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De Pombal ao Pombalismo José Vicente Serrão Ao tratar do marquês de Pombal, torna-se conveniente dissociar aquilo que lhe diz respeito enquanto individualidade histórica singular – o que se observará na primeira parte – daquilo que se relaciona com a praxis e os propósitos políticos da chamada “administração pombalina”, da qual ele foi o principal mas não o único responsável – disso se ocupa a segunda parte deste texto. 1. Pombal – o homem e o estadista Tendo em conta que o maior interesse de Sebastião José de Carvalho e Melo em termos históricos se prende com a sua acção governativa durante o reinado josefino (1750-1777), é legítimo considerar a existência de três fases principais na sua vida, estabelecidas em função daquele período. A primeira fase corresponde ao período anterior a 1750, e ficou especialmente marcada por uma experiencia diplomática que, iniciada em 1738 e repartida em duas enviaturas, o levou como embaixador do Rei Magnânimo às cortes britânica (1738-1743) e austríaca (1745-1749). Ao ser enviado para Londres, Sebastião José levava instruções no sentido de observar e informar sobre as razões do crescimento económico inglês e de procurar contrariar, nomeadamente através de uma renegociação dos tratados, a tendência para o agravamento da posição portuguesa nas relações económicas com aquele pais. A tarefa, no que respeitava ao segundo dos objectivos, era bastante ingrata, e Carvalho acabaria por regressar de Londres com êxitos pouco mais que pontuais e insignificantes. Volvido pouco tempo, tornaria a partir, desta feita rumo a Viena, com a missão de oferecer os préstimos mediadores de D. João V no diferendo que opunha o Imperador Habsburgo e a Santa Sé. Mais uma missão ingrata e de difícil sucesso, dado que rapidamente se confirmou o desinteresse de ambas as partes em tal mediação. Fazendo o balanço desta dupla experiencia diplomática, é notório que, em termos diplomáticos propriamente ditos, o seu sucesso foi praticamente nulo. Mas, em

De Pombal Ao Pombalismo

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De Pombal ao Pombalismo

José Vicente Serrão

Ao tratar do marquês de Pombal, torna-se conveniente dissociar aquilo que lhe diz

respeito enquanto individualidade histórica singular – o que se observará na

primeira parte – daquilo que se relaciona com a praxis e os propósitos políticos da

chamada “administração pombalina”, da qual ele foi o principal mas não o único

responsável – disso se ocupa a segunda parte deste texto.

1. Pombal – o homem e o estadista

Tendo em conta que o maior interesse de Sebastião José de Carvalho e Melo em

termos históricos se prende com a sua acção governativa durante o reinado josefino

(1750-1777), é legítimo considerar a existência de três fases principais na sua vida,

estabelecidas em função daquele período. A primeira fase corresponde ao período

anterior a 1750, e ficou especialmente marcada por uma experiencia diplomática

que, iniciada em 1738 e repartida em duas enviaturas, o levou como embaixador do

Rei Magnânimo às cortes britânica (1738-1743) e austríaca (1745-1749). Ao ser

enviado para Londres, Sebastião José levava instruções no sentido de observar e

informar sobre as razões do crescimento económico inglês e de procurar contrariar,

nomeadamente através de uma renegociação dos tratados, a tendência para o

agravamento da posição portuguesa nas relações económicas com aquele pais. A

tarefa, no que respeitava ao segundo dos objectivos, era bastante ingrata, e

Carvalho acabaria por regressar de Londres com êxitos pouco mais que pontuais e

insignificantes. Volvido pouco tempo, tornaria a partir, desta feita rumo a Viena, com

a missão de oferecer os préstimos mediadores de D. João V no diferendo que

opunha o Imperador Habsburgo e a Santa Sé. Mais uma missão ingrata e de difícil

sucesso, dado que rapidamente se confirmou o desinteresse de ambas as partes em

tal mediação.

