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1 Paulo Ghiraldelli Jr Para Compreender a Filosofia de Donald Davidson [versão experimental] São Paulo - 2007

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FILOSOFIA

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Paulo Ghiraldelli Jr

Para Compreender a Filosofia de Donald Davidson

[versão experimental]

São Paulo - 2007

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[Dedicatória]

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Sumário

Introdução

1. O filósofo2. Metafísica e epistemologia

2.1 O fisicalismo 2.2 A teoria causal do conhecimento

3. A Antropologia filosófica4. O Método

Parte 1

5. Teoria da ação5.1 Razões são causas5.2 Ações intencionais5.3 A escolha da razão – Frank Ramsey

Parte 2

6. Teoria da interpretação6.1 Quine e o significado6.2 Chegando à convenção T6.3 A Teoria da verdade de Tarski6.4 A comunicação humana

Parte 3

7. Linguagem e pensamento7.1 Identidade entre eventos físicos e mentais7.2 O mental é anômalo7.3 A linguagem e o problema do relativismo7.4 Linguagem e percepção7.5 Linguagem, anti-representacionismo e slingshot7.6 O pensamento, o ceticismo e a abordagem externalista7.7 O que existe

Conclusão [Falta]

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Introdução

1. O filósofo

Donald Davidson ficou conhecido entre amigos, alunos e colegas como um homem especial. Ele foi o tipo de pessoa que os de minha geração, ao estudar filosofia, foram ensinados a tomar como o modelo do autêntico filósofo: sábio, porém despretensioso; arejado, mas não vanguardista; específico, mas atento à história da filosofia e do pensamento.

Esses predicados de Davidson marcaram sua trajetória acadêmica. Manteve-se avesso ao carreirismo. Seu comportamento foi o de nunca querer tirar proveito do que viria aser a sua reputação. Uma vez famoso, seguiu igual. Aqueles que trabalham com a identificação dos locais e datas de seus papers, percebem bem tal comportamento. Davidson sempre entregou seus papers, mesmo os mais originais e revolucionários, para aqueles que simplesmente os solicitaram. Foi assim, aliás, que suas publicações se espalharam pelo mundo aparecendo em periódicos nem sempre famosos, aliás, não raro, desconhecidos de grande parte do ambiente universitário estadunidense. Estudiosos interessados mais de perto na obra de Davidson, ao percorrerem o trajeto desses papers, se sentem como que numa grande viagem por terras distantes e exóticas. De modo semelhante, o próprio conteúdo de seus textos nos dá a idéia de que Davidson os escrevia como que cumprindo um tipo de viagem fantástica, uma espécie de aventura de desbravador.

Donald Herbert Davidson nasceu em seis de março de 1917 na cidade de Springfield, Massachusetts, nos Estados Unidos da América. Faleceu em 2003.

No ano em que nasceu, a Revolução Bolchevique anunciou na Rússia o “fim da era burguesa e suas liberdades individuais”. Em 2003, quando faleceu, o império soviético, o pesadelo gerado por um belo sonho, já não existia há mais de uma década. No entanto, o perigo de sonhar não havia terminado: os Estados Unidos ainda vivem diante de um paradoxo; alguns de seus governantes acreditam poder levar a democracia “à força” para outras terras. Tivemos a época da invasão do Afeganistão, do Iraque e da repetição de situações que pareciam que iriam desaparecer, uma vez terminada a Guerra Fria.

Apesar de viver entre esses grandes acontecimentos políticos e de não ser avesso à compreensão de tais conflitos, Davidson não escreveu nenhum texto sobre filosofia política. No entanto, sua tentativa de descrever como agimos, pensamos e nos comunicamos é nuclear para aqueles que gostariam de ter uma visão filosófica quando da fixação de agendas sociais e políticas para o nosso tempo. Em âmbito mundial, o Oriente e o Ocidente ainda se entreolham com estranheza. Em cada país, minorias e maiorias fazem o mesmo. Vivemos o tempo onde cada vez mais os que são diferentes são requisitados a serem iguais e os que se tornam iguais são incentivados a agirem como diferentes – por vários tipos de comunicação. Davidson, em grande medida, descrevendo a ação, o pensamento e a linguagem, tornou-se um dos principais teóricos

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da comunicação humana, tomada a partir de um ponto de vista da filosofia contemporânea.

Davidson não escreveu sobre política, ele fez política, e de modo radical. Participou da política como guerra. Quando muitos intelectuais e filósofos chegaram aos Estados Unidos, fugindo do nazismo, Davidson fez o caminho inverso. Dirigiu-se para o Mediterrâneo, servindo como voluntário na Marinha durante a II Guerra Mundial. Nocombate ao nazismo, atuou como instrutor de equipes de reconhecimento de aviões inimigos. Participou de invasões e campanhas em terra. Entendeu tal tarefa como algo impossível de ser evitado. Não pertenceu ao Partido Comunista, mas como companheiro de homens de esquerda e tendo seus pais como pessoas de esquerda, Davidson seguiu a linha geral dos comunistas ao ver o combate contra o nazismo como um imperativo.

Os registros da vida acadêmica de Davidson não são poucos, e eles guardam datas e pessoas importantes. Teve como professores em Harvard as figuras de Alfred North Whitehead (1861-1947) e Willard Van Orman Quine (1908-2000). Este último, em vários livros de comentadores, aparece como um mestre de quem Davidson se fez discípulo. Mas isso é, em parte, um erro. Davidson foi mais um poderoso interlocutor de Quine que um discípulo.

Os interesses iniciais de Davidson por literatura e estudos clássicos não foram pequenos. Assim, sua carreira filosófica, ainda que pautada por artigos técnicos, elegantes, sempre demonstrou grande erudição. Voltando da Guerra, para Harvard, ele recebeu seu Ph.D. com uma dissertação com o significativo título de “Plato’s Philebus”, em 1949. Ele tinha, então, trinta e dois anos. Quatorze anos depois, apresentou o artigo que o tornou membro da galeria dos filósofos imortais, os que alcançam o estrelato a partir de um ponto de vista original, aquele que permite uma alteração dos rumos da filosofia. Isso se deu com o seu artigo “Actions, Reasons, and Causes”, de 1963. A partir desse texto, Davidson foi se tornando, ao longo de mais de quatro décadas de trabalho no ensino, a referência obrigatória em teoria da ação, filosofia da psicologia, epistemologia, semântica, estudos da verdade no âmbito da lógica e da metafísica, estudos sobre auto-engano e racionalidade. Na maioria de seus textos, vemos a presença de um eco dos principais temas clássicos da filosofia, que somente um genial estudioso de Platão poderia tratar da maneira que ele tratou.

Como professor no Queens College, em New York, atuou a partir de 1947. Deixou o essa instituição quando ela caiu sob administração católica, que se indispôs com estudantes e professores de esquerda. Davidson ensinou na Stanford University entre 1951 e 1967. Entre 1967 e 1981 passou por Princeton, Rockefeller e Chicago. Nos anos setenta tornou-se o presidente da “Eastern Division of the American Philosophical Society”. Sua carreira incluiu participação como professor visitante em várias universidades fora dos Estados Unidos. Estava como “Willis S. and Marion Slusser Professor Emeritus of Philosophy” na University of California, em Berkeley, quando decidiu por se submeter a uma simples operação no joelho. Faleceu após um ataque cardíaco quando daquela operação aparentemente sem risco. Deixou como viúva a filósofa Marcia Cavell, que foi sua segunda esposa, e uma filha e netos

2. Metafísica e Epistemologia

2.1 O fisicalismo

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Uma das principais tarefas a que a filosofia se propõe é a de criar uma descrição racional e abrangente do mundo, de nós mesmos e de nossas relações com o mundo. Não raro, dividimos as escolas de filosofia segundo os eixos centrais em torno dos quais estão elaboradas tais descrições. Em parte, ao seguirmos o caminho dessas descrições nos encontramos com todo o desdobrar da história da filosofia. Como a vejo, essa é uma história que começa nos antecessores de Platão (427-347 a.C.) e que pode culminar com os leitores e seguidores de Donald Davidson (1917-2003).

A história da filosofia começa com os gregos, preocupados com o estudo das “primeiras coisas” ou “primeiros princípios”. Eles não tardam em se dividir entre os que assumem a filosofia como cosmologia e os que a tomam como ontologia. São dois registros de escolas distintas: a ontologia é tarefa dos eleáticos, a cosmologia é desenvolvida pelos jônios.1

Os filósofos de Eléia, ao formularem a pergunta “o que é que há?”, que visa apontar para a essência do mundo, elaboram a resposta lógico-lingüística “o que há é o ser”. Os filósofos da Jônia, para uma pergunta semelhante, fornecem uma resposta proto-científica: elencam vários elementos que, grosso modo, indicariam que o princípio básico de tudo é a “phýsis”, que (com reservas) traduzimos por natureza. Platão, no seu objetivo de descrever o “bípede sem penas” (e sua atuação no mundo) em uma formulação mais abrangente que a conseguida pelas escolas jônica e eleática, cria a metafísica em sua formulação clássica. Nesta, o que é captado pelos sentidos (o mundo natural-material) e o que é captado pelo intelecto (o mundo dos conceitos e das formas ideais) são harmonizados em uma única descrição. A metafísica de Platão diz que o mundo é de dupla consistência: mutável, no que se refere ao que é da ordem dos sentidos, imutável, no que é da ordem do intelecto.

Em Platão, a epistemologia, ou seja, a teoria do conhecimento, não ganha a relativaautonomia que ela tem nos filósofos dos tempos modernos. A epistemologia não é, então, autônoma em relação à metafísica. Os modernos, diferentemente, separam de modo especial o conhecimento a respeito do mundo, de um lado, e o próprio mundo, de outro. Filósofos como René Descartes (1596-1650) e Immanuel Kant (1724-1804) privilegiam a epistemologia e a tomam como sinônimo de filosofia. Todavia, carreiam para a epistemologia uma característica central do platonismo, o dualismo entre o que é da ordem do sensível e o que é da ordem do conceito.

Não são poucos os filósofos do século XIX que levam a sério os sistemas duais, advogando que as relações entre nós e o meio ambiente é de duas espécies: material (ou física) e espiritual (ou mental). Para este tipo de filósofo, o ato de mover uma pedra é tomado como regido pela causalidade, enquanto que o ato de crer (e/ou dizer) que há uma pedra em nossa frente é regido pela representação. Em outras palavras: o mundo material ou físico é causal; o mundo espiritual ou mental é representacional. Segundo Wilhelm Dilthey (1833-1911) e Max Weber (1864-1920) e outros neokantianos, o mundo material ou físico deve ficar sob as explicações das ciências da natureza, que

1 Essa é uma distinção que segue, em parte, os autores que leram a Metafísica de Aristóteles (384 -322) e confiaram nela, tomando seções dela como a primeira história da filosofia. Karl Popper (1902-1994), noentanto, tem uma visão diferente desta em relação à produção dos eleáticos, em especial a de Parmênides. Para ele, Parmênides também poderia ser tomado como um cosmólogo. Cf. Popper, K. The worlds of Parmenides. Londres e New York: Routledge, 1998, pp. 111-14.

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tratam os seus fenômenos como estando sob lei de causa e efeito, e o mundo espiritual ou mental deve caber às interpretações das ciências do espírito ou históricas e psicológicas, que se habilitam a lidar com a irregularidade de situações que parecem não seguir nenhuma lei.2

Do ponto de vista da discussão em metafísica, um sistema dualista se depara com o seguinte problema: como relacionar os mundos então separados? Uma das soluções para tal questão é a de fugir do dualismo por meio do idealismo. Na sua formulação mais ampla, a doutrina idealista qualifica todas as situações e elementos como sendo da ordem do espiritual ou das idéias, ou do âmbito do supra-sensível, e mostra que acessamos o mundo na medida em que partimos do pensamento e chegamos ao que, em última instância, ainda que seja o mundo, também é pensamento. Grosso modo, temos aí a metafísica em sua manifestação mais forte, que na modernidade pode ser bem representada pelo sistema de Friedrich Hegel (1770-1831).

O contraponto ao idealismo é o materialismo. A doutrina materialista diz que todo o universo é material e o pensamento é, portanto, apenas uma forma de manifestação física, ou neurofisiológica, como diz a linguagem atual. O materialismo, no entanto, ao adotar a perspectiva das ciências naturais, que é a de não fazer “filosofia primeira” (não partir do pensamento em si para descrever o mundo, mas o conteúdo de um pensamento que postula o mundo como tendo uma realidade física exterior), ganha em seu percurso um ponto cego. Assim, a função do materialismo, para ser legítima aos olhos de um filósofo que leva a sério o método da “filosofia primeira”, tem de ser a de filosofia negativa.

Em princípio, tal método é um antídoto à metafísica. Trata-se de uma doutrina que não pode ser fundacionista, e sim apenas um elemento de contraponto ao pensamento metafísico. Nessa linha, Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973) lembram que o materialismo não afirma que o mundo é material para, então, fornecer uma descrição positiva do mundo todo e de nós. Tal doutrina afirmaria a materialidade do mundo e de nós mesmos para nos fazer ponderar algo específico a respeito da descrição da metafísica: ao querer dar conta de todos os fenômenos, a metafísica talvez esteja equivocada, pois afinal seria muita pretensão criar um sistema totalizante –imperialista3.

Apesar da advertência de Adorno e Horkheimer, uma boa parte da filosofiacontemporânea adota a perspectiva materialista ou fisicalista de modo positivo; ou seja, uma filosofia que tem como o objetivo de descrever efetivamente o homem e o seu meio ambiente e as relações entre ambos. Como podem os filósofos contemporâneos materialistas agir dessa forma?

Ao rejeitar o idealismo ou, melhor dizendo, o monismo idealista, os filósofos materialistas deveriam justificar a perspectiva de que todos os elementos individuais

2 Dilthey, W. A essência da filosofia. Lisboa: Presença, 1986; R, Rorty. Non-redutive physicalism. Objectivity, relativism and truth – philosophical papers. New York: Cambridge University Press, 1991, pp. 78-79.

3 Adorno, T. W. Terminologia filosófica – II. Madrid: Taurus, 1987, p. 197; Ghiraldelli Jr., P. O corpo de Ulisses – modernidade e materialismo em Adorno e Horkheimer. São Paulo: Escuta, 1996, pp. 19-35

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existentes são materiais. Que tipo de argumentação sustenta tal perspectiva? Eles se dizem basear nas ciências naturais. Mas pode a ciência, por ela mesma, fornecer argumentos razoáveis para tal? Tudo indica que o que ocorre é um tanto quanto o inverso: as ciências naturais, se questionadas filosoficamente, poderiam responder que elas pressupõem o materialismo; ele não seria um fundamento filosófico, mas apenasum quadro teórico amplo de pressuposições para acomodar a explicação científica. Uma boa parte dos materialistas entende que o sucesso das explicações científicas senão fornece uma evidência de tipo filosófico ao materialismo, ao menos – e isto não seria pouco – mostra conjuntos de elementos de confirmação da tese materialista.4

Richard Rorty aponta para isto como sendo o pomo de discórdia entre filósofos norte-americanos e alemães, particularmente em suas correntes mais típicas.5 Para ele, os filósofos alemães tendem a ver o materialismo e o fisicalismo como associados aoreducionismo e ao cientificismo. Inversamente, entre os filósofos norte-americanos, a filosofia alemã estaria associada ao desrespeito aos conhecimentos científicos quase que inegáveis. Rorty entende que o projeto de Donald Davidson, que ele chama de “fisicalismo não-redutivista”, é o de contribuição norte-americana para a construção de um aterro entre Alemanha e Estados Unidos, talvez entre Europa e América, uma vez que Davidson seria o responsável pela manutenção do materialismo e do fisicalismo de modo positivo, sem ceder ao reducionismo e ao cientificismo.

Até aqui, falei de materialismo e fisicalismo um tanto que indistintamente. É possível fazer distinção. O primeiro seria uma tese ontológica e, por esta via, também metafísica. O segundo seria uma posição em filosofia da ciência. A doutrina materialista apontaria para substâncias materiais ou, menos atavicamente, para objetos materiais ou físicos como elementos únicos de constituição do mundo. A doutrina fisicalista diria respeito mais à epistemologia ou mesmo à semântica, uma vez que estaria apontando apenas para a possibilidade de descrição do mundo segundo o que faz a ciência moderna, em especial as ciências naturais. Rorty, ainda que não faça tais distinções, pois ele fala apenas de teses genéricas de como a filosofia alemã vê a filosofia americana, termina por centrar sua atenção no que aqui poderíamos definir como fisicalismo. Para ele, um fisicalista é alguém que é preparado para dizer que todo evento pode ser descrito em termos micro-estruturais, uma descrição que menciona partículas elementares, e que pode se explicado por referência a outros eventos descritos dessa forma.6

O fisicalismo não-redutivista é uma posição adotada por vários filósofos atuais, cada um com suas peculiaridades. Essa doutrina se propõe a dar uma explicação, em termos físicos, para os que seriam as manifestações psicológicas, mas sem invalidar as explicações mais ou menos tradicionais da psicologia. Ou seja, o fisicalismo, para explicar o mundo mental, não tem de reduzir todas as explicações a uma linguagem que acredita que não há qualquer explicação para fenômenos psicológicos enquanto tipicamente psicológicos.

4 Moser, P. e Trout, J. D. Contemporary materialism – a reader. New York: Routledge, 1995, p. 5.

5 Rorty, R. Non-redutive physicalism. Objectivity, relativism and truth – philosophical papers. NewYork: Cambridge University Press, 1991, p. 113.

6 Idem, ibidem, p. 114.

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Davidson se mantém fisicalista e, no entanto, escapa do reducionismo. Mas, então, o que é o reducionismo, mais precisamente?

De modo menos genérico, dizemos que tal idéia está no interior do projeto do Círculo de Viena.7 Os filósofos do Círculo são conhecidos como “empiristas lógicos” ou “positivistas lógicos”. Essa escola de filosofia possui duas idéias básicas (responsáveis por qualificá-la como “empirista”). Primeiro: concede à experiência sensível um papel fundamental, e quer mostrar como os significados das sentenças podem ser expressos por termos da experiência verificável. Segundo: coloca a ciência, em particular a física, em um pedestal, tomando-a como fundamento para todas as outras ciências bem como seu modelo de rigor na apreensão da realidade. O reducionismo é isto: os “empiristas lógicos” ou “positivistas lógicos” acreditam que todas as ciências podem ser reduzidas à física. Os significados das sentenças poderiam ser reduzidos a relatos de experiências sensíveis. Todas as sentenças de uma área de discurso poderiam ser traduzidas para sentenças em uma outra área de discurso. Aceitando que isso é viável, o que se pode esperar ao final é a possibilidade efetiva da tradução de todas as sentenças de toda e qualquer ciência em sentenças de uma ciência que mais expresse o contato com o sensível, o “empiricamente dado”, e que seria o “mais real”. O ideal da física como o espelho da realidade – inclusive da realidade psíquica – está a menos de um passo de tal projeto.

Há um detalhe a ser observado para levar adiante tal projeto. Os “positivistas lógicos” ou “empiristas lógicos” têm de considerar, uma vez que se mantêm fiéis à tradição dopensamento empirista, que remonta a David Hume (1711-1776), a idéia de que há dois tipos de sentenças em nossa linguagem e, portanto, dois tipos de verdades nas linguagens científicas: há as sentenças que são aceitas como verdadeiras ou falsas na medida em que podem ser reduzidas a relatos da experiência sensível e que, enfim, tendo conteúdo empírico, são verificáveis; e há as sentenças que são verdadeiras pelo significado, isto é, que não trazem nenhuma informação sobre o mundo empírico. As primeiras são chamadas de sintéticas, as segundas de analíticas. De fato, eles levam em consideração tal distinção. Formulam sua teoria em dois postulados. Primeiro, mantém como intocável a divisão entre verdades analíticas e verdades sintéticas. Isto é, sentenças analíticas do tipo “todos os solteiros são não casados” são verdades pelo seu próprio significado, sem qualquer referência ao mundo empírico. Sentenças sintéticas do tipo “Joana é casada” são ditas verdadeiras ou falsas dependendo do que se pode verificar empiricamente, no caso, informações a respeito do estado civil de Joana. Segundo, colocando à parte as sentenças analíticas, que seriam do âmbito da matemática e lógica, todas as outras sentenças com significado seriam empíricas ou traduzíveis em sentenças a respeito da experiência imediata.

Os “positivistas lógicos” ou “empiristas lógicos” mantêm a idéia de que os discursos formados por enunciados sintéticos podem ser reduzidos a discursos formados por outros enunciados do mesmo tipo, mas mais elementares. Assim, vão da redução da psicologia à neurologia e à química e desta à física – à microestrutura da matéria e teorias sobre tais aspectos. Tal doutrina está em acordo com um tipo de teoria da identidade entre o mental e o físico. Quando aceitamos que eventos mentais podem ser reduzidos a eventos físicos, lembramos que terminaremos por aceitar também que eventos mentais deverão cair sob leis causais, como é o caso de eventos físicos, com os 7 Os membros de tal escola de filosofia aportaram nos Estados Unidos a partir dos anos trinta e dominaram os departamentos de filosofia da maioria das universidades norte-americanas.

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quais estamos acostumados a lidar nas ciências da natureza que, enfim, são nomológicas. Aceitaremos, então, que há leis estritas do campo psicológico e psicofisiológico.

É contra isso que Davidson se insurge. Segundo ele, as explicações da relação entre eventos mentais e físicos aparecem sob a forma de quatro teorias8:

1. monismo nomológico, que diz que há leis correlacionando ambos, e que os eventos correlacionados são de uma só ordem (os materialistas, em geral, seguem tal posição);

2. dualismo nomológico, que agrupa formas de paralelismo, interacionismo e epifenomenalismo;

3. dualismo anômalo, que combina o dualismo ontológico com a falta de leis correlacionando o mental e o físico (o cartesianismo é um exemplo);

4. monismo anômalo.

O que diz esta última posição, que é a de Davidson? Como qualquer fisicalista, Davidson sustenta que há identidade entre o mental e o físico, mas ele não acredita que o mental possa ser reduzido ao físico para, então, ser dispensável. Eventos mentais, ainda que sob causalidade – e ele insiste que eles estão sob causalidade, como quaisquer outros fenômenos naturais –, não se apresentam segundo regularidades cabíveis em descrições formuladas em leis estritas, como as que se encaixam em formulações matemáticas, por exemplo.

