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1 DE MATÉRIAS E ROMANCES: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O USO DA LITERATURA EM PESQUISAS HISTORIOGRÁFICAS CAVALHEIRO, Gabriela da Costa (UFRJ) 1 Introdução Pensar a relação da Literatura – e áreas afins – com a História é um tema discutido e redescoberto constantemente por diversos trabalhos acadêmicos, tanto no Brasil quanto na Inglaterra e nos Estados Unidos. 2 Contudo, (re)pensar o lugar de narrativas ficcionais como documentos para investigação historiográfica dos séculos XIII e XIV no medievo inglês, nosso recorte espaço-temporal, pode receber, ao menos, alguma credibilidade por seu caráter desafiador e revigorante, uma vez que pressupõe novas leituras acompanhadas de renovadas perspectivas teórico-metodológicas. Compreendemos o romance medieval, objeto de nosso presente trabalho, como gênero literário híbrido a reunir, principalmente em sua forma, elementos de outros gêneros contemporâneos, como os épicos heróicos, a poesia trovadoresca, a hagiografia e, ainda, as canções de gesta (mesmo tendo sido o seu declínio diretamente proporcional à expansão do romance como gênero de maior expressão no medievo europeu). 3 As narrativas desse corpus literário variam em nuances que dialogam com o local de sua produção, haja vista a diferença notável, por exemplo, entre os romances caval(h)eirescos de Chrétien de Troyes (1135 – 1191), os de Wolfram von Eschenbach (1170 –1220), os de Hartmann von Aue (1180/85 – 1 Mestranda em História Comparada e bolsista CAPES pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, desenvolve pesquisas sob a orientação do Prof. Dr. Álvaro Alfredo Bragança Júnior. 2 Referimo-nos a esses três territórios por serem o local de origem e dispersão dos trabalhos por nós utilizados como norteadores de nosso estudo, a saber, por exemplo, as excelentes pesquisas desenvolvidas pela historiadora brasileira Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva (UFRJ), as reflexões da historiadora inglesa Laura Ashe (Universidade de Cambridge), os trabalhos da crítica literária inglesa Judith Weiss (Universidade de Cambridge), as pesquisas da professora inglesa Rosalind Field (Universidade de Londres) e as obras do também crítico literário norte-americano Christopher Cannon (Universidade de Nova York). Vale ressaltar, ainda, os estudos inovadores da pesquisadora brasileira Daniele Gallindo Gonçalves Silva (Otto-Friedrich-Universität Bamberg) 3 Para uma leitura panorâmica e bastante clara dos gêneros literários de grande expressividade no medievo europeu ver SPINA, Segismundo. A cultura literária medieval. São Caetano do Sul: Ateliê Editorial, 1997.

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DE MATÉRIAS E ROMANCES: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O

USO DA LITERATURA EM PESQUISAS HISTORIOGRÁFICAS

CAVALHEIRO, Gabriela da Costa (UFRJ)1

Introdução

Pensar a relação da Literatura – e áreas afins – com a História é um tema discutido e

redescoberto constantemente por diversos trabalhos acadêmicos, tanto no Brasil quanto na

Inglaterra e nos Estados Unidos.2 Contudo, (re)pensar o lugar de narrativas ficcionais como

documentos para investigação historiográfica dos séculos XIII e XIV no medievo inglês,

nosso recorte espaço-temporal, pode receber, ao menos, alguma credibilidade por seu caráter

desafiador e revigorante, uma vez que pressupõe novas leituras acompanhadas de renovadas

perspectivas teórico-metodológicas.

Compreendemos o romance medieval, objeto de nosso presente trabalho, como gênero

literário híbrido a reunir, principalmente em sua forma, elementos de outros gêneros

contemporâneos, como os épicos heróicos, a poesia trovadoresca, a hagiografia e, ainda, as

canções de gesta (mesmo tendo sido o seu declínio diretamente proporcional à expansão do

romance como gênero de maior expressão no medievo europeu).3 As narrativas desse corpus

literário variam em nuances que dialogam com o local de sua produção, haja vista a diferença

notável, por exemplo, entre os romances caval(h)eirescos de Chrétien de Troyes (1135 –

1191), os de Wolfram von Eschenbach (1170 –1220), os de Hartmann von Aue (1180/85 –