Fazendo o balanço desta dupla experiencia diplomática, é notório que, em termos

diplomáticos propriamente ditos, o seu sucesso foi praticamente nulo. Mas, em

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contrapartida, ela foi de importância nuclear no tocante à formação intelectual e

política do futuro estadista. Com efeito, para cumprir as missões que lhe estavam

confiadas, Sebastião José viu-se obrigado a ser um observador atento das realidades

em que estava inserido e das respectivas práticas governativas, principalmente nos

planos da economia, da organização política e das relações político-militares

internacionais, a reflectir cuidadosamente sobre elas e a estudar a sua

fundamentação teórica e doutrinaria, para o que foi obrigado, neste caso, a recorrer

à literatura especializada da época. Teve, assim, o ensejo de adquirir um capital de

conhecimentos que dificilmente poderia obter se nunca tivesse saído de Portugal.

Os contributos trazidos à formação de Pombal pelas suas estadas europeias não

deveriam, em rigor, ser compartimentados por países. Mas, para simplificar, pode

dizer-se que a enviatura inglesa se repercutiu principalmente ao nível da modelação

do seu ideário económico, permitindo-lhe tomar conhecimento das doutrinas

políticas e económicas então predominantes nos principais estados europeus (o

mercantilismo, nas suas diversas variantes) e levando-o a adquirir uma melhor

consciência não só das bases da progressiva economia britânica, como dos

fundamentos e das características da relação de dominação económica que aquele

pais mantinha com Portugal. A necessidade de justificar juridicamente as

reivindicações portuguesas levou-o, por outro lado, a entrar em contacto com as

correntes do direito então em voga, com destaque para algumas das

fundamentações jusnaturalistas.

Por seu turno, e continuando num propósito simplificador, a experiência austríaca

terá contribuído sobretudo para a formação do seu ideário político, quer na medida

em que lhe permitiu observar directamente uma experiencia política muito marcada

pelo absolutismo iluminado e por concepções regalistas, quer porque pôde tomar

consciência da natureza e dos métodos de acção do poder pontifício, quer ainda

porque adquiriu um conhecimento mais aprofundado da trama complexa das

relações internacionais e do quadro de alianças mais favorável a Portugal.

Para além de tudo isto, a permanência de quase onze anos no estrangeiro deu-lhe a

oportunidade de observar do lado de fora o caso português e, assim, de o relativizar

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face aos níveis de desenvolvimento das outras nações, o que permitiu a Carvalho e

Melo tomar consciência do desfasamento e do atraso do seu pais, sobretudo nos

planos económico, social e ideológico. Quando, em 1749, Pombal regressa a

Portugal, vem munido de um instrumental de normas e princípios de interpretação

da realidade portuguesa e internacional e de um conjunto de propósitos de

intervenção sobre a primeira. Reside aí o substrato doutrinário e programático sobre

o qual assentaria posteriormente a sua acção política a frente do gabinete Josefino.

Pode, assim, dizer-se que é nesta fase que se processa, quanto ao essencial, a

formação política e intelectual do futuro ministro, que se vão definindo e

construindo as bases de um projecto governativo, e que se assiste à rápida ascensão

de Carvalho e Melo nos meios culturais, cortesãos, diplomáticos e políticos da época.

Em 1750, com a subida ao poder de D. José I, Carvalho e Melo é nomeado Secretário

de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, iniciando assim uma segunda fase

da sua vida, a da governação. Esta nomeação (cuja possibilidade já tinha sido

aventada em 1736 pelo próprio D. João V) ocorreu num contexto de lutas acérrimas

pelo poder e beneficiou certamente de poderosos apoios dentro da corte. O novel

ministro rapidamente se destacou no seio do gabinete, mas foi só na sequência do

terramoto de 1755 que assumiu claramente a sua liderança. Depressa desencadeou

um violento ataque aos seus opositores políticos e afirmou-se decidido a dar curso a

um movimento de reorganização do aparelho de Estado e de reforço dos poderes

régio e do Estado, à cabeça do qual se consolidou.

Sebastião José (titulado conde de Oeiras em 1759 e marquês de Pombal em 1769)

era um verdadeiro estadista, dotado de inteligência, de perspicácia política e de uma

extraordinária capacidade de trabalho, como testemunha o impressionante volume

de cartas, ofícios, pareceres e decisões que produzia e tomava quotidianamente.

