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281 bre coisas que não são ele: é sobre coisas que são, de alguma forma, ele mesmo. Ou de coisas que foram ele. Isso representa um nível de assunção de responsabilidade elevadíssimo! E isso tem implica- ções necessárias, óbvias ... Quem puder que avance um pouco mais * ** ** (ou muito!) nas consequências ilativas necessárias daquilo que foi dito acima... (Fiz questão de deixar pandas as velas para outros navegantes mais ousados.) (Fernando Pessoa nos alertou: com a verdade também precisamos ser um tanto diplomáticos.) O de ao sol FRANCISCO, PERSONAGEM DO POEMA PSI , A PENÚLTIMA, SAI DE DENTRO DO POEMA E CONVERSA COM UM CERTO SF QUE TAM- BÉM É FRANCISCO 235. Francisco: Ah, o fanatismo. SF. Não! As senhas. Assim que nos ensinaram. Se é verdade, se é men- tira, temos nada com isto não. Ao poeta, a iluminação, o embalsama- mento: Sucessivas dobras deste len- çol de linho/ aromas e essência — a garantia de que a Comadre have- ria de ganhar a luta, ainda que pela ressurreição, nas vinhas do Olimpo. 236. Francisco: Antes que este questionário descambe no mais desalmado fanatismo. Crime e Cas- tigo? O senhor tem-lhe menciona- do leitura secreta. Qual? SF. No poema de Saramago, Olha, Tomé, teu pássaro foi-se embora, o seu lado “secreto” foi ele mesmo aceitar colocarem o Evangelho se- gundo Jesus Cristo no rol dos livros ímpios, que não é. Logo, uma escri-

de ao sol · Ode ao sol FRANCISCO, PERSONAGEM DO POEMA PSI, ... essa mania boba de citar Se Deus não existe, tudo é permitido ; quando a leitura correta, secreta, é preci-

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bre coisas que não são ele: é sobrecoisas que são, de alguma forma,ele mesmo. Ou de coisas que foramele. Isso representa um nível deassunção de responsabilidadeelevadíssimo! E isso tem implica-ções necessárias, óbvias ... Quempuder que avance um pouco mais

*****

(ou muito!) nas consequênciasilativas necessárias daquilo que foidito acima... (Fiz questão de deixarpandas as velas para outrosnavegantes mais ousados.)(Fernando Pessoa nos alertou: coma verdade também precisamos serum tanto diplomáticos.)

Ode ao sol

FRANCISCO, PERSONAGEM DO POEMA PSI,A PENÚLTIMA, SAI DE DENTRO DO POEMA

E CONVERSA COM UM CERTO SF QUE TAM-BÉM É FRANCISCO

235. Francisco: Ah, o fanatismo.SF. Não! As senhas. Assim que nosensinaram. Se é verdade, se é men-tira, temos nada com isto não. Aopoeta, a iluminação, o embalsama-mento: Sucessivas dobras deste len-

çol de linho/ aromas e essência — agarantia de que a Comadre have-ria de ganhar a luta, ainda que pelaressurreição, nas vinhas doOlimpo.

236. Francisco: Antes que estequestionário descambe no maisdesalmado fanatismo. Crime e Cas-tigo? O senhor tem-lhe menciona-do leitura secreta. Qual?SF. No poema de Saramago, Olha,

Tomé, teu pássaro foi-se embora, oseu lado “secreto” foi ele mesmoaceitar colocarem o Evangelho se-gundo Jesus Cristo no rol dos livrosímpios, que não é. Logo, uma escri-

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ta secreta; agora uma “leitura se-creta”. Se Saramago sabia? Achoque não. A intenção era a incredu-lidade mesmo, a blasfêmia até. Damesma forma, em O crime do Padre

Amaro, também secreta para Eça asantificação do abade Ferrão. Umparágrafo apenas, emoldurado poraquela montanha de impiedade queera o clero português. No Gênesis,também secreta, a história deRuben, que salva o irmão, José,contra a fúria dos outros que queri-am matá-lo. Poder-se-ia dizer queo Gênesis inteiro, do ponto de vistada leitura secreta, é apenas o Livrode… Ruben. Ele não ganhou a“benção” [fornicara com a escravado pai], mas isto não tem importân-cia; ele salvou o irmão, independen-temente de qualquer recompensa.São colegas, ele e o sargento do tan-que das ariranhas. Poder-se-ia tam-bém dizer que é o Livro de Tamar,a puta da beira da estrada, umamulher extraordinária, de quemdescende o Cristo.

237. Francisco: —?SF. Veja, em Os irmãos Karamazov,essa mania boba de citar Se Deus

não existe, tudo é permitido; quandoa leitura correta, secreta, é preci-samente o contrário: Se Deus exis-

te, tudo é permitido porque com Ele

negociaremos a salvação. Os irmãos,o pai, o filho bastardo, o clero, asmuitas mulheres que emolduramaquele tratado de maldades, nadadisso tem maior importância… Achave mestra, secreta, secretís-sima, é o menino, que presenciouum dos irmãos Kamarazov maltra-tar o pai. Dignidade? A gente per-cebe que ele, menino, tinha de so-bra. Morreu jovem, escolhido dos

deuses, porque da raça dos deuses.Não, não! Dostoiévski não sabia.Nunca soube. Está morto. Não te-nho como lhe contar. Nem Sara-mago, também morto.

238. Francisco: Quem mais?SF: Em Sófocles, livro tão denso queé para ser lido pelo menos umastrezentas vezes na vida; todo mun-do só presta a atenção em Antígona.Certo, ela é importante. Mas duasoutras personagens e suas respec-tivas senhas. O compromisso nãoé com a metáfora, mas com o sím-bolo, esse acúmulo de senhas quese consolidaram na nossa mente,desde que o mundo é Mundo. Atábula não é rasa! Nem precisamosde reencarnações para saber coi-sas. Acho que, à medida em que ohomem foi perdendo os mecanis-mos instintivos do animal-primata,foi ganhando em sua mente-noiteas tais senhas, as super-metáforas,as pré-metáforas, as moradas ini-ciais, os símbolos da ancestralidade.Hemon cospe no rosto do pai,Creonte, e avança contra ele dearma em punho. O autor, Sófocles,não diz (e a beleza está em não dizê-lo!), mas é muito razoável que caiaa maldição da morte sobre o filhoque cospe no rosto do pai, ainda queo pai seja merecedor. Então, acusparada e a morte de Hemonguardam uma perfeita simetriasimbólica, desde os tempos. O ou-tro personagem, Ismênia, irmã deAntígona, que adverte: “Somos mu-lheres, Creonte é poderoso”. “E se

eu morrer?”, diz a Comadre, tal qualIsmênia. Entanto, tal comoAntígona, a Comadre vai à luta eluta; Ismênia, não. Ficou “na dela”,ó! Se o mundo é feito de Ismênias?

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Quem tem dúvida? Poucos,pouquíssimos os sargentos que sal-tam no tanque com ou semariranhas. A escolha é tua:Antígona ou Ismênia? Aliás, os deu-ses nem perguntam. Não há tempopara qualquer escolha.

239. Francisco: O senhor falou queos poetas seriam aurorais?SF: Não. Falei isto não. Pelo con-trário, quase todos crepusculares.Cantam a tristeza, a perda, o de-sengano, o fim da luz, o lusco-fus-co, o crepúsculo. Autoral é o Meni-no, o Frederico, Antônio FredericoCastro Alves. Veja, o Navio, estemonumento, conclui-se numdespedaçamento cruel. Crepúscu-

lo? Pelo contrário! De pura aurora!O “varrei os mares tufão” anunciaum novo tempo, um mar varrido,após o “varrei” do poeta, um resset.Se os negreiros foram arremessa-dos de morro acima, favelas e pali-çadas, o poeta não tem culpa.

