De Kelsen a Dworkin

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    Direito, Filosofia E Interpretao

    Hans Kelsen e Ronald Dworkin

    DIREITO, FILOSOFIA E INTERPRETAO

    RONALD DWORKIN

    Muito obrigado por me apresentarem de forma to esplndida. Para aqueles que nunca

    tiveram essa experincia, devo dizer que um grande prazer ser apresentado e

    possivelmente elogiado em uma lngua que voc no entende. Porque, a, ento, se pode

    compor para si prprio parte da apresentao. De qualquer modo, estou muito

    agradecido. Vocs nem podem imaginar quanta satisfao tive ao ser convidado para

    proferir no apenas uma, mas uma srie de palestras inaugurais. Estou realmente muito

    agradecido.

    Deverei fazer duas palestras sobre jurisprudncia geral em duas cidades diferentes. A

    primeira delas, aqui em Tquio, versar sobre o papel da interpretao no Direito. A

    palestra em Kobe ser devotada principalmente s questes inter-relao do Direito

    com a Filosofia Poltica - em especial relao entre direito e democracia. Esta diviso

    bastante conveniente para mim, pois se as pessoas me perguntarem hoje, na parte

    reservada ao debate, por que no discuti um determinado aspecto, vou responder:

    "espero discuti-lo em Kobe".

    Se em Kobe me perguntarem por que no discuti uma determinada questo, direi:

    "discorri sobre esse assunto em Tquio na semana passada.

    No incio da palestra de hoje, devo, em grande medida, simplesmente resumir pontos de

    vista j explicados de forma exaustiva em alguma obra de minha autoria.

    Fao isso porque, apesar de alguns de vocs j estarem familiarizados com esses pontos

    de vista, h outros que no esto, e achei melhor comear por um breve resumo daquilo

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    que j discuti anteriormente, de modo que, assim, eu possa desenvolver alguma matria

    nova na parte principal da conferncia.

    A questo geral que eu gostaria de debater tem dois aspectos diferentes. Comeo

    lembrando-lhes apesar de os juristas aqui presentes no precisarem ser lembrados - que

    mesmo os expertos sempre discordam sobre qual o direito em certa matria. Mais do

    que isso, eles discordam, de uma maneira particular, especial e profunda. Mesmo

    quando concordam com o que chamaramos de fatos histricos ordinrios da matria -

    mesmo quando h concordncia entre os advogados sobre o que aconteceu em uma

    determinada ocasio, sobre quem fez o que a quem, e mesmo quando h consenso

    acerca de quais os sentidos das palavras escritas na legislao ou nos livros de Direito, esobre o que os juizes escreveram ou disseram em casos anteriores - eles ainda podem

    discordar sobre qual o direito. Para ilustrar essa questo, darei a vocs dois exemplos,

    ambos tirados do Direito norte-americano.

    O primeiro um caso famoso, julgado h muito tempo, chamado Riggs versus Palmer.

    o caso de um Jovem cujo av havia feito um testamento deixando-lhe a sua

    propriedade, e que, ao descobrir que este decidira se casar novamente e fazer um novo

    testamento, assasinou-o para evitar que isso ocorresse. Surgiu ento a seguinte questo:o jovem ainda teria direito de herdar a propriedade do homem que ele havia matado?

    No havia nenhuma discordncia quanto ao entendimento dos fatos em si. Todos

    concordavam sobre o que dizia o Direito das Sucesses. O Direito no dizia nada sobre

    assassinos herdeiros, ou seja, ele no dizia que, se o herdeiro matasse o testador, ele

    seria desqualificado para receber a herana. No entanto, os advogados discordavam

    sobre a soluo correia para o caso, e os juizes tambm: dois juizes disseram que o

    Direito imporia a concluso de que assassinos no podem herdar. E um juiz, o

    discordante, disse: "No, est errado. O Direito nos leva a afirmar que o assassino pode

    herdar a propriedade". Apenas para dar um outro exemplo, quero mencionar um outro

    caso famoso. o caso da Buick Motors Company versus McPherson. Houve uma poca

    em que a maioria dos juristas americanos achava que, se algum comprasse um

    automvel com defeito, poderia processar apenas a revendedora onde ele tivesse

    comprado o carro. No se poderia processar o fabricante. Eles assim acreditavam

    porque no havia um contrato entre o comprador e o fabricante. No caso da Buick, a

    parte queixosa, lesada por ter comprado um automvel defeituoso, decidiu que deveria

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    processar o fabricante, a Companhia Buick Motors, que pertence General Motors,

    mesmo indo contra a opinio geral de que ela perderia. Mais uma vez os juizes

    discordavam entre si. A maioria, com base em um famoso voto da lavra do Ministro

    Cardozo da Suprema Corte, dizia que, com efeito, "se analisarmos cuidadosamente as

    decises anteriores da maneira correta, perceberemos, ento, que, apesar da opinio

    geral dos advogados, na verdade, o Direito permite que algum que tenha comprado um

    automvel defeituoso de uma concessionria possa processar diretamente o fabricante".

    Havia desacordo de opinies. O ministro discorda da concessionria da qual ele tenha

    comprado o carro.

    Mais uma vez, no havia desacordo sobre o que tinha realmente acontecido. Todos

    concordavam que o motor do carro estava com defeito. Todos concordavam sobre o que

    estava escrito nos casos anteriores e, no entanto, advogados e juizes bastante eruditos,

    competentes e capazes discordavam entre si sobre a correia disposio do Direito.

    Essa discordncia levanta, ento, uma questo filosfica, que pode ser descrita de dois

    modos diferentes. Podemos descrev-la de uma perspectiva que os filsofos chamariam

    de perspectiva epistemolgica, como um problema de raciocnio jurdico. Quando todosos fatos esto estabelecidos, qual o raciocnio correio para se chegar a uma concluso

    no Direito? Podemos tambm descrever o problema (para usar, novamente, o jargo

    filosfico) como um problema ontolgico, isto , um problema sobre o que deve ser

    verdade sobre o mundo - sobre o que deve ter acontecido l - de modo a tornar a

    proposio de Direito falsa ou verdadeira. Mas, apesar de serem formulaes diferentes,

    a questo subjacente a mesma. Permitam-me ilustrar esse ponto com um exemplo que

    no seja jurdico. Suponhamos que eu pergunte se o Japo um pas rico.