Essas qualidades permitiram-lhe conservar-se no poder durante vinte e sete anos

consecutivos, dispondo da inteira confiança do rei, que nele procedeu a uma quase

total delegação de poderes efectivos.

Aos poucos, foi dominando e controlando todos os cargos estratégicos no exercício

do poder. Nuns casos, ocupou-os pessoalmente. De acordo com uma listagem feita

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pelo próprio, ele foi primeiro-ministro, Secretário de Estado dos Negócios do Reino,

Inspector e Presidente do Erário Régio, dos Contratos da Mineração e Extracção dos

Diamantes, do Comercio Geral do Reino e Domínios, do Estabelecimento das

Manufacturas e Fabricas, da Reedificação da Cidade de Lisboa, e ainda lugar-tenente

do rei no Estabelecimento da Universidade de Coimbra. Noutros casos, procedeu ao

seu provimento em pessoas da sua confiança, varias das quais seus familiares

directos. Aliás, a constituição de uma entourage política – recrutada nos mais

diversos sectores da sociedade e colocada nos vários níveis da administração, por

todo o Reino e Império, e nos empreendimentos económicos protegidos ou

dependentes do Estado – foi uma preocupação constante de Pombal, que via aí não

só a forma de se consolidar no poder, como a de o centralizar.

Igual esforço empregou na preparação da sua sucessão política, projectada desde

muito cedo em Seabra da Silva, mas subitamente frustrada poucos anos antes do seu

próprio desaparecimento político. Este ocorreu em Março de 1777, na sequência da

morte do rei que lhe tinha dado toda a protecção. Começa então aquela que

podemos considerar a terceira (e ultima) fase da sua vida. Exilado na vila de Pombal,

é então alvo de uma feroz ofensiva política, movida pelos novos dirigentes, seus

inimigos. Procura defender-se, fazendo a apologia da sua obra governativa, mas

remetendo as responsabilidades para o rei defunto. Processado, interrogado

durante longos meses, acabaria por ser condenado em 1781, simbolicamente, a

permanecer «fora da corte na distância de vinte léguas». A sentença traduzia um

compromisso entre os mais ostensivos inimigos de Pombal e alguns dos seus antigos

colaboradores e protegidos, que ainda permaneciam junto do poder e que, de resto,

assegurariam a sua descendência política. Alguns meses mais tarde (8 de Maio de

1782), ao fim de prolongada e grave doença, o marquês morria em Pombal.

2. O Pombalismo

Pombalismo é um conceito de aparecimento recente na historiografia portuguesa

que está ainda, por assim dizer, à espera da sua própria conceptualização. Aqui se

procurará tratar a história da sua utilização, propor uma definição do seu significado

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e expor as principais características do seu conteúdo histórico concreto. A primeira

utilização da palavra, salvo qualquer omissão, parece datar de 1961, inserida num

estudo de Silva Dias (Seiscentismo e Renovação em Portugal no Século XVIII). Desde

então, foi sendo amiúde utilizada e nos últimos anos parece mesmo ter-se tomado

um componente obrigatório do vocabulário da historiografia mais dedicada ao

século XVIII português e, em especial, da que se interessa pelo período pombalino.

Contudo, é manifesta a despreocupação dos seus utilizadores em relação a uma

conceptualização explícita do termo, pelo que é possível encontrá-lo referido nas

mais diversas acepções. Toma-se, assim, urgente avançar no sentido de uma

definição, e não só porque a utilização da palavra começa a atingir proporções que

justificam a sua elucidação conceptual, como porque a definição desse conceito

parece poder revestir-se de virtualidades analíticas e explicativas adicionais.

O Pombalismo pode considerar-se como significando um fenómeno ocorrente na

segunda metade do século XVIII português, que se traduziu na ideação e consecução

de um projecto/movimento reformador, de incidência praticamente global,

empreendido por um conjunto de homens, na sua maioria ligados ao Estado e

referenciáveis à figura do marquês de Pombal.

