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fernando machado silva De Berlim a Lisboa 2016

De Berlim a Lisboa - cfcul.fc.ul.ptcfcul.fc.ul.pt/publicacoes/outras publicacoes/docs/de_berlim_a... · e dois cães sedentos de atenção e amor como tu e eu mais abertamente ou

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fernando machado silva

De Berlim a Lisboa

2016

De Berlim a Lisboa

E nós ficávamos sentados nas folhas secas que murmuravam um pouco sob a respiração lenta da nossa espera e a respiração lenta da terra e a calma atmosfera de Outubro.

William Faulkner, O Som e a Fúria

para ti

I (Wilmsstrasse, Berlim)

partiste e as águas correram na sua lamacenta lassidãoonde os cisnes permanecem em sua suave travessiasugerindo aos amantes o bucolismo doado pelos canaissomente quando a chuva cai e o outono se instala na cor folheada

ou nas madrugadas de geada que em cristal brilha o invernoaos primeiros raios da manhã e ninguém por aí caminhana despedida não houve lenços baldeados ao ventolágrimas se furtivas caíram foram pelos olhos dela

– quem afinal soltava as amarras para a aventura que ajudastea proporcionar por solene promessa à vida – todos os caminhos e o amorainda estão para serem feitos antes que a morte te entre valsando

despede-te das diatribes e insónias dessa morada tão herméticasalta para o carro cheio como uma carroça com mudos e ledos cãese segue viagem junto a ela lentos como um caracol no himalaias do tempo

II (Bad Meinberg)

longe está o tempo das epopeiastudo se move e foge da terrasó se sente a gravidadequando o pensamento se faz corpoou a lama do caminho nos incita a lentidãoessa qualidade rara do amor ordenando a casa

aqui aprendemos a passagem das horasprocurámos purgar o percorridopersistindo a ecoar no tímpanonestas línguas de sílex prontas a embatere incendiar o coração na iminênciade um obstáculo até o amansar da fera

composemo-nos com o mundodesenhámos um mapa de errânciae se neste templo os nomes se renegampor outros juntos abrimos o horizonteda pele à fulgurância da vidaessa epopeia escrita justo ao último suspiro

shanti shanti shanti

III (Steffeshausen)

a aurora irisava-se na janela suadae o zurro de um burro fremia os citadinosouvidos desaprendidos do diverso

eis como se ergue uma manhãseparando as águas de um gelo adormecidosegundo o passo do homem e da terra

a noite (a)guarda demasiados silênciosmoradas a habitar pela palavranas desoras das vidas aldeãs enquanto

os milagres surgem onde o horizontese ilumina na abertura plúmbea da poalhavê-mo-los ao longe do topo para o vale

presos pela tensão que nos corróiessa agma no interior de cada corpoque o amor elogia e escarnica

estar perdido é momentâneo um intervalona passagem das horas pelo rosto quando o voltaresverás o olhar do acontecimento de nós

IV (Bagneux, Paris)

e a terra foi ficando para trásembebida em orvalho e vapor

de esterco elevando-se em torre e o horizonteinclinado de verdes colinas lentas vacas

suspensas nos seus olhares pestanudos e desinteressadosde toda a tecnologia e dos corpos que as olham e comem

nós corremos e passamos com as nossas curiosassombras até a cor se dissociar do chão e das copas

e de novo o outono afirmar a sua paletaenterrando a sua espada cobrindo de cobre o mundo

descansámos como a lebre da nossa tartarugaviagem onde o fabulista nasceu e nunca veio a contar

a nossa passagem ou imaginar que um e o outro nascesseou sequer nos juntássemos para uma ulissíada europeia

descemos quase ao longo do sena vendo as vinhas brotando-nos a volúpia de um vinho futuro ameaçado pelas máquinas

e seus condutores sedentos da protecção das suas casas correndoo risco de a elas não chegar porque o tempo de um dia é insuficiente

para uma vida que pode acabar a qualquer momentoassim escolhemos a calma periferia da luz e do movimento

e nessa cidade apreciámos nas restantes horas disponíveis a fontedas imagens dos amantes as pontes suicidas dos corações alocados

onde hoje como outrora o que mais se joga é a sortede baralhos viciados ou a fácil momentânea vida

ficou prometido o retorno um desejo mais na lista do limboonde tantos já foram esquecidos menos o desse tinto na noite parisina

