Upload
phungtruc
View
213
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1
IX ENCONTRO DA ABCP
Segurança Pública e Segurança Nacional
DEBATENDO O PAPEL DO ARMAMENTO PARA GUARDAS MUNICIPAIS: O
CASO DE SÃO CARLOS-SP
Natália Maximo e Melo (UFSCar)
Brasília, DF
2
04 a 07 de agosto de 2014
DEBATENDO O PAPEL DO ARMAMENTO PARA GUARDAS MUNICIPAIS: O
CASO DE SÃO CARLOS-SP
Natália Maximo e Melo (UFSCar) Resumo do trabalho: A expansão de Guardas Municipais pelo Brasil deve ser compreendida dentro do contexto pós-Constituição de 1988. Diante disso, há a preocupação de se adequar as instituições estatais do controle social para um contexto democrático. Este paper especificamente se preocupa com a questão do armamento da Guarda Municipal (GM) e foi motivado pelo fato de que em 2012, a Câmara Municipal promoveu uma consulta à população ao longo de um mês a fim de por em debate político a necessidade de armamento letal para a GM. A Guarda Municipal de São Carlos (GMSC) foi criada por uma lei de 2001, sua função foi definida em lei como de “caráter preventivo e educativo, integrando um sistema articulado e cooperativo de Segurança Pública”. Há um processo de questionamento periódico acerca do armamento da Guarda Municipal, principalmente por parte da Câmara de vereadores que busca pautar temas para o executivo municipal. O tema está presente no cotidiano de trabalho dos guardas municipais. Neste estudo de caso, pretende-se apresentar os vários sentidos em disputa acerca do armamento dos guardas da GMSC. A pesquisa se desenvolveu a partir de coleta de notícias de jornal local, consulta da legislação nacional e municipal e entrevistas. Palavras-chave: Segurança Pública, Guarda Municipal, prevenção à violência
3
1. Introdução
Este trabalho busca compreender o papel do município nas políticas de Segurança,
tendo como estudo de caso o município de São Carlos, no interior do estado de São Paulo.
Este paper especificamente se preocupa com a questão do armamento da Guarda
Municipal1 (GM) e foi motivado pelo fato de que em 2012, a Câmara Municipal de São
Carlos promoveu uma consulta à população ao longo de um mês a fim de pôr em pauta a
necessidade de armamento letal para a GM de São Carlos.
A Guarda Municipal de São Carlos (GMSC) foi criada por uma lei de 2001 quando
iniciou uma nova gestão municipal. Nesse mesmo período vários municípios brasileiros
(Mesquita Neto, 2011) passaram a ter como uma das metas de governo a Segurança
Pública.
Para Mesquita Neto (2011) o conceito de Segurança Pública é ambíguo e tanto pode
significar “uma condição ou situação de fato, de convivência ordenada, pacífica e tranquila,
em uma determinada comunidade ou sociedade” (p. 32), como também pode significar uma
função do Estado, ou seja, conjunto de ações voltadas para a ordem realizadas por agentes
estatais, principalmente policiais e guardas. Nesse sentido, Segurança pública é termo que
se diferencia de segurança privada.
Porém, nos anos 2000 os municípios passam a implementar políticas de segurança
baseadas no conceito de Segurança cidadã, tendo como objetivo não apenas a repressão
ao crime mas, principalmente, a prevenção à violência. O conceito de segurança cidadã
surge nas décadas de 1980 e 1990, na América Latina, após governos autoritários a fim de
dar ênfase ao papel do Estado de garantir a segurança dos cidadãos e não do governo em
um contexto democrático (Mesquita Neto, 2011, Soares, 2005).
