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De Lembranças e Fórmulas Mágicas

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Livro de poesia - poetry bookDe Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de CamargoEdições Tigre Azul/ FAC Mauá – Mauá – SP – 2007

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de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

Edson Bueno de Camargo

de Lembranças

&

Fórmulas Mágicas

Edições Tigre Azul

Prólogo.

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de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

Lembro de minha avó paterna cozinhando feijão, em um fogão de lenha, no rés do chão aos fundos de sua grande casa em Rio Claro, um tanto improvisado, quase uma trempe. Lembro da fumaça que a envolvia e na minha visão de criança tudo era mágico. Os seus santos espalhados por toda a casa, seus benzimentos meio que escondidos, seus chás e mezinhas os quais o mais importante era o famoso chá de ferradura, que envolvia leite, hortelã e uma ferradura incandescente. Minha avó nos amava ao seu modo silencioso, nunca lembro de ter me dito uma palavra de carinho, nunca lembro de ter feito uma repreensão. Em contraposição ao olhar severo de meu avô (que em compensação a tudo de nós era conivente), seu olhar era terno, triste mas resignado, profundo e misterioso. É triste lembrar de minha irmã e eu pedindo açúcar cristal para comer como se fosse um doce, criança da cidade desvendando o mistério do campo. Hoje nem minha avó nem minha irmã podem testemunhar em meu favor, pertencem a um outro plano, mais simples e mais completo que o nosso. O mundo das lembranças começa a ficar envolto em névoas, e começo a lembrar de coisas que não aconteceram, e algumas outras que ainda estão por acontecer.

Lembro de minha avó materna desde meus primeiros dias, de quando não deveria me lembrar de nada, foi ela que curou meu umbigo, deu meus primeiros banhos. Cuidou de mim em minhas primeiras febres, me criou ao seu modo medieval e cristão enquanto minha mãe dava seu tributo à fábrica. Fui uma criança doente e acredito que por alguns momentos duvidou que aquele menino bronquitivo e verminoso fosse vingar. Naqueles dias crianças morriam como moscas, e havia muito mais moscas que crianças. Quando nos mudamos para nossa própria casa à alguns quarteirões, a visitava praticamente todos os dias, na certeza de sempre encontrar um doce de abóbora, curau, doce de leite talhado e umas e outras tantas guloseimas, era faminto por comida e carinho. Minha avó foi perdendo o olhar para dentro a medida que a loucura lhe tomava a sanidade. Nada perdia, cada detalhe absorvido e analisado, sabia de tudo, e para tudo tinha uma opinião, mesmo próximo a morte e com a consciência turvada pela loucura.

Somos o resultado de todos que vieram antes de nós, daí a grande mágica que é estar vivo, sermos entes animados e respiradores de ar. A vida não tem explicação por si mesma, explicamos o corpo e o funcionamento quase mecânico de seus órgãos internos, da concepção, até a hora da morte, mas o grande mistério não é resolvido, porque um punhado de carbono e água passa a ser animado? Nossa existência no mundo é de tal precariedade que nos agarramos às lembranças como maneira de nos sentirmos vivos e pertencentes aos lugares e as coisas. A magia mais fantástica de todas está a nossa volta e são nossos antecessores que nos dão as pistas para desvendá-la. Carrego em mim os olhares de minhas avozinhas e na ausência destas é o meu olhar que dará à minha filha e ao meu neto meu aprendizado impreciso. Hoje sou o ancestral, herdeiro e responsável pelas ancestralidades que me precederam. Um elo na corrente que foi encadeado no princípio de tudo e que seguirá até o incerto, o fim de todas as coisas.

Edson Bueno de Camargo

Dedico,

a todos que me precederam e aos que estão por vir3

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ao meu clã e todos que estão sob sua proteção

às minhas avós Maria Julia e Mercedes

aos seus olhares

aos meus avôs José e António que sustentam minhas pernas

aos meus pais Emídio e Eunice, que não entendem bem o que é ter um filho poeta

ao meu neto André e a seus pais Sarah e Marlon

a minha amada companheira Cecília

à todos os membros da Taba de Corumbê em deferência ao poeta Domingos Arnaldo Bedeschi que em sua ausência nos deixa saudades

hoje todos estes estão mortos

Manoel Rodrigues de Carvalhoportuguês de nascimento

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teve o filho José Rodrigues de Carvalhomeu tataravôcujo nome da mãe não me chegou a estes dias

José casou-sejá na Bahia, em Riacho de Santanacom a índia pega a laçobatizada Clementina Maria de Jesusseu nome primeiro também no vento das eras se perdeu

conquistada a poder de panos e jóiasteve vários filhosLaudelino, Laura, Isaura, Jovelina, Mercedes, e uma outra meninacujo nome não nos chegou

Laudelino Rodrigues Carvalhomeu bisavôrompeu o chão do sertãoe passo por passoveio parar em São Pauloaqui trabalhou como um doidomas pela sua inteligência e perspicáciaestudou e enricou

conheceu Dona Adíliacom quem se casouque lhe deu três filhos

um deles minha avóMercedesque me olhava com olhos profundoscomo se visse minha almadentro do meu parco corpo

hoje todos estes estão mortosjá se vão dois séculos de históriaseis gerações lhe observamleitor

Exercício de Memória II.

o que este menino pequenofaz debaixo da máquina de costura?