    Algum, ao tentar responder a questo epistemolgica, poderia ficar perplexo: como

    que seria possvel descobrir a resposta certa para essa questo? O que seria considerada

    uma boa evidncia para se decidir se um pas rico ou no? Ou as pessoas poderiam

    ficar perplexas diante da questo ontolgica. Ningum acha que a afirmao de que o

    Japo uma nao rica verdadeira porque o Japo uma pessoa com um monte de

    dinheiro no bolso. Devemos, portanto, perguntar: que diferentes tipos de fatos - no que

    se refere riqueza dos indivduos, das pessoas reais, por exemplo, - podem fazer

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    verdadeira a afirmao de que uma nao rica?

    Os mesmos dois tipos de questes, epistemolgica e ontolgica, so levantados pelos

    desacordos no direito, que descrevi e exemplifiquei. Temos, como j disse,

    primeiramente a questo do raciocnio jurdico: o que poderia ser considerado um bom

    argumento para o fato de um assassino no poder, no direito, herdar de sua vtima? Em

    segundo lugar, temos como igualmente misteriosa, a questo ontolgica: se fato que

    assassinos no podem herdar de suas vtimas, que tipo de fato esse? fato evidente,

    como o fato de que existem nove planetas no sistema solar? Se no o , seria do mesmo

    tipo de fato de que o Japo rico, ou seja, um resumo de um grande nmero de outros

    fatos, mais bsicos, acerca do que as pessoas em particular fazem ou tm feito? Essasso, para mim, as questes centrais da Teoria Geral do Direito. Essas so as questes

    filosficas dor trs da questo jurdica tradicional "qual o direito?"

    Por um longo tempo, no apenas nos Estados Unidos ou na Inglaterra, onde ensino, mas

    em todo mundo, um conjunto de respostas a essas questes, uma teoria jurdica geral,

    usualmente denominada Positivismo Jurdico, exerceu uma grande influncia. Na

    Amrica do Norte e na Europa, os filsofos mais influentes dessa linha de pensamento

    so Hans Kelsen, John Austin e H.L.A. Hart. Poderia resumir melhor as respostas que o

    Positivismo d s minhas perguntas, comeando pela questo ontolgica.

    O Positivismo diz que as proposies de Direito, como o postulado que probe que os

    assasinos herdem de suas vtimas, s podem ser verdadeiras em virtude de eventos

    histricos - de determinadas pessoas dizendo ou pensando determinadas coisas. John

    Austin disse, como maioria de vocs sabe, que o "Direito o comando do soberano".

    Ele quis dizer com isso que o que faz uma proposio de Direito verdadeira - quandoela for verdadeira - um acontecimento histrico de um determinado tipo, ou seja, um

    soberano, uma pessoa dotada de poder poltico ilimitado, que edita uma ordem para

    aquele efeito. Essa a nica coisa, de acordo com Austin, que pode fazer verdadeira

    uma proposio de Direito.

    H.L.A. Hart elaborou uma teoria muito mais sofisticada. Ele disse que as proposies

    de Direito so consideradas verdadeiras, mais fundamentalmente, em virtude de um fato

    sociolgico: o de que o pblico em geral ou, pelo menos, as autoridades de uma

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    modo que eles prprios entendem o que est acontecendo. Assim que se sente um juiz

    ou um advogado nesses casos. Sente-se que h um problema difcil a ser resolvido e que

    esse um problema acerca do que realmente o Direito, no do que ele deveria ser, que

    se acredita ser um assunto muito mais fcil. Precisamos de uma teoria do Direito, uma

    resposta s nossas questes que no nos leve surpreendente concluso de que o

    desacordo que parece to genuno e to absorvente seria na verdade, ilusrio. Eis o

    motivo pelo qual tentei defender um tipo de resposta distinta da positivista. Essa outra

    resposta encontra o cerne do Direito no apenas nas decises oficiais do passado, mas

    tambm no processo de interpretao das decises tomadas no passado, o que pretendo

    agora exemplificar.

    s vezes bastante proveitoso introduzir uma idia complicada atravs de uma

    analogia. Por isso, vou imaginar um jogo feito para tardes chuvosas, quando no se tem

    nada para fazer. Imaginem dez pessoas, romancistas, que passam uma tarde deste tipo

    juntos, organizando o seguinte jogo. Eles tiram a sorte com pedaos de papel que tm

    nmeros diferentes em cada um deles. O escritor que tirar o nmero l escreve o

    primeiro captulo de um romance, um romance original e indito. Depois, ele d o

    captulo que escreveu para o romancista que tirou o nmero 2. Assim, o romancistanmero 2 l o primeiro captulo e escreve um segundo captulo que

    continue a estria, tentando fazer com que o romance se desenvolva da melhor maneira

    possvel. E, ento, os dois primeiros captulos so entregues ao romancista que tirou o

    nmero 3, e ele escreve outro captulo, continuando assim a estria, tentando fazer dela

    a melhor possvel. Esse processo continua at que o romancista que tirou o nmero 10

    termine o seu captulo. Esse ltimo romancista teve de ler toda a estria, at aquele

    ponto, e escrever um novo captulo com novos acontecimentos, mas sempre cuidando

    para que o novo captulo fosse, ainda assim, uma continuao da mesma estria.

    Gostaria agora de comparar o desenvolvimento do Direito elaborao desse, digamos,

    romance em cadeia. Minha idia colocada de uma maneira bem simples (mais tarde

    tentarei explicar melhor) que quando um advogado ou um juiz depara com um novo

    problema, como no caso do jovem assassino ou no problema do carro da Buick com

    defeito, ele deveria ler todo o Direito at aquele ponto, como se ele fosse captulos

    precedentes de um romance, e deveria entender que a deciso a que deve chegar no

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    novo caso deve ser uma deciso que continue a estria da forma mais adequada

    possvel.

    Espero, agora, que esteja claro, a partir do meu jogo imaginrio, que dois escritores

    diferentes escreveriam o mesmo captulo da estria de maneiras diferentes. Portanto,

    tambm advogados ou juzes diferentes tero opinies diferentes sobre a melhor

    maneira de se continuar a estria. Eles tero opinies diferentes em parte, no

    completamente, porque o que faz uma continuao da estria jurdica melhor que outra

    vai depender das convices morais e polticas de cada um. Por isso, se um juiz for

    muito conservador, decidir o caso da Buick de uma maneira diferente daquela como

    um juiz mais liberal o decidiria. Mas, a despeito desse fato, se os juizes esto de boa-fao buscarem decidir mais como intrpretes do que como legisladores, ento para cada

    juiz haver, apesar disso, uma diferena entre duas questes. A primeira a questo da

    interpretao. Qual a melhor leitura que se pode fazer dessa histria jurdica at este

    ponto? Como eu posso interpretar ou entender isso para fazer, at o momento presente,

    a melhor estria de um ponto de vista poltico? A segunda no uma questo de

    interpretao, mas de legislao. Se eu pudesse fazer um Direito "novo em folha", sem

    responsabilidade para com o passado, da maneira como a um legislador permitidoproceder - se eu pudesse, na verdade, comear um novo romance -, como eu o faria?

