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ARTIGOS 355 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(3): 355-369, dezembro, 2004 Dislexia ou processo de aquisição da escrita? Giselle de Athayde Massi * Resumo Investigamos, nesta pesquisa, a indefinição que acompanha a noção de dislexia vinculada a uma perspectiva de distúrbio de aprendizagem ou dificuldade de aquisição da escrita. Discutimos a falta de evidência capaz de indicar a causa desse suposto distúrbio e, também, a inconsistência descritiva do que tem sido considerado como sintoma disléxico. Entendendo a linguagem como atividade dialógica, como trabalho constitutivo, histórico e social, no contraponto de uma noção patologizadora, mostramos que tais “sintomas” desvendam estratégias de reflexão lançadas pelo aprendiz sobre a escrita em uso e construção. Denunciamos que, por se fixarem em aspectos gráficos do objeto escrito, ignorando os textos elaborados pelos aprendizes, as diversas tarefas avaliativas propostas em manuais envolvidos com o diagnóstico do que tem sido considerado dislexia não cumprem os seus objetivos, ou seja, não avaliam a escrita. Para superar essas tarefas, analisamos, em concordância com o paradigma indiciário, dois casos de crianças rotuladas como portadoras de dificuldades de aprendizagem da escrita. A partir dessa análise, a qual se embasa na compreensão da singularidade do trajeto trilhado por esses sujeitos no processo de aprendizagem da linguagem, indicamos que tais crianças, ao contrário dos rótulos que carregam, produzem textos com progressão referencial e progressão tópica, lançando mão de diversas estratégias textuais, bem como de diferentes hipóteses sobre aspectos gráficos e convencionais da escrita, sinais da própria construção desse objeto de conhecimento. Palavras-chave: escrita; lingüística textual; fonoaudiologia; dislexia. Abstract In the present study we examined the uncertainty that accompanies the definition of dyslexia associated with a notion of learning disability or difficulties in acquiring written language. We discuss the lack of evidence on the causes of this so-called disorder as well as the descriptive inconsistency of the “dyslexic symptoms”. Understanding language as a dialogic activity, as a historical and social constitutive task in contraposition to reducing it to a pathology, we have shown that such “symptoms” reveal the strategies used by the leaner for using and constructing a written text. We noted that when the focus is directed towards the graphical aspects of the written text and its content is ignored, the evaluative strategies involved in diagnosis are not meeting their objective to evaluate writing. We have analyzed, using the indices paradigm two cases of children who have been identified as having difficulties in learning to write. Our analysis is based on the comprehension of the singularity of the subjects’ adopted process for acquiring language, and observed that despite the label that they were given, they are able to produce texts that have a referential progression and story development. We can hypothesize that the different graphical and conventional aspects of the text are signs of the construction of this object of knowledge. Key-words: writing; textual linguistics; speech pathology; dyslexia. * Professora da graduação em fonoaudiologia e do Mestrado em Distúrbios da Comunicação da UTP.

de aquisição da escrita? Dislexia ou processo ARTIGOSe-learning.uniararas.br/.../2013/lp/unidade3/anexo_1_modulo2.pdf · escrita: dificuldade de aprendizagem, dificuldade de leitura

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355Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(3): 355-369, dezembro, 2004

Dislexia ou processode aquisição da escrita?

Giselle de Athayde Massi*

Resumo

Investigamos, nesta pesquisa, a indefinição que acompanha a noção de dislexia vinculada a umaperspectiva de distúrbio de aprendizagem ou dificuldade de aquisição da escrita. Discutimos a falta deevidência capaz de indicar a causa desse suposto distúrbio e, também, a inconsistência descritiva do quetem sido considerado como sintoma disléxico. Entendendo a linguagem como atividade dialógica, comotrabalho constitutivo, histórico e social, no contraponto de uma noção patologizadora, mostramos quetais “sintomas” desvendam estratégias de reflexão lançadas pelo aprendiz sobre a escrita em uso econstrução. Denunciamos que, por se fixarem em aspectos gráficos do objeto escrito, ignorando ostextos elaborados pelos aprendizes, as diversas tarefas avaliativas propostas em manuais envolvidoscom o diagnóstico do que tem sido considerado dislexia não cumprem os seus objetivos, ou seja, nãoavaliam a escrita. Para superar essas tarefas, analisamos, em concordância com o paradigma indiciário,dois casos de crianças rotuladas como portadoras de dificuldades de aprendizagem da escrita. A partirdessa análise, a qual se embasa na compreensão da singularidade do trajeto trilhado por esses sujeitosno processo de aprendizagem da linguagem, indicamos que tais crianças, ao contrário dos rótulos quecarregam, produzem textos com progressão referencial e progressão tópica, lançando mão de diversasestratégias textuais, bem como de diferentes hipóteses sobre aspectos gráficos e convencionais da escrita,sinais da própria construção desse objeto de conhecimento.

Palavras-chave: escrita; lingüística textual; fonoaudiologia; dislexia.

Abstract

In the present study we examined the uncertainty that accompanies the definition of dyslexia associatedwith a notion of learning disability or difficulties in acquiring written language. We discuss the lack ofevidence on the causes of this so-called disorder as well as the descriptive inconsistency of the “dyslexicsymptoms”. Understanding language as a dialogic activity, as a historical and social constitutive task incontraposition to reducing it to a pathology, we have shown that such “symptoms” reveal the strategiesused by the leaner for using and constructing a written text. We noted that when the focus is directedtowards the graphical aspects of the written text and its content is ignored, the evaluative strategiesinvolved in diagnosis are not meeting their objective to evaluate writing. We have analyzed, using theindices paradigm two cases of children who have been identified as having difficulties in learning towrite. Our analysis is based on the comprehension of the singularity of the subjects’ adopted process foracquiring language, and observed that despite the label that they were given, they are able to producetexts that have a referential progression and story development. We can hypothesize that the differentgraphical and conventional aspects of the text are signs of the construction of this object of knowledge.

Key-words: writing; textual linguistics; speech pathology; dyslexia.

* Professora da graduação em fonoaudiologia e do Mestrado em Distúrbios da Comunicação da UTP.