Desde logo, o Pombalismo não pode ser entendido se desligado daquilo que, em

grande medida – embora (e categoricamente) não só –, representa: a expressão do

culminar de um processo de crescimento e complexização do Estado, assim como da

emergência, ou melhor, da afirmação de um grupo social identificado com ele. Com

efeito, durante o reinado josefino assiste-se à reestruturação e racionalização do

aparelho de Estado, e à sua frente vemos surgir um grupo consideravelmente

homogéneo do ponto de vista político, ideológico e mesmo socioprofissional (uma

espécie de elite aristocrática togada, de formação predominantemente jurídica), cuja

acção tende a reforçar o papel do Estado e a afirmá-lo como entidade autónoma e

soberana relativamente ao conjunto da sociedade. Para este grupo, que se pretendia

iluminado, residiria aí a condição primeira do desenvolvimento e da modernização

do País.

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Mas, para além disto (e o que é ainda mais importante), o Pombalismo representou

uma convergência de objectivos entre esse grupo socioprofissional e várias outras

pessoas, oriundas de posicionamentos sociológicos diversificados e ligadas aos mais

variados sectores de actividade. Para estas, tratava-se de se acolitarem sob a

protecção de um Estado forte, como meio de concretizarem os seus objectivos, quer

isso implicasse ou não (e em muitos casos implicou) a sua participação em estruturas

oficiais ou semioficiais.

Uma das principais vantagens que o conceito de Pombalismo, na definição aqui

proposta, pode trazer é dar expressão formal a uma preocupação que tem vindo a

consolidar-se na historiografia pombalina, e que consiste em contrariar a ideia de

uma personalização absoluta das responsabilidades pela governação do período

1750-1777 na figura do marquês de Pombal. Em contrapartida, o conceito exprime a

ideia de uma responsabilidade plural. Traduz a existência de uma rede de pessoas e

de entidades político-institucionais que comungavam de um conjunto de ideias e de

projectos de intervenção convergentes, todas elas, pelo menos quanto ao essencial,

agindo sob a confiança e a protecção política de Pombal, ou procurando desfrutar

das possibilidades abertas pela sua governação.

Nesta medida, a definição do conceito abre novas perspectivas, quer no domínio da

análise, quer no domínio da interpretação e da explicação da conjuntura pombalina.

Mas aponta também várias direcções de estudo. Particularmente interessante seria,

por exemplo, investigar o grupo do Pombalismo: saber quem o compunha, detectar

as suas formas de recrutamento, analisar qual o tipo de solidariedades em que

assentava a sua constituição e funcionamento. A questão é delicada, dado que não

estamos em presença de qualquer grupo com uma composição formal, mas tão-só

informal, aquilo que por vezes se designa como uma “rede clientelar”. O

Pombalismo, recorde-se, foi um movimento, um projecto, e não propriamente uma

estrutura de grupo assente em laços orgânicos, pelo que o critério de identificação

dos seus «membros» terá de se apoiar no facto de serem homens da confiança de

Pombal, seus colaboradores, empenhados no mesmo projecto político, constituindo,

no seu conjunto, uma rede de solidariedades políticas e pessoais, não explícita

enquanto tal, mas efectiva. O recrutamento do pessoal do Pombalismo parece ter-se

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apoiado basicamente nas seguintes «áreas»: gente ligada ao aparelho de Estado; a

família do próprio marquês de Pombal; homens de formação jurídica;

personalidades do corpo diplomático; agentes económicos, sobretudo dedicados ao

grande comércio; alguns religiosos1.

Numa tentativa de identificar com maior precisão a composição do grupo do

Pombalismo e de indicar algumas pistas de investigação, aqui se apontam uns

quantos nomes, dos mais representativos: à cabeça, evidentemente, o marquês de

Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo; os seus dois irmãos, Francisco Xavier de