    Acredito que, mesmo quando algumas opinies jurdicas de um juiz refletirem sua

    convico poltica, haver, apesar disso, uma diferena para cada juiz entre a

    interpretao da estria at aquele ponto e a deciso de como ele a regulamentaria se

    no houvesse qualquer estria at ento. Suponhamos, por exemplo, que haja um juiz

    comunista nos Estados Unidos (eu concordo que isso seja pouco provvel) e que ele

    defrontasse com o caso da Buick. Suponhamos que ele diga: "Eu gostaria de estabelecer

    um princpio jurdico a fim de que qualquer um que processe uma grande empresa

    capitalista ganhe, automaticamente, a causa." Se ele realmente tentar

    interpretar a histria do Direito norte-americano para saber se aquele princpio poderia

    ser tido como continuador da estria, ele fracassaria. A estria do Direito Americano,

    at aqui, no , sem dvida, uma estria em que o capitalismo sempre perde: Nenhum

    juiz com um mnimo de responsabilidade poderia pensar que fosse, e esse fato marca a

    diferena entre interpretao e legislao original. Ou, como eu colocaria a questo, a

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    diferena entre interpretao e inveno.

    Muito bem. Isso conclui a minha tentativa de fazer um breve resumo da posio que eu

    busquei defender no passado, em especial no livro Law's Empire (*) . Agora, quero me

    reportar a vrias objees importantes que tm sido feitas a minha posio. Fao isso

    no apenas porque todo escritor goste de uma oportunidade para replicar crticas a seus

    trabalhos, mas porque essas objees parecem me requerer uma resposta que seja um

    relato mais geral e esclarecedor do conceito de interpretao do que apenas a repetio

    do que j dito na obra Law's Empire. Gostaria, portanto, nesta tarde, de descrever

    primeiramente as crticas e, s ento, tentar desenvolver com vocs uma teoria mais

    geral da interpretao. Espero que vocs percebam o que quero dizer. Eis as objeesque gostaria de discutir com vocs. A primeira insiste em afirmar que eu entendi mal o

    que realmente seria interpretao. Essa critica tem sido feita por muitas pessoas,

    inclusive por crticos literrios. Eles dizem que, no meu ponto de vista, interpretao

    sempre uma tentativa de se fazer de uma estria a melhor

    estria possvel.

    Eu disse que, quando os romancistas estavam escrevendo o romance em cadeia, cada

    um deles estava tentando fazer a melhor continuao possvel desse romance. E digo

    que, quando os juizes decidem um caso difcil, cada um deveria estar buscando dar

    continuidade estria da melhor forma possvel, do ponto de vista da justia poltica.

    Bem, a crtica diz que a interpretao tem por objetivo descrever o objeto da

    interpretao como ele realmente , e no fazer dele o melhor possvel.

    Na minha viso, a interpretao objetiva melhorar o objeto da interpretao, enquanto

    que, de acordo com a primeira crtica, a interpretao no seria uma questo de sebuscar melhorar algo, mas de se descrever algo com preciso.

    A segunda crtica est relacionada com a primeira. Ela afirma que a minha viso da

    interpretao aplicada ao Direito tem o efeito indesejvel de fazer o Direito parecer

    mais atraente do que realmente . Suponhamos que vocs estivessem interpretando

    Mein Kampf (Minha Luta) de Hitler, o Holocausto ou a subida de Joseph Stalin ao

    poder. Vocs tentariam fazer qualquer dessas estrias parecer boa? Existe algo de

    horrvel, de acordo com essa segunda crtica, na idia de se tentar reescrever a histria

    http://c/Users/Aluno/Downloads/referencia.htm#(07)http://c/Users/Aluno/Downloads/referencia.htm#(07)
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    para faz-la a melhor possvel. Algumas vezes importante mostr-la to m quanto

    possvel.

    A terceira crtica diferente das duas Primeiras - e mais filosfica. Ela diz: ser que se

    pode acreditar que sempre existe uma nica resposta correta para uma questo de

    interpretao? A interpretao essencialmente uma matria subjetiva. Para cada

    pessoa, h uma interpretao diferente. Se duas pessoas olham para a mesma pintura ou

    para a mesma pea de arte, ou assistem a mesma performance de um drama de Noh.

    Vero coisas diferentes, porque a interpretao no objetiva, mas subjetiva. Por isso,

    se estou certo de que o Direito essencialmente uma questo no de descoberta dos

    eventos histricos, mas da interpretao desses eventos ento o Direito se torna, deacordo com essa crtica muito mais subjetiva do que objetivo.

    Essas so as trs crticas que, acredito, exigem de mim (ou deveria dizer, de ns) uma

    reflexo mais genrica sobre o fenmeno da interpretao. Por isso, com a

    complacncia de vocs, vou. Por alguns minutos, virar as costas as costas ao Direito. Eu

    sei que estou aqui para proferir uma conferncia jurdica e que vocs so juristas, mas

    vou dar as costas ao Direito um pouco porque ns tambm interpretamos, claro, um

    grande leque de fenmenos e contextos. Permitam-me lembr-lo dos diferentes tipos de

    atividades nas quais, de uma forma ou de outra, a interpretao a idia central.

    Temos a interpretao jurdica, mas tambm a interpretao literria, a artstica e a

    esttica. Temos a interpretao cientfica. Dizemos que os cientistas interpretam dados.

    Existe tambm a interpretao histrica. Os historiadores no apenas descrevem os

    eventos do passado, mas tambm os interpretam. E existe a interpretao psicanaltica.

    A obra mais famosa de Sigmund Freud, pelo menos para o pblico em geral, chama-seA Interpretao dos Sonhos. Nem preciso lembrar-lhes que, obviamente, existe uma

    oportunidade muito mais corriqueira de interpretao, chamada conversao. Na

    verdade, o que vocs esto ouvindo agora, nos seus fones de ouvido, desses intrpretes

    admirveis, que esto penando para dar sentido ao que estou dizendo, uma forma de

    interpretao. Eles esto interpretando o que eu digo, e fazem isso numa lngua

    diferente da que estou usando.

