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REVISTA ELETRÔNICA
DE DIREITO INTERNACIONALVOLUME 20 - MARÇO, 2017
CENTRO DE DIREITO INTERNACIONAL
Coordenação Geral Prof. Dr. Leonardo Nemer Caldeira Brant
Coordenação Executiva Bruno de Oliveira Biazatti Wilson Fernandes Negrão Júnior
Colaboradores Amael Notini Moreira Bahia Amanda Barroca Dayrell Deborah Avelar Freitas
Flávia Lana Faria da Veiga Hernane José de Carvalho Júnior Júlia Soares Amaral Lais Ione Araújo Fagundes Luiza Nunes Ruas Maria Clara Fernandes Caon Marina Demas Alvares Cabral Natália Helena Lopes da Silva
Ficha Catalográfica Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
R454 Revista Eletrônica de Direito Internacional. [online] / Coordenação Geral Leonardo Nemer Caldeira Brant. – v.20 - (2017-1)-. Belo Horizonte: CEDIN, 2017-1.
Semestral
ISSN 1981-9439
1. Direito internacional - Periódicos. I. Centro de Direito Internacional. II. Brant, Leonardo Nemer Caldeira.
CDU: 341(05)
Para citar este documento
CENTRO DE DIREITO INTERNACIONAL. Revista Eletrônica de Direito Internacional, 2017, Vol.
20. Disponível em: www.centrodireitointernacional.com.br/publicacoes/revista-eletronica/. Acesso
em: Informar data de acesso.
Sumário
1. O processo de refúgio no Brasil e a proteção à criança solicitante de
refúgio...................................................................................................................1
Mariana Ferolla Vallandro do Valle
2. O Direito brasileiro e a realidade dos fluxos migratórios na América
Latina: a influência da Colômbia e do
Haiti.....................................................................................................................26
Flávia Lana Faria da Veiga
3. A proteção dos interesses dos migrantes e refugiados à luz dos tratados
internacionais....................................................................................................41
Fernanda Moura Queiroz Santos de Oliveira e Júlia Vilela Carvalho
O PROCESSO DE REFÚGIO NO BRASIL E A PROTEÇÃO À CRIANÇA
SOLICITANTE DE REFÚGIO
Mariana Ferolla Vallandro do Valle1
RESUMO: Nos últimos anos, o número de crianças em busca de refúgio cresceu
significativamente. Embora as normas protetivas do Direito Internacional dos
Refugiados se apliquem integralmente a essas crianças, elas devem ser adequadas à
vulnerabilidade específica dos menores de idade e complementada pela Convenção
sobre os Direitos da Criança considerando-se, especialmente, o interesse superior do
menor. Assim, para que solicitações de refúgio feitas em nome de crianças sejam
corretamente analisadas, os processos nacionais de determinação do status de refugiado
devem, também, se adequar a essas normas. O presente artigo busca avaliar o quão
apropriado é o processo de refúgio no Brasil a solicitantes de refúgio crianças,
analisando sobretudo os procedimentos estabelecidos na Lei n. 9.474/97, além de outras
normas e práticas dos órgãos competentes.
PALAVRAS-CHAVE: Direito das Crianças. Direito dos Refugiados. Crianças
Refugiadas. Lei n. 9.474/97 (Lei de Refúgio). Direitos Humanos. Direito Internacional
dos Refugiados.
ABSTRACT: Over the past years, the number of children seeking asylum has
significantly grown. Although the protective norms of refugee law wholly apply to these
children, they must be adapted to the specific vulnerability of minors and complemented
by the Convention on the Rights of the Child, especially considering the best interests of
the child. Hence, for asylum applications made in the name of children to be correctly
analyzed, national procedures on the determination of refugee status must also adapt to
these norms. This article will then seek to assess how appropriate the refugee status
process in Brazil is in relation to child asylum-seekers, analyzing mainly the procedures
established by Law n. 9.474/97, besides other norms and practices of relevant organs.
KEYWORDS: Children’s rights. Refugee Law. Refugee children. Law n. 9.474/997
(Brazilian Refuge Act). Human Rights. International Refugee Law.
1 Estudante de graduação em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista do
Programme des futurs leaders dans les Amériques na Université Laval (Canadá) em 2016. Coordenadora
do Grupo de Estudos em Direito Internacional – Corte Internacional de Justiça (GEDI-CIJ) da UFMG.
O Processo de Refúgio no Brasil e a Proteção à Criança Solicitante de Refúgio
Rev. Eletrônica de Direito Internacional, Ed. Esp. Refugiados, ISSN 1981-9439, vol.20, 2017, p.1-25. 2
INTRODUÇÃO
A proteção da criança como sujeito autônomo de direitos especiais é de longa
data reconhecida pelo Direito Internacional. Já em 1924, décadas antes da elaboração da
Declaração Universal de Direitos Humanos, a Liga das Nações aprovou a Declaração
dos Direitos das Crianças, prevendo, entre outros, que a criança deve ser a primeira a
receber socorro em tempos de perigo.2 A Declaração foi expandida e sua nova versão
adotada em 1959 pela Assembleia-Geral das Nações Unidas.3 Nesta, faz-se, pela
primeira vez, menção ao interesse superior da criança,4 que viria a se tornar a base do
sistema internacional de proteção ao menor. Nota-se, assim, a preocupação em garantir
que crianças estivessem acobertadas por direitos específicos e adequados à sua maior
vulnerabilidade, para além das normas gerais de direitos humanos.
A princípio, as normas sobre a proteção dos refugiados também faziam
referência expressa a crianças. A Constituição da Organização Internacional de
Refugiados, entidade fundada em 1946 e substituída pelo ACNUR em 1952,
classificava expressamente como refugiadas as crianças desacompanhadas que eram
órfãs de guerra, bem como aquelas cujos pais estavam desaparecidos ou fora do país de
origem.5 Da mesma maneira, quando da elaboração da Convenção relativa ao Estatuto
dos Refugiados de 1951,6 a qual constitui a base do sistema atual de proteção de
refugiados, a delegação estadunidense propôs que a definição de refugiado contasse
com a categoria de crianças desacompanhadas.7
Entretanto, o texto final da Convenção de 1951 foi adotado sem qualquer
menção à possibilidade de que um menor pleiteie o status de refugiado por conta própria
2 LIGA DAS NAÇÕES. Declaração de Genebra dos Direitos da Criança. 1924. Disponível em:
<http://www.un-documents.net/gdrc1924.htm>. Acesso em: 05 jan. 2017. 3 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembleia-Geral das Nações Unidas. Declaração dos
Direitos da Criança. Resolução 1386 (XIV). 1959. Disponível em:
<http://www.refworld.org/docid/3ae6b38e3.html>. Acesso em: 05 jan. 2017. 4 4 O princípio do interesse superior da criança dita que todas as decisões envolvendo o menor deverão ter
seus melhores interesses como uma consideração primária. Esse princípio está codificado no artigo 3 da
Convenção sobre os Direitos da Criança. Ver: BRASIL. Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990.
Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília,
DF, 22 nov. 1990. Seção 1, p. 2. art. 3. 5 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembleia-Geral das Nações Unidas. Constitution of the
International Refugee Organization and Agreement on Interim Measures to be taken in Respect of
Refugees and Displaced Persons. Resolução 62 (I). 1946. Disponível em:
<https://treaties.un.org/doc/source/docs/A_RES_I_62-E.pdf>. Acesso em: 05 jan. 2017. 6 BRASIL. Decreto n. 50.215, de 28 de janeiro de 1961. Promulga a Convenção relativa ao Estatuto dos
Refugiados, concluída em Genebra, em 28 de julho de 1951. Diário Oficial da União, Poder Executivo,
Brasília, DF, 30 jan. 1961. Seção 1, p. 838. 7 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Ad Hoc Committee on Statelessness and Related
Problems, First Session: Summary Record of the Third Meeting Held at Lake Success, New York, on
Tuesday, 17 January 1950, at 3 p.m. E/AC.32/SR.3. 1950.
Mariana Ferolla Vallandro do Valle
Rev. Eletrônica de Direito Internacional, Ed. Esp. Refugiados, ISSN 1981-9439, vol.20, 2017, p.1-25. 3
e tampouco às prerrogativas especiais às quais teria direito. Embora o silêncio da
Convenção não impeça que crianças sejam reconhecidas como refugiados de forma
independente de seus pais, a falta de dispositivos específicos sobre o tratamento desse
grupo contribui para perpetuação do entendimento de menores como apêndices de
solicitantes de refúgio adultos, ao invés de solicitantes independentes.8
A realidade, entretanto, está distante dessa percepção: não raro, crianças são elas
mesmas vítimas de violações de direitos humanos que as levam a procurar refúgio em
outros Estados, sem o acompanhamento de pais ou adultos responsáveis. Segundo
estimativas do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), 51%
da população de refugiados em 2014 eram crianças, o maior número em mais de uma
década.9 Dentre essas, 34.000
10 se tratavam de crianças separadas – isto é, crianças
separadas de pais ou guardiões, mas acompanhadas por outros familiares adultos11
– ou
desacompanhadas – crianças separadas de seus pais ou guardiões e que não estão sendo
cuidadas por nenhum outro adulto.12
No Brasil, dados divulgados pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare)
em 2016 mostram que crianças de 0 a 17 anos correspondem a 18% dos beneficiados
com status de refugiado no Brasil.13
Todavia, compreendem apenas 2,6% dos
solicitantes de refúgio.14
Essa disparidade entre o número de menores reconhecidos como refugiados e
aqueles que solicitam o status de maneira autônoma pode ser explicada pelo fato de que
o status de refugiado se estende aos membros da família daquele que obteve sucesso
com sua solicitação. No entanto, ainda é necessário avaliar o processo de determinação
do status de refugiado e se a maneira como esse processo é conduzido é adaptada às
8 BHABHA, Jacqueline. Child Migration and Human Rights in a Global Age. Nova Jersey: Princeton
University Press, 2014. p. 3; BIEN, Rachel. Nothing to Declare but their Childhood: reforming U.S.
asylum law to protect the rights of children. Journal of Law and Policy, v. 12. p. 797-841. 2004. p. 810. 9 ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS. UNHCR Global Trends
Forced Displacement. 2014. p. 2. Disponível em:
<http://unhcr.org/556725e69.html#_ga=1.213483988.1105599141.1445454649>. Acesso em: 21 jan.
2017. 10
Loc. cit. 11
COMITÊ DOS DIREITOS DA CRIANÇA. General Comment 6. Treatment of unaccompanied and
separated children outside their country of origin. 39ª Sessão. 2005. para. 8. Disponível em:
<http://www2.ohchr.org/english/bodies/crc/docs/GC6.pdf>. Acesso em: 22 jan. 2017. 12
Ibid. para. 7. 13
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Comitê Nacional para os Refugiados. Sistema de Refúgio brasileiro:
Desafios e perspectivas. 2016. Disponível em: <http://pt.slideshare.net/justicagovbr/sistema-de-refgio-
brasileiro-balano-at-abril-de-2016>. Acesso em: 24 jan. 2017. 14
Loc. cit.
O Processo de Refúgio no Brasil e a Proteção à Criança Solicitante de Refúgio
Rev. Eletrônica de Direito Internacional, Ed. Esp. Refugiados, ISSN 1981-9439, vol.20, 2017, p.1-25. 4
particularidades da criança, possibilitando de fato que ela seja reconhecida como
refugiada por si só.
O presente artigo busca, portanto, analisar as normas relativas à determinação do
status de refugiado no Brasil, especificamente a adequação e efetividade dessas normas
em situações em que crianças são solicitantes de refúgio. Para tanto, será primeiramente
analisada, sob a ótica do Direito Internacional, a relação entre o status de refugiado e a
possibilidade de sua concessão a menores de idade. Em seguida, serão discutidas as
principais normas da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 que protegem o
menor durante procedimentos internos de refúgio nos Estados. Finalmente, com base no
embasamento contextual-teórico construído, será avaliada a adequação do ordenamento
jurídico brasileiro, sobretudo com base na Lei 9.474/97 (Lei de Refúgio), às
particularidades de solicitantes de refúgio menores de idade.
1 CRIANÇAS COMO REFUGIADOS AUTÔNOMOS
A definição mais amplamente aceita do termo “criança” entre os Estados é dada
pelo artigo 1º da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, segundo o qual o
termo compreende todo ser humano menor de 18 anos, excluindo-se aqueles
emancipados conforme normas de direito interno aplicáveis.15
A maioria dos Estados-
partes da Convenção de 1989 não opôs reservas a essa definição, incluindo o Brasil.16
Dessa forma, embora o Brasil tenha estabelecido, em seu direito interno, a distinção
entre a criança (até 12 anos de idade) e o adolescente (entre 12 e 18 anos de idade),17
esse fato não altera a proteção autônoma conferida da Convenção sobre os Direitos da
Criança, a todos menores de 18 anos.
Por sua vez, a definição do termo “refugiado” comumente aceita pelos Estados
está prevista no art. 1º da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, cumulado
com o art. 1º, §2 do Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967.18
Este retira as
15
BRASIL. Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990. op. cit. art. 1. 16
A Convenção sobre os Direitos da Criança foi ratificada por todos os Estados-membros da Organização
das Nações Unidas, à exceção dos Estados Unidos. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. United
Nations Treaty Collection. Convention on the Rights of the Child. Disponível em:
<https://treaties.un.org/pages/viewdetails.aspx?src=treaty&mtdsg_no=iv-11&chapter=4&lang=en>.
Acesso em: 21 jan. 2017. 17
BRASIL. Lei n. 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e
dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 16 jul. 1990. Seção 1, p.
13563. art. 2. 18
BRASIL. Decreto n. 70.946 de 7 de agosto de 1972. Promulga o Protocolo sobre o Estatuto dos
Refugiados. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 8 ago. 1972. Seção 1, p. 7037. art.
1, §2.
Mariana Ferolla Vallandro do Valle
Rev. Eletrônica de Direito Internacional, Ed. Esp. Refugiados, ISSN 1981-9439, vol.20, 2017, p.1-25. 5
limitações temporal e geográfica à definição de refugiado inicialmente previstas na
Convenção. Conforme esses dispositivos, refugiado é toda pessoa que, devido a um
fundado temor de perseguição com base em motivos de raça, religião, nacionalidade,
grupo social ou opiniões políticas, encontra-se fora de seu país de nacionalidade – ou de
residência habitual, no caso de apátridas – e não pode ou não deseja retornar a esse país
em virtude dessa perseguição.19
Embora o conceito de perseguição não apareça definido
de forma expressa na Convenção, este é geralmente entendido como o cometimento de
abusos de direitos humanos e atos discriminatórios pelo Estado, ou por particulares em
casos em que o Estado é incapaz de ou não se dispõe a oferecer proteção ao indivíduo.20
É inegável que tais critérios para o status de refugiado, estabelecidos na
Convenção de 1951, aplicam-se igualmente a crianças que visem a se beneficiar de tal
status.21
Nesse sentido, o próprio artigo 22 da Convenção sobre os Direitos da Criança
reforça que os Estados devem adotar medidas para assegurar o direito da criança de ser
reconhecida como refugiada, se preenchidos os requisitos para tanto conforme o direito
internacional e/ou interno aplicável.22
Apesar dessa garantia, na maioria dos casos em
que uma criança está acompanhada por seus pais ou responsáveis, a solicitação de
refúgio é feita com base nas experiências destes, e não da criança.23
Se bem-sucedida a
solicitação, o menor receberá o status de refugiado por derivação, com base no status de
seus responsáveis.24
Dessa forma, a perseguição vivida pela própria criança é considerada pelas
autoridades de determinação do status de refugiado é levada em consideração, na
maioria dos casos, somente se a criança estiver desacompanhada.25
A delegação desse
papel passivo à criança nos procedimentos de refúgio reflete, inclusive, a necessidade de
adequações da maneira pela qual se tratam solicitações de refúgio em que o requerente é
o próprio menor.
19
BRASIL. Decreto n. 50.215, de 28 de janeiro de 1961. op. cit. art. 1. 20
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS. Handbook and
Guidelines on Procedures and Criteria for determining Refugee Status. Genebra: ACNUR, 2011. p.
13; CANADÁ. Supreme Court. Canada (Attorney General) v. Ward. Ottawa, 30 de junho de 1993. p.
714-717. 21
AUSTRÁLIA. High Court of Australia. Chen Shi Hai v The Minister for Immigration and
Multicultural Affairs. Camberra, 13 de abril de 2000. p. 27. 22
BRASIL. Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990. op. cit. art. 22. 23
MCADAM, Jane. Complementary Protection in International Refugee Law. Oxford: Oxford
University Press, 2007. p. 183. 24
Loc. cit. 25
Loc. cit.
