Debate Entre Ciência e Religião

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    FARADAY PAPER No. 4

    O Princpio Antrpico e oDebate entre Cincia e

    Religio

    John Polkinghorne

    ResumoA vida baseada em carbono pode se desenvolver apenas em um universo notavelmenteespecfico, no tocante s suas leis naturais. Possveis explicaes para este ajuste-fino apelam,ou a conjecturas sobre um multiverso, ou ao conceito de criao. O artigo compara essasexplicaes concorrentes.

    O universo que ns observamos hoje se originou h cerca de 13.7bilhes de anos atrs, de um estado singular de densidade etemperatura extrema que denominamos coloquialmente como o BigBang. O universo, em sua infncia, era estruturalmente muitosimples, consistindo de uma bola quase uniforme de matria/energiaem expanso. Uma das razes porque os cosmologistas podem falarcom um considervel grau de confiana sobre esta poca inicial que as coisas ento eram simples, tornando fcil a construo demodelos nos dias de hoje. Depois de quase quatorze bilhes de anosde processo evolucionrio, o universo se tornou muito complexo,sendo o crebro humano (com seus 1011 neurnios e suas mais de1014 conexes) o mais complicado sistema que a cincia jencontrou em sua explorao do mundo.

    Os processos evolucionrios envolvem a interao entre doisaspectos do mundo natural que, em forma de slogan, podemosrotular como acaso e necessidade. Apenas uma pequena proporodo que teoricamente possvel efetivamente aconteceu, e o acaso responsvel pelos detalhes contingentes dos eventos acontecidos.Na infncia do universo, por exemplo, havia apenas flutuaes sutisna distribuio da matria. Estas heterogeneidades forneceram assementes casuais das quais a estrutura granulada das galxias eestrelas viria a crescer. Os detalhes efetivos desta estrutura csmicaforam causados pelo acaso, mas o processo envolveu tambm umanecessidade normatizada na forma da ao da gravidade. Umpouquinho mais de matria em um ponto implicava uma atraogravitacional mais forte para este ponto, iniciando um processo debola-de-neve pelo qual as galxias se condensaram.

    A idia central do Princpio Antrpico (PA) a de que o carterespecfico da necessidade normatizada teve de assumir uma formamuito particular frequentemente expressa com a metfora doajuste-fino das leis da natureza para que o aparecimento dosanthropoi

    1viesse a se tornar possvel dentro dos limites da histriacsmica. Em outras palavras, a mera explorao evolucionria doque pode acontecer (acaso) no teria sido suficiente se aregularidade normatizada do universo (necessidade) no houvesseassumido a forma altamente especfica que necessria para gerarpotencialidade biolgica. O universo tinha bilhes de anos de idadequando a vida apareceu, mas ele j estava prenhe desta possibilidadedesde o princpio.

    Vrios insights cientficos se combinam para conduzir a estaconcluso inesperada. Eles se relacionam a processos que

    1Termo grego para seres humanos sem significar literalmente, aqui, a humanidade comsuas particularidades, mas com o sentido geral de complexidade prpria da vida baseada emcarbono.

    aconteceram em diferentes estgios da histria csmica, comeandopor uma frao diminuta do primeiro segundo aps o Big Bang, pas-

    Sobre o Autor

    O Reverendo Dr. John Polkinghorne KBEFRS trabalhou com fsica terica de partculaselementares por 25 anos; foi Professor deFsica Matemtica na Universidade deCambridge e, em seguida, Presidente doQueens College, em Cambridge. O Dr.Polkinghorne membro da Royal Society, foio Presidente Fundador daInternational Societyfor Science and Religion(2002-2004) e autorde numerosos livros sobre cincia e religio,incluindo Science and Theology (Londres:SPCK, 1998).

    -sando pela primeira gerao de estrelas e galxias, e atingindo osprocessos que se desdobram no cosmo atualmente. Ser suficienteindicar alguns exemplos que ilustram o tipo de raciocnio envolvidona questo. Para tratamentos mais abrangentes e detalhados, pode-serecorrer a estudos mais minuciosos2.