240. Francisco: Crepusculares,então?SF: Sim, a sua grande maioria.Cantam a noite, o crepúsculo, atristeza. Parece que é mais fácil. Apoesia seria assim um refúgio àsdores, quando, pelo contrário, sualegitimidade havia de ser o júbilo,a 9ª com a sua Ode à Alegria. Umpoema de sol quente? Não é co-mum.

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Antífona

I - Parte Primeira...nem que o galo cante.

De que lado mora a luze onde residem as trevas?(Livro de Jó, 38:19)

Venho de outras terras, meu capitão,não sou da beira do mar, eu venhodesd’onde uma bola de fogo,volúpia de luz, volúpia de cor,cavalgava o horizonte e desabava,queda brusca por detrás da serrania,era quase todas as tardes,lá,que raramente chovia.

Na quebrada do solos jatobás queriam se apossar do ouro do crepúsculo,pediam a mestre Vento para lhes açoitar as copas,ajuda para agarrarem o Sol,mas o Sol,com medo de se perder na mata,corria ligeiro,mais ligeiro ainda,o medo de se rasgar nos galhos dos paus,para enganá-los,ficava maior na hora de se esconder,como quem dissesse"sou muito maior do que o maior dos oitis",e desabava lá de cima, soberano: pulfo!

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Bem ligeiro,talvez até fosse mesmo — muito maior — bem ligeiro,rápido, rápido despencava lá detrás,e a penumbra deslizava sobre a planície,desciam as trevas no lá-de-cá da serra,

[faltam quatro dedospara o Sol s'esconder na pedra grande,dizíamos, no jogo de bola,vamoss'embora]

que em porta e ferrolho: noite!

Depois me mudei:fui para além dos cabeços da Serra Branca,para além do lado de lá,atravessei o crepúsculo,debandei para onde o sol aparecia,acheguei-me às faldas da aurora,Macacos, rio Macacos e Volta-do-Rio,fazenda Macacos,Macaco-da-dona-Anísia, diziam os molequespara insultar, macaco de minha mãe;era de lá mesmo, Macaco-de-minha-mãe,do outro lado da serra,a vez de espiar o mesmo Sol,albor das alboradas.

Ali,no lad’e lá do crepúsculo,rompia desta vez,o sol, a uma maré cinzenta,brigava contra aqueles mesmos paus,aqueles mesmo morrosque eram da tarde quand’era de tarde,agora, matina, o Sol digladiava os mesmos inimigos;

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os mesmos paus,os mesmos morros eram engabelados,o mesmo engodo:crescer na hora de passar por cima deles, bola de fogo,apenas um fogo mais brando,talvez fosse o frio do vento frio da serra fria,daquela manhã quase fria, soprando,que logo depois esquentava,soprando.

Para não rasgar nas pedras, pontiagudas, agudas,para não derramar o oiro aos jatobás:

[quem já abriu um jatobá,bem amarelinho por dentro, sabe,é puro ouro,das asas,borboletas —

pó, amarelas elas também.]

Os jatobás passavam o dia inteiro dourando Sol,mesmo assim, queriam mais,sempre mais ouro do Sol,mas o bicho-sol crescia,alargava o passo, andava ligeiro.

Depois,mal se livrava dos jatobás e do mais alto dos oitis,diminuía o passo, ganhava altura

até o pingo, pingo-do-meio-dia:

e pingávamos,afrouxávamos o barbicacho dos chapéus,cabeças abaixadas,reverentes,pois ninguém jamais olhou o rei Sol a pingo:

Só enquanto ele nasce,só enquanto ele some;

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quanto menor o Sol,mais brilho de sol;quanto mais alto o Sol,mais fogo de Sol!A pino, diziam os mais velhos:nunca olhe,pode cair em cima da gente.

Mestre Sol,quando estava a pinochamava por mestre Vento e ordenava:

— Compadre Vento, não vente,vamos mormacear,botar os bichos pra sombra,é hora de encostar.

Encostava rápido e não ventava,e mal descambava da linha do pingo,mestre Sol afrouxava as correias de mestre Vento:rápido era o redemoinho,rápida era a poeira,rápida secava a infanta baginha do feijoeiro,

rápidas contorciam-se as pontas dos dedos dos matos verdes,rápidas murchavam as cabeças louras das filhas do milharal,rápida e aflita a sede geral de todos os bichos.

Longo o fim da tarde,longo o pio do cupido,despedia-se o corrupião;gemiam as oiticicas,os paus-d’arco, as aroeiras,quase recolhimento,Vésper.

O Sol também com sedecorria espavorido lá pras bandas do Piauí, também de sede,relava a barriga desta vez

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espremido dentro do boqueirão por onde também passavatonitruante o Poti,um rio velho, cobarde e mentiroso,camarão que lhe é do nome,camarão não tem nenhum.Era de medo da seca,fugindo do Ceará,troava o Poti, dentro dos abismos da serra,para dizer que não estava com medo,mas estava,igual ao esmorecidodentro do túnel,buzina de medo,nem olha para os lados, de medo, do túnel;tanto estava,desabalava inteiro pro Piauí.

Cobarde !

Esticava o pescoço,cansado e fumarento,quase também fugindo,de medo passavaum trem de poeira e ferro,de cimento e tralhas,um velho trem de cinzas,anunciava-se num apito rouco.aboio rasgado no chifre do marruá,despedia-se, tristonho;arranhava o bico das pedras...carícia ligeira,

de quase.

O Sol,ainda ferro de brasa,chiando como um ferro de ferrar boi,soltando chispas,para bater a poeira, as fagulhas do dia,

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abanar-se um pouquinho da tarde quente,se esfregava nos penachos da palmeira mais alta,cumeeira da Serra Grande,e os abismos,onde até bem pouco um abismo,uma ravina, um boqueirão, a escuridão,

plenificava agora um rasgo de fogo,um rio de fogo,em vermelho,em laranja, ocres,opalas,fugidias,as cores.Em multi.

E as palmeiras(de quase-opala, de verde-loiro)da serra rascante,cambiavam as brisas entre as copas e os ninhos,aproveitavam para se dourar às custas do sol,tentavam agarrá-lo como tinham tentadoum pouco mais cedo,os jatobás da Serra das Matas,os oitis da Serra das Matas,mas, mestre Sol tinha pressa, muita pressa de muito calor...

E não me venha, capitão, dizer que o Rei fugia,percorria, porém,Rei,ligeiro,pra lá de chãos.

Suava.Suava muito.Eu vi, capitão!

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As palmeiras apenas conseguiam tostar os coquilhos,grandes manadas de lágrimas de sol,os coquilhos,miniaturas em amarelo-ouro,ouro roubado de mestre Sol,que já ia lá longe,garganta ardendo de tanta fagulha,mestre Sol ia beber a água da sede,também uma colher de mel-de-abelha-jandaíra,quem sabe, um trago de boa tiquira,lá no Maranhão,de quando no Amazonas chegasse,bem de muitão, refrescar um pouquinho,talvez um banho na várzea do crepúsculo,lá do lado de lá...

Que é lá, poente,poente que lá se põe.

Até de manhã bem cedo...Pontualmente!

Pontualmente,de manhã bem cedo, pontualmente:

o Sol,o galo,a aurora,a lufada do vento,a manhãzinha,o café forte,a porta aberta.

É hora!É hora, meu capitão,me anote aí, por favor:

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Sou do crepúsculo,da aurora também sou,testemunhei ora em favor do sol,ora em favor dos paus,também em favor da brisa eu fui chamado,outras vezes, em favor das pedras.

