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Emile Boutroux, De la contingence des lois de la nature INTRODUÇÃO Originalmente, o homem, entregue às suas sensações de prazer ou sofrimento, não fixava-se ao mundo exterior; ignorava-lhe mesmo a existência. Contudo, com o tempo, distingue entre as sensações dois elementos, dos quais um é o sentimento de si, relativamente simples e uniforme, e o outro a representação dos objetos estranhos, mais complexo e cambiante. Destarte desperta-se nele a necessidade de sair de si e de considerar as coisas que o envolviam em si mesmas, a necessidade de conhecer. Não se pergunta em que ponto de vista deve se postar para ver as coisas tais como lhe aparecem, mas sim tais como são em realidade. Do mesmo ponto em que se encontra, seus olhos, abrindo-se a isto, descobriram uma perspectiva admirável, horizontes infinitos. Tal perspectiva se estabeleceu como um lugar de observação; trata de conhecer o mundo tal qual lhe aparece deste ponto de vista. É a primeira fase da ciência, onde o espírito repousa sobre os sentidos, o desejo de constituir o conhecimento universal. De fato, os sentidos lhe fornecem uma primeira concepção do mundo. Segundo seus dados, o mundo é um conjunto de fatos, de uma variedade indefinida. O homem pode observá-los, analisá-los, descrevê-los com crescente exatidão. A ciência é a descrição mesma. Quanto a

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Emile Boutroux,

De la contingence des lois de la nature

INTRODUÇÃO

Originalmente, o homem, entregue às suas sensações de prazer ou sofrimento,

não fixava-se ao mundo exterior; ignorava-lhe mesmo a existência. Contudo, com o

tempo, distingue entre as sensações dois elementos, dos quais um é o sentimento de si,

relativamente simples e uniforme, e o outro a representação dos objetos estranhos, mais

complexo e cambiante. Destarte desperta-se nele a necessidade de sair de si e de

considerar as coisas que o envolviam em si mesmas, a necessidade de conhecer. Não se

pergunta em que ponto de vista deve se postar para ver as coisas tais como lhe

aparecem, mas sim tais como são em realidade. Do mesmo ponto em que se encontra,

seus olhos, abrindo-se a isto, descobriram uma perspectiva admirável, horizontes

infinitos. Tal perspectiva se estabeleceu como um lugar de observação; trata de

conhecer o mundo tal qual lhe aparece deste ponto de vista. É a primeira fase da ciência,

onde o espírito repousa sobre os sentidos, o desejo de constituir o conhecimento

universal. De fato, os sentidos lhe fornecem uma primeira concepção do mundo.

Segundo seus dados, o mundo é um conjunto de fatos, de uma variedade indefinida. O

homem pode observá-los, analisá-los, descrevê-los com crescente exatidão. A ciência é

a descrição mesma. Quanto a uma ordem fixa entre os fatos, não há dúvidas: os sentidos

não dizem nada a este respeito. É o acaso, ou o destino, ou um conjunto de vontades

caprichosas que presidem o universo.

Durante certo tempo, o homem se contenta com esta concepção. Não era ela

bastante fecunda? Todavia, ao observar os fatos, o espírito lhes notava relações

constantes. Via que a natureza compunha-se de fenômenos que se chamavam uns aos

outros, e não de coisas isoladas. Constatava que a contigüidade dos fenômenos, a partir

dos sentidos, não era indicio seguro de uma correlação efetiva. Ele gostaria de poder

arrumar os fenômenos, não na ordem em que lhe aparecem, mas em uma em que

dependessem efetivamente uns dos outros. Além disso, a ciência puramente descritiva

lhe parecia insuficiente, mesmo inexata, porque falseava para si as relações entre as

coisas. Ele gostaria de lhe acrescentar o conhecimento explicativo. Este conhecimento

os sentidos não podem procurar. Pois, para adquiri-los, é necessário tomar notas das

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ligações observadas, e compará-las entre si, de maneira a discernir as ligações

constantes e gerais. Então, uma vez estabelecidos tais esquemas, seria preciso inserir

neles as ligações particulares que nos propomos explicar. Ora, os sentidos só apreendem

as ligações imediatamente dadas pelas próprias coisas. Contudo, o entendimento

interfere e oferece ao espírito um ponto de vista mais elevado, de onde as coisas são

percebidas precisamente naquilo que têm de geral. Daí o espírito encarrega o

entendimento de interpretar, classificar e explicar os dados dos sentidos.