    Pois bem, o fato de termos um grande leque de atividades nas quais figura a idia da

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    interpretao sugere um problema que, at onde eu saiba, no tem sido discutido pelos

    filsofos, pelo menos no nesses termos. Refiro-me ao problema de se dar uma resposta

    seguinte questo: todas essas vrias atividades so consideradas interpretao no

    mesmo sentido? Se assim, o que interpretao, considerando-se que ela pode ser

    entendida to abstratamente que a interpretao de sonhos e a interpretao de leis so

    tomadas, ambas, como ocasies de interpretao?

    Se ns podemos encontrar alguma teoria da interpretao to geral que abranja todos

    esses diferentes casos, ou mesmo a maioria deles, surge, ento, um problema maior.

    Como poderemos distinguir entre os diferentes tipos de atividades de interpretao?

    Pois ns, certamente, distinguimos. Suponham que aparea atrs de mim, agora, umasrie de clares de luz. E ento eu pedisse a vocs que interpretasse essas luzes. Vocs

    no saberiam nem mesmo como comear, at que soubessem que tipo de interpretao

    seria mais adequada. Vocs teriam de decidir se as luzes seriam um fenmeno natural -

    algumas luzes misteriosas que acabaram de aparecer na atmosfera - ou se seriam uma

    mensagem cifrada transmitida em cdigo morse, ou uma nova forma de arte, que se

    consubstanciara em um espetculo de luzes concebido

    por algum tipo de artista.

    Portanto, ns temos dois problemas que qualquer teoria geral da interpretao deve

    confrontar. O primeiro o que - ou se algo - faz todos esses tipos ou ocasies de

    interpretao ocasies de uma mesma coisa? E o segundo problema, igualmente difcil,

    o seguinte: o que, como o exemplo dado nos sugere, faz com que seja to profunda a

    diferena entre cada forma de interpretao? E quando desenvolvermos, se pudermos,

    uma teoria geral da interpretao que responda a essas questes, temos que mold-la de

    maneira que possa responder simultaneamente a duas outras questes. A primeira

    esta: seria uma caracterstica de todos esses diferentes tipos de interpretao que aqueles

    que realizam cada uma delas - os cientistas, os juristas, os historiadores, os tradutores,

    os psicanalistas -, quando discordassem entre si, cada um deles pensaria, pelo menos na

    maior parte das vezes, que est certo, e os demais, errados. Isto , pensamos,

    tipicamente, na interpretao como algo que pode ser feito melhor ou pior, que uma

    interpretao pode ser verdadeira ou falsa. E esse aspecto vem enriquecer o problema,

    pois no existem muitas atividades, se vocs pensarem em todas as diferentes

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    atividades nas quais nos engajamos, que, nesse sentido, buscam a verdade ou que

    levantam uma pretenso de verdade.

    Mas, uma vez que entendamos que inerente interpretao, nesse sentido muito geral,

    que ela reivindique a verdade, perceberemos ento uma quarta caracterstica que a

    teoria precisa levar em conta, que a seguinte: uma teoria geral da interpretao

    precisa, no mnimo, deixar espao para o ceticismo, porque tambm uma

    caracterstica de cada um dos tipos de interpretao que descrevi a existncia de cticos

    que dizem que toda essa seara uma espcie de nonsense. Eu sei, por exemplo, que tem

    havido recentemente, no Japo, muita discusso sobre o movimento desconstrutivista na

    teoria literria, que um tipo de posio ctica. Nos Estados Unidos, estamosfamiliarizados com uma gama de posies cticas que dizem que Direito nonsense,

    que no h Direito. Por isso, uma teoria geral da interpretao precisa explicar no

    apenas por que a maioria dos que a vivenciam vem esse empreendimento como uma

    busca da verdade, ao esperarem estabelecer a verdade, mas tambm por que alguns o

    vem de um modo ctico, destitudo de verdade.

    Muito bem, eis o desafio, e vou dar uma breve resposta a ele. Essa no ser, claro,

    uma teoria completa, no apenas porque no tenho tempo de desenvolver os detalhes,

    mas porque ela servir apenas em alguns dos contextos de interpretao que descrevi. E

    uma teoria parcial, parte de uma teoria mais geral, que tentarei descrever em outra

    ocasio. Mas a parte da teoria que vou tentar descrever agora nos particularmente til

    porque, apesar de no servir para todos os contextos, serve classe daqueles contextos

    que incluem o Direito.

    Chamo essa forma de interpretao de interpretao construtivista.Vocs j perceberam que a interpretao tem lugar dentro de prticas sociais

    organizadas e que os conceitos que usamos na formao de interpretaes de diferentes

    tipos tomam seu sentido no do mundo natural, mas dessas prticas sociais.

    Considerem, por exemplo, os conceitos que figuram na interpretao esttica: os

    conceitos de romance, fico, poema, soneto, drama. Esses conceitos ganham vida, ou

    seja, tomam seu significado e sentido das atividades e dos empreendimentos humanos.

    Deve ter havido um tempo em que as pessoas primeiro comearam a pensar queinventar uma estria era criar algo. Antes disso, era simplesmente contar mentiras. De

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    repente, contar mentiras torna-se uma maneira de criar arte. Deve ter havido um

    momento no qual o desenho de um bfalo na parede adquiriu uma nova dimenso de

    significado como arte. Esse foi o momento no qual ele foi absorvido dentro de um

    empreendimento humano distinto. claro, conversao e traduo tambm so parte de

    um empreendimento humano distinto.

    Bem, todas essas prticas e empreendimentos que citei at agora so vistos por aqueles

    de ns que se ocupam deles no como sem sentido, mas como benficos ou vlidos de

    alguma outra forma. Ns consideramos que eles tm um objetivo ou finalidade.

    Achamos que o Direito tem uma funo na comunidade a que pertence. Acreditamos

    que a arte tenha um tipo diferente de funo, que traga uma dimenso de experinciavlida a nossas vidas. Consideramos que a histria tenha um tipo diferente de valor

    narrativo, e assim por diante. Isto , no temos esses empreendimentos simplesmente

    como rituais. Ns os temos como algo importante, como algo que tem valor. Agora,

    constitudo esse pano de fundo, dado esse background, posso apresentar o estudo da

    interpretao construtivista. A interpretao construtivista surge quando as pessoas se

    engajam numa prtica desse tipo, em que todos consideram-na portadora de um

    propsito ou finalidade, mas discordam, exatamente, acerca de qual seria esse propsitoou finalidade. Neste evento, os participantes consideraro a extenso ou o mbito de

    aplicao dos conceitos que tomam a prtica sensvel a essa finalidade ou por ela

    determinada. Servem a diferentes tipos de finalidades. Podemos discordar sobre qual a

    finalidade do Direito, mas concordamos que a finalidade do Direito diferente da

    finalidade da poesia. Por que podemos ser "inquiridores" da verdade sobre as matrias

    da interpretao? Porque somos pesquisadores da verdade nas matrias das quais

    depende a interpretao. Suponhamos que discordemos de outros advogados, em algum

    ponto da interpretao jurdica, por serem nossos pontos de vista sobre a finalidade do

    Direito, ou sobre a justia - pois, at onde sabemos, o objetivo do Direito proporcionar

    a justia - diferentes dos deles. Acharemos que a nossa interpretao a verdadeira - e

    no apenas diferente - se acreditarmos, e porque acreditamos, que as nossas opinies

    sobre a finalidade do Direito ou sobre justia so verdadeiras. Defendemos nossos

    pontos de vista sobre essas matrias como uma questo de convico, o que significa

    que achamos serem elas verdadeiras.