Vi a luta, capitão,briga braba, de muita luz,

luz luminosa contra o verde-escuro,de quando chovia;

contra o verde-cinza,de quando ventava;

contra o cinza cinza,de quando, Seca, secava!

Testemunhei também em favor da serra,das franjas do vento;falei em favor do ocaso,testifiquei o levante,se preciso for,testemunho outra vez.

Nem que o galo cante!

Porque era assim mesmo, meu capitão,lá no saco,chamávamos saco,pois era mesmo um grande saco,buraco de muitas valas, serras, serranias,imenso o saco-da-serra,um vale de paredões,que era por cima deles se abria o Sol,um Sol-menino[…]espreitando à beiradinha,tomando chegada por cima da montanha,só as mãozinhas agarrando o parapeito,simples vagido daquele Sol-criança...

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Mesmo assim, de logo era lançado, arremessado extremo,até se perder do outro lado do vale,o lingüeirão de um vasto espanador,cauda luminescente de um pavão real e era azul...

Azul-real, o céu da manhã; e a luz,ora refletida no vermelho-vermelho da fruta,fruta do mandacaru em flor;ora brincando de pratano espinhaço de prata de um peixe de prata,que as escamas,trêmulos de luz,fúlgidos...

Ora brincando de rei,eis que era o próprio Rei em Rei,o sol brilhava direto,sem intermediários, no remanso do rio,refulgência da malacachetaem cada brecha do caminho.

Eu vi, capitão,foi assim mesmo que eu vi!

Brilhavam,que eram das mesmas alboradas,da mesma manhã, quand’eu vi,espelhando na cacimba claraa menina dos teus olhos,os molhados,o teu vestido,a miragem da cuia,pois o apanhar da água, uma quase-música,e os joelhos,sob o rastro dos céus passantes:

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os céus, n’água,os olhos...d'ela

Enchias o cântaro,depois,o caminho,quando subitamente iam ficando,

no caminho,os orvalhados de teus pés iam ficando,na areia respingada eram os desenhos,em ritmo e sedução, joelhos —e aquele cântaro eracântaro geral de minha sede toda,tu,sol geral de todas as manhãs,[…]pois eram duas,pois eram dois:

Ela, o Sol;o cântaro, a sede.

O que mais quer o senhor que eu cante,de que bicho o senhor quer que eu falede quantos pés, o bichoem quantos pés, o canto ?

Se cantar é preciso,escute lá, meu capitão:

Cant‘um canto de amor,posso armar um quadrão,um galope à beira-mar,afino viola e bordãoqualquer mote sei cantarnestas bandas do sertão

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preferença de dois pé,muié-feme, coração.

Sei cantar o arco-íris,só nun canto muié feia,canto tudo qu’é estrela,canto o céu quando clareiapode ser de vagalume,dozóios dela, lua cheia.meu camim é muito claro,ela que me alumeia.

Cant’inté no escurode tarde e de mei’diarasgo cerca, pulo muro,nunca abro da folia,é rojão pra lá de duropá dançar co’a Maria,coração de muito fogo, muito bom na pontaria.

Nun abra desta parada,venha de lá, seu capitão:tou espaiando as urtigaarrancando os cansançãodô nó e fac’intriga,neste lado do sertão,quando tô nun a briga,bringu’inté cum o Cão.

Alimpe logo o camim,desarréde, meu capitão!

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II - PARTE SEGUNDA

Do medo de apagar o Arco-Íris

"O olho não se cansa de vernem o ouvido se sacia de ouvir"(Eclesiastes, 1:8)

Peneirava,manhãzinha,uma chuva clara,entre a serra da direita, Canabrava,entre a serra da esquerda, São José do Frade,(tinha um frade, de pedra)quando mestre-Sol mandouo menino Chuvisco armar uma redepara tirar um cochilo,de tão cansado,longa a viagem de todos os dias.

Era de um cerro ao outro a rede de mestre Sol,a tolda recobria todo o vale,vasta rede de muitas cores,vastas franjas, vastas varandas, vastos punhos, sete, sete-cores, sete-raios, sete-listras, sete e a lira!

Era um arco a rede,parecia cada ponta esconder-seao pé de cada morro,onde diziam os mais velhos,

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naquele logar,pela raiz,ao tronco,onde nascia em arco,como se fora um grande armador-de-rede, morava ali: encantado um potede mel-de-engenho, da Serra Grande;outro de farinha;um terceiro, d’água,bem friinha.

Aliás, outros diziam que era um pote só,apenas um, porém,de-ouroouro-líquido,fumegante, resplandecente o pote.

Outros diziam:não há pote algum,apenas o perigo de que passes por baixo do arcoe mudarás de homemou mudarás de mulher

(foi assim com Tirésias,depois de apartar as serpentes;primeira vez que apartou, virou mulher;na segunda, virou homem)

pois também quem cortar o arco,quem lhe apartar as listras,passando por baixo, passando por dentrose mulher, vira homem;se homem, vira mulher,

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vira também adivinhão, como Tirésias;cego, fica depois.

Cuidado, cuidadoe ninguém ia lá; mesmo assim, diziam que dona Durica, de barba,valentia e cachaça cuspida, passara por baixo e falava grosso.

Adivinhar ?

Estavam esperando.

Diziam que o compadre Mané Aceno também passara,não virara em mulher;pelo contrário,achara o pote,de ouro:moedas, patacões do império, libras esterlinas,muita prata e muito cobre,eu vi capitão!

“Veja, comadre Anísia —disse mestre Mané (pedreiro) Aceno —guiei-me num sonho,era uma mulher:

(Alice, sua comadre, não sabe disso,nem pode saber, cuidado, comadre!)

grande cabeleira de uma égua melada,entre as crinas e o rabo, da égua, mas era mulher,bonita,tão bonita quanto nossa comadre Dica,bonita,não deu para ver se era casada, bonita;era um coque que ela ia soltando

devagarinho,

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eu seguindo,avançando,cautela,muito medo, comadre,da porta da igreja até aquele morro — e apontou —igualzinho às estrelas de presépioque têm um caído de banda,(um cometa, cauda do cometa, compadre)disse minha mãe.

Era assim mesmo, comadre,esse tal de cometa;lá eu cheguei,na casa do coronel,abandonada,debaixo de neblina,e muitopois o arco e muito raioquando ouvi a Voz:

“É na casa velha, do engenho, no fecho da forquilha, basta cavar.”

Latiam uns cães,era o Cão, comadre,benzi,rezei para o finado Otacílio.

Continuaram a latir.Aí me lembrei e perguntei:

— Quem pode mais do que Deus?

perguntei trinta e três vezes,é a idade de Cristo, comadre,

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mas os bichos continuaramlatindo, ganindo.

Aí falei, cinco vezes,nas chagas,Chagas de Cristo, comadre;de São Francisco do Canindé também, comadre,as Chagas.

Os bichos calmaram.

Era o Cão.

Fedeu.

Cavei, comadre, veja!

Riquíssimo pote de ouro,prosaica cabaça de mel com farinha,apenas um arco-íris, para mestre Sol tanto faz,alumeia, tanto faz,mas

naquele dia, balançava um pouquinho,só um pouquinho,acalanto fugaz de quem cansou,

e triscava o dedão do pé no paredão defronte,onde de manhã bem cedoainda menino,Sol-menino,apoiara o queixo,rasgara as mãozinhas,na hora de nascer.

Era,ali,uma brisa leve, um balançar suave,eis que assustava o tempo um silêncio pesado,

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e um vaqueiro velho,quase também um arcoe silêncio,Adolfo, de tão velho, silêncio,foi indagado:

Por que era que mestre Solnão botava todos os diasaquela roupa nova,da feira, talvez fosse,da missa,da festa de domingo?