O Processo de Refúgio no Brasil e a Proteção à Criança Solicitante de Refúgio
Rev. Eletrônica de Direito Internacional, Ed. Esp. Refugiados, ISSN 1981-9439, vol.20, 2017, p.1-25. 6
Primeiramente, há de se reconhecer que as características particulares da criança,
tais como seu estágio de desenvolvimento e nível de discernimento, colocam-na em
uma posição de maior ou menor vulnerabilidade que impacta diretamente as
consequências de adversidades enfrentadas em virtude dos motivos elencados na
Convenção de 1951 – raça, religião, nacionalidade, classe social e opinião política.26
O
reconhecimento dessa vulnerabilidade implica o reconhecimento de que condutas que
por vezes não classificadas como perseguição quando dirigidas contra adultos podem
constituir perseguição na perspectiva de uma criança.27
Certos abusos psicológicos, por
exemplo, como interrogatórios intensos e prolongados, produzem efeitos mais graves e
duradouros em um menor, especialmente os mais jovens, podendo constituir uma forma
de perseguição.28
Igualmente, como reconhecido pela Immigration and Refugee Board
do Canadá, situações de intimidação (bullying) ou racismo em escolas também podem
chegar a uma intensidade equivalente a perseguição.29
Dessa maneira, é essencial que se
leve em conta todas as particularidades da criança para verificar se a intensidade da
violação caracteriza perseguição.30
Além de adequar o nível de violações de direitos humanos às características da
criança para melhor avaliar a existência de perseguição, os níveis de evidência também
devem ser condizentes com a idade do solicitante de refúgio. Menores de idade por
vezes não conseguem transmitir a situação que originou seu temor de perseguição de
forma objetiva, com detalhes ou com a apresentação de documentos comprobatórios.31
Logo, embora o ônus da prova quanto à existência de um fundado temor de perseguição
comumente caiba ao solicitante de refúgio,32
há de se adotar uma abordagem mais
liberal em casos envolvendo crianças, de forma que as autoridades responsáveis tenham
26
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS. Guidelines on
International Protection: Child Asylum Claims under Articles 1(A)2 and 1(F) of the 1951 Convention
and/or 1967 Protocol relating to the Status of Refugees. HCR/GIP/09/08. 22 de dezembro de 2009. p. 7.
Disponível em: <http://www.unhcr.org/50ae46309.html>. Acesso em: 21 jan. 2017. 27
Ibid. p. 9; ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS. Children on
the Run. Washington: ACNUR, 2014. p. 43. 28
BIEN. op. cit. p. 832. 29
CANADÁ. Immigration and Refugee Board. X (Re). MA6-06260. Ottawa, 10 de abril de 2007;
CANADÁ. Federal Court Trial Division. Malchikov, Alexander, v. Minister of Culture and Immigration.
IMM-1673-95. Ottawa, 19 de janeiro de 1996. 30
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS. Guidelines on
International Protection: Child Asylum Claims under Articles 1(A)2 and 1(F) of the 1951 Convention
and/or 1967 Protocol relating to the Status of Refugees. op. cit. p. 4, 6. 31
BIEN. op. cit. p. 289. 32
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS. The International
Protection of Refugees: Interpreting Article 1 of the 1951 Convention Relating to the Status of Refugees.
p. 3. Disponível em: <http://www.refworld.org/docid/3b20a3914.html>. Acesso em: 19 jan. 2017.
Mariana Ferolla Vallandro do Valle
Rev. Eletrônica de Direito Internacional, Ed. Esp. Refugiados, ISSN 1981-9439, vol.20, 2017, p.1-25. 7
uma postura mais ativa na verificação dos requisitos para a concessão do status de
refugiado a menores.
Tem-se, portanto, plenamente possível a concessão de status de refugiados a
crianças com base na Convenção de 1951, devendo as autoridades se atentarem às
particularidades e vulnerabilidades de menores de idade no caso concreto. Além disso, o
procedimento de determinação desse status deve se conformar à proteção garantida pela
Convenção sobre os Direitos da Criança, como analisado a seguir.
2 A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DA CRIANÇA: PONTOS DE CONTATO
COM O DIREITO DOS REFUGIADOS
Conforme seu artigo 2, a Convenção sobre os Direitos da Criança se aplica a
todas as crianças sob a jurisdição do Estado, indistintamente de nacionalidade, etnia e
status migratório, entre outros.33
Como esclarecido pela Corte Internacional de Justiça
em seu parecer consultivo sobre a legalidade da construção de um muro no território da
Palestina, a jurisdição do Estado se refere a todos os territórios onde os Estados exercem
controle efetivo.34
Desse modo, embora a Convenção de 1989 delegue a outros
instrumentos internacionais e internos a função de definir quais os requisitos e
procedimentos a serem completados pela criança a fim de obter refúgio, a Convenção
estabelece regras de grande importância para a preservação dos direitos da criança e que
devem ser observadas durante todo o processo de refúgio.
Nesse sentido, uma das disposições mais importantes sobre a proteção da criança
nesses processos é aquela prevista pelo artigo 3, §1 da Convenção sobre os Direitos da
Criança, segundo o qual “[t]odas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por
instituições públicas ou privadas de bem estar social, tribunais, autoridades
administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse
maior da criança”.35
Tal interesse deve ser tanto o ponto de partida quanto o objetivo de
todo o sistema de proteção ao menor. Como reiterado pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos, esse princípio deriva da própria ideia de dignidade da pessoa
humana e do pleno desenvolvimento da criança.36
33
BRASIL. Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990. op. cit. art. 2. 34
CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Legal Consequences of the Construction of a Wall in
Occupied Palestinian Territory. Parecer Consultivo. Haia, 9 de julho de 2004. para. 113. 35
BRASIL. Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990. op. cit. art. 3. 36
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Juridical Condition and Human Rights of
the Child. Parecer Consultivo OC 17-2002. São José, 28 de agosto de 2002. para. 56; CORTE
O Processo de Refúgio no Brasil e a Proteção à Criança Solicitante de Refúgio
Rev. Eletrônica de Direito Internacional, Ed. Esp. Refugiados, ISSN 1981-9439, vol.20, 2017, p.1-25. 8
Cabe notar, primeiramente, que a utilização da formulação “interesses” ao invés
de “direitos” indica o escopo amplo e indeterminado do artigo,37
especialmente se
considerando a existência de diversas ideias sobre o que seria o melhor interesse da
criança.38 Dessa forma, esses interesses devem ser determinados conforme o caso
concreto39
e não necessariamente corresponderão a direitos positivados do menor.40
Nas
palavras do Comitê dos Direitos da Criança,
Uma determinação de qual é o interesse superior da criança requere uma
avaliação clara e compreensiva da identidade da criança, incluindo sua
nacionalidade, criação, experiência étnica, cultural e linguística,
vulnerabilidades particulares e necessidades de proteção.41
(Tradução nossa.)
O princípio do interesse superior da criança possui, ainda, um campo de
aplicação bastante amplo, devendo ser considerado em todas as decisões “relativas à
criança”.42
Tal como esclarecido pela High Court australiana, ainda que o menor não
seja o ponto central da decisão, se esta o afeta, o princípio se aplica.43
No contexto de
processos de determinação do status de refugiado, o interesse superior do menor
encontra aplicação tanto quando a criança submete individualmente uma solicitação de
refúgio quanto quando aquela é afetada pela decisão concernente à solicitação de seus
pais ou responsáveis.44
Além disso, nas versões autenticadas da Convenção sobre os Direitos da
Criança, o interesse superior do menor é indicado como uma consideração primordial
nas ações relativas à criança, mas não a única. Tal redação foi adotada para permitir
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Case of the Pacheco Tineo Family v. Plurinational
State of Bolivia. São José, 25 de novembro de 2013. para. 218. 37
MCADAM, op. cit. p. 178. 38
FREEMAN, Michael. Article 3: The Best Interests of the Child. In: ALEN, André; LANOTTE, Johan
Vande; VERHELLEN, Eugeen; ANG, Fiona; BERGHMANS, Eva & VERHEYDE, Mieke. A
Commentary on the United Nations Convention on the Rights of the Child. Leiden: Martinus Nijhoff,
2007. p. 27. 39
NGUEMA, Nisrine Eba. La protection des mineurs migrants non accompagnés en Europe. La Revue
des Droits de l’Homme, v. 7. p. 2-17. 2015. p. 8. 40
Por exemplo, a professora Jane McAdam sustenta que o interesse superior da criança é uma potencial
base para a admissão de crianças migrantes em um Estado, ainda que elas não possam se beneficiar do
status de refugiado ou de algum outro status similar conforme o direito internacional. Ver: MCADAM,
op. cit. p. 173-196. 41
COMITÊ DOS DIREITOS DA CRIANÇA. General Comment 6. op. cit. para. 20. Original: “A
determination of what is in the best interests of the child requires a clear and comprehensive assessment
of the child’s identity, including her or his nationality, upbringing, ethnic, cultural and linguistic
background, particular vulnerabilities and protection needs.” 42
BRASIL. Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990. op. cit. art. 3. 43
AUSTRÁLIA. High Court. Minister of State for Immigration and Ethnic Affairs v. Ah Hin Teoh.
Camberra, 7 de abril de 1995. 44
MCADAM. op. cit. p. 178.
Mariana Ferolla Vallandro do Valle
Rev. Eletrônica de Direito Internacional, Ed. Esp. Refugiados, ISSN 1981-9439, vol.20, 2017, p.1-25. 9
certa flexibilidade nas decisões dos Estados de modo que outros interesses pudessem,
em certas situações, sobrepor-se aos da criança.45
Conduto, essas situações são extremamente restritas46
e devem ser
acompanhadas de análises da razoabilidade e proporcionalidade da decisão, bem como
de considerações das opiniões da própria criança.47
Dessa forma, embora não tenham
prioridade absoluta, os interesses da criança permanecem considerações de primeira
importância.48
Conforme exposto pela Suprema Corte Canadense, deve-se conceder,
sempre, um peso substancial a esses interesses.49
No contexto do refúgio, uma aplicação
ampla do princípio do interesse superior da criança foi defendido pelo professor Guy
Goodwin-Gill, segundo quem o bem-estar da criança e sua proteção são considerações
mais importantes do que as “preocupações restritas do status de refugiado”.50
Tais considerações a respeito do interesse superior do menor impactam
diretamente a aplicação de outros direitos previstos na Convenção sobre os Direitos da
Criança. Um dos mais significativos no contexto do refúgio é a liberdade de
movimento, frequentemente posta em jogo por medidas de detenção de solicitantes de
refúgio impostas pelos Estados. Quando avaliadas à luz do interesse superior da criança,
tais medidas são frequentemente criticadas.51
Embora os Estados disponham do poder soberano de tomar medidas para o
controle de imigração, dentre as quais a detenção de indivíduos que entram em seu
território de forma irregular, estas ainda devem se conformar aos direitos humanos.52
A
restrição da liberdade de movimento do menor a um espaço limitado, afetando seu bem-
estar físico e psicológico e seu desenvolvimento, dificilmente pode ser vista como
respeitando os direitos da criança, sobretudo o interesse superior. Ainda que se tente
justificar a detenção como uma forma de manter a unidade familiar, no caso de crianças
45
MCADAM. op. cit. p. 180. 46
FREEMAN. op. cit. p. 5. 47
MCADAM. op. cit. p. 182. 48
FREEMAN. op. cit. p. 61. 49
CANADÁ. Supreme Court. Baker v. Canada (Minister of Citizenship and Immigration). Ottawa, 9 de
julho de 1999. p. 864. 50
GOODWIN-GILL, Guy S. & MCADAM, Jane. The Refugee in International Law. 3. ed. Oxford:
Oxford University Press, 2007. p. 131. Original: “The welfare of the child, and the special protection and
assistance which are due in accordance with international standards, prevail over the narrow concerns of
refugee status.” 51
CERNADAS, Pablo Ceriani; GARCÍA, Lila & SALAS, Ana Gómez. Niñez y Adolescencia en el
Contexto de la Migración: Principios, Avances y Desafíos en la Protección de sus Derechos en América
Latina y el Caribe. Revista Interdisciplinar de Mobilidade Humana, ano XXII, n. 42. p. 9-28. Jan./jun.
2014. p. 18. 52
CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Mubilanzila Mayeka and Kaniki Mitunga v.
Belgium. Petição n. 13178/03. Estrasburgo, 12 de outubro de 2006. para. 96.
O Processo de Refúgio no Brasil e a Proteção à Criança Solicitante de Refúgio
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acompanhadas, existem alternativas menos danosas à criança e que devem ser buscadas
pelo Estado.53
Por exemplo, o Comitê de Direitos Humanos, no caso Bakhtiyari and
others v. Australia, decidiu que a detenção prolongada de crianças de uma família de
solicitantes de refúgio, ainda que estas estivessem no mesmo centro de detenção que a
mãe, violava o interesse superior do menor.54
Ainda, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao analisar a questão,
concluiu que a detenção de um menor baseada exclusivamente em seu estatuto de
imigração irregular é sempre arbitrária.55
Seguindo-se essa lógica, uma vez que as
justificativas dos Estados para a detenção de solicitantes de refúgio geralmente têm por
base a entrada irregular no território do Estado,56
a detenção de crianças solicitantes de
refúgio seria, na prática, sempre ilegal.
Para além da situação de detenção de crianças em situação de imigração
irregular, para que as medidas tomadas em relação ao menor de fato sigam o princípio
do interesse superior, é necessário que a criança tenha a chance de participar,
diretamente ou por meio de um representante, de quaisquer processos administrativos
ou judiciais que a envolvam, tendo suas opiniões devidamente consideradas.57
Além de
decorrer da lógica do princípio,58
tal participação está expressamente prevista no artigo
12 da Convenção sobre os Direitos da Criança.59
Segundo o dispositivo, a participação
deve ser garantida a toda criança capaz de formular juízos e o peso a ser dado a estes
será avaliado conforme a idade e a maturidade da criança.60
Conforme esclarece o
Comitê dos Direitos da Criança, a menção à capacidade de formular juízos não deve ser
53
CERNADAS ET AL. op. cit. p. 18. 54
COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS. Mr. Ali Aqsar Bakhtiyari and Mrs. Roqaiha Bakhtiyari v.
Australia. CPR/C/79/D/1069/2002. 7 de novembro de 2003. para. 9.7. 55
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Direitos e Garantias de Crianças no
Contexto da Migração e/ou em Necessidade de Proteção Internacional. Parecer Consultivo OC 21/14. São
José, 19 de agosto de 2014. para. 154. 56
AUSTRALIAN HUMAN RIGHTS COMMISSION. A last resort? National Inquiry into Children in
Immigration Detention. 2004. Disponível em: <https://www.humanrights.gov.au/publications/last-resort-
national-inquiry-children-immigration-detention/6-australias-immigration>. Acesso em: 24 jan. 2017;
NEVER HOME. Nearly 100,000 migrants in Canada jailed without charge. 2014. Disponível em:
<http://www.neverhome.ca/detention/>. Acesso em: 25 jan. 2017. INTERNATIONAL DETENTION
COALITION. Captured Childhood: introducing a new model to ensure the rights and liberty of
refugee, asylum seeker and irregular migrant children affected by immigration detention.
Melbourne: International Detention Coalition, 2012. p. 32-33. 57
BRASIL. Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990. op. cit. art. 12. 58
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS. Guidelines on
Determining the Best Interests of the Child. Genebra: ACNUR, 2008. p. 59. 59
BRASIL. Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990. op. cit. art. 12. 60
Loc. cit.
Mariana Ferolla Vallandro do Valle
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interpretada de forma a limitar o direito da criança a ser ouvida;61
pelo contrário, essa
capacidade deve ser sempre presumida pelos Estados e não cabe à criança prová-la.62
Ademais, a Convenção não exige que a criança tenha um conhecimento
profundo sobre o assunto que lhe concerne, mas apenas que tenha uma compreensão
suficiente para que se expresse sobre o mesmo.63
Tal como ocorre com o interesse
superior da criança, as opiniões desta devem ser seriamente consideradas pelas
autoridades estatais, e não apenas ouvidas.64
O direito à participação do menor é de
grande importância nos processos de refúgio, tanto para que a solicitação seja analisada
à luz de todas as informações pertinentes, quanto para que o interesse superior da
criança seja devidamente respeitado.
No caso de crianças desacompanhadas, a relevância desse direito é ainda mais
evidente, pois apenas estas poderão recontar as experiências que as qualificariam para a
proteção do status de refugiado.65
No entanto, ainda que a criança esteja acompanhada,
é imprescindível que sua opinião seja ouvida pelas autoridades, uma vez que o menor
pode ter interesses autônomos e até mesmo divergentes daqueles dos adultos por ele
responsáveis.66
Nesse sentido, vale mencionar o Parecer Consultivo sobre Direitos e Garantias
de Crianças no Contexto da Migração e/ou em Necessidade de Proteção Internacional,
da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Nesse parecer, a Corte sugere a adoção
de diversas medidas pelos Estados para garantir que o menor expresse suas opiniões
livremente: a condução de procedimentos em ambientes amigáveis, sensíveis e
apropriados à idade da criança, por pessoas especificamente treinadas, e de modo que a
criança se sinta segura e respeitada ao dar suas declarações.67
61
COMITÊ DOS DIREITOS DA CRIANÇA. General Comment 12. The right of the child to be heard.
51ª Sessão. 2009. para. 20. Disponível em:
<http://www2.ohchr.org/english/bodies/crc/docs/AdvanceVersions/CRC-C-GC-12.pdf>. Acesso em: 25
jan. 2017. 62
Loc. cit. 63
PARKES, Aisling. Children and International Human Rights Law: The Right of the Child to be
Heard. Nova Iorque: Routledge, 2013. p. 33. 64
COMITÊ DOS DIREITOS DA CRIANÇA. General Comment 12. op. cit. para. 28 65
Ibid. p. 48; ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS. Guidelines on
International Protection: Child Asylum Claims under Articles 1(A)2 and 1(F) of the 1951 Convention
and/or 1967 Protocol relating to the Status of Refugees. op. cit. p. 26. 66
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Direitos e Garantias de Crianças no
Contexto da Migração e/ou em Necessidade de Proteção Internacional. op. cit. para. 122. 67
Ibid. para. 123.