1 Mestranda em História Comparada e bolsista CAPES pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, desenvolve pesquisas sob a orientação do Prof. Dr. Álvaro Alfredo Bragança Júnior. 2 Referimo-nos a esses três territórios por serem o local de origem e dispersão dos trabalhos por nós utilizados como norteadores de nosso estudo, a saber, por exemplo, as excelentes pesquisas desenvolvidas pela historiadora brasileira Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva (UFRJ), as reflexões da historiadora inglesa Laura Ashe (Universidade de Cambridge), os trabalhos da crítica literária inglesa Judith Weiss (Universidade de Cambridge), as pesquisas da professora inglesa Rosalind Field (Universidade de Londres) e as obras do também crítico literário norte-americano Christopher Cannon (Universidade de Nova York). Vale ressaltar, ainda, os estudos inovadores da pesquisadora brasileira Daniele Gallindo Gonçalves Silva (Otto-Friedrich-Universität Bamberg) 3 Para uma leitura panorâmica e bastante clara dos gêneros literários de grande expressividade no medievo europeu ver SPINA, Segismundo. A cultura literária medieval. São Caetano do Sul: Ateliê Editorial, 1997.

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1205) e os romances insulares,4 em sua grande maioria de autoria anônima. Essa literatura

está, por sua vez, associada a grandes grupos temáticos denominados matérias, cuja confecção

terminológica data de meados do século XII, nas reflexões do poeta francês Jean Bodel (1165-

1209), que instituiu a Matéria de Roma, a Matéria da Bretanha e a Matéria da França.5 As

peculiaridades temáticas e ainda estruturais dos romances insulares, associadas a anos de

pouca produção crítica e reflexiva acerca da relação dialógica texto/contexto em torno

daquelas narrativas, geraram leituras confusas e pouco engajadas que, por sua vez, criaram

um vácuo de anos na produção acadêmica voltada aos romances insulares. Contudo, a partir

dos anos 1980, tem-se visto um aumento gradativo de estudos sobre essa literatura,

especialmente em território inglês e norte-americano,6 fato que, felizmente, permite-nos

dialogar com outros autores, possibilitando, assim, o debate e a discussão de nossas

reflexões.7 Entretanto, apesar da qualidade e da seriedade dos trabalhos recentemente

produzidos, ainda faltam reflexões voltadas a um paradigma de estudo interdisciplinar,

especialmente num diálogo com a História que, como pretendemos demonstrar, tem

excelentes contribuições a oferecer.

Refletindo, assim, sobre a relação entre o fazer historiográfico a partir de textos

literários ficcionais, no caso, o romance insular, propomos um estudo que integre a variedade

dessa literatura, bem como o período conturbado de sua criação, a novos paradigmas

metodológicos que permitam ao historiador acessar o referido contexto do medievo inglês a

partir de uma leitura que viabilize a análise de vários elementos esboçados por essas

narrativas que fornecem indícios de variados discursos acerca de temas – ou objetos de

análise – pouco explorados, ou ainda, colocados em segundo plano, como é o caso do estudo

das representações genderizadas, do corpo, do casamento, das relações de poder, entre outros.

4 Como veremos adiante, a problemática classificação tipológica “Matéria da Inglaterra” vem sofrendo, nos últimos anos, encalços de renomados pesquisadores, como Rosalind Field, cujo trabalho de revisão dessa terminologia é de grande contribuição. Chamamos aqui de romance insular essa produção literária em diálogo com as reflexões de Laura Ashe em sua obra Fiction and History in England, 1066-1200. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. 5 As observações de Bodel sobre as três matérias surgem em sua obra La Chanson des Saisnes (cerca de 1200). 6 Para um panorama crítico e bastante atualizado dessa produção ver COOPER, Helen. The English Romance in Time. Transforming Motifs from Geoffrey of Monmouth to the Death of Shakespeare. Oxford: Oxford University Press, 2004. 7 Referimo-nos aqui ao nosso diálogo com a professora Judith Weiss, da Universidade de Cambridge, e a professora Rosalind Field, da Universidade de Londres, cujas conversas têm contribuído cada vez mais para o desenvolvimento e amadurecimento de nossas leituras acerca dessa literatura.

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Referenciais teóricos

Nossa proposta de abordagem dos romances insulares pauta-se, primeiramente, num

paradigma teórico-analítico pós-estruturalista, fato que se expressa em nossa forma de

aproximação dos objetos do presente estudo. Ou seja, neles reconhecemos discursos ladeados

por características pertencentes a contextos específicos e, portanto, não generalizantes. Tal

paradigma permite-nos, ainda, acionar nossa subjetividade como sujeitos atores e receptores

de elementos/influências externos a nossas leituras teóricas. Logo, nossa proposta,

especialmente por seu caráter inovador, está aberta ao diálogo com outros pesquisadores e a

todas as contribuições que possam ser feitas nesse sentido.