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(uma Leonam comprada usada)em seu mundo particularcom seus silêncios e pequenos objetospalitos de fósforo queimados e suas caixas,caixas e vidros de remédio vazioscatados na casa da avóo grande quintal de explorações

parece que brinca com o areste censo rarefeito de levezase abriga da solidão dos diase das noites não dormidas(algo o espreitava do escuro)

uma velha mala carcomidaé sua arca do tesouroseus pertencestodos sempre bem guardadoscomo se tivesse semprearquitetando uma fugacomo se tivesse que se refugiardo tempo e do medo

crescer é uma questão de tempocom corpo em crescimentoas dúvidas assaltandojá não quer mais ir a igrejajá não consegue confiar em DeusEste já não lhe responde

mas a solidão permaneceum vazio escuro e friouma inconseqüência, se jogar para frentesem planos e projetos

pulou da infância a fábricaquebrou os objetos e a mágicaabandonou seus poucos brinquedos

o que faz este rapazcom seus livros debaixo do braço?suas certeza e bandeiras vermelhascaminha pelo mundocom sonhos de “viramundo”

ama a revoluçãoencontrou uma soluçãopara consertar o mundo

guardou em uma pequena caixaque construiu com cuidado,mas ficou um tanto quanto torta,uns dois ou três objetos, talvez mais se bem se lembra

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um guizo de cascavel, tipos de impressão,uma forquilha de estilingue feita de mamoeiro,um pequeno caderno de endereços pretocom um poucas anotaçõesmas nenhum endereçoe outras coisas perdidas na memória e de fato(um dia entregou a caixa e objetos coletados com o tempoa única filha, como quem confia uma herança)

a paternidade precoceum trágico acidentea responsabilidade de uma casasem projetos, sem futuro, só a certeza do amor verdadeiro

quem é este homemdiante de um espelho?rugas de expressão, cabelos e barbas brancas,carrega um velho cansaço,não se ilude mais com promessas de mudanças rápidas e certeiras,o mundo ganhou mais complexidade,nunca acreditou em milagres,talvez esteja perdendo, sua fé na humanidade,

mas mantémescondido em algum canto obscuromeio envergonhadosem jeitopor ser tão fora de moda

a última esperançaaquela, a que teima em não morrer.

Corredores.

nos corredores úmidos da fábricaescuro que as fracas lâmpadas não venciam

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a argila batida nas “marombas” e “tamborões”

o cheiro acre nas ventaso cinza sujo nas roupaso pó branco e fino, nos cabelos

nas frinchas das velhas vigas, os ratos nos observavamolhos negros na sombra

passei a esmo, o resto de infância e a adolescência na fábricano ruído das correias, o baque seco do pedal do tornoa louça branco tingida de vermelho sangueo peso das prateleiras e carrinhos

ali sonhei meus primeiros sonhose deixei de acreditar um pouquinho a cada dia

O Apito.

verde,tudo era invariavelmente

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pintado desta cor

portas, portarias,armários,maquinários, carrinhos de louça,caminhões

um verde escurosobre as superfícies de ferro e encanamentos

verde claro contrastando com cinzanas paredes dos prédios e galpões(algo cheira a nazismo)

paredes envelhecidasmuros altos e aramadosuma densa ramagemheras e sebesos recobriam em diversos pontos

ainda ressoaem meus ouvidos apressadosem sonhos e pesadelos

o apito da fábricaa se apossar do silênciode todas as manhãs

Gavetas de Guardados.

meninos correndo buliçososnas ruas de pedras inocentes

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de corte preciso e exato

granitos históricoscaminhosmuito percorridos

dentro da velha casaparedes brancas e encardidaso quarto semi escurecido teias e picomãs

gavetas de guardadosgrampos de cabelo enferrujadosprojéteis da revoluçãobulas de remédioanotações inconclusas e inúteis

Vitório Veneto – Casa.

há sempre uma velha casaem um ou outro poema meu

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reconheço um ou outro detalheda casa de minha avóonde quase nascie não existe mais

o que faço para me libertar do passadose a memória me assalta em sonhose também nos pesadelos

como demoli-latijolos e caliça caindo ao chãoas telhas francesas esverdeadas de musgonuma nuvem de poeiratrágicas lágrimas e lamentos(ouço a tosse de minha vó a noite) o jardim de sempre-vivasa roseira selvagem e espinhuda

tenho que convencê-la que já morreunão existe maisa não ser neste lembrançaque não quer me libertar

Rua Vitório Veneto –1969.

há uma rua que não me sai da cabeçaaquela em que nasci

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Rua Vitório VenetoVila Nossa Senhora das Vitórias

não esta que existe agoravia asfaltada, transito mão de direçãoassaltos a mão armadatodos os benefícios da modernidade

a das minhas recordaçõesera de chão batidocasas velhas rachadase reboque caindo

jardins de sempre-vivas, onze-horas,degraus de cimento vermelhoe portões verdes(igual o verde da fábrica)

esgotos e águas servidas correndo em valasgalinhas ciscando e cães, soltos

e nós livres como o ventocorrendo na poeiraou chafurdando na lama da chuva

Rua Vitório Veneto P&B.

por que minhas lembrançassão sempre em preto e branco?