    A Especificidade AntrpicaPara possibilitar a vida baseada em carbono, as leis que operam nouniverso se sujeitam a algumas restries.

    1. Carter Aberto

    A cincia reconhece cada vez mais que a emergncia de novidadegenuna depende da existncia de condies que poderiam serdescritas como no limite do caos, significando que, sob taiscondies, regularidade e abertura, ordem e desordem, aparecemsutilmente entrelaadas. Condies dominadas por uma ordemrgida so muito inflexveis para permitir o aparecimento de algorealmente novo. Rearranjos de elementos j existentes so possveis,mas no pode haver genuna novidade. Por outro lado, condiesmuito desorganizadas apresentam uma instabilidade cuja implicao que nada novo pode persistir. A histria conhecida da evoluobiolgica ilustra a discusso acima. Se no houvesse mutaesgenticas, a vida jamais desenvolveria formas novas; se houvessemutaes em demasia, as espcies sobre as quais a seleo naturalatua jamais teriam se estabelecido para tanto.

    2Barrow, J.D. e Tipler, F.J. The Anthropic Cosmological Principle, Oxford University Press(1986); Leslie J. Universes, Londres: Routledge (1989); Holder, R.D. God, the Multiverse,and Everything, Aldershot: Ashgate (2004).

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    O carter bsico da lei fsica o mecanismo quntico, cujasconseqncias incluem tanto a confiabilidade (p.ex. a estabilidadedos tomos) quanto a abertura (a imprevisibilidade de diversosefeitos). plausvel que tais caractersticas tenham sido necessriaspara o surgimento da vida, que teria sido impossvel em um universogovernado pelo determinismo Newtoniano.

    2. Arranjo Global

    A estabilidade das rbitas planetrias, uma necessidade bvia para odesenvolvimento da vida em qualquer planeta, deriva do fato de agravidade obedecer a uma lei que, matematicamente, um inversoao quadrado. Uma lei que fosse o inverso ao cubo, por exemplo,teria feito o sistema solar incapaz de se manter coerente porqualquer perodo significativo de tempo. O carter de inverso aoquadrado da gravidade est ligado s dimenses do espao. Se oespao fosse quadridimensional, ao invs de tridimensional, agravidade poderia realmente ter sido um inverso ao cubo.

    3. Especificidade Quantitativa

    Quatro foras fundamentais da natureza operam em nosso universo.A intensidade de cada uma determinada pelos valores de quatroconstantes naturais correspondentes. A sutil constante estrutural(structure constant) (a) especifica a fora do eletromagnetismo; aconstante gravitacional de Newton (G) especifica a fora da

    gravidade; e duas constantes especificam a intensidade das forasnucleares, gs para as foras fortes que mantm o ncleo atmicoreunido e gwpara as foras fracas, que so responsveis por algunsdecaimentos nucleares e tambm controlam as interaes dosneutrinos. As magnitudes de todas essas constantes devem serfirmemente delimitadas caso se queira um universo capaz deproduzir vida.

    Se gw fosse um pouco menor, o universo primitivo teriaconvertido todo o seu hidrognio em hlio antes mesmo de esfriar aum grau abaixo da temperatura na qual os processos csmicosnucleares cessam. Tal significaria no apenas a total ausncia degua, to essencial vida, mas tambm a existncia exclusiva deestrelas de hlio, cuja durao seria insuficiente para sustentar odesenvolvimento da vida em qualquer de seus planetas. Se gwfosseum pouco maior, as exploses de supernovas teriam sido inibidas.