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    Mas espero que vocs percebam tambm porque o ceticismo est sempre no

    background. Porque o ceticismo sempre se apresenta quando lidamos com assuntos que

    as pessoas sentem, profundamente, como uma questo de convico, mas sobre os quais

    discordam entre si, sem que nenhuma delas possa provar que est certa. Posso pensar,

    de uma maneira passional, que a finalidade da verdade da literatura celebrar Deus.

    Mas outros pensam que o valor da verdadeira literatura muito diferente. No tenho

    como demonstrar que estou certo, e, conseqentemente, sou vulnervel ao desafio do

    ctico que diz que ningum est certo, que no h verdade nem falsidade sobre tal

    questo. Ento, como uma matria formal, e no nvel abstraio, a teoria superficial que

    apresentei a vocs (que vocs podem denominar teoria teleolgica ou finalstica da

    interpretao) tem a forma correia, ao corresponder aos vrios requisitos que eu disse

    que a teoria da interpretao deveria preencher.

    Vamos observar mais detalhadamente alguns exemplos dessa teoria na prtica, e j que

    prometi que retornaria, mais cedo ou mais tarde, ao Direito, volto a ele no meu primeiro

    exemplo. Como esse realto da interpretao ajuda a entender a discusso em Riggs

    versus Palmer, no caso do jovem que assassinou o av ou no caso da Buick versus

    McPherson, sobre a mulher que processou a Companhia Buick Motors? claro quemuitas vises podem ser e so sustentadas

    acerca do objetivo ou da funo do Direito como um empreendimento coletivo. No

    entanto, a fim de simplificar o exemplo, posso supor que em uma determinada

    comunidade haja apenas duas vises passveis de serem defendidas por quaisquer de

    seus membros. A primeira insiste que o Direito existe para prover certeza e regulao, a

    fim de que a vida coletiva possa ser mais

    eficiente, de modo que as pessoas possam planejar suas vidas sabendo quais regras a

    polcia ou o Estado vai obrig-las a cumprir. Agora, se algum assumisse essa viso da

    finalidade do Direito, alegando, grosso modo, que o Direito existe para permitir que a

    sociedade funcione eficientemente, a despeito do fato de as pessoas discordarem acerca

    da justia e da moralidade - ele tenderia a ter uma abordagem positivista do Direito.

    Especificamente, ele tenderia a acolher a viso ontolgica de que o Direito existe

    apenas na forma de decises explcitas do passado tomadas por autoridades polticas, e

    que podem ser lidas e conhecidas. Ele pode ser levado a pensar, no caso do herdeiro

    assassino, que este deve herdar, porque a lei muito clara sobre os testes formais pelos

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    quais um testamento deve passar para ser considerado vlido, e no diz absolutamente

    nada sobre assassinos do prprio doador. Se tivssemos de decidir questes morais, tais

    como saber se e quando ser permitido aos assassinos herdarem, a fim de saber se um

    testamento em especial teria de ser cumprido, na viso que esse algum tem da

    finalidade do Direito, essa finalidade mesma seria frustrada. Um juiz simpatizante do

    Positivismo, por ter a viso de que o propsito do Direito promover a previsibilidade,

    pensaria, conseqentemente, que o Direito permite que o assassino herde, apesar de ele

    tambm poder achar que, no futuro, o Direito devesse ser mudado pelo Parlamento, e

    no pelo juiz. De maneira semelhante, no caso da Buick Motors, um positivista com

    essa viso tenderia a no permitir um processo contra o fabricante, pela simples razo

    de que nenhum caso passado permitiu tal processo, e os legisladores no disseram que

    essa prtica poderia ser mudada.

    Considerem, agora, uma viso diferente sobre a finalidade ou o objetivo das leis. Nela,

    sustenta-se que a viso positivista que acabei de descrever por demais limitada. Ela

    reconhece que o Direito serve ao propsito de permitir s pessoas planejar seus

    negcios e que, para esse propsito, desejvel a previsibilidade. Mas acrescenta que o

    Direito deveria fazer mais do que isso pela comunidade. O Direito tambm deveriatornar essa regncia, esse governo, mais coerente em seus princpios; deveria tambm

    procurar ajudar a preservar aquilo que poderamos chamar de integridade da regncia,

    do governo, da comunidade, de modo que a comunidade fosse regida por princpios, e

    no apenas por regras que pudessem ser incoerentes com os princpios. E insiste que

    esse ltimo propsito to importante que bem deveria,

    nos casos particulares, ser mais importante do que a previsibilidade e a certeza.

    Pois bem, algum que tenha essa viso pode muito bem pensar, na hiptese de o

    beneficirio assassinar o testador, que permitir que um assassino obtenha vantagens de

    seu terrvel crime atenta to frontalmente contra os princpios gerais da moral e do

    Direito, que, precisamente por isso, deveramos entender a legislao como impeditiva

    desse fato. Ainda que a lei no tenha nenhum dispositivo que diga explicitamente que

    um assassino no pode tirar proveito de sua prpria torpeza, ao lermos essa lei no

    contexto do Direito como um todo, com o objetivo de que o Direito seja em princpio

    coerente, somos levados, por isso mesmo, a decidir que o Direito

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    adequadamente entendido no permite que um assassino herde os bens de sua vtima.

    Foi isso que o tribunal efetivamente decidiu.

    No caso da Buick, que foi como disse, uma deciso muito famosa do ministro Cardoso,

    o tribunal usou um tipo similar de raciocnio. Se desejamos que o Direito seja coerente

    com os princpios, necessrio que no entendamos o direito, at onde for possvel,

    como algo absolutamente separado da moral, e que no tomemos decises que sejam

    moralmente arbitrrias. Se o defeito no automvel no culpa do vendedor, que

    simplesmente o revende, mas do fabricante, de onde se originou o defeito, ento, qual

    princpio moral poderia justificar a proibio pessoa prejudicada de reivindicar seus

    direitos instituio que realmente causou o dano?