Uma preocupação quase imediata quando da leitura dos romances insulares como

matéria documental para um fazer historiográfico é a caracterização dessa literatura como

discurso. Termo largamente discutido e repensado no meio acadêmico, especialmente nas

Humanidades, sua conceituação ainda gera controvérsias, contudo, essas divergências são, em

sua grande maioria, fruto de escolhas teóricas e de paradigmas analíticos distintos.8 Assim

sendo, pensamos os romances insulares primeiramente como “estruturas através das quais

indivíduos e/ou grupos dos séculos XII, XIII e XIV interpretavam (...) sua própria cultura”

(ASHE, 2007, p. 2), o que nos possibilita acionar essa literatura como portadora de discursos

previamente pensados para determinados propósitos. Contudo, quais seriam esses propósitos,

suas conseqüências e sua configuração naquele determinado contexto é assunto para outros

artigos e não o foco específico de nossa presente proposta.

Adiante, referimo-nos ao termo discurso, no que tange a esse tipo de documentação,

como

Construção humana coerente, coletiva, dinâmica e organizada sobre determinada temática. Os discursos são, portanto saberes, ou seja, compreensões produzidas pelas sociedades sobre as relações humanas. (SILVA, 2002, p. 2)

8 Não intentamos nos aprofundar nas diversas discussões acerca do conceito de discurso. Vale, contudo, mencionarmos que diferentes perspectivas teóricas geram, por conseguinte, diferentes conceituações. Um exemplo é o trabalho de Christopher Cannon, cuja crítica literária de escola marxista difere bastante de nossa leitura, contudo, as contribuições de suas pesquisas são, a nosso ver, indiscutíveis. Para acessar tal discussão ver CANNON, Christopher. Middle English Literature – A Cultural History. Cambridge: Polity Press, 2008 e, do mesmo autor, The grounds of English Literature. Oxford: Oxford University Press, 2007.

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Destarte, ainda em diálogo com Silva, os discursos são flexíveis, mutáveis e

permanecem em diálogo constante uns com os outros e com o social – entenda-se aqui o

social também como as relações entre os indivíduos e suas representações – uma vez que é na

prática deste que os discursos se fazem presentes e se constituem. As expressões discursivas

não se prendem apenas a um modo de materialização, podendo assumir, ainda, outros

contornos delimitadores como os não verbais, daí as imagens, por exemplo. Nosso objeto de

estudo, os romances insulares, além de serem materializações discursivas por si próprios,

compreendem, em si, outros discursos. Logo, são saberes construídos a partir de signos

lingüísticos, da linguagem verbal, que se constitui, por sua vez, como “um todo dinâmico que

abarca o movimento da sociedade: por isso é lugar de conflitos. Esses conflitos se

concretizam nos discursos” (BACCEGA, 2003, p. 48).

Delimitadas nossas idéias acerca dessa discussão, podemos aferir o quão importante,

em nossa perspectiva historiográfica, e para nossa proposta metodológica, é reconhecer nos

fatores extra-discursivos, isto é, no contexto de produção daquelas narrativas literárias,

relações de intercâmbio com o mundo representado nas narrativas, ou ainda, “imaginado”

(FIELD, 2008, p. 29) como idealização, pois nelas está a materialização de idéias, conceitos,

saberes.

Objetivos

Uma vez explicitada nossa compreensão dos romances insulares como discursos que,

por sua vez, compreendem em si outros saberes discursivos, delimitamos que tal

documentação possui intrínsecas características de autonomia enquanto material para estudos

historiográficos do medievo inglês dos séculos XIII e XIV, contextos de confecção e maior

dispersão das narrativas.

Propomo-nos, dessa forma, (re)pensar essa literatura à luz de uma perspectiva

historiográfica que nos permita acessar o referido contexto a partir da leitura de temas ainda

inexplorados, porém, constantemente indiciados pelos textos, como é o caso das

representações genderizadas das diferentes nuances de masculinos e femininos neles

descritos, o corpo – aqui como categoria analítica – freqüentemente referenciado pelos

narradores, entre outros. Contudo, somos conscientes de que refletir acerca dessa nova

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proposta de abordagem acadêmica daquelas narrativas pressupõe rediscutir toda uma tradição

historiográfica e de crítica literária em seu viés epistemológico de aproximação dos romances.

E a reflexão acerca dessa tradição acadêmica foi o ponto de partida para o início da concepção

do presente trabalho.

Pretendemos, ainda, sugerir uma proposta metodológica de trabalho com essas

narrativas que permita passear pelo referidos temas sem cair nas armadilhas de generalizações

categóricas dos romances e não obscurecendo sua diversidade temática num jogo caótico de

representações literárias pouco conexas ou confusas. Para tanto, como dissertaremos adiante,

os pressupostos metodológicos da História Comparada surgem como excelente instrumental

para uma aproximação cautelosa dos textos e que, ao mesmo tempo, consegue dar conta da

diversidade através do estudo de casos, mantendo, ainda, uma linha de equilíbrio com o todo

desse corpus literário dentro de sua perspectiva diacrônica e/ou sincrônica.