Neste ensaio, principalmente no item sete, veremos como que o monismo anômalo de Davidson é construído a partir de uma teoria especial de identidade entre mental e físico, que deve lhe garantir a posição de fisicalista não-redutivista.

2.2 A teoria causal do conhecimento

A história da epistemologia começa com a definição de conhecimento proposta por Platão. Nos diálogos entre Sócrates e Teeteto, o conhecimento é definido como “crença verdadeira bem justificada”. A idéia básica é a de que um enunciado pode ser algo chamado de conhecimento na medida em que acreditamos nele (ele é uma crença nossa), e que é uma crença verdadeira, e que essa crença verdadeira está articulada a outros enunciados que a justificam.

Nessa definição, a verdade é objetiva, não há o que polemizar sobre ela, e a discussão,se deve haver uma, cai para o âmbito da justificação, esta sim sujeita às variações subjetivas. Posso dizer “eu creio que há uma banana em cima da mesa” e, então, entender perfeitamente que a proposição “há uma banana em cima da mesa” é objetiva, pois ela só possui dois valores: falsa ou verdadeira. Ou há uma banana em cima da mesa ou não há uma banana em cima da mesa. Não é sobre este enunciado que cabe uma discussão, digamos, subjetiva. Uma vez o enunciado tendo sido pronunciado, ele é uma proposição que escapa da boca de quem o pronunciou e ganha vida objetiva quanto ao seu valor de verdade. Isto é, ele é um enunciado que, quanto a isso, funciona no âmbito da lógica, e está desligado da questão da percepção (da banana) e da prova (de que 8 Davidson, D. Mental events. Essays on actions & events. New York: Oxford University Press, 1980, pp. 213-14

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banana esta em cima da mesa ou não). Então, o enunciado “há uma banana em cima da mesa” é objetivo nesse sentido – é falso ou verdadeiro.

Sobre o enunciado “há uma banana em cima da mesa”, nenhum cético respeitável tem o que dizer. O cético, quando diz duvidar, questiona não a verdade, mas o conhecimento. O que ele diz é que a justificação da proposição “há uma banana em cima da mesa” éaquilo que não irá nos satisfazer. Ele diz que jamais teremos conhecimento: podemos ter a crença na proposição “há uma banana em cima da mesa” e afirmar que tal crença é verdadeira (ou falsa), mas quando viermos a dar justificativas para a manutenção (ou não) dessa nossa crença, iremos nos complicar – sempre. Assim, desde Platão, a tarefa do filósofo que faz epistemologia é a de criar mecanismos para a melhoria das justificações. Os filósofos, de fato, uma vez na trilha platônica, podem dar um passo a mais e expor a seguinte definição de conhecimento, mais completa ainda que a de Platão: crença verdadeira justificada, sendo que a justificação deve ser irrevogável.

Os tempos modernos, com Descartes, exigem que a justificação passe pelo critério de certeza. O gênio maligno, hipótese metodológica posta por Descartes para supor que tudo o que está sendo pensado ou dito é enganoso, lhe dá a primeira certeza indubitável, a saber, a de que para poder estar sempre enganado, o pensamento tem de estar ocorrendo. Essa primeira certeza, que é “cogito ergo sum” – o argumento do Cogito –dá o padrão do que é a evidência pedida para a justificação, ao menos no que se refere ao que Descartes mostra como sendo a intuição intelectual. O segundo padrão de certeza é o que, por silogismo correto, se pode tirar da verdade ou de qualquer outra verdade na cadeia de deduções estabelecida a partir da primeira verdade, na tarefa de fazer um elenco das “verdades primeiras”.

Esse tipo de critério é questionado pelo empirismo de Locke, e ganha um argumento contrário bastante interessante na filosofia contemporânea, com o chamado “problema de Gauthier”. Como é este argumento?

Reporto a Platão, Descartes e Locke, em uma terminologia capaz de, a partir daí, expor o “problema de Gauthier”.9 Lembrando que S é um enunciado, podemos ver o quadro abaixo, que faz a comparação:

Platão Descartes Locke

a) Você deve acreditar em S;

b) S é verdadeiro, e

c) você deve justificar a crença em S.

a) Você deve acreditar em S;

b) S deve ser verdadeiro, e

c) você deve ter evidência irrevogável para tal crença

a) Você deve acreditar em S;

b) S deve ser verdadeiro, e

c) você deve ter boas –mas não necessariamente irrevogáveis –evidência para tal crença

9 Appiah, K. A. Thinking it through. New York: Oxford University Press, 2003, pp.41-3

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Conhecimento: crença verdadeira justificada.

Conhecimento: crença verdadeira bem justificada ou por evidência (verdades necessárias) ou, então, a partir de uma verdade justificada irrevogavelmente, as verdades decorrentes de cadeia dedutiva

Conhecimento: crença verdadeira bem justificada, em determinadas circunstâncias.

Quadro 1

A definição de conhecimento de Descartes (e, de certo modo, a de Locke) está comprometida com a idéia do “princípio de dedução para a justificação”. Este princípio deve tornar a justificação correta se ela é uma “justificação irrevogável”. Em 1963, o estadunidense Edmund Gettier, com um paper de apenas três páginas10, fornece alguns exemplos contra tal definição. Com isso, elabora uma radicalização do que estaria apontado em Locke: é possível conseguir uma justificação de uma crença e tal justificação ser merecedora de nossa aposta na sua irrevogabilidade, e ainda assim estar diante de uma crença falsa.

Eis um exemplo proposto por Gettier. Suponha Smith e Jones se inscrevendo para uma entrevista de emprego. Suponha também que Smith fique sabendo, diretamente pelo empregador, que não é ele que os proprietários têm em vista, e sim Jones. Este, por sua vez, vem para a entrevista e, na conversa com Smith, deixa transparecer que tem dez moedas no bolso da camisa. O que temos? Temos o seguinte:

1) Jones é o escolhido – crença verdadeira e justificada de Smith

2) Jones tem dez moedas no bolso – crença verdadeira e justificada de Smith

3) Conclusão de Smith, verdadeira e justificada: o homem escolhido tem dez moedas no bolso.

Sai o resultado da entrevista e Smith vê que é ele o escolhido, e não Jones (por alguma razão, na decisão, os patrões acharam um problema em Jones – isso não importa). Ora, Smith havia concluído, de modo correto, o enunciado verdadeiro que “o homem escolhido tem dez moedas no bolso”. Todavia, se enfiasse a mão no bolso perceberia que também tem dez moedas (havia tirado uma camisa do guarda roupa e lá já estava o dinheiro, e jamais notou – isso não importa). Eis que sua conclusão é verdadeira: “o homem escolhido tem dez moedas no bolso”. E é justificada, pois a inferência é correta: de duas crenças verdadeiras e justificadas ele tirou uma terceira, verdadeira e justificada. Todavia, não podemos dizer que essa crença de Smith, embora verdadeira, seja conhecimento, que indique que ele “sabe”. A conclusão pode ser chamada de crença verdadeira e justificada, mas as razões da justificação que poderiam nos levar a dizer que ele tem conhecimento não são as razões apontadas por Smith. Ele tem crença verdadeira, mas não tem conhecimento.

Essa espécie de “Gettier turn” na filosofia, não alimenta o cético tanto quanto à primeira vista poderia parecer. Os filósofos podem deixar de lado a definição que apela para justificações e, então, buscar definições de conhecimento a partir de causas. Em vez de

10 <http://www.ditext.com/gettier/gettier.html > 07/08/2007

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ter o enunciado e suas justificações, agora, para se ver se há ou não conhecimento, toma-se o enunciado em questão para investigar o que o produziu. Eis aí o campo da teoria do conhecimento que nos levam a causas – são as teorias causais do conhecimento.

Basicamente, o que essas teorias dizem é que: a) há a crença em S, b) S deve ser verdadeira e, enfim, c) a crença em S deve ser causada de um modo apropriado. Isto equivale a dizer que a crença está justificada se ela é causada por uma espécie de modo que é o correto.

Os historicistas e os positivistas tradicionais trabalham com a idéia de que as relações entre nós e o mundo são causais e representacionais. Os fisicalistas e, entre eles, os fisicalistas não-redutivistas, por sua vez, ficam com a idéia de que as relações são unicamente causais. Eles estão conscientes das objeções de Gettier à epistemologia tradicional.

Ao considerar as implicações de tal postura, os filósofos Richard Rorty e Bjorn Ramberg enfatizam que o projeto davidsoniano fisicalista não-redutivista nos permite caracterizar a atuação do agente no mundo, tanto na descrição do que é a ação deste quanto na descrição do que é seu pensamento e linguagem, de um modo bastante afinado com o que seria o escopo daquilo que eles próprios têm buscado na filosofia. No campo específico da discussão sobre o conhecimento, Rorty e Ramberg lembram o quanto o projeto davidsoniano pertence ao naturalismo – uma corrente com tradição na história da filosofia estadunidense.11 Rorty sublinha que Davidson é anti-representacionista e que, sendo assim, contribui para o projeto pragmatista.12 Ramberg, por sua vez, focaliza a caracterização davidsoniana da linguagem, que justifica o anti-representacionismo e, de certo modo, as apropriações que são possíveis de se fazer da filosofia de Davidson para dar uma boa resposta ao ceticismo.13 Stephen Neale, por outro lado, leva adiante uma abordagem menos ampla. O anti-representacionismo de Davidson estaria baseado em um combate à idéia de que o pensamento ou a linguagem podem representar fatos de um modo útil. A posição davidsoniana se sustentaria com o chamado “argumento de tipo Slingshot”.14

Rorty e Ramberg apreendem a teoria do conhecimento de Davidson de um modo global, enquanto que Neale a toma de um modo parcial. Neale coloca em segundo plano a importância da adoção da teoria causal e privilegia o anti-representacionismo, o combate à idéia de se poder levar em conta ou não a capacidade de representar fatos. Opto por um modo harmônico de expor Davidson. Não dispenso nenhuma dessas três tendências de interpretação da obra davidsoniana em teoria do conhecimento, mas tenho a minha própria.

11 Elderidege, M. Naturalism. In: Marsoobian, A. T. e Ryder, J. (org.) The Blackwell Guide to American Philosophy. New York: Blackwell, 2001.

12 Rorty, R. Philosophy and the mirror of nature. Princeton: Princeton University Press, 1980.

13 Ramberg, B. T. What Davidson said to Skeptic. In: Kotatko, P. e outros (org.) Interpreting Davidson. Stanford: CSLI Publication, 2001.

14 Neale, S. Facing facts. New York: Oxford e Clarendon Press, 2001.

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No item sete, mostrarei que o anti-representacionismo de Davidson deve-se à sua noção de linguagem. É uma noção que se acomoda bem com sua teoria causal de ação, pensamento e linguagem – e está em acordo com as intenções de Ramberg e Rorty. Direi que seu argumento contra fatos, como está em Neale, deve ser aceito como um elemento coadjuvante.

3. A Antropologia Filosófica

A filosofia pode, ainda, descrever “o mundo”? Ou seja, ela é capaz de fornecer uma descrição ampla e geral sobre nossas atividades? Davidson acredita que sim. Ele vê a atividade racional de descrição do que nós fazemos perfeitamente viável. E isto de uma maneira filosófica, não científica. Mas, o que é para ele “descrever o que nós fazemos”?

O que nós, os “bípedes sem penas”, fazemos? Vivemos no mundo físico e social. Temos duas atividades: agimos no mundo físico e conversamos com nossos pares no mundo social. Assim, quem quer montar uma teoria ampla a nosso respeito tem de explicar nossos atos e nossa interação lingüística. Explicar os nossos atos é dizer, diante de um ato, porque fizemos o que fizemos e não outra coisa. Explicar nossa interação lingüística é dizer, diante de um relacionamento que envolve a linguagem, porque houve entendimento, se é que houve. A partir de uma teoria geral, explicar ambas as atividades, o agir e o conversar, seguindo uma forma filosófica, requer também a explicação da articulação das atividades, e isso de um modo não forçado.

Uma teoria a respeito de nossa ação é uma teoria sobre razões e causas de nossas ações. Uma teoria a respeito de nossa interação lingüística é uma teoria sobre o modo de interpretação da nossa fala ou linguagem. Mas isso, dito assim, é fazer ciência, não é filosofia. A abordagem filosófica é, sempre, uma abordagem de segunda ordem, uma meta-abordagem – ampla e, digamos, mais abstrata. Tanto na teoria da ação quanto na teoria da interpretação, ambas bem articuladas, o que a filosofia busca é mostrar as possibilidades de construirmos descrições de ações e interpretações, de modo que possamos estar relativamente seguros para poder dizer, de uma forma filosófica, o que é nossa vida no âmbito do que denominamos de “mundo”. O que a filosofia quer, nessa linha de pensamento, é ver se efetivamente podemos dizer algo plausível, geral e elucidativo sobre o nosso comportamento enquanto envolvidos com a razão, e enquanto seres que se relacionam com o mundo circundante, o mundo que contém o que não é semelhante e o que é semelhante.

Portanto, a tarefa de Davidson é tripla, e deve nos dar: 1) uma teoria da ação, 2) uma teoria da interpretação ou do entendimento mútuo e nos mostrar como que ambas se ligam de modo que possamos, ao fim e ao cabo, 3) equacionar os problemas filosóficos mais tradicionais. Nesse último caso, importa podermos estabelecer um quadro geral a respeito de linguagem e pensamento, pois vários dos chamados “problemas filosóficos” envolvem, em sua solução, alguma teoria sobre esses elementos.

1) Na teoria da ação, em filosofia, o que queremos é uma exposição da estrutura básica da nossa ação, as formas e processos pela qual a ação ocorre e os modos em que é descrita e explicada. A teoria da ação deve dar uma exposição geral e básica de um determinado comportamento do agente – aquele que desempenha uma ação –mostrando um elo específico entre três elementos: o que o agente faz, a causa da ação do agente e, enfim, a razão do agente para tal ação. No caso da ação, historicistas e

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positivistas têm concordado em explicá-la por meio de uma separação bem estanque entre razões e causas. Quase tudo o que foi feito sobre isso apontava, em geral, para a idéia de que explicar uma ação, seguindo o naturalismo, é dar as causas para os atos, e suas razões, de modo a não confundir causas com razões – esta tem sido a regra, de David Hume até os “empiristas lógicos” passando por Marx Weber e Durkheim. O que Davidson faz é dispensar tal visão e dizer que “razões são causas”.15

2) Na teoria da interpretação, em filosofia, o que queremos é uma exposição dos mecanismos básicos dos processos de interação lingüística que ocorrem entre indivíduos humanos e os modos em que isso é explicado. A teoria da interpretação deve dar uma exposição geral e básica do comportamento lingüístico do falante – aquele que emite expressões inteligíveis – mostrando os elos entre três elementos: o que fala, o que escuta e a linguagem. Quase tudo que foi feito até mais ou menos próximo ao tempo dos primeiros artigos de Davidson apontava, em geral, para a idéia de que explicar a linguagem, na interação entre humanos, conduziria a uma teoria do significado. Entre Willard Van Orman Quine (que feriu de morte os “empiristas lógicos”) e os antecessores mais imediatos de Davidson, uma boa parte das conclusões sobre esse assunto caminhou por duas linhas: ou o que importa é restaurar alguma teoria do significado confiável, abalada pelas teses de Quine, segundo as quais a referência de um enunciado é inescrutável e a tradução de uma sentença para outra é sempre indeterminada, ou então o que se deve fazer é simplesmente conviver com certo relativismo – que levaria ao risco de termos de aceitar o ceticismo. O que Davidson faz é dispensar tal visão e dizer que não precisamos abandonar boa parte das teses de Quine; ao contrário, o melhor é radicalizar suas conclusões. É o que ele faz. Davidson diz que “não há qualquer coisa como uma linguagem”. Então, escapando de lidar com o que tradicionalmente chamamos de linguagem, ou seja, um arcabouço pronto de regras cujas estruturas são aprendidas ou inatas, para falar que “o entendimento mútuo é realizado por meio do exercício da imaginação”,16 ele constrói um bom desvio filosófico que de certo modo torna o ceticismo inócuo.

3) A partir de teoria da ação e da teoria da interpretação, é possível ver Davidson equacionando os problemas oriundos do tema linguagem e pensamento. É no âmbito desse tema que reconhecemos Davidson, então, naquilo que comumente trabalha o filósofo tradicional. Aqui o vemos falando de temas reconhecidamente como sendo do campo disciplinar da metafísica.

4. O Método

Como o leio, Davidson é o criador de uma marca divisória na história da filosofia. Abordando os temas centrais da metafísica, o faz sem compromisso metafísico. Traçando novos rumos para a epistemologia, segue sem aderir à profissão de epistemólogo. Criando condições para a investigação em metaética, deixa para outros o papel do moralist. Não apreciando debates metodológicos, pouca utilidade vê na questão sobre o que é e o que não é “fazer filosofia”.

15 Davidson, D. Actions, reasons, and causes. In: Essays on Actions & events. Oxford: Oxford University Press, 1980.

16 Davidson, D. The social aspect of language. In: Truth, language, and history. Oxford: Oxford University Press, 2005.

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Sendo um filósofo original, não se preocupa se está seguindo linhas traçadas por este ou aquele possível antecessor. Assim, as considerações metodológicas, aqui, são de minha responsabilidade, e bastante sucintas.17

Há três características importantes no filosofar davidsoniano:

Primeira característica. Sua filosofia é descritiva. Acredita que se é possível montar um modelo de descrição do fenômeno ou objeto ou ocorrência em pauta, então já se fez tudo ou quase tudo que é necessário para explicar o que tem para ser explicado.

Segunda característica. Em grande medida sua filosofia é filosofia da linguagem. Todo e qualquer problema aceito como tradicionalmente filosófico é filtrado por meio da filosofia da linguagem – metafísica, epistemologia e ética são tratadas segundo o estilo da filosofia analítica.

Terceira característica: sua filosofia imita o procedimento da ciência, sem sucumbir a esta. Adota o que os filósofos atuais chamam de “a perspectiva da terceira pessoa” – o que é para ser investigado não está sob introspecção18 e se apresenta aos seus olhos como algo em um meio ambiente. O que ocorre – o que é investigado – é fruto da atuação de alguém que se relaciona com o meio ambiente.

Ler Davidson nos dá não somente a possibilidade de aprendizado de uma nova filosofia. É também um encontro com autênticas soluções para impasses filosóficos consagrados. Trata-se de uma boa oportunidade para se envolver com um treinamento em filosofia contemporânea – um treinamento para se viver no século XXI. No novo século, a boa filosofia estará cada vez mais envolta com a cultura contemporânea, isto é, relacionando-se com as artes e as ciências indistintamente – ação, linguagem e pensamento, e problemas atinentes ao relativismo (em menor escala, ao ceticismo), se abordados satisfatoriamente, darão a ponte entre a filosofia contemporânea e os vários outros discursos dos vários campos culturais.

Parte I

5. A Teoria da Ação

17 Davidson insiste em lembrar, em várias passagens, o quanto ele não participa de debates metodológicos no sentido tradicional da expressão. Há apenas um texto de Davidson que se pode considerar como de exposição de método, o que faz neste texto é simplesmente mostrar que problemas metafísicos podem ser abordados de um modo proveitoso por meio da filosofia da linguagem. Davidson, D. Method and metaphysics. In: Truth, language, and history. Oxford: Oxford University Press, 2005.

18 A perspectiva da introspecção é a de Descartes, em especial a utilizada nas suas “Meditações”. E geral chamamos o resultado de tal investigação de “filosofia primeira”. A perspectiva da terceira pessoa é aquela inaugurada pela ciência moderna, a da observação dos acontecimentos. Sobre isso, o leitor pode ver: Evnine, S. Donald Davidson. Stanford: Stanford University Press, 1991, pp. 7-10.

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5.1 Razões são causas

Em geral, quando um filósofo tradicional lida com a ação de um agente e com a razão que explica ou justifica tal ação, ele não articula esses dois elementos – ação e razão –por meio de um elo causal. Para tal filósofo, dar a causa de uma determinada ação de um agente não é dar a razão que permite entendermos a ação de um agente. Davidson não adota a postura desse tipo de filósofo. Ele diz que a razão que explica e/ou justifica a ação é a causa da ação.19

O filósofo que separa razão e causa afirmando que se trata de elementos cujas naturezas são distintas, acredita que a sentença “Joana se afastou da porta com um salto para trás porque apareceu um cão muito grande na entrada” contém um “porque”, ao meio, que não pode explicar a ação de Joana e dar a razão da ação de Joana. É com isso que Davidson não concorda. Ele constrói sua teoria da ação de modo que, se podemos ver Joana dando um salto na direção oposta à da porta após o aparecimento do cachorro, este “porque” da sentença acima pode nos dar concomitantemente tanto a causa quanto a razão para o ato da agente chamada Joana.20

Há quem prefira dizer que o que causou o pulo de Joana na direção oposta a da porta foi um elemento físico, a saber: a impressão da figura do cachorro na retina de Joana. Da seguinte forma: ocorreu um estímulo no nervo ótico e sua transmissão ao cérebro fez Joana identificar algo lá no interior chamado “perigo”, assim, em forma de impulso, ocorreu a ordem para que os nervos e os músculos de Joana viessem a criar um determinado movimento no seu corpo, e se produziu o deslocamento no espaço, isto é, o movimento de Joana para trás. Davidson não está desmentindo filósofos que pensam assim. Ele acredita que entre o corpo do cachorro e a retina de Joana, de fato, só há causas.21 Todavia, essa seqüência causal, para ele, diz pouco – diz pouco em termos explicativos. A razão que explica o movimento de Joana, que é o aparecimento do cão e a concomitante crença de Joana de que um cão grande pode lhe ferir e, mais, o desejode Joana de não se deixar exposta a um possível ferimento, é que é a causa do pulo de Joana. O que a psicologia popular (folk psychology) diz que é a causa, e o que o filósofo não-davidsoniano toma como sendo apenas a razão ou uma razão, é, para Davidson, a razão que é, ao mesmo tempo, a causa. A causa-de-uma-ação e a razão-que-explica-a-ação-sob-uma-descrição são, ou podem ser, a mesma coisa.