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será que algo se perdeu com a passagem do tempo

tendo a imaginar um passado sem coresrostos em sépia e desbotados

avós e avôs poeirentos e amarelecidostios e primos que nunca conhecioutros que não tenho mais o nome de memória

o velho caminhão do meu avô(que na verdade, era só o motorista) este sim, me lembro bem, era verdeum velho Mercedes Bens alemãoque ele vinha dirigindo da fábricaestacionando em frente a nossa casa

a rua de terraas cercas de ripaso esgoto correndo nas valasos cães e galinhas soltos nas ruas

a barroca, as bananeiraso córrego pútrido de esgotosesconderijos secretos e amoreiras silvestres

e nós de calças curtaspés descalçosperdidos em nossa inocência hoje continuo perdidomas já não tenho mais a inocência

Cemitério da Vila Vitória.

brincadeiras infantiso auto falante da igreja

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tocava uma canção do Taiguara

aqui o silêncioentre os mármores e granitos encardidoscruzes e anjos sem narizcapim brotado em espigasgargalhadas e conversas lá fora

o cruzeiroe velas ardentesum cheiro indecifrável

aquele verão não volta maisnem o seguinte

calor do meio do dia insuportávelbrincadeiras entre os túmulosesconde-escondecom um certo receioum medo escondido sem revelar(todos tinham, porém ninguém admitia)

havia a estatua da santaque meu amigo jurou que se mexeuacompanhava com o rosto quem a fitasseaté hoje passo ali com arrepios na espinha

o tempo passouagora só volto ali por obrigaçãofujo daquele lugartenho medo, agora admito

temoque eu entre para ficar

Rememória.

vendedores de bijumatracas a avisar

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contava as moedasparcas e poucasnem sempre dava

havia o vendedor de alhocom seu pregão cantado“olha o alho, allheiroooo”tinha um que tocava uma cornetamas não me lembro mais o que vendia

havia um sorveteiroque trocava o produto por garrafas velhasenquanto empurrava a carrinhofazia um barulho engraçado

na casa da Rua Riachueloquase todos os diasna esquina com a Alberto Brancoo vendedor de algodão docecom seu carrinho brancocom uma engenhoca tocada a pedalaos nove anos de idade estas coisas são fascinantes

minha irmã não podia verque se enchia de desejoàs vezes até tinha uns trocadose lá estávamos nóscom aquelas bolas grandes e brancas de algodão docee ainda ganhava-se uma decalcomania com desenhos infantis

minha irmã já não está dentre nóspara confirmar e ajudar a lembrar

do espanhol com sua charretinhapuxada por um pangaré manco e magrovendia peixes a granel“olha a sardinha, pintado, cavala, viva, viva!”

onde estarão agora estas pessoasalém de estarem presas a minhas reminiscências

Genealogia.

meu avô

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desembarcou na plataformado trem que vinha de São Paulocom a miséria na bagagemdoençauns trastesquase nenhuma roupaa mulher e uma ninhada de filhos(entre eles minha mãe com quatro anos de idade)uma carta de apresentação para uma igreja evangélicae a fé que tudo iria melhorar

foram muitos anos difíceisvi um dia distraídoem seus olhos brilhanteso orgulho da prole de se multiplicarae em muito progrediradaquele dia em 1944

anos depois, final dos anos 50na mesma plataformadesce meu paique vinha em busca de trabalhopara morar na casa de meu tiologo começou a trabalhar

a cidade era fria e úmidamas, nunca mais olhou para trazMinas Gerais virou um mundo distante

conheceram-se na fábricameu pai e minha mãena mesma fábrica em que fui geradominha mãe na produção, onde quase nascionde trabalhei nas máquinas pintadas de verdeminha irmã tambémmeu avô e meus tios e seus filhosmeus primeiros amigos e também os inimigos

hoje a fábrica agonizatrabalhei em outros lugarespassou o tempo, casei, tenho uma filhaprofessora, nunca pisará no chão de uma fábrica (?)

nunca tive uma fé igual ao meu avô

ranger de dentes

ouço um bater de objetos

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e ranger de dentesatrás da porta alguma coisaa bulir no sótãotentando sair

mas nem olho para aquele ladosei muito bem o que está lá

são fantasmas do passadoque teimam em se libertaros tranquei a muitoeles que fiquem no seu devido lugar

o chá servido

o chá servido as fadas

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mais doce e mais suave (de rosas?)em minúsculas xícarasespera na clareirapelo sol iluminada

meninas sorridentes espreitama sua alegre armadilhatravessura de fim de tarde

pedra de toqueesquecida no fundo de uma gaveta

promessas de ouro escondidapapéisvelhas escritas indecifráveisduas moedas de prata do impériouma semente de romãsimpatia a muita olvidada

efemérides

minha mulher coleciona efemérides

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que eu cuidadosamente escondoà surdina em um baú trancado a chaves

vez por outranum descuidouma escapa

e se planta em seus olhos suavescomo mágoa cristalizada chorarmanchando de pranto o globo ocular

e cada gota de lágrimapuro soro e salé como agulha no meu coração

Nova Casa.

enterrarei nas fundações de minha nova casa

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todas as pedras miúdas e pequenas conchasque tem trazido com o tempo de tantos lugares

com isto amareiesta casacomo te amoeste tetocomo um abraço

(Estalagem Mercado do Pouso – Parati-RJ)

estrito senso

“ o imperador adorava

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liquens no jardimde pedras”

Guilherme Primo Vidotto Jr.

estrito senso

rompida da aurorameses chuvososmeias atrás da geladeiraanos passados a vento

nós atados aos galhosmaçãs na memória do temporomãs no jardim esquecido

remoinhos de ventoobservadosda porta da sala

ouro outro

ouro outro

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temponas vergas de um velho salgueirodeslocamento do ar

dona “Adília” assunta o céu- Vai chover minha filha –

a pequenina “Mercedes” recolhe o quase nadarotos arremedos de brinquedoscorre para dentro

daquela nova casa de hojenão entende por que não tem parada em lugaralgum

Ouvidos de gato.