    Este ltimo fato poderia ter srias conseqncias para osprocessos elaborados e delicadamente equilibrados pelos quais amatria prima qumica da vida feita. Sendo o universo primitivoto simples, produziria apenas os dois elementos mais simples:hidrognio e hlio. Ambos tm uma qumica muito maante paraproporcionar a base de qualquer coisa to interessante como a vida.Esta requer mais de vinte outros elementos, o carbono acima detudo, cujas propriedades qumicas possibilitam a formao de longasmolculas em cadeia que fornecem a base bioqumica da vida. Onico lugar no universo onde o carbono feito o interior dasfornalhas nucleares das estrelas. Todos os seres vivos so feitos depoeira estelar. Desembaraar a cadeia de interaes nucleares pelas

    quais o carbono e os elementos pesados so produzidos foi um dostriunfos da astrofsica do sculo XX. Fred Hoyle foi um pioneironeste trabalho. Ele notou que a produo estelar do carbono s erapossvel porque havia uma ressonncia (um efeito de grandeamplificao) ocorrendo em um nvel de energia particular nocarbono, sendo ao mesmo tempo ausente qualquer ressonnciasimilar no oxignio, o que impediu a perda do carbono, que em casocontrrio teria em sua totalidade se tornado oxignio. Essaspropriedades nucleares detalhadas dependem do valor de gs, e se estevalor tivesse sido diferente, o carbono poderia no ter existido, e noteramos vida baseada em carbono. Ao se aperceber disto, Hoyle,embora ateu, teria dito que o universo era uma coisa feita. Ele noconseguiu aceitar que um ajuste-fino to significativo forameramente um acidente feliz.

    Dentro de uma estrela no possvel produzir elementosqumicos mais pesados que o ferro, a mais estvel das espciesnucleares. Consequentemente, dois problemas permanecem: comoproduzir os elementos pesados, alguns dos quais so necessrios

    vida, e como fazer com que os elementos mais leves saiam de dentroda estrela que os produziu. A exploso de supernova resolve ambosos problemas, uma vez que as interaes de neutrino que aacompanham tambm produzem elementos mais pesados que oferro; mas apenas se gwassumir um valor apropriado.

    As estrelas tm um segundo papel a desempenhar na viabilizaoda vida, pelo simples fato de proporcionarem fontes duradouras(bilhes de anos) e relativamente estveis de energia para alimentaro processo. Isto requer uma razo entre eletromagnetismo egravidade (apara G) situada dentro de limites estreitos de outro

    modo as estrelas queimariam to furiosamente que viveriam apenasuns poucos milhes de anos, ou to fracamente que seriam inteis vida.

    Muitas outras restries antrpicas poderiam ser mencionadas.Uma das mais precisas se relaciona constante cosmolgica ( l ), umparmetro associado a um tipo de antigravidade, que causa umarepulso na matria. A possibilidade de um l diferente de zero foireconhecida por Einstein, mas logo se viu que se tal fora existisse,seria necessariamente algo muito suave, caso contrrio o universoteria se dispersado muito rapidamente. Atualmente sabemos que ovalor de l no pode diferir em mais do que 10-120 da intensidadenaturalmente esperada. Isto representa um grau extraordinrio deajuste-fino necessrio.

    4. Condies Iniciais e Outras CondiesA histria csmica um cabo-de-guerra entre as tendncias opostasda contrao gravitacional (no sentido de ajuntar a matria) e a somados efeitos expansivos (tais como as velocidades iniciais aps o BigBang, juntamente com outros efeitos, como o valor no-zero de l ).Estas duas tendncias devem ser proximamente equilibradas paraque o universo no colapse rapidamente em um big crunch, ourapidamente se torne to diludo a ponto de impossibilitar umprocesso frutfero. De fato ao realizar extrapolaes de volta era dePlanck, quando o cosmos tinha apenas 10-43 segundos de idade, oscosmologistas concluem que a diferena entre as duas tendnciaspoderia ser apenas de uma parte em 1060. Vamos retomar este pontoparticular mais adiante.

    Roger Penrose enfatiza que o universo parece ter comeado comum nvel de organizao extremamente alto (baixa entropia).Acredita-se que isso esteja intimamente relacionado s propriedadestermodinmicas do universo, e at mesmo, possivelmente, natureza do tempo. Penrose estima a probabilidade de isso acontecerpor acaso de uma em 10123.