Uma teoria da ação adequada tem de explicar ações visíveis de Joana nos termos do que não é visível, do que não é observável. Tais termos não visíveis são as razões. Como Davidson sabe bem, uma explicação desse tipo é indeterminada. Podemos, para os atos de Joana, encontrar um número enorme de explicações, um bom número de razões. Não podemos com um golpe único encontrar uma razão singular, exclusiva. Uma ação pode ser descrita, explicada, racionalizada de diversas formas. Como ficamos então? Entre as

19 O senso comum nem sempre distingue o que é razão e o que é causa, como faz tradicionalmente a filosofia.Por isso, não raro, quando se parte do senso comum, há uma grande dificuldade de se entender o que Davidson diz ao falar que razão é causa – isso parece ao senso comum, aquém da filosofia, o que já é a sua verdade. 20 Contra os positivistas, os historicistas (weberianos à frente) dizem que a causa dá a explicação, como nas ciências naturais, e a razão dá origem à interpretação ou compreensão, o que seria próprio das ciências humanas.21 No momento, aqui, não falamos da percepção. No tópico sobre a linguagem, no final deste texto, falaremos da percepção e de seu envolvimento com a linguagem.

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razões, qual é aquela que é a razão correta para ser apontada como a que é a que explica a ação em questão?

Duas teses comandam a filosofia da ação de Davidson: 1) o que a teoria faz é usar da noção de razão de uma só maneira – a razão primária (primary reason) é o que se quer apontar; 2) a razão dada por uma explicação vinda da teoria da ação é exatamente a razão que é a causa da ação explicada. Levando em conta o ponto dois, qualificamos Davidson como um filósofo que defende uma teoria causal da ação e, considerando o ponto um, devemos definir o que é uma razão primária.22

O que é a razão primária? Resumindo ao máximo: trata-se da razão que racionaliza, ou seja, explica e/ou justifica a ação mostrando tal ação como razoável se considerarmos a crença e o desejo que constitui a razão para a ação. Isto é, o que temos de buscar é um par determinado de eventos mentais, uma crença e um desejo determinados. No nosso exemplo: uma vez que Joana tem o desejo de não sair machucada (antes prevenir que remediar – diz o ditado popular), ela não fica parada diante do cachorro que aparece na porta, ela se afasta tanto quanto pode no momento. Uma vez que ela acredita que um cachorro tão grande pode ser feroz, e se for feroz, pode lhe trazer um dano físico, ela pula para trás.

O agente que realiza uma ação por uma determinada razão pode ser visto de duas formas concomitantes. Ele está predisposto a realizar uma ação de certo tipo e crê que tal ação é uma ação de tal tipo. A predisposição, na abordagem de Davidson, pode ser tomada como necessidades, estímulos, quereres, desejos e motivações, e ainda prejuízos econômicos, questões morais, princípios estéticos, convenções sociais, isto é, atitudes públicas e privadas. Isso não quer dizer que uma predisposição compromete o agente a ter de realizar a ação, que se trata de algo que ele deveria fazer. Joana, por exemplo, poderia ter uma predisposição para pular para trás ao ver o cachorro, mas não achar que deveria se afastar repentinamente. A razão primária, como Davidson a toma, é uma racionalização da ação unicamente se a predisposição para realizá-la mostra alguma característica bastante específica da ação que o agente imaginou desejável. A racionalização da ação tem de servir, a nós, os observadores do agente, para vermos claramente o porquê tal ação foi desejável. Não temos muito nas mãos se a sentença a ser lida é “Joana pulou para trás porque ela quis”. Mas temos algo razoável nas mãos se ouvimos que “Joana pulou para trás porque um grande cachorro apareceu na porta para onde ela estava se dirigindo”. O que se quer na teoria da ação de Davidson, em seu âmago, é identificar uma razão primária para cada ação, que é a tal razão fornecedora da explicação.

O que ocorre, quando se racionaliza uma ação, ou seja, quando se explica ou se justifica uma ação, é que se pode ver a racionalidade da ação como revelada pelas crenças e desejos do agente. O que se busca aqui, no caso, é o padrão coerente de comportamento do agente. Como é que tal padrão é encontrado? Não é difícil, à primeira vista, identificar um padrão se consideramos as crenças e desejos solicitados na explicação da ação. Tais crenças e desejos são as que devem tornar a ação razoável. A razão primária é, assim, aquela razão que racionaliza a ação por meio de nos revelar a ação como uma ação razoável, considerando aqui, de modo imprescindível, as crenças e desejos que constituem a razão para a ação. Assim, no exemplo, a crença de Joana é a de que um

22 Davidson, D. Actions, reasons, and causes. Op. cit.

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cachorro grande pode lhe morder causando um dano, e então o seu desejo é o de se afastar para obter uma relativa e primeira segurança.

5.2 Ações intencionais

Na teoria da ação de Davidson a intenção é considerada na relação com outros elementos, diferindo de outras teorias (a fenomenologia, por exemplo) que objetivam fazer dela uma pedra de toque ou um ponto de apoio final.

Ele não vê diferenças de natureza entre intenções, desejos e crenças.23 Trazer à baila a intenção não é mostrar um elemento com poderes estranhos a outros elementos da ação. Para Davidson, quando a intenção precede a ação e colabora com ela como fator causal, assim o faz em associação às crenças e desejos. Se há alguém com alguma intenção, e tal intenção vai aparecer como elemento causal de uma ação, o que se tem é que tal intenção surge como o resultado de uma ponderação a partir de crenças e desejos desse alguém. Sem crenças e desejos, a intenção sozinha não pode se revelar como o que faz a ação ocorrer. A intenção depende, no caso, de razões; de certa racionalização, que é causa da ação – tal racionalização requisita um par determinado de crença e desejo. A escolha sobre qual par é este depende, no entanto, de um estoque de probabilidades. Sacar entre as probabilidades qual par é o mais correto, é algo possível a partir da teoria da decisão de Frank Ramsey. No entanto, antes de chegar a Ramsey, há um problema básico sobre “ontologia de eventos”, que é necessário ser abordado aqui, pois Davidson o soluciona usando do papel das intenções. É no contexto desse papel que ela é definida.

Abro um espaço, agora, para discutir o papel da intenção no âmbito da discussão metafísica e ontológica sobre eventos.

O que Davidson tem de explicar, tomando a abordagem de Gertrude Elizabeth Anscombe,24 é que a filósofa, no tratamento que dá às relações entre ações, se refere a ações idênticas que aparecem diferentes quando descritas. Ou seja, na abordagem de Anscombe, atos idênticos podem aparecer sob enunciados diferentes. Nesse caso, cabe perguntar: se temos “ações sob várias descrições”, e se são as descrições o modo pelo qual podemos apontar para as ações qualificando-as, como podemos falar que duas ou mais descrições estão descrevendo a mesma ação? As considerações de Davidson podem ser sistematizadas como segue.

Joana paga uma conta preenchendo um cheque. Sendo assim, há aqui dois atos: um, no qual Joana preenche um cheque, o outro no qual Joana paga uma conta. Anscombe advoga que as descrições são diferentes, mas apontam para atos idênticos: o preenchimento do cheque e o pagamento da conta são um e o mesmo ato. Quais seriam os elementos iguais e diferentes em jogo? Expressões como “o preenchimento do cheque por Joana” e “o pagamento da conta por Joana” fazem referência a uma mesma ação, como quer Anscombe. Todavia, é necessário relacionar tais expressões – ambas –a uma sentença tal como “Joana preencheu um cheque”. Ou seja, se “o preenchimento de um cheque por Joana” se refere a uma ação, então “Joana preencheu um cheque”

23 Se há diferenças, elas se mostram apenas no fato de que os enunciados que expressam intenções possuem formas lógicas diferentes dos de crenças e desejos.

24 Anscombe, G. E. M. Intention. Cambridge: Harvard University Press, 2000.

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também se refere a uma ação – a mesma. Mas neste último caso a expressão parece referir-se somente a Joana e a cheque. Para poder prosseguir nessa linha, a proposta de Davidson é a de tomar os eventos como “parte da mobília do mundo”, e aceitar as ações como tipo de eventos.25 Assim, “Joana preencheu um cheque” não se refere a um evento particular do mesmo modo que um nome ou uma descrição poderiam fazer, mas, antes disso, o que tal expressão diz é que houve ao menos um evento em que Joana foi a agente, e este evento foi um preenchimento, e o preenchimento foi de um cheque. Assim, há sentido em dizer que se Joana preencheu um cheque, isso não implica que ela preencheu somente um cheque e sim que ela preencheu ao menos um cheque. Pode-se afirmar que houve ao menos um evento de preenchimento de cheque que foi idêntico a algum evento que foi um pagamento de uma conta por Joana. Não há nenhuma referência a uma ação particular. O que há é quantificação de tipos de eventos. Todavia, se há algum sentido na idéia de Anscombe de “ações sob uma descrição”, ainda não está solucionado o problema, pois como tratar o caso onde há uma descrição particular e outra descrição particular – ambas válidas – descrevendo o mesmo evento? Pois há casos, sabemos, em que uma ação que parece a mesma, não é aceita por nós como a mesma. Por exemplo, alguém deu uma bebida para Joana e ela ficou doente. O que faz com que, nessa situação, “Joana tomou a bebida oferecida” e “Joana passou mal” não sejam expressões que nos levam, sem reservas, a achar que podem estar descrevendo um e mesmo evento? Dar a Joana uma bebida é uma e mesma ação de fazer Joana passar mal? Há um dado importante que chama a atenção no momento da diferenciação: intenção. A ação de quem deu a bebida para Joana foi intencional ou não no sentido de fazê-la passar mal? (e mais, uma ação – beber – termina primeiro que a outra – passar mal).

A solução do caso, para Davidson, é que uma ação (para a qual cabem várias descrições) é considerada intencional se há ao menos uma descrição que revela uma característica da ação responsável pela motivação do agente em realizá-la. Todas as ações, é claro, têm características que as mostram como propositais ou não-propositais em relação às suas conseqüências. Assim – e isto é o que importa na conclusão de Davidson sobre intenções – o conceito de intenção deve ser visto como o que não modifica os atos diretamente, mas modifica, sim, todas as proposições. Ele é um diferenciador, mas um diferenciador no âmbito das descrições. A intenção tem as mesmas características semânticas apresentadas quando temos conversas nas quais aparecem crenças, desejos, expectativas e esperanças.26

5.3 A escolha da razão

Voltamos, agora, à questão da escolha da razão que é chamada de razão primária. Do que vimos até aqui, sabemos que um evento descrito como uma ação é causado por uma razão primária. Uma razão primária é formada por par de crença e desejo. Mas a questão que resta saber é como podemos determinar, a partir dos princípios gerais de uma psicologia popular (uma folk psychology é o máximo que Davidson precisa), quando é que um par de crença e desejo causará uma ação. A teoria da ação de Davidson reclama, assim, por um instrumento capaz de observar pares de crenças e desejos, e mostrar os pesos de determinados pares na decisão do agente quanto a agir de uma forma e não de outra, realizando a ação em questão.

25 Davidson, D. Aristotle´s action. Truth, language and history. Oxford: Oxford & Clarendon Press, 2005.

26 Ibidem, pp. 286-7.

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O objetivo do projeto de descrição do comportamento do agente é o de prever o que pode acontecer. A teoria da ação com êxito tem de apontar, entre os pares concorrentes, para o par mais forte de crença e desejo que irá compor a razão primária da ação. Davidson opta pela teoria da decisão de Frank Ramsey (e desdobramentos posteriores dela) como um possível procedimento que permitiria a eleição de tais concorrentes.27

A teoria colabora para se saber, ao menos em tese, como determinar o grau de certeza de um agente diante de suas próprias crenças. Uma vez sabido em que grau Joana acredita que um grande cão pode lhe ferir, podemos dizer mais a respeito do que até então foi dito sobre a sentença que descreve o evento, a ação de Joana – o que está na sentença “Joana se afastou da porta com um salto para trás porque apareceu um cão enorme na entrada”. Joana acredita que um cachorro é perigoso – muito, pouco, quanto afinal? E quanto deseja Joana se safar das possibilidades de levar uma dentada? Tais perguntas são, na teoria da decisão de Ramsey, formalizadas da seguinte maneira, como está abaixo.

A teoria da decisão de Ramsey nos ensina a ver o agente como quem escolhe realizar uma ação em detrimento de outra a partir de duas ponderações. O agente considera, primeiramente, qual é o valor das conseqüências da ação escolhida. O agente avalia, também, a probabilidade de tais conseqüências virem realmente ocorrer, uma vez desenvolvida aquela ação escolhida.28 Há, portanto, uma coloração pragmatista na teoria de Ramsey – ela é uma teoria do tipo das “teorias dos jogos”, usadas na economia, política e outras áreas das ciências sociais. Em tais teorias, os agentes atuam segundo uma maximização da utilidade, esperada de cada ação escolhida. Trata-se de uma teoria que mostra o agente trabalhando com apostas. Ele, agente, decide realizar determinada ação porque aposta que as conseqüências de tal ação irão satisfazer o que ele mais espera que ocorra, segundo o seu julgamento da importância do evento esperado.

Se o agente faz apostas, então sua crença não é, propriamente, uma crença. Para ser mais exato, devemos falar, neste caso, em graus de uma crença – há uma probabilidade subjetiva, digamos assim, de que a ação escolhida traga as conseqüências esperadas. Devemos falar aí, também, em graus de desejo – há um grau relativo de desejo; ou seja, uma escala de preferências do agente.

Ramsey, portanto, tem em mãos uma teoria empírica da tomada de decisão. O conhecimento do grau de uma crença e a força relativa de um desejo são os elementos teóricos na explicação dos padrões de preferência de um agente no momento de suas apostas. A tarefa da teoria é o de apontar para o grau de crença do agente em uma proposição e a força relativa de suas preferências, o que se manifesta, afinal, nas escolhas de tal agente. Esses dois elementos são desconhecidos.

O procedimento de Ramsey é simples, pois ele é desenvolvido a partir do seguinte gráfico abaixo, na figura:

27 Davidson, D. Thought and talk. In: Inquiries into truth and interpretation. Oxford: Oxford University Press, 2001, 155-70.28 Ramsey, F. P. Truth and probability. In: Philosophical papers. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.

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Quadro 1

O que a figura acima mostra é que o eixo X, como está escrito na seta que lhe acompanha, diz respeito à certeza que o agente pode ter sobre se um evento ocorre. Basicamente, três posições do eixo X são definidas: 0, ½ e 1. Em zero, a probabilidade de o evento ocorrer, segundo o que pensa o agente, não existe. Em ½, a probabilidade de o evento acontecer, segundo o que pensa o agente, é equivalente – o evento tem iguais chances de ocorrer e não ocorrer, quanto à certeza que o agente tem. Em 1, a probabilidade de o evento ocorrer, segundo o que pensa o agente, é a máxima, ou seja, o agente tem certeza que o evento ocorrerá.

Assim, quando se tem a ocorrência do evento como ½, o que há é um evento que, para o agente, não importa a ocorrência. Eventos que são ligados ao ½ , são exatamente os eventos que o agente julga como prováveis de ocorrer ou não em igual chance, e que não causam diferença diante da sua condição de agente que realiza uma determinada ação (e não, é claro, qualquer ação). Este tipo de evento é que importa, porque a partir dele pode-se construir uma escala e determinar as probabilidades subjetivas de um agente. O que estamos dizendo, em exemplo, é o seguinte: (1) se chove, Joana come pão, se não chove, Joana costura, e (2) se não chove, Joana come pão, se chove, Joana costura. Fica claro que Joana é indiferente a (1) e (2) se assumimos que “comer pão” e “costurar”, para Joana, não são igualmente desejáveis. Ou seja, Joana, pode preferir um pão que costurar, e Joana, tanto para comer o pão quanto para costurar não se importa se chova ou não. Tal evento – “chove” – que pode ocorrer ou igualmente não ocorrer, segundo o que pensa o agente, que é Joana, é um ponto neutro a respeito de dois desejos seus, “comer pão” e “costurar”. Sendo o ponto neutro, ele é uma referência para que se possa falar em uma escala de desejos e, a partir daí, determinar a probabilidade subjetiva do agente em relação a eventos.

O que proporciona para Davidson, então, a teoria da decisão de Ramsey? Ela lhe dá o que necessita para dizer que as características da decisão podem ser medidas e, assim, mostrar qual dos pares de crença e desejo é o mais forte. A teoria fornece para Davidson a expectativa de previsibilidade que ele quer ter. Pode traçar, com ela, o perfil do agente. Este perfil pode ser chamado de grau de racionalidade do agente; isso se tomarmos o termo “racional” como um termo somente definido a partir do que a teoria de Ramsey exige, que é, afinal, a atitude pragmática do agente. A maximização de resultados úteis, que é o que se espera do agente, com a possibilidade de mensuração em

Probabilidade Subjetiva do Agente

Evento pode ocorrer e pode não ocorrer em igual chance

Evento não ocorre

Evento ocorre

0 1/2 1

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graus do par de crença e desejo que faz parte da razão primária (a causadora a ação), que é o que se pode tirar da teoria de Ramsey, dão força para a teoria da ação de Davidson.

A teoria da ação tem de ser capaz de ponderar e comparar pares de crenças e desejos. Todavia, como se vê até aqui, é necessário que o teórico da ação saiba o que está determinado, em cada caso, no par crença-desejo. Em outras palavras: quem faz a descrição da ação do agente, utilizando-se da teoria da ação de Davidson, tem de conhecer o conteúdo das atitudes proposicionais do agente descrito. Eis aí onde a teoria da ação se vê dependente da construção de mais uma teoria, a da interpretação. Pois é necessário ser capaz de interpretar o agente para, de certo modo, poder fornecer elementos para se saber o que dizem suas atitudes proposicionais, isto é, o par crença-desejo que forma a razão primária, aquela que é também causa da ação. Até um determinado momento, o filósofo que descreve a ação, pode caminhar sem saber ao certo o conteúdo do que diz o agente. Todavia, há um momento, que é aquele no qual se vai avaliar a probabilidade subjetiva de se escolher um par ou outro de crença e desejo para a razão primária, que, enfim, é necessário saber qual a crença em questão e qual o desejo associado a ela. Então, o observador, o filósofo, tem de ser capaz de dizer: para terminar a minha descrição da ação eu mesmo tenho de entender o agente e, para tal, tenho de mostrar que o que ele diz é inteligível, tenho de ser capaz de, ao menos em tese, mostrar que o que ele fala é algo que eu posso saber o que é. Isto é, faz necessário, então, a construção de uma teoria da interpretação.

Parte II

6. A Teoria da Interpretação

6.1 Quine e o significado

Uma teoria do significado lida diretamente com perguntas do tipo “o que é dizer como as coisas são?”, “o que é dizer algo com significado?” e “o que é, para palavras ou sentenças, ter significado?”. Davidson aborda o significado considerando o legado de Quine. Quine é o autor da idéia da “indeterminabilidade do significado”. Como Davidson quer chegar ao significado partindo da filosofia que diz que o significado é indeterminado?

Uma das mais tradicionais teorias do significado é a que aceita a concepção referencial de significado. Nesse caso, a teoria identifica o significado de uma expressão com o objeto que a expressão mantém apreendido. Mas uma teoria desse tipo é problemática. Afinal, muitas expressões não deixam de ter significado e, no entanto, não fazem qualquer referência a alguma entidade. Um termo singular como “o décimo quinto homem” não precisa fazer referência a algo para ter significado. Além disso, dois termos podem ter significados diferentes apesar de se referirem ao mesmo objeto, como

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o caso de “Estrela da Manhã” e “Estrela da Tarde” que apontam ambos para Vênus.29

Quine separa a teoria do significado da teoria da referência, saindo assim do campo tradicional. Rejeita entidades denominadas de “sentido” ou “significado”. Desqualifica a idéia de significado como entidade mental. Apelida as teorias contra as quais se insurge de “semânticas acríticas”, as perpetuadoras do que qualifica como o “mito do museu”.

O que é o “mito do museu”?

A semântica acrítica típica toma a mente humana como uma espécie de museu, que possui internamente várias peças expostas em vitrines, sendo que cada peça tem o seu selo ou rótulo identificador. As peças são os significados, o que pertence ao museu e que não pode ser dali retirado, pois o museu é museu com aquele conteúdo. Os selos com as identificações são as palavras, que rotulam o significado. Os selos são podemmudar, pois podemos imaginar que há museus em inglês, português, russo, etc., ou que há peças que identificadas por alguns selos hoje, e amanhã podem ganhar selos com nomes mais precisos ou melhores. Tal “semântica acrítica” julga que trocar de linguagem é trocar de rótulos de identificação, uma vez que as peças do “museu mental” sempre estarão lá como o conteúdo do museu – a razão de existência do próprio museu que apenas as abriga e as expõe.

A popularidade da “semântica acrítica” se deve à idéia, bastante comum, de que há a possibilidade de cada um de nós de produzir uma “linguagem privada”30, isto é, uma linguagem não aprendida socialmente que preservaria em um plano mental interno, individual e a-social, a expressão própria dos significados – a essência ou quase que como uma essência dos elementos do mundo. Cada um de nós teria, então, uma linguagem exclusiva, com a qual poderia criar a expressão dos significados mentais. Seria possível, assim, dizer que há uma ligação entre o “íntimo” e o “mundo exterior”, e tal ligação seria a própria expressão das peças do museu como elas são em si mesmas, independentes dos selos, que são as palavras. Se existisse esse elo, então cada pessoa, com poder introspectivo, apanharia os significados no seu íntimo. Haveria uma “metafísica da subjetividade”, respaldada na idéia de que o essencial está no interior de cada indivíduo humano, e o comum a todos seria a estrutura da “linguagem privada”.

Negando a possibilidade de existência da “linguagem privada”, Quine afirma a linguagem como uma interação social que pressupõe, para existir funcionando, um grupo organizado em que os falantes adquirem seus hábitos lingüísticos. O significado não é uma entidade psíquica. Ele é uma propriedade do comportamento — do comportamento lingüístico, social. Todavia, o significado não é algo como um dado –algo exclusivo, determinável.31 Como é possível afirmar isso?