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Giselle de Athayde Massi

Resumen

Investigamos, en esta pesquisa, la indefinición que acompaña la nocíón de dislexia vinculada a unaperspectiva de disturbio de aprendizaje o dificultad de adquisición de la escritura. Discutimos la falta deevidencia capaz de indicar la causa de ese supuesto disturbio y, también, la inconsistencia descriptiva delo que se ha considerado como síntoma disléxico. Entendiendo el lenguaje como actividad de conversación,como trabajo constructivo, historico y social, en contraposición a una noción de problema patológico,mostramos que tales “síntomas” desvendan estrategias de reflexión lanzadas por el aprendiz sobre laescritura en uso y construcción. Denunciamos que, por fijarse en aspectos gráficos del objeto escrito,ignorando los textos elaborados por los aprendizes, las diversas tareas calificativas propuestas en manualesenvolvidos con el diagnóstico de lo que se ha considerado dislexia no cumplen sus objetivos, o sea, noconceptuan la escritura. Para superar esas tareas, analizamos, en concordancia con el paradigmaindiciario, dos casos de niños rotulados como portadores de dificultad de aprendizaje de escritura.Desde esa análisis, que se basa en la comprensión de la singularidad del trayécto trillado por los sujetosen el proceso de aprendizaje del lenguaje, indicamos que tales niños, a la inversa de los apodos quecargan, producen textos con progresión referencial y progresión tópica, utilizando diversas estrategiastextuales, bien como diferentes hipótesis sobre aspectos gráficos y convencionales de la escritura, señalesde la construcción de ese objeto de conocimiento.

Palabras clave: escrita; lingüística textual; fonoaudiologia; dislexia.

Introdução

Este trabalho nasceu de questionamentos rela-cionados a minha prática clínica em fonoaudiolo-gia, a partir da qual eu recebia encaminhamentosde crianças que, por não seguirem o padrão pro-posto pela escola, eram tomadas pela própria esco-la e por outros profissionais – médicos, psicólo-gos, psicopedagogos – como portadoras de um dis-túrbio ou dificuldade de aprendizagem na escrita.Contudo, pela formação em lingüística que me di-recionava, era possível perceber que os indíciosdessa dita dificuldade, relacionados, na maioria dasvezes, a trocas, omissões, adições de letras ou síla-bas, escrita pautada na transcrição fonética, seg-mentação inadequada de vocábulos, quando inves-tigados lingüisticamente, não apontavam para umdistúrbio, mas desvendavam o próprio processo deaquisição da linguagem escrita.

Partindo da análise lingüística desse processo,pretendo mostrar que a dislexia não se sustentacomo um distúrbio vinculado à aquisição da escri-ta, mas, antes disso, evidencia a concretização daaprendizagem dessa modalidade de linguagem.Para tanto, pretendo:

1. Analisar criticamente a (in)definição que en-volve o que vem sendo concebido como dislexia,procurando evidenciar a fragilidade das hipótesesexplicativas apresentadas pela literatura que trata

do assunto e, também, o caráter equivocado dosditos sintomas disléxicos, apontando para o fatode esses sintomas revelarem atitudes de reflexão eanálise lançadas pelo aprendiz sobre a escrita emuso e construção;

2. Analisar tarefas avaliativas citadas em ma-nuais envolvidos com essa temática, mostrando quetais tarefas, afastadas das ações lingüísticas dos su-jeitos, não cumprem o que se propõem, uma vezque não avaliam a linguagem;

3. Investigar as chamadas manifestações dis-léxicas que aparecem no interior de seqüências tex-tuais produzidas por sujeitos diagnosticados ouapontados como portadores dessa patologia, indi-cando que essas manifestações acompanham o pro-cesso de aquisição da escrita, indícios singularesda relação estabelecida entre o aprendiz e a escrita.

Tendo em vista esses objetivos, investiguei aliteratura que trata do que tem sido chamado de dis-lexia, buscando recuperar a arbitrariedade termino-lógica, bem como o equívoco que domina as expli-cações causais, as descrições sintomatológicas e asvias avaliativas relacionadas a essa dita patologia.Além disso, analisei dois casos de crianças diagnos-ticadas ou apontadas como portadoras de distúrbiosna aprendizagem da escrita. Essa análise, lingüisti-camente orientada, pautou-se em dois aspectos: asquestões gráficas e convencionais da escrita e as pro-duções textuais dos sujeitos da pesquisa.

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Discussão e panorama teórico

Quanto ao aspecto terminológico, convém res-saltar que diversas nomenclaturas têm sido utiliza-das para se referirem, de forma indiscriminada, afatos relacionados à aprendizagem ou ao uso daescrita: dificuldade de aprendizagem, dificuldadede leitura e escrita, dislexia de evolução, dislexiade desenvolvimento, dislexia específica de evolu-ção ou simplesmente dislexia, são alguns exem-plos. De acordo com Moysés e Collares (1992),para exprimirem uma posição menos violentadiante do aprendiz, os termos dislexia ou distúrbioespecífico de aprendizagem da escrita têm sidosubstituídos pelas expressões dificuldade de apren-dizagem ou dificuldade de leitura e escrita. Porém,como bem afirmam essas autoras, independente-mente da nomenclatura usada, o problema conti-nua sendo localizado no aprendiz, obscurecendotoda uma série de aspectos que pode interferir, demaneira contraproducente, no processo de ensino-aprendizagem.

Com relação às explicações causais, a pesqui-sa bibliográfica me levou a perceber que a noçãode dislexia, vinculada à aquisição da escrita, foi,longe do contexto escolar, desenvolvida pela áreamédica, a qual inicialmente se pautou em estudosafasiológicos. A partir disso, uma patologia cha-mada dislexia adquirida, completamente distantedo âmbito deste trabalho, relacionada a sujeitosadultos vítimas de lesões cerebrais, parece ter ser-vido de apoio para determinar uma visão equivo-cada que toma fatos lingüísticos associados ao pro-cesso de aprendizagem e uso da escrita como si-nais de uma doença. Em outras palavras, pautadaem um raciocínio clínico tradicional, o qual partedo princípio de que se X causa Y, Y só pode sercausado por X, a medicina supôs que se uma lesãocerebral, em sujeitos adultos, poderia ocasionardificuldades para ler e escrever, então, dificulda-des apresentadas por crianças que estão se apro-priando da escrita deveriam ser causadas por da-nos neurológicos.