    Agora, suponhamos que eu possa comear a responder s questes que enumerei

    anteriormente. Sobre o que esto realmente discordando os juizes que divergem acerca

    do Direito, ainda que concordem sobre os fatos? Eles esto discordando (podemos dizer

    agora) acerca de qual seria a interpretao correia da estria at aquele ponto, e

    discordam sobre isso porque a interpretao teleolgica, finalstica, uma vez que

    discordam sobre qual a melhor atribuio do objetivo ou da finalidade do

    empreendimento geral do Direito. Mas comprovemos a generalidade desse estudo, ao

    considerarmos outras ocasies de interpretao construtivista. Devemos comear pela

    interpretao literria. Existem, claro, muitas escolas de interpretao literria. Sem

    dvida, existem discusses acaloradas, tanto aqui no Japo quanto no resto do mundo,

    entre os defensores das diversas maneiras de se entender a poesia ou as peas de teatro

    ou os romances. Mas, novamente, para simplificar, e apenas para fins de ilustrao, vou

    contrapor somente umas poucas vises sobre a finalidade da literatura. Como no caso

    do Direito, a simplificao negligencia muitas nuanas interessantes, mas fao

    isso com fins ilustrativos. A primeira dessas poucas vises que vou mencionar sustenta

    que a finalidade da literatura a instruo moral.

    Ela deveria visar ao aumento de nossa sensibilidade com relao s verdadeiras

    questes morais, a fim de nos mostrar, de maneira convincente, as verdades sobre os

    conflitos, as opes e as tragdias que s conseguimos ver de uma maneira inexata e

    sem o correto e profundo aporte da literatura. Essa era a viso, por exemplo, de um

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    crtico britnico muito influente, F. R. Leavis.

    A segunda viso , por oposio, formalista. Ela sustenta que a finalidade da literatura

    interna esttica, que ela consiste em criar um tipo de beleza ou poder que precisa ser

    valorizado por si prprio, em seus prprios termos, e no porque nos ensina algo sobre a

    moral (ou sobre a psicologia, a histria ou qualquer outra coisa).

    Uma terceira viso a Marxista. Ela sustenta que o objetivo da literatura contribuir

    para o triunfo histrico da classe trabalhadora.

    Agora, vou sugerir a vocs que as pessoas que sustentam uma dessas trs vises sobre a

    finalidade ou objetivo da literatura, provavelmente, interpretem uma pea de teatro ou

    um poema complexos de forma muito diferente da que um crtico que tivesse uma das

    outras

    duas vises - apesar de isso ser algo que no posso esperar que seja facilmente

    demonstrvel. Aparentemente, pode no estar muito claro o motivo pelo qual as

    pessoas que discordam, por exemplo, sobre a anlise correta do personagem Shylock,

    na pea O Mercador de Veneza, de Shakespeare, esto, na verdade, discutindo.

    De acordo com essa viso, a raiz do desacordo pode residir nas marcantes diferenas

    acerca do correto entendimento de qual a finalidade de se julgar e interpretar a arte.

    Um intrprete marxista pode ser levado a ver Shylock tanto como opressor quanto como

    vtima do

    capitalismo veneziano. Um simpatizante do pensamento de Leavis seria tentado a fazer

    um estudo mais profundo que deveria enfatizar, por exemplo, a complexidade das

    relaes de Shylock com sua filha Jssica. E um formalista poderia rejeitar ambas as

    vises por serem muito externas, muito pouco ligadas ao vocabulrio metafrico e aoutros aspectos lingsticos da pea.

    Consideremos, agora, a forma mais comum de interpretao: a interpretao da

    conversao. Os filsofos tm ficado atnitos com relao seguinte dificuldade:

    impossvel entender o que o outro est dizendo, o que uma pessoa quer dizer, antes de

    se entender muitas outras coisas sobre essa pessoa, incluindo, por exemplo, aquilo em

    que ela acredita e o que ela quer. Intenes, significados e crenas esto unidos num

    mesmo sistema. Como podem os intrpretes aqui hoje traduzir para o japons o que

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    estou dizendo, sem saberem uma srie de

    coisas a meu respeito? Eu digo a vocs, "isto um copo d'gua". Como os intrpretes

    sabem que estou usando a palavra "gua" para me referir gua, de modo a poderem

    traduzir o que digo, usando a palavra gua em japons? Como eles sabem que "gua"

    no apenas o meu modo engraadinho ou irnico de me referir a vodca?

    Eles devem estar presumindo, por exemplo, que o que penso estar neste copo - do qual

    bebo de tempos em tempos durante esta palestra - gua.

    Agora eis o quebra-cabea: como podem os intrpretes decidir o que penso antes de

    saberem o que quero dizer com as palavras que uso? E como podem decidir o que quero

    dizer ao usar essas palavras at saberem o que penso? Os filsofos liderados por DonaldDavidson, baseados na obra de Williard Van Orman Quine, propuseram que devemos

    pensar nas crenas, nos significados e nos desejos no apenas por meio de um deles,

    mas de atravs de um sistema interligado. Aportamos uma variedade de pressupostos

    iniciais a qualquer problema de

    traduo, mas o nosso pressuposto geral o de dar um sentido geral ao que o falante

    est fazendo, assim como ao que est dizendo. Isto , ns no traduzimos apenas

    sentena por sentena, mas olhamos para todo o comportamento como uma tentativa desuposio, pelo menos, de que o falante seja racional. Por isso, se estou dando uma

    palestra e bebo deste copo, e se vocs supem que eu seja racional, podem supor

    tambm que eu no beberia tanto se achasse que isso fosse vodca. Vocs esto

    confiando em um tipo de evidncia, assim como em milhares de outras suposies

    sobre mim, a fim de traduzir a minha afirmao de que "isto um

    copo d'gua". Podemos dizer que qualquer traduo em particular apenas a ponta do

    iceberg, porque debaixo da superfcie esto milhares de outras suposies que

    contribuem para dar sentido ao comportamento do falante como um todo.

    Trago a vocs esse problema da filosofia da linguagem porque quero afirmar que

    existem certas ocasies de interpretao pessoal nas quais nosso objetivo, nossa

    ambio, no apenas desse tipo. De maneira geral, tentamos dar e damos o melhor

    sentido que podemos ao comportamento de algum, a fim de que possamos prever e

    encaixar nossas vidas com a daquela pessoa. Mas algumas vezes acrescentamos outros

    requisitos. Consideremos, por exemplo, um outro momento interpretativo que

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    mencionei anteriormente: a psicanlise.