Para tal propósito, Quine imagina o seguinte experimento filosófico. Coloca um tipo de lingüista-antropólogo em um trabalho de campo, tentando traduzir para o seu próprio idioma uma língua (um grupo de sons) completamente estranha, falada (emitida) por um nativo (ou um alienígena qualquer). Depois de algum tempo e de certo esforço

29 Vale uma referência a Frege

30 Nota sobre “linguagem privada”

31 Romanos, G. D. Quine and analytic philosophy. Cambridge e Londres: MIT Press, 1983.

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analítico, o lingüista-antropólogo consegue obter algo que julga ser uma expressão do nativo, por exemplo: “demki gavagai zaronka pursh denot gavagai”. A expressão é proferida pelo nativo todas as vezes que aparece um coelho que já havia anteriormente aparecido. O lingüista-antropólogo associa a expressão estranha a uma sua expressão, que ele avalia como sendo a tradução do que o nativo diz: “este coelho é o mesmo que aquele coelho”, onde “gavagai” = “coelho”. Assim, à primeira vista, tudo parece uma questão simples: o significado seria algo completamente objetivo, uma vez que “gavagai” é o mesmo que “coelho”. Mas Quine mostra que a solução não é exclusivamente esta. Há no mínimo três candidatos igualmente defensáveis para substituir “gavagai”. Primeiro: “coelho”. Segundo: “parte não destacada de coelho”. Terceiro: “estados de coelho” – “coelhidade”. Qual seria a opção correta? Qual seria o significado exato de “gavagai”? Quine lembra que este impasse não é possível de se resolver apelando para a ostensão (o apontar, o indicar). De nada adiantaria que se ficasse pronunciando repetidamente a expressão “gavagai” diante do nativo, visando obter seu assentimento ou não, variando as estimulações, misturando-as, etc.. Ele adverte, também, que para cada opção a pretensa tradução pode ser re-arrumada, de modo que não se pode chegar a perguntar pela tradução correta, ou seja, a tradução correta exclusiva. Por exemplo, quando se diz “gavagai” = “parte não destacada de coelho”, o que se tem então é que a expressão inteira do nativo fica sendo “esta parte não destacada de coelho é uma parte do mesmo coelho que dizia respeito àquela parte não destacada de coelho”. As três versões e suas respectivas acomodações podem estar, uma a uma, correspondendo a acordos entre os falantes da língua do nativo e os da língua para a qual a expressão foi traduzida, e não há como saber qual a que deveria ser chamada exclusivamente de a tradução correta.32

Ao acreditarmos no “mito do museu”, podemos falar de certo e de errado na questão. Todavia, não há acesso ao museu. Se existisse, o museu seria acessado só pelo próprio nativo. Mas nem museu há. Então, o que há é a indeterminação do significado por causa da própria indeterminação da tradução.

A indeterminação da tradução carrega como conseqüência a indeterminação do significado e a tese da inescrutabilidade da referência. Afinal, qual a referência de “gavagai”? Pode ser um termo geral que o nativo usa para predicar coelhos, ou pode ser algo com o qual ele predica os estados temporais de coelho ou as partes distintas de coelho ou mesmo um termo não geral, singular, que se referiria à qualidade de ser coelho – uma coelhidade. Neste último caso, a frase “demki gavagai zaronka pursch denot gavagai” seria traduzida por “este caso da qualidade de ser coelho manifesta o mesmo coelho que aquele outro caso da qualidade de ser coelho”.33 Como se pode, então, determinar exclusiva e objetivamente o significado? Há saída para tal impasse? Ou Quine simplesmente diz que uma linguagem é fechada em relação a outra e que o fato de nos entendermos, no cotidiano, é mera ilusão?

Para explicar o significado e, no limite, a comunicação, Quine lança mão de três elementos importantes do tipo de empirismo que adota: a idéia do uso, a primazia da

32 Quine, W. V. O. Falando de objetos. In: Ryle, Strawson, Austin, Quine – Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1989, pp.51-65.

33 Murphy, J. Pragmatism – From Peirce to Davidson. Bouder:Westview Press, 1990, pp. 79-94.

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sentença sobre a palavra e o holismo.34 No que segue, farei uma exposição sucinta desses três elementos.

Seguindo John Dewey (1859-1956), Quine diz que se a noção de significado é legítima, isso se deve ao fato de que podemos explicá-la apelando para a observação do comportamento verbal e para o uso lingüístico. Assim, segundo tal linha de raciocínio, poderíamos dizer que duas palavras têm o mesmo significado, ou seja, são sinônimas, se estão sujeitas ao mesmo uso. Tal procedimento nos leva ao segundo elemento, que Quine herda de uma tradição que remonta a Gottlob Frege (1848-1925). A doutrina de Frege para o significado obedece ao slogan: antes que as palavras são as sentenças que significam algo.

Aqui é necessário exprimir bem a posição contextualista de Quine. Dizer que uma palavra tem significado somente no contexto de uma sentença é não considerar o que é básico para quem adota o contextualismo: são as palavras individuais que têm um uso nas sentenças e, sendo assim, se é claro qual o papel que uma palavra desempenharia em uma sentença, essa palavra tem um significado independentemente de incorporar ou não o papel. Mas Quine não adota tal posição: ele não diz que palavras individuais carecem de significado. O que ensina é que o significado de uma palavra tem de ser explicado considerando seu papel em sentenças, de modo que a sinonímia de palavras está articulada à equivalência semântica de sentenças. Duas palavras ou frases são sinônimas se substituindo uma pela outra obtemos sentenças semanticamente equivalentes. De modo mais preciso: duas sentenças são equivalentes se seus enunciados estão motivados pelas mesmas condições de estímulo. 35

Quine busca refinar a visão sobre seu objeto. Para tornar-se livre do que seriam motivos semanticamente irrelevantes nos usos da linguagem, centra seu foco na noção de “significado cognitivo”. Tal recorte eliminaria os “aspectos emocionais e poéticos” dos enunciados. Assim, define que “o significado cognitivo de uma sentença é aquele aspecto de seu significado que é relevante para sua verdade e falsidade”. Ele expõe dois tipos de explicação para o significado cognitivo ou equivalência. O primeiro implica no terceiro marco do seu modo de ser empirista, que é o seu holismo. O segundo implica em falar de condições de verdade.

Primeiro: o holismo. O entendimento do holismo demanda alguns pressupostos da doutrina do positivismo lógico, a escola filosófica que fez parte da formação de Quine e contra a qual se revolta. O holismo, como elemento explicativo do significado cognitivo, está relacionado com a crítica de Quine ao verificacionismo dos positivistas lógicos. O que diz tal doutrina?

Para os positivistas lógicos o significado de uma sentença é dado pelo método pelo qual ela é confirmada ou infirmada. Como é isso? Há, para eles, três tipos de enunciados: os analíticos, os sintéticos e, enfim, o que é non sense do ponto de vista cognitivo. Três exemplos clareiam o que queremos dizer. Primeiro: “Todo solteiro é um homem não casado”. Esta é uma frase analítica. Quando queremos saber se ela é verdadeira ou falsa, nosso método é apenas um: nada procuramos de empírico nela, e nos fiamos única e

34 Glock, H.J. Quine and Davidson on language, thought and reality. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, pp. 139-42.

35 Idem, ibidem, p. 140.

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exclusivamente no arranjo da linguagem. Tal frase é uma “verdade lógica”. Segundo: “Joana é casada”. Essa é uma frase sintética. Ela agrupa dois elementos – “casada” e “Joana” – e acrescenta uma informação, a de que Joana está casada. Quando queremos saber se ela é verdadeira ou falsa, nosso método é apenas um: temos de checar empiricamente, isto é, ou perguntamos para alguém ou para Joana, ou vamos ao cartório e olhamos os documentos, etc. Se a informação se confirma, então tal frase é uma “verdade factual”.

Quine discorda dessa visão que acredita poder classificar desse modo os enunciados. Por uma argumentação sofisticada e célebre, ele diz que os critérios de analiticidade dos positivistas lógicos não poderiam sustentar a idéia de uma divisão nítida entre verdades analíticas e verdades sintéticas.36 Sendo assim, não pode ver como, por meio da verificação de uma sentença, poderíamos estar dizendo que esta tem ou não significado. Devido a seu holismo – que é a doutrina que apela para a idéia de que devemos tomar o todo em articulação com as partes –, entende que qualquer enunciado só pode ser confirmado ou infirmado em relação a certo conjunto de enunciados. Ele não abandona a idéia de que o significado é dado pela pergunta “o que conta para uma sentença ser verdadeira?”. Mas, de modo algum acredita que a busca para a resposta pode ficar presa a uma sentença. O passo inicial era não ficar preso a palavras e, então, tomar o significado a partir de sentenças. Agora, tal idéia é ampliada e indica que antes que sentenças o significado é para ser investigado no modo como podemos atribuir valor de verdade a uma sentença quando esta é checada quanto à harmonia ou desarmonia com uma rede de enunciados a qual ela pertence ou pertencia. É preciso ver a verdade e a falsidade – o significado, portanto – observando a relação entre a sentença em questão, tomando nota de detalhes, e a rede de enunciados ao qual este enunciado singular se articula. A verdade e a falsidade são funções de uma relação entre um conjunto teórico (ou toda uma linguagem) e um enunciado em questão, pertencente a tal conjunto (ou linguagem). O mesmo ocorre, portanto, ao significado.

Segundo: as condições de verdade. Quine diz que o significado cognitivo ou equivalência deve estar sob a mesma advertência holística que aparece na primeira explicação. No caso, duas sentenças são semanticamente equivalentes se têm as mesmas condições de verdade. Os significados das sentenças são dados pelas suas condições de verdade, e os das palavras são abstrações das sentenças nas quais estão. Ou seja: os significados são vistos na medida em que as sentenças individuais têm suas próprias condições de verdade fixadas.37

As duas explicações não são equivalentes. Quine as condensa em uma só. Considera que as condições de verdade de uma sentença S, se S é uma sentença que podemos checar sua verdade ou falsidade por meio de observação, são as mesmas condições segundo as quais um falante assentiria S. Ao menos nos casos básicos, para ele, condições de assentimento, evidência e condições de verdade, coincidem. Uma vez admitida essa ligação, então há só um passo na direção de tirar as condições de verdade de uma sentença do campo puramente abstrato, articulando-as ao comportamento humano. Sendo que o significado se prende às condições de verdade, também ele passa

36 Quine, W. V. O. Two dogmas of Empiricism. In: Martinich, A. P. The philosophy of language. New York: Oxford University Press, 1996, pp. 39-52.

37 Glock, op.cit, p. 141.

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a depender do comportamento humano. O resultado é, portanto, uma concepção comportamentalista do significado.

A concepção comportamentalista do significado se apresenta a partir de uma noção especificamente quineana, a de “stimulus meaning”. Em tal expressão, Quine aglutina a classe de estimulações que motivariam um falante, por exemplo, Joana, a assentir ou dissentir de uma sentença S, uma sentença de observação, como “o gato de Joaninha pegou um rato”. Quineamente, dizemos que o “stimulus meaning” de uma sentença S é determinado pelas estimulações neurais que motivariam os falantes a concordar com S.

Davidson pode concordar com todos os passos dados por Quine, exceto este último: não faz parte de sua doutrina a noção de “stimulus meaning” ou qualquer elemento similar

6.2 Chegando à Convenção T

O que Davidson faz para se livrar do impasse quineano e, ao mesmo, não voltar a qualquer posição derrotada do “positivismo lógico”, é colocar sobre outras bases a discussão a respeito do significado.

Davidson promove uma profunda alteração na maneira de abordar o significado. Diante da pergunta “o que é para as palavras, enfim, significarem o que significam?”, ele não se empenha na busca de uma resposta direta. Toma um caminho diferente, como que um tipo de meta-discussão a respeito do significado – similar ao que faz na sua teoria da ação. Persegue qual a forma que uma teoria do significado deveria assumir, sendo tal teoria adequada a uma linguagem específica. Assim, antes do significado, o que Davidson investiga é o caráter geral de uma teoria do significado; isto é, o caráter geral do que poderia ser chamado de teoria do significado.

Teorias do significado, em geral, caem sob o rótulo de teorias “analíticas”, ao passo que a teoria de Davidson é “construtiva”. A teoria de Quine, que é causal e comportamentalista, é do primeiro tipo. Assim também várias outras como, por exemplo, a tradicional teoria referencial (que é o nosso senso comum), as teorias verificacionistas, as que abordam o significado apelando para o uso (como em Wittgenstein), as teorias da intenção comunicacional (como em Grice) ou a dos atos de fala (como em Austin). A teoria de Davidson, diferentemente, não diz o que é o significado. Mais uma vez, vale aqui seu modo descritivo de filosofar. O que faz é gerar para cada sentença S (real ou potencial) de uma linguagem específica, um teorema que dá o significado de S e que, em particular, mostra como o significado depende dos componentes de S.38

A teoria do significado davidsoniana é menos uma teoria do significado que uma teoria da comunicação lingüística. Sua questão central não é dizer o que é para uma expressão significar algo, nem mesmo o que é para uma expressão ser sinônimo de outra expressão. Este é o projeto de Quine. Para Davidson, a pergunta central é “o que é entender o que um falante disse de uma ocasião particular?”. O que deve ser alcançado se tal pergunta é respondida? Isto: alguém que conhece a teoria está na posição de entender toda e qualquer expressão, real ou potencial, de uma linguagem particular L. 38 Glock, H. J. Quine and Davidson on language, thought and reality. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 142.

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Uma teoria, nesses termos, deve satisfazer as seguintes condições: adequação extensional, verificabilidade empírica, não circularidade e axiomatização finita. A teoria com extensão adequada é aquela que, para cada sentença S de L, gera um teorema que especifica o significado de S. Se definida como verificável empiricamente, tal teoria age desse modo na amplitude em que não demanda qualquer conhecimento prévio a respeito do que os falantes de L querem dizer com as suas expressões. Não é circular quanto à evidência na qual ela se baseia, pois essa evidência não implica conceitos muito próximos aos aliados e parentes do significado, que é o que ela pretende explicar. Por fim, a axiomatização finita a conduz a ter teoremas que dão os significados como geradores de um número finito de regras de inferência e axiomas.

Na busca de satisfazer tais condições para sua teoria, Davidson adota três idéias básicas, presentes na filosofia da linguagem desde Glottlob Frege: 1) composicionalidade, 2) contextualismo e 3) condicionalidade.

1) A composicionalidade implica na idéia de que o significado de uma sentença édeterminado unicamente pelos significados de seus constituintes e pelo modo pelo qual eles se combinam na sentença.

2) O contextualismo diz que as sentenças têm prioridade semântica sobre as palavras. Este princípio seria incompatível com o anterior, mas em Davidson ele deve ser lido sob a luz de uma compreensão holística das palavras e das sentenças, de modo a percebermos que uma sentença singular só pode ser entendida pelo entendimento de todas as palavras e todas as sentenças. No caso, o que ocorre é que Davidson segue Quine e ambos seguem Wittgenstein: entender uma sentença é entender uma linguagem toda – eis uma frase célebre do filósofo vienense que ecoa em Davidson.39 Na forma como Davidson aborda a linguagem, os significados das palavras são abstraídos dos seus papéis em sentenças. Não é possível entender uma sentença sem entender outras sentenças nas quais os componentes da primeira também estão presentes. Mas, nas novas sentenças há novos componentes, que por sua vez só serão entendidos quando percebidos em outras novas sentenças e assim por diante.

3) Por fim, a condicionalidade quer dizer condicionalidade à verdade. Os teoremas de uma teoria semântica dão o significado de uma sentença S ao especificar as condições de verdade de uma sentença. Para Davidson, dar as condições de verdade é um modo de fornecer o significado de uma sentença. Entender um nome é diferente de entender uma sentença. Para o nome há o que é apontado, o que o nome fixa, para a sentença o que é necessário é saber sob que condições ela é verdadeira. Isso, davidsonianamente, escapa do realismo uma vez que não se trata de saber como o mundo é, mas se trata, sim, de saber como deve ser se uma sentença é verdadeira.40

Considerando todos esses pré-requisitos, Davidson constrói a forma dos teoremas que se adaptariam a uma teoria do significado adequada. Essa sua construção se faz a partir de passos intuitivos.41 Vejamos os passos.

39 Ibidem, p. 146.

40 Ibidem, p. 147.41 Davidson, D. “Truth and meaning”. In: Inquires into truth and interpretation. Oxford: Oxford University Press, 2001. Glock, H. G. Op. cit., 147-51.

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Queremos expor um teorema, para uma linguagem L, que dê o significado de uma sentença S de L. A postura intuitiva, neste caso, que é praticamente a do senso comum, não difere daquela das teorias referenciais do significado. O mais simples é fazer o teorema corresponder à seguinte formulação:

(I) S significa l.

Assim, em I, “S” denota uma sentença de L e “l” é seu significado. A idéia básica aqui é a de que o significado é uma entidade que corresponde a um enunciado ou estado de coisas. Sabemos que Quine tem uma objeção forte contra tal formulação: significados não são entidades ou estados de coisas, nem no velho sentido aristotélico (de substância) nem no sentido de que são peças do mundo ou disposições de peças do mundo nomeadas ou indicadas por enunciados. A “experiência do coelho” e toda a negação do “mentalês”, ou seja, tudo o que cabe na crítica de Quine às teorias semânticas referenciais, colocam tal formulação fora de campo.

Podemos dar um passo além da formulação da teoria referencial. Isso implica em não tratarmos os lados do teorema, S e p, como entidades. Da seguinte maneira:

(II) S significa que p

Em II, “S” é uma sentença de L e “p” é uma sentença em uma metalinguagem de L(uma linguagem que expõe ou explica L para um segundo público ou para o mesmo público a fim de melhor compreensão). Assim, o teorema II, diferente do I, não reifica a linguagem L, não a faz ligar-se a entidades que poderiam gerar uma volta às semânticas referenciais. Mas aqui também há um problema. Tal teorema não dispensa o termo “significa”, e isto se choca com um importante pré-requisito: o teorema não deve lidar com termos que ele tem de explicar, para não ser acusado de circularidade. Mas há ainda uma objeção maior: tal teorema leva a teoria a abandonar o seu necessário caráter extensional. O que isso quer dizer?

A intensão é a conotação ou o significado de uma expressão enquanto oposta à extensão, que é a denotação, que consiste em tudo aquilo que cai sob o significado da expressão. Em outras palavras: a extensão de um termo geral é o conjunto de elementos individuais aos quais ele é aplicado corretamente. A extensão de “casa” inclui toda e qualquer casa (inclusive as passadas e futuras) no mundo; a intensão de um termo geral, por sua vez, é o conjunto de características que são compartilhadas por todos os elementos aos quais ele se aplica.

O teorema que procuramos deve ter caráter extensional. Qual teorema que associa duas linguagens e é exclusivamente extensional, ou seja, que não nos vai fazer temer a circularidade, uma vez que não usará para explicar o significado conceitos que, sendo intensionais, já estariam próximo aos da noção de significado? São necessários, para se chegar a tal teorema, mais dois passos.

Primeiro, eliminamos o elemento intensional “significa que” substituindo-o por um elemento tipicamente extensional, como o “se e somente se”, que garante o que

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queremos: que exista equivalência entre o lado esquerdo e o direito do teorema. Assim, ficamos com:

(III) S se e somente se p.

Aqui, em III, ainda não temos um bom teorema, pois “S” não é uma sentença. É, sim, o nome de uma sentença de L. Para que tenhamos uma sentença no lado esquerdo que venha a equivaler a p, devemos ter um predicado para S. O objetivo que se mantém é que o teorema garanta a equivalência de ambos os lados. A equivalência deve ocorrer, por exemplo, da seguinte forma: “‘Joana é mulher’ se e somente se Joana é mulher”. Fica claro, então, que o predicado que se pede para S é o predicado “é verdadeiro”. Assim, chegamos a uma boa forma para os teoremas de uma teoria do significado que seja somente extensional:

(IV) S é verdadeiro se e somente se p.

A formulação IV a que chegamos é nada mais nada menos que a chamada “convenção T” (T), um elemento da teoria semântica da verdade formulada por Alfred Tarski.42 Écom ele que Davidson opera, ainda que fora do contexto de aplicação da teoria tarskiana.

6.3 A teoria da verdade de Tarski

A teoria semântica da verdade, como Tarski diz, é uma teoria “filosoficamente neutra”.43 Ou melhor, Tarski vê sua teoria da verdade como descritiva. Adotá-la, não implicaria em se fazer escolhas por posições epistemológicas ou, digamos, filosóficas. Pode-se adotá-la e permanecer realista ou realista crítico, ou idealista ou empirista ou metafísico – isso é o que Tarski faz questão de lembrar.

O objetivo de Tarski é dar uma definição da verdade que possa servir como um crivo para toda e qualquer teoria da verdade, de maneira que possamos ficar apenas com aquelas teorias que, minimamente, possuem condições de prometerem algum êxito.

Seu ponto de partida é a frase clássica de Aristóteles: “dizer do que é que ele é, ou dizer do que não é que ele não é, é a verdade”. Tarski, como outros antes e depois dele, entende que temos aí uma noção de verdade contra a qual seria pouco plausível lutar. A definição é intuitivamente boa. Nenhum de nós se sentiria confortável negando-a. Todavia, o que Tarski não faz, e outros fizeram, é criar uma imediata vinculação entre “é” (e o “não é”) da frase aristotélica a uma espécie de ponto ontológico, de modo a gerar, sem qualquer crítica, uma frase que possa ser tomada como necessariamente interior a um tipo de visão correspondentista-realista. Tarski se abstém de falar em metafísica ao ler tal frase. Ele se mantém, apenas, com a intuição plausível apresentada na frase, e com ela elabora sua condição de “adequação material” para a noção de verdade.

42 Tarski, A. The semantic conception of truth and the foundations of semantics. In: Martinich, A. P. (org.). The philosophy of language. Nova York: Oxford University Press, 1996.

43 Idem, ibidem, pp. 61-84.

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Com a intuição dada pela sentença aristotélica, e permanecendo no campo semântico (isso é importante ter sempre em mente), Tarski elabora o seguinte caso concreto a respeito do que se pode dizer de uma sentença sobre seu valor de verdade. Uma vez que enunciamos que

(1) a neve é branca,

e queremos saber sobre qual condição podemos dizer que tal frase é falsa ou verdadeira, estamos em acordo com a intuição da frase aristotélica ao falarmos que

(2) a sentença “a neve é branca” é verdadeira se e somente se a neve é branca.

