelo Estado
no Semiárido brasileiro estão atrelados à macroestrutura do poder do capital, cuja
sustentação se dá mediante fortes campanhas midiáticas. Promotores de iniquidade, de
desterritorialização e de profundas alterações na dinâmica socioespacial das regiões
onde estão alocados, esses empreendimentos são utilizados, em discursos inflamados e
utópicos, para veicular a ideia de que são os responsáveis por reduzir a pobreza e as
desigualdades regionais.
A escolha do tema e do recorte espacial para a pesquisa refletiram o desejo do
pesquisador de apreender o movimento do real, suas contradições e relações
multiescalares, visto que a expansão do agrohidronegócio no Semiárido baiano ocorre
em decorrência de uma série de políticas públicas, de projetos e programas
governamentais, aos quais se atribuem um caráter civilizatório, enquanto os modos de
331
vida e a organização social dos camponeses e povos tradicionais são ultrajados, sendo
estes sujeitos considerados obstáculos para o progresso.
Assim, trabalhamos com a hipótese de que as políticas públicas voltadas para os
projetos de irrigação implementados pelo Estado no Semiárido baiano promovem a
territorialização do agrohidronegócio e geram disputas territoriais e de classes,
expressas por meio dos conflitos pela terra e pela água. Terra de trabalho e água de
trabalho são disputadas por agentes antagônicos e sob perspectivas totalmente díspares,
pois, para uns, o domínio desses bens naturais significa a possibilidade de locupletar, ao
passo que, para outros, representa a condição precípua para a sua reprodução como
sujeitos detentores de um ethos camponês.
O reordenamento do território passa a ser definido por interesses externos,
objetivando a atender às demandas de grandes grupos econômicos e do capital
financeirizado, de tal forma que as políticas públicas voltadas para a irrigação têm um
papel fundamental na introdução e na consolidação de um modelo de agricultura
altamente insustentável e gerador de desigualdades sociais. Atrelados à “modernização”
da agricultura no Semiárido baiano, ocorrem processos destrutivos, como a
desterritorialização camponesa, a concentração e valorização fundiária, conflitos por
terra e por água, a precarização das relações de trabalho e a intensificação do uso de
agrotóxicos.
Num primeiro momento, procuramos detalhar o processo de construção da
pesquisa – as opções e escolhas feitas, o recorte espacial, o caminho percorrido, os
sujeitos de quem se fala –, de modo a situar a maneira como o tema do
agrohidronegócio seria abordado no corpo do trabalho, com vistas a evidenciar as
contradições inerentes ao seu expansionismo destrutivo. Situamos temporalmente os
fenômenos analisados, de modo a entender como as decisões tomadas pelo Estado,
importantes para o desenvolvimento das forças produtivas, não conduzem a uma
redução das desigualdades, nem mesmo promovam a emancipação do trabalhador. Do
mesmo modo, aprofundamo-nos no universo dos sujeitos da pesquisa, de modo a
entender os diferentes posicionamentos, ações e formas e interpretar a realidade a partir
das identidades territoriais.
Para negar o corolário do desenvolvimento, fizemos uma digressão sobre as
políticas públicas de irrigação implementadas pelo Estado, com foco na realidade da
região Nordeste brasileira, para demonstrar como os investimentos públicos
direcionados para o Semiárido têm asseverado os conflitos e as contradições em
332
decorrência da tirania desumanizadora do capital. As áreas/regiões receptoras dos
investimentos públicos através dos perímetros irrigados são exatamente as mesmas onde
o agrohidronegócio busca territorializar-se, gerando fraturas no tecido social, cujos
antagonismos evidenciam o fetichismo do capital pelos territórios sob o domínio dos
camponeses e de povos tradicionais. Na esteira da modernização, a perspectiva
desenvolvimentista pautada na criação de perímetros irrigados é resgatada nos anos
1990, em resposta às demandas da economia globalizada, contando com investimentos
do PAC.