Segundo Mesquita Neto (2011)
“políticas de segurança cidadã adotam estratégias preventivas ou repressivas para lidar com os problemas de crime, violência e insegurança. Estratégias repressivas são aquelas baseadas na punição ou na ameaça de punição como forma de impedir ou dissuadir a prática de crimes e violências por indivíduos, grupos e organizações. Estratégias de prevenção são aquelas baseadas em ações orientadas para a redução da incidência e da reincidência de crime e violências e para minimização de danos. São centradas não na punição ou ameaça de punição de indivíduos, grupos e organizações que praticam crimes e violência, mas na redução dos fatores que aumentam o risco (fatores de risco) e no aumento dos fatores que diminuem o risco (de proteção) de crimes e violências” (p. 86)
1 Alguns municípios nomeiam de Guarda Civil, ou ainda, Guarda Civil Municipal. Na grande São Paulo há a Guarda Civil Metropolitana uma vez que esta pode atuar em vários municípios que compõem a região metropolitana. Aqui, usaremos apenas o termo Guarda Municipal pois é assim que estas corporações estão nomeadas pelo Ministério da Justiça.
4
A criação e reforma de Guardas Municipais pelo Brasil2 deve ser compreendida
dentro do contexto pós-Constituição de 1988. Diante disso, há a preocupação de se adequar
as instituições estatais do controle social para um contexto democrático. Azevedo (2006)
aponta que há um novo processo de gestão das conflitualidades e municipalização da
Segurança Pública em que surgem propostas de novos modelos institucionais direcionados
à prevenção do crime e valorização dos Direitos Humanos e Cidadania.
No novo contexto democrático aponta-se, de um lado, para a necessidade de
reformas nas instituições policiais que melhor se adéquem ao novo regime (Soares, 2007;
Costa, 2004), por outro lado, também são incentivadas a criação de novas formas
organizacionais como as Guardas Municipais e Polícias Comunitárias, assim como a
participação de outros atores sociais nas políticas públicas de Segurança pautados no
envolvimento com as áreas de educação, cultura, lazer, assistência social (Dias Neto, 2012;
Azevedo, 2006).
No Brasil, nos anos 2000, em meio a um contexto de aumento de taxas de
criminalidade e incentivos do governo federal para que os municípios promovessem ações
que reduzissem tais taxas, o conceito de segurança cidadã e prevenção à violência foram
importantes para embasar ações de criação ou reformas das Guardas Municipais, criar
secretarias para a área de segurança, conselhos, fóruns para participação popular e o
planejamento de programas envolvendo várias áreas do governo como educação, cultura,
assistência social juntamente à segurança pública, tendo como alvos bairros identificados
com maiores taxas de criminalidade e vulnerabilidade social3.
2 Dados sobre o perfil das Guardas Municipais são coletados pelo Ministério da Justiça desde 2003 por meio de um questionário enviado a todas as Guardas do país, no entanto, não há obrigatoriedade em responder tal questionário. A disponibilização de tais dados ao público não é rápida. O último relatório disponibilizado é de 2010 e se refere ao período de 2003 a 2006. O Ministério da Justiça coletou informações de 211 Guardas sendo que 150 estavam na região Sudeste (estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo), o que corresponde a 71% do total de GMs. Este dado não tem variado desde 2003. Outra fonte de dados é o IBGE. Este aponta para a existência, em 2009, de 865 Guardas municipais no país (em um total de 5565 municípios brasileiros). São Paulo é o segundo estado com maior número de Guardas Municipais concentrando 21% das corporações existentes no país.
3 No que se refere à atuação dos municípios em matéria de Segurança Pública uma série de
trabalhos foi produzida a partir de estudos de caso e que demonstram a implementação e avaliação das políticas de diversos municípios como, por exemplo, Santos-SP, (Perrenoud, 2007), Rio de Janeiro (Miranda, Freire e Paes, 2008), Barra Mansa-RJ (Ribeiro e Patrício, 2008), Diadema-SP, Belo Horizonte-MG, Recife-PE, São Paulo e Resende-RJ (Ricardo e Caruso, 2007). Também está presente a preocupação com a participação popular, por exemplo, no Conselho de Segurança Municipal em Lavras-MG (Oliveira, Pereira, Silva e Oliveira, 2007) e no Rio Grande do Sul (Cunha, 2009) onde as agendas municipais de Segurança voltaram-se para ações preventivas e articuladas com vários órgãos da administração pública (Educação, Saúde, Assistência Social, Esporte e Lazer).