    De acordo com alguns estudiosos da psicanlise, o analista, ao interpretar os sonhos do

    paciente ou as piadas que ele conta ou os seus lapsos lingsticos, no est apenas

    tentando encontrar uma interpretao que ajude a explicar o comportamento do paciente

    de um jeito comum. De acordo com essa viso, o mdico tem um propsito

    ligeiramente diferente: descobrir uma explicao que transforme o comportamento do

    paciente - no que o explique simplesmente, mas que o transforme por meio da

    elaborao de uma explicao que o paciente internalizar, de modo a ser ajudado a

    caminhar em direo cura. Esse um propsito especial, nessa

    viso, o que justifica que possamos dizer que a finalidade ou objetivo da interpretaopsicanaltica dos sonhos ou das piadas diferente da finalidade ou do objetivo da

    interpretao da conversao - de ouvintes buscando interpretar uma palestra sobre

    Teoria Geral do Direito, por exemplo. Sendo assim, um crtico jurista e um psicanalista

    de quem eu fosse paciente chegariam a concluses diferentes sobre as minhas intenes

    ao contar determinada piada nesta palestra.

    At agora, j lhes dei trs exemplos: um tirado do Direito, outro da crtica literria e

    outro da diferena entre a interpretao psicanaltica e a interpretao da conversao.

    Esses diferentes exemplos tm por objetivo apenas ilustrar a teoria geral (e, espero,

    sugerir o seu poder) segundo a qual precisamos entender que a interpretao vinculada

    prtica regida pelo sentido de propsito ou finalidade que se atribui a essa prtica, ou

    que a interpretao vinculada prtica sensvel ao sentido da finalidade a essa prtica

    atribudo, ao telas dessa prtica.

    Vamos, finalmente, voltar ao comeo. Vocs vo se lembrar de que mencionei umavariedade de crticas ao estudo interpretativo da Teoria Geral do Direito que resumi. A

    primeira era esta: "Voc diz que a interpretao jurdica tem por objetivo fazer o melhor

    da estria at aquele ponto, fazer o melhor da memria jurdica da comunidade,

    enquanto ns dizemos que interpretao significa relato acurado, e no relato mais ou

    menos preciso". Minha resposta , "a interpretao , em princpio, teleolgica,

    finalstica, e, conseqentemente, em princpio, uma tentativa de se fazer o melhor do

    objeto da interpretao". Mas essa afirmativa facilmente malentendida e eis o motivo pelo qual inclu a segunda crtica que mencionei. A segunda

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    crtica -como vocs devem estar lembrados - argumenta que o mtodo interpretativo

    um modo de tornar cor-de-rosa as coisas, um modo de faz-las parecer melhor do que

    efetivamente o so. Vocs interpretariam o Holocausto dessa maneira? Mas a

    interpretao construtivista objetiva fazer o melhor do seu objeto apenas no sentido

    especial que descrevi. Ela objetiva fazer utilizar da melhor forma esses dados, tendo em

    vista o propsito ou a finalidade do empreendimento geral para o qual a ocasio da

    interpretao se apresenta. Por isso, consideremos o caso do holocausto promovido por

    Hitler. Esse um caso de interpretao histrica bastante similar ao que descrevi

    como a finalidade normal da interpretao da conversao como a finalidade normal da

    interpretao da conversao, isto , fornecer uma descrio do que aconteceu que torne

    seu sentido o mais coerente e completo possvel. No podemos ser totalmente bem-

    sucedidos ao explicarmos o Holocausto como o comportamento de pessoas racionais.

    Mas, ainda assim, a interpretao ou a interpretao histrica exigem que faamos o

    melhor que pudermos. E isso significa que precisamos atribuir aos monstros que

    estavam no comando, por ocasio do fato histrico, motivos que dem sentido ao que

    eles fizeram. Uma vez que fizermos isso, claro, ento, que estaremos fazendo o

    melhor que podemos, dando o propsito a esse tipo de interpretao.

    Fazer o melhor que pudermos, no entanto, significa mostr-los como eles eram, e isso

    significa mostr-los como bestas. O Direito diferente. Por qu? Porque o objetivo da

    prtica jurdica no tem o propsito explanatrio que anima a interpretao histrica. Os

    juristas esto tentando dar em seu relato sobre o que aconteceu a melhor explicao

    possvel, especificamente acerca do comportamento das pessoas. E por um s motivo: o

    Direito que interpretamos no o fazer de nenhum grupo determinado de pessoas. o

    fazer de toda uma sociedade ou civilizao num longo perodo de tempo, por sculos

    at. Ento, fazer o melhor de nossa tradio jurdica significa algo muito diferente de

    fazer o melhor da interpretao histrica. Significa, acredito eu, fazer o Direito to justo

    quanto possamos. Isso o que significa acuidade em interpretao jurdica.

    Eu disse que ns temos por objetivo fazer do objeto da interpretao o melhor que ele

    puder ser. Mas isso apenas um mote, um slogan, que resume o estudo mais longo que

    acabei de apresentar. Significa fazer o melhor dele, tendo em vista aquilo que

    acreditamos ser a viso correta da finalidade desse empreendimento em questo. claro

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    que, como eu disse, os advogados discordaro a respeito do que significa, em detalhes,

    fazer do Direito, torn-lo, o mais justo possvel. A prpria viso de vocs se refletir

    sobre sua viso mais concreta acerca do propsito, da finalidade, do Direito, e tambm

    sobre o que justia. Ento, para retomar o que disse antes, se vocs acham que a

    finalidade do Direito a certeza, ento vocs fazem o melhor do Direito fazendo dele,

    tomando-o, o mais certo possvel. Se vocs pensam, como eu, que a finalidade do

    Direito fazer do nosso governo um governo de princpios, ento vocs

    acharo que fazer o melhor do Direito assegurar a ele um carter mais substantivo.

    Isso significa fazer o melhor do ponto de vista da integridade do Direito, torn-lo o mais

    ntegro possvel.

    Agora, quase encerrando, eu tomo em anlise a terceira das crticas. Essa , de certo

    modo, a mais poderosa das trs porque, acredito eu, parecer correta para muitos de

    vocs. Ela alega que a interpretao, tal como eu a expliquei, subjetiva, de tal sorte

    que, uma vez que concordemos que a questo de direito uma questo de interpretao,

    no faria sentido dizer, como eu digo, que existe apenas uma resposta melhor, mesmo

    nos casos difceis e controversos como os casos Riggs versus Palmer e o da Buick. A

    interpretao depende muito de como as coisas parecem a um nico intrprete, quesupe existir uma resposta melhor para as questes interpretativas colocadas nesses

    casos, vistas de seu ponto de vista especfico. Essa objeo profunda e acredito que

    vocs vo ficar felizes em saber que no pretendo explor-la em detalhes esta tarde.