O entendimento assim posto acima dos sentidos pretende, antes de tudo, superá-

los e construir, por si só, a ciência do mundo. Bastar-lhe-á, parece, tomar como ponto de

partida as idéias que aparecem como evidentes, e de desenvolvê-las segundo suas

próprias leis. Até que ponto consegue operar esta construção sem nada acrescentar aos

sentidos? É difícil dizer. Seja como for, ele logra uma ciência em que todas as partes

estão, é verdade, rigorosamente ligadas entre si e que, por isso, é perfeitamente una; mas

que, por outro lado, apresenta face às coisas reais uma divergência que os progressos da

dedução deixam mais e mais manifestas. Ora, a ordem das idéias só tem valor porque

explica a ordem dos fenômenos.

Diante da impossibilidade de constituir a ciência sozinho, o entendimento

consente em dar uma parte aos sentidos. Trabalharão em acordo para conhecer o

mundo. Enquanto um observa os fatos, o outro erige as leis. Seguindo este método, o

espírito tende a uma concepção do mundo maior que as precedentes. O mundo é uma

variedade indefinida de fatos, e entre estes fatos existem laços necessários e imutáveis.

A variedade e a unidade, a contingência e a necessidade, a mudança e a imutabilidade

são os dois pólos das coisas. A lei dá razão aos fenômenos; os fenômenos realizam a lei.

Por sua vez, esta concepção do mundo é sintética e harmoniosa, pois admite os

contrários sem restrição, e ainda por cima os conciliam. Ademais, permite, assim que

lhe mostre a experiência, explicar e prever os fenômenos com mais acurácia.

Impressionado por tais vantagens, o espírito nelas se compraz, tudo julgando por este

meio.

Porém hoje, tal concepção é definitiva? A ciência que pode criar o entendimento

operando sobre os dados dos sentidos é susceptível de coincidir completamente com o

objeto a se conhecer?

Primeiramente, esta redução absoluta do múltiplo ao um, do cambiante ao

imutável, a que se propõe o entendimento, definitivamente não é a fusão dos

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contraditórios? E, se o absoluto é inteligível, esta fusão é legítima? Ainda, basta que o

entendimento faça preito aos sentidos para que o espírito coloque-se em um ponto de

vista verdadeiramente central? Em realidade, esta concessão só interessa à pesquisa das

leis da natureza. Ela não implica uma mudança na concepção do mundo. No momento

em que o entendimento impõe à ciência sua categoria de ligação necessária, não

importa, pelo menos teoricamente, que os sentidos estejam ou não associados à obra do

conhecimento. É verdade que uma inteligência perfeita esvaziaria toda ciência, ou ao

menos o conhecimento de um só fato, considerado na totalidade de seus elementos. O

mundo permanece um todo perfeitamente uno, um sistema cujas partes necessariamente

chamam-se umas às outras.

Ora, esta categoria de ligação necessária, inerente ao entendimento, encontra-se

nas coisas em si? As causas se confundem com as leis, como supõe, definitivamente, a

doutrina que define a lei como uma relação imutável?

Esta questão interessa à metafísica e às ciências positivas. A doutrina que põe no

entendimento o ponto de vista supremo do conhecimento tem por efeito relegar toda

espontaneidade particular ao mundo das ilusões, ver na finalidade apenas uma

reprodução interna da ordem necessária das causas eficientes e deixar o sentimento do

livre arbítrio ignorante da causa de nossas ações, deixando subsistir apenas uma causa

verossímil, a qual produz e governa tudo através de um ato único e imutável. Ademais,

esta doutrina não dá suficiente conta da necessidade absoluta da observação e da

experimentação nas ciências positivas; ela introduz o fatalismo, mais ou menos

disfarçado, não somente no estudo de todos os fenômenos físicos sem distinção, mas

ainda na psicologia, na história e nas ciências sociais.

Para saber se existem causas realmente distintas das leis, é preciso buscar até

que ponto as leis que regem junto aos fenômenos participam da necessidade. Se a

contingência não é, definitivamente, mais que uma ilusão creditada à ignorância mais ou

menos completa das condições determinantes, a causa é apenas o antecedente enunciado

na lei ou bem a própria lei, naquilo que tem de geral; aí a autonomia do entendimento é

legitima. Porém, se se descobrisse que o dado mundo manifesta um certo grau de

contingência verdadeiramente irredutível, haveria espaço para se pensar que as leis da

natureza não bastam em si mesmas, tendo sua razão nas causas que as determinam, de

maneira que o ponto de vista do entendimento não seria o ponto de vista definitivo do

conhecimento das coisas.