V (Damvix)

ao largo desse rio joana ouviuum anjo e por deus matou

quando morreu um apaixonadoenlouqueceu e abriu um novo capítulo

no livro da crueldade humanaaqui ficámos o tempo de uma passagem

o suficiente para influências mais nefastasnão nos corromperem

desconhecíamos os caminhosseguimos as marcas das vias

apenas legíveis pela luze porque víamos chamámos de atalhos

vindo a noite e o silêncioa cegueira das trevas

veio a ocultação da anterior presençade corpos e o caminho um trilho de perdição

andámos sem rumonos canaviais do fim do mundo

um passo em falsodesacompanhados de anjos e

humanos e demónios que nos guiasseme não mais se encontrariam as nossas bocas

estávamos no limbo de joana e gilequilibrados num fio de prumo

estendido entre alucinação e bestialidadeaté que chegámos onde nos aguardavam

um verde labirinto de uma veneza naturalde manhã abandonada para outras paragens

VI (St. Hélène, Bordeaux)

não és beatriz nem eu sou dantee por guia esteve ausente vergílio

na nossa descida pelos labirintospor estradas ladeadas de castelos

cruzando vilas vazias quase desertascomo esse lugar erigido por monges

hoje habitado por fugazes turistasmijando onde calha crendo-se invisíveis

jovens empregados ensonados bocejandoe velhos pescadores que mal soltam as amarras

do barco que são passando o tempo olhando o marcomo se do rebate escutassem os mortos

ou a cantiga de uma sereia para uma última partidae porque rolamos a sul lentamente perdemos

o ferry de outubro para a quase ilhaforçando-nos um novo desvio

outra travessia de perdição e a chegadaao destino incumprindo o compromisso temporal

aí a meio caminho desta viagemencontrámos a serenidade para o recobro

um paraíso para o corpo e o estuportivemos também o nosso pessoal inferno

com a limpeza de um jardim e de uma piscina artificialde águas paradas como um lago tomado pelo inverno

e esquecido pelos banhistas como afinal foi esta regiãopassado o verão aqui fizemos breves incursões

entre oceano e floresta até à antiga cidade de Bordéusonde renovámos laços afiançámos um retorno

e no regresso a casa para nossa surpresasermos recebidos com a afirmação

inesperada de uma amizade uma breve nota deesperança para as relações entre estranhos

VII (Cap Breton, Bayonne, Biarritz)

napoleão fez aqui uma investida ao marpara o domar e dá-lo à mão do homemteve sucesso o pontão persiste ainda contra as ondasonde tantos se passeiam e se fotografam para se preservaremnos seus raras vezes visitados arquivos de invejae embora também nós tenhamos aqui passadoé mais pela escrita em todo o meu corpo que guardoesta estadia neste cabo em suas grossas areias e pôr-de-solacompanhado a vinho e bem-estar que se arruinariaem poucas horas porque mais indomável que o mar é o egosentado no seu trono de ideias e solitárias vontades

tivemos de buscar outro abrigo para a noite fria caindocom chuva e desiludida como uma notícia de despedidaque te convida a partir mãos nos bolsos na direcção opostapercorremos os fundilhos francófonos e montámos praça no país bascoinvertemos a carroça rearranjámos as suas dimensõespartilhando todos o mesmo espaço como numa longínqua e inexistenteidade do ouro de acordos mudos olhares significativos carícias protetorasno estacionamento de um parque pleno de amantes de hóquei em gelo

quando não mais suportávamos o desconforto brotando entre osso e ferroamanhecemos com o mesmo mar que banha Cap Breton fora a fúriaque quase nos levou perder a esperança conquistada em St. Hélènee de uma quase insónia o dia fez-se mole e arrastou-se tornando-nos na covaonde o moribundo espera a morte adiada pelo médico acabando em

[Bayonnepor içarmos a âncora e passarmos a fronteira ofuscando-nos com a

[opulênciade Biarritz suscitando em nós o desejo obscuro da riqueza que ninguém

[escapao qual pode nada mais ser que a possibilidade de viver ligeiramente livre e à

[tonada água com uma casa onde dormir e receber amigos e permitir-mo-nos um

[pouco do luxodo lazer e da cultura que também nos alimentam no seu modo de inutilidade

[económica

mas repara como poucos podem percorrer meia europa por própria vontadee ver esta velha com um só rosto dividido e desfigurado por plásticasparte constante novidade e renovação parte conservadorismo e tradiçãotalvez tenha sido esse o sentimento que nos convidou a esquecera nossa temporária condição enquanto comíamos churrasco numa duna