    Mas quero fazer algumas observaes a seu respeito, que acredito serem pertinentes.

    De incio, uma vez que tenhamos entendido o mbito completo da interpretao, o

    mbito completo das atividades que tm um carter interpretativo, que temos buscado

    descrever ou delimitar, veremos, ento, que existem alguns cenrios, departamentos ou

    searas da interpretao onde naturalmente supomos que existem respostas corretas. Um

    exemplo a interpretao conversacional. A sua compreenso do que eu digo numa

    lngua estrangeira, e at mesmo a sua compreenso do que cada um de vocs diz aos

    outros em sua prpria lngua, uma matria muito mais complexa do que se pensa. Tal

    compreenso repousa sobre muitos tipos de pressuposies normativas, incluindo as

    suposies relativas racionalidade. E ainda mais, a maioria de ns acredita que, na

    maior parte do tempo, agimos acertadamente ao faz-lo. Pois bem, certamente, isso

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    especial. H razes evidentes pelas quais a interpretao da conversao tem essa

    natureza. Eu menciono apenas essa porque quero negar que exista algo inerente no

    empreendimento da interpretao que faa dela algo distintivamente subjetivo.

    Minha segunda observao esta: se meu estudo sobre a interpretao em geral estiver

    correto, ou aproximadamente correio, indagar, portanto, se a interpretao uma

    atividade subjetiva ou objetiva depende do carter das proposies subjacentes relativas

    ao objetivo finalidade dessa tarefa. Se estiver certo em afirmar que a interpretao no

    Direito sensvel viso que se tem sobre o objetivo do prprio Direito, e que o

    objetivo do Direito tem algo a ver com Justia, a incerteza jurdica seria, portanto, uma

    simples derivao da incerteza moral ou poltica. Se somos cticos a respeito do Direitose queremos dizer: "Oh, no existe uma resposta correia para um caso realmente

    difcil", isso deve ser porque somos cticos em relao moralidade poltica. Se

    pensamos existir uma resposta correia para as questes de Justia, pensamos, assim, que

    existem respostas corretas para as questes de direito, mesmo para as mais intrincadas e

    sobre as quais os professores de Direito e os juizes discordem.

    Essa pode parecer uma questo por demais surpreendente para ser formulada, pois umaidia muito difundida, principalmente entre os estudantes de Direito Norte-Americanos,

    a de que a moral subjetiva, que no existe verdade ou falsidade sobre as questes

    morais profundas, que so apenas uma questo de opinio. Pretendo falar mais sobre

    esse assunto em outras conferncias desta srie e discutir seu impacto no trabalho da

    Suprema Corte dos Estados Unidos (como, por exemplo, na questo do aborto) no

    Seminrio de Tquio no Centro Americano. Por ora, no entanto, quero apenas

    mencionar esse aspecto.

    Nunca encontrei nenhum estudante que efetivamente acreditasse no ceticismo moral

    que os estudantes comumente alardeiam. No quero com isso dizer que eles sejam

    hipcritas. Mas acredito que eles frequentemente fracassam quando buscam

    compreender a contradio inerente sua posio. Muitas pessoas, que agora tenho em

    mente, dizem-me que no existe uma nica resposta correta para essas questes to

    difceis com as quais a Suprema Corte lida. Eu, ento, indago: por que isso? E falo

    sobre a interpretao, de como ela relaciona Direito, moral e poltica. E, a, os alunos

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    me respondem: "Arr! Bem que ns dissemos. Pois agora voc diz que o Direito

    depende da justia e todos sabem que a justia apenas subjetiva". Ento indago a eles:

    vocs tm uma opinio formada a respeito do aborto enquanto questo moral? A cada

    um tem uma opinio diferente. Muitos dizem: "O aborto um crime". A maioria

    costuma dizer: A legislao antiaborto tirnica".

    E eu digo: vocs efetivamente acreditam nessas opinies? E eles respondem: "Claro que

    sim, inclusive vou participar de uma passeata esta tarde carregando faixas defendendo

    essas opinies". Replico: "Mas vocs disseram que no existe uma resposta correia em

    matria poltica, que esta no passa de uma questo de opinio...". A ento eles pensam

    e respondem: Ah, mas essa a minha opinio".

    Bem, a contradio evidente, no mesmo? Com certeza logicamente possvel

    assumir uma posio absolutamente ctica sobre o aborto, ou sobre qualquer outra

    matria referente justia poltica ou social. Mas a preciso que voc desista de sua

    opinio pessoal. E a maioria das pessoas confrontadas com estas questes vai preferir

    desistir da filosofia ruim a deixar de sustentar intensamente suas convices.

    J estou terminando. No vou aborrec-los mais com resumos. Quero, no entanto, por

    ser esta a primeira conferncia em Kobe, e como as palestras de Kobe sero dedicadas

    Teoria Geral ou Cincia do Direito, fazer uma referncia final ao assunto. Tenho

    enfatizado a contribuio que a filosofia - o estudo filosfico da interpretao, por

    exemplo - pode dar ao Direito. minha viso, de fato, que o Direito em grande parte

    filosofia. Mas tambm espero - e isso imperioso - que essas observaes possam

    sugerir a contribuio que a Teoria Geral ou Cincia do Direito pode dar filosofia e,

    alm desta, vida intelectual em geral. Eu disse anteriormente que os filsofos noestudaram o bastante o fenmeno da interpretao. Acredito que a interpretao uma

    matria muito importante e que, ao se considerar sua natureza em um nvel geral,

    contudo de uma maneira muito mais sofisticada e detalhada do que o fizemos, sero

    esclarecidos muitos aspectos importantes, como, por exemplo, o do estudo da arte e da

    literatura. Tambm acredito que os juristas tm uma grande contribuio a dar

    para a doutrina geral da interpretao. Na verdade, vou to longe ao ponto de sugerir

    que os juristas estariam melhor equipados que os membros dessas outras disciplinaspara refletir sobre a natureza e o carter da interpretao. Mas provavelmente agora

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    vocs vo dizer: "Como que um professor norte-americano de Teoria Geral do Direito

    pode acreditar que a sua disciplina seja o centro do universo?!". Por isso, acho melhor

    parar por aqui. Obrigado!

    (Traduo: Rassa R. Mendes - Reviso: Menelick de Carvalho Netto)

    Cad. Esc. Legisl. Belo Horizonte, 3(5): 27-71, jan/jun.1997