    Outra necessidade antrpica o tamanho do universo observvel,com suas 1011galxias, cada uma com uma mdia de 1011estrelas.Conquanto tal imensido possa s vezes parecer intimidante aoshabitantes do que, efetivamente, no passa de um gro de poeiracsmica, no deveramos nos sentir mal, porque apenas um universoao menos to grande como o nosso poderia ter durado os quatorzebilhes de anos necessrios para que seres humanos entrassem emcena. Qualquer coisa significantemente menor teria uma histria

    breve demais para tanto.

    5. Consideraes Biolgicas

    A complexidade da biologia, em comparao com a fsica, tornamuito mais difcil derivar restries antrpicas diretamente dedetalhes dos processos biolgicos. Est claro, no entanto, que a vidadepende em muitos aspectos de detalhes das propriedades da matrianeste universo3. Um simples exemplo a anmala propriedade dagua de expandir-se quando congelada, desse modo impedindo queos lagos se congelem at o fundo, o que mataria quaisquer formas devida em seu interior. Mudanas no valor de apoderiam alterar essaspropriedades.

    Esta seo esboou algumas das consideraes a partir das quaisse torna claro que um universo antrpico realmente um universomuito particular. tambm digno de nota que, muito embora asconstantes da natureza sejam restringidas por mltiplas condies,

    3Ver Denton, M.J.Natures Destiny, New York: The Free Press (1998).

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    h um conjunto de valores que satisfaz a todas consistentemente, umfato em si mesmo extraordinrio, no tocante constituio domundo.

    Interpretao.Todos os cientistas concordam em que a fbrica fsica do universoprecisou assumir uma forma muito particular para que a vidabaseada em carbono fosse capaz de evoluir ao longo de sua histria.O desacordo comea quando se discute qual seria a significnciadesse fato to notvel.

    Para muitos cientistas, o ajuste-fino csmico veio como umchoque indesejado. Profissionalmente, os cientistas aspiram generalidade, e por isso muitos se tornam excessivamentedesconfiados quanto ao particular. A sua inclinao natural acreditar que nosso universo seja simplesmente um espcimeperfeitamente tpico do que um cosmo deveria ser. O PrincpioAntrpico mostrou que no assim, que nosso universo antesmuito especial; um em um trilho, por assim dizer. Reconhecer issopareceu uma espcie de revoluo anti-Copernicana. Obviamente, osseres humanos no vivem no centro do cosmo, mas a estrutura fsicaintrnseca deste mundo teve de ser restringida dentro de estreitoslimites para que a evoluo da vida baseada em carbono fossevivel. Alguns tambm temeram ter detectado uma indesejvelameaa de tesmo. Se o universo foi dotado com potencialidades

    finamente ajustadas, isto poderia indicar que h um divinoajustador.

    Hume insistiu em favor da aceitao das propriedades da

    matria como um fato bruto, mas o ajuste-fino da natureza

    torna intelectualmente insatisfatrio parar nesse ponto a

    busca pela compreenso nesse ponto

    Uma forma bastante nova de argumento do design voltava agenda. A idia Darwiniana retirara a fora do velho argumento dodesignpara a existncia de Deus, perseguido no passado por pessoascomo John Ray e William Paley. Eles apelavam para a aptidofuncional dos seres vivos, mas o pensamento evolucionrio mostrou

    como a paciente acumulao e peneirao de pequenas diferenaspoderia levar ao aparecimento de designsem implicar a intervenodireta de um Designer divino. Telogos vieram a reconhecer que otipo antigo de teologia natural cometera o erro de pr-se como umarival da cincia dentro dos legtimos domnios dessa ltima,tentando lidar com questes tais como a da origem do sistema ticodo olho dos mamferos, cuja resposta se encontra no mbito dacompetncia biolgica. Esta crtica no poderia ser feita ao novoargumento, que apela para a potencialidade antrpica. A novateologia natural buscou ser complementria em relao cincia, aoinvs de competir com ela. A sua preocupao foi com as prpriasleis da natureza, algo que uma cincia honesta no pode explicarporque precisa assumir como a prpria base carente de explicaesde seu relato detalhado dos acontecimentos. David Hume insistiu em