Nesse sentido, enfatizo a total inconsistênciadas explicações causais que giram em torno do quetem sido tomado como um distúrbio de aprendiza-gem da escrita, desde 1896, quando pela primeiravez um menino foi diagnosticado como disléxico.Essa inconsistência é tanta que, apesar de diversosestudos e hipóteses terem se desenvolvido, atual-mente manuais de classificações médicas e codifi-

cações de doenças, como a CID – Código Interna-cional de Doenças – 10, por exemplo, assumemque entendem a dislexia como um distúrbio semexplicação etiológica capaz de justificá-lo, ou seja,um distúrbio sem causa e que acometeria aprendi-zes no momento em que estariam aprendendo a lere escrever.

Além da inconsistência etiológica, a descriçãosintomatológica apresentada pela literatura, quan-do analisada lingüisticamente, também não se sus-tenta. Nesse ponto, antes de apresentar a investiga-ção dos chamados sintomas disléxicos, convémexpor o quadro teórico que norteia o meu trabalho.Esse quadro me afastou de perspectivas que des-consideram a historicidade da linguagem, o sujeitoe suas ações lingüísticas em situações de uso efeti-vo da escrita e o contexto social das interações ver-bais. Assim, privilegiei em meu panorama teórico:a) a perspectiva sociointeracionista, representada

por Bakhtin (1992a,b) a qual aponta que é pormeio da relação com o outro que o aprendiz,como sujeito e autor de transformações sociais,se subjetiva e se relaciona com a escrita comoum objeto de conhecimento;

b) a concepção de linguagem como atividade cons-titutiva, conforme proposto por Franchi (1992)e assinalada a partir de desdobramentos explici-tados por Geraldi (1995);

c) um conceito de texto que, de acordo com Koch(2003), é tomado como atividade dialógica,como um trabalho de interação entre sujeitos so-ciais, contemporâneos ou não, co-presentes ounão, mas em diálogo constante;

d) estudos desenvolvidos por pesquisadores brasi-leiros – Abaurre (1991, 1992, 1996); Abaurre eSilva (1993); Cagliari (1998); Abaurre, Fiad eMayrink-Sabinson (1997) – que apontam parao fato de que, durante o processo de aprendiza-gem da escrita, o aprendiz constrói, em conjun-to com o outro, estratégias singulares para re-presentar essa modalidade de linguagem;

e) o modelo científico indiciário proposto porGuinzburg (1989), que indica a possibilidade deanalisar essas estratégias singulares como mar-cas subjetivas, pistas particulares das reflexõeselaboradas pelos aprendizes durante o processode apropriação da escrita.

Pautada nesse panorama, analisei os ditos sin-tomas disléxicos apontados pela literatura. Partin-do de autores como Ianhez e Nico (2002) e Cuba

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dos Santos (1987), elenquei fatos que têm sidoconsiderados como manifestações patológicas.Dentre os quais destaco o que a literatura pesqui-sada chama de:– escrita incorreta, com trocas, omissões, junções

e aglutinações de fonemas;– confusão entre letras de formas vizinhas:

como na escrita de moite ao invés de noitede espuerda por esquerda;

– confusão entre letras foneticamente semelhantes:como em tinda por tintapopre por pobregomida por comida;

– omissão de letras e/ou sílabas:com em entrando por encontrandogiado por guiadoe a grafia das consoantes BNDT para representaro nome Benedito;

– adição de letras e/ou sílabas:muimto por muitofiaque por fiqueaprendendendo por aprendendo;

– união de uma ou mais palavras e/ou divisão ina-dequada de vocábulos:Eraumaves um omem por Era uma vez um homema mi versario por aniversário;

A análise desses fatos, a partir do enfoqueteórico destacado anteriormente, permite-me afir-mar que todos os “sintomas” apresentados pelaliteratura nada mais são do que o resultado de ela-borações e reelaborações lançadas pelo aprendizsobre a escrita que está sendo apreendida. Afinal,as omissões, as trocas, as segmentações, as “ina-dequações” que aparecem na escrita de aprendi-zes não são sintomas patológicos, mas, nos ter-mos do paradigma indiciário, evidenciam-se comosinais, pistas, detalhes que revelam atitudes sin-gulares de análises e reflexões sobre a escrita emconstrução. Por isso, as classificações da disle-xia, organizadas em função desses ditos sintomas,devem ser falseadas, uma vez que apontam paraagrupamentos de fatos – hipóteses sobre a escri-ta, “incompletudes”, refacções – próprios do pro-cesso de aquisição da linguagem.

Na trilha dos meus objetivos, procurei mos-trar, também, que as tarefas avaliativas propostasem manuais relacionados a essa temática assentam-se ora em exercícios vinculados aos consideradospré-requisitos para aquisição da escrita, ora em ati-tudes artificiais desenvolvidas em função de uma

perspectiva que entende a linguagem como umcódigo pronto e acabado, independentemente dasatividades dos sujeitos em situações interacionais.

Com relação aos chamados pré-requisitos –reconhecimento de partes do corpo, lateralidade,organização espaço-temporal –, convém comentarque os mesmos, relacionados a uma noção de pron-tidão para alfabetização, repousam em aspectoscompletamente distantes da atividade da escrita emsi. Abaurre (1987), inclusive, chega a afirmar quevárias crianças que apresentam um desempenhosatisfatório nesse dito período preparatório encon-tram dificuldades com a leitura e a escrita propria-mente ditas, exatamente porque faltou a elas umcontato efetivo com a linguagem escrita.