É nesse contexto que uma contradição se faz claramente visível, pois, constatou-
se haver uma sobreposição de investimentos para promover as condições favoráveis à
expansão da fruticultura irrigada voltada para o mercado externo ou, ainda, à produção
de agrocombustíveis em áreas de sequeiro e nos perímetros irrigados, conforme é a
perspectiva do Programa BAHIABIO implantado pelo governo estadual. Este não é um
caso isolado, pois a “mão invisível” do Estado, em suas múltiplas personificações, tem
atuado na modernização dos perímetros irrigados existentes, ou mesmo na construção
de novos espaços, travestindo-se com o discurso do desenvolvimento regional para
justificar os investimentos e segregar as populações locais e utilizando-se de regras
pseudodemocráticas para selecionar os beneficiados com capacidade técnico-econômica
para ocupar esses espaços. Para eliminar possíveis resistências aos imperativos do
capital, o Estado tem utilizado o “[...] ‘progresso’ como álibi para esmagar vidas
humanas em uma escala maciça” (MÉSZÁROS, 2007, p. 72, grifo do autor), de modo a
desonerar quaisquer críticas relacionadas aos investimentos feitos, pois, no contexto
atual, marcado por forte dormência do mercado de trabalho e com milhões de
desempregados em todo o mundo, colocar-se contrário à execução de projetos
sustentados pelo discurso da geração de emprego e de renda torna-se, antes de tudo,
uma postura imoral e desumana.
Problematizamos como o Estado, em pleno século XXI, resgata e reformula o
núcleo duro do planejamento regional para o Semiárido, idealizado e posto em execução
na década de 1970, ao projetar a agricultura irrigada como responsável pela grande
mudança histórica das desigualdades regionais. Na verdade, mesmo com diversos
estudos colocando em xeque a viabilidade econômica dos investimentos públicos feitos
em irrigação, o Estado continua pensando o Semiárido a partir de uma perspectiva
insustentável, com o apoio irrestrito à fruticultura irrigada e, mais recentemente, à
produção dos agrocombustíveis em projetos de irrigação, ambas altamente dependentes
333
de grandes volumes de água. As contradições vivas não estão limitadas à mera exclusão
dos camponeses do acesso aos benefícios decorrentes dos investimentos em projetos de
irrigação, pois abarcam também a sua inserção marginal no processo produtivo, como
mão de obra barata a ser explorada nos territórios do agrohidronegócio.
Do outro lado e na rota do desenvolvimento, estão os camponeses e povos
tradicionais historicamente ocupantes das áreas cobiçadas pelo grande capital, alvo de
interesses econômicos e para onde convergem as ações políticas com a finalidade de
“liberar” a terra do jugo do atraso e disponibilizá-la para o progresso, transformando
esses espaços em territórios em disputa. Nesse sentido, o poder político e ideológico das
personas do capital coloca em questão os direitos que camponeses e comunidades
tradicionais têm à terra como meio de vida e de afirmação de sua identidade territorial,
ao disseminar implacavelmente a ideia de que não há alternativa ao modelo de
desenvolvimento posto para a sociedade atual. A noção predominante no contexto dos
programas e projetos postos em execução pelo Estado traz em sua gênese a
conformação de forças propositadamente imbuídas do esmagamento de todo e qualquer
movimento de resistência, utilizando o discurso do progresso para legitimar falsas
demandas e escamotear possíveis impactos negativos advindos da implementação de
tais medidas desenvolvimentistas. O “consenso” serve para suplantar as falhas e os
defeitos crônicos dessa política que concentra riquezas e fortalece o antagonismo de
classes no Semiárido baiano, ao passo que o papel de salvaguardar a reprodução do
metabolismo social do capital está diluído, falseadamente, nas ações de acomodação da
massa de camponeses, de povos tradicionais e de trabalhadores das periferias urbanas
nas “ilhas do agrohidronegócio”, encravadas no sertão da subsistência forçada, como
peças importantes para a produção de riquezas mediante a exploração da força de
trabalho e da mais-valia.