O Processo de Refúgio no Brasil e a Proteção à Criança Solicitante de Refúgio
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Outra forma endossada pelo Comitê dos Direitos da Criança68
e pelo ACNUR69
de garantir os interesses do menor é a designação de um representante legal e, nos casos
de crianças desacompanhadas, também de um guardião. O representante legal deverá
defender diretamente os interesses da criança perante as autoridades estatais e garantir a
efetiva participação da mesma no processo de refúgio, bem como em outros processos
que venham a impactá-la diretamente.70
Por sua vez, o guardião deverá atender as
necessidades da criança relativas a saúde, alimentação, vestuário, educação, entre
outras,71
visando ao desenvolvimento saudável do menor.
Por fim, na situação específica de crianças desacompanhadas, o artigo 10 da
Convenção sobre os Direitos da Criança lhes garante o direito de que os pedidos de seus
pais para imigrar ao Estado onde se encontra o menor para fins de reunificação familiar
sejam tratados de maneira “positiva, humana e rápida”.72
Visto que a avaliação de tais
pedidos deve necessariamente ser feita com base no princípio informativo do interesse
superior da criança, quaisquer negativas à reunificação familiar deverão ser
fundamentadas pela autoridade. Ademais, o contato da criança com os pais deve ser
garantido da melhor maneira possível, direta e pessoalmente, exceto em situações
excepcionais.73
Considerando-se que a Convenção de 1989 só menciona a reunificação familiar
entre pais e seus filhos, não haveria, tecnicamente, dever positivo dos Estados de
garantirem tal medida quando o pedido é feito por outros familiares que possam cuidar
da criança, tal como irmãos, tios, primos, ou mesmo avós. Entretanto, tais pedidos
devem também ser considerados quando demonstrado que o contato com tais familiares
seria do interesse superior do menor, cabendo aos Estados analisar a possibilidade da
reunificação conforme seus mecanismos internos.
Uma vez expostas as principais normas do Direito dos Refugiados e do Direito
das Crianças aplicáveis a crianças solicitantes de refúgio, será então avaliado se o
processo de refúgio no Brasil se conforma a essas normas.
68
COMITÊ DOS DIREITOS DA CRIANÇA. General Comment 6. op. cit. para. 33. 69
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS. Guidelines on
International Protection: Child Asylum Claims under Articles 1(A)2 and 1(F) of the 1951 Convention
and/or 1967 Protocol relating to the Status of Refugees. op. cit. p. 26. 70
Loc. cit. 71
WORKMAN, Claire L. Kids are People Too: empowering unaccompanied minor aliens through
legislative reform. Washington University Global Studies Law Review, v. 3. p. 223-250. 2004. p. 237. 72
BRASIL. Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990. op. cit. art. 10, §1. 73
Ibid. art. 10, §2.
Mariana Ferolla Vallandro do Valle
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3 O PROCESSO DE REFÚGIO NO BRASIL
Além de ter ratificado a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, o Brasil
adotou, em 1997, sua própria lei a respeito do refúgio, a Lei n. 9.474 (Lei de Refúgio).
Essa Lei regulamenta os aspectos procedimentais para a obtenção do status de refugiado
e até mesmo expande, em seu art. 1º, a concessão de tal benefício a pessoas que fogem
de situações de violação “grave e generalizada” de direitos humanos em seus países de
origem.74
Tal como ocorre na Convenção de 1951, a Lei de Refúgio brasileira não faz
qualquer menção à criança como peticionária autônoma do status de refugiado. Em
função disso, alguns dispositivos da lei se mostram claramente inadequados à situação
de vulnerabilidade da criança, especialmente as mais jovens, podendo acarretar análises
inadequadas do pedido de refúgio e abusos por parte das autoridades. Por outro lado,
essas lacunas são complementadas por outros instrumentos normativos e medidas ad
hoc patrocinadas pelo governo, algumas das quais se referem expressamente a crianças
refugiadas, e mesmo pela ação do Conare em dar atenção especial a essas crianças.75
Dessa forma, propõe-se a seguir, a análise de alguns pontos chave do processo
para obtenção do status de refugiado no Brasil e sua adequação, ou não, a solicitantes de
refúgio menores de idade. Mais especificamente, serão avaliados os procedimentos
referentes à entrada do solicitante em território nacional, à assistência básica e jurídica à
criança solicitante de refúgio, à participação da mesma no processo perante o Conare,
autoridade responsável pela concessão de status de refugiado no Brasil, e à reunificação
familiar.
3.1 A entrada de solicitantes de refúgio no Brasil
Ao entrar em território brasileiro, o primeiro passo para que um migrante pleiteie
o status de refugiado é a manifestação de sua intenção de ser reconhecido como tal a
qualquer autoridade migratória.76
A partir dessa manifestação, autoridade deverá relatar
em um termo de declaração as circunstâncias nas quais o solicitante entrou no Brasil e
as que o levaram a deixar seu país de origem, nos termos do art. 9º da Lei de Refúgio.77
74
BRASIL. Lei n. 9.474, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para a implementação do Estatuto
dos Refugiados de 1951, e determina outras providências. Diário Oficial da União, Poder Executivo,
Brasília, DF, 23 jul. 1997. Seção 1, p. 15822. art. 1. 75
LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro. O reconhecimento dos refugiados pelo Brasil: Decisões comentadas
do CONARE. Brasília: CONARE/ACNUR Brasil, 2007. p. 34, 36-37. 76
Ibid. arts. 7, 17. 77
Ibid. art. 9.
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Feito isso, o solicitante não poderá ser retirado compulsoriamente do território brasileiro
até que o procedimento administrativo de refúgio seja concluído, independentemente da
regularidade ou não da entrada.78
Se seguidos à risca, esses procedimentos iniciais levam a problemas no processo
de refúgio. Os impactos psicológicos dos traumas vividos no país de origem e da
exaustão causada pela migração até o Brasil fazem com que o solicitante de refúgio
tenha relutância em e até mesmo medo de fornecer as informações necessárias às
autoridades.79
Nessas situações, é recomendado que as autoridades atuem de forma
proativa e recolham tantos detalhes quanto for possível do solicitante, encaminhando,
em seguida, o caso ao Conare para melhor avaliação.80
No caso de menores, o cuidado deve ser ainda maior: aqueles que não dispõem
de um adulto de confiança para auxiliá-los na comunicação com as autoridades
comumente encontram maior dificuldade em relatar suas experiências.81
Os abusos
sofridos podem fazer com que a criança tenha especial receio de agentes
governamentais ou de adultos em geral, de modo que a insistência na coleta de
informações será não apenas infrutífera como danosa à própria criança se não efetuada
com a assistência de profissionais especializados.
3.2 A assistência à criança solicitante de refúgio no Brasil
Externada a vontade de receber o status de refugiado, o próximo passo é o
preenchimento de questionário de refúgio pelo solicitante e seu posterior
encaminhamento ao Conare.82
A partir de então, o processo administrativo se
desenvolve por impulso do Comitê, que deverá requerer as diligências necessárias para
que se chegue a uma decisão final sobre a solicitação.83
Nesse ponto, há duas questões
de particular importância em relação a solicitantes menores.
78
Ibid. art. 8. 79
BARRETO, Luiz Paulo Teles Ferreira. Breves Comentários à Lei Brasileira de Refúgio. In:
BARRETO, Luiz Paulo Teles Ferreira (Org.). Refúgio no Brasil: a proteção brasileira aos refugiados e
seu impacto nas Américas. Brasília: Ministério da Justiça, 2010. p. 150-206. p. 162-163. 80
Loc. cit. 81
Estudos demonstram que sintomas de ansiedade, depressão e estresse pós-traumático são mais comuns
em crianças refugiadas desacompanhadas em relação às acompanhadas. Ver: DERLUYN, Ilse &
BROEKAERT, Eric. Unaccompanied refugee children and adolescents: The glaring contrast between a
legal and a psychological perspective. International Journal of Law and Psychiatry, v. 31. p. 319-330.
2008. p. 321. 82
BRASIL. Lei n. 9.474, de 22 de julho de 1997. op. cit. arts. 18-19. 83
Ibid. art. 23.
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Primeiramente, impende reconhecer que, da identificação do refugiado em
potencial até a decisão final do Conare, há um lapso temporal que pode levar de dias a,
frequentemente meses. Nesse período de tempo, é do interesse da criança que esta e
seus responsáveis tenham acesso imediato a um alojamento adequado. Embora a prática
de detenção de solicitantes de refúgio não seja comum no Brasil, a lei tampouco prevê
que uma acomodação lhes deverá ser providenciada, o que pode levar a casos extremos
de solicitantes dormindo em lugares superlotados ou mesmo nas ruas.84
A criança desacompanhada, por sua vez, deve ter acesso não apenas a um
alojamento adequado, mas também a um guardião que cuide de suas necessidades
básicas, cujo não atendimento tem maior impacto em crianças do que em adultos.85
A
importância da designação de um adulto responsável é reconhecida pelo próprio
Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, segundo o qual “[n]enhuma criança
deverá ficar, em momento algum, sem o apoio e a proteção de um guardião legal ou de
outro adulto reconhecido como seu responsável”.86
Todavia, tal designação não está
prevista na Lei de Refúgio ou mesmo nos Estatutos do Estrangeiro87
ou da Criança e do
Adolescente.88
A Cartilha para Solicitantes de Refúgio no Brasil, lançada em 2014 e resultante
da parceria do governo brasileiro com o ACNUR e outras entidades envolvidas na
proteção ao refugiado, dispõe como direito do menor separado ou desacompanhado que
pleiteia status de refugiado a designação judicial de um guardião.89
Embora esse seja um
bom passo inicial para adequar os procedimentos de refúgio à proteção da criança, a
84
MACIEL, Camila. Equipe vistoria condições de alojamento de haitianos em igreja de SP. Agência
Brasil. 25 de abril de 2015. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-
humanos/noticia/2014-04/trabalhistas-vistoriam-condicoes-de-alojamento-de-haitianos-em>. Acesso em:
24 jan 2017. 85
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS. Guidelines on
International Protection: Child Asylum Claims under Articles 1(A)2 and 1(F) of the 1951 Convention
and/or 1967 Protocol relating to the Status of Refugees. op. cit. p. 8. 86
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Direitos Humanos. Promoção e proteção de
todos os direitos humanos, direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, incluindo o direito ao
desenvolvimento. A/HRC/11/L.13. 11ª Sessão. 2009. para. 18. Disponível em:
<http://www.gtnacionalpcfc.org.br/arquivos/20110330150426_705548.pdf>. Acesso em: 18 jan. 2017. 87
BRASIL. Lei n. 6.815, de 19 de agosto de 1980. Define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil,
cria o Conselho Nacional de Imigração. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 21 ago.
1980. Seção 1, p. 16534. 88
BRASIL. Lei n. 8.609, de 13 de julho de 1990. op. cit. 89
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS. Cartilha para Solicitantes
de Refúgio no Brasil. Brasília: ACNUR, 2014. p. 13. Disponível em:
<http://www.acnur.org/t3/fileadmin/scripts/doc.php?file=t3/fileadmin/Documentos/portugues/Publicacoe
s/2015/Cartilha_para_solicitantes_de_refugio_no_Brasil_2015>. Acesso em: 18 jan. 2017.
O Processo de Refúgio no Brasil e a Proteção à Criança Solicitante de Refúgio
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previsão da Cartilha não se baseia em dispositivo legal ou resolução normativa do
Conare, tornando-a facilmente modificável conforme a variação das políticas públicas.
A deficiência de legislação expressa sobre a nomeação de guardião responsável
pelo menor desacompanhado é, ainda, notada no Projeto de Lei 2516/2015 (Lei da
Migração), cujo artigo 40, inciso V prevê o encaminhamento da criança imigrante
desacompanhado ao Conselho Tutelar.90
Contudo, até que a Lei de Migração seja
efetivamente sancionada, o ordenamento jurídico brasileiro continua sem normas
expressas sobre a questão, deixando-a a uma ampla margem de discricionariedade das
autoridades.
Outro ponto relevante de assistência, é o auxílio ao preenchimento da solicitação
de refúgio ao Conare. Embora a Lei de Refúgio não preveja expressamente a presença
de advogado ao solicitante, tratando apenas da ajuda de intérprete, a assistência jurídica
gratuita é garantida pelo art. 4, inciso V da Lei Complementar n. 80/94, que
regulamenta a Defensoria Pública da União (DPU).91
Nos últimos anos, a cooperação
entre a DPU e o ACNUR tem se intensificado a fim de promover a maior capacitação
dos defensores públicos em relação ao direito internacional dos refugiados e dos direitos
humanos.92
Esse trabalho, somado à atuação de outras entidades que atuam pro bono em
prol de solicitantes de refúgio, como faz a Ordem dos Advogados do Brasil de São
Paulo,93
são contribuições significativas para o devido processo legal de refugiados no
país.
Vez que não existem restrições quanto à idade do solicitante de refúgio ou
quanto ao beneficiário da assistência judiciária gratuita, esta também se aplica a
solicitantes crianças. Nesse caso, o representante legal do menor tem papel
90
BRASIL. Projeto de Lei do Senado 2516 de 2015. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1594910>. Acesso em: 22
jan. 2017. 91
BRASIL. Lei Complementar n. 80, de 12 de janeiro de 1994. Organiza a Defensoria Pública da União,
do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados, e dá
outras providências. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 13 jan. 1994. Seção 1. art.
4, V. 92
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS. ACNUR e Defensoria
Pública da União iniciam cooperação em prol de refugiados no Brasil. 2012. Disponível em:
<http://www.acnur.org/t3/portugues/noticias/noticia/acnur-e-defensoria-publica-da-uniao-iniciam-
cooperacao-em-prol-de-refugiados-no-brasil/>. Acesso em: 21 jan. 2017; ALTO COMISSARIADO DAS
NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS. Acordo melhora atendimento a refugiados e estrangeiros no
aeroporto de Guarulhos. 2015. Disponível em:
<http://www.acnur.org/t3/portugues/noticias/noticia/acordo-melhora-atendimento-a-refugiados-e-
estrangeiros-no-aeroporto-de-guarulhos/>. Acesso em: 21 jan. 2017. 93
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL DE SÃO PAULO. Refugiados terão assistência jurídica
gratuita da OAB-SP. 2000. Disponível em: <http://www.oabsp.org.br/noticias/2000/06/26/601>. Acesso
em: 21 jan. 2017.
Mariana Ferolla Vallandro do Valle
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fundamental: a experiência em outros Estados é de que crianças solicitantes de refúgio
não auxiliadas por advogados enfrentam significativamente maiores adversidades em ter
seu pedido deferido, devido à dificuldade de expor as bases para a concessão do status
de maneira clara e fundamentada.94
Mesmo em situações em que as crianças solicitantes
de refúgio estão acompanhas dos pais ou responsáveis, o representante legal é essencial
para garantir que o direito da criança de participar do processo será respeitado de forma
independente.
Embora críticas possam ser feitas ao fato de que os representantes legais
disponíveis não necessariamente terão formação específica no trato com crianças –
problema também evidenciado em outros Estados, como o Canadá95
–, a possibilidade
de assistência jurídica sem custo ao solicitante já constitui um avanço significativo da
legislação brasileira. A proteção nesse ponto pode, no entanto, ser melhorada a partir de
diretrizes que reforcem o dever primário do representante legal de promover os
interesses da criança, bem como o de assegurar a participação desta no processo de
refúgio.
3.3 A participação da criança no processo para a obtenção de status de refugiado
A Lei de Refúgio não traz grandes esclarecimentos sobre a realização de
audiências ou a instrução probatória. O artigo 23 é particularmente vago nesse respeito,
deixando ao Conare ampla margem de discricionariedade para determinar as diligências
conforme julgue necessário.96
No geral, em observância do princípio constitucional do
contraditório, o Conare segue a prática de realizar entrevistas do solicitante com a
presença de seu advogado.97
Apesar de tal prática, a falta de dispositivo que assegure a participação plena da
criança – ou mesmo do solicitante em geral – no processo de refúgio gera certa
insegurança. Especialmente se tratando de crianças mais jovens ou acompanhadas,
existe um risco de as autoridades não considerarem o menor suficientemente capaz de
94
HILL, Linda Kelly. The Right to be Heard: Voicing the Due Process Right to Counsel for
Unaccompanied Alien Children. Boston College Third World Law Journal, v. 31. p. 41-69. 2011. p.
65; MARTIN, Fiona & CURRAN, Jennifer. Separated Children: A Comparison of the Treatment of
Separated Children Refugees Entering Australia and Canada. International Journal of Refugee Law, v.
19, n. 3. p. 440-470. 2007. p. 459. 95
KUMIN, J. & CHAIKEL, D. Taking the Agenda Forward: The Roundtable on Separated Children
Seeking Asylum in Canada. Refuge, v. 20. p. 73-77. 2002. 96
BRASIL. Lei n. 9.474, de 22 de julho de 1997. op. cit. art. 23. 97
JUBILUT, Liliana Lyra. O Direito Internacional dos Refugiados e sua Aplicação no Ordenamento
Jurídico Brasileiro. São Paulo: Método, 2007. p. 47-48, 198; BARRETO. op. cit. p. 165, 172, 178.