No que se refere aos testes avaliativos, essesenfatizam situações artificiais como:– manipulação de fonemas (o aluno é solicitado a

inverter os fonemas iniciais de duas palavras);– fluência verbal (a criança examinada é solicitada

a dizer o máximo de palavras começadas comuma determinada letra em um período limitadode tempo);

– reprodução de sons que iniciam, que terminam eque estão no meio de palavras proferidas peloexaminador;

– formação de palavras (o aluno é solicitado a for-mar palavras a partir de sons e sílabas produzi-das pelo examinador);

– formação de frases a partir de palavras forneci-das pelo avaliador;

– soletração e repetição de palavras;– leitura e separação de palavras nos seus sons

unitários, em sílabas, em encontros consonantaise em dígrafos;

– leitura de logatomas, objetivando avaliar o reco-nhecimento do sistema fonético-fonológico doaluno avaliado;

– leitura em voz alta de textos simples, para ava-liar habilidades de segmentações das orações;

– extração de conceitos fundamentais de um texto;– identificação e nomeação de letras do alfabeto,

apresentadas em ordem aleatória;– cópia e ditado de letras do alfabeto, de listas de

palavras, de frases e de parágrafos;– escrita de logatomas.

Quanto a essas atividades, ressalto que, por sepautarem em tarefas descontextualizadas e frag-mentadas, por desconsiderarem as ações dos sujei-tos e da própria linguagem, por apresentarem uma

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noção confusa entre a oralidade e a escrita, por ig-norarem o texto como manifestação da língua, taistestes não avaliam a escrita. Pois não é possívelavaliar a atividade da escrita “fora” da linguageme distante do sujeito que a manipula.

Com a intenção de superar avaliações que ob-jetivam categorizar ou classificar “erros” ortográ-ficos e gramaticais, encaixando-os em quadros di-tos patológicos associados a supostos diagnósticosde dislexias, analisei casos de dois sujeitos que fo-ram apontados ou diagnosticados como portado-res de dificuldades relacionadas à linguagem es-crita.

Nesta investigação, pautada em um procedi-mento abdutivo, nos termos de Peirce (1995), nãoinvestiguei dados da escrita em função de regrasdiagnósticas preexistentes, mas em função de umapercepção intuitiva capaz de me encaminhar porfatos, indícios e detalhes relevantes na recomposi-ção de casos e de textos analisados. Procurei con-siderar a situação em que as seqüências textuaisforam construídas, as razões que as fomentaram,as intenções do produtor do texto, o papel desem-penhado pelo outro. Também contemplei, depen-dendo de cada caso estudado, as reflexões e açõeslingüísticas dos sujeitos da pesquisa em diferentesníveis de análise. Quanto aos aspectos gráficos econvencionais, enfoquei a ortografia, a segmenta-ção da escrita, o uso de sinais de pontuação, o usode maiúsculas e minúsculas, bem como o traçadoda escrita. Na dimensão do texto, à luz de estudosda lingüística textual, procurei destacar o papel dasprogressões referencial e tópica no estabelecimen-to da organização e do sentido do texto, além dasconfigurações textuais e da posição assumida pelosujeito como agente da ação da linguagem que seconcretiza no texto.

Apresentação e análise de casos

Antes de apresentar minha análise, cabe dizerque os dois casos de crianças apresentados na pes-quisa estão vinculados ao Núcleo de Trabalho:1

Fonoaudiologia e Linguagem Escrita da Universi-dade Tuiuti do Paraná.2 De um universo de 38crianças atendidas pelo núcleo – até a época emque concluí a coleta de dados –, 35 foram encami-nhadas para atendimento a partir de solicitação di-reta da escola e três já haviam sido submetidas aavaliações e atendimentos direcionados por dife-rentes profissionais: um médico, uma fonoaudió-loga e uma psicóloga. Dentre esses três casos quese diferenciavam do restante, uma vez que tinhamo pré-diagnóstico levantado pela escola confirma-do por tais profissionais, elegi o caso de uma cri-ança que havia recebido confirmação diagnósticado médico. E, para completar o quadro de análise,propus-me investigar, também, o caso de uma me-nina que foi rotulada somente pela escola.

Minha análise abrange, então, o caso de ummenino reconhecido pelas iniciais de seu nome –G.W.G. – e uma menina apresentada pelas suasiniciais M.S. A descrição e a análise desses doiscasos, completamente distantes da noção de dis-túrbio, me levaram a perceber diferentes hipótesesprovisórias lançadas sobre o objeto escrito, bemcomo histórias diferenciadas de relação com esseobjeto.

O caso G.W.G.

G.W.G. é um menino que, aos oito anos de ida-de, quando cursava a 2a série do ensino fundamen-tal, foi apontado pela escola como um estudanteque apresentava problemas de atenção e dificulda-de com a escrita, apontamento que foi ratificadopor um neuropediatra que lhe receitou o uso de Tro-fanil, duas vezes por dia. Ao iniciar as atividadesde escrita no Núcleo vinculado à UniversidadeTuiuti, G.W.G. estava com doze anos de idade e, naépoca, cursava a 5a série pela segunda vez.

Ele afirmou para a fonoterapeuta que não sabiaescrever e que tinha medo da atividade escrita, poisquando tentava escrevia errado, trocando as letrasou esquecendo de grafá-las. A fonoterapeuta procu-rou encaminhar eventos com a escrita, nos quais ele

1 Convém esclarecer que esse Núcleo de Trabalho é composto por alunos e professores do curso de graduação em Fonoaudiologiae do mestrado em Distúrbios da Comunicação da Universidade Tuiuti do Paraná. Além de pesquisas, produções científicas eprojetos de extensão universitária, tal núcleo tem, a partir de uma concepção interacional e discursiva de linguagem, atendidocrianças consideradas “problemas”, geralmente encaminhadas pelas escolas em que estudam.2 Vale ressaltar que o meu interesse, nessa pesquisa, não é detalhar o acompanhamento fonoaudiológico desenvolvido no referidonúcleo. Em concordância com os meus objetivos, pretendo apenas indicar que os dados da escrita dos sujeitos deste estudo sãoabsolutamente previsíveis no processo de aquisição da linguagem e, por isso, não denotam sintomas patológicos.