O velho disse:

"É o arco-íris,só tem quando chuvisca,não é todo dia que chuviscase não, não tem sol-quentee sem sol-quentea momona num estrala, o feijão num bageia,num amarela o milharal”.

O velho disse:

“Precisa!”

O velho disse:

“Quando tem arco-irisé mode os bichos,p’aprenderem a cantar,eles esquecem;você não viuo canário-da-terra,como ele andava capiongo?"

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Eu vi, capitão, eu vi,ou meu testemunho:

Durante o cochilo de mestre Sol,os bichos-de-pena se acalmavam,talvez ensaiassemas lições,talvez de medoDe apagarem o arco-iris.

Logo depois,mal mestre Sol acordava e partia,despregavam o bico,fúria nos céus,todos os outros bichos também,mas os bichos-de-pena cantavam um canto,estrofes de um novo cântico:

Um gravetinho bem pequeno, um saltitar achegante, um pula-daqui, um pula-dali, roçavam-se, mais um saltitar ligeiro, um fiapinho de algodão, uns gravetinhos eram ciscados no bamburral, no manjericão também, para cheirar, de amor e flor, talvez, mobília de casa nova montavam, acho que era.

E mais um vôo, capitão, pareciao ritual de uma devoção meio aflita,

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“o amor é sempre aflito”, disse o velho, Adolfo.

mostravam-se — eram dois —retornavam-se bico a bico, emplumavam-se;o descompasso de um contágio de penas,um arrepio de cores,mais gravetos, mais cantares e a brisa leve...Eu vi, capitão:

era um fiar de cores,um tinir de beijo e canto;quase pairavam sob um gorjeio miúdo, instantespareciam desejavam algum silêncio:

calmavam-se

si

si si lêncio.

O material, parece,era aquele mesmo materialda deusa Mater Matutasuprema deusa do alvorecer, quando tecea pupila de todas as auroras,as sete-cores do arco,tece também a íris dos teus florais, amor,

os ninhos,os lírios do campo ...despreocupadamente, passarinhos.

Despreocupadamente,passarinhos,era uma vez um rabo-de-cavaloe uma franja:

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E se fazia a ordenação geral de todas as medidas,ritmo e batimento de todos os traços,de todos os gestos,de todas as linhas,finíssimas linhas das palmas,uma palma por entre as palmas,uma mão por entre as mãos,a buscada irrepreensível de espinhos inexistentes,(quando tinham os espinhos,tiravam-se,agulha e álcool que não ardiam;arranca mais outro, amor!)pois concílio de falanges,a combustão tátil às portas de todos os dígitos:

mãoentre mãos,pétala a pétala.

Perseguia-se,às mãos, o que das mãos já se sabia;

Buscava-se,na pupila, a luz que não cansava de olhar;

Ouvia-se,na raiz do gesto, o som do gesto:

Somente as rosas falavam, poisdo perfume da estrela, poisdo silêncio das nascituras folhas,da sinergia das borbulhas às forquilhas da mata renovada,rebento de coisa nova,igual à semente túrgida, à erva úmida, o chão,o chão profundo,o estalar da flor: abrindo-se,alborecendo-se o sol,sol da manhã, o pássaro, a flor: estávamos...

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si...si...

silêncio.

Si,silêncio -sim,meu senhor,posto que, nem mesmo Láalguém jamais ouviuo batimento dos céus;alguém jamais colocou um chocalhono riscar da estrela rápida;nem conseguiu mediro metro do firmamento;pois muito menosouviu o refulgir dos astros.

De longe,ouvir de longe,como assim, meu capitão?

Só se for às conchas do mar salgado;isso também conto.Conto depois.

Esvoaçavamfranjapenumbraapenas.

De que falas afinal, forasteiro?Enlouqueceste?!Queres um calmante?

Falo de Maria Helena, capitão,parece, o senhor não a conhece,Ela,

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Helena,e era Antônia,Antônia Helena,Helena Antônia, aquela,da guerra geral de todos os sentidos,Ilion, Tróia.

III - PARTE TERCEIRA

Piso em qualquer chão

Agora tu, Calíope, me ensinao que contou ao Rei o ilustre Gama;

[...]Senão direi que tens algum receioque se escureça o teu querido orpheio(Camões, Lusíadas, Canto Terceiro, 1 e 2)

Vem, Calíope,venham também as outras oito,Ereupokal, Kliumterthal, quero todas,e sob Apolo,a lira.

O que tinha de ver, já vi,que tinha de escutar, escutei,agora é a guerra,o trato de Menelau,

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a palavra empenhada aos príncipes gregos,contra Páris, o ladrão;engenho e muita força, de todas as armas —onde tiver, mando buscar.

Acudam-me os cantadores:Ignácio da Catingueira,negro e escravo;Romano da Mãe d’Água;vocês também fundaramo galope, a cantoria.

Pinto, do Monteiro,Otacílio, dos Batistas,a batistada todavenham todos,venham também.

Venha a negraBarrósaque desafiou,e era mulher,

nem se acreditava e desafiou,mulher fosse gente,especialmente se negra fosse, desafiouhoje Benedita, dona Benedita, senhora e senadora,

desafiou e ganhou,também a dona Barrósa, a senhora dona Barrósa,de seu Neco dos Martins, o desafio,

que também me acuda,eram poetas,ganhou, ganharam,fundaram este país!

Quero também Aderaldo,cego,

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e outro cego, Dantas, de Nova Russas,de quando de mim, menino,a feira, a estação do trem e Osvaldoque era médico,médico-doutor e as raízes,de todos os chãos,“fundou” a ecologia,era doido, diziam,não gostava de farmácia, nem de remédios;gostava do chão !

Venham também os trovadores,chegue-me César Coelho,acuda-me Adaucto Gondim,valei-me mestre Sinésio Cabral,vocês todos, um pessoal tão sensívelum cantar tão miúdo,gigantes porém:pois como conseguemencaixotar o início,passear pelo meiobotar presilha no fim

de tudo qu’é sentimento,em somente quatro versosde tudo qu’é bem-querer,de tudo qu'é universo!?

gigantes são,pois gigantes venham!

Venha-me também mestre Oldegar,feiticeiro do haicai,pioneiro nestas terras,de conseguir enfiar,dentro de três versinhos

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cinco-sete-cinco (tivesse):a cerejeira,o monte Fuji,o Sol Nascente.

Convoco para brigar nesta guerra,peço ajuda e proteção,ninguém nunca deles se lembrou:Zé Cavalcanti, da Paraíba,Leota, Ceará, Leonardo Mota,meu compadre Heldenir, de Monsenhor,outros gigantes e muitos outrosprosa leve e muito solta,os causeiros, os memorieiros,os botadores de bonecos, os cantadores de reisado,das presepadas, presepeiros,fazedores de sentinela, guias de cego e aleijado,sabem todas as históriasverdadeiras e inventadas:

Cobras imensas do Amazonas paroara(donde voltamos quando chove aqui)onças matadas de murro,ferradas n’azagaia,onça que veio-na-fumaça,o escalpo do imprudente,causos do boi-mandigueiro,astúcias do maracajá,histórias de muié-gaieira,marido-brabo, marido-mansomula-sem-cabeça, lobisomem, encantamento,de botijas cheias de ouro, prata e cobre;d’outros feitos e valentia,histórias de cegos, coronéis, cangaceiros;adivinhões, profetas da chuva,rezadores, benzedeiras,

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dona Maria do Gildoe seu raminho de arruda,capadores e curadores (no rastro!).