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PRIMEIRO CAPÍTULO

DA NECESSIDADE

Por qual sinal reconhecemos que uma coisa é necessária, qual o critério da

necessidade?

Se tentamos definir o conceito de uma necessidade absoluta, somos levados a

eliminar aí toda relação que subordine a existência de uma coisa a uma outra coisa,

como condição preliminar. Logo, a necessidade absoluta exclui qualquer multiplicade

sintética, qualquer possibilidade de coisas ou leis. Ora, não há como investigá-la caso

ela se dê no dado mundo, o qual é essencialmente multiplicidade de coisas, que

dependem mais ou menos umas das outras.

Em verdade, o problema que abordamos é este: por qual sinal reconhecemos a

necessidade relativa, i. e., a existência de uma relação necesária entre duas coisas?

O silogismo é o tipo mais perfeito de encadeamento necessário, onde se exibe

uma proposição particular resultando de uma proposição geral que a contém, e que

afirmava aquela implicitamente no momento mesmo em que se afirmava esta. O

silogismo nada mais é que a demonstração de uma relação analítica que existe entre o

gênero e a espécie, o todo e a parte. Desta feita, aí onde há relação analítica, há o

necessário encadeamento. Contudo, este encadeamento, em si, é puramente formal. Se a

proposição geral é contingente, a proposição particular que se lhe deduz é, como de tal

se espera, igual e necessariamente contingente. Não podemos chegar, por meio de um

silogismo, à demonstração de uma necessidade real, senão a condição de anexar em

todas as conclusões uma necessidade que, em si, lhe seja superior. Mas esta operação é

compatível com as condições da análise?

Pelo ponto de vista analítico, a única preposição inteiramente necessária em si é

a que tem por fórmula A = A. Toda preposição na qual o atributo difere do sujeito,

como acontece quando de duas proposições uma resulte da decomposição da outra,

deixa subsistir uma relação sintética em contrapartida à relação analítica. O silogismo

pode transformar proposições sinteticamente analíticas à proposições puramente

analíticas?

Uma diferença se manifesta à comparação das proposições com as quais o

silogismo opera e com as suas conclusões. Nesta aqui, os termos estão ligados pelo sinal

=; naquelas, pela cópula é. Esta diferença é essencial?

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A cópula é, que empregamos em proposições ordinárias, tem relação com o sinal

=. Ela significa, quanto à extensão dos termos (a qual sob o ponto de vista do

raciocínio), que o sujeito só exprime uma parte do atributo, parte cuja grandeza relativa

não indicamos. A proposição “Todos os homens são mortais” significa que a espécie

“homem” é parte do gênero “mortal”, deixando indeterminada a relação entre número

de homens e número de mortais. Se conhecêssemos esta relação, poderíamos dizer:

“Todos os homens = 1/x mortais”. O progresso da ciência, acrescentemos, consiste em

determinar o mais exata e completamente possível as espécies contidas nos gêneros, de

maneira que, em uma ciência acabada, o sinal = poderia ser sempre substituido pela

cópula é. A fórmula de tal ciência seria A = B + C + D + ...; B = a + b + c ... etc.

Substituindo B, C, D etc, pelo seu valor, teríamos, de forma definitiva: A = a + b + c

+ ... Ora, esta é uma fórmula puramente analítica?

Sem dúvida, a relação entre A e suas partes é analítica, mas a relação recíproca

entre as partes e o todo é sintética. A multiplicidade não contém a razão da unidade. Ela

não é válida como alegação de que, ao se substituir a + b + c + ... pelos seus valores,

obtenhamos A = A, porque a ciência consiste precisamente em considerar A como um

todo decomponível, e divisível em partes[1].

Contudo, poderíamos conceber de outro modo distinto a forma analítica ideal a

qual tende toda ciência. A interposição de um meio termo M entre dois termos dados S

e P tem por efeito partir em dois o intervalo que resulta de sua diferença de extensão.

Igualmente, interporemos meios termos entre S e M, entre M e P, e assim

continuamente até que os vazios estejam inteiramente preenchidos[2]. Na seqüência

deste trabalho, juntaremos a essência suprema A, e tudo isso será vinculado por um laço

de continuidade.