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Após ter lido um bilhete produzido pela tera-peuta, no qual ela narrava eventos de experiênciapessoal, G.W.G. foi solicitado a relatar-lhe por meioda escrita fatos que havia vivenciado no dia ante-rior, produzindo a seqüência textual apresentadaacima. Desse modo, tal texto foi produzido parauma leitora bem definida – a terapeuta – e configu-ra-se como um relato de experiência pessoal rela-cionado às atividades realizadas por G.W.G. no Diadas Mães. Ele inicia seu texto usando de maneiracontextualizada os dêiticos “ontem” e “eu” que,construídos de acordo com a situação enunciativa,dão conta de cumprir a solicitação feita pela tera-peuta esclarecendo a pessoa envolvida no relato eo tempo em que se deu o evento relatado. Dandocontinuidade ao seu texto, G.W.G. faz construçõesverbais assinaladas no pretérito perfeito que, con-forme Perroni (1992) e Koch (1996), são própriosdo mundo narrado. Ele, também, garante a seqüen-ciação de sua produção lançando mão dos recursoslingüísticos: “depois”, várias vezes, e “mais tar-de”. Além disso, G.W.G. esclarece, fazendo uso depossessivos, que outras pessoas participaram, comele, das atividades vivenciadas no dia anterior –ele escreve “minha mãe”, “minha irmã”, “minha

vizinha” – e evidencia explicitamente alguns doslocais onde vivenciou as atividades – “em casa”,“no mercado Carrefour”, deixando outros não es-clarecidos. Ao afirmar, por exemplo, que almoçoufora, ele não explicita se esse almoço foi em umrestaurante ou na casa de alguém.

Ao relatar “fomos ao mercado...”, ele tambémnão evidencia quem o acompanhou: se a sua vizi-nha ou sua mãe, ou a sua irmã, ou, ainda, se todaselas juntas. De qualquer maneira, o texto produzi-do por G.W.G. não é incompreensível. Longe dis-so, é um texto que mantém continuidade tópica, namedida em que centra o discurso na dimensão doassunto em pauta – um relato sobre o dia anterior –fazendo uso de vários recursos textuais capazes delhe conferir tal continuidade.

Inegavelmente, esse menino sabe usar a escritapara construir seus textos, e, nesse caso, queremosapontar para a relevância do papel desempenhadopelo outro no processo de aquisição da linguagem.É exatamente esse outro que, participando da cons-trução da escrita e da constituição conjunta da signi-ficação, pode indicar a G.W.G. a necessidade de eleesclarecer, nas suas produções, alguns pontos obs-curos facilitando o trabalho dos leitores.

pôde manipular essa modalidade de linguagem apartir de atividades dialógicas. G.W.G. leu textosnarrativos, escreveu regras de jogos para que outras

crianças pudessem ler, registrou um relato de expe-riência pessoal, criou textos publicitários.

Analiso, na seqüência, duas de suas produções:

TEXTO 1

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Ao invés de procurarem falhas na escrita dacriança e fecharem diagnósticos repletos de cono-tações negativas, profissionais envolvidos com aaprendizagem da escrita devem considerar, confor-me apontado pelo panorama teórico do trabalho,que a internalização de um saber depende de umprocesso ativo que emerge de dinâmicas interati-vas estabelecidas entre um aprendiz e um outro maisexperiente. Partindo desse entendimento, ressaltoa relevância de um trabalho com G.W.G. na produ-ção de seus textos. Um trabalho sobre seu relato,por exemplo, abriria várias possibilidades de refle-xão acerca dos apontamentos que faz:

a) Quando ele afirma “ontem eu dei um pre-sente para minha mãe”: caberiam perguntas como:por que comemoramos o Dia das Mães? Por que,nesse dia, lhe damos um presente?

b) Quando ele escreve “mais tarde fomosalmoçar fora”: seria produtivo questionar: em quelugar foram almoçar? Qual o tipo de comida quemais apreciam?

Essas perguntas, dentre inúmeras outras quepoderiam ser elaboradas, conduziriam os interlo-

cutores – o produtor do texto e o outro participan-te do processo de produção, o professor, o fonoau-diólogo –, na prática viva da linguagem, à cons-trução de um diálogo, o qual poderia ser usado nareescrita do texto elaborado por G.W.G. Tendo emvista a constituição de uma atividade dialógica,esse outro participante da produção textual assu-miria seu papel na interação verbal viva e real semdesvincular a linguagem de seu encontro com avida. Como bem observa Geraldi (1995, p. 178),“devolver a palavra ao outro implica querer escu-tá-lo”, e a escuta e a leitura não são atitudes passi-vas, mas dependem da interação. A partir dessacontrapalavra, a reconstrução da seqüência tex-tual elaborada por G.W.G. seria guiada por umasérie de reflexões capazes de imprimir-lhe modi-ficações relevantes.

Percebendo o interesse desse menino pela pro-dução de textos publicitários, a terapeuta propôsuma atividade lúdica em que ambos escolheramfiguras representativas de eletroeletrônicos atri-buindo-lhes preços promocionais, conforme apre-sentado em seguida:

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Nesse texto, assim como no anterior, é possí-vel verificar vários gestos de refacção, trocas daletra o por u em monitor, de o por l em portátil,omissões de n em controle e de r em grátis, acrés-cimo de h em lâminas (lamenhas), entre outras “ina-

dequações” gráficas que discutiremos depois. An-tes, convém considerar que, nessa produção, G.W.G.parece operar com um script bastante conhecido,caracterizado por ações publicitárias de lojas de de-partamento e/ou supermercados que buscam ven-

Feito isso, a terapeuta solicitou que G.W.G. elaborasse seqüências textuais, a partir das quais, emfunção de uma situação hipotética, ele passou a anunciar, por meio da escrita, os diversos produtosrepresentados nessa figura:

TEXTO 3

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der produtos a partir de ofertas e planos promocio-nais, indicando preços e vantagens relacionados àcompra dos respectivos produtos.