Venham, venham,vocês sabem,sabem tudo,eu sei algumas.

Sem as musas,sem o Olimpo,sem as fontes,meu cantar é muito fraco,inspiração muito curta;urgem-me aquelas vergônteasde pau-de-jucá, que nos brotam do coração,correm pelos tutanos,mergulham fundo no chão,e buscam,profunda que seja,a água-vida,esteja onde estiver,para melhor dizer:Raízes de céu!Raízes de chão!

Sem os amarradios do caroá, do agave, do tucum,sem essas embiras todas,perenes do bronze, fortes do aço,os entrançados da casa da aranha,nunca cai, nem que chova,nem que rache o sol,nunca cai, melhor dizendo,família,qund’é família !

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Ai do cantador que se atrever,ai daquele que não possa dizer:eu sou,eu venho;eis a essência,a chave-mestra,a gota primeira:nós!

Pois de que jeito, meu capitão?

Tétis, minha mãe, compareceu aos rios,para cumprir o oráculo,mas os rios estavam secos,janeiro,ainda não chovera,o único que tinha água fugira para o Piauí,Poti.

O banho então se fezno tacho de mel das rapaduras quentes,engenhos do pé da serra,aos paredões da Ibiapaba,à sombra das palmeiras gigantes,ao som dos besouros azuis,sorondongos,torrados,na pimenta e (farinha)do reino.

A gente comiaa gente come, os besouros,as tanajuras.Comemos também.João comia gafanhotos e mel.O Cristo sofreu.E foi tentado.

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Para fustigar as formigasfui levado às fornalhas das farinhadas de mandioca, ondebebi da manipueira, quandoo cântaro furou e curti sede grande,à inclemência do Astro,mais um reforço,jamais poderei dizer padecimento,fazia parte da têmpera!

Guiei-me pelo barbante,do equador eu venhoe trago,debaixo de toda a poeira,daquela terra benta que nunca foi fria, trago as alpercatas e um calcanhar eu trago;trago tambémo afoito costumede pisar uma pisada resoluta,e das forjas daquele chão sagrado trago,para pisar em qualquer sítio,um pé.

Vou logo avisando,é o direito:com ele tomo a frente,com ele sei pisar,antando galope na beira do mar.

Venhodas alpercatas,do calcanhar eu venho,contra a tirania e a empáfia venho;vistam-se, por favor, todos os reis profanos,do meu pisar ninguém se ria,passo-lhes a faca,é amolado o meu quicé;ai do rei que profanar de nudezo verso, o poema, a cantoria!

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É daqui mesmo, seu coroné:é de lugar bem de perto,é de lugar bem distante, cheguei,um pé à frente, o outro atrás, agora;estou para qualquer parada, aqui;diga logo, por seu favor, sem demora,se prefere brigar,se quer fugir:pioo em qualquer chão!

Apenas,eis a ressalva,a única,razoável e salutar,prudente e honesto prevenir:

Ela,com certeza, o calcanhar e os espinhos,d’Ela,eu sei,sempre foram,sempre serão, desconfio,mas, por favor,Achilles,diga logo como é mesmo que senhor quer qu’eu cante!?

Salvador, BA, noite alta, 12/02/1995.

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OFICINA:1. Detrás da serrania: a terra dainfância do poeta, a pequena cida-de de Monsenhor Tabosa, situa-seno primeiro platô da Serra das Ma-tas, região centro-oeste do Ceará.Ao poente de Monsenhor Tabosa,fica o paredão da Serra Branca,onde o sol de esconde bruscamen-te, em porta e ferrolho, noite.2. Macacos: fazenda Macacos, ficado outro lado do paredão da SerraBranca, de modo que, para quemestá em Monsenhor Tabosa, ogrande espetáculo é o crepúsculo aoparedão da serra por sobre os oitise os jatobás, enquanto que, paraquem está nos Macacos, o espetá-culo é o da aurora por cima dosmesmos jatobás e dos mesmos oi-tis. O poeta morou (mora) nos dois.3. Jatobá: árvore da família das le-guminosas (Hymenaea courbaril),madeira dura, flores vistosas, ama-relas, e cujo fruto é grossa e longavagem que contém um farináceoamarelo claro, comestível e sabo-roso.4. Oiti: árvore da família das rosá-ceas (Moquilea tomentosa), de gran-de porte e pequenas folhas, muitocultivada para ornamento e sombranas ruas do Recife; os frutos, domesmo nome, são drupas bastantecarnosas e comestíveis, de cor ama-relíssima, aroma e sabor intensos.5. Barbicacho: (Brasil/NE) cordãoque se passa pelo queixo para se-gurar o chapéu.6. Poti: em tupi-guarani, camarão.Rio do Ceará, nasce nos sertões deCrateús e corre em direção aoPiauí, onde funda, na confluênciacom o Parnaíba, a cidade de Tere-sina, capital do estado.

7. Serra Grande: parte da cordilhei-ra da Ibiapaba, fronteira do Cearácom o Piauí, extensão total de 100léguas, altitude máxima de 1.000metros, rasgada no lugar Oiticicapelo boqueirão do Poti, tambémaproveitado, o boqueirão, para cons-truir a linha de ferro Fortaleza-Te-resina.8. Tiquira: aguardente feita commandioca, bebida tipicamente ma-ranhense, na rota do crepúsculo,pois a poente do Ceará.9. Coquilho das palmeiras: coco ba-baçu (Orbygnia martiana), Brasil,abundante na Serra Grande, nasvárzeas do Piauí e do Maranhão.Coquilho em forma de gota d‘água,amarelado por fora, revestido comuma camada de amido comestívele medicinal parecido com o pó dojatobá: amarelo-ouro. A copa do ba-baçu parece o grande penacho deum espanador olimpicamente ver-tical.10. O sol, o galo, a aurora, a lufadado vento, a porta aberta: a lide nor-destina começa muito cedo, aindacom escuro; abre-se a porta da fren-te, esteja quem estiver deitado, alufada de vento para acordar quemainda estiver dormindo; o café quen-tinho e o refrão “é hora” a botar paraandar os preguiçosos.11.Tolda que cobria todo o vale: nacasa nordestina, chama-se tolda auma rede estendida bem alta, porcima da rede onde dorme alguém— criança ou mulher de resguardo—, de modo que a rede de cima fun-ciona como um anteparo para o res-pingo da chuva às telhas de barro.As casas normalmente não são for-radas; em compensação, réstias ebiqueiras...

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12. Ereupokal-Kliumterthal: pro-cesso mnemônico do nome dasnove musas. Filhas de Zeus e Mne-mosine, protetoras de todas as ar-tes, costumavam castigar os huma-nos imprudentes que pretendiamsobrepujá-las; daí o pedido de licen-ça feito por Camões nos cantos I eIII d'Os Lusíadas. Era costume clás-sico os poetas pedirem o alvará àsmusas para as suas cantorias, sobpena de cegueira e morte trágica.Er — Erato, da poesia lírica; Eu —Euterpe, música; Po — Polímnia,hinos sagrados; Kal — Kalíope, poe-sia épica; Kli — Klio, história; U —Urânia, astronomia; M — Melpôme-ne, tragédia; Ter — Terpsícore, dan-ça; Thal — Thalia, comédia.13. Ignácio da Catingueira e Roma-no da Mãe d’Água: a maior dupla decantadores-violeiros de todos ostempos. Ignácio, negro e escravo,natural de Piancó, PB; Romano,branco e importante, nascido emTeixeira, PB, também grande can-tador. Famosíssimo pega na feira dePatos, PB, em 1870. Todos os demaiscantadores, Cego Aderaldo inclusi-ve, estão do Jornal de Poesia.14. Benedita: senadora, negra e fa-velada; senhora dona Benedita da

Silva.15. Causeiro: regionalismo, Ceará)contador de causos, histórias fan-tásticas do imaginário popular, fon-te perene de todas as tradições esubstrato cultural de um povo.16. Botador de boneco: riquíssimatradição nordestina, também cha-mada mamulengo ou espendengo,bonecos manobrados por cordéis,vozes de ventríloquo, histórias in-gênuas, uma festa!