minha vó

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com ouvidos de gatoouvia toda a casa

rangidosda memória do sol

euobservava aranhas tecendo a morte de pequenos insetosnos esteios(a velha casa não tinha forro)

troncos roliços enegrecidos de fumaçafogão de lenhafumegando as brasas

as velhas telhasabrigavam ninhos e nichosme assombravam criaturas invisíveis

Um Domingo.

compota de pêssego verde

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um travo no gostorecordação

minha mãena cozinhaàs voltas com o fogãoo cheiro forte me enjoa

um domingoperdido no passado

acordei tarde e de ressaca de vinhoum gosto horrível na bocaum promessa que não vou cumprir

um trem

um trem manobra perto daqui

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deitado na camasem sono

na salapoltronas esperam

como mesinha de centroum baú de ossos

branca calva de caveira

no porão desta casaum pássaro que não dorme

um universo de rumorespercorre as paredes

Nova.

corrente subterrânea

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subúrbios da memória

rochas de fadacaminho no bosque

códices/ tropeço da língua

teurgos malabaristasbrincam com o tempo e o vento

vértices suspensos

felizes os poetas que morrem cedo

o homem que vejo no espelho

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(não é meu paio pai é do Mario Quintana)

metido em um cardigam marromme passa a impressãoque o cadáver que foi dono da blusaera menor

mais magro com certeza“conheci-o ainda jovem”já morreu por certoeste outro

pobre sonhadornão encontrariaregaço neste nosso novo mundo

felizes os poetas que morrem cedonão precisam rever seus próprios conceitos

planos /asas

minhas fortalezas

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na pedra bruta assentadaspor terra ruíram(muralha de Jericó revisitadas)

afundaramcouraçados enferrujadosbarcos de papel na chuva

meus sonhos de meninodesabaram(depois dissome esqueci dos mesmos)

até meu inimigo (invisível)teve pena de mime me abandonou

arranquei meus planos /asascomo capim que dobra o vento

uma caixa

a maneira de Mario Quintana.

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arrumando o velho sótãoachei uma caixa velha /empoeiradacheira de anacronismos e recortes de jornais

fechei-a num sobressaltoe escondi sob os escombros e traquitanas

achei que fossem aforismosprestes a me condenar

tijolos, barro e cal

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por que essa casaque já não existe maisvolta sempre à memória?

habita presente o sonho(recorrente)

tijolos, barro e cal

a pequena varandade cimento vermelho

três degraus para a casadois para a rua

a caminho da fábricaminha mãe se voltou para mime sorriu

Totem de vidro.

passagem de fogo

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totem de vidroágua de geodo

sopro do dragãocongelado na pedrarubi escarnado

encravado no anel puro cristal transparentefruto o fogo e do sal

dordolhos

timbó

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curareé coisa de índioou troça de preto (véio)

tumescênciadormênciasonolência /indolênciamoléstia de mato

picada de inseto pólvoramicuimpiolhocobra de vidroolho de cabraserpente de guizomordida de cascavel

dordolhosfebre terçã(úmida) (seca)

bacia de sal grosso ao solbranco de doer os olhos

alho e óleo perfumadoguiné e espada de são jorgereza de quebrar quebrante

e só

cozinhando feijão

nunca viu

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sua bisavófilha

cozinhando feijãoem panela de ferro de três pésno braseiro que haviano fundo da casa grande

se sentes hojecompelida a dotes de bruxatalvez também deva a ela

em meio a vapores e fumaça da lenhacompletando a águaamassando alhosassuntando o tempopor entre os galhos das jabuticabeirasnos benzia o tempo todode mal olhado e de banzo de criança

minha vó cosia bordados infinitosem panos vindos de Santa Catarinacabelos brancos revoltosóculos na ponta do nariz

a casa na cidade nunca foi bem ao seu gostofoi adaptando os ares de sítiohorta, fogão improvisado no quintalseus santos em altares espalhados pela casa

se bem que o que não esqueçoera seu olhar de descansoseu sorriso curtoquase infantil

minha vóera a madrinha que eu nunca tive

lagartos ao sol

uma lagartixa sem cauda

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saindo do poço do elevadorindiferente

caminha na minha frente

ao perigo possível (humano)de minha presença

desdenha

lagartos ao solsão criatura ignóbeis e bizarras

(ao modo de Manoel de Barros)

lagartixas não se atrevemsenão morrem

teiú atravessou a estrada

no caminho de José Bonifácio

no veio de minhalembrança

teiús e lagartixasse irmanam

(no deboche)

nunca vi tal criatura

todas as noites

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recebo uma visitamesmo naquelas de vigília

há um fantasmaque subconscienteaflora de um inferno ( imaginário? )

nunca vi tal criaturasei de sua ronda

pelo quartoem torno de minha cama

de seus passos pesadosa profunda respiração

como uma criançaassustada

cubro a cabeça com lençóisesperando que dê sua hora

que o galo cantandolhe mande embora

temo que se ver meus olhosdeite sobre mim

e devore-os

conteúdo verde-azulado

suporte

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para chapéus e guarda-chuvasante

portas que dão para o nada

caldeiras fervendoconteúdo verde-azulado

bruxedos ou sopa primordialchamas espectrais

degraus vermelhos

degraus vermelhos

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duro cimento queimadoliso, frio e úmido