Uma vez constatado esse script, torna-se pos-sível interpretar os diferentes segmentos do anún-cio elaborado por G.W.G. Além disso, a constru-ção: “barbeador da melhor marca de barbeador:PHILIPS. Duas voltagens 110 e de 220. Com trêslâminas e mais três lâminas grátis...” é elaboradapor G.W.G. a partir de um processo anafórico quenão conta com antecedentes ou subseqüentes ex-plícitos no texto. Nesse caso, as estratégias cogni-tivas dispostas por esse menino estão vinculadas aconhecimentos semânticos armazenados no léxi-co. A introdução dos referentes duas voltagens etrês lâminas está ancorada em vínculos semânti-cos estabelecidos com o item barbeador, ou seja,está inscrita nas relações parte/todo, conhecidascomo relações mereonímeas, de acordo comMarcuschi (2001).

Por isso, nessa seqüência textual, podemosverificar um tipo de anáfora indireta. Para Marcus-chi, “as anáforas indiretas evidenciam essencial-mente três aspectos: primeiro a não-vinculação coma correferencialidade, segundo, a não vinculaçãocom a noção de retomada e, terceiro, a introduçãode referente novo”.

Esse exemplo simples indica uma seqüênciacom uma referenciação implícita, sendo produzi-da na atividade dialógica à medida que G.W.G.mobiliza, nos termos de Koch (2003), um vastoconjunto de conhecimentos: o conhecimento lin-güístico, o conhecimento de mundo, o conheci-mento da situação comunicativa e de suas “re-gras”, o conhecimento tipológico de produçõestextuais e, também, o conhecimento de outros tex-tos que permeiam a nossa cultura, envolvendo aintertextualidade.

Além disso, no interior de construções tex-tuais, elaboradas e consideradas a partir do uso efe-tivo da linguagem, a investigação de aspectos grá-ficos e convencionais da escrita aponta os “erros”ortográficos e refacções como atitudes previstas –hipóteses lançadas sobre tal material lingüístico –no processo de aquisição desse objeto de conheci-mento. Chama a atenção o fato de esse menino terafirmado que não sabia escrever. Sua afirmação,provavelmente vinculada à noção da escola e con-firmada pela conduta médica, denuncia a imagemnegativa que ele estava lançando sobre si mesmo esobre a escrita. G.W.G. já havia incorporado o ró-

tulo de portador de uma dificuldade ou distúrbiode aprendizagem em função de apresentar trocas,adições e omissões de letras.

Se essa investigação estivesse pautada em ma-nuais que buscam classificar a dita dislexia comoum distúrbio de aprendizagem da escrita, tais ina-dequações ortográficas apresentadas na escritadesse menino seriam encaixadas em quadrosdiagnósticos que corroboram a noção de distúr-bio, desconsiderando as reflexões e as atividadesque G.W.G., de forma única e singular, lança so-bre o objeto escrito.

Em direção contrária, tomando a linguagem,nos termos de Franchi (1992), como atividade cons-titutiva de recursos expressivos próprios de umalíngua natural, entendo os “erros” gráficos apre-sentados por G.W.G. como resultantes de seu pró-prio trabalho de manipulação da escrita.

Sete dias depois da elaboração do último textoapresentado, a mãe de G.W.G. comunicou à fono-terapeuta que, por ter conseguido vaga em um cen-tro psicopedagógico próximo a sua casa e recomen-dado pelo neuropediatra, G.W.G. interromperia otrabalho que estava sendo realizado. Por isso, nãotive mais contato com esse caso. De qualquer for-ma, enfatizo que os dados da escrita de G.W.G apon-tam para o fato de ele estar em pleno processo deconstrução, manipulando a escrita como um obje-to de conhecimento.

De um ponto de vista textual, é possível afir-mar que esse menino dispôs de diferentes estraté-gias na produção de seus textos. Ele se valeu deatividades de referenciação; fez uso de recorrênciade termos garantindo um efeito de intensificaçãoaos seus textos, lançou mão de operadores tempo-rais e de outros articuladores discursivos, dandoprogressão seqüencial às suas produções. Assim,como produtor/planejador, G.W.G., em função deatividades dialógicas, organizou seus textos orien-tando o seu interlocutor, por meio de marcas tex-tuais, viabilizando a construção de um(ns) sentido(s).

De um ponto de vista gráfico, a investigaçãodos textos apresentados mostra que G.W.G. se utili-za de letra cursiva, preocupando-se com o uso demaiúsculas e minúsculas, com o uso de sinais depontuação, e, conforme já apontado, todos os “er-ros” e refacções apresentados por ele são lingüisti-camente justificados e tomados, nos termos deGuinzburg (1989), como indícios, pistas, sinais daconcretização da aquisição da escrita mediante umtrajeto único e particular percorrido por esse menino.

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Analisando, por um lado, as possibilidades queG.W.G. mostrou para a produção de textos e, poroutro, as suas “inadequações” ortográficas comohipóteses que fazem parte do processo de constru-ção da escrita, discordo da visão da escola e do mé-dico que aponta esse menino como portador de umdistúrbio relacionado à linguagem escrita. Em posi-ção contrária, distanciando-me de uma noção en-volvida com a medida padronizada do reconheci-mento e reprodução de sílabas, palavras e frases iso-ladas de um contexto, antes de tomar dados da es-crita de G.W.G. como sintomas de um distúrbio, en-tendo tais dados como indícios da relação singularque esse menino está estabelecendo com a escrita.

Para finalizar a análise desse caso, convémcomentar ainda sobre os efeitos de práticas discur-sivas, que, pautadas na noção de “erro” como ma-nifestação patológica, agem sobre o aprendiz, pro-duzindo nele a sistematização de um distúrbio erevelando interpretações equivocadas que desinte-gram a relação sujeito/linguagem. Nesse sentido,aponto para a necessidade de ser considerado quea criança, o jovem ou o adulto que estão se apro-priando da escrita não são meros organismos va-zios. Antes disso, eles são afetados pelos sentidosveiculados em diferentes espaços sociais – na es-cola, na clínica médica, no posto de saúde –, osquais avaliam suas produções escritas e significamsuas supostas falhas como dificuldades, distúrbi-os, dislexias.

Partindo de uma visão biologizante, esses as-paços sociais idealizam o sujeito-aprendiz e o abs-traem dos efeitos de sentido veiculados pela lin-guagem. Nessa direção, fatos da escrita que nãocoincidem com escalas normativas são intrepreta-dos como déficits que podem indicar problemasinerentes ao indivíduo, autorizando que o processode escolarização seja analisado por meio de crité-rios perpassados pelo pensamento naturalista. Cri-térios esses que obscurecem a singularidade huma-na e sua profunda relação com o coletivo.