17. Sentinela: (Nordeste) velório —muita cachaça, muito café, muitareza e namoro pelo meio; pasmem,verdadeira festança dos que fica-ram. Por certo, o morto também“gosta”, pois até hoje nunca apare-ceu alma reclamando da animação.Pelo contrário, reclamam se nãotiver.18. Pau-de-jucá: madeira nordesti-na, muito dura, própria para fazercacete de brigar, dura e pesada, po-rém flexível: não quebra, nem ra-cha. A árvore deve ser “cortada noescuro”, isto é, em dias que nãosejam de lua cheia nem de lua cres-cente; deve ser também sapecadalevemente na fogueira de angico,com o que adquire mais dureza euma cor ouro-marfim; finalmentebenzida por um bom rezador, tam-bém chamado benze-cacetes. É ar-rumar as coragens e sair por aí! Asvergônteas mais finas são usadascomo bengalas — coisa de velho,pois cabra novo usa mesmo é cace-te grosso. Era o jucá precisamentea madeira usada pelos índios parafabricar os tacapes.19. Manipueira: o mesmo que tu-cupi, suco leitoso da mandioca, ob-tido ao pé da prensa das casas defarinha quando da prensagem damandioca; contém o veneno da plan-ta, ácido cianídrico, mortal para ohomem e animais. Se o veneno forevaporado ao fogo (sete dias) ou aosol (trinta dias em litro branco), amanipueira é utilizada (NE) paramolho de pimenta de cheiro oucomo ingrediente do pato, delícia daregião Norte, chamado “ao tucupi”.20. Sorondongos: também sarondon-gos, larva de grande porte, do cauledas palmeiras — babaçu —, tam-bém de dentro dos coquilhos, man-

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jar finíssimo dos índios da Ibiapa-ba, tradição culinária mantida pe-los serranos. Uma delícia, os fran-ceses não sabem o que estão per-dendo: um prato de besouros fritosna manteiga... melhor do que les-ma — scargot, como eles dizem.21. Tanajura: içá, formiga gigante.Quando do revoo de acasalamento,às primeiras chuvas, as novas ra-inhas inundam os céus da SerraGrande: “cai, cai tanajura, que étempo de gordura” — canta a me-ninada, os grandes também. O ab-dômen do bicho — “bunda de tana-jura” — é separado do encéfalo, co-

sabava...” Ali, os jatobás queriam-se apoderar do ouro do crepúscu-lo, e o mestre Sol afrouxava as cor-reias de mestre Vento, enquantoas palmeiras apenas conseguiamtostar os coquilhos, grande mana-das de lágrimas de sol! O poemainteiro é de uma beleza de umaautenticidade ímpares (até as can-torias reproduzindo as falas típi-cas sertanejas), tudo misturado:evocações do sertão brabo, comseus personagens, suas lendas evisões, mas citações e recorrên-cias à tradição cultural do Ociden-te, indo até Homero e ao Olimpo.Parabéns, meu poeta. Poemãopara ser lido e relido.

ALEILTON FONSECA; Os seusbem-feitos!! Eu lhe digo: Antífonaé o grande "Poema Limpo" da poe-sia contemporânea. Sua dicção

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mido cru pelos mais afoitos. Umadelícia, porém, frito na pimenta doreino, com uma cervejinha, ao frioda serra. Latas e latas de tanaju-ras fritas correm o Brasil inteiro,para gozo e regozijo das amizadesdos conterrâneos emigrados. Jácomi, já ganhei de presente, pre-sente fino, presentão!22. Quicé: (Nordeste, Brasil) facapequena, bem amolada, utilizadapelos capadores. Havia uma, damarca SESAM, de fino aço sueco,especial para “beneficiar”, isto é,

castrar.

ADRIANO ESPINDOLA: O título émeio esquisito, pouco poético, pa-rece livro de física (Psi, a penúlti-ma partícula!) ou de psicanálise.Poeta, tu estás ficando doido? Achoque é isso mesmo — sem a loucu-ra, que seríamos nós senão “ca-dáver adiado que procria”? comodiz o verso fulgente de Pessoa.Você é um desses seres possuídospelo daimon ou pelo furor da musa,musa telúrica, pois seu verso é re-memoração, canto órfico que vãopresentificando, retomando, clari-ficando, celebrando o passado, rei-naugurando as coisas, transfigu-rando as lembranças e os seuscomo no belo poema inicial Antí-fona: Venho de outras terras, meucapitão,/ não sou da beira do mar,eu venho/desd’onde um bola defogo, /volúpia de luz, volúpia decor, /cavalgava o horizonte e de-

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épico-lírica percorre as páginascomo uma enxurrada que acordaos rios para matar a fome dos Açu-des. E a poesia tem sede de olhos,ela é a água milenar em seus ci-clos eternos. Os poetas brotam daterra, do barro amassado com suore lágrima. Eis que já vem Salomão.Chega à frente, homem, conta aíuma presepada! Toma assento, énoite, vamos poesiar. Salomão éintenso até no nome, em seusdez(en)cantos da vida. Sua poesia-prosa-reportagem-ensaio vibra navoz do poeta, dita-nos o compassoda emoção que bate forte: Tãm!! ONavio de Frederico aportou nomorro, suas amarras descem pe-las trilhas e escadas, seus porõestransmutaram-se em Útero pluralda mãe África: 'stamos em plenomorro! A história somos nós, masse a escrevemos como nossa, comsuas grandezas e misérias. E Sa-lomão é isto, canto da História, dosontens, do hoje e dos amanhãs.Aquela foto não podia existir!Aquele clic foi a verdadeira bica-da do abutre. Salomão, Salomão!,ícone da sabedoria milenar que sereprocessa no tempo, pelas mãosda arte. Um poema alegórico poli-fônico em que vozes contracenamna arena simbólica da existênciapara fundar a Biblioteca. Sim, tudoperece, só a Arte fica! Salomão éHale-Bopp, o navio em pleno céu,viajando ao Século de Ésquilo. Fei-tosa, seu sujeito! Que presepadaé essa?! Você é presepeiro da me-lhor raiz. E pra que poeta mais pre-sepeiro do que o tal Antônio No-gueira, dito Pessoa? O sujeito in-ventou-se de outros, outros no-mes, outras vozes, outras profis-sões, outras vidas, outras mortes,

outros poemas... presepadas! Comas minhas benquerenças, Aleilton

CARLOS NÓBREGA:

A FÓRCEPS

O que cantarde tão magra musade tão pó a florae lira tão penosa?

Entre mágoa e mínguaa imaginação estiaa se repetir no se-repetirdo lacrau caatingae das mãos ao altodos mandacarus.

Oh que torrão enxutooh mulher inúmidaoh ser tão enxutocom seu cabelo secosua roupa enxutaseu lábio ressecadocomo se estivessesob um toldo azul:

essa terra moraembaixo de um telhado(mesmo que janeirofeche o guarda chuva,traga um copo d’água).

Já que o tempo é feitode um sol de incêndioé visível o ventoesse gato súbito.

E a visagem à frentedá-se em cataratacomo se fervesseo que de fato ferve.Poiso que cantarde avara lira

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de musa tão magrade tão pó as rosas?