O Processo de Refúgio no Brasil e a Proteção à Criança Solicitante de Refúgio
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auxiliar o processo decisório, mitigando sua participação.98
Embora o representante
legal da criança deva sempre garantir que esta tenha voz ativa no processo, é certo que a
redução da discricionariedade das autoridades contribui para tal tarefa.
Faltam, assim, garantias mais firmes quanto aos direitos de participação da
criança no processo de refúgio. Dessa forma, aumentam-se as chances de que o
interesse superior da criança seja deturpado e que a solução alcançada não corresponda
às necessidades do menor refugiado.
3.4 A reunificação familiar
Ao contrário do que ocorre com migrantes sem status jurídico especial, que
devem comprovar que seus ascendentes são economicamente dependentes do imigrante
para que possam receber visto permanente com base na reunificação familiar,99
o
refugiado pode estender os efeitos de seu status a quaisquer ascendentes e descendentes.
Pelos dispositivos da Lei de Refúgio,100
cumulados com a Resolução Normativa 16 do
Conare,101
basta que o ascendente esteja em território brasileiro para solicitar a extensão
do status de refugiado. Essa regra é particularmente benéfica para crianças que obtêm o
status de refugiado por conta própria, pois garante que seus pais poderão permanecer no
país e que a unidade familiar será preservada.
Mesmo no caso de crianças refugiadas desacompanhadas, a norma é útil; o fato
de estar desacompanhada não significa que seus pais não estejam vivos ou que não
poderão, futuramente, imigrar para o Brasil em busca da criança. Ademais, como a
norma brasileira se refere a “ascendentes”, estariam englobados também os avós ou
mesmo bisavós, garantindo-se a reunificação familiar de modo até mais amplo do que a
própria Convenção sobre os Direitos da Criança.
Contudo, existem casos em que a criança está desacompanhada precisamente por
ter perdido os pais, mas possui familiares em seu país de origem dispostos e hábeis a
cuidar dela, o qual, como visto, não está expressamente previsto na Convenção de 1989.
Nesses casos, no direito brasileiro, a extensão do refúgio não se opera de maneira
98
CERNADAS ET AL. op. cit. p. 16-17. 99
BRASIL. Conselho Nacional de Imigração. Resolução Normativa 108 de 12 de fevereiro de 2014.
Dispõe sobre a concessão de visto temporário ou permanente e permanência definitiva a título de
reunificação familiar. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 18 fev. 2014. Seção 1. p.
68. art. 2, II. 100
BRASIL. Lei n. 9.474, de 22 de julho de 1997. op. cit. art. 2. 101
BRASIL. Comitê Nacional para os Refugiados. Resolução Normativa 16, de 20 de setembro de 2013.
Estabelece procedimentos e Termo de Solicitação para pedidos de reunificação familiar. Diário Oficial
da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 23 set. 2013. Seção 1. p. 29. art. 1, II.
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automática. Segundo a lei nacional, para se beneficiar da reunificação familiar, os
familiares que não são ascendentes, descendentes, cônjuges ou companheiros do
refugiado devem ser economicamente dependentes do mesmo. Sendo o refugiado
criança e o trabalho do menor de 16 anos devidamente proibido no Brasil, essa seria
uma possibilidade bastante remota.
Certa discricionariedade é garantida ao Conare a respeito da reunificação
familiar no §2º do artigo 1º da Resolução Normativa 16, o qual estabelece que “[o]
CONARE tomará em consideração aspectos sociais, culturais e afetivos para estabelecer
padrões de reunificação familiar aplicáveis aos grupos sociais a que pertençam o
refugiado”.102
Parece, assim, que o Conare poderia julgar a reunificação familiar
adequada em relação a grupos sociais fora das relações de parentesco elencadas no
artigo 2º da Lei de Refúgio, inclusive adequando-o ao interesse superior da criança. No
entanto, a Resolução não traz maiores desenvolvimentos a respeito dessa questão,
dificultando a previsibilidade a respeito de quando a extensão se operaria nesses casos.
Gera-se, assim, insegurança jurídica a crianças desacompanhadas que visem a
reunificação familiar com parentes que não seus ascendentes.
CONCLUSÃO
Por muito tempo, a situação de crianças refugiadas foi ignorada em instrumentos
internacionais e internos sobre o refúgio. Não é surpreendente, portanto, que a Lei de
Refúgio seja vaga e imprecisa em diversos pontos no que tange à proteção do menor, o
que agrava o risco a esse grupo vulnerável. Apesar disso, o Brasil tem reunido esforços
e efetivado medidas significativas para adequar seus procedimentos a crianças
solicitantes de refúgio, além de possuir outras leis que complementam o sistema de
refúgio, como a própria lei regulamentando a DPU.
O modo receptivo pelo qual o governo brasileiro vem tratando a questão dos
refugiados – e da imigração, de maneira geral – também contribui para a mitigação de
distorções graves na análise pedidos de refúgio de crianças. Ainda assim, a constante
dependência da boa vontade do Estado, sem limites legais expressos e precisos à
atuação do Conare e de outras autoridades relevantes, gera insegurança aos solicitantes
menores.
102
Ibid. art. 1, §2.
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Embora o processo de elaboração e aprovação de leis sobre a matéria seja
complexo e moroso, especialmente em se tratando de um problema tão atual, normas
que reforcem e regulamentem os direitos e garantias de crianças desacompanhadas
solicitantes de refúgio podem ser criadas por meio de resoluções normativas do Conare,
cujo processo de aprovação, dentro do órgão, é mais célere do que uma deliberação pelo
Congresso Nacional. Desse modo, mostra-se plenamente possível a tomada de medidas
a curto ou médio prazo para coibir abusos das autoridades e fornecer uma proteção mais
compreensiva a crianças refugiadas.
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* * *
O DIREITO BRASILEIRO E A REALIDADE DOS FLUXOS MIGRATÓRIOS
NA AMÉRICA LATINA: A INFLUÊNCIA DA COLÔMBIA E DO HAITI
Flávia Lana Faria da Veiga1
RESUMO: O presente artigo objetiva analisar o fluxo migratório na América Latina,
especialmente as emigrações da Colômbia e do Haiti, que consequentemente vem
influenciando o direito brasileiro e a política nacional. O estudo foca-se no contingente
populacional oriundo desses países, que tem suas emigrações causadas por diferentes
fatores e são cada vez mais difíceis de serem impedidas em cada um dos âmbitos
nacionais. Para tanto, após uma breve exibição do conteúdo na América Latina, será
exposto separadamente cada Estado escolhido para o trabalho. Exibindo semelhanças e
as particularidades, evidenciar-se-ão as influências mais proeminentes para a política
brasileira.
PALAVRAS-CHAVE: Migrantes; Refugiados; Direito Internacional dos Refugiados;
ACNUR.
ABSTRACT: This article aims to analyze the migratory flow in Latin America,
especially the emigration of Colombia and Haiti, which has been influencing Brazilian
law and national politics. The study focuses on the population contingent from these
countries, which has its emigration caused by different factors and are increasingly
difficult to prevent in each of the national scopes. To this end, after a brief presentation
of the content in Latin America, each State chosen for the work will be exposed
separately. By showing similarities and particularities, the most prominent influences
for Brazilian politics will be evident.
Keywords: Migrants; Refugees; International Refugee Law; ACNUR.
INTRODUÇÃO
A proteção dos direitos humanos dos migrantes tem ganhado cada vez mais
espaço na agenda internacional dos direitos humanos, principalmente nos últimos 10
anos. Como uma questão realmente global, o fenômeno das migrações forçadas requer
grande preocupação em nível universal, exigindo que a sociedade se permita reconhecer
1 Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pesquisadora de Direito
Internacional pelo Centro de Estudo em Direito e Negócio (CEDIN).
Flávia Lana Faria da Veiga
Rev. Eletrônica de Direito Internacional, Ed. Esp. Refugiados, ISSN 1981-9439, vol.20, 2017, p.16-40. 27
alguns dos aspectos das adversidades enfrentadas por migrantes e sua crescente
necessidade de proteção.
Para tal o artigo apresenta o estudo de caso da migração colombiana e haitiana,
contextualizando seu processo para demonstrar as diversas causas de imigração e como,
consequentemente, as políticas e atuação brasileira, no que diz respeito a assistência a
migrantes e refugiados, veem sendo influenciadas pelos fluxos migratórios dos países
ao seu redor.
Como se percebe no gráfico a seguir tornou-se importante reconhecer o Brasil
como um grande receptor de migrantes. Ocorre que com o aumento exacerbado de
migrantes no país, as condições de trabalho, convívio, qualidade de vida e muitos outros
aspectos são afetados.
Imigração no Brasil: Número e imigrantes registrados pela PF por ano2
Fonte: Polícia Federal
Nesse sentido, surgem as perguntas: por que estudar a Colômbia e o Haiti?
Quais são os principais fatores que levam a população da Colômbia e Haiti? Como
2 Retirado do site do G1. Disponível em: <<http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/06/em-10-anos-
numero-de-imigrantes-aumenta-160-no-brasil-diz-pf.html>> Acesso em: 23/02/2016.
O Direito Brasileiro e a Realidade dos Fluxos Migratórios na América Latina: a influência da Colômbia e do Haiti
Rev. Eletrônica de Direito Internacional, Ed. Esp. Refugiados, ISSN 1981-9439, vol.20, 2017, p.1-25. 28
esses fluxos migratórios influenciam nas políticas brasileiras? Quais as políticas
internacionais que influenciam o Brasil no que se trata de migrantes e refugiados?
Assim, de acordo com o gráfico abaixo, dentre os grupos de migrantes que
chegam constantemente ao Brasil, destaca-se duas nacionalidades: Colômbia e Haiti.
Nacionalidade: Ranking de países de origem dos imigrantes que chegaram no Brasil em
2015, segundo registro da PF3
Fonte: Polícia Federal
Dessa forma, os próximos tópicos apresentam algumas considerações sobre o
caso das imigrações na América Latina, que contribuem para ampliação das normas
brasileiras de migração oriunda de países vizinhos. Para melhor compreensão, esses
países serão analisados em separado.
1- MIGRANTES E REFUGIADOS NA AMÉRICA LATINA
A migração e a proteção de refugiados são temas distintos, mas complementares.
Esta primeira parte do artigo discorre brevemente sobre tais conceitos visando entender
3 Retirado do site do G1. Disponível em: <<http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/06/em-10-anos-
numero-de-imigrantes-aumenta-160-no-brasil-diz-pf.html>> Acesso em: 23/02/2016.
Flávia Lana Faria da Veiga
Rev. Eletrônica de Direito Internacional, Ed. Esp. Refugiados, ISSN 1981-9439, vol.20, 2017, p.16-40. 29
os múltiplos direitos concernente a eles. Objetivando esclarecer dúvidas corriqueiras
para que os termos não sejam confundidos e utilizados imprecisamente, os próximos
parágrafos são dedicados a compreensão dos fluxos migratórios na América Latina,
evidenciando as normas que buscam proteger seus direitos.
Migração pode ser definido como movimento de pessoas que se estabelecem
temporária ou permanentemente, sendo internas quando dentro do próprio país ou
internacionais quando de um país para outro. As causas para circulação de pessoas são
variadas, podendo decorrer de desastres naturais, falta de alternativas econômicas ou
condições de sobrevivência. Nestes casos, migrar para outro país se torna uma
alternativa para recomeçar a vida, através da busca de oportunidades de trabalho,
satisfação de necessidades básicas, como saúde, educação e segurança alimentar4.
Os refugiados são uma categoria específica resultante das migrações forçadas,
caracterizadas pela necessidade imposta aos indivíduos de deixar o país de origem por
causas alheias à sua vontade sem a possibilidade de retorno. Assim refugiados são
aqueles que não podem contar com a proteção de seu Estado de origem e sofrem
perseguições de raça, nacionalidade, religião, por suas opiniões políticas e ainda, são
vítimas de grave violação de direitos humanos5.
Partindo desse pressuposto, é importante ressaltar que a origem dos direitos dos
refugiados está intimamente ligada ao surgimento do Sistema Internacional dos Direitos
Humanos. Codificado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1945 pelas
Nações Unidas (ONU), o Direito dos Refugiados vê seu primeiro reflexo nos direitos
das minorias. Em seguida, surgiram como as fontes primárias do direito internacional
específica de direito dos refugiados a Convenção dos Refugiados de 1951 e o Protocolo
Adicional de 1967.
Esses direitos compõem um mecanismo internacional para responder situações
específicas de vulnerabilidade que, poderiam de alguma forma, negar de maneira
significativa benefícios do mais geral sistema internacional de proteção aos direitos
humanos. Vale ressaltar que os direitos dos refugiados não são adversários das normas
de direitos humanos, pelo contrário, elas especificam as normas tratadas nos direitos
humanos para grupo de minoria.
4 ACNUR. Políticas Públicas para as Migrações Internacionais: Migrantes e Refugiados, 2 e.d., Brasília,
Revista Atualizada. 5 Ibidem.
O Direito Brasileiro e a Realidade dos Fluxos Migratórios na América Latina: a influência da Colômbia e do Haiti
Rev. Eletrônica de Direito Internacional, Ed. Esp. Refugiados, ISSN 1981-9439, vol.20, 2017, p.1-25. 30
A experiência nessa região é muito exemplificativa de como os ordenamentos
jurídicos nacionais vêm aplicando as normas internacionais de migrantes e refugiados, a
partir de documentos e recomendações internacionais não vinculantes. Os instrumentos
de maior importância no sistema interamericano são: a Declaração de Cartagena sobre
Refugiados de 1984, a Declaração de São José sobre Refugiados e Pessoas Deslocadas,
a Declaração e o Plano de Ação do México de 2004 para fortalecer a Proteção
Internacional dos Refugiados na América Latina. Tem-se como grande exemplo os
direitos presentes na Convenção Americana, o Estado-parte possui a obrigação de
respeitar e assegurar o livre e pleno exercício desses direitos e liberdades, sem qualquer
tipo de discriminação6.
A América Latina é uma região marcada pelo elevado grau de exclusão e
desigualdade social, convivendo ainda com as feridas deixadas pelos regimes
autoritários ditatoriais, com uma cultura de violência e impunidade e com a precária
tradição de respeito aos direitos humanos no âmbito doméstico. O que explica o
contínuo aumento de migrantes e refugiados na região:
O número de migrantes da região latino-americana aumentou de
21 milhões de pessoas, em 2000, para quase 25 milhões, em
2005, somando 13% do total mundial, sendo que a maioria da
população migrante presente na região é oriunda da própria
América Latina (58,7%), de acordo com a Comissão Econômica
para América Latina e Caribe (CEPAL). Entre as razões
indicadas para o crescimento da emigração intra- regional, estão
presentes a continuidade cultural, as raízes históricas comuns e
a diminuição de emigração ultramar. Dessa forma, percebe-se a
necessidade de impulsionar medidas para a governabilidade da
migração internacional na perspectiva latino-americana, visando
facilitar a mobilidade, potencializar externalidades positivas e
proteger os direitos humanos de todos os migrantes. Neste
raciocínio, tem-se como exemplo a migração da Colômbia. A
Organização Internacional para Migrações (OIM) calcula que
de 1997 a agosto de 2002, 1,2 milhões de Colombianos tenham
6 TRINDADE, Cançado. Deslocados e a proteção dos migrantes na legislação internacional dos Direitos
Humanos. Caderno de Debates Refúgio, Migrações e Cidadania, v.3, n.3, Instituto Migrações e Direitos
Humanos, Brasília, 2008.
Flávia Lana Faria da Veiga
Rev. Eletrônica de Direito Internacional, Ed. Esp. Refugiados, ISSN 1981-9439, vol.20, 2017, p.16-40. 31
migrado para outros países, principalmente para o Panamá,
Venezuela e Equador (CORREIA, 2008).
Não obstante este aumento de migrantes, devido à persistência dos países com as
políticas de asilo restritivas, a busca de segurança e controle migratórios torna o
deslocamento forçado na América Latina pouco transparente e pressupõe um maior
entendimento da dinâmica e dimensão dos fluxos migratórios ilegais. Como
consequência, para preservar o refúgio e a proteção internacional dos refugiados é
imprescindível entender melhor fenômeno de migração e, em particular, a composição
dos fluxos migratórios dos refugiados e como apoiar as prevenções das autoridades
específicas para a identificação e avaliação das necessidades de proteção das pessoas
que fazem parte de tais fluxos. Torna-se necessário assegurar que a proteção dos
refugiados não agrave as dificuldades que já passam os Estados para controlar a entrada
e permanência de estrangeiros no seu território7.
Certamente, o tratamento adequado dos movimentos migratórios pelos Estados
constitui um exemplo concreto de como a gestão migratória pode e deve ser compatível
com as obrigações internacionais em matéria de proteção internacional de refugiados e
direitos humanos.
O sistema regional interamericano simboliza a consolidação de um
“constitucionalismo regional”, que objetiva salvaguardar direitos humanos no plano
interamericano. Ao acolher o sistema interamericano, bem como as obrigações
internacionais dele decorrentes, o Estado passa a aceitar o monitoramento internacional
no que se refere ao modo pelo qual os direitos fundamentais são respeitados em seu
território. O Estado tem sempre a responsabilidade primária relativamente à proteção
dos direitos humanos, constituindo a ação internacional uma ação suplementar adicional
e subsidiária8.