Metodologia

Nosso trabalho constitui-se, basicamente, de uma sugestão metodológica e breve

discussão da literatura crítica sobre os romances insulares enquanto produtos e produtores

discursivos do medievo inglês nos séculos XIII e XIV. Partindo dessa premissa, pensamos na

importância de se analisar alguns dos romances a comporem a referida Matéria da Inglaterra.

Posto isto, para compreendermos essas narrativas insulares em sua variedade e peculiaridade,

fizemos, inicialmente, a seleção e leitura de alguns exemplares, a saber: King Horn (1225)

Havelok the Dane (1275), Gui of Warwick (cerca de 1320) e Bevis of Hampton (1340).9 A

escolha desse recorte no corpus literário dos romances deve-se, em primeiro lugar, ao número

extenso de narrativas pertencentes à tipologia denominada Matéria da Inglaterra, que será

9 Utilizamos, para nosso estudo, uma edição crítica que reúne informações sobre a trajetória dos romances até seu processo de edição, bem como referências às variações sofridas pelos textos nos diferentes manuscritos em que surgem. Ver HERZMAN, Ronald B.; DRAKE, Graham et SALISBURY, Eve. Four Romances of England – King Horn, Havelok the Dane, Bevis of Hampton, Athelston. Michigan: Medieval Institute Publications (TEAMS), 1999. A única narrativa que não pode ser encontrada no livro é Guy of Warwick, que recebeu, contudo, igual tratamento na obra de Julius Zupitza em ZUPITZA, Julius. The romance of Guy of Warwick – The first or 14th-century version. London: Kegan Paul, Trench, Trübner & Co. Limited, 1891. Este último foi digitalizado pelo Medieval Institute, da Universidade de Michigan, e encontra-se disponível em <http://quod.lib.umich.edu/cgi/t/text/textidx?c=cme;cc=cme;rgn=main;view=text;idno=AHA2638.0001.001>. Acesso em 5 de junho de 2009. Ademais, optamos por adotar a datação dos romances convencionada por obras de referência do tema, como as de W. R. J. Barron, English Medieval Romance (Harlow: Longman, 1987) e W. H. Schofield, English Literature from the Norman Conquest to Chaucer (New York: Phaeton Press, 1969), e reconhecidas pela edição por nós adotada.

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discutida logo mais. Dessa maneira, por delimitações óbvias, seria impraticável abarcar um

estudo de todos os romances em apenas um artigo. Em segundo lugar, tratam-se de narrativas

convencionalmente reconhecidas como as de maior popularidade e propagação no medievo

inglês, 10 sendo assim, textos já estudados e cuja literatura crítica forneceu-nos subsídios para

o diálogo com nossas próprias reflexões.

Adiante, foi feita uma revisão da literatura crítica11 sobre os romances insulares, bem

como um olhar revisitado dos pressupostos que defendemos como instrumentais

metodológicos adequados à nossa proposta de aproximação dos romances.

No que concerne aos estudos daquelas narrativas, selecionamos como base para

discutir nossas reflexões os escritos de Laura Ashe, Judith Weiss e Rosalind Field.12 Ashe

propõe, assim como nós, leituras interdisciplinares, que prezam pela relação dialógica

texto/contexto indiciada pelos romances, e que não excluem o cuidado com a variação

temática destes, uma vez que propõe e rediscute novas questões epistemológicas em relação a

essa literatura e sua historiografia. Weiss, por sua vez, constrói análises literárias dos textos,

privilegiando leituras do feminino neles presentes, fato que, por si só, promove um estudo

cauteloso e comparativo das narrativas, sempre colocada em diálogos umas com as outras.

Outra particularidade de seu trabalho é sua preocupação com a busca por possíveis origens e

influências de elementos fortemente marcados nos enredos, como, por exemplo, as figuras

que ela denominou wooing women [mulheres sedutoras, que fazem a corte], bastante comuns

aos romances. Por fim, Rosalind Field traz toda uma reflexão acerca da tipologia Matéria da

Inglaterra, elaborando importante revisão bibliográfica desse conceito desde suas origens até