O que está entre aspas, e que se posiciona do lado esquerdo, é um enunciado – umacitação. O que há à direita é algo cuja grafia é a mesma da do interior da citação. O que há ligando esquerda e direita é: é verdadeira se e somente se. Considerando o que está entre aspas como o nome da sentença e o que está à direita como a própria sentença, podemos substituir o nome por qualquer outro nome, uma letra do alfabeto (X), e a própria sentença por uma outra letra do alfabeto (p), e o se e somente se, seguindo a notação da lógica, podemos substituir por sse. Então temos:

(T) X é verdadeiro sse p

Qualquer equivalência dessa forma é uma “equivalência da forma T”. Tarski diz que isso é, parcialmente, o que se deve fazer para colocar em uma forma precisa as condições sob as quais consideramos o uso e a definição do termo “verdadeiro”. Não se trata de uma definição completa de verdade, mas uma definição parcial de verdade. A definição geral seria uma conjunção lógica de todas as definições parciais (uma conjunção lógica é, por exemplo, o “e”; então, a definição geral de verdade implicaria a articulação de todas as definições parciais, uma vez que as definições parciais apenas nos dão em que consiste, para uma sentença individual, sua condição de ser verdadeira).

Tarski batiza sua concepção de “concepção semântica de verdade”. Semântica, para ele,é uma disciplina que lida com determinadas relações que se dão entre expressões de uma linguagem e os objetos (ou estados de coisas) de tais expressões.

Conceitos semânticos, Tarski enfatiza, são: a designação, a satisfação e a definição. Por exemplo, a expressão “o pai do seu país” designa (denota) George Washington; neve satisfaz a função sentencial (a condição) “x é branca”; a equação “2.x = 1” define (determina unicamente) o número ½. Tarski ensina que as palavras “designa”, “satisfaz” e “define” expressam relações, isto é, relações entre expressões e objetos de tais expressões. A palavra “verdadeiro” – Tarski também ensina – é de uma natureza lógica diferente de tais expressões: ela expressa uma propriedade (ou denota uma classe) de certas expressões ou sentenças. Ele propõe, então, que se use de um conceito exclusivamente semântico para definir verdade, que é o conceito de satisfação. Ao dizer isso, Tarski sabe que todas as noções semânticas que usamos na linguagem cotidiana estão envoltas com as antinomias e paradoxos que essas linguagens contêm. O mais

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famoso desses paradoxos é a antinomia do mentiroso.44 Tarski quer ver seu conceito de verdade em uma linguagem que não se envolva com paradoxos dessa ordem.

Ele acredita poder construir linguagens especificadas. Através de uma série de condições, Tarski se propõe a mostrar como regrar uma forma de linguagem. Quer formalizar uma linguagem. Em uma linguagem formalizada, os teoremas são as únicas sentenças que poderão ser afirmadas. Assim, as linguagens naturais faladas saem do campo circunscrito por Tarski, embora possamos imaginar linguagens formalizadas muito próximas das linguagens naturais. Nesse caso, a montagem de uma relação entre uma linguagem-objeto e uma metalinguagem é a proposta tarskiana. A linguagem-objeto é a que fala das próprias coisas – fala sobre todas as coisas. A metalinguagem é a que fala sobre o que essa primeira linguagem fala. O vocabulário da metalinguagem é determinado por condições previamente estabelecidas sobre as quais a definição de verdade será materialmente adequada. Essa definição tem de implicar todas as equivalências da forma T:

(T) X é verdadeiro se e somente se p.

A definição, ela mesma e todas as equivalências implicadas por ela, são formuladas na metalinguagem. O símbolo “p” em (T) representa uma sentença arbitrária de nossa linguagem-objeto. Daí segue que toda sentença que ocorre na linguagem-objeto, como Tarski diz, deve também ocorrer na metalinguagem. A metalinguagem deve conter a linguagem-objeto como uma parte. Isso é necessário em qualquer caso para a prova de adequação da definição. O símbolo “X” em (T) é o nome da sentença que “p” representa. A metalinguagem deve ser suficientemente rica para fornecer todas as possibilidades de construção de um nome para toda e qualquer sentença da linguagem objeto. E, é claro, a metalinguagem deve conter termos de uma lógica de caráter geral, como, por exemplo, a expressão “se e somente se”.

A metalinguagem deve ser rica, porém suficientemente clara para explicar o significado de um termo sem se envolver com os paradoxos que se quer evitar, e que são problemas para a linguagem-objeto. O mecanismo pelo qual isso pode ser observado é a utilização de uma outra noção semântica, a de satisfação.

A satisfação é uma relação entre objetos e expressões. Estas são chamadas de funções sentenciais. São, por exemplo, expressões como “x é branca”, “x é maior que y” etc. Parecem sentenças, mas não são sentenças uma vez que possuem variáveis, isto é, “x”, “y” etc., enquanto que as sentenças não possuem variáveis. Essa definição de funções sentenciais em linguagens formalizadas, segundo Tarski, permite a aplicação do chamado “procedimento recursivo”. O que é tal procedimento? Exatamente o seguinte: primeiro, descrevemos as funções sentenciais que possuem estruturas mais simples e depois indicamos o que temos de fazer para construir funções a partir das mais simples. Tais procedimentos seriam, por exemplo, operações de conjunção ou disjunção lógicas de duas funções dadas, utilizando a palavra “e” ou a palavra “ou”. Nesse caso, uma função pode ser definida como simples se ela não contém nenhuma variável livre. Considerando a noção de satisfação, pode-se tentar definir a função simples dizendo que

44 O paradoxo do mentiroso tem sua descoberta atribuída, primeiramente, a Eubulides, no quarto século antes de Cristo. Basicamente é o seguinte. Um homem diz: “O que eu estou dizendo é falso”. Se ele diz é verdadeiro então é falso, e se é falso então é verdadeiro, e segue disso que deve ser ambos, o que é um absurdo.

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objetos dados satisfazem uma função dada se esta última torna-se uma sentença verdadeira quando substituímos suas variáveis livres por nomes de objetos dados. O exemplo clássico de Tarski é o seguinte:

neve satisfaz a função sentencial“‘x’ é branca”uma vez que“a neve é branca” é verdadeira.

O que se quer, neste trabalho de Tarski, é definir verdade usando a definição de satisfação. Para obter a definição de satisfação temos, antes, segundo Tarski, de aplicar novamente um procedimento recursivo, ou seja, temos de indicar quais objetos satisfazem as funções sentenciais mais simples. Por exemplo, determinados números satisfazem a disjunção lógica “x é maior do que y ou é igual a y” se satisfazem ao menos uma das funções “x é maior do que y” ou “x é igual a y”. Uma vez que essa definição geral de satisfação é vista como válida, ela se aplica automaticamente àquelas funções sentenciais que não contêm nenhuma variável livre, ou seja, sentenças. O que Tarski conclui é que para uma sentença somente dois casos são possíveis: uma sentença ou é satisfeita por todos os objetos ou por nenhum objeto. A definição de verdade (e de falsidade) é, então, a seguinte: uma sentença é verdadeira se ela é satisfeita por todos os objetos, caso contrário, é falsa. O que se faz aqui é determinar a extensão do termo “verdadeiro”.

6.4 A comunicação humana

Davidson não chega a uma teoria do significado propriamente dita, mas a algo até mais amplo: condições para uma boa teoria do significado. Uma boa teoria do significado, Davidson diz, deve gerar sentenças ou teoremas da forma

(T) S é verdadeiro se e somente se p.

Tomando (T), devemos de considerar S como identificando uma sentença na linguagem-objeto; esta sentença é a que ganha as aspas. Em (T), p é uma sentença, e está na linguagem da teoria, ou seja, a metalinguagem. Nesta última estão as condições sob as quais a sentença que é chamada por S é verdadeira. Então, se o português é a metalinguagem e o alemão a linguagem-objeto, a teoria nos fornece o teorema de ligação entre o português e o alemão:

(S) “Schenee ist Weiss” é verdadeira se e somente se a neve é branca.

Davidson requer, então, além do teorema acima, mais três noções chaves e, por fim, uma estratégia. Isso é tudo que ele precisa. Esses elementos, aplicados em conjunto, garantem a Davidson sua abordagem do significado, que, então se completa como algo bem maior que uma teoria do significado, se transformando em uma teoria da comunicação humana. As noções que devem ser acopladas ao teorema são as de (1) interpretação radical, (2) princípio de caridade e (3) holismo; e a estratégia onde essas noções são usadas é a de (4) triangulação.

1) A interpretação radical é aquilo com o qual Davidson, ou o intérprete davidsoniano, inicia um processo de entendimento de uma linguagem. É o modo como pretende ficar

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sabendo do significado dos enunciados de uma linguagem considerando que vai partir de um grau zero de informação a respeito do conteúdo da linguagem que quer interpretar. Isto é, nada sabe sobre o falante, nem mesmo se o falante é um falante ou apenas um balbuciante. Para construir sentenças-T que vão ligar o que o falante diz e o que ele, intérprete, diz – e tais ligações exigem que as sentenças ligadas tenham o mesmo valor de verdade –, faz-se necessário aplicar o princípio de caridade.

2) Aplicar o “princípio de caridade”45 é o que o intérprete faz ao conceder ao falante o que, em uma acepção específica, Davidson toma como racionalidade. Aqui, no caso, trata-se de conceder ao falante o seguinte: primeiro, deve-se supor que o falante que acredita que p e q então não acredita que não-p; segundo, considerando tudo que é possível e plausível de ser considerado, deve-se supor que cada falante sempre escolherá realizar algo que ele julga ser o melhor. Davidson tem um projeto de ampliar ao máximo as possibilidades de explicar racionalmente o nosso comportamento, de um modo filosófico sem, no entanto, qualquer apelo para uma metafísica do tipo da de Platão ou da de Hegel; trata-se apenas de conceder ao que vai ser interpretado aquilo que o intérprete possui na sua linguagem, ou seja, a metalinguagem, como o básico que a faz funcionar. Isso é o suficiente, se ajudado pela construção holística das sentenças, para que o intérprete possa vir a escolher os enunciados que vão ficar dos dois lados das sentenças-T.46

3) O holismo47 é a perspectiva que diz que a interpretação envolve a consideração de um número de elementos interdependentes, e que está limitada pela necessidade da manutenção da coerência do todo. Assim, uma sentença verdadeira como “a neve é branca” tem de estar no campo de outras sentenças, também verdadeiras, que dizem, por exemplo, que “isto é neve”, “isto é branco”, “a tela do computador é boa se é branca”, “as páginas dos livros são, em geral, brancas” etc. Os teoremas, que são sentenças-T (sentenças da forma da Convenção T), apenas colocam em equivalência as sentenças que possuem igual valor de verdade, ou seja, correlacionam sentenças com valores de verdade não diferentes.

Então, a boa teoria do significado visa correlacionar sentenças da metalinguagem comsentenças da linguagem-objeto, e tal correlação depende delas terem o mesmo valor de verdade. Isso quer dizer que o teórico, que é ao mesmo tempo o intérprete que detém a metalinguagem e quer tomar para si a linguagem-objeto, tem apenas um único trabalho: o de ver se as condições de verdade designadas pela teoria para uma sentença são mesmo as condições de verdade da sentença. Os teoremas nada oferecem além disso. A teoria davidsoniana não torna mais compreensível nosso entendimento das condições de verdade de uma sentença. O que a teoria davidsoniana faz é relacionar o conhecimento do intérprete a respeito das condições de verdade de cada sentença às palavras nas sentenças que representam papeis idênticos em outras sentenças. O intérprete ou teórico davidsoniano tem de descobrir, primeiramente, as sentenças que são mantidas, segundo

45 Davidson, D. Radical interpretation. In: Inquiries into truth and interpretation. Oxford: Oxford University Press, 2001. Ramberg, B. Donald Davidson’s philosophy of language – an introduction. Nova York: Basil Blackwell, 1989, pp. 64-83.

46 Glock, H. G. Op. cit. Davidson, D. The problem of objectivity. In: Problems of rationality. Oxford: Oxford University Press, 2004. Glock, H. G. Op. cit. , pp. 137-67.

47 Davidson, D. The problem of objetivity. In: Problems of rationality. Oxford: Oxford University Press, 2004, p. 9.

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um tempo, um lugar e condições específicas, como verdadeiras pelo falante. Em seguida, deve escolher as que serão candidatas a participar de sentenças-T, que as correlacionarão com as sentenças que ele, intérprete, também mantém como verdadeiras segundo um tempo, um lugar e condições específicas afinadas com a do falante. Construídas tais sentenças-T, e todos os axiomas da teoria, o que se tem é uma teoria do significado para o falante da linguagem, no caso, a linguagem-objeto.

O êxito da interpretação radical, segundo a aposta de Davidson, é dependente do conhecimento que o usuário de sua teoria possui (com certo grau de exatidão) de que os enunciados dos falantes significam (em um alto grau) aquilo que as crenças dos intérpretes significam. Isso porque o que se acredita em uma linguagem é o que o falante de tal linguagem mantém ou sustenta, é o que ele toma como verdade. A crença, então, significa para ele algo que o intérprete não precisa saber o que é; o que o intérprete precisa saber é que, uma vez respeitado o holismo e o princípio de caridade, a interpretação radical pode ser levada adiante.

Em hipótese alguma, o fato da interpretação radical ter sucesso, deve nos levar a acreditar que Davidson está dizendo, contra Quine, que é possível uma tradução de uma linguagem em outra, no sentido da palavra “tradução” enquanto correspondência termo a termo entre uma linguagem L e uma linguagem L’. Davidson caminha por uma noção de indeterminação da interpretação, como Quine. É necessário distinguir, no entanto, que indeterminação da tradução, que é algo que pode levar um adversário de Davidson querer acusá-lo de relativista, não prejudica em nada que seus partidários possam dizer, em seu favor: com toda a indeterminação, ainda assim, nós podemos apostar no entendimento mútuo. A linguagem, ou melhor, as linguagens (ou melhor, ainda: os jogos de linguagem), em Davidson, mostram o quanto a comunicação é executável e executada com mais sucesso do que os filósofos modernos imaginaram. O mecanismo que Davidson chama de “triangulação”48 é o que favorece a interpretação radical se tornar algo plausível e possível de ser tomada como uma teoria filosófica empírica do significado, sem vínculo com qualquer metafísica.

4) Davidson nos diz que, se somos intérpretes, e de fato somos constantemente intérpretes (pois estamos em comunicação o tempo todo), então estamos sempre identificando as crenças por meio de sua localização no padrão de crenças do falante. Tal padrão nos permite determinar o conteúdo da crença observada, se ela é logicamente consistente com outras do falante. Para colaborar na averiguação disso, Davidson fala em “triangulação”. A interpretação funciona no interior de um triângulo cujas linhas de intersecção nos dão três pontos: o falante, o intérprete e o meio que falante e intérprete

48 O processo de triangulação é explicado mais adiante. Vale notar, aqui, uma sistematização didática. Davidson enumera três tipos de interação (e de ajustamento de comportamento) entre os elementos que estão nos ângulos de um triângulo ABC, onde os ângulos A e B são criaturas e o ângulo C é um meio compartilhado por elas. Primeiro tipo: há o que poderíamos chamar de comunicação animal, onde A e B trocam alguma sinalização diante de um mesmo estímulo emitido por C. Segundo tipo: há o estabelecimento do local para o surgimento da noção de erro e, portanto, da possibilidade da emergência de atitudes proposicionais, o que dá a condição para a existência de pensamento e linguagem. Terceiro tipo: há a situação onde A e B já estão equipados de pensamento e linguagem, mas lhes falta uma linguagem comum, de modo que a interação triangular é que vai fazer com que seja possível a emergência da interpretação. Davidson, D. Triangulation. In: Kotatko, P. e outros (orgs.). Interpreting Davidson. Stanford: CSLI Publications, 2001, pp. 292-94.

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compartilham. O trabalho da interpretação é, então, o de sistematizar várias tentativas do intérprete de fazer com que sua teoria da interpretação torne possível um acordo entre as atitudes mantidas por ambos, intérprete e falante. Ainda que a indeterminação nunca chegue ao fim, o que se consegue, certamente, é uma alta definição sobre os pontos de discordância.49

A indeterminação da interpretação (Quine) é uma diferença que não faz diferença. Ela é sabida por nós. Mas isso não implica que temos de admitir que os grupos particulares de usuários de linguagens que se relacionam com o grupo maior de todos os usuários de linguagens – a humanidade – não possam, através da triangulação, dispensar todo e qualquer ponto de vista que sustente que o relativismo é válido.

Parte III

7. Linguagem e pensamento

Ambas, a teoria da ação e a teoria da interpretação davidsonianas possuem derivações e conseqüências para a metafísica. No interior desta, são acionadas a filosofia da mente e a epistemologia.

A teoria da ação davidsoniana diz que razões e causas podem se igualar. Então, abre um campo para uma discussão em filosofia da mente, em especial sobre a relação entre corpo e mente. Pois, para vários filósofos, o que é corpóreo ou físico é visto sob relações causais e o que é não corpóreo, ou seja, mental, é colocado sob relações racionais. Mas se há identidade entre causas e razões, haveria identidade entre mental e físico? Essa é uma das questões centrais da metafísica, tratada atualmente segundo o tópico da filosofia da mente.

A teoria da interpretação davidsoniana afirma que o melhor modo de descrever como que nós, humanos, nos entendemos, é abandonar a idéia de significado e maximizar a verdade. Trata-se de tomar as sentenças que são verdadeiras em nossa linguagem (aquelas que não abrimos mão) e confrontá-las com as sentenças, na linguagem daqueles com que estamos entrando em interação, que são verdadeiras (aquelas que eles não abrem mão). A teoria da interpretação prima pela idéia de atribuição de racionalidade a outro e, a partir daí, busca elaborar um manual capaz de comparar o que é verdade com o que é verdade, ou seja, crenças sustentáveis de ambos os lados da interação lingüística. Esse procedimento não estaria preso ao problema do relativismo e, a partir daí, nutrindo o ceticismo? Essas são também questões centrais da metafísica, mas tratadas atualmente segundo o tópico da epistemologia.

Nos dois primeiros itens da seqüência (“Identidade entre eventos físicos e mentais” e “O mental é anômalo”), neste tópico, discutirei as questões de filosofia da mente, nos itens restantes, as da epistemologia. 49 Davidson, D. Externalisms. In: Kotatko, P. and others (orgs.). Interpreting Davidson. Stanford: Center for the Study of Language and Information Leland Stanford Junior University, 2001.

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7.1 Identidade entre eventos físicos e mentais

A filosofia da mente toma como ponto de partida Descartes. Para este, o corpo é algo que deve ser definido pelas três dimensões que ocupa no espaço, pela forma e pela posição temporal e, enfim, pela capacidade de deslocamento. O pensamento (dúvida, afirmação, negação, lembrança, etc.), ou o que é mental, é exatamente o que não possui as propriedades do que é físico. Por não possuir as propriedades do físico, em especial o fato deste se movimentar no campo espaço-temporal e, então, aparecer de modo nítido como sob interação causal, o mental se torna fonte de problemas. Um dos principais problemas é o da sua relação com o que é físico. Como descreveríamos a relação do que é corpóreo com algo que não é corpóreo?

Uma boa parte da filosofia atual tende a dizer que o dualismo cartesiano não tem qualquer razão para sobrevida. O que é mental e o que é corpóreo não são categorias metafísicas nem essências distintas. Uma boa parte da metafísica, em especial a que faz a ponte entre Platão e Descartes, tem uma marca inconfundível: o dualismo ontológico.50 E diversamente, a visão atual, a das ciências modernas, nos educa no sentido de tomarmos o mundo como um e mesmo mundo, aquele no qual habitamos e que é o nosso mundo natural. Nele, nada pode ocorrer de sobrenatural ou de supranatural. A doutrina do naturalismo atual diz que todas as manifestações de nossa vida podem ser assumidas como eventos exclusivamente físicos, sujeitos às leis naturais – as leis do universo. Aprendemos que vivemos todos sob o mesmo teto da natureza.

A idéia de Davidson é a de manter a tese de que o fisicalismo51 tem razão ao dizer que todos os eventos são físicos, mas que tal doutrina não tem o direito de querer reduzir todos os eventos descritos nos termos do vocabulário do mental a eventos descritos nos termos do vocabulário do físico. Mesmo se conseguisse assim fazer, o resultado seria de pouca utilidade. Davidson reformula o que pode ser considerado uma teoria da identidade entre mental e físico – dando sustentação ao fisicalismo – de maneira a poder qualificar eventos como mentais ou físicos a partir de suas descrições em termos mentais ou físicos – descartando o que seria o redutivismo do fisicalismo tradicional.

A questão é, então, a seguinte: como pode haver identidade entre mental e físico se o mental se mantém fora de uma possível cobertura levada adiante por leis estritas e se o mental não pode ser reduzido ao físico? A idéia é dizer que o mental é esquisito, anômalo. Para manter tal posição, Davidson precisa criar uma teoria da identidade que não seja a mesma da de outros fisicalistas.

50 Sobre isso, ver: Ghiraldelli Jr., P. Caminhos da filosofia. Rio de Janeiro: DPA, 2005, pp. 20-35.51 Pode-se falar de materialismo e fisicalismo, às vezes, como sinônimos. Mas é possível fazer distinção, na maioria dos casos. O primeiro seria uma tese ontológica e, por esta via, também metafísica. O segundo seria uma posição em filosofia da ciência. A doutrina materialista apontaria para substâncias materiais ou, menos atavicamente, para objetos materiais ou físicos como elementos únicos de constituição do mundo. A doutrina fisicalista diria respeito mais à epistemologia ou mesmo à semântica, uma vez que estaria apontando apenas para a possibilidade de descrição do mundo segundo o que faz a ciência moderna, em especial as ciências naturais. Sobre isso: Moser, P. e Trout, J. D. Contemporary materialism – a reader. New York: Routledge, 1995 e Rorty, R. Non-redutive physicalism. Objectivity, relativism and truth –philosophical papers. Nova York: Cambridge University Press, 1991.

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O monismo anômalo de Davidson é esboçado através de uma teoria especial da identidade entre mental e físico. A identidade que Davidson estabelece entre eventos físicos e mentais não é aquela que diz que esses eventos serão idênticos a partir de tipos. Ela é aquela que se estabelece entre sinais particulares. Em outras palavras, não é a identidade de types, é a entre tokens. Se um evento mental é idêntico a um evento físico, ele o é por que é um evento individual, particular, no seguinte sentido: a minha crença de ter sede às três horas da tarde de hoje (que é um evento mental) é idêntica, digamos, ao que chamo de uma configuração neural particular minha (que é um evento físico), às três horas da tarde de hoje. Todavia, não posso dizer que a próxima vez que eu (ou Joana) tiver a crença de que estou com sede, o evento mental chamado que eu exprimo dizendo “tenho sede” corresponderá à disposição neural que é a mesma da última vez que tive sede ou que será igual à próxima vez que tiver sede. O evento físico estabelecido em meu organismo no dia de hoje, às três da tarde, e que associo à minha crença de estar com sede (àquela de hoje, às três da tarde), é único. Todas as vezes que os fisicalistas querem dizer que eventos mentais são eventos físicos e o fazem levando em conta tipos de eventos, eles estão incorrendo em uma falsa generalização. Há causalidade entre mental e físico, mas não há leis estritas, de modo que não há, portanto, leis psicológicas ou psicofisiológicas.