Mendonça Furtado (governador do estado do Maranhão e depois secretario de

Estado da Marinha e Ultramar) e Paulo de Carvalho Mendonça (inquisidor-geral e

presidente do Senado da Câmara de Lisboa); o seu filho primogénito (também

presidente do Senado); José de Seabra da Silva (coleccionador de cargos

estratégicos, com destaque para os de Procurador da Coroa e Secretário de Estado

Adjunto de Pombal), grande responsável pela obra jurídica do Pombalismo e

projectado sucessor do marquês até ter caído em desgraça em 1774; Aires de Sá e

Melo (diplomata e substituto de Seabra como Secretário de Estado Adjunto); D. Luis

da Cunha Manuel (também diplomata e Secretário de Estado dos Negócios

Estrangeiros); o cardeal da Cunha (um homem muito influente na governação, mas

cuja inclusão nesta lista não está isenta de duvidas); Fr. Manuel do Cenáculo (figura

importante da hierarquia da Igreja, membro de vários organismos criados pelo

Pombalismo e um dos colaboradores mais próximos do marquês); o Padre Antonio

Pereira de Figueiredo, que desempenhou um papel relevante na obra doutrinária e

propagandística do Pombalismo; vários grandes mercadores, com interesses nalguns

dos principais sectores da economia portuguesa e que estiveram ligados aos

organismos oficiais ou semioficiais da área económica (por exemplo, a Junta do

Comercio, o Erário Régio, as companhias comerciais) – os irmãos Cruz, Rodrigues

Bandeira, Braamcamp, Quintela, entre outros; dois homens da Universidade,

Francisco de Lemos Faria e Pascoal de Melo Freire; o grupo de magistrados e

1 A ordem é arbitrária e a tentativa de especificação aqui feita não exclui que vários dos «membros»

do Pombalismo participassem de mais do que uma destas condições.

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jurisconsultos afectos ao Desembargo do Paço, que desempenharam um papel de

máxima importância na actuação do Pombalismo – casos, por exemplo, de José

Ricalde, João Pereira Ramos, Bartolomeu Giraldes, Joao Pacheco Pereira, Serra

Crasbeck, Afonseca Lemos, Cordeiro Pereira. Poder-se-ia acrescentar ainda

substancialmente esta lista, mas tal cairia fora dos propósitos deste trabalho.

Convirá, entretanto, referir que, para além de pessoas, o Pombalismo contou com o

funcionamento de uma serie de organismos oficiais, criados por ele ou não. Estão,

no primeiro caso, a Junta do Comércio, o Erário Régio, o Juízo da Inconfidência, a

Intendência-Geral da Polícia, a Junta das Confirmações Gerais, a Real Mesa Censória

e a Junta da Providencia Literária. Entre aqueles que, fazendo já parte da estrutura

político-administrativa anterior, vieram entretanto a desempenhar um papel nuclear

no Pombalismo, depois de colocados sob controlo de pessoal de confiança, cabe

destacar o Desembargo do Paço, o Juízo da Coroa, os Conselhos Ultramarino e da

Fazenda e o Senado da Câmara de Lisboa.

O Pombalismo – já o dissemos – foi responsável pela criação de uma dinâmica de

mudança, favorável a uma política globalmente reformadora. Resta-nos, pois, tentar

sintetizar (com todas as vantagens e riscos que coexistem nestas tentativas) as suas

principais linhas de acção e de realização. Comecemos pelo plano político, o qual

constitui um dos campos privilegiados de observação do Pombalismo. Já vimos como

este esteve associado, em grande medida, ao crescimento do Estado, à revalorização

do seu estatuto e do seu papel na sociedade e ao reforço do seu poder.

Isso mesmo é evidenciado pelo figurino de organização e funcionamento políticos da

monarquia instituído pelo Pombalismo. Ao proceder à concentração de poderes e de

responsabilidades efectivas na pessoa de um primeiro-ministro (Pombal) que,

situado no topo do aparelho, é o chefe do Estado, e ao remeter o monarca para um

papel quase exclusivamente honorífico, concretiza-se, na pratica, uma sobreposição

do poder do Estado (encarado como entidade autónoma) em relação ao poder do

Príncipe, a despeito da absolutização teórica deste. Evidentemente, trata-se de uma

sobreposição informal, e não formal. Neste contexto, a afirmação, como teoria do

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poder, do absolutismo jusdivinista serve, afinal, de cobertura ao alargamento

máximo possível dos poderes do Estado.