Nos termos de Bahktin (1992a, p. 282), “a lín-gua penetra na vida através dos enunciados con-cretos que a realizam, e é também através dos enun-ciados concretos que a vida penetra na língua”. Porisso, pelo seu caráter intersubjetivo, o enunciadoverbal não se limita ao indivíduo que o expressa,mas pertence também ao seu grupo social. Essecaráter intersubjetivo do enunciado me leva a re-fletir sobre o medo e o bloqueio que G.W.G., diag-nosticado como portador de um distúrbio relacio-

nado à língua escrita, apresenta no momento de pro-duzir seus textos. Assim, hesita diante da escrita,escreve textos curtos, e busca, o máximo que pode,manter-se afastado dessa atividade, afirmando quenão sabe escrever, que tem medo, que escreve er-rado.

Porém, ao invés de seguir os moldes de umaproposta que abstrai o indivíduo da relação queestabelece com a palavra do outro e, por aí, justifi-car essa situação em função de questões inerentesao sujeito, tomo como unidade de análise, confor-me proposta anunciada por Bakhtin, o vínculo in-divíduo-sociedade em uma dimensão histórica eentendo que o medo e o bloqueio apresentado pelosujeito tomado como portador de uma dificuldade/distúrbio denunciam, de maneira intersubjetiva, osvalores de seu grupo social. Afinal, o discurso emtorno do medo é marcado pelas condições de suaprodução e significação.

Nesse caso específico, a significação da con-dição de ser tomado como portador de um distúr-bio de aprendizagem da escrita constitui-se na ten-são estabelecida por meio de diferentes vozes quecruzam a história pessoal do sujeito. Por isso, omedo, a insegurança, a relutância diante da escri-ta, antes de serem tomados como manifestaçõessintomáticas de uma suposta debilidade indivi-dual, refletem a aproximação e, ao mesmo tem-po, o confronto com a palavra do outro, pois, se-gundo argumenta Bakhtin (1992b, p. 317), nossopróprio pensamento nasce e forma-se em intera-ção e em luta com o pensamento alheio”. Toman-do a elaboração do conhecimento como um pro-cesso que se constitui socialmente, ressalto a ne-cessidade de profissionais – professores, pedago-gos, médicos, fonoaudiólogos, psicólogos – re-fletirem sobre os efeitos que uma visão patologi-zadora – do distúrbio, da imaturidade, da disfun-ção, da lesão, da dislexia – produz sobre os pro-cessos de construção da escrita e de constituiçãode subjetividades.

O caso M.S.

M.S. é uma menina que foi, diferente do outrocaso analisado, diretamente encaminhada, pela es-cola, ao Núcleo de Trabalho: Fonoaudiologia e Lin-guagem Escrita, quando, aos nove anos de idade,estava no 4o ano do ensino fundamental. Para a es-cola, M.S. seria portadora de dificuldade de apren-dizagem da língua escrita. Essa menina, em con-

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junto com a fonoterapeuta, desenvolveu atividadesinteracionais e discursivas com a escrita: ela parti-cipou de um diálogo compartilhado, fez leituras deregras de jogos, escreveu cartas.

Apresento, a seguir, a análise de duas produções

de M.S. A primeira delas configura-se como umdiálogo compartilhado, no qual ambas as partici-pantes da prática clínica – fonoterapeuta e acriança –, fazem uma à outra perguntas e respostaspor escrito.

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Na análise dessa produção, é possível perce-ber que, ao levar em consideração as perguntas fei-tas pela terapeuta, M.S. foi capaz de organizar suasrespostas de maneira condizente, construindo sen-tido para sua leitura. Ela respondeu a todas as ques-tões elaboradas pela terapeuta, na medida em queassumiu o papel de interlocutora que atua sobre omaterial lingüístico, compreendendo os enuncia-dos produzidos pelo outro. Por isso, ressalto que acompreensão não é mera decodificação, mas re-quer um processo de inferência.

A inferência é, segundo Koch (2002; 2003),uma operação pela qual o leitor/ouvinte, utilizan-do-se de um conhecimento de mundo, é capaz decompreender o texto. Com isso quero dizer que pararesponder aos enunciados elaborados pela terapeu-ta, M.S. mobilizou um vasto conjunto de saberesno interior de um evento comunicativo. Da mesma

forma, mobilizando esse conjunto de conhecimen-tos, ela também fez uma série de perguntas a suaterapeuta. E elaborando perguntas e respostas, elapôde cumprir seu papel na situação interativa, dan-do continuidade ao jogo dialógico a partir do usode vários elementos textuais. Ela fez uso de dêiti-cos – aqui, ano que vem, eu, você –, como expres-sões lingüísticas cuja interpretação se apóia emparâmetros de lugar, de tempo e de pessoas envol-vidas na situação da enunciação. Ela lança mão dearticuladores – mas e porque – entrelaçando rela-ções causais. Portanto, apesar de ser apontada comoportadora de dificuldades relacionadas à escrita,M.S. mostra que pode usar essa realidade lingüís-tica em eventos dialógicos, cumprindo seu papelcomo leitora e também como autora de sua escrita.Fato que pode ser confirmado, na apresentação eanálise do próximo texto:

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Esse texto foi produzido no último encontrorealizado entre M.S. e a terapeuta. Depois de ana-lisar a escrita dessa menina e não encontrar proble-mas capazes de justificar um atendimento clínico,a terapeuta, anunciando essa situação para M.S.,sugeriu que ambas escrevessem – uma para outra –uma carta de despedida. Então, M.S. elaborou osua bilhete sem fazer perguntas.