5
Em São Carlos houve a implementação de um Plano Integrado de Segurança não só
criava a Guarda Municipal como também previa a melhoria da iluminação pública, o
cadastramento das famílias pobres em programas assistenciais, criação de Fundo Municipal
de Segurança Pública, apoio material às Polícias Militar, Civil, Ambiental e Corpo de
Bombeiros, atenção prioritária à criança e ao adolescente, ao Jovem autor de ato infracional,
a criação e implementação do conselho municipal de segurança pública e Programa de
recuperação de espaços públicos.
A GMSC é, desde a sua implementação em 2002, subordinada à Secretaria de
Governo e não há secretaria municipal destinada à Segurança urbana. Sua administração
funciona em sede única, não havendo outros locais da cidade com postos de serviço da
GMSC. Os guardas (total de 175 no momento da pesquisa) são responsáveis por proteção
do patrimônio público municipal, bens, serviços e instalações, fazem patrulhamento pelas
ruas, praças e avenidas, assim como, vigilância em unidades de serviço público municipal,
por exemplo, escolas e postos de saúde. Em serviço os guardas portam tonfa, gás pimenta,
coletes antibalísticos, algemas, além do rádio comunicador.
A lei municipal que cria a GMSC a define como de “caráter preventivo e educativo,
integrando um sistema articulado e cooperativo de Segurança Pública” (lei municipal no.
12.895 de 2001). Está aí explícita a concepção de uma corporação que teria foco em ações
de prevenção e não repressão. Já em 2006, esta lei foi alterada para acrescentar na
definição da GMSC: “corporação fardada e armada em serviço”. Essa alteração na lei já
indica uma possível mudança na função da GMSC para que sejam acrescentadas às suas
ações, além da prevenção, também a repressão.
Desde 2007, há pronunciamentos de vereadores na Câmara Municipal defendendo o
armamento letal para a GMSC. Segundo relatos de um guarda em função administrativa, em
2008, houve de fato a intenção de armar a corporação, mas com a mudança de governo
municipal a iniciativa foi abandonada.
Já em 2012, um grupo de guardas entregou um abaixo-assinado à Câmara de
vereadores, a partir disso, esta promoveu a consulta pública pela internet e o resultado
aponta para 85% de respostas favoráveis ao armamento, de um total de 199 respondentes.
Apesar da pequena participação da população para a questão relacionada à segurança,
Especificamente sobre Guardas Municipais, há o estudo Mello (2010) em Niterói-RJ quem percebe o conflito entre noções de cidadania e a ação repressiva que precisavam empreender junto a camelôs e também o de Veríssimo (2009) que explicita o cotidiano dos guardas do Rio de Janeiro as relações hierárquicas dentro da corporação, o trabalho nas ruas e chama a atenção para o “embuste” que envolve o interesse em torno da visibilidade do guarda nas ruas. No entanto, todos estes estudos de caso não dão enfoque para a questão do armamento letal para as GMs e as mudanças no cotidiano de trabalho que a sua implementação pode acarretar.
6
sendo que São Carlos é um município de cerca de 236.457 habitantes (segundo estimativa
de 2013 do IBGE), o que se percebe é que há um processo de questionamento periódico e
cada vez mais intenso acerca do papel da Guarda Municipal de São Carlos e o uso de
armamento letal. Questionamento este vindo de um grupo de guardas e também da Câmara
de vereadores que busca pautar temas para o executivo municipal mas que encontrou
entraves ao longo de mudança do poder executivo no município.
Foi feita uma entrevista com o vereador que aprovou a consulta pública realizada em
2012. Questionado sobre o armamento da Guarda Municipal ele responde que defende que
a GMSC seja armada desde que tenham devido preparo, treinamento e todos os requisitos
da legislação. Para ele, sem o armamento letal “fica uma Guarda simplesmente para
guardar prédio público. Mesmo assim, se a gente olhar bem, os dias mudaram, não é?”.