O sistema interamericano está se consolidando como importante e eficaz
estratégia de proteção dos direitos humanos, quando as instituições nacionais se
7 MURILLO, Juan Carlos. A proteção internacional dos refugiados na América Latina e o tratamento dos
fluxos migratórios mistos. Caderno de Debates Refúgio, Migrações e Cidadania, v.3, n.3, Instituto
Migrações e Direitos Humanos, Brasília, 2008. 8 PIOVESAN, Flávia. Brasil e o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos: impacto,
desafios e perspectivas. II Anuário Brasileiro de Direito Internacional, vol. 2, 2007.
O Direito Brasileiro e a Realidade dos Fluxos Migratórios na América Latina: a influência da Colômbia e do Haiti
Rev. Eletrônica de Direito Internacional, Ed. Esp. Refugiados, ISSN 1981-9439, vol.20, 2017, p.1-25. 32
mostram falhas ou omissas. A Comissão e a Corte Interamericana contribuem para a
denúncia dos mais sérios abusos e pressionam governos para que cessem com as
violações de direitos humanos.
Dessa forma, diante do exposto, vale ressaltar que a experiência brasileira sugere
que a ação internacional tem auxiliado a publicidade das violações de direitos humanos,
o que oferece o risco do constrangimento político e moral ao Estado violado e, nesse
sentido, mostra-se como significativo fator para a proteção dos direitos humanos. Ao
mesmo tempo, a ação internacional e as pressões internacionais podem contribuir para
transformar uma prática governamental específica, no que se refere aos direitos
humanos, conferindo suporte e estímulo para reformas internas.
Nas próximas sessões será abordado os aspectos da migração Colombiana e a
influência dos recentes acontecimentos no Haiti para o Brasil.
2- ASPECTOS DA MIGRAÇÃO COLOMBIANA
É importante compreender a imigração ilegal no Brasil, mais especificamente
com relação à Colômbia e Haiti, países que representam diferentes realidades na
América Latina, mas que vem produzindo intenso fluxo imigratório para o país.
Analisando primeiramente a Colômbia, percebe-se que a migração internacional é um
fenômeno que faz parte da história do país e está relacionada a temas como narcotráfico,
crime organizado e terrorismo, presentes na história colombiana.
O fluxo migratório da Colômbia teve seu início nos anos 60 e 70. Tendo como
principal destino, durante a primeira onde de emigrantes, a Venezuela que se expandiu
ainda mais nos anos 80 com o crescimento econômico da Venezuela, impulsionada
pelos preços do petróleo. A partir da década de 90, a aceleração nos fluxos migratórios
colombianos ocorreu devido à crise econômica do século, levando a população a migrar
para os países vizinhos como a Venezuela, Equador, Panamá e Brasil. Nos últimos anos
a migração colombiana tem crescido rapidamente, motivada por questões de
heterogeneidade sociais, regionais, econômicos e, principalmente, pelos conflitos
internos9.
9 OLIVEIRA, Ana Carolina V. Os imigrantes ilegais da Colômbia, Bolívia e Haiti no Brasil:
considerações do ponto de vista da Segurança Internacional. V.4, N.2, Mural Internacional, 2013.
Flávia Lana Faria da Veiga
Rev. Eletrônica de Direito Internacional, Ed. Esp. Refugiados, ISSN 1981-9439, vol.20, 2017, p.16-40. 33
A realidade da vida de um refugiado vai muito além daquelas que se pode
imaginar. Quando um cidadão é coagido a sair da sua residência e procurar outro
destino além dos limites nacionais, o medo se torna seu maior aliado. O temor de não
receber suficientes garantias para a preservação da sua vida, o seu amparo. Este é, de
fato, um dos elementos sobre o qual se constrói o conceito atual de refugiado (ONU,
1956). Desde 1980 até o ano 2012, a Agência das Nações Unidas para os Refugiados
apresentava um registro de 2.313.884 de refugiados procedentes da Colômbia.
Gráfico 1. Deslocados forçados e refugiados internacionais da Colômbia. Série 1980 a
2011
Fonte de dados: ACNUR (Mundo), A Colômbia (RNI)10
.
Dessa forma, é possível perceber que o processo migratório na Colômbia se
tornou um dos principais problemas socioeconômicos do país. Atualmente, a região
colombiana enfrenta o desafio de reorientar suas políticas para a atenção da sua
população que vive no exterior, que exigem atenção e respostas eficazes para a inclusão
10
Retirado do texto: As migrações na Colômbia no contexto de conflito armado: uma aproximação ao
padrão de mobilidade na transição ao século XXI. (S. Marcela Cuervo Ramírez, Alisson Flávio Barbieri e
Jose Irineu Rangel Rigotti)
O Direito Brasileiro e a Realidade dos Fluxos Migratórios na América Latina: a influência da Colômbia e do Haiti
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como parte da nação. Ao reconhecer esse desafio, o governo colombiano tem buscado
promover iniciativas públicas, legais e ações articuladas entre os diferentes
responsáveis, de modo a obter sucesso nos processos de apoio, acompanhamento e
atenção aos migrantes colombianos11
.
Os conflitos internos do país veem obrigando cada vez mais os Colombianos a
deixar suas casas, fugindo da violência dos grupos armados. Percebe-se que a população
de refugiados oriundos da Colômbia tem aumentado significativamente desde o ano de
1996, conforme já foi dito e como é demonstrado no gráfico 1. Enquanto isso, os países
receptores desses refugiados, inclusive o Brasil, sofrem diretamente os efeitos da crise
humanitária devido ao grande número de pessoas se refugiando em seus territórios. Vale
ressaltar que embora os fugitivos do conflito tenham o direito de pedir assistência e
proteção aos países nos quais se instalaram, muitas vezes permanecem ilegais nos países
por medo de discriminação, deportação ou apenas por ignorarem os procedimentos.
3- A INFLUÊNCIA DOS RECENTES ACONTECIMENTOS DO HAITI NO
BRASIL
Após um período de crise política no Haiti, o Conselho de Segurança da ONU
criou a MINUSTAH (Missão das Nações Unidas para a estabilização do Haiti), para
restaurar a ordem no país, sendo o Brasil o líder apontado pela ONU para essa missão
com objetivos pacificadores.
Não obstante, foi em 2010 que se deu início a imigração haitiana no Brasil. Foi
quando a entrada dos haitianos pelo Amazonas começou a ser notada, logo após o
terremoto, que sacudiu violentamente o Haiti, e principalmente a capital, Porto
Príncipe. Segundo o governo do Acre, desde dezembro de 2010, cerca de 130
mil haitianos entraram pela fronteira do Peru com o estado. Já entre janeiro e setembro
do ano de 2011, foram 6 mil e, em 2012, foram 2.318 haitianos que entraram sem
documentos no Brasil12
.
11
Ibdem. 12
Disponível em:
<<http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/reuniao-de-coordenacaoregional-
sobre-a-migracao-de-cidadaos-haitianos-para-a-america-do-sul>> Acessado em: 10/02/2017
Flávia Lana Faria da Veiga
Rev. Eletrônica de Direito Internacional, Ed. Esp. Refugiados, ISSN 1981-9439, vol.20, 2017, p.16-40. 35
Os brasileiros na MINUSTAH, que já vinham trabalhando no país,
intensificaram ainda mais as relações e trabalhos após a tragédia. Foi nessa parceria que
os cidadãos haitianos se aproximaram dos brasileiros, aprendendo inclusive a língua
portuguesa. O que se percebe então é que este intenso convívio despertou o interesse e
simpatia do povo haitiano, que tem visto no Brasil não somente um sinônimo de ajuda,
mas sim de oportunidade. Estima-se que desde o terremoto de 2010 até maio de 2013,
entraram no país ilegalmente cerca de 9.000 haitianos (Dados estimados do Conselho
Nacional de Imigração)13
.
Dessa forma, o governo brasileiro vem, lentamente, estudando e reagindo a esta
nova realidade dos fluxos migratórios. Para dar conta dos fatos dessa migração ilegal, o
governo brasileiro vem trabalhando no sentido de normatizar essa situação. Foi
publicado no Diário Oficial da União, em 13 de janeiro de 2012, a resolução normativa
número 97 do Conselho Nacional de Imigração sobre a concessão de vistos
permanentes a cidadãos haitianos. A Resolução Normativa prevê que, ao nacional do
Haiti, poderá ser concedido o visto permanente por razões humanitárias, condicionado
ao prazo de 5 anos. Como parágrafo único da resolução, ficou caracterizado, como
razões humanitárias, aquelas resultantes do agravamento das condições de vida da
população haitiana, em decorrência do terremoto ocorrido naquele país em 12 de janeiro
de 2010. Os vistos disciplinados por esta Resolução Normativa serão concedidos pelo
Ministério das Relações Exteriores, por intermédio da Embaixada do Brasil em Porto
Príncipe, e serão concedidos a uma média de 100 (cem) concessões por mês e até 1.200
(mil e duzentos) por ano, sem a prévia necessidade de contrato de trabalho estabelecido
no Brasil14
.
Recentemente, em 15 de maio de 2013, o Ministério das Relações Exteriores
divulgou nota sobre a migração de cidadãos haitianos para a América do Sul, dizendo
ser possível comprovar a atuação de redes criminosas no tráfico de migrantes neste
roteiro. Nesse sentido, o governo brasileiro decidiu ampliar ainda mais a concessão de
vistos permanentes especiais para nacionais haitianos, como forma de valorizar a
imigração legal e segura e combater o tráfico de imigrantes15
.
13
Ibdem. 14
Ibidem. 15
Ibidem.
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Ainda não se pode afirmar sobre os reais motivos da escolha do Brasil pelos
haitianos que conseguiram escapar da realidade degradante na qual o país se encontra. O
que é relevante considerar é que, apesar das resoluções normativas e uma tentativa
(mesmo que inicial) do governo de acolher os haitianos, o país ainda não existe
estrutura física ou preparação dos órgãos governamentais (tais como a Polícia Federal
ou o Conselho Nacional de Imigração) para essa acolhida. Os haitianos que já estão no
Brasil, após as dificuldades da viagem, milhares de quilômetros de sofrimento e
angústia, sofrem agora com os entraves burocráticos para a documentação legal e a
chance de viver dignamente.
A situação acima, descrita resumidamente, indica a importância da construção
de uma perspectiva sobre a atual situação dos haitianos no Brasil. É necessário que o
Governo Brasileiro ofereça a devida importância à situação em que esses seres humanos
se encontram, buscando regularizar essa situação. As situações inumanas que os
migrantes muitas vezes vivem, jogados em abrigos, casas de apoio, regiões de fronteiras
ou até mesmo sendo explorados por brasileiros sem escrúpulos que se aproveitam da
vulnerabilidade em que se encontram, são, infelizmente, agravadas ainda mais por
entraves burocráticos e falta de estrutura16
.
Partindo do pressuposto da necessidade de regulamentar a situação atual de
grandes fluxos migratórios para o Brasil, foi publicado o Projeto de Lei 2.516/15, que
cria a Lei das Migrações. A nova lei dispõe sobre os direitos e deveres do imigrante e do
visitante, regula a sua entrada e estada no país e estabelece princípios e diretrizes sobre
as políticas públicas para o migrante.
Entre os princípios da Lei de Migrações está a garantia ao imigrante da condição
de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade e o acesso aos serviços públicos de saúde e
educação, bem como registro da documentação que permite ingresso no mercado de
trabalho e direito à previdência social. Até maio de 2015, a Polícia Federal informou
que o Brasil possuía mais de 1,87 milhão de estrangeiros registrados. É a consolidação
de um crescimento que vem avançando desde 2010, sem considerar a imigração ilegal.
16
Disponível em:
<<http://www.humanas.ufpr.br/portal/conjunturaglobal/files/2013/04/A-Migra%C3%A7%C3%A3o-de-
Haitianos-para-o-Brasil.pdf>> Acessado em: 10/02/2017
Flávia Lana Faria da Veiga
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Segundo a PF, o Estado do Acre registrou até março de 2015 a entrada de pouco mais
de 4,7 mil haitianos17
.
A acolhida humanitária costuma ser a regra no caso dos haitianos, porém a
solução para o problema dos imigrantes no país vai além de uma nova legislação. Não
se pode perder de vista que, para muitos brasileiros, ainda é difícil ver com naturalidade
a chegada de estrangeiros que querem obter direitos comuns aos cidadãos nascidos aqui.
Vencer tal raciocínio é o que poderá impedir o surgimento de movimentos xenófobos e
dar mais clareza a uma imigração que não vai cessar, mas sim crescer nos próximos
anos18
.
CONCLUSÃO
A proteção dos direitos humanos dos migrantes e refugiados tem se tornado uma
questão importante na agenda internacional, pela sua intensidade e diversificação,
inclusive na região latino-americana devido ao grande fluxo migratório de países como
Colômbia e Haiti.
É importante reconhecer o Brasil como um grande receptor de migrantes desses
países, assim como é importante ressaltar a necessidade das normas de migração para
facilitar a regularização daqueles que buscam refúgio no país. Independente das razões
que provocam a saída dos migrantes do seu país de origem, conflitos políticos como na
Colômbia e ambientais como no Haiti, percebe-se uma regra geral de entrada ilegal no
país.
Sendo uma questão global, o fenômeno das migrações forçadas requer grande
preocupação em nível universal, exigindo que a sociedade reconheça alguns dos
aspectos das adversidades enfrentadas por migrantes e sua crescente necessidade de
proteção. A América Latina se tornou um exemplo, mundialmente reconhecido por seus
documentos e recomendações protetores dos direitos humanos dos migrantes e
refugiados. Mas, as normas internas dos países ainda dificultam com questões
burocráticas a legalidade desse conjunto de pessoas.
17
Disponível em: <<http://www.huffpostbrasil.com/2015/06/03/fluxo-haitianos-
brasil_n_7503292.html>> Acessado em: 10/02/2017 18
Ibidem.
O Direito Brasileiro e a Realidade dos Fluxos Migratórios na América Latina: a influência da Colômbia e do Haiti
Rev. Eletrônica de Direito Internacional, Ed. Esp. Refugiados, ISSN 1981-9439, vol.20, 2017, p.1-25. 38
Nesse sentido, o fluxo migratório influencia as políticas brasileiras devido a
quantidade de pessoas que vêm entrando no país. A intensificação dos fluxos
migratórios internacionais das últimas décadas provocou o aumento das orientações dos
Estados a regulamentar e até reduzir a imigração. Os argumentos alegados são os
mesmos do passado: o medo de uma “invasão migratória”, os riscos de desemprego
para os trabalhadores, a perda da identidade nacional e, até, o aspecto do terrorismo,
fato que infelizmente vem aterrorizando o mundo.
Essas rápidas reflexões revelam a complexidade do fenômeno migratório e a
inconsistência da condenação dos migrantes como responsáveis pelas crises sociais dos
países de chegada. É evidente que esse retardamento em produção de normas
migratórias incentiva cada vez mais a migração ilegal e paralelamente difunde o
preconceito e xenofobia.
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* * *
A PROTEÇÃO DOS INTERESSES DOS MIGRANTES E REFUGIADOS À
LUZ DOS TRATADOS INTERNACIONAIS
Fernanda Moura Queiroz Santos de Oliveira1
Júlia Vilela Carvalho2
RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar a proteção dos interesses dos
migrantes e refugiados à luz dos tratados internacionais tomando por base os conceitos e
princípios essenciais à proteção dos direitos dos refugiados: non-refoulement; asilo;
não-discriminação; unidade familiar; compartilhamento de encargos (burden sharing) e
cooperação internacional; direito de deixar o país; não-penalização de refugiados por
entrada ou permanência ilegal nos instrumentos universais de proteção dos direitos dos
refugiados.
PALAVRAS-CHAVE: refugiado, proteção, universal, tratados, princípios
ABSTRACT: The aim of the present paper is to examine the protection of the interests
of the migrants refugees under the scope of international law provisions through the lens
of the essential concepts and principles to granting them effective protection, namely:
non-refoulement; asylum, non-discrimination, family unity, burden sharing and interna-
tional cooperation; right to leave a country and non-penalization of refugees for unlaw-
ful entry and presence on the universal instruments of refugees’ rights protection.
PALAVRAS-CHAVE: refugee, protection, universal, treaties, principles
INTRODUÇÃO
Em um mundo que já conta com um número de refugiados acima de oito
dígitos (incluindo pessoas internamente deslocadas)3, se faz fundamental que os direitos
de tais pessoas sejam regulamentados pelo Direito Internacional.
1 Advogada, graduada em Direito pela Universidade de Brasília. Especialista em Relações Internacionais
pela Universidade de Brasília. Especializanda em Direito Internacional pelo CEDIN. 2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista da Cátedra Jean Monnet
UFMG. 3 GRAHL-MADSEN, Atle. Refugees and Refugee Law in a World in Transition. p. 66.
A Proteção dos Interesses dos Migrantes e Refugiados à luz dos Tratados Internacionais
Rev. Eletrônica de Direito Internacional, Ed. Esp. Refugiados, ISSN 1981-9439, vol.20, 2017, p.41-66. 42
.
A proteção dos direitos dos migrantes e refugiados é um sistema
internacional de proteção que conta com mecanismos globais, regionais e do direito
interno dos Estados, que atuam de maneira complementar e conjunta com vias a dirimir
as violações dos direitos dos seres humanos que se encontrem nessa condição.