Perguntem ao Feitosaque retira líriosdos olhos das cobras.

ERORCI SANTANA: Antífona,uma ode ao Sol. Soares Feitosa,cearense de Ipu, órfão de pai nomesmo dia em que nasceu, e fi-lho único, despertou tardiamentepara a poesia, mais precisamen-te num domingo de setembro de1993, no limiar dos cinquentaanos, no dia em que produziu emum só e irrefreável jorro o poema“Siarah”. Até então, não havia co-metido um só desses pecados li-terários. Desde então, vem sendosistematicamente estuprado epossuído pelas musas, forças obs-curas, inexplicáveis que, se portanto tempo o privaram da criaçãoda poesia, o tornaram escravo de-las, num jogo de vassalagem gra-ta e consentida, a ponto de fazerdo poeta um de seus principaisdivulgadores, através de um sítiofundado na Internet, intitulado“Jornal de Poesia. Esse militanteda palavra traz agora ao público oobjeto deste artigo, Psi, a Penúlti-ma, Edições Papel em Branco, 254pp., Salvador/BA, conjunto de po-emas em livro extraídos de suaobra maior Réquiem em Sol daTarde, 750 páginas. A presentepublicação vem acompanhada deum saquinho de imburana-de-cheiro, torrada a moída pelo pró-prio poeta. Dupla oferenda, pois,que o livro oferta a expressão mai-or de seu povo, a poesia, e a ervatraz a seiva de sua terra. Há me-nos de quatro anos, portanto, do

ingresso nas lides do verso, o poe-ta causa espanto tanto pela quan-tidade quanto pela qualidade desua obra, merecedora de um bomnúmero de elogios de escritoresqualificados e não menos estarre-cidos do que eu diante do fenôme-no: Thiago de Mello, Jorge Ama-do, Gerardo Mello Mourão, MillôrFernandes, Manoel de Barros,José Louzeiro e César Leal, entreoutros. Após a leitura — e confir-mado o refinamento de SoaresFeitosa, devo acrescer-me ao corodaqueles que fazem justiça ao po-eta com a palavra mais fraterna econcertada, opiniões acertadas deper si e complementares na visãodo seu trabalho, que resumida-mente apontam o essencial: o sur-gimento inesperado de um gran-de poeta, maior na expressão, coma vantagem de não estar poluídopela virtuose, um tipo de recorteestético que tem estragado muitotalento genuíno. A poesia de Soa-res Feitosa, filha de lenda, brotamesmo das obras recônditas doser, ali onde se irmano real e oimaginário, e tanto pode ser bru-tal como também angelical. Maslembro aos incautos que os anjos,apesar de certo senso que se quercomum, não são apenas seres éti-cos, arautos da boa nova; que bemfiltrado e decantado o mito, Sata-nás tem lugar privilegiado na for-mação do burgo celeste e é umconselheiro privilegiado do Se-nhor da Criação, lógica fundada nanecessidade da desordem, sem oque, fraterno leitor, não haveriaordem alguma. Sem desvios en-ganadores, anuncio a lavra de So-ares Feitosa como “cosa nostra”,concebida com gratidão humana,

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poesia da qual não se deve permi-tira desgarragem e o desaparte.Abeberar-se ali, é o que digo! Aleitura encantatória de Rio Maca-cos reportou-me ao neo-barroquis-mo de Dantas Mota in “Elegias doPaís das Gerais”, pela evocaçãodas águas de modo jocoso e irado(Rio?!/ quem chamaria aquilo derio?/ era apenas uma grato risí-vel), porque águas escassas, inse-ridas em áspera paisagem, fiod’água mirrado, ordenado pelasvertentes, cantado com um mistoparadoxal de raiva e de orgulho. Arealeza dos nadas, como aquelaoutra louvação das pedras presen-te em João Cabral ou aquele olharsujo da escória, de Manoel de Bar-ros, operação alquímica grandio-sa, que é mesmo o principal obje-to da poesia, transmudar os nadasem tudos, resgatar o caos, refun-di-lo para a beleza, ofício divino.Esse parentesco com Dantas Motatambém revelou-se pelo lado re-corrente às escrituras judicristãs,com não parcas referências, mo-tes, intertextualidade bíblica, cer-ta orientalização da geografia nor-destina, de que é exemplo o belís-simo “Siarah”, magnifica transpo-sição substantiva. São observa-ções casuais, porém, que não têma presunção de atrelar esses can-tos vigorosos a esse poeta ou àque-la modalidade estética. Só queroregistrar que o regional e o telú-rico na poesia de Soares Feitosacatapultam-se para o universo,mesmo que não mesclassem emsua poesia elementos da tradiçãogreco-latina. O substrato último éa voz do vate-propheta às avessas,que longe de anunciar o futuro,conta o que ocorreu e o que ocor-

re num mundo paralelo, aparen-temente carecedor de interesse,mas pleno de assombro. No poe-ma-título, Psi, a Penúltima, com-parece a queixa da raposa-símbo-lo da tragédia secular dos excluí-dos, pelagra, faminta, estigmati-zada, marginalizada por detrimen-to dos bichos da mídia, segundo ocódice do primeiro mundo. EmAntífona, a saga do sol, vivo pai dosvivos, personificado e redimido dafúria por um olhar lírico que sediria gorguiano. Sol pujante comoaquele retratado por Maiakóvskiem a “Extraordinária aventura vi-vida por Vladimir Maiakóvski, noverão da Datcha, traduzido porAugusto de Campos. Assim o poe-ta celebra o sol: “volúpia de luz,volúpia de cor, / cavalgava o hori-zonte e desabava /queda bruscapor detrás da serrania; /era qua-se todas as tardes,/ lá,/que rara-mente chovia”. Ali, aonde compa-rece um dos rios da infância dopoeta, o Poti. “Rio velho, cobarde ementiroso”, que para resultarmais memorável só faltou o poetadizer que jogava cartas e tomavacachaça. Sempre o retrato daságuas em fuga. Enfim Psi, a Pe-núltima é poesia que se inscreveno chão geral do universo, no ter-reiro do planeta, com suas enti-dades mágicas, lendas, costumes,com a convocação dos gigantes, osdeuses da fala, os bardos cantado-res, verdadeira teogonia. Poesia ede resgate e aprendizado, pródigosachados no meio daquilo que sejulgava inexoravelmente perdido.

WILSON MARTINS: É Soares Fei-tosa ("Psi, a penúltima". Salvador:Papel em Branco, 1997), poeta da

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terra nordestina, não pelo pitores-co exótico, mas como integraçãopessoal e orgânica, como parte fí-sica e palpável do Brasil, como vi-são ao mesmo tempo épica e líri-ca do rincão natal. Pertence à fa-mília dos nossos poetas da terra,os Joaquim Cardozo, Ascenço Fer-reira, Raul Bopp, Juvenal Galeno,Thiago de Mello, mas, é precisodizê-lo, com amplidão muito mai-or no que se poderia chamar a in-corporação cósmica.Segundo a frase célebre, é umhomem para quem o mundo exte-rior existe, não como paisagem ouquadros de uma exposição, mascomo bloco existencial de matase rios, pássaros silvestres e ani-mais domésticos, homens e mu-lheres em estreita convivênciacom cavalos e cabras, burrinhosde carga, a família e o meio, ce-nas da infância, as estações doano, humanidade e ecúmeno deque faz parte, expressa, aqui e ali,com fervor patriótico. E, dominan-do tudo, o fator catalítico do tempoque passa e do tempo que dura.Para ele, a Pátria são os caminhosque pisa, as armadilhas de caçarpassarinhos, as cobras que raste-jam, as abelhas que produzemcera e mel, a paisagem esturri-cada, as montanhas e as árvoresque conhece pelo nome, as frutase os campos, o sofrimento do ho-mem, a tragédia do clima e o mi-lagre da chuva, a resistência re-signada com que aquele mundoenfrenta a adversidade, a recom-pensa das manhãs e a impiedadedo sol, o sentimento de abandonoem que a região é mantida. Nãosão temas "literários" e o ufanis-mo de Soares Feitosa nada tem de