Para este vereador, o objetivo da consulta à população foi “deixar pública a vontade da
maioria e para o prefeito ver que realmente nós aqui cobramos, aqui pedimos, nós temos
razão. Mas não depende da gente, depende da prerrogativa do prefeito”. Então, diante do
argumento de que os tempos mudaram, a consulta pública aparece como um mecanismo de
pressionar o prefeito, pautar um tema ao executivo sob a justificativa da “vontade da
maioria”.
Apesar da pouca repercussão entre a população da cidade, o tema está presente no
cotidiano de trabalho dos guardas municipais. Neste estudo de caso, pretende-se apresentar
os vários sentidos em disputa acerca do armamento dos guardas da GM de São Carlos
como forma de tensionar os limites entre as estratégias de prevenção e repressão das
políticas municipais de segurança pública.
A pesquisa se desenvolveu a partir de coleta de notícias de jornal local, consulta das
legislações nacional e municipal, assim como, entrevistas. Foram entrevistados: o
comandante da GMSC na gestão municipal 2009-2012 e o comandante e o inspetor-chefe
de 2013, também foram entrevistados 10 guardas em funções diferentes (2 em função
administrativa, 4 em patrulhamento e 4 em posto fixo). A intenção das entrevistas não foi
construir uma amostra representativa da corporação (que é composta por 175 guardas) mas
sim, obter relatos que permitissem compreender como eles percebem seu papel na
segurança no município e a necessidade do armamento. E esta questão, por sua vez,
permite perceber que há dissenso em torno da interpretação das leis, as quais tem
repercussões no cotidiano de trabalho dos próprios guardas.
A pesquisa exigiu, então, que fossem buscados os aspectos legais acerca das
Guardas Municipais para se compreender a partir de quais parâmetros legais se disputam as
concepções acerca do papel do município e de atuação das Guardas Municipais na
7
Segurança Pública. Sendo assim, antes de relatar o estudo de caso realizado, trataremos a
seguir dos principais temas envolvidos na regulamentação das GMs e seu armamento no
Brasil.
2. Marcos legais e institucionais para a criação das Guardas Municipais
O principal tema atual no que se refere às Guardas Municipais no Brasil é a
inexistência de uma regulamentação federal visando a padronização e regulação dessas
corporações. Desde 2003 está em tramitação o Projeto de Lei 1332 do deputado Arnaldo
Farias de Sá (PTB-SP) para a regulamentação do parágrafo oitavo do artigo 144 da
Constituição Federal, a seguir: “§ 8º - Os Municípios poderão constituir guardas municipais
destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.” Tal
projeto de lei foi aprovado recentemente - em 23 de abril de 2014 - na Câmara dos
deputados e segue para o Senado. Um dos pontos desta PL 1332 é a regulamentação do
uso do armamento letal para estas corporações.
Constitucionalmente, a Segurança Pública é dever do Estado, direito e
responsabilidade de todos e é exercida constitucionalmente pela Polícia Federal, Polícia
Rodoviária Federal, Polícias Civis, Militares e Bombeiros. Não sendo incluída nesta relação
de instituições as Guardas Municipais, assim, abre-se espaço para interpretações de que
não são elas instituições da Segurança Pública.
A respeito do papel do município neste campo, encontram-se entre os estudiosos da
Segurança Pública duas posições distintas. Uma delas defende que a municipalização da
Segurança Pública só pode ser feita por meio de uma emenda a Constituição, como
apontado por Souza em nota técnica à Câmara dos Deputados em 2000. Por outro lado, há
estudos que defendem a municipalização da Segurança Pública baseado no argumento
legal de que a prevenção à violência é dever de todos (Ricardo e Caruso, 2007, Azevedo,
2006, Veríssimo, 2009). Sendo assim, tal argumento permite considerar as Guarda
Municipais como igualmente responsáveis pela Segurança nos municípios.
No artigo 144 da Constituição há referência às Guardas Municipais e seu papel de
proteção dos “bens, serviços e instalações”, contudo, na falta de uma regulamentação
nacional que defina as funções e a forma de organização das Guardas Municipais
brasileiras, este texto constitucional abre espaço para, ao menos, duas interpretações
distintas no âmbito do município.