    favor da aceitao das propriedades da matria como um fato bruto,mas o ajuste-fino da natureza torna intelectualmente insatisfatrioparar nesse ponto a busca pela compreenso. Hume criticou o velhoargumento do designcomo sendo demasiadamente antropomrfico,como se a obra do Criador pudesse apropriadamente ser comparada de carpinteiros construindo um navio. Essa crtica no se aplicaaos argumentos antrpicos, desde que a dotao da matria compotencialidades intrnsecas no tem anlogo humano. Em termos daspalavras hebraicas empregadas no Antigo Testamento, o ajuste-finocorresponde a bara(uma palavra reservada para a atividade divina),ao invs de asah(criao, usada para tanto para Deus quanto paraos humanos).

    O primeiro passo no debate sobre a interpretao foi a distinoentre as vrias formulaes do Princpio Antrpico. A mais modestadelas foi o Princpio Antrpico Suave (PAS), o qual simplesmenteafirmava a idia de que o carter do universo que observamos deveser consistente com a nossa presena em seu interior como seusobservadores. primeira vista, pode no parecer uma afirmao

    muito interessante. claro, por exemplo, que no h nadasurpreendente em vermos um universo com cerca de quatorzebilhes de anos, desde que seres com o nosso grau de complexidadeno tenham emergido cena em uma poca anterior. Entretanto,como vimos na seo prvia, as investigaes cientficas tmmostrado que condies plenamente antrpicas esto muito longe datrivialidade, pois incluem restries tais como o estabelecimento delimites estreitos para os valores das constantes da natureza quedefinem prprio o tecido fsico do mundo.

    Algumas pessoas foram ento levadas a definir um PrincpioAntrpico Forte (PAF), alegando que o universo tevenecessariamente que ter tais propriedades para permitir que a vida sedesenvolvesse nele em algum momento. O problema com a proposta o que poderia ser a fonte da afirmada necessidade. O PAF umadeclarao fortemente teleolgica. O crente religioso ficar feliz emfundar essa necessidade na vontade do Criador, mas o statusdo PAFcomo uma reivindicao puramente secular misterioso.Certamente no parece se fundar na prpria cincia.

    Duas outras formas de Princpio Antrpico so algumas vezesdiscutidas. O Princpio Antrpico Participativo (PAP) afirma queobservadores so necessrios para trazer o universo existncia.Certo apelo feito aqui a uma polmica interpretao da teoriaquntica que fala em termos de uma realidade criada peloobservador4, mas difcil crer que o universo no existiu at que

    os observadores tenham aparecido. H tambm o PrincpioAntrpico Final (PAFi), segundo o qual uma vez que oprocessamento inteligente de informao tenha se iniciado nouniverso, ele deve continuar para sempre. De novo, difcilencontrar uma fonte secular para a alegada necessidade. PAP e PAFiparecem ainda menos satisfatrios do que PAS.

    Outra linha de ataque ao raciocnio antrpico tentou atenuar areivindicao de particularidade csmica apontando que, na verdade,ns temos apenas um universo para estudar; mas como tirarconcluses significativas de uma amostra nica? Bem, comexerccios de imaginao cientfica poderamos visitar outrosuniversos possveis que seriam razoavelmente similares ao nosso. Aconsiderao, na seo anterior, de mundos cujas constantes danatureza assumiriam valores diferentes daqueles do presenteuniverso seria um exemplo. Nessa coleo nocional de mundosvizinhos, descobrimos que apenas um conjunto muito estreitopoderia compartilhar da potencialidade antrpica com o nossomundo efetivo. Com certeza isso seria suficiente para estabelecer umgrau de especificidade que clama por um tipo de compreenso meta-cientfica da particularidade antrpica.