A Política de Irrigação Nacional (em seu passado e seu devir) nada mais é que
uma resposta à necessidade de reorganizar o espaço para atender aos mecanismos de
acumulação flexível. A acomodação dessa política teve como resultado a criação de
enclaves, com destaque para os fixos e fluxos – polos de irrigação ou “cidades do
agronegócio” –, conforme destaca Elias (2006), regiões para onde convergem os
investimentos públicos visando a atender às demandas do capital, principalmente no
tocante à disponibilidade hídrica e à oferta de terras. Tem-se, nesse contexto, um
processo de modernização conservadora da agricultura regional, sem haver
transformação na estrutura fundiária e hídrica, visto que terra e água continuam
334
concentradas sob o poder de poucos. Esse conjunto de ações tem garantido ao grande
capital as condições favoráveis à sua territorialiazação, além de criar uma instabilidade
no campo e gerar estranhamento no interior da classe trabalhadora. Diante disso, o
contexto da luta pela terra e pela água faz-se num cenário em que o agrohidronegócio é
reconhecido como o modelo que “dá certo” e cuja produção, com alta tecnologia,
representa riqueza e modernidade, conforme destaca Thomaz Junior (2009) ao analisar
o processo de apropriação, pelo grande capital, de terras em áreas com significativa
disponibilidade hídrica, como se verifica no Centro-Sul do Brasil.
Assim, as tramas e urdiduras do agrohidronegócio revelam as estratégias
adotadas pelo grande capital e pelo Estado para usurpar os territórios camponeses, ao
destruir as condições em que estão assentadas relações não capitalistas de produção,
como aquelas existentes entre os camponeses das comunidades dos vales dos rios Verde
e Salitre, nas regiões do Médio e Submédio São Francisco, na Bahia. Ao analisarmos a
associação entre o Estado, os proprietários de terra e o grande capital, ficaram evidentes
como foram feitas, ao longo das últimas quatro décadas, as operações de “limpeza” da
área e a legalização das terras griladas pelo poder público, para viabilizar a entrega de
terras públicas (devolutas) ao domínio do capital. A grilagem foi, ao longo da história
do vale do São Francisco, um mecanismo recorrente e importante na apropriação pelo
capital das terras de uso coletivo ou sob o domínio dos camponeses, como estratégia de
manutenção dos níveis de geração e acumulação de riquezas.
Conjugando uso de insumos (agrotóxicos, fertilizantes, maturadores,
combustíveis, etc.), máquinas agrícolas e terras irrigáveis, o grande capital e o Estado
criam conjuntamente as tramas de um novo cenário desenvolvimentista para o
Semiárido, pautado, sob nossa concepção, na “colonialidade do poder” (QUIJANO,
2000), com bases arcaicas e corroídas pelo tempo. Em decorrência da necessidade de
reestruturar produtivamente os espaços, há uma atualização do colonialismo, tal como
interpretado por Casanova (2006), havendo uma utilização exacerbada do prefixo “neo”
e/ou do adjetivo “novo” para nominar antigas formas de planejar e executar as políticas
públicas e reordenar o território. Não obstante, no contexto atual, essas formas
reaparecem abrindo – novas e velhas – perspectivas econômicas para sustentar as
facetas da reprodução do capital. Isso fica explícito quando analisamos o “Novo Modelo
de Irrigação”, cuja maior novidade é o incentivo ao estabelecimento de parcerias
público-privadas para fazer a gestão dos perímetros irrigados, mais um elemento
335
potencializador da exclusão a que as populações atingidas pelos projetos de irrigação
em todo Semiárido brasileiro estão sujeitas.
Ante as crises cíclicas do capitalismo e a urgência por parte do capital em
incorporar novos espaços à sua lógica sociorreprodutiva, tem-se verificado o avanço
deste sobre áreassob o domínio dos camponeses, povos indígenas e comunidades
tradicionais, pouco integradas à economia globalizada e situadas fora do mercado de
terras, tendo, como característica marcante, a variedade de formas de ocupação
tradicional das terras e dos usos da água. Os territórios desenhados pela ação do capital
estão inseridos no modelo de agricultura que conta com crédito rural, subsídios públicos
(isenção de impostos) e forte apoio midiático, cujas práticas agrícolas são altamente
dependentes de insumos e agrotóxicos (RIGOTTO et al., 2011), das quais destacamos a
fruticultura irrigada e os agrocombustíveis. São, notadamente, as duas bases agrícolas
da agricultura empresarial no contexto das políticas voltadas para a implantação e/ou a
modernização dos perímetros irrigados no Semiárido nordestino. Desse modo, “[...]