8
De um lado, há a interpretação que afirma que não teriam as Guardas Municipais
poder de polícia4, ficando apenas restritas à vigilância patrimonial do município. De outro
lado, argumenta-se em defesa da atuação mais ampla das Guardas Municipais ao
considerar que o principal “bem” de um município é a sua população. Portanto, caberia
também às Guardas Municipais atuar na segurança dos cidadãos. Essa defesa é feita, por
exemplo, por associações de guardas municipais.
Acompanhando ao longo de 2013 sites de corporações tanto policiais quanto de
guardas municipais, encontra-se discussões dirigidas de cada corporação a outra. Por
exemplo, oficiais militares fazem lobby junto aos deputados federais contra a aprovação da
Emenda Constitucional que amplia os poderes das Guardas Municipais. De outro lado,
desde 1992, há congressos anuais reunindo representantes de Guardas Municipais de todo
o Brasil para discutir padrões de organização das corporações e reivindicações comuns para
formulação de propostas no Congresso Nacional.
Mais recentemente, em 2009, há um Movimento Nacional dos Guardas Municipais de
todo o país denominado Marcha Azul Marinho - nome que faz referência à cor da farda da
maioria das Guardas. Esta Marcha acontece anualmente na qual guardas de várias cidades
do Brasil se encontram em Brasília e se manifestam em frente ao Congresso Nacional
reivindicando uma Emenda Constitucional e lei que regulamente a profissão, garanta uma
maior forma de atuação, tendo como foco de ação a população e não apenas o patrimônio
do município. Como foi mencionado anteriormente, apenas em 2014, o projeto de lei foi
aprovado na Câmara sendo agora submetido ao Senado antes de se tornar lei.
O que se percebe é que há disputas em torno de quais são os atores legítimos a
participar do campo da Segurança Pública no Brasil. No sentido dado por Bourdieu (1996),
no campo - que é político - são disputados significados, leis e também recursos financeiros.
Além da Constituição, que abre para a possibilidade do município criar guardas
municipais, a Lei n. 10.826 de 2003, que rege o Sistema Nacional de Armas, incorpora os
guardas municipais como profissionais que podem ter o porte de arma de fogo mediante
vários critérios. O porte de arma de fogo é autorizado para GMs das capitais, regiões
metropolitanas e municípios com mais de 500.000 habitantes. Para municípios entre 50.000
e 500.000 os guardas podem portar arma de fogo apenas em serviço. A concessão do porte
4 É o poder da administração pública em restringir o uso de bens, atividades e direitos individuais em prol do bem coletivo. Em geral, quando se trata do poder de polícia na atuação dos guardas está-se referindo a possibilidade de abordar um indivíduo suspeito e prendê-lo. Tal poder de polícia se refere ao art. 301 do Código de Processo penal para o qual: “Qualquer um do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes, deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”.
9
de arma de fogo para as GMs fica condicionada à criação pelo município de uma
corregedoria própria e autônoma e também à existência de uma ouvidoria para fiscalizar,
investigar, auditar e propor políticas de qualificação dos integrantes da GM. Esses
profissionais devem ser submetidos a estágio de qualificação profissional de no mínimo 80h
ao ano.
Mesmo sem uma regulamentação federal específica para as GMs, ao longo dos anos
2000 houve inúmeros incentivos federais aos municípios para a constituição de Guardas
assim como outras ações na área de Segurança.
Em 2001, quando da criação no âmbito do Ministério da Justiça do Fundo Nacional
de Segurança Pública, garante-se que os municípios que tivessem Guardas Municipais
poderiam receber apoio deste Fundo para projetos na área de Segurança Pública para
treinamento do corpo policial ou de guardas municipais mediante comprometimento na
redução dos índices de criminalidade. Estes incentivos fizeram com que, de fato, apesar dos
conflitos acerca das interpretações da legislação, houvesse uma legitimação das Guardas
Municipais.