a velha casanão estásó a sombrade sua aparição

a ruaessa ainda estámas não a mesmame parece outra

a casa também talvez estejaescondida sob a outranão, não,foi demolida tendo certezavaranda e degraus vermelhos

uivo de cãolembrança primevaafunda aos primórdios

ainda há meninosuns poucos e escassos

na dobra do tempotudo sempre quer voltarmas, não

todos os dias

mesmo que me acolhe

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a febreo ventoe os corredores

todos os diascomo ritualse alumbram porões

lâmpadas incandescentescercadas por monjas jovens

água de cabaçasenso de direção torcidopara depoisse iluminar mais leve

outroainda nesta carreiraencontrei formiga“andando ao lado da casa”que poderiam ser cigarrasde tão invisíveis

nestes diaschove mais devagare todos os guarda-chuvassão azuisde desbotados

como se o velho pretonão fosse mais cor

doutra feitaminha vó entregou-me um punhado de cinzastirada norma da borralha

tudonunca fez o melhor sentido

quando falar sem palavrasera o mais ouvido

toda casa

toda casa

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tardefindo diaamarelece o chãonas folhas de outono

não parteo veio bruto

da pedramontanhapequeninas para a vistaimagemcabe dentro dos dedos

o olhar constróio que cintila o vermelhoprevendoque dará a noite

o escuroe vaga-lumes

não é por desleixocavo a luamais adianteentre as copasonde abrem os seus braços

o último ouroos galoslimparam do quintaldepois empoleiraram no telhado do fornopara na manhã acordar outro dia

minha vóé só lembrançaaos poucos se desvanecefeito foto antiga

o mercúriose verte em mancha amarela(sépia, me disseram um dia)enquanto grilos e cigarrinhasroem os bagos do trigo

sepulcroscemitériosonde se misturam sentimentos

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de paz e tristeza

cada túmulo uma história interrompidauma outra começada

crisântemos vermelhospelo aniversário

alamedas de sibipirunasfazem do chãoum tapete de cimento e pequenas folhas

aqui tudo revela tranqüilidadenão mais o medolá foraautomóveise conversas indiscretas

uma criançase aproxima sorrateirae depois desaparece

ressurge mais adiantecom uma vassoura na mãovarrem os sepulcrosdas flores amarelas,ganham uns trocados

quando era criançamal passava em frenteao cemitério

hoje visito velhos amigosnem quero me dar contaque esse será meu endereço

as meninassobem sobre tumbase riem se divertindonão tem o menor temor

antes se derramasse

antes se derramasse

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o leitenas fervurasrompesse o folenum berço em brasas

o que ouço do fogonão alimenta antes

breves peregrinose suas vieirasnão encontrarão abrigonesse dia

tocarão rabecas encantadase nenhum será suficiente

cantam joões de barrona tentativade encontrar uma fêmeamas estasestão indiferentesneste verãoque se vestede primavera tardia

não há maisgrossas colunas de fumaçachaminésapenas uma únicae derradeirafábrica fantasma

braços e pernas

braços e pernas

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te comandam

te acomodasno caminho que perfazes

não sabes onde vai dar

observas um meninoque traz à mãoalgo brinquedo

hora feridotalvez segredo

o degredo lhe destesa outro tempo

hora o lastimastesdoutra o olvidastesagora te assombrano teu desejo

ede todoacreditasque tu é ele

(mas não mais serás,nunca)

de lembranças e fórmulas mágicas

bicho folhatalo seco de mamão

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bicho galho taturanasmato seco

quintal

amoreirasdo vermelho ao roxose pintambarrocabananeiras e esconderijos pés descalçoscabelos ruivos (que escureceram)

o vento é tão livreque a vida nem tem sentido

o galo atentogalinhas e pintainhosvigiar o portão da horta

permanente vigília

canteiro de almeirão ( que aprendi a comer com meu avô)couvessalsa e hortelãmastigar alho em folhalimão cravo com sal

o velho pastor alemãoressona com um olho meio aberto

o sol ilumina o quaradorsobre a tela o macacão da fábrica(azul com um dia vesti)

as nêsperas madurasficam no altoas maiores tambémmas não havia medosubir o tronco era desafio diário

a agonia de tardes de chuvanão sabiater que um dia ir emboranão sabia

o apito longo da fábricaa agonia das tardes de chuvao trem do exílio

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e voltar sempre

filhafamíliasoluçosperdas irreparáveisrenunciar a revolução

o conhecimentosempre cobrao preço de uma inocência

seria insolência dizerque não ganhou nada

estamos plenosestamos vivose cada diatem o valor de um dia

o cajado

o cajado de freixonunca chegar a arco

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(aflição de Penélope,que entregará ao amado)

guizos e ossos miúdos(de pequenos roedores)um crânio completo de gatoa pele de um porco ao avessoainda pingando o sangue

velho avental de lona (verde)sabão borbulha no tachocinza e soda acrescidossebo e gordura de ossos

o tempo voa veloz

dedal enterrado num vasoterra úmida e pretadentes de cachorropele de lagarto

colher de alpacaressoa como um sino

neve em tom de dourado

rentes ao chão

flores brancas diminutascrescem rentes ao chão

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trevos de três folhasespigas de azedinha

respiro do porão escurograde e treliça de ferro

maisum verão chuvosoinfância e solidão

não havia ainda a poesia

no entantogoiabas verdesproliferavam os quintais

velhos frascos

velhos frascos de remédioampolas utilizadas

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moedas sem valor monetárioarruelas de açoquinquilharias e talismãs