É com esse tipo de posição fisicalista não-redutivista que Davidson pode dar algum sustento ao seu materialismo de forma mais positiva que a de outros materialistas. O fisicalismo de Davidson em filosofia da mente tem suas derivações coerentes, em seu sistema, para uma abordagem em epistemologia.

Davidsonianamente, evento mental e evento físico são qualificados por alguma identidade um com o outro pelo fato de que ambos são não-repetíveis, datados e individuais. Se Joana bate seu dedo do pé na porta e sente dor, a dor é um evento que pode ser tomado ou como mental ou como físico, uma vez que ambas as vias pelas quais os eventos são qualificados são intercambiáveis; mas, exatamente na medida em que o evento pode ser tomado por palavras que expressam vocabulários do mental ou do físico, ele é, antes de tudo, individual e datado, e a experiência dessa dor não vai se repetir jamais. Não há que procurar um tipo de dor para cobrir tal evento – para identificá-lo. Ele está coberto pelo que é: um evento singular, particular, que não pode ser repetido. Esta é sua característica, que é singular. Esta é sua singularidade. Esta singularidade é o que proporciona a identidade do físico com o mental.

Para Davidson, como fisicalista, a identidade entre eventos físicos e mentais está clara. Sendo tal identidade a identidade de características próprias e não de tipos, ele está em paz com a idéia que só há um reino ontológico – o natural; enquanto que linguisticamente, conceitualmente, nós podemos continuar a distinguir eventos como sendo físicos e mentais. Não é difícil entender que os eventos físicos e os eventos mentais podem estar sob várias descrições mentais e físicas ao mesmo tempo. Mas o que caracteriza uma descrição como sendo de uma ordem ou de outra?

O que caracteriza a descrição com sendo da ordem do mental é que ela evoca contextos intensionais52. Assim, os verbos pretender, intencionar, acreditar e desejar são todos do âmbito de contextos intensionais. A diferença entre contextos intensionais e contextos extensionais é que nos segundos há os termos que apontam para o que é o mesmo e

52 Intensional, com “s”, é o que diz respeito à conotação, e extensional o que diz respeito à denotação.

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podem, assim, ser intercambiáveis, enquanto que em relação aos primeiros tal situação não ocorre. Por exemplo, “Joana é a mãe de Joaninha”, então a expressão “a mãe de Joaninha” é intercambiável com “Joana” – são idênticas. Isso em nada altera o valor de verdade dos enunciados em questão. Todavia, isso não se dá em contextos intensionais. Por exemplo, podemos tomar “Joana acredita que Joaninha fez sua tarefa escolar”, e então denominamos a sentença “Joaninha fez sua tarefa escolar” de S, assim podemos ter “Joana acredita que S” como uma formulação geral que muda seu valor de verdade segundo a mudança de S para um enunciado p (onde p é diferente de S; p pode ser, por exemplo, “Joaninha não fez sua tarefa escolar”).

Davidson mostra que estamos certos ao adotar a visão do materialismo ou fisicalismo que nos coloca, em todas as nossas manifestações, sobre a Terra, no mundo natural; todavia, também estamos certos ao não eliminarmos as diferenças de contexto a fim de descrição, de conceituação, pois o que é do campo contextual intensional acolhe os eventos mentais e o que é do campo contextual extensional acolhe os eventos físicos. O reducionismo, onde uma única linguagem poderia ser suficiente, é descartado.

Há, ainda, uma peculiaridade na relação entre eventos físicos e eventos mentais que deve ser considerada. Trata-se da noção de superveniência (supervenience)*. Davidson mantém que os eventos mentais são idênticos aos eventos físicos, e tal identidade é por característica particular e não por tipo, mas há um sentido em que o mental depende do físico. Se um evento tem uma propriedade mental que falta a algum outro evento, então deve haver uma propriedade física pertencente ao primeiro que falta ao segundo. Quando notamos que dois eventos têm propriedades mentais diferentes, então eles têm propriedades físicas diferentes. Assim, se há mudança em uma propriedade mental de um evento então há, também, mudança em uma propriedade física de tal evento. Isso não quer dizer que a propriedade mudada em tal evento, uma vez mudada em outros eventos, deverá ter também uma mudança idêntica nas propriedades físicas desse outros eventos.

Tudo que temos em mãos, nos permite, agora, entender como Davidson qualifica o mental em seu anomalismo, sem ter de descartá-lo como fazem outros fisicalistas ou materialistas.

7.2 O mental é anômalo

O que é a mente? Davidson não dá crédito para o que comumente chamamos de mente. Prefere falar em estados mentais. Estes, sim, são propriedades que as pessoas possuem. Em outras palavras: há predicados nomeados em termos psicológicos que são verdadeiros uma vez aplicados às pessoas. Esses estados mentais se mantêm em alteração contínua, e isso são os eventos mentais. Joana percebe que é hora de sua janta. Joana se lembrou de quem lhe ensinou regra de três há anos. Joana está experimentando um doce de milho, e vendo se gosta. Ela decidiu que vai passar as férias na praia. Esses

* O termo em inglês é supervenience. Opto por usar o termo superveniência, mesmo que ele possa, ainda, não estar dicionarizado. Lembro que supervenience, em português, é apontado como “evento surpreendente”, o que pode dar bem a idéia da noção davidsoniana, no caso.

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são estados mentais de Joana – são eventos mentais. Davidson os toma como físicos. Mas isso não quer dizer que eles deixam de ser mentais.53

Os eventos mentais, tais como percepção, lembrança, decisão e ações, diz Davidson, resistem à captura por parte de uma rede nomológica, que é o que caracteriza uma teoria física. Então, como isso pode ser conciliado com o fato – que parece evidente a todos nós – de que tais eventos mentais desempenham algum papel causal no mundo físico? A resposta mais elaborada a tal questão vem da conciliação entre três princípios que, em um primeiro momento, parecem inconciliáveis. 54

1) O princípio da interação causal: ao menos alguns eventos mentais interagem com eventos físicos. Esse princípio é óbvio para todos nós: crenças e desejos causam a ação de um agente e as ações causam mudanças no mundo físico. Eventos no mundo físico freqüentemente alteram nossas crenças, desejos e intenções.

2) O princípio do caráter nomológico da causalidade: eventos relacionados como causa e efeito caem sob leis determinísticas estritas. Ou seja, a relação de causa e efeito possui descrições que exemplificam uma lei estrita. Leis estritas são as que pertencem a um sistema fechado, de modo que qualquer coisa que possa afetar o sistema está nele incluído (com as leis da física newtoniana, por exemplo).

3) O princípio do anomalismo do mental: não há qualquer lei determinística estrita, cuja base possa dar garantias para que eventos mentais sejam preditos, explicados. Não há leis psicofísicas ligando eventos mentais sob descrições mentais e eventos físicos sob descrições físicas.

Os itens 1 e 2 são os princípios que aceitamos por bom senso, uma vez que nós, os escolarizados dos dias de hoje que convivem com as explicações das ciências, acreditamos neles como capazes de nos dar um retrato plausível do nosso mundo e de nós mesmos. O princípio 3, que mostra o mental como tendo um comportamento anômalo, é a negação dos outros dois – o mental, ainda que sob a natureza, regrado pela causalidade, não se submete a leis estritas como as leis, por exemplo, que explicitamos matematicamente para a natureza física em geral.

Todavia, temos de lembrar, aqui, da teoria da identidade de Davidson, que diz que a identidade entre eventos físicos e eventos mentais é “por característica particular”, isto é, pela singularidade deles, e não “por tipo”, e que separa o contexto extensional do intensional. Com tal teoria, podemos afirmar que a relação causal entre eventos é do âmbito do extensional; isto é, trata-se de eventos que são tomados como estando em relações que são independentes de suas descrições. Quando independentes de suas descrições, ou seja, quando no âmbito do contexto extensional onde eventos são intercambiáveis, em que a identidade entre eventos físicos e eventos mentais se verifica, podemos dizer que os princípios 1 e 2 estão vigentes, e que não cabe falar em 3. O princípio 3 diz respeito a eventos que são descritos como mentais. Estes são os que se localizam em contexto intensional, onde não é possível intercambiar elementos sem alterar o valor de verdade das expressões em questão.

53 Davidson, D. Donald Davidson. In: Guttenplan, S. (org.) A companion to the philosophy of mind. Malden: Blackwell Publisher Ltd., 1995, p. 231.

54 Davidson, D. Mental events. In: Essays on actions and events. Op. cit., pp. 207-10.

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O resultado disso é que temos um monismo ontológico centrado no âmbito físico – os eventos mentais nada acrescentam à “mobília do mundo”. E este monismo é acoplado a um dualismo conceitual ou lingüístico – as leis são lingüísticas e, neste campo, distinguimos o físico do mental por meio de descrições diferentes, uma vez que o que é descrito como mental é o que é descrito como anômalo, ou seja, o que não se comporta segundo a formulação de leis estritas. 55

Embora idênticos, os eventos mentais e os eventos físicos ganham, para suas descrições, o que é necessário no sentido de serem eventos mentais e eventos físicos. Não há como unificar as descrições que descrevem seu objeto como físico e as descrições que descrevem seu objeto como mental. Os conceitos que usamos para descrever eventos mentais e os conceitos que usamos descrever eventos físicos diferem, e isto obriga à rejeição da possibilidade de leis psicofisiológicas estritas.56 Davidson deixa isso claro, comparando o que é do âmbito de cada descrição. O mundo físico e os números que usamos para mensurá-lo são propriedades comuns, são os objetos materiais e os abstratos diante do qual concordamos sobre muito do que falamos deles, e que compartilhamos. Todavia, quando nos voltamos para o mundo mental, para os eventos mentais ou ações que estão ligadas ao mental, nos deparamos com a racionalidade que temos de imputar a eles para poder compará-los e, então, vir a falar deles em alguma concordância que possamos compartilhar. Há o que é constitutivo do físico e o que é constitutivo do mental. Mas o termo “constitutivo”, aqui, não deve nos levar a ver diferenças ontológicas – e isto é importante de gravar –, uma vez que diz respeito à aplicabilidade de predicados em nossas descrições. Por exemplo, comprimento, massa e temperatura são constitutivos do físico na medida em que tais características governam a aplicabilidade de predicados físicos. Racionalidade, por sua vez, é o que é constitutivo do mental, como uma característica; as características do comportamento racional governam a aplicabilidade de predicados mentais. 57

O exemplo, aqui, torna as diferenças bem delimitadas. Falarei de dois tipos de investigação nesse exemplo. Suponhamos que começamos uma investigação e descobrimos uma relação entre três elementos físicos, a saber: que embora o primeiro seja maior que o segundo e o segundo maior que o terceiro o primeiro não é maior que o terceiro. Ora, devemos acreditar que ou erramos na medida ou aquilo que medimos foi alterado (de algum modo) durante a medida. Mas não deveríamos concluir, por exemplo, que a transitividade que esperamos observar em relação ao tamanho seja falsa (A > B e B > C então A > C). Não há três elementos medidos que possam ter um predicado verdadeiro em relação a eles sem que seus comprimentos respeitem a transitividade, ou seja, que respeitem os limites do que é constitutivo do ser físico. Agora, nossa investigação muda para algo mental. Investigamos o desejo, por exemplo. A transitividade é esperada quanto ao desejo? Uma pessoa deseja X mais do que deseja Y, e deseja mais Y que Z. Ela deveria desejar mais X do que Z. Se atribuímos uma determinada racionalidade a tal pessoa, esperamos que assim seja. Isso que esperamos no comportamento da pessoa observada depende de um presumido – por nós – grau de escolha racional. Devido a tal atitude de presumir, os princípios constitutivos do mental incluem normas de racionalidade – e isto é completamente diferente do que podemos

55 Davidson, D. Donald Davidson. Op. cit, p. 231.56 Lepore, E. Donald Davidson. In: Martinich, A. P. e Sosa, D. (orgs.). A companion to analytic philosophy. Nova York: Blackwell, 2001, p, 299.57 Ibidem

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atribuir ao físico. Isso impede uma redução da psicologia às ciências físicas.58 Um reducionismo de conceitos da psicologia a conceitos das ciências físicas não faz sentido aqui. Ou seja, leis que não permitem exceção, do tipo das leis físicas, não podem ser colocadas entre as descrições feitas pela psicologia e as descrições feitas pelas ciências físicas. Assim, pela identidade token (e não type) temos que eventos mentais sãoidênticos a eventos físicos. Mas pelo que vimos, agora no exemplo, a respeito do uso dos predicados no campo conceitual, não podemos reduzir uma descrição de eventos mentais a eventos físicos.

7.3 A linguagem e o problema do relativismo

Medimos quantidades físicas objetivamente, pois temos padrões intersubjetivos, mas não temos concordância intersubjetiva a respeito de padrões de racionalidade para mensurar eventos mentais. O que fazemos? Simples: mantemo-nos em comunicação e no decorrer desse processo atribuímos a outros os nossos padrões de racionalidade, e continuamos a conversação – assim nos entendemos. Não temos um fracasso da objetividade e a impossibilidade de uma boa comunicação. Devemos apenas de entender que, com esse procedimento, chegamos ao fim da comparação possível, sobre objetividade, entre o que falamos respeito do que é físico e do que é mental.59

Essa postura davidsoniana, não raro, cria objeções: os que gostariam de ver uma espécie de ponto de chegada na estratégia da imputação de racionalidade, de modo que tal ponto pudesse conduzir a algum tipo de concordância do mesmo tipo da concordância que alcançamos na mensuração do que é físico, podem querer acusar Davidson de relativismo. Davidson não foge de tal problema. Ele o enfrenta de modo inusitado. Ao lado disso, ainda que secundariamente, fornece argumentos contra o ceticismo.

A fim de analisar a possibilidade de possuirmos esquemas conceituais diferentes que veriam o mundo de modos particulares, e que seriam incomensuráveis entre si, Davidson parte de uma metáfora famosa, a saber, a idéia de que vemos através da linguagem. Mas ele não assume essa metáfora, ele a nega. Ele pergunta: como podemos entender o enunciado “vemos através da linguagem”? Entre outras, três respostas aparecem no horizonte filosófico: 1) a linguagem é um meio que simplesmente reproduz ou grava para a mente o que lhe é exterior; 2) a linguagem é muito densa e, portanto, incapaz de falar do mundo como ele é verdadeiramente; 3) a linguagem é um meio não muito denso, e então o mundo pode se responsabilizar pela tinta e pelo foco de cada linguagem que falamos.60 Tomando essas respostas como insuficientes, acredita que essas insuficiências surgem antes mesmo da sua própria formulação, em sua raiz comum: todas as três são devedoras de uma idéia infeliz, a de que a linguagem faz o papel de um “esquema” que deve apreender um “conteúdo”, que é o mundo.61

58 Ibidem, pp. 299-30.

59 Davidson, D. Donald Davidson. Op. cit, p. 232-33.

60 [1997] Davidson, D. Seeing through Language. In: Truth, language, and history. Oxford: Oxford University Press, 2005, p. 127.

61 [1974] Davidson, D. On the very idea of a conceptual scheme. In: Inquiries into truth and interpretation. Op. cit., pp. 183-98.

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A linguagem, na filosofia davidsoniana, é uma habilidade humana conveniente que nos ajuda – acentuadamente – a lidar com o mundo na nossa vida comum. Mas daí concluir, como fazem muitos filósofos, que a linguagem não nos diz muito do mundo ou, se diz, o faz de modo distorcido, temos um passo não necessário e pouco plausível. Por quê? Dizer que a linguagem não conta a inteira verdade ou, pior ainda, distorce tudo, não faz sentido se quem a adota não parte de uma outra idéia, a saber, a de que há um “dado”, algo não conceptualizado, de um lado, e há uma maquinaria de conceptualização, o “esquema”, de outro. O funcionamento perfeito ou imperfeito da relação dessa maquinaria que molda o que é o dado, sua matéria prima, é o que daria uma linguagem capaz ou não de contar algo válido a respeito do mundo. Essa doutrina, uma vez observada de modo mais atento, se mostra estranha, ainda que uma boa parte dafilosofia conviva com ela cotidianamente e até faça dela um dogma.

Quem concebe a relação linguagem-mundo como uma relação esquema-conteúdo termina por falar que cada um tem o seu “ponto de vista” ou sua “perspectiva” e que não é possível optar de modo seguro entre os enunciados fornecidos por vários pontos de vista. Aposta que há vários “óculos” para ler e ver o mundo e atribui as diferenças de visão a tais óculos. Um sabor de antropologia pode dar o tom para esse império do relativismo. Mas o raciocínio pode não parar aí. Quem está nessa linha de pensamento, não tarda em acreditar que cada par de óculos é exclusivo. Um par de óculos não poderia olhar por meio do outro sem que não ocorresse uma presumida distorção. Imagina, então, que em algum lugar há um par de óculos especial, que todos nós poderíamos pegar e que uma vez posto sobre os nossos nos faria compartilhar todas as paisagens de modo igual. Assim, o relativismo de sabor antropológico é abandonado em favor de algum tipo de “fundamento”, nos moldes dos cânones da filosofia tradicional.A conseqüência é o surgimento no horizonte das noções universalistas que requisitam elementos como “Homem” ou “Sujeito Transcendental” ou “Classe Universal” ou, mais atualmente, “Comunidades Lingüísticas Ideais”, etc. Vamos de Descartes a Habermas passando por Kant, Marx e outros, de modo bem rápido.

Como se vê, o caminho ao fundacionismo passa por uma conduta que nos leva primeiro ao relativismo. Para sair dessas posições, oferecemos um remédio que não cura a doença, apenas substitui uma enfermidade por outra. O relativismo abre as portas não para o ceticismo, mas para o fundacionismo filosófico.

Davidson acredita que a idéia de que há vários esquemas diferentes vale para quando falamos de sistemas conceituais. E, de fato, esquemas de conceitos podem ser, em certo sentido, tomados como incomensuráveis entre si na medida em que não falam dos mesmos assuntos, temas e objetos. Ninguém negaria que existe a “ótica da sociologia positivista” em contraposição à “ótica da sociologia historicista”. Ninguém negaria que existem divergências de “ponto de vista”. Mas quando aplicamos a noção de esquema à de linguagem, começamos a enveredar por torturas da imaginação – de dois modos que, na contabilidade de Davidson, são equívocos: pensamos que, no limite, nossa comunicação é impossível, uma vez que não possuímos uma mesma linguagem; ou aceitamos que a comunicação é possível – uma vez que de fato nos comunicamos –, e nos obrigamos a consentir que estamos de posse de uma e mesma linguagem previamente dada. O problema todo poderia ser eliminado evitando tomar a linguagem como algo que ela não é: um meio.

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7.4 Linguagem e percepção

Para descartar a tese da linguagem como meio epistemológico, Davidson faz duas investidas, a saber, uma primeira, contra a idéia da linguagem como órgão mental –defende a tese de que a linguagem é um órgão especial da percepção; uma segunda, contra o representacionalismo – defende a tese de que a noção de representação não é útil para ser aplicada à atividade da linguagem ou do pensamento. A primeira, tratarei em seguida. A segunda, no item “anti-representacionalismo e Slinghot”.

Davidson se insurge contra a metáfora que diz que “nós vemos o mundo através da linguagem”. A linguagem, Davidson diz, não é um meio através do qual vemos. Não vemos o mundo através da linguagem mais que o vemos através de nossos olhos; todavia, eis aqui o ponto chave: nós não vemos através de nossos olhos, mas com os nossos olhos. Não sentimos através dos dedos ou ouvimos através dos ouvidos e nem vemos através dos olhos. Sentimos com os dedos, ouvimos com os ouvidos e enxergamos com os olhos. Então, se é para fazer uma analogia entre linguagem como órgão e outros órgãos, como os do sentido, que façamos a uma mais correta: os órgãos dos sentidos são elementos de contato direto com o meio ambiente, sem intermediários; não lidamos com o mundo através da linguagem; mas, sim, enfrentamos o mundo com a linguagem.62

Pensamos que a fala é radicalmente diferente dos sentidos, na observação de Davidson, porque não há um órgão externo devotado exatamente para isso, e também por conta da diversidade de linguagens. Mas essas diferenças não deveriam contar tanto, pois a fala tem um local no cérebro tanto quanto os órgãos dos sentidos; tanto isso é verdade que danos cerebrais podem causar a perda da habilidade de linguagem sem destruir a inteligência. No entanto, há outros elementos que nos empurram para o sentido oposto. O que nos induziria a negar a analogia com os órgãos dos sentidos é que todas as linguagens compartilham regras estruturais a despeito de sua variedade superficial. Além disso, há o fato desconcertante sobre a capacidade lingüística das crianças. Um grupo de crianças, tendo crescido ouvindo somente um pidgin, isto é, um jargão de mistura de palavras de diversas origens, que é uma invenção de adultos colocados em um mesmo lugar sem uma linguagem comum, consegue formar um creole, isto é, uma linguagem gerada por contato com diversas culturas, tão complexa quanto o francês ou o turco ou outras.63

Essas informações, meio que disparatadas e que ganham o meio popular e dificultam a apreensão mais correta do que é a linguagem, podem vir da disseminação da tese de Noam Chomsky e Steven Pinker, a tese da linguagem não como um tipo de órgão análogo ao dos sentidos e sim como um “órgão mental”. Seria o retorno da idéia, apontada como sem base por Wittgenstein, da “linguagem privada”. No caso, o “mentalês”.

A idéia da existência do “mentalês”, ou seja, uma linguagem interna de pensamento, inata, em cima da qual e através da qual aprenderíamos a linguagem que falamos, em geral aparece exemplificada por vários argumentos: às vezes sabemos o que queremos dizer e não encontramos palavras; ou reconhecemos que o que dissemos não era o que queríamos dizer; a rapidez com que manuseamos a nossa linguagem materna. Davidson 62 [1997] Davidson, D. Seeing through Language. Op. cit, pp. 130-1.63 Idem, p. 132.