VIII (Muskiz, Bilbao)

recolheu-nos a pobrezaa névoa a lamaum verde esmorecidoum mar em novelos de areiao frio a contrariedadecomo se a descida pelo litoralaliasse o literal e o metafóricopara o justo sentido da queda

quando queríamos ficar partíamosquando para partir ficávamose a tristeza ajustava-se a toda a paisageme corpos desde o céu ao mole dos passosaté os esgotos corriam envergonhadospara pluviosos ribeiros a um ritmo pastosotudo se arrastava pelas serras num aparecere desaparecer do mundo sem perder a sua presença

a cidade reticulada no vale com a gigante aranhanão tinha qualquer brilho nem nos deslumbrouo museu que a recolocou no mapa dos arquitectossó a tensão se acumulava electricamente como a cúpulade redoma nublada antes da tempestade seca cobrindo-nosuma pele voltaica e o trovão prestes a ribombar na gargantapensámos ser este o fim da viagem e de todas as surpresasjá que nem a casa laranja e rústica incendiava o dia ou a noite

o sufoco enodava-se em torno do porquêtermos principiado a necessitada mudança que tardavacomo se a pergunta pedisse qualquer respostamas tanto acontece que o óbvio tem de ser demonstradoe o amor do outro reconhecido até ao justo sentidoda queda e em caindo façamos aí amore como duas crianças aprendamosa pôr-nos de pé e novamente caminhar

IX (Camino de la Ermita, Granón, La Rioja)

descer ainda continuamente e mais fundocomo testando limites de varas secas entre mãose é uma beleza pobre e deixada que se definede searas e montes arados expostos a gralhase caminheiros de bastão e concha com basta felicidadepercorrendo terras para chegar a um desertomais interior atolado de inutilidadesonde estão tão sós como chegarame partirão um dia nessa viagem sem retornoque um a um cabe fazer sem nada nem ninguém

acolhe-nos a ermida pelo caminhocom frio frugalidade e vento fustigandoe dois cães sedentos de atenção e amorcomo tu e eu mais abertamente ou em secretosilenciado orgulho (talvez esta chamada e anseiosejam a chave da história humana em todos os seus modosmesmo no apelo do carpinteiro pelo abandono do pai)chegámos também nós ao oásis e tratámo-nos como reisbanhámo-nos como nos achámos merecidos em águas quentese demos graças aos nossos corpos mergulhados em volúpia

X (Valladolid, Burgos)

o tempo deixou aqui a sua pátinauma terra infértil onde caminhamcorvos gralhas debicando altivosos restos da revolução do aradoexumando restos de ossos palha cascasde sementes ou carochas necrófagas pelo lixode plástico de sacos garrafas latas as armasda nossa arrogância e ódio à natureza

do céu uma morrinha incansável livrando Burgosaos seus e a nós esfomeados e com o deverpara com as nossas sombras igualmente necessitadasde pisar o chão ou dar à terra com que criar nova vidatal como em Château-Thierry subimos para junto das águiase do alto sobrevoámos pelo miradouro a vista até sermostomados pela vertigem do feio que o tempo dirá de outro modonão havendo mais que a vontade sustivesse

ou nos pedisse a paciência seguimos o embalode uma pressa que nos tomava conta e com subtilezaditava as novas regras do jogo estendendo-se por esse territórioque é o corpo cansado pelas expectativas goradasnos percursos tortuosos percorridos lentamenteperfazendo uma lonjura interminável ainda hoje palmilhadae iniciada antes desta viagem impondo os nossosencontros e desencontros os mesmo outros silêncios

como os de nenhuma resposta e esperar a chegada do soluma chave uma hora enfim permitindo que nos dispamosdestas roupas e espinhos e encontremos por momentosnessa casa de catálogo uma bonança quando tantos quilómetrosainda nos separam do destino e esta ansiedade dobra o mundomal nos deixa respirar ou imergir por inteiro nessa estranha luzenvolvendo Valladolid ou o parque junto ao rio onde nos saiu a multapor ocuparmos demasiado espaço no pouco tempo que ficámos

XI (Bragança, Porto)

ficava suspensa e'spelhada a planura de chuva e línguaonde nós não quiséramos medrarhavia um projecto a cumprirtraçando entre realidadee desejo um territóriofomos nómadas pelas estradasdo granito órfão entregue aoesquecimento só retornandolentamente à língua usadaquando só a voz no pensamentoou para refregar o coração

tu denodavas o desânimoártico e pelos passos sob osol vi o teu corpo enlevar-see o sorriso ostracizadoabrir-se doando as pérolasassisti um novo nascimentoesperança fora da mortalhaonde este amor se acercoucomo testemunha amparandoa mão moribunda ou prestes aabandonar-se a seu lado emexaustão decidida mas nunca

lancei a toalha ao chão senãopara me desnudar a teus olhoseis dois lázaros solevantadossacudindo os trapos mórbidosda tristeza e do fastio paraconquistar a invicta ao chegarbuscámos valhacouto no montecativo um menor paraísotornado aos poucos um infernoroubando-nos a privacidadesuspendendo a intimidadepedida pelos corpos sedentos

primeiro e depois com o comummal-entendido que prevalecesendo o oposto um acasoporém entre tormentas vogámospelas colinas de casas baixaspalacetes e ruelas ondeestava o lar de uma outravida que teremos noutro mundoentre o rio e eléctricosbebemos ao que virá e passoupreparámos a ceia sabendopróxima a última etapa