No seu esforço de afirmação política e institucional do Estado e do seu grupo

dirigente, o Pombalismo teve necessariamente de se confrontar com obstáculos. O

mais importante adversário dessa política era a Igreja, que constituía uma outra

entidade institucional, rival do Estado. No fundo, era quase como que um Estado ao

lado do Estado. Estribado em posições doutrinárias regalistas e galicanistas, o

Pombalismo actuou face à Igreja de modo implacável, visando reduzir o seu poder

político, institucional, ideológico e económico e submetê-la à plena autoridade do

Príncipe (na prática, do Estado). Defendeu o princípio da separação dos poderes

espiritual e temporal e a subordinação do primeiro ao segundo em matérias civis. A

perseguição aos Jesuítas insere-se neste processo, embora também tenha estado

associada a outras motivações, cuja explanação seria aqui demorada.

Outro adversário do Pombalismo, neste domínio, era constituído por alguns sectores

da alta nobreza, interessados em partilhar o poder ou conservar os seus privilégios

políticos. Foi contra esses que foi dirigido o violento processo dos Távoras. Alguns

autores têm-no encarado como símbolo de uma suposta política anti-nobre da

administração pombalina. Uma tal posição não parece, contudo, defensável. Aliás, a

nobreza foi mesmo considerada pelo Pombalismo como um dos esteios da

monarquia absoluta, indispensável à conservação das suas instituições. E, se, por um

lado, defendeu a sua subordinação à autoridade política do Príncipe absoluto e do

Estado, por outro apostou no prestigiamento do estatuto social, jurídico e ideológico

da nobreza, ainda que alargando-o a indivíduos originariamente não nobres, num

propósito claro de abertura das possibilidades de mobilidade social vertical – é nisto

que consiste a novidade do Pombalismo nesta matéria.

Ao abordarmos a questão da nobreza, entrámos já naquilo a que poderíamos

chamar a política social do Pombalismo, de que foi uma das vertentes principais. A

outra foi a sua aposta na criação de uma burguesia nacional forte e rica que, apoiada

pelo Estado, fosse capaz de promover o desenvolvimento e uma maior

independência da economia nacional.

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Vem a propósito considerar a política económica do Pombalismo, que foi talvez o

domínio a que dedicou maior atenção. A economia portuguesa do século XVIII

padecia de graves enfermidades. A produção (quer de géneros manufacturados,

quer de produtos alimentares) era diminuta em face da procura interna e colonial;

os diversos sectores económicos estavam mal articulados entre si e apresentavam

grandes desequilíbrios relativos, com um peso desproporcionado do sector

mercantil; os índices de investimento eram baixos, dada a reduzida acumulação de

capitais em mãos nacionais. Nestes termos, o seu fraco desenvolvimento repercutia-

se num défice crónico da balança comercial, que era compensado com o ouro do

Brasil. Por outro lado, era uma estrutura económica muito subordinada à Grã-

Bretanha, potência que potência que, através de uma marinha mercante forte e

numerosa e de uma importante e activa colónia mercantil estabelecida em Portugal,

controlava o comércio externo e ultramarino português. Situação que, de resto,

tendia para o agravamento e que ameaçava tornar-se asfixiante de todo e qualquer

esforço de desenvolvimento económico por parte de Portugal. Foram estes

problemas de ordem geral que o Pombalismo procurou resolver, recorrendo ao

receituário mercantilista e, muito em particular, a um acentuado proteccionismo

económico, tendo por especial preocupação a inversão da tendência deficitária da

balança comercial.

Durante os primeiros dez a quinze anos do governo pombalino, as preocupações

incidiram preferencialmente no campo financeiro, na protecção aos interesses dos

sectores mais poderosos da burguesia mercantil nacional (em detrimento dos

negociantes estrangeiros e dos pequenos mercadores independentes) e no reforço

do controlo português sobre as suas áreas ultramarinas (propósito a que, em grande

parte, correspondeu a criação das companhias monopolistas). Apesar de tudo, esta

orientação não representou nenhuma alteração de fundo na tradição político-

económica do Estado português. Os fundamentos estruturais da economia nacional

foram respeitados, continuando, portanto, o Estado a privilegiar o sector mercantil e

o funcionamento do sistema colonial, se bem que agora na perspectiva da

nacionalização dos seus benefícios.