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lembra o quanto cientistas cognitivos e lingüistas advogam o “mentalês”, mas está disposto a não lhes dar qualquer crédito, em especial quando disso se tira conclusões filosóficas. E os argumentos a favor do “mentalês” são frágeis. O fato de algumas vezes não encontrarmos palavras para o que queremos dizer, é algo mais fácil de explicar lembrando que temos as palavras uma vez que já aprendemos uma linguagem (a nossa linguagem), e diante de coisas novas somos capazes de buscar um modo de dizê-las, o que depende de nossa elaboração com a nossa linguagem mesmo. É bem mais plausível do que imaginar que temos um “mentalês” que, então, teria de ser traduzido na nossa, digamos, linguagem social.64

Há mais argumentos de Chomsky a favor do “mentalês”. O lingüista norte-americano reúne um material empírico substancial em favor da tese de que há limites sobre a sintaxe que são inatos. Então, sobre tal informação, pode-se advogar que isso seria o que temos todos de básico – universal – para a compreensão da fala de um nativo ou um alienígena. Todavia, novamente aqui Davidson ataca a estratégia chomskiana: os limites sobre a sintaxe poderiam até ser tomados como inatos, ou tomados como adquiridos na primeira infância, isso é irrelevante uma vez que não são limites sobre a semântica. Não há razão, insiste Davidson darwinianamente, para supor que idéias, conceitos ou significados são inatos se assim fazemos para dizer algo mais que possuir linguagem e pensamento reflete as necessidades e interesses de animais humanos. E ele ressalva, ainda, que não está afirmando que os limites sobre a sintaxe não podem gerar limites estruturais sobre a semântica. Mas o que quer é mais simples. Quer apenas dizer que não nascemos com uma linguagem completa, que seria o “mentalês”. Novamente no seio do darwinismo, Davidson alerta para o fato de que a evolução nos fez mais ou menos adaptados ao nosso meio ambiente, mas a evolução não poderia nos munir de conceitos – a natureza decidiu que os conceitos viriam naturalmente, mas isso não quer dizer que a mente sabia antecipadamente com o que a natureza se pareceria.65

Para o que importa filosoficamente, a linguagem, uma vez estabelecida, não deve ser vista como uma habilidade aprendida corriqueiramente. A fala é eleita por Davidson como um modo de percepção. Não um órgão a mais – simplesmente. Se é que os sentidos devem nos render algum conhecimento proposicional, e considerando que os sentidos, por eles mesmos, não podem nos dizer muita coisa, lançamos mão da idéia da fala comunicacional – da linguagem – como um órgão essencial: ela é o órgão da percepção proposicional. Por exemplo, se Joana vê uma luz e ouve um som ela está sem perceber o que há para ser percebido até dizer algo como “Acabei de ver um cachorro na porta” ou “Escutei um latido”. Joana evoca os verbos “ver” e “ouvir”, o que requer os sentidos, mas ela acredita que está diante de um cachorro (e não um gato ou qualquer outra coisa), e essa crença se expressa para ela própria e para nós por meio de enunciados. Então, para tal, ela acionou uma função proposicional. O que ela diz, “Acabei de ver um cachorro na porta”, implica discernimento, isto é, requer perceber como as coisas são o que são. Esta função perceptiva se desenvolve junto com a linguagem. Em termos mais claros: há de fato uma cadeia causal entre o cachorro na porta e as retinas de Joana, mas o que Joana vê e ouve como diz que vê e ouve não são as vibrações na sua retina nem o tremular de pequenos fios no tímpano, mas são as razões pelas quais ela pode evocar para dizer que vê e ouve um cachorro. Razões, segundo a teoria da ação de Davidson, são causas. Mas nem todas as causas são razões. Quando diz “Vi o cão com os meus próprios olhos”, ela está dando uma razão, é claro, 64 Idem, p. 134.65 Idem, pp. 134-5.

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para acreditar que há um cão ali na sua frente, e não um gato ou qualquer outra coisa, mas isto quer dizer realmente que ela viu algo que a fez acreditar que há um cachorro e não qualquer outra coisa na porta. Joana, como qualquer um de nós, tem sensações e pode se reportar a elas como razões para suas crenças. Mas as sensações, elas próprias, não constituem razões. Elas podem aparecer em enunciados que expressam o que Joana acredita, e então serem razões. Mas elas próprias, as sensações, não possuem conteúdo proposicional e, então, não são razões. Aqui a distinção entre sentidos e percepção fica clara: sensações não podem ser razões; as razões são as crenças que surgem da percepção e por isso esta se articula imediatamente com a linguagem ou, então, nem poderia existir .66

Assim, davidsonianamente, descartamos sensações como suportes epistemológicos. E, na explicação de Davidson, quando falamos em suporte epistemológico estamos indicando o que garantiria, em uma teoria do conhecimento, o tipo de conhecimento (ou proto-conhecimento) que sustenta outros, indubitavelmente ou ao menos de uma forma razoavelmente garantida. Entre o meio ambiente e a nossa pele, não existe nada a não ser relações causais, mas disso não temos que tirar a conclusão de que a relação entre pensamento e estímulo é algo simples. As relações são complexas, e não temos que confiar mais em nossas crenças empíricas, mesmo as de percepção, do que em outras. Então, a única base razoável para darmos crédito para uma crença são outras crenças. O trabalho da filosofia moderna de tentar ser árbitro entre um imaginado dado não conceptualizado e o que é necessário para sustentar uma crença é uma tarefa encerrada, inútil.67

A tese de Davidson de que a única base racional para uma crença são outras crenças, coloca uma questão importante: qual é o papel da natureza, se há algum, na determinação dos conteúdos das crenças? Essa questão é aparentada com a questão da linguagem. E isso no seguinte sentido: pode-se insistir que a linguagem, tal como a percepção, não possui intermediários, mas essa insistência não nos proporciona uma explicação sobre como temos os conteúdos das sentenças observacionais que temos. Do mesmo modo que não nos fornece uma explicação a respeito do conteúdo de nossas crenças de percepção. Isso desemboca em um problema filosófico clássico: como que as crenças, uma vez sustentadas epistemologicamente somente por outras crenças, podem de maneira completamente independente ou em conjuntos, serem conectadas como o mundo? Com isso, em parte retornamos ao problema do relativismo. Em que confiar se nunca conseguimos sair da cadeia de crenças? Ou seja, que grupo de crenças teria mais legitimidade que outro, para se colocar como garantia epistêmica?

Podemos começar uma investigação perguntando como as sentenças diretamente ligadas à percepção adquirem seus conteúdos. Essas sentenças são as sentenças de percepção. Elas não são, necessariamente, simples, e nem mesmo as mesmas para todos. Nós as aprendemos de modo bastante direto, olhando para as coisas ou ouvindo sons. Por exemplo, Joana vê um cachorro grande na porta e pode explicar por que o que viu causou ou produziu a sua crença de que há um cachorro na porta. Mas isso não é o mesmo para todo mundo. Algumas pessoas poderão não perceber que há um cachorro na porta se nunca viram ou ouviram falar de cachorros. Cada um de nós possui um repertório único de coisas ou pessoas reconhecidas por uma simples olhadela. Então, as sentenças de percepção devem ser investigadas com cuidado. 66 Idem, p. 135.67 Idem, p. 136.

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As sentenças de percepção possuem um conteúdo empírico que vem das situações que nos provocam e nos levam a aceitá-las ou rejeitá-las. O mesmo ocorre para as crenças expressas por tais sentenças. Todavia, que razão nos conduz a dizer que o conteúdo expresso é o mais adequado? Sabemos que se pode muito bem aprender a afirmar sentenças em uma linguagem, em situações em que tal sentença é verdadeira, mesmo sem o seu entendimento. Davidson exemplifica lembrando que alguém, sem nenhum conhecimento de física, pode facilmente dizer “lá se foi um elétron” ao ver uma faísca em uma nuvem. Entender uma sentença implica em reconhecer situações ou objetos que estão no seu conteúdo. Uma sentença simples tal como “isto é uma colher”, para ser entendida, requer o conhecimento do que são colheres – coisas físicas, duras, etc. Eis aqui algo que depende de um aprendizado no qual a ostensão desempenha um papel fundamental. 68

Davidson diz que as pessoas não adquirem o dom da fala, no sentido de possuir uma linguagem, por elas mesmas. Elas são tutoradas, intencional ou acidentalmente por pais, amigos, colegas, professores e pela Vila Sésamo. Nesse processo, a ostensão ou algo equivalente, juntamente com o método de recompensa e castigo, são essenciais. Melhoramos a criança, a partir de nosso ponto de vista, Davidson diz, causando-lhe prazer ou dor. Esse processo, sozinho, não ensina a distinção entre comportamento correto e incorreto. Pois corrigir o comportamento não é, propriamente, ensinar que o comportamento é incorreto. Como Davidson diz, treinar uma criança para ir ao banheiro, ou um cachorro para que ele não suje a casa, não envolve o certo e o errado. Nenhum aparato ou organismo lida com conceito nesse processo. 69

Segundo Davidson, poderíamos achar que a formação do conceito se dá em um nível mais primitivo do que aquele a qual pertencem as atitudes proposicionais, em particular as crenças. Isso é um erro, diz ele. Por esse caminho iríamos atribuir conceitos a borboletas e a árvores. Ter um conceito, para Davidson, implica em classificar objetos ou propriedades, ou eventos, ou situações e entender o que caiu fora da classificação escolhida por não pertencer às classes discriminadas. Por isso, insiste em nos advertir que é um erro achar que uma criança muito pequena que nunca diz “mamãe”, exceto quando sua mãe está presente, possui algum proto-conceito de mãe. Mas é correto pensar que alguma conceptualização está se desenvolvendo se a criança muito pequena mostra algum reconhecimento do erro e do acerto, quanto a identificar ou não a sua mãe. Davidson insiste que não há nenhuma distinção entre ter conceitos e ter pensamentos com conteúdo proposicional.

Ressaltando a conexão entre conceitos e pensamentos, Davidson desfaz a idéia popular de que a formação de conceitos seria apenas um estágio entre disposições e juízos. Assim, uma questão central da semântica pode ser posta de uma forma conhecida: o que deve ser acrescentado a um som sem significado, que é emitido posteriormente em momentos apropriados, mas tomado agora como fala, para que o som sem significado seja visto então como tendo significado? Não é suficiente dizer que o som sem significado foi reforçado no passado e posteriormente emitido como fala por conta de poderes mágicos. Isto seria como admitir, por exemplo, que Joaninha vê seu gatinho miar e o alimenta por conta do gato ter desenvolvido significados – uma semântica. Como resolver isso? Davidson está convencido de que não temos como ir além de uma 68 Idem, p. 137.69 Idem, p. 139.

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resposta circular para o caso. Uma resposta não circular, diz ele, nos levaria a explicar a intensionalidade em termos não extensionais. Todavia, ele acredita que o estudo da linguagem aqui acrescenta um elemento, que embora não suficiente, é necessário e nos dá bastante clareza sobre o caso.

Entendemos que ostensão não pode fazer todo o serviço. Então não temos como não voltar à descrição da triangulação, que pode nos explicar linguagem e pensamento. O compartilhamento de respostas a estímulos similares permite a emergência de um elemento interpessoal. Este é o modelo: criaturas que compartilham respostas podem correlacionar as respostas de cada elemento da situação compartilhada com aquilo que são as situações que geraram as tais respostas. A pessoa A responde às respostas da pessoa B às situações similares a A e B. Um triângulo é então estabelecido. Com três ângulos, A, B e C, onde neste último estão os objetos ou eventos, ou situações as quais eles respondem mutuamente. Essa interação triangular elaborada, que forma um lugar comum, ainda não requer pensamento ou linguagem. Ela ocorre com freqüência entre animais que não pensam e não falam. Mas a partir desse triângulo básico, há dois elementos que surgem e que estão interligados à existência de pensamento e linguagem: possibilidade do erro e movimento de percorrer a triangulação quantas vezes for necessário.

O conceito de erro, isto é, apreciação da distinção entre crença e verdade – eis o primeiro passo. O triângulo aí, nesse caso, é o espaço para que isso possa aparecer. Na relação entre duas criaturas, em reação a um mesmo estímulo, o que é esperado por uma ou outra pode gerar uma frustração. Isso é o espaço para o erro. Quem olha de fora do triângulo pode sempre dizer diante da frustração de uma, manifesta em seu comportamento, que há erro, onde que houve um comportamento errado por parte de um dos elementos do triângulo. As próprias criaturas do triângulo também podem chegar à mesma conclusão. Se assim de fato fazem, elas alcançaram o conceito de verdade objetiva.

Então, o que segue é que estamos em um círculo: alcançamos o conceito de verdade somente quando podemos comunicar os conteúdos, ou seja, os conteúdos proposicionais da experiência compartilhada, mas isso já requer a linguagem, e foi dela que partimos. O triângulo primitivo de duas criaturas reagindo em comum acordo às características do mundo e às reações uma da outra – eis o que fornece o quadro em que pensamento e linguagem podem evoluir. Assim, nem pensamento nem linguagem podem vir primeiro, pois cada um requer o outro. Não há nenhum enigma aí do tipo “ovo e galinha”. As habilidades de falar uma linguagem, de perceber e de pensar, se desenvolvem conjuntamente e de modo gradual. A conclusão davidsoniana implica em dizer que não vemos através da linguagem, mas percebemos o mundo através da linguagem, isto é, por meio de ter uma linguagem.70

7.5 Linguagem, Anti-representacionismo e Slingshot

Descartando a linguagem como meio epistêmico, Davidson, por conseguinte, diz que ela não é um meio de representar o mundo. Assume, então, o anti-representacionismo. Todavia, se é para descartar representações e ficar apenas com causas, é necessário explicar o que é a representação, e o que é descartável.

70 Idem, pp. 130-40.

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Davidson não nega que mapas e gravuras possam representar o que se propõem a representar. Entende que são vários os filósofos e outras pessoas que, legitimamente, dizem que as palavras representam o que elas nomeiam ou descrevem. Todavia, apesar desse uso cotidiano da palavra “representar”, acredita que “nomear” ou “descrever” são maneiras melhores para expressar a relação que se efetiva entre nomes e aquilo que é nomeado, ou entre uma descrição e o que é descrito. Confessa trazer sob rédea curta a idéia de que alguma expressão re-presenta um objeto ou evento. A razão disso é que, segundo seu entendimento, as únicas manifestações diretas da linguagem são enunciados e inscrições, e somos nós mesmos que lhes damos significações; a linguagem é, portanto, uma abstração, de modo que não pode ser um meio autônomo –não pode ser um meio representacional – através do qual alcançamos o mundo, nem mesmo um meio entre nós e a realidade. 71

O que corrobora com o dito acima, para descartar o representacionismo, é o argumento “de tipo Slingshot”, que ao fim e ao cabo pretende mostrar que a representação e a idéia de “representações relativas” não são úteis, uma vez que não temos a capacidade de individuar representações de fatos. O que faríamos, no máximo, seria levar adiante a representação do “Grande Fato” – totalmente inútil.

Argumentos de tipo Slingshot possuem tal nome porque são simples e curtos e, no entanto, são capazes de derrubar doutrinas sólidas, ao menos aparentemente (como a boleadeira que David usou contra o gigante Golias). No caso, o que entra na berlinda é a doutrina da verdade como correspondência, que tem uma força gigantesca sobre nós, uma vez que vai a favor de nossa intuição sobre o que é a verdade.

A teoria da verdade como correspondência72 é definida a partir da expressão E que diz o seguinte:

S é verdadeiro se e somente se S corresponde ao fato X.

Baseado em argumentos bem simples de lógicos73, que são de tipo Slingshot, Davidson entende que não conseguimos delimitar e individualizar X em nossa linguagem. O enunciado E não perde sua validade, mas X, não sendo individualizado, se transforma no que Davidson chama de o “Grande Fato”. Então a correspondência perde sua utilidade. Dizer que S é verdadeiro se e somente se S corresponde a um fato que não conseguimos individuar não ajuda. Pois a noção de fato nos diz que fato é o que é verdadeiro de um enunciado. Por razões semânticas – e única e exclusivamente por razões semânticas, como Davidson insiste –, não é possível levar a sério, em todas suas conseqüências, a doutrina correspondentista. Se algo é para ser representacionalmente correspondente a uma sentença, este algo tem de ser possível de ser individualizado. Se não é, não existe o que representar. O que é que corresponde representacionalmente na equação entre S e X, se X é nada mais nada menos que “o Grande Fato”? Assim, da

71 Davidson, D. Reply to Stephen Neale. In: The philosophy of Donald Davidson. LLP – XXVII. Nova York: Open Court, 1999, pp. 667-8.

72 Sobre as teorias de verdade ver: Ghiraldelli Jr., P. Introdução à filosofia. São Paulo: Manole, 2003.

73 Sobre isso ver: Neale, S. Facing facts. New York: Oxford University Press, 2001. Ver também: Ghiraldelli Jr., P. Caminhos da filosofia. Op. cit., p. 74-83.

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falha da teoria da verdade como correspondência, surge a insustentabilidade do representacionismo. 74

7.6 O pensamento, o ceticismo e a abordagem externalista

Por fim, a filosofia davidsoniana aborda também as questões atinentes ao pensamento. A discussão do tema da linguagem e pensamento é retomada por Davidson a partir das discussões do ceticismo. O ceticismo possui várias versões. Aparece para colocar em dúvida a possibilidade de todo o conhecimento ou, na esteira de David Hume, limitar o conhecimento aos dados dos sentidos e ao que possa surgir da associação desses dados. Pode, também, dar origem ao solipsismo, a posição que afirma a impossibilidade do conhecimento do “mundo objetivo” e que se contenta em afirmar a existência de um “eu solitário”.75

Exatamente por causa da existência de várias acepções, o termo ceticismo, aqui, deve ser qualificado. Davidson lapida o termo para seu próprio uso. Céticos não são os que acham que nossas crenças não são objetivas. O cético não se insurge contra a idéia de que nossas crenças são objetivamente verdadeiras ou falsas, pois, se ao menos algumas de nossas crenças não fossem objetivamente verdadeiras ou falsas, então não haveria nada para se duvidar. A dúvida cética que faz sentido para Davidson é a respeito de razões: será que temos boas razões para sustentar aquelas crenças que ocorrem de serem verdadeiras? Aceitando a definição de conhecimento como “crença verdadeira bem justificada”, a pergunta cética é sobre se temos conhecimento, uma vez que para dizer que realmente temos conhecimento teríamos de ter razões indubitáveis. Se nossas crenças não podem ser bem justificadas, então não deveríamos questionar se o mundo é todo ele como acreditamos que ele é? 76 Há boa resposta de Davidson para este cético?

A divergência e o desdobrar dos argumentos de Davidson contra o cético não se apresentam de uma forma direta. O que ocorre é indireto; se opondo ao subjetivismo e a certo tipo de empirismo, obtém resultados que podem ser utilizados contra o ceticismo.

O problema do ceticismo é entabulado da seguinte forma. Se nós não somos céticos sobre a possibilidade de conhecimento do mundo externo e de outras mentes, então devemos rejeitar a perspectiva de que todo o conhecimento a respeito do mundo depende de objetos ou fenômenos diretamente presentes em mentes individuais, objetos tais como dados dos sentidos, impressões, idéias, sentimentos crus ou proposições. Temos de rejeitar a afirmação de que apreenderíamos esses objetos, aqueles que seriam a nós apresentados mesmo que o mundo fosse completamente diferente do que ele é. Isso não implica na negação da existência de tais objetos. O problema é que, na filosofia, não raro tais elementos são tomados como base epistemológica, e não deveriam ser. Este é o ponto nevrálgico. Quando dizemos que todos esses objetos são básicos epistemologicamente, e se eles são intermediários epistêmicos entre nossas mentes e o resto do mundo, devemos conferir a eles o importante papel de mensageiros de todas as notícias que nos vem do exterior. Isso não é pouco. Quem adota tal postura, Davidson diz, é o partícipe de uma posição bastante determinada na filosofia, e

74 Davidson, D. Truth. In: Kotakto, P e outros (orgs). Op. cit., p. 295.

75 Sobre isso ver: Ghiraldelli Jr., P. Caminhos da filosofia, op. cit., p. 53-4.

76 Davidson, D. Externalisms. In: Kotatko, P. e outros. Op. cit., p. 1

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comparece sob diversos matizes, mas que pode ser tomada sob um rótulo: o subjetivismo.77

O que é o subjetivismo? É a doutrina segundo a qual o mundo de cada indivíduo é construído a partir do material disponível na sua consciência, material que é conectado ao mundo exterior, se é que é conectado, somente de maneira indireta. Sendo assim, Davidson alerta: o empirismo é uma forma de subjetivismo. Não é a doutrina inofensiva de que toda a fonte de nosso conhecimento empírico está nos sentidos; é a doutrina que diz que as evidências últimas para nossas crenças sobre o mundo externo é algo não conceptualizado que nos é dado, diretamente, na experiência. Esse dado é o que irá se localizar na mente, o que seria imutável ainda que o mundo mudasse ou não fosse como ele é. Trata-se, é claro, do dado que forma um dos elementos da noção de esquema-conteúdo – é o dado que cai em tal noção como o “conteúdo” que vai ser apreendido pelo “esquema”.

Evitar o subjetivismo é, para Davidson, tornar-se adepto de alguma forma de externalismo. Tal doutrina possui duas grandes versões: externalismo social e perceptual. O primeiro sustenta que, de um modo ou de outro, nossos pensamentos dependem de nossas interações com outros seres pensantes; o segundo, diz que há uma conexão necessária entre os conteúdos de nossos pensamentos e as características do mundo que os tornam verdadeiros. Davidson avalia ambas as posições e escolhe a junção da primeira posição, uma vez representada por Saul Kripke, com a segunda posição quando defendida por Tyler Burge. Todavia, acredita que ambas, ainda que acopladas, carecem do que é central para um bom externalismo poder ser uma resposta plausível a qualquer dúvida cética. Tal resposta implica na capacidade de resolver um dos problemas formulados por Wittgenstein. Qual?

Nos termos davidsonianos, um dos problemas que Wittgenstein mantém e que precisa de resposta para a formulação de uma compreensão da objetividade é o seguinte: como podemos identificar um erro como um erro? Aqui, Davidson está no centro do que podemos chamar de a tarefa da filosofia. Se concordarmos com Arthur C. Danto78, entendendo que a filosofia não tem de se ocupar com a distinção entre o falso e o verdadeiro, e sim com a maneira como chegamos a uma compreensão de critérios sobre o errado e o engano, então podemos afirmar que Davidson se envolve com o que é a própria tarefa que define a filosofia.