Os mecanismos globais são aqueles de proteção universal, que constitui
uma rede maior de participação quantitativa de Estados em defesa do resguardo de tais
direitos. Um grande número de tratados internacionais configura esse ordenamento,
podendo referir-se ao tema de maneira geral ou específica.
Infelizmente, o que se nota é que o Direito Internacional dos Refugiados,
apesar das tentativas de codificação por parte da Assembleia Geral da ONU e do Alto
Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, ainda é bastante incipiente. Os
Estados, em geral, se mostram cada vez mais relutantes a ratificar tratados
internacionais relativos aos direitos dos refugiados.
Podemos citar alguns dos instrumentos responsáveis por essa configuração
universal: Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948); Estatuto do ACNUR
(1950); Convenção Relativa ao Estatuto do Refugiado (1951); Convenção sobre o
Estatuto dos Apátridas (1954); Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia
(1961); Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966); Protocolo Relativo ao
Estatuto dos Refugiados (1967); Declaração das Nações Unidas sobre o Asilo
Territorial (1967); Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais (1976); Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra as Mulheres (1979); Convenção sobre os Direitos da Criança (1989); Princípios
Orientadores relativos aos Deslocados Internos (1998); e a Declaração das Nações
Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007).
De acordo com o Estatuto do Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados (ACNUR), assim como dispõem a Convenção sobre o Estatuto dos
Refugiados de 1951 e seu Protocolo Adicional de 1967, tais instrumentos aplicam-se
apenas àqueles que se encontram fora de seus países de origem com base em um medo
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fundamentado de perseguição4. Percebe-se, no entanto, que muitos dos Estados que são
tradicionalmente receptores de refugiados não são signatários destes tratados5 e que,
mesmo os Estados vinculados à Convenção e ao Protocolo têm seguido uma tendência
interpretativa extremamente restritiva em relação a tais instrumentos6. Desta forma,
torna-se cada vez mais improvável que os milhões de indivíduos que são forçados a
saírem de seus países consigam asilo em outros Estados.
No contexto atual, em um mundo marcado não apenas pelos grandes fluxos
de refugiados oriundos do Oriente Médio, do Chifre da África e do Sudoeste Asiático,
entre outras zonas de conflito, mas também pela incerteza proveniente de
acontecimentos como o Brexit, na Europa, e a eleição de Donald Trump, nos Estados
Unidos, faz-se fundamental deixar claro quais pilares do Direito Internacional dos
Refugiados são vinculantes em relação aos Estados. O presente artigo busca fazer um
estudo compreensivo, assim como uma problematização dos pontos-chave do Direito
Internacional dos Refugiados, tentando dar maior ênfase na identificação de tratados
vinculantes a respeito destes pontos, assim como nas tentativas de codificação ocorridas
em cada área.
O artigo será dividido em três partes. A primeira é a introdução, que aborda
o tema do artigo de uma forma geral. A segunda parte abordará os princípios
considerados pelas autoras como os mais importantes no âmbito dos direitos dos
refugiados: non-refoulement, compartilhamento de encargos, asilo, não-discriminação,
unidade familiar, direito de deixar um país e a não-penalização dos refugiados pela
entrada e permanência ilegais. Nesta seção, será feita uma breve explicação de cada
princípio, na qual constarão o significado de cada um deles, sua presença ou não em
4 Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, Artigo 1(A) (2).
Estatuto do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, § 6(A) (ii). 5 De acordo com dados do ACNUR, até 2011, 148 países haviam ratificado a Convenção sobre
Refugiados de 1951 e/ou o Protocolo Adicional de 1967. No entanto, 40% do total de refugiados sob o
mandato do ACNUR eram hospedados por países não-signatários – entre eles o Líbano, a Jordânia e
Sudão do Sul. 6 A Lei de Estrangeiros da Suíça, de 1980, por exemplo, estabelece que “perseguição só deve ser
entendida como aquela que ameaça a vida ou a liberdade de uma pessoa ou que é de natureza grave”.
Também na Noruega, autoridades têm enfatizado a noção de “agentes de perseguição”, e sustentado que a
perseguição em apenas parte do território do Estado não qualifica um indivíduo como refugiado,
independentemente do quão miseráveis suas condições de vida possam ser em outra parte do mesmo país.
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.
tratados internacionais, as tentativas de codificação relativas a cada princípio e os
desafios na sua implementação. Por fim, a terceira parte será a conclusão que analisa os
desafios atuais da política de refúgio em termos globais para adequação dos Estados à
conformação do cenário atual, à luz dos princípios elencado.
1 Princípios internacionais referentes à proteção dos refugiados
1. Non-Refoulement
Um dos princípios mais bem consolidados do Direito Internacional dos
Refugiados é o princípio do non-refoulement, segundo o qual está vedada a repatriação
involuntária de qualquer refugiado7
. São consideradas formas de refoulement a
recondução sumária dos imigrantes que adentraram o território do país ilegalmente, a
recusa em admitir a entrada de indivíduos sem documentos válidos, entre outras
práticas. Este princípio está positivado no artigo 338 da Convenção sobre o Estatuto dos
Refugiados e foi considerado, pela Resolução 34/60 (1979) da Assembleia Geral das
Nações Unidas, como uma norma de Direito Internacional Geral. Desta forma, a
vedação do refoulement aplica-se não só aos países signatários da Convenção – que, no
geral, são os Estados menos visados por indivíduos buscando asilo –, mas também aos
não-signatários, que hoje recebem cerca de 40% do total de refugiados no mundo9.
O princípio do non-refoulement foi formulado durante o século XIX, junto
ao princípio da não-extradição de presos políticos, mas apenas foi formalmente
reconhecido como uma obrigação durante a redação da Convenção de 1951. A
7 GRAHL-MADSEN, Atle. Refugees and Refugee Law in a World in Transition. Disponível em
<www.heinonline.com>. Acesso em: 15/01/2017. 8 Art. 33 - Proibição de expulsão ou de rechaço (“refoulement”)
1. Nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou rechaçará (“refouler”), de maneira alguma,
um refugiado para as fronteiras dos territórios em que a sua vida 16 ou a sua liberdade seja ameaçada em
virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, do grupo social a que pertence ou das suas
opiniões políticas.
2. O benefício da presente disposição não poderá, todavia, ser invocado por um refugiado que
por motivos sérios seja considerado um perigo para a segurança do país no qual ele se encontre ou que,
tendo sido condenado definitivamente por crime ou delito particularmente grave, constitui ameaça para a
comunidade do referido país. 9 UNHCR. The State of the World’s Refugees, 2012,p.10.
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Convenção não permite reservas ao Artigo 3310
, demonstrando a importância do
princípio do non-refoulement para o Direito Internacional dos Refugiados. O Alto
Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) ressaltou que tal princípio
é de “fundamental importância” e é devido a quaisquer indivíduos que se encaixem na
definição do artigo 1º da Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados, incluindo aqueles
que aguardam uma decisão a respeito de seu status de refugiado.11
Ainda de acordo com o ACNUR, o non-refoulement é aplicável a qualquer
forma de remoção forçada, inclusive deportação, extradição, expulsão, transferências
informais ou “rendições” e não-admissão na fronteira.12
Desde então, tal perspectiva foi
corroborada por diversos instrumentos, como a Convenção da Organização de Unidade
Africana (OUA) – em seu artigo 14 –, o Conselho de Ministros da União Europeia – em
sua resolução (67)14 – e a Assembleia Geral das Nações Unidas – no artigo 3.1 de sua
Resolução sobre Asilo Territorial.
Apesar de ser uma garantia amplamente reconhecida pela comunidade
internacional, o non-refoulement encontra um grande desafio em sua aplicação: a ampla
margem de interpretação garantida aos Estados pela sua redação na Convenção sobre o
Estatuto dos Refugiados. Enquanto Estados da África e da América Latina tendem a
garantir o asilo a quaisquer indivíduos que fogem de conflitos e/ou violência, os países
da Europa têm requerido uma conexão específica com a Convenção para a garantia de
asilo13
.
O artigo 1º da Convenção sobre Refugiados dispõe o seguinte:
Art. 1º - Definição do termo "refugiado"
10
A Convenção estabelece em seu artigo 42 que “no momento da assinatura, da ratificação ou da adesão,
qualquer Estado poderá formular reservas aos artigos da Convenção, outros que não os arts. 1º, 3º, 4º, 16
(1), 33 e 36 a 46 inclusive.” 11
ExCom General Conclusion on International Protection Nº 68 (1992), § (f); ExCom General Conclu-
sion on International Protection Nº 71 (1993), § (g); ExCom General Conclusion on International Protec-
tion Nº 74 (1994), § (g); ExCom General Conclusion on International Protection Nº 79 (1996), § (j);
ExCom General Conclusion on International Protection Nº 81 (1997), § (i), ExCom Conclusion Nº 82
(1997) on Safeguarding Asylum, § (i). Disponíveis em <www.unhcr.org>. Acesso em 12/02/2017. 12 ACNUR. Advisory Opinion on the Extraterritorial Application of Non-Refoulement Obligations under
the 1951 Convention relating to the Status of Refugees and its 1967 Protocol. §7. Disponível em
<http://www.refworld.org/docid/45f17a1a4.html>. Acesso em 13/02/2017 às 17:00h. 13
UNHCR. The State of the World’s Refugees. 2012. p.10.
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.
A. Para os fins da presente Convenção, o termo "refugiado" se
aplicará a qualquer pessoa:
(...)
2) Que, em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de
janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça,
religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra
fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse
temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem
nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência
habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido
ao referido temor, não quer voltar a ele14
.
Com base em uma interpretação extremamente restritiva, diversos países
concedem o status de refugiado apenas àqueles que se encaixam estritamente nos
requisitos ditados pela Convenção, e utilizam o termo “perseguição” em um sentido
também extremamente restrito, apenas como a ameaça à vida. Esta interpretação
diminui significativamente as chances de diversos indivíduos obterem o status de
refugiados, e sujeita tais indivíduos ao risco de sofrerem refoulement.
Outra interpretação extremamente perigosa do princípio de non-refoulement
ocorreu no caso Sale v. Haitian Centers Council, Inc et al15
, julgado pela Suprema
Corte dos Estados Unidos, em 2 de março de 1993. Neste julgamento, a Suprema Corte
endossou uma visão que já era praticada pelo executivo norte-americano, de que o non-
refoulement não teria efeitos extraterritoriais, e seria aplicável estritamente à exclusão
de indivíduos que já se encontravam em território norte-americano. Desde então, países
como Austrália, Grécia e Itália aceitaram esta postura e começaram a executar práticas
de interceptação marítima16
. No entanto, as autoras do presente artigo, assim como o
ACNUR17
, são da posição de que o non-refoulement, como outras obrigações de
14
Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951. Disponível em:
<http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_
Refugiados.pdf>. Acesso em: 03/02/2017. 15
ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Suprema Corte dos Estados Unidos. Caso nº. 92-344, Chris
SALE, Acting Commissioner, Immigration and Naturalization Service, et al., Petitioners v. Haitian Cen-
ters Council, Inc., et al., 2 de março de 1993. 16
HURWITZ, Agnès. The Collective International Responsibility of States to Protect Refugees. Oxford:
Oxford University Press, 2009. p. 178. 17
No parágrafo 26 de sua Advisory Opinion on the Extraterritorial Application of Non-Refoulement Obli-
gations under the 1951 Convention relating to the Status of Refugees and its 1967 Protocol, o ACNUR
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direitos humanos, se aplica a todas as regiões onde o Estado possui jurisdição, como
suas fronteiras, o alto-mar e até mesmo, eventualmente, o território de outros Estados.
A universalidade do non-refoulement também levou diversos outros países,
especialmente os ocidentais, a criarem mecanismos de controle de fronteiras, como
interceptação marítima, push-backs, requerimento de vistos, fechamento de fronteiras e
até mesmo sanções a transportadores levando estrangeiros sem a devida documentação.
Tais medidas visam a impedir a entrada de refugiados, uma vez que a após sua entrada
eles não podem ser enviados de volta ao país onde sofriam perseguições, e devem ter
seus direitos humanos respeitados.
Tendo em vista a situação supracitada, o ANUR criou um Projeto de
Convenção sobre Asilo Territorial, que afirma que “um Estado deve garantir asilo
contra perseguição a um indivíduo necessitado de asilo que se encontre em seu
território, contanto que não tenha uma justificativa para recusá-lo”18
. Este projeto, no
entanto, não foi bem-sucedido. A verdade é que os Estados que são tradicionalmente
receptores de refugiados não possuem interesse em adotar uma interpretação ampla do
direito de asilo e, portanto, a uniformização deste direito entre todos os países viria a um
custo muito alto para os refugiados, na medida em que tenderia a ser bastante restritiva.
2. Compartilhamento de Encargos
Outro princípio muito citado quando se trata do Direito Internacional dos
Refugiados é o do compartilhamento de encargos. Este princípio consiste basicamente
em um modo de cooperação internacional, de forma que toda a comunidade de Estados
possa partilhar o ônus e a sobrecarga gerada por grandes fluxos de refugiados,
especialmente para países em desenvolvimento. Este princípio busca não apenas aliviar
chega à conclusão que “A obrigação exposta no artigo 33(1) da Convenção de 1952 é sujeita a restrições
geográficas apenas em relação a países aos quais o refugiado não pode ser enviado, não em relação ao
local do qual ele vem. A aplicabilidade extraterritorialidade non-refoulement é clara a partir do próprio
texto do Artigo 33(1), que enuncia uma proibição simples: ‘Nenhum dos Estados Contratantes expulsará
ou rechaçará (“refouler”), de maneira alguma, um refugiado para as fronteiras dos territórios em que a sua
vida ou a sua liberdade seja ameaçada...’ 18
ACNUR. Projeto de Declaração sobre o Asilo Territorial. 1974. Disponível em
<http://www.unhcr.org/excom/excomrep/3ae68c023/note-international-protection-addendum-1-draft-
convention-territorial-asylum.html>. Acesso em: 20/01/2017.
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.
o ônus que recai sobre os Estados, mas também propiciar melhores condições para os
indivíduos que buscam asilo, e garantir o respeito pelos seus direitos humanos.
A forma mais comum de compartilhamento de encargos é por meio de
transferências financeiras de países desenvolvidos para países em desenvolvimento.
Porém, atualmente têm surgido outras abordagens para este princípio, como o suporte
técnico e o incentivo à capacitação19
. Por fim, a maneira mais radical e, portanto, menos
popular de partilhar o ônus, é a partilha física, por meio da admissão, por meio de
processos de reassentamento, de refugiados advindos de países de primeiro refúgio. Tais
Estados, sobrecarregados pelos grandes contingentes de refugiados, pedem que ocorra a
transferência de tais indivíduos para um outro país em condições de recebê-los. Até que
ocorra esta transferência, muitos indivíduos recebem um status de refugiados tipo B, ou
refugiados de facto, o que é preocupante na medida em que não são claros os direitos
dos quais estas pessoas gozam20
.
O princípio do compartilhamento de encargos, no entanto, não tem sido
aplicado com a eficácia devida – especialmente no caso da partilha física –. Isso porque,
não há uma obrigação explícita de compartilhamento de encargos em nenhuma
convenção de direitos humanos ou de refugiados, e devido à prática estatal não
conclusiva a este respeito. Um exemplo da dificuldade na aplicação do princípio do
compartilhamento de encargos é o fenômeno dos “refugiados em órbita”. Ao chegar a
um país de primeiro refúgio, um indivíduo reclamando o status de refugiado goza do
direito de ter sua reivindicação avaliada. Uma vez concedido tal status, ele passa a ser
protegido pela provisão de non-refoulement e é notificado se ele pode permanecer no
país de primeiro refúgio ou se ele deve buscar asilo em outro Estado. Ocorre que,
muitas vezes, ao pedirem asilo em outros Estados, refugiados têm seus pedidos
recusados com base na afirmação de que outro país deve ser considerado seu “país de
primeiro asilo”. Uma opção que foi encontrada para a situação de tais “refugiados em
órbita” é o asilo temporário, que, apesar de respeitar o princípio do non-refoulement e
19
HURWITZ, Agnès. The Collective International Responsibility of States to Protect Refugees. Oxford:
Oxford University Press, 2009. p. 69 20 GRAHL-MADSEN, Atle. Refugees and Refugee Law in a World in Transition. p. 69. Disponível em
<www.heinonline.com>. Acesso em: 15/01/2017.
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aliviar o ônus dos Estados que não têm condições de lidar com os fluxos massivos de
refugiados que recebem, não representa uma solução definitiva para o problema dos
indivíduos buscando asilo.
É importante notar que diversos países de primeiro refúgio são Estados em
desenvolvimento, e não possuem condições de garantir asilo a todos os refugiados que
recebem. No entanto, os países economicamente mais desenvolvidos, que teriam
condições de concretizar o compartilhamento de encargos, muitas vezes se recusam a
receber tais indivíduos, relegando estes a campos de refugiados que não os permitem
viver com dignidade e nem ter seus direitos humanos respeitados. Ademais, ainda em
relação aos países desenvolvidos, têm-se observado uma política de utilizar o
compartilhamento de encargos como subterfúgio para enviar grandes contingentes de
refugiados a países que não possuem condições de recebê-los. O compartilhamento de
encargos não deve ser usado para sobrecarregar mais ainda países em desenvolvimento.