mesmo onde a irrigação introduziu uma agricultura moderna no semi-árido, a
“modernização” foi conservadora, inclusive da estrutura fundiária.” (BARCELAR,
2000, p. 14)
Por outro lado, a criação dos perímetros irrigados assume um papel central no
processo de “higienização” do Semiárido, pois sabe-se que o modo de vida do
camponês caatingueiro (em suas diferentes identidades e expressões laborais) tem sido
alvo de constantes ataques políticos e ideológicos por parte dos setores hegemônicos da
sociedade, para quem estes sujeitos estão predestinados a ser libertos do jugo da terra e
da agricultura de subsistência, mediante a venda da força de trabalho nos perímetros
irrigados, sob o domínio do agrohidronegócio. Atuando de fora para dentro (forças
centrípetas), o Estado tem assumido suas funções legais e políticas, ao compor a
dimensão coesiva entre o agrohidronegócio e a produção camponesa na perspectiva da
coexistência desigual de ambos. Ao negar a existência das disputas territoriais e de
classes no contexto dos perímetros irrigados, há um falseamento da realidade marcada
pelos conflitos e pelas ocupações, em que camponeses e movimentos sociais
reivindicam o acesso à terra e à água.
Enfatizamos, ao desnudar as tramas do agrohidronegócio no Semiárido baiano,
um conjunto de mediações que devem ser vistas como partes de um sistema orgânico
expresso pela associação do “Senhor capital” e da “Senhora terra”, aumentando as
iniquidades há muito tempo instauradas e levadas adiante através dos investimentos
336
feitos pelo Estado. O rompimento da relação metabólica terra e água coloca-se como um
elemento importante a ser considerado, porque envolve dimensões e possibilidades de
uso e de ordenamento do território. Nesse sentido, o acesso à terra e à agua são
fundantes para que camponeses e povos tradicionais possam reproduzir, na qualidade de
ser social, pela via do trabalho. Dadas as determinações estruturais antagônicas, a
usurpação da terra num primeiro momento e sua posterior concessão temporária aos
camponeses, via pagamento de renda da terra, funcionam como uma dupla estratégia
para os grupos econômicos. Primeiro, a terra é transformada em mercadoria – terra de
negócio – de onde se extrai renda e sua função diverge daquela atribuída pelos
camponeses, que a têm como terra de trabalho. Por outro lado, a terra funciona, em
determinados momentos, como reserva de valor a ser utilizada para acessar recursos
públicos, quando há, por parte do Estado, o interesse em fazer a aquisição de terras para
executar algum empreendimento.
Por certo, as políticas implementadas pelo Estado com o propósito de promover
a expansão da agricultura irrigada no Semiárido nordestino tem favorecido,
sobremaneira, o mercado de terras, mediante crescente valorização fundiária de antigas
áreas ocupadas pela agricultura camponesa ou pela pecuária bovina, as quais agora
passam a contar com uma infraestrutura hídrica disponibilizada pelo Estado para que se
implantem os perímetros irrigados. Quando os perímetros irrigados são apresentados
como a alternativa viável - econômica, social e ambiental – para a região semiárida,
seus apologistas não hesitam em escamotear os mecanismos excludentes, inerentes ao
seu processo de implantação, como a desapropriação, em muitos casos, forçada,
utilizando-se da prerrogativa do “interesse social” para legitimar a expulsão dos
camponeses de seus territórios bem como dos mecanismos “democráticos” usados para
seleção dos irrigantes que ocuparão os lotes.
As alianças entre o Estado, o capital, as empreiteiras e as elites locais constituem
um círculo vicioso estabelecido para superar as travagens ao crescimento econômico
regional. Há que se destacar que a movimentação do mercado de terras no vale do rio
Verde foi intensa desde os anos de 1970, onde terras devolutas originárias do período
das sesmarias foram griladas por Airton Neves Moura e posteriormente adquiridas pela
CODEVERDE, cuja presença na região é marcada por aspectos nebulosos e atrelados
ao Estado.