simplório: é, antes, com amargu-ra e revolta que encara a realida-de: "Auriverde pendão de minhaterra, que a brisa do Brasil beija ebalança... famintos do meu Brasilprecisam sonhar com um pão. Nãohá país como este, em se plantan-do, ó Caminha, sim, plantaram,plantaram nas algibeiras onanis-tas do metal. Em se plantando, seuCaminha, o que dá, não dá, o quedeu, não deu, nunca deu... o quedeu, o gato comeu, o que deu, orato roeu".Os motes gerais dessa poesia, nassuas próprias palavras, são a in-fância, o chão, os matos, as pedras,os céus, as águas, o sertão, os bi-chos grandes e miúdos, oficinas etralhas, cheiros e sons! mofumbos& alecrins, perfumes — tudo ex-presso no idioma dos grandes po-etas universais, ecos da poesiaprimeva, Homero e Saint-JohnPerse, Walt Whitman e VictorHugo, porque Soares Feitosa nãoé um "ingênuo" do romanceiropopular, não é o falso sertanejo dacidade nem o verdadeiro sertane-jo iletrado, mas o sertanejo autên-tico hipostasiado em poeta culto.É a "matéria do Nordeste" que for-ma a substância dos seus cantosépicos e dos seus transportes líri-cos, como na extraordinária "An-tífona", uma das mais belas odesjamais escritas em língua portu-guesa. É poema a ser lido por in-teiro e em voz alta: "Venho de ou-tras terras, meu capitão, não souda beira do mar, eu venhodesd’onde uma bola de fogo, volú-pia de luz, volúpia de cor, cavalga-va o horizonte e desabava, quedabrusca por detrás da serrania (...)".As suas raízes humanas e poéti-

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cas, como as de Homero (literal-mente evocado), estão nos canta-dores das gestas populares: "Acu-dam-me os cantadores: Ignácio daCatingueira, negro e escravo; Ro-mano da Mãe d’Água; vocês tam-bém fundaram o galope, a canto-ria; Pinto do Monteiro, Otacílio, dosBatistas, a batistada toda, venhamtodos (...).Leiam o saboroso "Rio Macacos":"Rio?! Quem chamaria aquilo derio? Era apenas uma grota risível(...)", explicando nas notas didáti-cas que acompanham todos os po-emas: "Rio Macacos, nem sei seainda existe, mas lhes garantoque água ele não tem!".Soares Feitosa traduz o folclore emversos literários, escritos numidioma culto, sem concessões to-las ao populismo de carregação,assim escapando dos lugares-co-muns previsíveis e estafados: "Osol, ainda ferro de brasa, chiandocomo um ferro de ferrar boi, sol-tando chispas, para bater a poei-ra, as fagulhas do dia, abanar-seum pouquinho da tarde quente, seesfregava nos penachos da pal-meira mais alta (...)."A mais a seca, maldição divina,seguida pelo milagre da água: "Aságuas em minha terra são efême-ras,/ parideiras, fêmeas, efême-ras eram as águas...". Com a pri-meira chuva, explodem as semen-tes mais apressadas: "Noutra chu-va,/ outra leva nasceu (...) e maisoutra, sempre mais uma leva/ de

sementes nasciam e sucumbiam/um raspar das enxadas (...)". [Pa-nos Passados] e [Dormências].Anexado ao volume, Soares Feito-sa oferece ao leitor o contacto fí-sico com o Nordeste e o Brasil an-tigo, sob a forma de um envelopecom sementes de imburana-de-cheiro, por ele mesmo torradas emoídas: é o perfume da terra queperpassa pela obra, não só em suamaterialidade física, mas tambémcomo representação por assim di-zer olfativa da poesia da terra.Trata-se, então, de um poeta ser-tanejo, limitado ao regionalismotípico das letras? Longe disso: é umpoeta lírico de harmônicas uni-versais, inclusive as sugestõesmísticas; é também um saudosis-ta, na medida em que são por na-tureza saudosistas os temas his-tóricos e as evocações sentimen-tais, inspiração para belos poe-mas, como, por exemplo, "Perdidose achados".Não podemos tampouco ignorar-lhe o lado ultramoderno, criador do"Jornal de Poesia" pela Internet,em 1996, por não haver encontra-do nenhum texto de poesia em lín-gua portuguesa pelas ondas eté-reas da eletrônica. E agora lá es-tão eles, os poetas, consagrados eprincipiantes, o que já é, em simesmo, uma forma de poesia: apoesia do nosso tempo. [O Globo,Prosa & Verso, página inteira,26.4.1997]

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241. Francisco: —?SF: Este outro monumento, ACachoeira de Paulo Afonso! Amiscigenação brasileira está lá,quase cem anos de antecedênciasobre Gilberto Freyre: Lucas,moreno e altivo; Luísa e seusatributos em cravo e canela: Mimosa

flor das escravas!/ O bando das rolas

bravas/ Voou com medo de ti!...Castro Alves retrata, neste poemaBrasil-essência, todo a nossabastardia, a morenidade deCotegipe, Floriano Peixoto eMachado. Lucas, filho da escravacom o senhor, assassinada pelasinhá. Os meus olhos louros e ocabelo pixaim, este tão Brasilbrasileiro de pai desconhecido. Estapaisagem que ninguém lhedescreve igual: Os poldros soltos —

retesando as curvas, —/ Ao galope

agitando as longas crinas. E aescravidão, a mancha ao infinito,drama atual — favelas — mais forteem Cachoeira, porque maissublimada, do que no Navio. E aironia, a canoa à beira do precipício,mas é assim que ele diz: Semelha

um tronco gigante/ De palmeira, que

s’escoa.../ No dorso da correnteza,/

Como boia esta canoa! Bóia? Ele adespeja lá embaixo, veja: De tua

vaga os turbilhões barrentos. /A

canoa rolava!.../Abriu-se a um tempo

o precipício!.../e o céu!... Por istomesmo é que se fala tão mal deCastro Alves. Ele abusou. O Navioteria sido suficiente. A Cachoeiraexcede a todas as medidas dagenialidade. Em qualquer tempo,em qualquer lugar do mundo.

242. Francisco: Ufa! Lido o poemaverdadeiro, deve-se ligar para oautor a cumprimentá-lo?SF: Lido o poema verdadeiro, severdadeiro, não há outra coisa afazer: fechar o livro. Ir até ageladeira. Beber nada, aliás, umgole d´água duma garrafinha comum pouco limão ou um fiapo deboldo; disse boldo; nada de bolo, queestou diabético. Sem fazer barulho.Se perguntarem, diga: Nada!Mesmo porque nada saberia dizernem explicar. Iniciar outra tarefa.O livro? Quem sabe dele? Melhormaturar um pouco. Deixar ali,fechado. Ler e reler, um tempo. E,evidente, sair por aí falando muitode bem do autor.

243. Francisco: E o haicai?SF. Claro que é válido! Desde queaquela micro-paisagem seja a

Mais terceiro ceu

FRANCISCO, PERSONAGEM DO POEMA PSI,A PENÚLTIMA, SAI DE DENTRO DO POEMA

E CONVERSA COM UM CERTO SF QUE TAM-BÉM É FRANCISCO