pedras de turmalina pretacristais imperfeitosencontrados pelo chão

relíquias de menino(embebido até os ossosde solidão)

numa caixa feito baú de piratascuidadosamente guardadaà olhos inconvenientes

vidro enterradoà maneirade tesouro

pequenezas & infortúnios

andaesta alma

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desassossegada

não por estaspequenezasque nos afrontam a vida

infortúniosque apereiamfeito cães de Beijingpequenos pequinesesdestes que ladramàs portas e portõesminiaturas ridículasde dragão

as mazelas são outrasmais fundasfeito traição na quaresma

coisas de não correspondençae coração ferido

no primeiro dia

no primeiro diaas chaminés

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pareciam mais altas(talvez eu tenha encolhido)

era tardee o horizontetingiu-se de carmim

como violetasantes de murchas em cinza

quanto as pedraso matiz mauá do granitobrancas de atavio se vislumbravam

(como foto desfocadao velho trem de aço entrava na estação)

não eram portanto o saldo mar portuguêsem minhas chinelas

o poeta não maisque outro fantasmaem meu mapa astrológico

nunca guardei rebanhosnem acrediteique deus pudesse existirmuito menos que não

(assombrava minha infância)

de restofica este travode enxofre em minha línguagosto de noite mal dormida (mais uma)e pesadelos encavalados (e esquecidos)

empunhadura

o corpoempunhadura de adaga

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que percorre e fere

risco de luzrelâmpago na írisazulam planos epalmas

aqui no sonho

como se podequerer tomar à mão

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o intangível?

ai dorque supera o sonhoou o sonhonos recupera da dor?

por que tudo issome dá uma profunda nostalgia?como canção do Chicoe cravos guardados na gaveta

como são frágeis estes no jardimmas, sua lembrançasuperara a dor do malgrado tempo

e habitaaqui no sonho

mecanismos de relógio

o velho suíçotirado da algibeira

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e rompido a martelo

saltaram a esmorodas dentadas e mola entrelaçados

mecanismos de relógioquando observadosesparramados sobre uma mesanão fazem o menor sentido

derradeiras sementes

quando o Sol se tornar uma gigante vermelha, não haverão mais tardes ensolaradas. Todos os dias, rotina religiosa, uma pequena dose de aguardente como remédio esperado

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um ato de condescendência com o pequeno pecado, distribuía bênçãos pelas ruas e esquinas, mas, não acreditava em ressurreição

único sacerdotee dignitáriode uma religião

não existiam neófitoscortinas de cordasandálias de pecador

tentou insistente o uso do telefone, até o ultimo crédito do cartãoretirou dos bolsos as derradeiras sementes de papoulacuspiu para o céu em um último ato de apostasia

agora o trigo cresceriacomo o ouro da tigela

dois gomos de cominhouma folha seca de hortelã

sacou uma navalha novacabo de madrepérolaaço peruanoforjado em Potosi

o sangue nas narinasa rajada do vento de maioeriçou os pelos das costas das mãos

o menino atravessou a ruaentregando um pacoteembrulhado em papel branco

os pecados

agoradepois de tanto surrealismo

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este sentimento anacrônico

deu de me comparecerum lirismoimperfeito de fora de hora

como se o relógio do tempofosse quebradovoltando para tráse continuasse retornando

o que será dos mortosque partiram para a desvidacom um sorriso nos lábios

quem pagará esta dívidajá coberto o bezerro de sangue

o que cobrará o seu preçose não ocorrerem os pecadosque nos deram a origem

sete corvos

um Sollento e certo se tingir de carmim

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no horizonte agonizandopara a prece do por do sol

neste mesmo diaaconteceu de minha filhacontar ter vistosete corvos empoleirados na cercaao lado da velha escola

os arames apodrecidospaus podres equebradosobservam o milharal tombado

recordei de meus dias de espantalho(colada as costelas como ripas)que ainda hojeme sinto paralisado

os corvos farão de ninho os meus ombrosenquanto se fartam de meus olhos

entre verdes e amarelos

figueiras bravase liquens

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entre verdes e amarelosdisputam a posse do muro

(um pardal impassívelobserva a tudo)

a água já diluiu a alma de cimentoo tempo quebra as últimas resistências

tijolosque ainda resistempor portar a marca do fogodo ferro na argila

vermelhos como os fornos incandescentesroubados da terraem sua substância

reside o fogo da madeirado corte da mata

que colheu suavebrotos e folhas verdesas lâminas de luz

e o calor do Sol

descrever a dor

o quanto de palavras são suficientespara escrever liberdade

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e descrever a dor

quantos ventos enfunaram as velasarredadas ao Solpara que se rompessem as ondas do mare a linha da maré

há um momento que me desiluditão completamenteque viver é carregar um fardo

mas acreditar é possíveldesacreditar quase impossível

está fé ainda me mataa coroa de Cristo em torno do meu coraçãoaperta quanto menos em chama ele arde

masmeu olhar nunca deixou de ser triste

só há pazno azul do mar

e na rebentação das ondas

na noite imensa da lua

grafado de forma rústicarisco em uma rótula

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pela ponta de pedraem paredes ásperas

depoisa busca do alinhamentodos cristais específicose sua linha de clivagem

nos sulcos obtidosse aplicará óxido de ferroocra dos feitiçoso mênstruo da terra

a issose adicionarãocarvão e óleos animais e vegetais

tudo a luz de velas ancestraisbeberagense histórias de fogueiras

à sombra do velho carvalhote esperarei na noite imensa da lua

cheiros

cravo da Índiacominho

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cheirode ervas que queimam

benjoim e canela na brasa úmida e dolorosa

minhas camisas velhas

talvez te incomodemminhas camisas velhas

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(essas que uso o tempo todo)são testemunhas do tempocomo meus sapatos rotospisam à eras o mesmo pó