A CODEVERDE tornou-se a maior proprietária de terras na região do vale do
rio Verde – suas propriedades abrangiam terras nos municípios de Xique-Xique,
337
Itaguaçu da Bahia e Jussara – e, embora parte dessas terras tenha sido indenizada pela
CODEVASF, a Companhia de Desenvolvimento Rio Verde ainda possui grande
extensão de terra nas proximidades do projeto de irrigação. Além disso, há, por parte
desta Companhia, o interesse em concorrer ao processo em que será escolhida a
empresa-mãe que fará a gestão do perímetro irrigado, de acordo com informações
repassadas pelo órgão responsável pela execução do empreendimento.
Grilagem, ameaças, despejos, processos fraudulentos de compra foram algumas
das estratégias utilizadas pelos grileiros para fazerem a “limpeza” da área onde foi
implantado o Projeto de Irrigação Baixio de Irecê, o maior perímetro irrigado público da
América Latina, embora a CODEVASF não reconheça esses fatos, além de admitir que
o referido empreendimento não é direcionado para os camponeses desterritorializados,
uma vez que, segundo a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e
do Parnaíba, esses camponeses não dispõem de condições financeiras e não estão aptos
à agricultura irrigada sob os moldes empresariais. Nesse cenário polêmico e marcado
por contradições, verifica-se a ocorrência de conflitos pela terra e pela água como
elementos das disputas territoriais e de classe, envolvendo os camponeses e a
CODEVASF, a qual utiliza de diversos mecanismos para cooptar os camponeses ou
ainda invisibilizar e deslegitimar as reivindicações e a organização das famílias
camponesas atingidas com a implantação do empreendimento.
Nas comunidades atingidas pelo Projeto de Irrigação Baixio de Irecê, a luta pela
terra e pela água protagonizada pelos camponeses conta com o apoio da CPT, que faz a
mobilização social, realizando encontros para discutir as medidas a serem adotadas no
enfrentamento à CODEVASF. Fruto desse trabalho de mobilização, a realização de
audiências públicas com a presença dos envolvidos no processo (camponeses e
CODEVASF) tem permitido ampliar o debate sobre os impactos do empreendimento
para as comunidades localizadas em seu entorno, bem como evidenciar as condições
socioeconômicas das famílias camponesas dessa região, como forma de questionar a
legitimidade do montante de recursos públicos investidos na obra, já que o
empreendimento será voltado para as empresas, restando aos camponeses, como única
alternativa, serem incorporados como mão de obra barata e sem qualificação.
Com sua atuação junto às comunidades, a CPT tem conseguindo avanços
importantes enecessários à sua manutenção no contexto da luta pela terra e pela água,
cujo maior desafio tem sido estabelecer uma unidade entre as comunidades, para que
elas possam travar uma luta unificada contra os processos desterritorializantes
338
encampados pelo Estado nessa região. O reordenamento territorial para atender aos
interesses e aos ditames do grande capital tem levado as comunidades a um processo de
mobilização, com destaque para as identidades territoriais no contexto da unificação da
luta. A chegada do MST ao Projeto de Irrigação Baixio de Irecê gerou conflito entre
camponeses e acampados, revelando as fissuras e a fragmentação no cerne da classe
trabalhadora e dos movimentos de luta pela terra. Essa incompatibilidade de
perspectivas, tanto políticas quanto ideológicas, gerou conflitos e criou travagens para
que camponeses e acampados pudessem elaborar uma pauta única de reivindicações.
Tal contradição não inviabiliza o movimento de resistência encampado pelos
camponeses e acampados do MST, muito embora enfraqueça a possibilidade de resistir
ao controle social executado pelo capital, o que, de fato, impõe limites à
recriação/reprodução do campesinato. Assim, Thomaz Junior (2012, p. 7) enfatiza que
“[...] é por meio das contradições imanentes ao metabolismo do capital que devemos
entender a existência camponesa”, cuja negação compreende uma possibilidade
histórica no interior do sistema vigente vinculado à produção de mercadorias, em que os
recuos e avanços são próprios da dialética da luta e da resistência.