    Outra abordagem sugeriu que de fato s poderia haver um mundopossvel; um universo no qual, por necessidade, a intensidade dasforas assume os valores que efetivamente observamos. Osdefensores dessa viso apelaram dificuldade encontrada pelosfsicos para combinar com sucesso a relatividade geral e a teoriaquntica, e sugeriram que talvez houvesse uma singular GrandeTeoria Unificada (GTU) que alcanaria esse objetivo e determinaria

    os valores de todas as constantes da natureza. Mesmo se tal fossepossvel e a muitos parece improvvel que uma GTU venha a sertotalmente livre de parmetros de escala ainda seria necessrioexplicar por qu a relatividade e a teoria quntica deveriam sertratadas como fatos dados. Elas certamente parecem sernecessidades antrpicas, mas de modo algum so logicamenteinevitveis. Entretanto, se realmente houver uma GTU singular, amaior de todas as coincidncias antrpicas seguramente seria queessa teoria, determinada na base da consistncia lgica, tambm seprovasse a base para um mundo capaz de fazer evoluir seres aptospara compreender essa consistncia.

    Uma proposta mais modesta e realista sugere que algumascoincidncias antrpicas sejam vistas como conseqncias de umateoria mais profunda, de tal modo que o ajuste-fino se torne

    desnecessrio. Um possvel exemplo disso o caso do delicadoequilbrio entre efeitos expansivos e contrativos no prprio universo

    4Para uma crtica, ver Polkinghorne, J.C. Quantum Theory: A very short introduction,Oxford University Press (2002), pp. 90-92.

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    primitivo que discutimos anteriormente. Conforme se aceita hoje,quando o universo alcanou cerca de 10-35 segundos de idade,ocorreu uma transio de fase csmica (uma espcie de fervura doespao) que, por um curto perodo, expandiu o cosmo com incrvelrapidez. Este processo, denominado inflao, poderia teruniformizado o universo e criado o balanceado equilbrio entre astendncias expansivas e contrativas que observamos agora. Mas aprpria inflao requereria, para atuar satisfatoriamente, que o GTUoperante no universo tivesse uma forma restrita, de modo que aparticularidade antrpica no fosse perdida, mas empurrada maisprofundamente no tecido do mundo.

    Voc est a ponto de ser executado e os rifles de

    atiradores de elite esto apontados para o seu peito. Um

    oficial d a ordem para abrir fogo...

    Ao invs disso poderamos buscar um tipo de PrincpioAntrpico Moderado5, que d ateno ao carter especial douniverso e reconhea que tal no poderia ser tratado como um felizacidente, mas como algo que clama por explicao.

    Duas abordagens metacientficas contrastantes tm sidoprocuradas. John Leslie, que gosta de fazer filosofia de um jeitoparablico, contou uma histria que ilustra graficamente o assunto. 6Voc est a ponto de ser executado e os rifles de atiradores de elite

    esto apontados para o seu peito. Um oficial d a ordem para abrirfogo... E voc descobre que sobreviveu! Voc simplesmente saiandando e dizendo puxa, essa foi por pouco!? Certamente queno, porque um evento to impressionante como esse sem dvidaexigir uma explicao. Leslie sugere que a explicao pode tomaruma dentre duas formas. Um vasto nmero de execues foi feitonaquele dia e, desde que atiradores ocasionalmente erram, por puroacaso voc foi sortudo o bastante para estar na execuo em quetodos erraram. Ou, algo mais alm de sua conscincia estavaacontecendo naquele evento nico da sua execuo os atiradoresestavam do seu lado e erraram, todos de propsito. Essa encantadorahistorieta traduz-se nas duas abordagens que tratam com aapropriada seriedade as questes antrpicas.

    1. MultiversoSugeriu-se que talvez existam muitos universos diferentes, cada umdos quais com leis naturais de tipos muito diferentes. Nesse vastoportflio de mundos, haveria por puro acaso um capaz dedesenvolver a vida baseada em carbono o nosso, claro, desde quesomos vida baseada em carbono. Um cosmo antrpico seriasimplesmente um raro bilhete premiado em uma loteria multiversal.