(antigas sandálias)

totem

totemconstrução de símbolo

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fibra a fibraalimenta-se do mênstruomulher - terra

que se converte em arte(mis)árvore de seiva vermelha

decifrar o conteúdo

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se pudessedecifrar o conteúdodas gavetas

como cartomante cegaque tateia os sulcos das mãoslendo o futuro em braile

do fruto selvagemque se desidrata

(como marcador do tempo)e denuncia

sementes dispersascarregadas de presságio

(e possibilidades interrompidas)

2_

acreditar na promessaque segreda cada lumeque o vento não trouxe

ainda pode cortara navalha enferrujadaque caiu no ostracismo e anacronismo

brincos de cigana(nunca usados)

papeis amareloscom sua escrita roxa

moedas de rincões desconhecidospaíses que não constam maisem compêndios e mapas

as fronteiras foram (inter)rompidaspelas esteiras dos tanquese tiranos perturbadores

(outros pela geopolítica do ódio e do racismo)

3 _

haverá (sempre)cartas que

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nunca serão lidas

números de tômbolae naipes que se destacaram dos baralhos

pedras de micae turmalinas sem nenhum valor

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sempre sinto que é meuo lugar do enforcado

carrego o ás de espadaso gládio negro do destino

cravado em pelo

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sempre haverá margaridas selvagense dentes de leão

meio aluado

minha avôsempre dizia à minha mãe

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este menino é meio aluadoestranho e taciturnoparece que fala em outra línguanas suas engrolações

vê coisas em cima do guarda roupaque só ele percebe e sentecoleciona insetos mortose vidros de remédio vazios

o que esperar de meninos estranhosa não ser que virem poetas

dor incomoda

guardar caixas de remédios vazias

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drágeas nulase anacrônicasque não curam esta dor incomoda

por que guardamos remédios que não vamos usar mais?lotamos caixas e prateleiras como trapos velhos de bandeiras de combate?

há algo de não sutil em tudo issoporque isto já foi um diae outro novamente

os olhos de meu avô

quando o tempo viração de ventode recolher guaxuma para fazer vassouras

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de varrer o forno para assar o pãoque minha vó, minha mãe e minhas tias haviam preparado

chegou antes de muitas chuvasque meus olhos não pediram perdãoas brasas vivas e incandentesos tijolos vermelhos também embrasados

a massa do pão amalgamava tudode lágrimas escondidas a feridas no coraçãoo tempo corria lentoe os cães mediam o quintal

quando vicejava nas hortas cercadas de paus e ripaso almeirão colhido na horacom óleo, vinagre e salera comido cerimoniasamente

meu avô tinha olhos tão profundos que me perdia dentro delestinha olhar de ver tudonão perder nenhum detalhenós ao redor a ouvir suas histórias

da cozinha os olhos da minha avó trespassavam perscrutando nosso pequeno mundo

(antes da loucurafazia muitos doces e bolossempre me guardando um pedaço)

de Domingo não havia o apito da fábricaas moças e rapazes iam ao cinema

tenho lembranças em preto e brancomas a cor de meu cachorro era amarelaas paredes de minha escola ainda são cinza e verdeassim como as da fábrica

hoje olho meu netocom os olhos de meu avô

Sob raiz de angico

placentaraiz materna

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cravada a carvão e salna raiz da outra mãeàquela mais antiga

ao salgueiroque arca seus membrosum cumprimento sutil

o campo sagrado assim preparadose enraízam às novas gerações

todos los hombres son Angeles

a estrela rompe

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a rotae ilumina distraída

o quintal desta minha casa

entre os corredoresuma luz fantasmagórica

que tem medo de espelhose janelas

carece de portaesse cômodo que contém águae cerâmica colorida

a velha perra dormitao sonho de velhas calçadas

caminha sonora e late

a garagem abandonada aos livrosmóveis velhos e licores empoeirados

mira madretodos los hombresson Angelespero sísin asas

nos degraus da concha acústica

I ‘ve got you under my skin.C. Porter.

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onde estão todos as garrafas para leite, o vidro e as chapinhas de alumínio, o pão embrulhado em papel de seda, cuidadosamente desembrulhado para ser aproveitado?

o sol caustico daquele invernoteus olhos vermelhos de tanto chorarseguia uma agulha de bordado sob a peletuas veias azuis eram como rios da velha Europa

e meu caderno de capa negraretalhado de uma escrita hoje indecifrávelcalhamaços de papel guardados em perfeita inutilidadejunto a uma garrafa de leite de vidroaquelas com chapinha de alumíniodos quais o velho japonês de bigodes brancosfazia tisurus prateadosque brilhavam no sol da tarde

teus joelhos grandes e a magreza as camisas de gola redonda para as meninas

(eu escrevia poemas escondido)

tudo se resumia num seloconservado em uma caderneta faltando duas páginase tardes de domingo inúteissentado nos degraus da concha acústica

um velho amigo

um velho amigoestes das antigas

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me bateu à porta

portava um óculos escuroscabelos despenteadose um olhar no vazio

me falou do presidentee da crise política nos jornais(qual crise?algum dia não houve uma crise qualquerpara alguém ganhar algum dinheiro?)

esse nós elegemostomamos pauladas da políciae o carregamos nas costas na praça

a revolução morreu em nósestamos um tanto combalidosficamos anososassim como nossos sonhos da adolescência

velhos amigos são momentos perigososo tempo da segadora cada vez mais próximo

e tudo o que quero ver hojeé poesiae meu neto em seus cueiros

de Lembranças & Fórmulas Mágicas

Edson Bueno de Camargo

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Edson Bueno de Camargo nasceu em Santo André - SP, em 24 de julho de 1962, mora a partir de seu segundo dia de nascimento em Mauá – SP.