Além disso, esse princípio não justifica a conclusão de acordos que promovem o
reassentamento de refugiados de Estados desenvolvidos e capazes de recebê-los para
países nos quais seus direitos humanos dificilmente serão respeitados.
Apesar de haver diversos documentos e guias do ACNUR a respeito do
tema21
, o princípio do compartilhamento de encargos ainda não foi codificado em
nenhum tratado existente, e também não aparece decisões dos tribunais internacionais a
respeito de refugiados. Apesar de diversas tentativas dos países em desenvolvimento de
codificar o princípio do compartilhamento de encargos, o único país ocidental a pedir
uma partilha mais equitativa do ônus foi a Alemanha, em 1998. Um representante da
União Europeia chegou inclusive a afirmar que o compartilhamento de encargos não
seria um princípio legal, mas meramente político, desprovido de caráter vinculante. Tal
declaração foi realizada durante uma reunião do Comitê Executivo do ACNUR em
1998, e não encontrou objeções por nenhum dos outros representantes, o que leva a
21
Disponíveis em <http://www.unhcr.org/>.
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.
concluir que esta visão seja aceita pelos demais Estados, por mais que os países em
desenvolvimento a lastimem22
.
3. Asilo
O instituto do asilo é utilizado na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, que em seu artigo 14, §1º, estabelece que “[t]oda pessoa sujeita a perseguição
tem o direito de procurar e de beneficiar asilo em outros países”. A Declaração foi um
marco histórico para os direitos humanos, ramo do Direito Internacional que está
intimamente ligado ao Direito dos Refugiados23
. Adotada pela resolução 217 A da
Assembleia Geral das Nações Unidas, em dezembro de 1948, a Declaração é
considerada um patamar de realizações em termos de direitos humanos para todos os
povos de todas as nações.
No entanto, a Declaração Universal de Direitos Humanos não estabelece um
direito de receber asilo, apenas de buscá-lo, uma vez que muitos Estados viam o direito
de receber asilo como uma interferência indevida em sua soberania. Diante disso, os
países presentes durante sua redação tiveram que alcançar um meio-termo entre os
Estados que exigiam o reconhecimento de um direito individual ao asilo e aqueles que
viam a concessão do asilo como um aspecto de sua soberania territorial.
A questão do direito ao asilo foi abordada diversas vezes ao longo dos anos,
pela Comissão de Direito Internacional (CDI), pela Comissão de Direitos Humanos,
pela Assembleia Geral (AGNU) e pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os
Refugiados. A Convenção sobre Refugiados de 1951 menciona o direito ao asilo em seu
preâmbulo e a AGNU emitiu, em 1967, uma Declaração sobre o Asilo Territorial, que
recomenda a observância dos seguintes princípios em relação ao instituto do asilo:
Artigo 1º §1. O asilo concedido por um Estado, no exercício de sua
soberania, a pessoas que tenham justificativa para invocar o "artigo
22
HURWITZ, Agnès. The Collective International Responsibility of States to Protect Refugees. Oxford:
Oxford University Press, 2009. p. 162. 23
COLES, Gervase. "Refugees and Human Rights", Bulletin of Human Rights, v.1, 1991, p.63; COLES,
Gervase. "The Human Rights Approach to the Solution of the Refugee Problem: A Theoretical and Prac-
tical Enquiry”, p.216-217. In NASH, Alan Eric (ed.). Human Rights and the Protection of Refugees under
International Law, Nova Scotia: Institute for Research, 1988.
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14" da Declaração Universal dos Direitos Humanos, incluindo as
pessoas que lutam contra o colonialismo, deverá ser respeitado por
todos os outros Estados.
§2. O direito de buscar o asilo e de desfrutá-lo não poderá ser
invocado por qualquer pessoa sobre a qual exista suspeita de ter
cometido um crime contra a humanidade, conforme definido nos
instrumentos internacionais elaborados para adotar disposições sobre
tais crimes.
§3. Caberá ao Estado que concede o asilo qualificar as causas
que o motivam.
Artigo 2º §1. A situação das pessoas às quais se refere o "§1 do artigo
1º" interessa à comunidade internacional, sem prejuízo da soberania
dos Estados e dos propósitos e princípios das Nações Unidas.
§2. Quando um Estado encontrar dificuldades em conceder ou
continuar concedendo asilo, os Estados, individual ou conjuntamente,
ou através das Nações Unidas, deverão considerar, em espírito de
solidariedade internacional, medidas apropriadas para aliviar aquele
Estado.
Artigo 3º §1. Nenhuma pessoa a qual se refere o "§1 do artigo 1º" será
sujeita a medidas tais como a recusa de admissão na fronteira ou, se já
tiver entrado no território onde busca o asilo, a expulsão ou a
devolução compulsória a qualquer Estado onde possa ser submetida a
perseguição.
§2. Poderão existir exceções ao princípio anterior apenas por
motivos fundamentais de segurança nacional ou para salvaguardar a
população, como no caso de uma afluência em massa de pessoas.
§3. Se um Estado decidir em algum caso que está justificada
uma exceção ao princípio estabelecido no "§1 deste artigo", deverá
considerar a possibilidade de conceder à pessoa interessada, nas
condições que julgar apropriadas, uma oportunidade, em forma de
asilo provisório ou de outro modo, de ir para outro Estado.
Artigo 4º Os Estados que concedem asilo não permitirão que as pessoas
que receberam o asilo se dediquem a atividades contrárias aos
propósito e princípios das Nações Unidas24
.
Apesar de seu caráter recomendatório, a Declaração da AGNU é um dos
principais documentos a respeito do asilo territorial, uma vez que a CDI declarou, após
a Conferência sobre o Asilo Territorial de 1977, que o direito ao asilo “não parece, até o
24 Assembleia Geral das Nações Unidas. Declaração sobre o Asilo Territorial. 1967. Disponível em
<http://hrlibrary.umn.edu/instree/v4dta.htm>. Acesso em: 01/02/2017 às 19:00h.
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.
presente momento, requerer uma consideração ativa [pela Comissão] no futuro
próximo”25
. Com isso, a temática do asilo foi retirada da pauta da Comissão. Nesse
sentido, o ACNUR redigiu um “Projeto de Convenção sobre o Asilo Territorial” e o
enviou a todos os Estados-membros da ONU para obter suas considerações. Apesar de
ter obtido respostas positivas de 75 Estados – dentre os 90 que enviaram respostas – em
relação à necessidade de fortalecimento das leis de asilo, o projeto não foi transformado
em uma Convenção, devido à discordância entre os Estados em relação a quais seriam
as normas que governariam a instituição do asilo, que, atualmente, é tratada de maneira
extremamente díspar em cada Estado.
Atualmente, há um reconhecimento maior dos direitos e interesses
individuais protegidos pelo Direito Internacional – incluindo o direito a buscar asilo em
outros países –, assim como maiores garantias para os refugiados, provenientes do
amplo reconhecimento do princípio do non-refoulement. Entretanto, apesar de todos
estes avanços, a avaliação do direito ao asilo permanece sob a discricionariedade de
cada Estado, e os critérios utilizados pelos países para avaliar se o asilo deve ou não ser
concedido são extremamente díspares, criando grande insegurança jurídica. Neste
sentido, mesmo tendo em vista o caráter costumeiro do artigo 14 da Declaração
Universal de Direitos Humanos, muitos Estados usam de subterfúgios, muitas vezes
ilegais, para negar asilo àqueles que necessitam. Podemos destacar, a interceptação
marítima de migrantes e a rejeição de pedidos de asilo com base no fato de que o
requerente poderia, deveria ou já tentou reivindicar asilo em outro país que é
considerado como “seguro”. Fica claro, portanto, que o direito ao asilo ainda possui um
longo caminho a percorrer antes de sua efetivação plena.
O conceito de asilo também está intimamente ligado ao princípio do non-
refoulement, como afirmam Goodwin-Gill e McAdams:
O que não pode ser ignorado, no entanto, é a estreita relação existente
entre a questão do status de refugiado e o princípio do non-
refoulement, por um lado, e o conceito de asilo, por outro. Esses três
25 Assembleia Geral das Nações Unidas. Declaração sobre o Asilo Territorial. 1967. Disponível em
<http://hrlibrary.umn.edu/instree/v4dta.htm>. Acesso em: 01/02/2017 às 19:00h.
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elementos são, por assim dizer, todos os elos da cadeia entre a
emigração do refugiado e a obtenção de uma solução permanente26
.
O princípio do non-refoulement é universalmente considerado como vinculante a
todos os países, assim que é garantido o status de refugiado. Apesar disso, os Estados
continuam a usar de medidas evasivas para evitar que aqueles que buscam asilo sejam
admitidos em seu território, se isentando da responsabilidade sobre as grandes massas
de refugiados.
4. Não-discriminação
Os diplomas internacionais do sistema universal de proteção dos refugiados
e pessoas migrantes são, em grande parte, compostos por tratados de não-discriminação
de minorias. Essa característica permite a identificação de uma relação de grande
proximidade entre a condição de migrante e as diversas formas de discriminação, que
não somente podem ter sido as responsáveis por desencadear o processo de migração,
como também configuram maior vulnerabilidade durante o processo em si.
A questão da vulnerabilidade que se desenvolve durante o processo de
migração é mais facilmente perceptível e, inclusive, mais abordada pelos estudos do
tema. Contudo, algumas pesquisas que se dedicam a uma análise mais profunda
permitem concluir que a característica que enseja a discriminação pode e é também
causa para dar início à necessidade de migrar e sair em busca de refúgio. É uma questão
que assola os diversos âmbitos da proteção das pessoas migrantes.
O primeiro exemplo que se pode citar é o do combate à condição dos
apátridas. Em geral, a privação de nacionalidade está relacionada a fatores de natureza
técnica e jurídica. O direito a uma nacionalidade encontra-se salvaguardado pelo artigo
15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, e está amplamente
relacionado com o princípio da não-discriminação. Isso porque a perda ou não
atribuição de uma nacionalidade tem um forte traço de discriminação em razão de
26
GOODWIN-GILL, Guy. McADAM, Jane., The Refugee in International Law. 3ªed. Oxford: Oxford
University Press, 2007. p. 357.
A Proteção dos Interesses dos Migrantes e Refugiados à luz dos Tratados Internacionais
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.
gênero, raça, etnia, religião, idioma, necessidades especiais ou de outra origem.27
Assim, a discriminação representa um aspecto bastante relevante para a situação de
deslocamentos internos.28
No Direito Internacional do Mar, a obrigação de resgatar pessoas é realizada
sob vias absolutas sem incidência de análise de exceções ou distinções a respeito da
situação legal das pessoas em risco. A proteção pelo princípio da não-discriminação
transcende o caráter pessoal, sendo também aplicada em relação ao impedimento
temporário de passagem inocente de embarcações estrangeiras no mar territorial, a qual
somente pode ocorrer mediante publicidade e não-discriminação.29
Sabendo que todos
os princípios de proteção do indivíduo em situação de refúgio se aplicam às pessoas sob
a jurisdição de determinado Estado, esses princípios também se estendem ao mar
territorial.30
Além das razões de origem discriminatória que desencadeiam o movimento
migratório e daquelas que são examinadas durante o processo de migração para
reconhecimento da situação jurídica das pessoas nessa condição, a questão da
discriminação está ainda presente após a garantia do refúgio. Essa terceira fase diz
respeito à real inserção que um indivíduo é capaz de alcançar na sociedade do país de
destino. Os solicitantes de refúgio, devem ser tratados de acordo com os padrões
estabelecidos para a proteção dos direitos humanos. Isso equivale a dizer que os Estados
devem proporcionar um tratamento livre de discriminação e assegurar os direitos de
acesso à educação, de assunção de postos de emprego, de liberdade de movimento e de
assistência em geral, inclusive na obtenção de documentos de identificação pessoal. A
não observância desses direitos constitui a discriminação da pessoa migrante em função
27
Relatório de Progresso sobre Consultas informais sobre a Proteção Internacional a todos os que
necessitam. EC/47/SC/CRP.27,(ACNUR, 1997) III(6)(i). 28
KUMIN, Judith. (org. 2012) 29
artigo 25(3) da Convenção das Nações Unidas Sobre Direito do Mar de 1982: O Estado costeiro pode,
sem fa er discriminação de direito ou de fato entre navios estrangeiros, suspender temporariamente em
determinadas reas do seu mar territorial o exercício do direito de passagem inocente dos navios
estrangeiros, se esta medida for indispens vel para proteger a sua segurança, entre outras para lhe permitir
proceder a exercícios com armas. Tal suspensão só produ ir efeito depois de ter sido devidamente
tornada p blica. 30
BARNES, Richard. (2004) Refugee Law at Sea. Oxford: Oxford University Press.
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propriamente desta condição e isso depende, em grande medida, das políticas do Estado
que recebe essas pessoas.
Embora a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 estabeleçam que os
refugiados devem ser tratados de maneira similar, sem discriminação pelo país de asilo,
a própria existência de instrumentos regionais de regulação do tema constituem uma
diferença nos padrões de recebimento dos refugiados nas diferentes regiões. Isso
acarreta, por fim, uma flexibilização do próprio conceito de refugiado e gera óbices na
implementação de uma política concisa para resguardo de seus direitos.
As consequências são conhecidas e atualmente assolam diversas regiões do
globo, algumas em caráter mais severo. Isso cria uma ordem migratória de segunda
ordem, na qual o solicitante de refúgio não só tem a preocupação de deixar o país de
origem que lhe oferece risco, como também fica restrito em relação ao destino, criando
uma sensação hostilidade e não pertencimento não só no ponto de partida, mas também
no país de destino. Essa realidade é contrária a qualquer garantia de proteção da pessoa
em situação de refúgio e é um dos grandes problemas da atualidade ligado ao tema, daí
a importância do fortalecimento dos instrumentos universais e dos sistemas globais e
regionais de proteção.
5. Unidade Familiar
O princípio da unidade familiar, como o nome sugere, visa a resguardar a
permanência da unidade familiar entre as pessoas em situação de vulnerabilidade e
demais membros de sua família. O direito à família está resguardado pelo artigo 17 do
Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos31
e pela Declaração Universal dos
Direitos Humanos, desde seu preâmbulo até o corpo do texto, sobretudo no artigo
XVI,32
logo após o XIV que preceitua sobre a perseguição e o asilo.
Do que se depreende das razões que desencadeiam o processo migratório e
de solicitação de refúgio, pode-se concluir que em muitos casos elas não são
31
O artigo 17 afirma o seguinte: “Ninguém poderá ser objetivo de ingerências arbitrárias ou ilegais em
sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais às
suas honra e reputação”. 32
O artigo preceitua .A família o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito
proteção desta e do Estado.
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particulares a somente um dos membros da família. É, inclusive, provável que o motivo
seja compartilhado por todos daquela unidade familiar.
E, ainda que assim não o seja inicialmente, o direito internacional já
reconheceu em outros contextos a extensão de determinado estado a membros da
família, em virtude de vínculo.33
É o caso da interpretação de alguns tribunais
internacionais que entendem por vítima não só aquele que pessoalmente experimentou
as violações, mas também seus familiares. São justamente casos que envolvem o Estado
como garantidor presumido dos direitos em questão. Dessa maneira, a situação de
perseguição, ainda que experimentada por apenas um indivíduo da célula familiar, afeta
a todos os indivíduos que nela se encontram.
A definição do conceito de refugiado por si só já apresenta algumas
dificuldades no que tange à atribuição do estatuto a um único indivíduo. Em termos de
unidade familiar, os desafios são ainda mais notáveis e dizem respeito ao objeto e à
extensão da aplicação do princípio.
O princípio da unidade familiar estende o tratamento previsto na Convenção
de 1951, em função do vínculo familiar, a outras pessoas não inicialmente resguardadas
por ela. Para tal, ressalta também o instituto da cooperação entre Estados.34
Isso é
bastante importante, pois o conceito de refugiado tal qual exposto na Convenção de
1951 não incorpora o conceito de unidade familiar. Ele somente aparece na parte final.
Contudo, na prática internacional e em virtude da cooperação, a grande maioria dos
Estados tem observado os critérios sugeridos por aquele tratado, que incluem situações
específicas de vulnerabilidade familiar: quando envolvem criança ou a pessoa
responsável pela manutenção da família.
Para melhor definir a quem o conceito de refugiado se aplica e em quais
circunstâncias, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) se
engajou em refinar este conceito por meio da publicação de documentos doutrinários
que esclarecem e aprofundam diversos dos conceitos previstos na Convenção e no
Protocolo.
33
E.g.: Caso Villagran Morales e outros v. Guatemala (Corte Interamericana de Direitos Humanos);
Caso Kurt v. Turquia (Tribunal Europeu de Direitos Humanos) 34
A Convenção de 1951 apresenta o termo várias vezes em seu preâmbulo e, também, em seu artigo 35.
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No marco do princípio da unidade familiar especificamente, o ACNUR
esmiuçou a intenção do legislador por meio do anual de Procedimentos e rit rios
para a eterminação da ondição de efugiado de Acordo com a onvenção de 1951 e
o Protocolo de 1967 relativos ao Estatuto dos Refugiados, dedicando o capítulo VI à
explicação do princípio35
. Esse Manual apresenta as condições mínimas para que a
unidade familiar seja resguardada. Nesse sentido, duas situações específicas devem ser
observadas: i) caso o chefe de família tenha preenchido os requisitos para ser admitido
em determinado Estado como refugiados, essa condição se estende a toda a sua família;
ou ii) a condição de refugiado deve ser aplicada para assegurar a proteção da criança ou
adolescente. Essas informações constaram da Ata Final da Conferência que adotou a
Convenção de 1951.
