1
De fato, as proposições finais da primeira parte da Ética encarregam-se de demolir os andaimes e arrancar os alicerces da metafísica do possível, isto é, a suposição imaginária de que um intelecto criador e uma vontade criadora são atributos da essência e potência do ser absolutamente infinito. Suposição de origem antropomórfica, fundada, por sua vez, numa imagem e não numa idéia do que seja o próprio homem. O intelecto não constitui a essência de Deus, mas é um modo de um atributo divino, o pensamento, e está determinado a existir e a operar de maneira certa pela natureza do atributo pensamento. Seja como modo infinito, seja como modo finito, o intelecto é uma atividade imanente ou autônoma de pensar idéias verdadeiras. Por serem modos um intelecto infinito e um intelecto finito não são incomensuráveis e, mais do que isso, o intelecto finito é determinado pelo infinito a existir e a operar de maneira certa. Donde duas conseqüências: em primeiro lugar, não só o conteúdo pensado pelo intelecto infinito e pelo intelecto finito é o mesmo, mas é também a mesma a maneira como pensam, e por isso Espinosa explica o que se há de entender por intelecção, isto é, a atividade de formar idéias ou de conceber por si mesma a essência de coisas reais, que existem tanto no atributo pensamento como fora dele, pela ação de outros atributos; em segundo, um intelecto não precede as idéias nem é precedido por elas, mas é a atividade de formá-las ao pensá-las, e, portanto, não há um intelecto divino criador. O intelecto não é criador, em primeiro lugar, porque é modo da Natureza Naturada, afecção e efeito do atributo pensamento, e, em segundo, porque não se distingue do ato de formar idéias que são verdadeiras e que por isso convêm com as coisas reais existentes fora dele. O intelecto infinito forma a idéia da Natureza inteira, isto é, a idéia de Deus, e essa mesma idéia pode ser formada pelo intelecto finito quando este conhece a ordem e conexão necessárias das idéias das essências das coisas singulares, isto é, a gênese dessas idéias, que ele tem o poder de pensar por sua própria força inata. Essa conseqüência é gigantesca: pela primeira vez, na história da filosofia, demonstra-se que o infinito e o finito são comensuráveis e conhecem da mesma maneira. A vontade, como o intelecto, é um modo e “não pode ser chamada de causa livre, mas somente necessária” (proposição

De fato

Embed Size (px)

DESCRIPTION

gf

Citation preview

Page 1: De fato

De fato, as proposições finais da primeira parte da Éticaencarregam-se de demolir os andaimes e arrancar os alicerces dametafísica do possível, isto é, a suposição imaginária de que umintelecto criador e uma vontade criadora são atributos da essênciae potência do ser absolutamente infinito. Suposição de origemantropomórfica, fundada, por sua vez, numa imagem e não numaidéia do que seja o próprio homem.O intelecto não constitui a essência de Deus, mas é um modode um atributo divino, o pensamento, e está determinado a existire a operar de maneira certa pela natureza do atributo pensamento.Seja como modo infinito, seja como modo finito, o intelecto éuma atividade imanente ou autônoma de pensar idéiasverdadeiras. Por serem modos um intelecto infinito e um intelectofinito não são incomensuráveis e, mais do que isso, o intelectofinito é determinado pelo infinito a existir e a operar de maneiracerta. Donde duas conseqüências: em primeiro lugar, não só oconteúdo pensado pelo intelecto infinito e pelo intelecto finito é omesmo, mas é também a mesma a maneira como pensam, e porisso Espinosa explica o que se há de entender por intelecção, istoé, a atividade de formar idéias ou de conceber por si mesma aessência de coisas reais, que existem tanto no atributopensamento como fora dele, pela ação de outros atributos; emsegundo, um intelecto não precede as idéias nem é precedido porelas, mas é a atividade de formá-las ao pensá-las, e, portanto, nãohá um intelecto divino criador. O intelecto não é criador, emprimeiro lugar, porque é modo da Natureza Naturada, afecção eefeito do atributo pensamento, e, em segundo, porque não sedistingue do ato de formar idéias que são verdadeiras e que porisso convêm com as coisas reais existentes fora dele. O intelectoinfinito forma a idéia da Natureza inteira, isto é, a idéia de Deus,e essa mesma idéia pode ser formada pelo intelecto finito quandoeste conhece a ordem e conexão necessárias das idéias dasessências das coisas singulares, isto é, a gênese dessas idéias, queele tem o poder de pensar por sua própria força inata. Essaconseqüência é gigantesca: pela primeira vez, na história dafilosofia, demonstra-se que o infinito e o finito são comensuráveise conhecem da mesma maneira.A vontade, como o intelecto, é um modo e “não pode serchamada de causa livre, mas somente necessária” (proposição