 Publicou: ”O Mapa do Abismo e Outros Poemas” Edições Tigre Azul/ FAC Mauá -2006, “Poemas do Século Passado-1982-2000” edição de autor - 2002; “Cortinas”, com poesias suas e de Cecília A. Bedeschi - 1981; participou das antologias poéticas “As Cidades Cantam o Tamanduateí que Passa”.da Prefeitura do Município de Mauá e “Poesia Só Poesia” Editora Novas Letras. Junto com os amigos escritores da extinta Oficina Aberta da Palavra, grupo de Mauá-SP, edita o fanzine aperiódico "Taba de Corumbê".

Participa do grupo poético/literário Taba de Corumbê, do qual por aclamação foi intitulado Cacique e das aulas da Escola Livre de Literatura de Santo André-SP, como aprendiz de mundo. Recentemente conquistou o 1º lugar no I Prêmio Off Flip de Literatura 2006 – Categoria Poesia em Paraty-RJ e Menção Honrosa no 24o Concurso Literário Yoshio Takemoto - categoria poesia livre - São Paulo – SP.

 Edson Bueno de CamargoRua José Cezário Mendes, 104 Vila Noêmia – Mauá – SP – Brasil.CEP – 09370-600correio eletrônico: [email protected]

http:// www.secrel.com.br/jpoesia/ebcamargo.html http://umalagartadefogo.blogspot.com/http://www.eldigoras.com/eom03/indic/buenodecamargoedson.htmhttp://www.gargantadaserpente.com/toca/poetas/edson_bc.phphttp://pt.wikipedia.org/wiki/Edson_Bueno_de_Camargohttp://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=5443045

O poema “Nova Casa” foi publicado na agenda Livro da Tribo - 2005-2006 – pág. 95 - Editora da Tribo - São Paulo-SP; o poema “rentes ao chão” foi publicado no site PD- Literatura http://www.pd-literatura.com.br/pd2004/poemas/set.html em setembro de 2004, no site Pliegos de Opinion http://www.pliegosdeopinion.net/pdo11/11barandal/11poesia/edsonbueno.htm e no site Revista o Caixote n.º 14 http://www.ocaixote.com.br/caixote14/cx14_poemas_camargo.html ; o poema “todos los hombres son Angeles” foi publicado no site Varal de Literatura http://www.varaldaliteratura.ale.nom.br/poemas2.php ; o poema “de lembranças e fórmulas mágicas” foi publicado no site Pliegos de Opinion http://www.pliegosdeopinion.net/pdo11/11barandal/11poesia/edsonbueno.htm e na Revista O Caixote n.º 14 http://www.ocaixote.com.br/caixote14/cx14_poemas_camargo.html

Orelhas:

O seu eu-lírico é como um Gregory Sansa metamorfoseado arrastando-se pelas frestas mais escuras da memória, porém mais do que só memorialismo, sua poesia agora busca imagens com uma pequena lanterninha, no fundo do subconsciente. E o leitor fica a

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lembrar-se de uma infância muito antiga, mais antiga que a lembrança, um tempo em que as sensações eram tudo.

Mas olha, o teu poema, a tua poética, bebendo em fontes orientais, conseguiu uma síntese muito original entre esse nosso memorialismo bucólico, mineiro, drummondiano, e a delicadeza sintética dos raicais, dos ideogramas, dos origamis. Seus poemas são cerimônia do chá com bolinho de queijo!

Jorge de Barros – poeta, contista e guerreiro da Taba

...como sempre tuas poesias extremamente inteligentes, que deixam transparecer um mundo mais amplo do que teu escrito registra. Vejo nele fantasmas rondando nossos pensamentos , mar em fúria incomodados com os abusos da ciência, cabelos revoltos pela intransigência do vento...

Leonor Domene Pedrão – escritora na aurora da vida e minha tradutora para o espanhol

Acredito piamente na grandiosidade da alma que cada um de nós traz consigo ou em si. Nós  (cada um de nós) deve saber aproveitar a generosidade divina para  polir o seu "eu" e, deste modo, servir o mundo com boas acções. Os  escritores tentam fazê-lo por via da palavra, tal como tu o fazes com  a perfeição de um ourives e segurança de um cirurgião.

Conceição Cristóvão – poeta angolano

fiquei surpreso e feliz com a chegada do seu livro pelo correio - entre tantos outros mapas, guardo-o junto ao meu tesouro pessoal .agradeço. a poesia é sempre um belo presente.    coloco o poema Varais - e sua beleza imensa - entre os meus poemas preferidos. Mario Pirata poeta / brincadeiro

Gosto de ler as suas imagens fortes, e gosto de ver que você continua com toda a verve.

José Carlos Mendes Brandão – poeta e ensaísta

...tem um estilo muito bonito, amadurecido, usa vocabulário com dosagens adequadas, enfim, sua obra é de excelente qualidade, ao contrário do que tanto se vê na Internet...

Perce Polegatto - escritor e ensaísta

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