Em 2003 começa a implementação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP)
pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), órgão vinculado ao Ministério da
Justiça. O SUSP visava articular todas as instituições de Segurança Pública desde o nível
local ao federal, assim como criar um currículo de treinamento padronizado para os diversos
agentes da Segurança, incluindo os Guardas Municipais. Há, por exemplo, um Manual de
Formação de Guardas Municipais elaborado pela SENASP no qual há um currículo mínimo
padrão que deve ser aplicado a todas as Guardas do país.
Tendo apresentado esse panorama de marcos legais e institucionais para a atuação
do município e das Guardas Municipais no campo da Segurança Pública no Brasil, no item a
seguir será apresentado o estudo de caso da Guarda Municipal de São Carlos, localizada no
interior do estado de São Paulo.
2. O Comando da GM: calculando custo-benefício acerca do armamento
Como já mencionado, em 2001, a prefeitura de São Carlos lança o “Plano Municipal
Integrado de Segurança Pública” visando atuar sobre as causas da violência. Dentre os
objetivos do Plano estava a criação de uma Guarda Municipal para segurança dos bens e
serviços públicos. No entanto, nesse período, ainda não estava previsto pela Lei 10.826/03
(conhecido como Estatuto do Desarmamento) o porte de arma de fogo para guardas
10
municipais. Por isso, naquele momento não estava em questão a criação de uma
corporação armada em São Carlos, segundo um dos entrevistados.
A GMSC foi criada sob uma perspectiva de Guarda Comunitária (nas palavras do
comandante entrevistado), visando a aproximação com a comunidade e o relacionamento
com os cidadãos, sem o objetivo de combate à criminalidade.
Um dos guardas entrevistados – o qual faz parte da GMSC deste o início e atua na
sede administrativa - comenta que o primeiro comandante5 (período entre 2002 a 2008)
prezava, nos treinamentos, assuntos ligados aos Direitos Humanos. Ao longo do seu
período no Comando da GMSC promoveu várias palestras sobre este tema. Esse primeiro
comando formulou o Código de Conduta que condensa as normas disciplinares dos
membros da corporação e regula os comportamentos dos guardas.
Segundo este mesmo entrevistado, com a mudança dos governos municipais e
consequente mudança de Comando da GMSC, as duas turmas de guardas que se seguiram
já não tiveram um treinamento focado nos Direitos Humanos. As regras internas foram
afrouxadas e as condutas dos guardas também foram se alterando já que não havia o
mesmo rigor e disciplina do primeiro comandante.
Pelo relato deste guarda, se percebe que a mudança de gestão municipal e com ele,
o Comando da GMSC fez com que houvesse um progressivo afastamento dos princípios a
partir dos quais a GMSC foi criada, o que se verificou na diferença de treinamento entre as
turmas que se seguiam. Mas, é interessante notar a importância dada para as regras
disciplinares e a supervisão intensa como forma de manter os princípios e a conduta
homogênea entre os guardas.
O ex-comandante da GMSC (gestão 2009-2012) é oficial reformado do Exército e
explicou, ao ser entrevistado em 2012, que “a gente tem priorizado o patrimônio e a guarda
comunitária, guarda cidadã”. Embora não promova mais capacitações aos guardas sobre
esse tema enfatiza essa nomenclatura para justificar sua posição contrária ao armamento da
corporação.
A decisão sobre o armamento de uma Guarda Municipal passa por vários elementos.
Este ex-comandante diz que é necessário, por um lado, calcular custo-benefício e então
elenca vários questionamentos contendo elementos que devem ser considerados pelo
5 A hierarquia do GMSC é formada por Comando, inspetor-chefe, e guardas municipais. O Comando da Guarda é composto por comandante e subcomandante, os quais são cargos indicados pelo prefeito. Os comandos são em geral recrutados entre policiais militares ou oficiais do exército reformados. Os inspetores também são cargos ocupados por indicação. Já os guardas são servidores públicos concursados.
11
administrador público para o cálculo da alocação dos recursos, mas também, das
consequências dessa decisão política.