10 Tal afirmação pauta-se na leitura das obras de PEARSALL, Derek. The Matter of England. In: WATSON, George (org.). The New Cambridge Bibliography of English Literature. Vol I: 600-1660. Cambridge: Cambridge University Press, 1974. p. 429-36; CRANE, Susan. Insular Romance: politics, faith and culture in Anglo-Norman and Middle English Literature. Bekerly: University of California Press, 1986; MEALE, M. Carol. Readings in Medieval English Romance. Cambridge: Cambridge University Press, 1994; DICKSON, Morgan, FELLOWS, Jennifer et WEISS, Judith. Medieval Insular Romance. Cambridge: Cambridge University Press, 2000; CANNON, Christopher, Middle English Literature – A Cultural History. op. cit.; ASHE, Laura. Fiction and History in England, 1066-1200. op. cit; BURROW, J. A. Medieval writers and their work. Middle English Literature 1100-1500. New York: Oxford University Press, 2008; CARTLIDGE, Nigel (org.). Boundaries in Medieval Romance. Woodbridge: D. S. Brewer, 2008; entre outros. 11 Como mostramos na nota anterior, a produção crítica sobre os romances insulares tem crescido bastante nas últimas décadas. Logo, revisamos apenas o material de que disponibilizamos e o qual se mostra referencial para o presente estudo, isto é, as obras mencionadas na nota 10. Contudo, vale ressaltar que há muitos outros trabalhos sobre o tema que não entraram em nossa discussão pelos motivos já mencionados. 12 Utilizamos os seguintes trabalhos: ASHE, Laura. Fiction and History in England, 1066-1200. op. cit; WEISS, Judith. The wooing woman in Anglo-Norman romance. In: FELLOWS, Jennifer; MEALE, Carol et MILLS, Maldwyn. Romance in Medieval England. Cambridge: D.S. Brewer, 1991. p. 149-161 e FIELD, Rosalind. The curious History of the Matter of England. In: CARTLIDGE, Nigel (org.). Boundaries in Medieval Romance. op. cit., p. 29-42.

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as últimas discussões sobre o tema, sugerindo, ainda, novas leituras. Sua proposta aproxima-

se da nossa, na medida em que rompe barreiras canônicas impostas por generalizações, o que

permite, assim, a inserção de novas abordagens, critérios e categorias de análise referentes aos

romances e seus contextos.

Voltando nosso olhar para o instrumental metodológico referente a nossa proposta de

estudo, debruçamo-nos sobre os pressupostos comparativistas de uma abordagem no campo

da História Comparada, as reflexões de Hartmut Kaelble,13 Bénedicté Zimmermann e Michel

Werner14 sobre a História Comparada das Transferências Culturais.15

Por transferências, dentro do campo comparativista, entendem-se

as transformações que ocorrem no momento da transmissão de conceitos, normas, imagens e representações de uma cultura para outra. Tais transmissões podem surgir através da migração, como também através de encontros e de leituras de um texto oriundo de uma outra cultura.16 (KAELBLE, 2005, p. 2)

Estamos, assim, diante de um instrumental metodológico que prevê uma

movimentação de idéias e saberes – isto é, discursos – estejam eles materializados sob

quaisquer formas. Esses movimentos, trocas, intercâmbios de discursos, pessoas, objetos,

constituem-se dispersores de saberes que podem, ou não, se perpetuar dentro de um dado

corpo social. Uma vez estabelecidos esses contatos, que podem ser observados através da

comparação documental – seja de natureza lingüística, imagética ou ainda arqueológica –

podem-se observar as convergências ou divergências daqueles saberes em diferentes

contextos históricos, preservando-se, contudo, a peculiaridade de cada documentação

analisada.

As transferências, portanto, permitem que documentações de tipos variados, no caso,

os romances em suas especificidades, possam ser postos lado a lado de forma coerente e não

generalizada, ao passo que os contextos específicos de suas criações possam ser acessados

13 KAELBLE, Hartmut. Die Debatte über Vergleich und Transfer und was jetzt? History.Transnational,, fevereiro de 2005, p. 1-10. Disponível em <http://geschichte-transnational.clio-online.net/forum/type=artikel&id=574>. Acesso em: 22 de outubro de 2008. 14 ZIMMERMANN, Bénedicté et WERNER, Michael. Beyond comparasion: Histoire Croiée and the challenge of reflexivity. History and Theory, 45, fevereiro de 2006, p. 30-50. 15 Para a leitura de um trabalho que utiliza de maneira ímpar esse método comparativo ver SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da. A cúria papal e a diocese de Calahorra: as transferências normativas do poder eclesiástico central ao local no século XIII. In: LESSA, Fábio de Souza (org.). Poder e Trabalho. Experiências em História Comparada. Rio de Janeiro: Mauad, 2008, v. 1, p. 59-84. 16 Creditamos a tradução do texto original em alemão ao professor Doutor Álvaro Alfredo Bragança Júnior.

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enquanto parte do processo de movimentação social e material dos discursos por eles

representados e dispersados.