Os padrões mínimos que se referem ao primeiro caso incluem, pelo menos,
o cônjuge e os filhos menores de idade. Na prática essa proteção se aplica também a
demais dependentes, aqueles que não são presumidos seja por grau de parentesco ou
idade e é sempre exercido em favor do dependente, nunca contra ele. No caso dos
menores, o instituto do refúgio se aplica como meio para impedir a separação da criança
de sua referência adulta, tenham eles grau de parentesco ou não. O refúgio também será
aplicado nos casos de tutela e adoção, desde que com especial atenção.36
Ainda que a unidade familiar seja rompida, o princípio da unidade familiar
continua valendo na maioria dos casos. Ressalvados determinados casos de divórcio ou
morte dotados de cláusula de cessação do refúgio. O Manual de Procedimentos e
Crit rios para a eterminação da ondição de efugiado de Acordo com a onvenção
de 1951 e o Protocolo de 1967 relativos ao Estatuto dos Refugiados preceitua:
35 anual de Procedimentos de rit rios para a eterminação da ondição de efugiado de Acordo com
a onvenção de 1951 e o Protocolo de 1967 Relativos ao Estatuto dos Refugiados. ACNUR. (Reedição
de 2013). Disponível em:
http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/Publicacoes/2013Manual_de_procedimentos_
e_criterios_para_a_determinacao_da_condicao_de_ refugiado.pdf. 36 anual de Procedimentos de rit rios para a eterminação da ondição de efugiado de Acordo com
a onvenção de 1951 e o Protocolo de 1967 Relativos ao Estatuto dos Refugiados. ACNUR. (Reedição
de 2013). Disponível em:
http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/Publicacoes/2013Manual_de_procedimentos_
e_criterios_para_a_determinacao_da_condicao_de_ refugiado.pdf.
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.
. princípio da unidade familiar não opera apenas quando todos
os membros da família se tornam refugiados simultaneamente.
princípio se aplica, igualmente, aos casos em que a unidade familiar
foi temporariamente quebrada pela fuga de um ou mais dos seus
membros.
. empre que a unidade familiar do refugiado for modificada pelo
divórcio, separação ou morte, os dependentes a quem foi reconhecida
a condição de refugiado com base no princípio da unidade familiar
mant m essa condição a menos que sejam abrangidos por uma
cl usula de cessação ou se não tiverem outras ra ões, al m das de
conveni ncia pessoal, para desejarem manter a condição de refugiado
ou se eles próprios não quiserem continuar a ostentar a condição de
refugiados.37
No cenário internacional, é importante que a grande maioria dos Estados
observem esse princípio, a despeito de ele não integrar a definição do conceito de
refúgio. O princípio da unidade familiar deve ser respeitado independentemente de
assinatura da Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967, precisamente por constar de
outros instrumentos de direitos humanos.
6. Direito a deixar um país
O direito a deixar um país diz respeito ao direito do cidadão de ir e vir. O
direito de sair de um Estado abrange qualquer país e inclui aquele do qual o indivíduo é
nacional. A Declaração Universal dos Direitos Humanos preceitua que
Artigo 13°
.Toda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a sua
resid ncia no interior de um Estado.
.Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra,
incluindo o seu, e o direito de regressar ao seu país.
Outros diplomas do sistema universal de proteção dos direitos humanos
possuem essa previsão. Dentre eles, podemos citar: o Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos38
, a Convenção das Nações Unidas para a Eliminação de Todas as
37
Idem 38
Artigo 12:
1. Toda pessoa que se ache legalmente no território de um Estado terá o direito de nele livremente
circular e escolher sua residência.
2. Toda pessoa terá o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive de seu próprio país.
3. os direitos supracitados não poderão em lei e no intuito de restrições, a menos que estejam previstas em
lei e no intuito de proteger a segurança nacional e a ordem, a saúde ou a moral pública, bem como os
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Formas de Discriminação Racial39
, Convenção sobre os direitos da Criança40
, entre
outros. Esse instituto também existe em instrumentos regionais41
.
Esse direito deve ser exercido em sua plenitude, de maneira que várias
medidas podem ser consideradas como desrespeito ao princípio do direito a deixar um
país. A primeira seria a de existir legislação que imponha penas a nacionais que queiram
sair do país de origem ou permanecer fora dele. Segundo o Manual do ACNUR de
Procedimentos de rit rios para a eterminação da ondição de Refugiado, essas
restrições podem até mesmo assumir a forma de perseguição, justificando a aplicação
do instituo do refúgio nos termos da Convenção de 1951:
ilegal ou
de origem
. A legislação de certos Estados impõe penas severas para os
nacionais que saem do país de modo ilegal ou que permanecem no
exterior sem autori ação. uando h ra ão para acreditar que uma
direitos e liberdades das demais pessoas, e que sejam compatíveis com os outros direitos reconhecidos no
presente Pacto.
4. Ninguém poderá ser privado arbitrariamente do direito de entrar em seu próprio país. 39
Artigo V
De conformidade com as obrigações fundamentais enunciadas no artigo 2, Os Estados Partes
comprometem-se a proibir e a eliminar a discriminação racial em todas suas formas e a garantir o direito
de cada uma à igualdade perante a lei sem distinção de raça , de cor ou de origem nacional ou étnica,
principalmente no gozo dos seguintes direitos:
[…]
d) Outros direitos civis, principalmente,
i) direito de circular livremente e de escolher residência dentro das fronteiras do Estado;
ii) direito de deixar qualquer pais, inclusive o seu, e de voltar a seu país […] 40
Artigo 10:
1. De acordo com a obrigação dos Estados Partes estipulada no parágrafo 1 do Artigo 9, toda solicitação
apresentada por uma criança, ou por seus pais, para ingressar ou sair de um Estado Parte com vistas à
reunião da família, deverá ser atendida pelos Estados Partes de forma positiva, humanitária e rápida. Os
Estados Partes assegurarão, ainda, que a apresentação de tal solicitação não acarretará conseqüências
adversas para os solicitantes ou para seus familiares.
2. A criança cujos pais residam em Estados diferentes terá o direito de manter, periodicamente, relações
pessoais e contato direto com ambos, exceto em circunstâncias especiais. Para tanto, e de acordo com a
obrigação assumida pelos Estados Partes em virtude do parágrafo 2 do Artigo 9, os Estados Partes
respeitarão o direito da criança e de seus pais de sair de qualquer país, inclusive do próprio, e de ingressar
no seu próprio país. O direito de sair de qualquer país estará sujeito, apenas, às restrições determinadas
pela lei que sejam necessárias para proteger a segurança nacional, a ordem pública, a saúde ou a moral
públicas ou os direitos e as liberdades de outras pessoas e que estejam acordes com os demais direitos
reconhecidos pela presente convenção. 41 onvenção Americana sobre ireitos umanos ( ), Artigo Protocolo n de Estrasburgo em
que se reconhecem certos direitos e liberdades al m dos que j figuram na onvenção Europeia de
ireitos do omem e no Protocolo adicional onvenção (1963), Artigo 2; Carta Africana dos Direitos
Humanos e dos Povos (1981), Artigo 12.
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.
pessoa, em virtude da sua partida ilegal ou perman ncia no exterior
sem autori ação, passível de tais penas, o seu reconhecimento como
refugiado se justifica quando for possível demonstrar que os motivos
para deixar o país ou permanecer fora dele estão relacionados com as
ra ões enumeradas no Artigo A ( ) da onvenção de 1951[...].42
Na literatura, os casos conhecidos desse contexto são os de países do bloco
comunista e as conhecidas restrições de políticas migratórias e de saída. Ainda hoje,
essas restrições são aplicadas em alguns países, tais como Cuba, Coréia do Norte, entre
outros. Na primeira década do século XXI, a Corte Europeia de Direitos Humanos se
pronunciou em alguns casos referentes a essas limitações, em função de discriminação
étnica, direito a registro, ou, mais comumente, casos que envolviam disputas fiscais e
alfandegárias, ou condutas criminais, três deles contra a Rússia.43
A Corte Europeia de Direitos Humanos julgou ainda um caso sobre a
proibição de viagem por um período de dois anos aplicado a um nacional búlgaro pelo
governo da Bulgária, mediante solicitação de autoridades dos Estados Unidos da
América em função da permanência ilegal do indivíduo em território estadunidense. A
penalidade foi considerada ilegal e incompatível com os preceitos da Convenção
Europeia de Direitos Humanos44
.
Um outro exemplo de desrespeito a esse princípio é o não fornecimento por
parte do Estado dos documentos necessários à viagem, por exemplo, o passaporte. A
utilização de documentação como forma de impedir este fluxo migratório do país de
origem não se estabelece apenas por meio da não emissão de documentos de viagem por
parte do país de origem, mas também pode ser configurada pelo óbice do país de
chegada por meio de controle prévio do fluxo migratório. Essa prática é notória em
casos de países com políticas bastante severas de trânsito. O efeito prático da adoção
dessas políticas é que tanto as leis opressoras dos países de origem quanto a imposição
42
ACNUR (reedição de 2013) 43
Timishev v. Rússia, Petição no. 55762/00, Corte Europeia de Direitos Humanos, 13 de dezembro de
2005; Karpacheva e Karpachev v. Rússia, Petição no. 34861/04, Corte Europeia de Direitos Humanos, 27
de janeiro de 2011; Tatishvili v. Rússia, Petição no. 1509/02, Corte Europeia de Direitos Humanos, 22 de
fevereiro de 2007. 44
Stamose v. Bulgaria, Petição no. 29713/05, Corte Europeia de Direitos Humanos, 27 de novembro de
2012.
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de exigências burocráticas excessivas para entrada em determinado país obsta o direito
de alguns indivíduos de deixarem seus próprios Estados.
Especificamente na União Europeia, ao passo que houve flexibilização do
trânsito interno entre os países do chamado Espaço Schengen, isso ocorreu à custa do
endurecimento do acesso ao espaço nos limites de suas fronteiras. Nesse contexto, a não
exigência de visto para essa circulação intra-Espaço Schengen ocasionou a
uniformização das políticas do espaço. Contudo, em alguns casos, essas políticas
contribuíram para criar um muro virtual de acesso a pessoas de determinada origem,
representando um óbice ao direito de deixar seus países.
7. Não-penalização de refugiados por entrada ou permanência ilegal
O princípio da não-penalização de refugiados pela entrada ou permanência
ilegal é a contrapartida do direito de deixar um país, incluindo o seu próprio. Da mesma
forma que a penalização da saída ilegal e da permanência não autorizada fora do país de
origem representa uma violação ao instituto do refúgio, as leis do país de destino que
condenam a entrada ou a permanência ilegal de um refugiado também violam o Direito
Internacional.
Esse cenário se diferencia do anteriormente apresentado pois, neste caso, o
solicitante de refúgio conseguiu penetrar o território do país de destino, contudo, em
condições ilegais. Ainda sim, a boa prática preconiza que os refugiados não possam ser
penalizados por essa ilegalidade. O grande desafio da atualidade em relação a esse
quesito está em sobrepesar os interesses do refugiado e do Estado que o acolhe.
O artigo 31 da Convenção de 1951 estabelece o seguinte:
-
. s Estados ontratantes não aplicarão sanções penais em virtude da
sua entrada ou perman ncia irregulares, aos refugiados que, chegando
diretamente do território no qual sua vida ou sua liberdade estava
ameaçada no sentido previsto pelo art. , cheguem ou se encontrem
no seu território sem autori ação, contanto que se apresentem sem
demora s autoridades e lhes exponham ra ões aceit veis para a sua
entrada ou presença irregulares.
. s Estados ontratantes não aplicarão aos deslocamentos de tais
refugiados outras restrições que não as necess rias essas restrições
serão aplicadas somente enquanto o estatuto desses refugiados no país
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de ref gio não houver sido regulari ado ou eles não houverem obtido
admissão em outro país. vista desta ltima admissão os Estados
ontratantes concederão a esses refugiados um pra o ra o vel, assim
como todas as facilidades necess rias.
Esse artigo cristaliza o princípio da não-penalização de refugiados pela
entrada ou permanência ilegal. Assim como no caso do non-refoulement, a decisão
quanto ao pedido de refúgio é condição para a garantia de que não sejam aplicadas as
penalidades proibidas pelo artigo acima. Contudo, em geral, o refugiado que deixa seu
país dificilmente preenche os requisitos para entrar de maneira legal em outro território.
Nessa medida, os Estados tendem a aplicar suas leis de imigração em detrimento do
interesse e dos direitos dos refugiados.
A própria ausência de explicação detalhada do conceito de punição contido
no artigo 31 não facilita a adequada aplicação desse dispositivo. Em alguns casos tem
sido interpretada não como a ausência absoluta de possibilidade de punição, mas tão-
somente como a proibição de uma punição desproporcional. Diante disso, a aplicação
de detenção administrativa ou algumas medidas de limitação de movimento seriam
permitidas, desde que isso constituísse perseguição.
Pelo exposto, as restrições aos direitos dos refugiados devem ser
interpretadas de maneira estrita, devendo somente perdurar até a regularização da
declaração do status de refugiado ou da admissão do pedido por outro Estado.
CONCLUSÃO
As reformas ultimamente vistas nas leis e nas políticas de países como os
Estados Unidos da América e os da Europa suscitam dúvidas a respeito do cumprimento
e da adoção de determinados princípios. Os países do norte têm se aproveitado de
nuances interpretativas e práticas quasi-legais para estancar consideravelmente o fluxo
de migrantes provenientes de zonas de conflito. É provável que por meio do
endurecimento das leis de acesso, inclusive com controle prévio de entrada em alguns
casos, fundado em critérios altamente discriminatórios, exponham os refugiados a um
elevado grau de vulnerabilidade. A questão do impedimento por vezes descumpre os
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princípios do direito à solicitação de asilo, do direito a sair de um país e do próprio
princípio do non-refoulement.
A flexibilização em relação à permissão de eventuais aplicações das sanções
administrativas pela entrada ilegal mediante a proibição somente de persecução em
razão da ilegalidade pretende ser aceitável, contudo, fere inclusive o princípio do devido
processo legal. Parece tratar-se mais de uma medida que visa a agradar algumas nações
sabidamente reticentes à recepção de refugiados, para que essas não fechem de vez suas
fronteiras à possibilidade. A desbalanceada força de pressão dos países desenvolvidos
perante diversas organizações internacionais faz com que estes Estados gozem de maior
tolerância quando desrespeitando ou burlando normas de proteção aos migrantes.
O que se vê hoje é a sobrecarga de países em desenvolvimento, próximos a
zonas de conflito, em razão do fechamento de fronteiras do chamado Norte econômico.
Esta situação é extremamente prejudicial aos migrantes, que, ao se verem presos ao seu
país de primeiro refúgio, muitas vezes são relegados a campos de refugiados. Diversos
Estados que hoje recebem enormes contingentes de refugiados, por serem vizinhos de
zonas de conflitos, possuem diversas denúncias por desrespeito aos direitos humanos de
seus próprios cidadãos, acarretando a insegurança acerca do tratamento que conferirão
aos migrantes presentes em seu território, onde não têm condições de abrigá-los.
Se de um lado há países que não querem permitir a entrada de novos
cidadãos, em geral por questões de onerosidade, alguns Estados não permitem a saída
de determinados indivíduos. Essa última hipótese, em geral, ocorre em caso de conflitos
em regiões nas quais encontra-se o maior contingente de evasão de pessoas em estado
de refúgio. Os Estados que impedem a saída de seus cidadãos visam, em primeiro lugar,
ocultar da comunidade internacional a sua falta de controle sobre a situação naquele
território e, em segundo lugar, ter força produtiva para, de alguma forma, se sobrepor à
força contrária.
Tendo em vista todo esse quadro, fica clara a relação intensa dos direitos
dos refugiados com os direitos humanos. Nesse sentido, é fundamental que os Estados
passem a aplicar as convenções de direitos humanos a todos os cidadãos sob sua
jurisdição, e deixem de usar subterfúgios para excluir os refugiados desta categoria de
pessoas. Os migrantes em alto-mar ou retidos na fronteira de determinado Estado devem
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ser tratados de forma humana e digna, principalmente tendo em vista a condição de
vulnerabilidade na qual se encontram.
O Direito Internacional, apesar de ser constituído e construído por Estados,
deve trazer um padrão mínimo de proteção ao indivíduo e, especialmente àqueles que
são forçados a sair de seus países em razão de conflitos armados ou da perseguição de
regimes violentos. É fundamental que os Estados interpretem os tratados relativos aos
direitos dos migrantes e da pessoa humana de boa fé e de forma a garantir padrões
mínimos de tratamento a todos, o que, infelizmente, não tem ocorrido na maioria dos
países. O uso de subterfúgios e formalismos para impedir a entrada de migrantes e/ou
diminuir os padrões de tratamento mínimo oferecidos a refugiados à espera de asilo
ferem o princípio da interpretação dos tratados em boa-fé e relegam milhões de pessoas
em condições de vida sub-humanas.
REFERÊNCIAS
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