Com efeito, este ponto de vista permite a redução de todas as proposições à

fórmula A é A. Mas, desta vez, a cópula é não pode ser substituida pelo sinal =. A

interposição de um número indefinido de meios termos não pode preencher inteiramente

o intervalo que existe entre o particular e o geral. As transições, mesmo que se tornem

menos bruscas, não ficam menos descontínuas; destarte, sempre resta uma diferença de

extensão entre o sujeito e o predicado[3].

É impossível reconduzir as relações particulares à fórmula A = A, i. e., de

remontar, pela análise, à demonstração de uma necessidade radical. A análise, o

silogismo, só demonstram a necessidade derivada, i. e., a impossibilidade de que uma

coisa seja falada, se outra é admitida como verdadeira.

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O vicio da análise, na medida que se quer bastar a si mesma, consiste em possuir

como explicação última a proposição idêntica, não podendo reduzir as proposições que

se empenha em explicar a tal fórmula. Só vem a ser fecunda se uma proposição idêntica,

como um conjunto de elementos heterogêneos, lhe é fornecido como ponto de partida;

ela só demonstra a necessidade que se desdobra em uma síntese necessária. Existem tais

sínteses?

A experiência - que não fornece conhecimentos universais, seja no espaço ou no

tempo, e que só faz conhecer as relações exteriores das coisas – nos pode revelar

ligações constantes, mas não necessárias. Antes de tudo, é preciso que uma síntese seja

conhecida a priori para que ela seja suceptível de ser necessária. Talvez, é verdade,

restaria saber se tal síntese é necessária, no ponto de vista das coisas, como é para nosso

espírito. Mas, inicialmente, basta que o seja para nosso espirito, para que não haja

ocasião de lhe discutir a realidade objetiva, discussão esta que só se poderia fazer

seguindo as leis do espírito. Se por acaso o rumo das coisas não se conformarem

exatamente aos princípios colocados a priori pelo espírito, deveríamos concluir que não

é o espírito que se engana, mas é a matéria que trai sua participação no não ser, por

meio de um resto de rebelião contra a ordem.

Por qual sinal podemos reconhecer que um julgamento é a priori?

Para que um julgamento possa ser dito a priori, é necessário que seus elementos,

termos e relações não possam ser derivados da experiência. Para que os termos possam

ser considerados como não derivando da experiência, não basta que sejam abstratos. Em

suma, a experiência não nos fornece qualquer idéia que não tenha ao mesmo uma face

abstrata e outra concreta. Eu não abarco em uma mesma intuição a cor e o odor do

mesmo objeto. As abstrações mais sutis podem ser apenas a continuidade da subdivisão

lograda pelos sentidos e operada pelo entendimento. Ademais, a própria experiência nos

põe no caminho desta continuidade, ao nos fornecer, no mister das coisas, de acordo

com a distância, a duração ou a intensidade dos dados, sejam mais ou menos abstratos.

Ora, é preciso, para que um termo possa ser considerado como tido a priori, que ele não

tenha origem na experiência, quer seja diretamante, pela intuição, que seja

indiretamente, pela abstração.

Do mesmo modo, para que uma relação seja considerada a priori, não basta que

se estabeleça, junto às intuições, uma sistematização qualquer, como se a experiência

não forncesse nada que se assemelhasse a um sistema: isso seria sair das condições de

realidade, mais até do que supor uma intuição absolutamente despojada de unidade. As

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percepções mais imediatas implicam o agrupamento das partes semelhantes e a

distinção de objetos dissemelhantes. Uma multiplicade pura e simples é coisa

absolutamente inconcebível, pois, se ela não oferece nada consistente ao pensamento,

tampouco pode ser dada à experiência. Há portanto, nos próprios objetos percebidos,

um certo grau de sistematização; assim, antes de afirmar que uma relação de

dependência estabelecida entre dois termos não deriva da experiência, é preciso ter

certeza que esta relação é essencialmente distinta daquela que constatamos. Esta relação

deve diferir radicalmente das que a experiência nos apresenta ou das que podemos ler

em seus dados.

O campo da experiência pode ademais ser claramente definido: são os fatos e

suas relações observáveis. Os fatos se distinguem em externos e internos, ou próprios ao

ser que é o sujeito deles. Pelos sentidos, podemos conhecer os primeiros; pela

consciência empírica ou sentido íntimo, podemos captar os segundos em nós mesmos.