É importante lembrar, aqui, que nos referimos, em nosso trabalho, a um recorte

temporal de dois séculos, XIII e XIV, momento de grandes mudanças sócio, político e

culturais do medievo inglês,17 daí o ambiente ideal para o desenvolvimento das transferências.

Desenvolvimento

Tudo começa em 1906, com a utilização e proposição do termo “Matéria da

Inglaterra” por William Henry Schofield em sua obra English Literature from the Norman

Conquest to Chaucer, já mencionada. Estabelecendo um diálogo com a consagrada

classificação das três grandes matérias da literatura do baixo medievo europeu, Matéria da

Bretanha, da França e de Roma, pensadas por Jean Bodel, como explicitamos no início de

nosso artigo, Schofield buscou instituir um lugar pertinente aos romances insulares dos

séculos XIII e XIV que, por apresentarem características distintas das obras literárias daquelas

matérias – como a diversidade de personagens únicos de cada romance e a temática do exílio

e do retorno, por exemplo – destoavam de tal ordem classificatória.18 Contudo, o autor

explicita em suas reflexões a necessidade de se pensar uma “narrativa autóctone – uma saga –

inglesa” (FIELD, 2008, p. 30), essencialmente germânica, de onde os romances insulares

teriam se originado, distanciando-se, dessa maneira, do arcabouço e da influência da produção

literária francesa.

Contudo, a partir daí, viu-se a crescente adoção do termo, principalmente por obras de

caráter mais geral, panorâmico e de divulgação, como manuais e guias de literatura medieval

inglesa.19 Com o passar dos anos, a crítica literária anglo-saxã pouco se preocupou em

rediscutir essa terminologia, uma vez que os trabalhos produzidos sobre essa literatura

pareciam bastante confortáveis com seu uso sem maiores questionamentos.

17 Para leituras críticas do contexto referido ver HUDSON, John. Land, Law and Lordship in Anglo-Norman England. Oxford: Clarendon University Press, 1994; SAUL, Nigel (org.). The Oxford illustrated history of medieval England. New York: Oxford University Press, 1997; FLEMING, P. Family and Household in Medieval England. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2001; DYER, Christopher. Making the living in the Middle Ages: the people of Britain 850-1520. New Haven: Yale University Press, 2002; GOLDBERG, P. J. P. Medieval England. A Social History: 1250-1550. New York: Oxford University Press, 2004 18 Para acessar a discussão feita pelo autor ver SCHOFIELD, W. H. The Matter of England. In: ____. English Literature from the Norman Conquest to Chaucer. Op. cit. p. 258-282. 19 Um exemplo desse tipo de obra é o manual de ZESMER, David M. Guide to English Literature: from Beowulf through Chaucer and Medieval Drama. New York: Barnes and Noble, 1961.

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Uma das principais problemáticas relativas ao tema é de quais romances comporiam

essa matéria. Assim, as divergências de uso da terminologia começam a ganhar espaço,

mesmo de forma indireta no momento em que, por exemplo, os autores inserem romances

diferentes na classificação, pressupondo, desse modo, diferentes critérios de utilização e

leitura. As narrativas mais comumente incorporadas pela “Matéria da Inglaterra” são King

Horn, Bevis of Hampton, Havelok the Dane, Gui of Warwick, Athelston (segunda metade do

século XIV), Gamelyn (fins do século XIII) e William of Palerne (cerca de 1350).20 Os

critérios para a inserção de um romance nessa tipologia variam e vão desde a língua de

compilação dos textos21 à origem da matéria tratada e representada pelas narrativas, isto é, dos

personagens e conflitos (re)criados nos textos.

Esses critérios somente podem ser compreendidos de forma coerente se acessarmos,

por conseguinte, o ambiente sócio-politico-cultural de criação e/ou transcrição dos romances.

Trabalho ainda pouco realizado no meio acadêmico brasileiro, o estudo da relação

intercambiável entre texto e contexto dessas narrativas pode corroborar para a adoção de

novos critérios de análise literária e historiográfica, uma vez que, alguns estudos

principalmente em território inglês e norte-americano,22 vêm demonstrando uma relação

bastante próxima das variações e variedades temáticas dessa literatura com a diversidade e

flexibilidade do corpo social insular dos respectivos períodos. Vale lembrar que o medievo

inglês não se estabeleceu num sistema feudal rural tal qual o modelo francês e de outros

medievos continentais, haja vista a presença sempre evidente das cidades e vilas como

principais centros dispersores de saberes e discursos e as freqüentes querelas entre a forte

aristocracia baronial – formada, massivamente, por senhores da antiga aristocracia anglo-saxã

– e a coroa anglo-normanda, voltada aos interesses políticos continentais. Essas disputas