É necessário sublinhar aqui as disputas territoriais e de classes no campo trazem
à tona o desejo de fortalecer as relações de poder a partir do pensamento único, como
estratégia para perpetuar antigas estruturas já desgastadas pelo tempo. Esse pensamento
hegemônico tem demandado constantes rearranjos por parte do capital, no sentido de
conferir-lhe um caráter moderno, embora muitas de suas práticas sejam arcaicas e
caracterizadas pelo dipolo barbárie e modernidade. O agrohidronegócio em termos
globais representa, à luz dos discursos hegemônicos, a oportunidade de se pôr fim às
iniquidades no campo, com vistas à promoção do crescimento econômico e à redução da
pobreza. Entretanto, a realidade atual desnuda as contradições desse modelo de
desenvolvimento para o campo marcado pela concentração fundiária; a superexploração
do trabalho; o trabalho em condições análogas à escravidão; a produção de
commodities; o uso de agrotóxicos e a consequente contaminação dos trabalhadores, do
ambiente e dos alimentos; a introdução da biotecnologia com organismos geneticamente
modificados e a supressão de práticas socioculturais pautadas no uso racional dos
recursos naturais. Sobre esse modelo agroexportador, Porto-Gonçalves e Santos (2012,
p. 80) destacam que se, “de um lado, vemos entre os apologistas desse modelo o
destaque para seu êxito econômico, é possível identificarmos o preço que a sociedade
339
brasileira vem pagando, sobretudo os grupos sociais que vêm sendo vítimas da violência
imanente a esse processo”.
Para se compreender melhor a complexa trama de relações e a abrangência dos
rearranjos territoriais e de classes no âmbito da expansão do agrohidronegócio no
Semiárido baiano, fez-se necessário reconhecer a pluralidade dos sujeitos e de suas
identidades territoriais/laborais, por entendermos que a luta pela terra e pela água, nessa
região, envolve sujeitos com distintas perspectivas políticas e ideológicas. Reconhecer e
valorizar essas diferenças permitiu-nos que chegássemos ao entendimento de que as
travagens do processo social materializadas no espaço e seu constante redesenho a partir
das relações de poder – ou seja, a constituição dos territórios em disputa – envolvem
territorialidades muitas vezes construídas a partir do estranhamento entre aqueles que
protagonizam as lutas de resistência anticapital e contra-hegemônicas.
Se o consenso não se fez presente nas ações entre as comunidades atingidas pelo
Projeto de Irrigação Baixio de Irecê e os acampados do MST, de outra forma exigiu que
ambos repensassem as estratégicas adotadas até o momento, objetivando ponderar
outras possibilidades. Entendemos que tal conflito promoveu uma sociabilidade
estranhada, permeada pelo medo e por maneiras distintas de fazer resistência, trazendo à
tona as profundas fissuras na subjetividade da classe trabalhadora, cujos diferentes
elementos e perfis devem ser considerados ou particularizados na análise da dinâmica
territorial da relação capital-trabalho. Distintas formas de luta e de resistência geram
diferentes desdobramentos entre os sujeitos e sobre o espaço, e a leitura da pluralidade
das combinações e das contradições existentes por dentro das ações contra-hegemônicas
requer o mergulho profundo para entender como as relações, ora antagônicas ora
complementares, são construídas pelos atores sociais.
O avanço do capital sobre os mananciais hídricos no Semiárido dá-se de maneira
frenética e conta com amplo apoio do Estado, seja através da criação de leis, seja
mediante a implementação de planos e programas governamentais. Os desdobramentos
dessas ações são diversos, incluindo o fomento das disputas territoriais envolvendo o
acesso à terra e à água, conforme registrado nas regiões do Médio e Submédio São
Francisco e esse problema tende a agravar-se ainda mais, frente à perspectiva de
expansão do agrohidronegócio (fruticultura e agrocombustíveis).
Se, por um lado, os camponeses historicamente enfrentaram obstáculos ao
acesso à terra e à água de trabalho, de outro, os latifundiários sempre usufruíram da
condição de “senhores das terras/águas”, poder que lhes foi atribuído ainda
340
recentemente pelo próprio Estado, ao garantir que recursos públicos fossem utilizados
para construir obras de segurança hídrica em propriedades particulares. Tais
contradições emergem com força, quando analisamos os conflitos pela água ocorridos,
ao longo dos últimos 30 anos, no vale do Salitre, em decorrência da “modernização” da
agricultura na região e do aumento excessivo da demanda por água, ocasionando mortes
num ambiente extremamente conflituoso. Haja vista que a bacia do rio Salitre
transformou-se num verdadeiro campo de batalha entre salitreiros, CODEVASF,
acampados do MST e grandes empresas entre as quais se destaca a AGROVALE. Nesse
cenário de “modernização”, houve uma destruição das relações não capitalistas de
produção, transformando o camponês num trabalhador para o capital – carapaça do
tempo –, sujeito fundamental para a produção de riquezas e extração de mais-valia nos
perímetros irrigados.