O exemplo, que pode ser perfeitamente endossado por Davidson, é claro: Joaninha mostra para sua mãe, Joana, uma foto com animais que são, em tudo que é relevante, vacas. Joana diz para a filha que reconhece aqueles animais, que são vacas. Mas a filha diz que eles não são vacas. Por uma série de pesquisas, posteriormente, Joana vê que ela errou em sua avaliação; as figuras mostradas pela filha não eram vacas, ainda que em tudo pudessem ser descritas como vacas. O problema então é o de saber como é que distinguimos, por exemplo, uma falsa vaca de uma vaca. Davidson não se constrange em dizer que saber sobre a vaca é saber sobre o conceito de vaca. Não se quer dizer com isso que há uma velha concepção de identificação em Davidson. Ele não toma a noção de conceito como necessariamente implicando em “representação”. A noção de conceito, em Davidson, é um instrumento de operação: pode ser dito de Joaninha que 77 Idem, p. 2.78 Danto, A. Connection to the world. Berkeley: University of California Press, 1989

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ela tem o conceito de X se sua classificação de características de X obedece a um resultado que pode ser dito avaliado, ao final, como correto, ou mesmo como incorreto. Ter um conceito é exatamente isso: poder ser avaliado em suas classificações. Ter ou não conceitos é derivado de poder classificar corretamente ou classificar incorretamente. Sendo assim, a tarefa do externalismo de Davidson é a de explicar como podemos alcançar a noção de erro – o conceito de erro.

Então, a questão não é a de explicar o erro. A questão é a de explicar como adquirimos o conceito de erro. Temos de ir do erro ao conceito de erro – é exatamente isso que o externalismo de Davidson faz.

Uma das idéias comportamentalistas é a de explicar o erro notando a causa e as reações que temos a ele. Causas comuns e reações comuns aos chamados fatos brutos sugerem algo sobre como alcançamos a noção de erro. Mas não a explicam. Sugerem o que é plausível: se há um estímulo que permanece o mesmo e reações a ele, de diversas pessoas, que permanecem muito semelhantes, estamos aí diante da idéia de que pode se seguir uma regra, e quando não a seguimos, há o erro. Tal situação, para Davidson, cria um espaço para o erro, mas não é suficiente para explicar como alcançamos a noção de erro e, assim, como chegamos a poder conceptualizar. O modelo de explicação de Davidson pode ser mostrado por um exemplo fácil, formulado por ele mesmo. Eis o exemplo, abaixo, com algumas adaptações.

Joana é a observadora de duas situações. Em um tempo t1 ela observa a leoa La que, por sua vez, espreita uma gazela G, também observada por Joana, e em um tempo t2 ela observa a leoa La e mais uma leoa Lb que, então, estão ambas espreitando a Gazela G, e que estão se observando, e, enfim, todos estão no campo de observação de Joana. Tomamos t1. Joana pode descrever tal situação de t1 de um modo específico, correlacionando dois aspectos da cena: o comportamento da leoa La, que tenta encurralar a gazela G, e o comportamento da Gazela G que tenta escapar, mas que, no entanto, não desaparece da vista de Joana e da leoa. Joana pode confirmar sua teoria de que gazelas são objetos bem importantes para leoas na medida em que nota outras leoas e outras gazelas em situações de encontro. Mas mesmo assim, a decisão de Joana de concluir o que concluiu é feita a partir do que prende a atenção dela. O que é necessário, então, é criar uma situação que elimine ou atenue o papel um tanto que exclusivo e solitário da decisão de Joana, a decisão dela a partir do que prende a sua atenção. O melhor modo é agregarmos, então, mais informações, introduzindo a situação t2, que implica na mesma que t1, só que agora com a presença da leoa Lb no quadro de visão de Joana. Joana, então, pode classificar em um mesmo tópico as respostas de La e Lb no mesmo tempo e no mesmo lugar. O foco das causas compartilhadas (e focalizar as causas é o que importa aqui) é, agora, o que Joana toma como importante para ambas as leoas, La e Lb, diante da gazela G. Joana não depende mais de sua própria escolha para decidir o que são ou não os estímulos relevantes para os comportamentos das leoas. Em algum caso excepcional, onde as respostas de La e Lb diferem em relação aos mesmos movimentos (estímulos) de G, ela, Joana, pode dizer: uma das leoas errou. Mas isso não soluciona tudo. O desafio está em colocar as leoas na posição de distinguir esses casos. Para fazer tal coisa é necessário eliminar de vez a arbitrariedade de Joana (ou o interesse de Joana) na escolha do que é relevante nas respostas similares das leoas. O elemento que é introduzido, para tal objetivo, é fácil de ver: ele aparece quando as leoas cooperam para colocar a presa em um canto. A leoa La observa a leoa Lb mirando a

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gazela G e vice versa de modo que mudam de direção a partir da informação uma da outra.

O que Davidson chama de sua própria tese a respeito da situação exemplar acima, é o seguinte: um triângulo interconectado (duas leoas, uma gazela) constitui a condição necessária para a existência de conceptualização, pensamento e linguagem.79 Mas o importante para Davidson não é a existência de Joana somente, ou seja, a presença do observador que faça o papel de “terceira pessoa”, o que é necessário é que o observador possa ver a comunicação entre elementos que coordenaram ações em busca de objetivos. O bom triângulo permite que Joana capte o contraste entre o comportamento das duas leoas sendo que este contraste é aquilo que é manifestado pelas leoas, o que elas fazem para cercar a presa. O triângulo de Davidson – uma proposta célebre em sua teoria – só é original enquanto um modelo filosófico para explicar conceptualização, pensamento e linguagem na medida em que torna possível para Joana apontar para a causa relevante na situação de mudança de comportamento que observa entre as leoas. Exemplificando novamente: duas criaturas que observam uma vaca. Elas não compartilham a turbulência neural que ocorre em seus cérebros, nem compartilham da estimulação de suas retinas. Elas não compartilham fluxos de fótons, mas a vaca é vista e até mesmo sentida por ambas. Podemos chamar a isto, diz Davidson, de uma forma de triangulação. De fato, o desenho das linhas de vista fica próximo mesmo de um triângulo. Mas o triângulo não se completaria se não houvesse contabilidade da reação mútua de cada um quando do estímulo que é a visão de algo que é a vaca. Este maneira de investigar a objetividade contribui, segundo Davidson, para entendermos o quanto o ceticismo é fraco diante de modelos que podem contar com a linguagem como elemento produzido socialmente.

Este mesmo modelo da triangulação, de modo mais detalhado, é utilizado por Davidson para explicar o pensamento e, assim fazendo, volta a dar possibilidades de mais estocadas no ceticismo.

Davidson afirma concordar com Rorty quando este reclama de sua abordagem do ceticismo 80 Para Rorty, o que Davidson faz em relação ao ceticismo é antes retirá-lo da agenda filosófica que fornecer uma resposta para colocá-lo contra a parede. Davidson tende a concordar com Rorty, entre outras várias críticas, também em relação a tal sugestão: a melhor maneira de lidar com o cético é mostrar quão implausível é sua tese.81 Estocando indiretamente o ceticismo, termina por explicar o pensamento. Nessa tarefa, estabelece quatro pontos de apoio que, ao mesmo tempo, correspondem ao plano de sua abordagem: 1) define sua metodologia como sendo a do naturalismo filosófico; 2) estabelece as proximidades e as diferenças de sua postura para com Descartes; 3) aponta para a aquisição da noção objetiva de verdade enquanto apreendida conceitualmente como sendo o marco necessário do que ele qualifica como pensamento racional pleno; 4) e, enfim, faz a defesa do holismo (tanto em relação ao pensamento

79 Davidson, D. Externalismos. Op. cit., p. 7.

80 Davidson, D. The problem of objectivity. In: Problems of rationality. Oxford: Oxford University Press, 2004, p. 6.

81 Rorty, R. Objectivity, relativism and truth. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.

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quanto em relação à linguagem) como o melhor modo de entendermos o pensamento e, se assim quisermos, afastar o que ainda poderiam ser resquícios do ceticismo.82

1) O naturalismo filosófico estadunidense não é uma posição enrijecida, que defenderiamétodos científicos segundo um tipo de positivismo estreito. Ao contrário, é hoje uma posição ampla e saudavelmente vaga capaz de congregar todos que adotam a idéia de que a separação entre história e natureza, muito ao gosto dos historicistas europeus, pode ser colocada de lado em favor de uma divisão mais útil contemporaneamente. História e natureza caem para o campo natural, onde está tudo o que passamos em nossas vidas, o que restaria “do outro lado” seria o campo do sobrenatural, que não é mais o caso da filosofia. O naturalismo epistemológico davidsoniano inicia suas investigações aceitando o senso comum (e/ou a ciência) e parte daí para a descrição da natureza e origens do conhecimento. Tomando como ponto de partida Descartes, diferencia-se deste rapidamente.

2) O que Davidson tem em comum com Descartes? Diz que ironicamente seu ponto de partida é o mesmo de Descartes. Ironicamente, é claro, pois Davidson é um filósofo antifundacionista, ao passo que Descartes é o pai do funcionismo moderno. Compartilhacom Descartes o fato de que em seu modo de filosofar não há espaço para duvidar do próprio pensamento. Não podemos duvidar do pensamento porque a própria dúvida da existência do pensamento é um pensamento. É impossível ter uma dúvida sem saber que ela é uma dúvida. A similaridade com Descartes cessa neste ponto. Davidson não vai adiante com Descartes.

Empiristas britânicos e Descartes têm em comum algo com que Davidson não concorda. Descartes baseia todo o conhecimento em algo que dado imediatamente à mente – algo que não se pode questionar (o Cogito). Os empiristas afirmam que o dado inquestionável são percepções, impressões, dados dos sentidos, dados não interpretados da experiência. Segundo Davidson, os empiristas e Descartes compartilham da convicção de que somente o que está imediatamente diante da mente é conhecido diretamente e sem inferência. Assim, de ambos os lados da filosofia moderna, tudo que podemos conhecer estaria baseado no que é certo e imediato, subjetivo e pessoal.

3) Esse tipo de assunção, que implica no subjetivismo, enfrenta problemas. Primeiro: como podemos justificar nossas crenças (objetivas, isto é, independente de nossas mentes) no mundo? Segundo: como temos o conceito de uma realidade objetiva?83

Encaminhando respostas para essas duas questões, deparamo-nos com a tarefa de dar conta da seguinte interligação: a explicação de como agarramos o conceito de verdade objetiva cai na dependência de explicarmos como o pensamento é possível.84

O interesse de Davidson não é o de explicar a existência do pensamento, e sim de dizer como ele é possível. É o que segue.

Um pensamento é definido, ao menos em parte, pelo fato de que tem um conteúdo que pode ser verdadeiro ou falso. A forma mais básica de pensamento é a crença. Não

82 Davidson, D. The problem of objectivity. Op. cit., pp. 3-18.

83 Idem, p. 3.

84 Idem, p. 4.

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podemos ter uma crença sem entender que uma crença pode ser falsa ou verdadeira. Quando Joana diz “Creio que não há um dragão atrás da porta” ela sabe que sua crença está associada a poder abrir a porta e, então, é claro, ver que não há um dragão (ou que há, e então sua crença é declarada falsa). O essencial é o elemento surpresa. A consciência da possibilidade da surpresa é o essencial para a crença. A crença é pessoal, pode estar errada ou não. A verdade, diferentemente, é objetiva. Mas o problema, Davidson lembra, é então saber como adquirimos o conceito de verdade – verdade objetiva. Não podemos explicar a apreensão do conceito de verdade por meio da presença da frustração de uma expectativa uma vez que para sermos frustrados diante de uma expectativa já temos de estar de posse, antes, do comando de tal conceito. Ficar surpreso é reconhecer a distinção entre o que conjecturamos e o que é o caso. Ter uma expectativa é admitir que o que se espera pode não ocorrer ou pode não se mostrar como o que acreditamos.

Essa forma de argumentar envolve, neste caso, uma explicação do que Davidson entende pela palavra “conceito”. Isto é básico. Para ele, aplicar um conceito é fazer um julgamento no sentido de classificar ou caracterizar um objeto ou evento ou situação de certo modo, e isto requer o conceito de verdade, uma vez que é sempre possível classificar ou caracterizar algo de modo errado.85 Ter um conceito, na acepção davidsoniana, é poder cogitar (entertain) a respeito de conteúdos proposicionais, é ser capaz de formar julgamentos, é ter o comando do conceito de verdade. Uma criatura que tem esses atributos, diz Davidson, tem todos.86 Aceitar essa tese é dar um primeiro e importante passo em favor do holismo, isto é, a interdependência de vários aspectos do mental.

4) A idéia que está na argumentação de Davidson, para sua caracterização do pensamento, é a de lidar de modo conjunto com a centralidade do conceito de verdade e com o holismo. A explicação não é complexa. Quando dizemos “Esta moça é alta” e não indicamos nenhuma moça, a proposição expressa não é falsa nem verdadeira. Não precisamos imaginar que tal proposição estaria falando de Joana, por exemplo, para ver sua inteligibilidade. Ela é inteligível porque sabemos, antes de tudo, sob que condições ela seria falsa ou verdadeira. Saber o que seria para uma proposição ser falsa ou verdadeira não necessariamente implica em saber contar quando ela é falsa ou verdadeira, muito menos saber dizer se ela é falsa ou verdadeira. O que é necessário saber para a inteligibilidade de uma proposição são suas condições de verdade. Então, para conhecer uma proposição, faz-se necessário, também, ter o conceito de verdade, o que implica em ter o conceito de objetividade; isto é, ter a noção do que é uma proposição ser verdadeira ou falsa independentemente dos interesses de toda e qualquer criatura. Eis aí o ponto no qual o holismo emerge. Pois entender uma proposição como independente é ver sua trama com outras proposições. Ou melhor: ter uma atitude diante de uma proposição de maneira que se possa ver que ela é verdadeira ou falsa de modo independente é acreditar em muitas outras proposições concomitantemente. Se Joana imagina que está vendo um grande cachorro na porta, e ela se assusta porque não quer ser mordida, ela tem uma idéia do que é um cachorro. Um cachorro é um animal. É um cachorro, não é um gato. É um cachorro grande, o que implica em saber que há cachorros pequenos e que este é de um tipo grande. Isso implica em saber o que é grande e o que é pequeno. Um cachorro pode morder alguém, um gato provavelmente não faria tal coisa. Há cachorros dóceis e não dóceis. Mesmo sendo dócil, pode morder 85 Idem, p. 9.86 Idem, p. 9.

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um desconhecido ou mesmo um conhecido sob determinadas circunstâncias. Assim, há uma lista – infinita mesmo – de proposições que se agregam à primeira. E não há como dizer que existe um número fixo de proposições nesta lista que torna inteligível a primeira proposição. Há algo claro a respeito dessa lista, e que esclarece o que é o pensamento naquilo que podemos saber o que é: sem essas crenças que surgem em pacotes não há como cogitar algo a respeito da proposição “eu vejo um cachorro grande na porta”. Não há, antes disso, como acreditar ou desacreditar dela, ou desejar que ela seja falsa, ou perguntar se ela é verdadeira ou, enfim, investigar o que a torna verdadeira.87

Considerando o holismo e a triangulação, como já os expus, o pensamento, que é da mesma estrutura proposicional que a linguagem, pode ser entendido claramente por esse tipo de externalismo.

7.7 O que existe?

Dissertar sobre a linguagem e o pensamento é, para Davidson, falar de algum modo de uma relação de referência. Não há como evitar lidar como um tipo de semântica da referência, a semântica que relaciona expressões a objetos. O estudo da linguagem, para Davidson, é necessariamente um estudo de ontologia da linguagem.88 Todavia, Davidson não evita com isso de colocar para si mesmo uma questão clássica em filosofia: se sabemos algo sobre a semântica da linguagem e, então, isso nos envolve com a ontologia da linguagem, podemos aprender algo da própria ontologia? Temos condições de lidar com as questões tradicionais sobre “o que há?”? Davidson responde afirmativa e taxativamente essa pergunta. De posse da semântica correta, os objetos que designamos com as expressões são objetos que existem.89

Davidson entende que Quine, ao mostrar a tese da inescrutabilidade da referência e a da indeterminabilidade da tradução90, não criou um grande dano. Não fez algo que nos levaria a afirmar, por exemplo, que é ilusão que nos comunicamos, e que seria mais ilusão ainda acreditar que quando falamos das coisas do mundo ou não sabemos sobre o falado ou simplesmente estamos mesmo errados em toda nossa conversação. Quine mostra que não conseguimos uma relação entre um enunciado em uma linguagem e um enunciado em outra linguagem cuja correspondência possa ser tomada como exclusiva e como sendo a única correta. Não encontrar uma única tradução entre uma linguagem e outra é, para muitos, a porta aberta para um relativismo que nos levaria ao ceticismo. No entanto, Davidson entende que isso não é uma ameaça à objetividade de nossa capacidade de dissertar sobre o mundo (e de nos comunicarmos) tão mais perigosa que o fato de usarmos formas de medidas diferentes (polegada, metro, centígrado, fahrenheit, etc.) é uma ameaça para a objetividade de nossa mensuração.91

87 Idem, pp. 10-11.88 Davidson, D. Method and metaphysics. In: Truth, language, and history. New York: Oxford, 2005b, p. 40.

89 Idem, ibidem.

90 Dar uma dica desses termos e indicar o capítulo em que aparecerão.

91 Idem, ibidem.

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A tese de Davidson, no caso, é que a interpretação de uma pessoa, usuária de uma linguagem determinada, por outra pessoa com outra linguagem, depende da concordância que elas chegam a respeito do mundo que as cercam. Todavia, é claro que, filosoficamente, para dar continuidade à defesa dessa tese, é necessário mostrar que a ocorrência de um erro enorme, ou seja, um erro de ambas sobre tudo que as cercam, não faz sentido. O socorro a tal tese vem de um argumento bem imaginado.

Poderíamos imaginar um intérprete onisciente e correto metodologicamente. Existindo, ele seria aquele que interpretaria qualquer falante como tendo, no geral, crenças corretas. Um intérprete que está correto sobre o mundo e correto em suas interpretações necessariamente encontra um falante que no geral está correto, então o falante deve realmente estar correto. Esse argumento de Davidson, ele reconhece, não convence todos os céticos ou seus simpatizantes. Eles gostariam de saber o que é um intérprete onisciente. O que saberia, afinal, tal intérprete? Se soubesse tudo, então a tarefa da interpretação seria desnecessária desde o primeiro momento. Se soubesse algumas coisas, então seria um dever perguntar sobre mais detalhes a respeito de seu conhecimento, do seu grau de onisciência. Aceitar o desafio dessas questões, para levar adiante a tese e a idéia do intérprete onisciente implica em trabalhar utilizando dois princípios metodológicos: 1) a consideração do padrão das crenças que um intérprete pondera que são possíveis de atribuir a um agente; 2) a consideração das conexões causais entre o agente e o mundo.

Esses dois princípios podem ser chamados de princípios de consistência interna e de observação de causalidade, ou princípios de coerência e realidade.

1) Como obedecer a coerência interna? O intérprete tem de rejeitar uma interpretação semântica de uma sentença, que um falante sustenta como verdadeira, se a interpretação torna essa sentença uma contradição óbvia. O intérprete desconfiará de uma interpretação que encontre duas sentenças contraditórias mantidas verdadeiras pelo falante. De um modo geral, ele deve apostar em interpretações que tornam o falante um signatário de seus próprios padrões, os do intérprete, de consistência e racionalidade. E tem de ser desse modo, mesmo que existam momentos em que a inconsistência, em algum ponto, é a melhor maneira de acomodar o dado. O que está por trás de tal estratégia: proposições são identificadas pela posição que ocupam em um meio de outras proposições; se uma proposição é mudada para longe de sua posição, as razões para identificá-la como aquela proposição serão perdidas.

A partir da semântica, Davidson nos conduz até à ontologia. Na investigação ontológica, nos faz mais próximos à verdade relacionada a pessoas, ou, certamente a qualquer criatura capaz de pensamento. Por isso vemos que é impossível crer em uma contradição; assim considerando, nossas crenças sobre o mundo não podem ser falsas. É certo que é possível acreditar em proposições contraditórias: pode-se acreditar que uma proposição p é verdadeira e, também, acreditar que a negação de p é verdadeira. Mas aquilo que não merece crédito é o seguinte: uma proposição da forma p e não-p é verdadeira. Nada poderia contar como uma razão adequada para se atribuir tal crença a uma pessoa. Pensamento e crença pertencem ao reino da racionalidade. Desvios de racionalidade são consistentes com uma racionalidade subjacente. Contradições simples e óbvias estão para além do limite de desvio possível; se assim ocorre o conceito de pensamento perde a sua aplicabilidade. Davidson arremata dizendo ser possível pensar

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que alguém pode acreditar em uma contradição, e Heráclito assim pensava – mas ele estava errado. 92

2) Como obedecer a realidade? Vendo as conexões causais. Elas são de dois tipos, dependendo da direção da causalidade: a ação revela os efeitos do pensamento de um agente sobre o mundo exterior a ele; as sensações mediam os efeitos do mundo sobre as crenças do agente. Nesse caso, o que se pede é que as conexões causais sejam respeitadas na interpretação. Davidson exemplifica a situação da seguinte maneira: se alguém está normalmente estimulado por corujas, e está sob boa luz para poder manter verdadeira a sentença “há forujas aí”, e então, estando todas as outras coisas em acordo com essa interpretação, a melhor hipótese é de que o falante usa a palavra “forujas” para se referir às corujas. Tais condicionamentos diretos de palavras a objetos devem repousar na base da interpretação correta, e se assim é, a interpretação correta torna um falante em alguém que acredita em muitas outras coisas verdadeiras sobre o que existe.93

Esse modo de agir, ou seja, essa estratégia, leva à triangulação novamente. E esta, à noção de verdade. O que se pode ver daí, Davidson afirma, é que a verdade é como uma porta proverbial que não se pode esquecer; ou ao menos uma porta que não se pode esquecer na maioria das vezes.94

Fim

92 Idem, ibidem, pp. 44-5.93 Idem, ibidem.

94 Idem, ibidem.