Esse guarda vai levar a arma para casa? Ele vai ter onde guardar a arma? A sede da GM tem onde guardar as armas? Teria que reforçar a segurança da sede. Teria que ter ao menos 80 armas para os guardas revesarem e o custo de cada uma é de 2500,00 e cada munição é de 10,00. Seriam mais pessoas armadas na cidade. Isso é bom? Em lugares em que não há assalto atualmente, pode ser que entrem para roubar a arma do guarda”.
A defesa deste ex-comandante pelo não armamento da GMSC também se baseia em
relatos de incidentes ocorridos em GMs de outros municípios. Dentre esses relatos uma
sequência de novos elementos são elencados para o cálculo deste custo-benefício em se
armar uma GM. Para ele, há de se pensar que com o armamento haverá uma mudança de
comportamento dos guardas pois, segundo ele, a medida que passarem a portar armas de
fogo passarão a se achar superiores aos colegas que não tiverem, havendo, assim, rupturas
da coesão da própria corporação.
Outra preocupação está na possibilidade de haver mau uso da arma, negligências ou
abuso de poder. Para dar um exemplo de negligência, este ex-comandante relatou um caso
de um guarda que dirigia o veículo segurando a arma terminou atirando na mão do
companheiro de trabalho sentado ao lado. Uma outra cena relatada se refere a um caso de
abuso de poder: dois guardas saíram em perseguição a um carro onde supunham estar um
traficante. Ao pararem o carro e revistarem o motorista descobriram que este era juiz, que
depois, entrou com uma ação contra os guardas.
A possibilidade de haver abusos e crimes cometidos por guardas traz à tona dois
outros aspectos: a falta de regulamentação para a profissão e a comparação com a atuação
da Polícia Militar.
O comandante explicita a lacuna da própria regulamentação desta categoria no Brasil
ao comentar: “um militar quando comete um crime é julgado pela Justiça Militar, tem uma
prisão diferenciada. A GM não tem isso, se um guarda cometer um crime irá para a cadeia
comum junto com os demais criminosos”. Com este exemplo, o comandante passa a discutir
qual a função da GM em relação à Polícia Militar: “não se pode passar por cima da função
de outra corporação, a abordagem ostensiva é função da Polícia. As instituições tem que ser
parceiras e não concorrentes entre si”. O que chama a atenção é que os conflitos com a PM
colocam em xeque o princípio de integração presentes no Plano Municipal e também no
próprio conceito de segurança cidadã.
A preocupação com o armamento dos guardas e a delimitação entre as funções da
GM e da Polícia Militar aparece tanto na fala deste ex-comandante como na fala do
12
comandante atual, este é tenente-coronel da Polícia Militar. No entanto, ele tem uma posição
distinta de seu antecessor pois, embora, não aprove o armamento letal para os guardas
municipais, é favorável à arma de choque.
Para ele, a principal função da GMSC é a guarda patrimonial, função para a qual não
considera necessário armamento de fogo. Este comandante traz mais alguns argumentos
para justificar o uso da arma de choque. Primeiramente, ele diz que o armamento de choque
é a tendência de várias polícias do mundo e também das Unidades de Polícia Pacificadora
no Rio de Janeiro e da Polícia Militar de São Paulo. Em sua opção, a arma de choque é
bastante eficiente porém é desconhecida da população, por isso, defende que seja
primeiramente implementada na GMSC o uso dessa arma para que se perceba que não é
necessário uma Guarda armada com revólveres.
Então, elenca suas justificativas e um novo cálculo de custo-benefício para
comprovar que a arma de choque é mais apropriada para as GMs do que a arma letal. O
primeiro dele é a menor letalidade da arma de choque, o que significa não só a garantia da
vida da “população” e do “bandido” (sic) mas também uma menor exposição da GMSC
diante de possíveis erros dos seus guardas. Levando em conta a fragilidade da legislação
para regular o trabalho dos guardas e o fato de que um guarda que cometa um homicídio
será submetido à Justiça comum, a arma de choque é uma forma de armá-los e ao mesmo
tempo minimizar a possibilidade de crimes.