Nessa produção, assim como na anterior, essamenina novamente escreve, assumindo-se comoagente da ação da linguagem, para uma interlocu-tora definida, a fonoterapeuta. M.S. estabelece re-lações entre segmentos textuais e garante progres-são temática ao seu texto, articulando tema-remae, dessa forma, a partir de uma informação dada,introduz novas informações; na situação discursi-va, ela faz referência à interlocutora, que é retoma-

da no texto em uma cadeia referencial, pela substi-tuição em elipse – “Sabe que eu gostei de traba-lhar com você” –, pelo uso dos pronomes te e você.Para finalizar, anuncia e introduz dois versos co-nhecidos, relacionando-os com os demais elemen-tos do texto e com a situação enunciativa. Portan-to, sem dúvida, ela mostra que sabe fazer uso deconhecimentos que lhe permitem construir umaseqüência textual.

Além das questões textuais, ao analisarmosesses dois textos, é possível afirmar que essa meni-na já domina vários aspectos gráficos e convencio-nais da escrita. Ela estabelece correspondênciaspertinentes entre grafemas e fonemas, apresentan-do poucos “equívocos”. M.S. escreve, por exem-plo, “iram” para irão e “juelhos” para joelhos. To-davia, esses fatos são absolutamente previsíveis

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durante o processo de aquisição da escrita: no pri-meiro caso, ela grafa “iram”, mostrando que, nes-se contexto, ainda não sabe como representar a na-salização; no segundo caso, escreve “juelhos” pro-vavelmente por pautar-se na oralidade.

M.S. também apresenta “equívocos” vincula-dos ao uso das letras f/v, como no caso da escritadas palavras: “voi” para foi e uma hipersegmenta-ção em “com migo”. Essas inadequações, porém,são freqüentes no processo de aquisição da escritae nada têm de patológico. Além do domínio damecânica básica da escrita, ou seja, de saber quesegmentos gráficos correspondem a segmentos so-noros, M.S. faz uso apropriado de maiúsculas eminúsculas e, embora faça em diversas situaçõesuso “inadequado” de sinais de pontuação, ela já sedeu conta da necessidade de pontuar o texto, usan-do vírgulas, pontos finais e de interrogação.

No contraponto de uma interpretação pautadana noção de distúrbio, tendo em vista a análise dostextos produzidos por M.S., bem como os recursosutilizados na construção dos mesmos e perceben-do as “inadequações” que envolvem a parte gráfi-ca e convencional de sua escrita como parte do pró-prio processo de aprendizagem e uso da escrita,distancio-me da posição assumida pela escola. Afi-nal, crianças capazes de formular hipóteses comoas apresentadas por M.S. já sabem escrever, já en-tendem a base de um sistema alfabético e, sobretu-do, já reconhecem os usos significativos que po-dem fazer da escrita.

Últimos apontamentos

Levando em consideração os objetivos propos-tos neste estudo, pude perceber que o conceito dedislexia vinculado aos processos de aquisição daescrita é vago e impreciso. De um ponto de vistaetiológico, a literatura apresenta diferentes hipóte-ses explicativas, sem contar com evidências capa-zes de sustentá-las. Da mesma forma, as descri-ções sintomatológicas apresentam-se fragilizadas,pois fatos que dizem respeito à construção da es-crita – uso indevido de letras, segmentação impró-pria de vocábulos, escrita pautada na transcriçãofonética, trocas ortográficas, entre outros – são des-critos como sinais de um déficit, os quais se apre-sentam completamente desprovidos de uma inves-tigação lingüística para elucidá-los.

Ainda, sobre os ditos sintomas disléxicos, caberessaltar que eles vêm sendo descritos em função

de tarefas avaliativas assentadas em uma perspec-tiva de linguagem que a concebe como mero códi-go de comunicação estanque. Com a intenção desuplantar procedimentos avaliativos que ignorama interação socioverbal e descrevem formas lingüís-ticas fragmentadas e distanciadas de um contextosignificativo, analisei casos de sujeitos rotulados ediagnosticados como disléxicos ou portadores dedificuldades com a linguagem escrita, sem perderde vista a construção conjunta de atividades dialó-gicas, o conhecimento partilhado, a constituição dosinterlocutores e de suas imagens, a situação ime-diata de manifestação da linguagem e o seu carátersocial mais amplo.

Nessa direção, foi possível perceber queG.W.G. e M.S. construíram unidades textuais, deacordo com diferentes propósitos e situações, as-sumindo-se como locutores, ou seja, como sujei-tos que tinham algo a dizer/escrever para outros,seus interlocutores leitores. Levando em conta assituações de interlocução das quais participavam,eles produziram textos diversos: escreveram car-tas, relataram experiências pessoais, participaramde diálogos compartilhados, a partir da emergên-cia de traços individuais na seleção de recursos lin-güísticos vinculados aos aspectos gráficos e con-vencionais.

A investigação de tais traços, os quais têm sidofonte de preocupação de escolas, na mesma medi-da em que são usados como critérios diagnósticospara supostos distúrbios de aprendizagem, revelaindícios de manipulação da linguagem a apontarpara a efetivação da apropriação da escrita. Nasdiferentes produções textuais, verifiquei diversasreflexões vinculadas à grafia e à convenção da es-crita: marcas de sinais de pontuação, o uso demaiúsculas e minúsculas, a convenção ortográfica,a segmentação da escrita.

Enfatizo, nos dois casos apresentados, que ossujeitos manuseiam o objeto escrito em função deestratégias diversas: apoio na oralidade, uso “inde-vido” de letras em função do próprio sistema orto-gráfico, transcrição fonética, gestos de refacção,segmentação “inadequada” por influência da ora-lidade ou pelo conhecimento já interiorizado acer-ca da própria escrita. Estas estratégias, próprias doprocesso de aprendizagem da linguagem, coope-ram para a compreensão da relação que se instauraentre as características gerais dos sujeitos e as dife-rentes manifestações de sua singularidade e, por-tanto, não podem ser tomadas como sinais de dis-

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lexia ou de distúrbios/dificuldades de leitura e es-crita. Mas, ao contrário, indicam mecanismos dereflexão sobre a linguagem escrita em uso e cons-trução.

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Recebido em julho/04; aprovado em novembro/04.

Endereço para correspondênciaGiselle de Athayde MassiRua Monsenhor Manoel Vicente, 532, ap. 61, Água Verde,Curitiba, CEP-80.620-230

E-mail: [email protected]