XII (Lisboa, Sesimbra)

tanto foi o desejo e a espera para chegara esse lugar que em nós foi a idade do ouroe o romance que nos enlevou nos nossos primeiros diasnesta cidade e depois a vila e casa e aqui chegadoso frio e o cinzento que fundam a solidão do invernoacobardaram o sol que nos ardia e a memória ainda vibranteesse vírus que nos consome sempre um pouco mais os restosde uma sacralidade que nem o cínico escapa de procurar proteger

estávamos ambos desgastados desta dupla viagemfoi afinal meia europa cruzada para oeste por terrasmontes planícies e rios e várzeas e pântanos e terrenosflorestas e campos silvestres entre o lado da montanhae o lado do mar e tantas variações de cores vidas línguaschuva vária grossa miúda pontuada vaporosasol abrasivo ou oculto apanhado nos olhos que se fechavamou no dorso onde as mãos aconchegavam as vértebras

céu aberto ou nubladamente coberto ou rasgado por milagresenquanto por dentro tudo se aprofundava e se fazia mais longínquovinte e poucos dias dobrados no tempo duro vertiginoso de uma quedatendo também nós as nossas paragens em lugares diferentesnuma outra europa noutras cidades do mundocontinentes da nossa mais interna geografiaespaços que eram o sentido da proximidade gravítica do outroou cavando uma distância que a mão tocando a do outro não encurtava

outras vezes ainda esbatendo o corpo num território como só a dançade estrelas ou buracos negros com suas poeirentas extremidadesseus limites estelares aliados num abraço numa nova entidade no imensouniverso poderia dar uma imagem que ainda falha a sua representaçãomas aqui conheci a breve loucura amámo-nos e odiámo-nos com a subtil

[brutalidadedas palavras pedras imateriais provando a real porosidade da pelefomos estranhos e estrangeiros a familiares e amigos mais presentesquando aqui não estávamos e nos cobravam a ausência em gramas de

[saudade

tudo ou quase se eclipsou e fez-se silêncio nas nossas bocas e cegaram-se os[olhos

ao choro pela exaustão da fala e da escuta deprimida pela desilusãotornando-nos ainda mais impacientes aos gestos amorosos às solicitações e

[apelospara arredar o estupor ensombrecendo-nos experimentámos caminhar para

[escaparao isolamento de uma estância balnear empobrecida e irrecuperável e só

[acolhendoas ondas ao longo das dunas da Lagoa de Albufeira ou do Meco e um

[castelo que aguardao nosso casamento para quando todos em melhores dias a par dos nossos

[sonhosporque por aqui tudo se perdeu e nos ocámos com a frustração

[desfigurando-nos

e exaustos pela aventura corrida ao gosto do vento sem plano e guiaperdidos ao tempo e durações embatendo contra a realidade e o carro noutrofomos tomados por um turbilhão de sentimentos e caímos desamparadoscada vez mais dentro e ninguém viu ou vê ainda nem um ao outro até já

[estarmoscada um próximo do ponto sem retorno mas que nos resta senão uma loucacrença de que o amor e com ele o futuro nos dará com que rirquando tudo relembrarmos um ao outro coincidindo finalmente os mapase as vias dos encontros e desencontros desta vadiagem marcados nos nossos

[rostos

nunca é tarde afinal para uma decisão e o tempo sabemo-lo é volúvel e[dúctil

a temer só temos o que é interno isolando-se até ser intransponível e caladonão é o momento que vale a pena antes a provocação em cada agorapara o acontecimento de um e do outro e do que nos une e vai para além de

[nósainda aqui estamos e ainda tentamos para lá de todas as distâncias que

[nunca faltarãoe os lugares que nos prendem de si não escapam só pela imaginação mudameu e tu e tu somos nódulos de linhas cruzadas ligando uns e outros e tempos

[e espaços

até ao adeus o silêncio ou de tal forma enrodilhados que só resta esperar o[beijo da aranha

ÍNDICE

I (Wilmsstrasse, Berlim) p. 7II (Bad Meinberg) p. 8III (Steffeshausen) p. 9IV (Bagneux, Paris) p. 10V (Damvix) p. 11VI (St. Hélène, Bordeaux) p. 13VII (Cap Breton, Bayonne, Biarritz) p. 15VIII (Muskiz, Bilbao) p. 17IX (Camino de la Ermita, Granón, La Rioja) p. 18X (Valladolid, Burgos) p. 19XI (Bragança, Porto) p. 20XII (Lisboa, Sesimbra) p. 22