20 Para uma discussão aprofundada sobre o assunto ver FIELD, Rosalind. The curious History of the Matter of England. In: CARTLIDGE, Nigel (org.). Boundaries in Medieval Romance. op. cit. 21 A situação lingüística dos séculos XII e XIII no medievo inglês é bastante peculiar. O contato do antigo inglês, língua dos anglo-saxões, com o franco-normando dos invasores continentais da Normandia gerou o que os lingüísticas denominaram anglo-normando, uma mistura de ambos os idiomas. Assim, o anglo-normando instituiu-se como língua de prestígio, sendo adotado na escrita de documentos legais, administrativos e também literários tais como o Lai d’Havelok, La Folie Tristan e Amis e Amilun, todos do século XII. No entanto, já na primeira metade do século XIII, o inglês volta a dar sinais de vigor ao aparecer em documentos testamentários e políticos, cujo exemplo maior é o da Magna Carta (1215), e em romances, como King Horn. Esse inglês, convencionalmente denominado inglês médio [Middle English], perpetua-se em manuscritos durante todo o século XIII ao passo que o anglo-normando decai gradativamente. Adiante, no século XIV, o inglês médio já está estabelecido como língua de prestígio no território insular. Para uma discussão aprofundada do assunto ver BURROW, J. A. Medieval Writers and their Work – Middle English Literature 1100-1500. op. cit. PAGINAS. 22 Um exemplo inovador e de grande contribuição desse tipo de análise é a obra de ROUSE, Robert. The Idea of Anglo-Saxon England in Middle English Romance. Cambridge: Cambridge University Press, 2005

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político-culturais, que tem o Canal como sua trincheira, vão ganhando outras formas com o

passar dos anos, porém isso seria assunto para outros estudos e artigos.23

Desse modo, as divergências sobre a classificação dos romances insulares são apenas

uma amostra da variedade dessa literatura, que, se não for observada com o devido cuidado e

instrumental metodológico, pode originar generalizações grosseiras e confusas. Acreditamos,

portanto, que a utilização da “Matéria da Inglaterra” como referência genérica aos romances

insulares pode ser, sem maiores problemas, adotada, uma vez que isso seja feito de forma

consciente e explícita quanto ao que se entende por essa terminologia. Contudo, uma solução

bastante coerente a esse impasse classificatório seria o uso da expressão “romances insulares”,

como viemos fazendo no percurso de nossa escrita e como tem feito alguns autores

renomados como Laura Ashe e Christopher Cannon.

Todavia, permanece a questão: haveria um aparato metodológico que permitisse o uso

dessa literatura, compreendendo sua variedade, em estudos historiográficos acerca dos séculos

XIII e XIV, do medievo inglês?

Como vimos em nosso quadro teórico, pensamos essas narrativas como dispersoras e

compositoras de diferentes discursos relativos ao contexto de suas compilações. Os saberes ali

representados não podem ser ignorados em prol de uma querela terminológica, eles devem,

sim, ser acionados como elementos referentes ao contexto histórico externo aos manuscritos

dos romances, como objetos documentais de uma determinada época e, portanto, objetos

prolíficos para estudos historiográficos. Porém, (re)pensar essa literatura como documentação

para o fazer historiográfico demanda uma releitura de critérios analíticos, de paradigmas

teóricos, de questões epistemológicas da própria historiografia enquanto ciência investigativa

e reflexiva.

Não obstante essas questões, a revisão de problemáticas classificatórias guiou-nos

através de uma reflexão sobre as estruturas e instrumentos de aproximação do medievo inglês

enquanto foco de nosso estudo historiográfico. Compreendemos, a partir disso, que o

paradigma pós-estruturalista, por nós incorporado como premissa em nossas discussões,

viabilizou a identificação, através da leitura dos romances insulares, de categorias analíticas

ainda inexploradas, com os devidos cuidados e atenção, pelos acadêmicos tão citados nesse

artigo. Categorias como as representações genderizadas, identificadas através dos Estudos de

Gênero – ressaltamos, em nota rápida, que compreendemos gênero como os saberes sobre a 23 Para o estudo dessas mudanças e disputas recomendamos a obra de GOLDBERG, P. J. P. Medieval England. A Social History: 1250-1550, op. cit.

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diferença sexual bem como as técnicas de criação e representação destes 24 – o corpo como

categoria analítica tal qual o pensam autores como Caroline W. Bynum,25 os discursos sobre

sexualidade, fortemente marcados nas narrativas, entre outros.

Contudo, como estudar essas categorias, uma vez que o material literário dos

romances é tão variado e, ao mesmo tempo, dialógico? A partir dessas reflexões,

compreendemos o instrumental metodológico esboçado pela História Comparada das

Transferências Culturais, previamente discutido, como ideal para nossa proposta de estudo.