Incorreríamos num erro gravíssimo caso disséssemos que o conteúdo territorial
do Semiárido baiano não tenha sofrido alterações ao longo das últimas quatro décadas,
ao passo que estaríamos cometendo um equívoco banal se desconsiderássemos que a
estrutura política e econômica está assentada em ranços e práticas arcaicas, de modo a
agregar aspectos modernos e conservadores num mesmo espaço. As novas articulações
econômicas do Nordeste semiárido refletem uma tendência global do capitalismo, que é
o avanço das forças produtivas pautado em formas regressivas, sendo estas
fundamentais para a manutenção e para a ampliação das taxas de lucro. Quando
modernas plantas agroprocessadoras são instaladas em pleno Semiárido, rodeadas por
vastas plantações verdes e exuberantes, ou, ainda, quando centenas de containers
partem dessa mesma região, levando frutas para os mercados europeu e estadunidense,
defrontamo-noscom os territórios de “produção de riqueza e subtração da riqueza da
produção” (SOUSA, 2013), com a atuação hegemônica do capital, mediante a
associação com o trabalho assalariado desqualificado e desassistido pelas leis
trabalhistas.
Assim, informalidade, precarização do trabalho, mão de obra barata compõem
faces da mesma moeda, ou seja, dos projetos desenvolvimentistas implantados no
Semiárido baiano, cuja higienização do arcaísmo e transmutação para o moderno se dá
por meio dos imensos canais de irrigação, da suntuosidade dos perímetros irrigados, da
beleza das frutas e pelo discurso da “sustentabilidade” e da responsabilidade ambiental,
como apregoa a Agrovale, dona de grandes extensões de canaviais em Juazeiro.
341
Barbárie e modernidade constituem o par dialético no contexto da expansão do
agrohidronegócio no Semiárido baiano. Então, libertar o trabalhador camponês das
amarras do capital apresenta-se como um desafio e o fardo do tempo histórico atual
(MÉSZÁROS, 2007), pois os projetos de irrigação em execução pelo Estado nessa
fração do território nordestino têm gerado inúmeros conflitos no acesso à terra e à água,
além de promover a subordinação do trabalhador aos ditames do capital, seja pela venda
da sua força de trabalho para o capital, seja pela via do consumo de máquinas, de
implementos agrícolas e de agrotóxicos, ou seja, o capital apropria-se da renda da terra
sem necessariamente ser o seu dono. Defendemos, nesse contexto, os projetos de
irrigação não como “fábulas” criadas pelo Estado, mas como possibilidade de viabilizar
terra e água para a produção de alimentos sob o controle dos camponeses e voltada para
os mercados locais. Quando os camponeses ocupam os projetos de irrigação Salitre e
Baixio de Irecê, ou mesmo reivindicam seus territórios junto ao Estado, estão, na
verdade, vislumbrando outras possibilidades para contrapor à territorialização do grande
capital e o consequente monopólio do território, de modo a preservar seus modos de
vida, com relativa autonomia em relação aos totalitarismos do sistema capitalista.
Enxergar o caráter emancipatório das lutas travadas pelos camponeses e
movimentos sociais contra os empreendimentos do Estado a serviço do grande capital
no Semiárido baiano faz-nos acreditar na possibilidade real de uma sociedade menos
excludente e pautada na mudança sistêmica, na superação das travagens que colocam
em risco as sociabilidades camponesas. Pensar como os sujeitos constroem e
reconstroem cotidianamente seus territórios requer urgentemente a adoção de estratégias
para combater as barbáries inerentes aos processos mutilantes e degradantes, intrínsecas
ao modelo de desenvolvimento adotado para o Semiárido baiano. Assim, a luta torna-se
uma condição essencial para a (Re)Existência!
342
REFERÊNCIAS
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Irecê.
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