As relações observáveis consistem em relações de semelhança e continuidade

simultânea ou sucessiva.

Um julgamento sintético é subjetivamente necessário, se ele é dado a priori; se

não, para que seja, no ponto de vista das coisas, um sinal de necessidade, é preciso, por

outro lado, que confirme uma relação necessária entre os termos que aproxima. Um

[termo] maior que enunciasse uma relação contingente transmitiria esta caracterista a

todos os seus conseqüentes. Ora, as relações objetivas que podem existir entre dois

termos são em número de quatro: relações de causa e efeito, de meio e fim, de

substância e atributo e de todo e parte, que podem se reduzir em causalidade e

finalidade recíprocas. De forma definitiva, sobram apenas as relações de causalidade e

de finalidade.

Não podemos dizer de qualquer fim que ele vá necessariamente se realizar.

Nenhum acontecimento é, por si, todo seu possível. Ao contrário, há uma infinidade de

outros possiveis além dos que consideramos. As chances de realização deste

acontecimento estão ligadas às chances de realização do outro, tal como o um está em

relação ao infinito; desta feita, a realização de um dado fim qualquer, caso se respeitasse

a uniformidade da sucessão dos fenômenos, é, em si, infimamente pouco provável, bem

longe de ser necessário. Ademais, mesmo que um fim seja dado como devendo ser

realizado, os meios a se empregar a este mister não são de modo igual determináveis.

Qualquer fim pode ser igualmente realizado por diferentes meios, assim como toda meta

pode igualmente ser alcançada por diferentes caminhos. É verdade que os meios não

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serão igualmente simples ou bons. Mas a despeito destas diferenças o fim, como tal, não

é visado; se o temos em conta, tal se dá porque erigimos o meio como fim secundário. A

realização do fim pelos meios supõe um agente capaz de conhecer, de preferir e de

cumprir. Em si, tal realização não é necessária.

De modo símil, a produção de um efeito pela causa, se a palavra causa é tomada

dentro do sentido estrito de força produtiva. A causa propriamente dita só se considera

de tal natureza se ela concebe um efeito. Demais, age somente em virtude de sua

natureza, não se atrelando ao valor estético ou moral do resultado. Não existe razão para

admitir um grau qualquer de contingência na relação pura e simples de causa e efeito.

Esta relação é o tipo perfeito, mas único, da necessidade primordial.

Assim, a necessidade só pertence às sínteses causais a priori, tanto objetiva

quanto subjetiva: somente elas podem conceber as conseqüências analíticas

inteiramente necessárias.

Resumindo, o critério da necessidade de uma relação é a possibilidade de

remontá-la analiticamente a uma síntese objetiva e subjetivamente necessária. O

princípio da ligação necessária das coisas, a pedra magnética cuja virtude se transmite a

todos os anelos, só pode ser a síntese causal a priori[4].

Se agora se concluísse que fora impossível estabeler a legitimidade de tamanhas

sínteses como princípios constitutivos ou reguladores do conhecimento das coisas

dadas, toda necessidade tornar-se-ia ilusória? Seguramente, não seria mais questão de

uma necessidade essencial, que reinasse em um mundo dado, porque, mesmo que

algumas sínteses implicadas na experiência fossem necessárias em si, o espírito, no caso

de que se trata, estaria fora de condições de se certificar delas. Todavia, a combinação

da experiência e da análise poderia manifestar um certo tipo de necessidade, a única, a

bem dizer, que as ciências positivas perseguiriam. Com efeito, concebemos que as

sínteses particulares empiricamente dadas pudessem ser remontadas à sínteses mais

gerais ainda, e assim até que lograsse um número mais ou menos restrito de sínteses

irredutíveis, praticamente. O ideal seria tudo remontar à uma só síntese, lei suprema

onde estariam contidas, como casos particulares, todas as leis do universo. Sem dúvida,

tais fórmulas gerais, fundadas definitivamente na experiência, conservariam sua

característica, que é fazer conhecer o que é, não o que não pode ser. Nada poderia

provar que fossem necessarias em si. Mas elas estabeleceriam entre todo os fatos

particulares, como tais, uma relação necessária. A menor mudança de detalhe implicaria

na desordem do universo. Ora, podemos admitir a possibilidade de uma necessidade de

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fato ao lado da necessidade de direito. Esta existe porque a síntese que desenvolve a

análise é dada a priori pelo espírito e une um efeito a uma causa. Porque esta síntese,

sem ser conhecida a priori, está implicada em um conjunto de fatos conhecidos, e é

constantemente confirmada pela experiência; ela manifesta, se não a necessidade do

todo, ao menos a necessidae de cada parte, supondo que as outras [sínteses] sejam

realizadas.