Os mecanismos de aproximação do documento, disponibilizados por essa perspectiva

metodológica, permite-nos o acesso aos romances e seus contextos através de categorias que

promovem, simultaneamente, a possibilidade e abertura de um olhar pluralizado. Um olhar

sincrônico e diacrônico que viabiliza um passeio pelos diferentes romances e contextos e, ao

mesmo tempo, o distanciamento de proposições generalizantes, especialmente referentes a

leituras do medievo inglês emprestadas de estudos direcionados aos demais territórios do

medievo europeu.26 Assim, a percepção dessa literatura e de seu contexto alarga-se com a

(re)descoberta de novas categorias e janelas discursivas que permitem, aos nossos olhos,

como historiadores do nosso tempo, uma aproximação consciente de nossa subjetividade e da

singularidade do objeto de estudo analisado no presente artigo, os romances insulares.

Algumas considerações finais

Seria redutor fecharmos nossas reflexões acerca de uma proposta metodológica de uso

da literatura, como documentação, para o estudo historiográfico do baixo medievo inglês,

como algo inteiramente concluído e com as devidas arestas aparadas. Somos conscientes de

que essa é apenas uma das diversas abordagens que podem ser reconhecidas através do

contato com diferentes direcionamentos teóricos, no campo da historiografia.

24 Um excelente trabalho sobre a categoria gênero em estudos historiográficos é o artigo de SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da. Reflexões sobre o paradigma pós-moderno e os estudos históricos de gênero. In: Brathair, v. 8, n. 2, p. 75-84, 2008 25 BYNUM, Caroline W. Why All the fuss about the body? A Medievalist's Perspective. In: Critical Inquiry, v. 22, n. 1, p. 1-33, 1995 26 Referimo-nos ao uso indiscriminado e pouco reflexivo de obras de referência dos estudos medievais de escolas francesas, bastante adotadas no meio acadêmico brasileiro, como a vasta bibliografia de autores como Jacques Le Goff, Georges Duby, Jean-Claude Schmitt, Jacques Rossiaud entre outros. Não desmerecemos, de forma alguma, o valor de seus trabalhos, contudo, defendemos o uso mais consciente dessas obras, para evitar generalizações relativas a outros contextos não francófonos, como é o caso do medievo inglês, ibérico e itálico, por exemplo.

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Acreditamos ser de grande importância rediscutir a classificação terminológica dos

romances, já que tal tema abarca, também, as diferentes leituras e perspectivas já elaboradas

sobre essa literatura no decorrer das últimas décadas. Assim, como propusemos, o uso

indiscriminado do termo “Matéria da Inglaterra” oferece espaço para generalizações

reducionistas se empregado de maneira despreocupada. Contudo, uma vez que tal

terminologia seja previamente justificada, o caminho pode torna-se menos conflituoso.

Defendemos, porém, em diálogo com alguns autores já mencionados, a adoção do termo

“romances insulares”, prevendo, aí, uma referência a essa produção literária isenta de

influencias políticas, como as que se enlaçam por trás do texto de Schofield. Tal termo

também corrobora com nossa perspectiva de observação dos discursos plurais inseridos nesses

textos e materializados por eles.

Adiante, seguindo essa ótica de observação plural e flexível disponibilizada pelo nosso

paradigma historiográfico, acreditamos que o uso da História Comparada das Transferências

Culturais associada a referenciais teóricos de matriz pós-estruturalista – ou pós-modernista,

como os Estudos de Gênero, por exemplo – permite um intermédio reflexivo e específico

entre os textos e as configurações de elementos externos a eles, ou seja, os recortes histórico-

temporais de sua origem e, por assim dizer, do estudo sobre eles elaborado.

Por fim, procuramos sublinhar, aqui, através da leitura de renomados autores, desde os

primeiros trabalhos, em inícios do século XX, até as pesquisas mais atuais, a divulgação dessa

literatura insular, uma vez que seu conhecimento é ainda bastante restrito no meio acadêmico

brasileiro. O que pressupõe dizer que nossa proposta metodológica está aberta a novas

contribuições e leituras, ao diálogo, pois acreditamos que o intercâmbio entre as diferentes

áreas do saber pode contribuir cada vez mais com as pesquisas acadêmicas, sejam elas

relacionadas a quaisquer época e cultura, referencial teórico ou crença política. As conversas

interdisciplinares podem, sim, gerar excelentes frutos, como vêm ocorrendo, em particular, na

área da História Comparada, basta, contudo, uma dosagem certa de sensibilidade do

historiador e dos demais pesquisadores para com suas perspectivas individuais e aquelas de

seus colegas.

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