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Entretanto, o desgaste financeiro provocado pela entrada de Portugal na Guerra dos

Sete Anos e a quebra na produção de ouro e de alguns dos principais géneros

coloniais conduziram, a partir da década de 60, a um reequacionamento da política

económica até então seguida e dos próprios suportes da estrutura económica

nacional. Assim, ao mesmo tempo que procurou reforçar o exclusivo colonial, o

Pombalismo apostou numa revalorização da economia metropolitana e dos sectores

produtivos. Integra-se no contexto desta reorientação parcial da política económica

a (tão falada) política de desenvolvimento manufactureiro, assim como uma (por

vezes tão esquecida) política de desenvolvimento agrícola. Na sua globalidade, a

política económica da administração pombalina produziu resultados bastante

positivos, muitos deles só verificáveis posteriormente.

No campo cultural, mais propriamente no do ensino, o Pombalismo desenvolveu

uma acção notável, de que são expressão mais relevante a reforma dos «estudos

menores» (1759), a criação da Aula do Comércio (1759) e do Colégio dos Nobres

(1761) e a reforma da Universidade de Coimbra (1772). No seu conjunto, pode

considerar-se como a primeira reforma geral do ensino em Portugal. Em grande

parte, esta obra realizou-se por força das circunstâncias criadas com a expulsão dos

Jesuítas, os quais até então detinham praticamente o monopólio do sector

educativo. Mas, por outro lado, integra-se de pleno direito nos propósitos

globalmente reformadores e modernizadores do Pombalismo. Esta reforma

educativa visou a laicização e a oficialização do ensino, mas também a actualização

das matérias, a abertura a novas correntes de pensamento e, nos casos concretos da

Aula do Comércio e do Colégio dos Nobres, respectivamente a preparação técnica e

a elevação do nível intelectual de uma nova geração burguesa e a modernização

intelectual e mental da nobreza.

Numa exposição cuja brevidade acarreta necessariamente omissões, torna-se, no

entanto, indispensável uma referência à obra jurídica do Pombalismo. Ela era

imprescindível à consagração legal desse vasto movimento reformador. Mas

desempenhou também, para além disso, um importante papel na sua consolidação e

expansão doutrinárias. A isto não pode ser alheio o facto (não desprezível) de grande

parte do pessoal do Pombalismo estar ligada aos círculos jurídicos. Numa certa

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medida, o Pombalismo representa mesmo uma entrada em força dos «homens do

direito» na área política, o que se traduziu no facto de o seu discurso ser

fundamentalmente um discurso jurídico. Tudo isto numa altura em que em Portugal

se procedia a uma autêntica renovação e actualização da jurisprudência, cujas

manifestações se consubstancializaram em centenas de textos legislativos e se

encontram sintetizadas na Lei da Boa Razão (1769). Aí se consagra a prevalência do

direito natural e das gentes, aliados ao direito pátrio (no que fosse conforme ao

direito natural) e ao uso moderno do direito romano, bem como, por outro lado, a

rejeição do direito canónico, do direito nacional de tradição recente (conotado com

os Jesuítas) e dos aspectos obsoletos do direito romano.

Em 1777 o Pombalismo era ainda um fenómeno em expansão. Mas a alteração do

quadro político verificada com a subida ao trono da nova monarca, a par do

saneamento político daquele que fora a figura central e a força unificadora do

movimento, deram lugar à quebra da rede de solidariedades que estava na base do

Pombalismo e inviabilizaram a sua sobrevivência enquanto tal. Todavia, o espírito do

Pombalismo continuou presente, quer pelo papel que vários dos seus «membros»

continuaram a ter na vida portuguesa, quer porque ele tinha criado uma dinâmica de

mudança e lançado os fundamentos de transformações estruturais que não

poderiam ser interrompidos por simples alterações políticas conjunturais.

Bibliografia básica: DIAS, José Silva – Pombalismo e teoria política, Lisboa, INIC, 1982. HESPANHA,

António Manuel – “A note on two recent books on the patterns of Portuguese politics in the 18th

century”, e-JPH, Vol. 5.2 (2007). MACEDO, Jorge Borges de – A situação económica no tempo de

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Pombal: a Reply to A. M. Hespanha”, e-JPH, Vol. 5.2 (2007). SERRÃO, José Vicente – “Pombal” e

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