[1] Este trecho aponta um dos erros fundamentais do projeto comtiano das

ciências positivas: o abastardamento das ciências da noção de unidade do real e daquela

intuição inicial na qual se funda o hábito das ciências, na inteligência humana. (N. do S.

D.)

[2] Traduzindo: em uma hipotética Ciência do Homem, ao se fazer a análise

dela, pega-se uma proposição tal como “todo homem é mortal” que é universal, mais

outra, qual seja, “Sócrates é homem”, particular, e chega-se à conclusão “Sócrates é

mortal”. Contudo, há-de se perceber que a extensão do termo “homem” não foi

totalmente preenchida, sendo “mortal” e “Sócrates” elementos que alguma coisa dizem

daqueloutra, mas não tudo. Daí, podermos acrescentar outros termos que pudessem

completar o sentido cabal do termo “homem” – identificar nele todas as espécies –

através de nova análise, não só a partir dos termos originais, mas de termos que ainda

não tinham aparecido, v. g.: “todo homem é mortal” – “todo homem é corpo” e “todo

corpo é mortal”; ainda “todo homem é mortal” – “todo homem é matéria”, “toda

matéria é corpo”, “todo corpo é figura”, “toda figura é mortal” etc... , podendo tais

desenvolvimentos dar-se em ramos cardeais, laterais, colaterais, co-colaterais (eis

explicação dos diferentes ramos científicos, e, porque não, de todo saber que investiga

causalidades eficientes). O “A” seria o termo-razão de todas as conexões idealmente

possívels entre tais fenômenos, qualitativa (tipos de termos a serem escolhidos) e

quantitativamente (todos os termos que fazem parte do termo-razão A) falando. (N. do

S. D.)

[3] Em uma proposição universal afirmativa, o sujeito é universal (quantificador

Todo), mas o predicado particular (pois só diz um aspecto deste sujeito); em uma

particular afirmativa o predicado é universal, já que se refere à extensão toda do que se

lhe antecede, mas o que se lhe antecede? um sujeito particular, limitado pelo seu

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quantificador, e. g.: “algum livro é grande”; neste caso, “grande” possui extensão maior

que “algum livro”; “algum” é o quantificador que limita o termo “livro”. (N. do S. D.)

[4] A existência da relação natural é dada por nexos causais necessários, i. e.,

que se tais relações se não dessem daquela forma, a própria coisa-coleção não existiria;

contudo, só se poderia provar cabalmente a necessidade de tais relações através de,

primeiro, uma análise, uma decomposição dos dados, tal qual se faz na ciência e, em

seguida, com a síntese a partir destes dados. Mas esta síntese já se não mostra

necessária, os dados não coadunam naquela simplicidade harmônica exibida pela

natureza mesma, e contemplada pelo observador; mais ainda, na mesma ocasião da

separação dos dados para a análise, lidamos com campos tão díspares do conhecimento,

com áreas tão bastardas uma das outras que toda explicação que se quer total desfalece e

não medra. Afinal, o que aconteceu? A ordem é dada pela mente, um mero dado

subjetivo – enfim, um mundo kantiano? Mas se assim fosse, como os sentidos,

ininteligentes, sempre captariam, de forma constante, como experiência intersubjetiva,

esta relação, esta proporção? Se puramente objetiva, não seria objeto de reflexão

filosófica; ela não se entregaria ao sujeito observador, o que é absurdo, pois a própria

definição “objetiva” traz em si, implicita, a subjetividade de quem assim a classificou e

entende. Logo, conclui-se que a natureza tem em seu seio uma ordem sintética, i. e., de

coisas que estariam teóricamente acordes apenas per accidens – como numa coleção

ordenada, daí sintéticas – enoveladas por um laço necessário, que deve se dar, e não

poderia deixar de ser, já que o fato existe e é; senão, simplesmente, as relações

existentes não existiriam. Daí faz-se forçoso ver que a ordem foi dada antes da

existência dos seres individuais; o universo suporta em seu bojo o logos ou verbum,

através do qual dá à luz às relações acidentais metafisicamente necessárias. (N. do. S.

D.)