    A verso mais econmica da idia supe que esses diferentesmundos seriam na verdade vastos domnios dentro de um nicouniverso fsico. A forma como a simetria da GUT primordial foiquebrada na medida em que a expanso esfriou o universo,produzindo com isso as foras que hoje operam efetivamente, noprecisa ser literalmente universal. Ao invs disso o cosmo poderia

    ser um mosaico de diferentes domnios, sendo que em cada um aquebra de simetria teria assumido uma forma diferente. Ns notemos conscincia disso porque a inflao removeu todos os outrosdomnios da nossa vista e, claro, o nosso domnio fillerfillerfillerfiller

    5Polkinghorne, J.C.Reason and Reality, SPCK (1991), pp. 77-80.6Leslie, J. op. cit.[2], pp. 13-14.

    necessariamente aquele no qual os resultados da quebra de simetriase encontraram com a necessidade antrpica. A idia plausvel,mas apenas modifica em certo grau o requerimento deespecificidade, pois continua sendo necessrio que a GTU primitivatenha assumido uma forma tal que, quando a sua simetria fossequebrada, as foras produzidas por ela teriam as intensidadesapropriadas.

    Qualquer sugesto mais radical do que esta nos levar a ummundo de especulao que est alm do escopo do pensamentofsico sbrio. Apelos questionveis precisaro ser feitos a definiescorrentemente mal definidas de cosmologia quntica, ao mesmotempo recorrendo-se a suposies ad hoc sobre diferenas radicaisentre o carter das leis dos mundos supostamente gerados dessemodo. O multiverso, nessa forma, no mais do que um palpitemetafsico de excessiva prodigalidade ontolgica o recurso a eleparece ser motivado, em parte, no desejo e evitar o tesmo associado segunda abordagem.

    2. Criao

    O testa pode acreditar que h apenas um universo, cujo carterantrpico simplesmente reflita a doao de potencialidade feita porseu Criador a fim de que ele tenha uma histria frutfera. Tal tambm um palpite metafsico mas, em contraste com o multiverso,ele acrescenta vrias explicaes de outras questes alm de lidar

    com os temas antrpicos. A maravilhosa e inteligvel ordem domundo, por exemplo, to intrigante para o cientista, pode sercompreendida como um reflexo da mente do seu Criador. Odifundido testemunho humano da experincia do encontro com arealidade do sagrado pode ser compreendido com emergindo dapercepo efetiva da presena velada de Deus. No reivindicamosque a especificidade antrpica do nosso mundo, compreendida dessaforma, proveja um argumento logicamente coercivo para a crenaem Deus, ao ponto de apenas um tolo querer neg-la; mas antes queela traz uma contribuio iluminadora ao argumento cumulativo emfavor do tesmo, considerado assim a melhor explicao para anatureza do mundo em que habitamos.

    Os Faraday Papers

    Os Faraday Papers so publicados pelo Instituto Faraday paraCincia e Religio, St. Edmunds College, Cambridge, CB3 OBN,UK, uma organizao sem fins lucrativos para educao epesquisa (www.faraday-institute.org). As opinies expressas sodos autores e no representam necessariamente as vises doinstituto. Os Faraday Papers abordam uma ampla gama detpicos relacionados s interaes entre cincia e religio. Umalista completa dos Faraday Papers disponveis pode ser vista emwww.faraday-institute.org onde cpias gratuitas podem serbaixadas em formato pdf. Cpias impressas como esta podemtambm ser obtidas em maos de dez ou mais ao preo de 1.5por cpia + postagem. Detalhes para encomenda on-lineencontram-se em www.faraday-institute.org.

    Data de publicao: Abril de 2007. The Faraday Institute forScience and Religion

    Traduo para o Portugus: Guilherme V.R. de Carvalho,Setembro de 2007