Um segundo fator a entrar no cálculo para a escolha da arma de choque é o próprio
mercado de armas. Assim como todo armamento, a arma de choque é de interesse do
“bandido” mas enquanto há uma grande facilidade de encontrar munição para as armas de
fogo, o cartucho usado para o choque não é ainda facilmente encontrado no mercado.
Assim, há de se considerar na escolha da arma de choque a possibilidade de que o
armamento dos guardas chegue nas mãos dos “bandidos” por meio de roubo ou de um
mercado clandestino.
Assim como seu antecessor, este comandante também considera que há grande
probabilidade de os guardas fazerem mau uso do armamento letal pois, segundo ele, o
treinamento de um guarda está aquém do treinamento dos policiais. Este também é um
elemento que entra no cálculo racional para a decisão de armar a GMSC e que levanta mais
uma vez elementos presentes nos marcos normativos para as GMs, ou seja, treinamento
específico, critérios e avaliações para o porte de arma, a manutenção de seu uso e o
controle dos membros das GMs por corregedoria própria e uma prisão específica.
Os dois comandantes quando entrevistados, ao falarem sobre a possibilidade de
armamento da Guarda Municipal, expressaram cálculos de custos tanto monetário mas
13
também cálculos em torno da periculosidade dos armamentos em si e dos usos que este
pode ter entre guardas ou “bandidos”. E segundo essa racionalidade, o armamento letal não
é aprovado.
Mas há ainda outros argumentos a respeito das funções da corporação e do
armamento que são expressos pelo inspetor-chefe e pelos próprios guardas e que serão
explicitados no item a seguir.
4. Defendendo a GM “forte”: armar a Guarda e municipalizar a Segurança Pública
Abaixo do Comando, a hierarquia é ocupada pelo inspetor-chefe. Em 2013, este
posto foi ocupado por um ex-comandante de uma Guarda Municipal vizinha. Com a
mudança de governo municipal, ele foi substituído no Comando da GM da sua cidade de
origem mas foi chamado pelo prefeito de São Carlos para ocupar o cargo de inspetor-chefe
da GMSC. O entendimento dele sobre o papel da Guarda é bastante diferente dos relatos
dos Comandantes já mencionados e é favorável ao armamento letal para os guardas
municipais.
O inspetor-chefe não é militar, teve uma carreira toda como guarda municipal.
Quando foi comandante trabalhou para armar a Guarda Municipal de sua cidade e
transformá-la em uma corporação “forte”, segundo ele, isto é, similar à Polícia Militar,
atuando junto ou mesmo em substituição a ela.
As disputas em torno do papel da Guarda Municipal no campo da Segurança Pública
que se dão em âmbito nacional são reproduzidas na fala deste inspetor. Para ele “tudo é
gerado em questão de interpretação (…) Então, falam que a Guarda não pode fazer a
segurança da população. Mas se a gente for interpretar, qual o maior bem, patrimônio do
município? A população!”
Mais do que armar a GMSC com armas letais, ele defende que haja no Brasil a
municipalização da Segurança Pública, assim como ocorre nos EUA. Ele justifica essa
posição argumentando que quem conhece de fato os problemas do município é quem mora
nele, ou seja, os guardas municipais. Para ele, policiais militares prestam serviço a vários
municípios e, portanto, não se comprometem da mesma forma em trabalhar em uma cidade
onde não estão suas famílias.
Outro argumento a favor de que a gestão da Segurança Pública seja feita no
município se deve a uma melhor aplicação dos recursos. O inspetor-chefe menciona que o
município arca com vários custos para manter a Polícia Militar, desde contas de água e luz,
aluguel de prédio, etc. Para ele, o município deve ser autônomo para decidir sobre
14
Segurança Pública e aplicar recursos de forma mais eficiente. Outro aspecto da gestão da
Segurança Pública está na produção de estatísticas nas quais as GMs são invisibilizadas.
Segundo ele, embora as GMs façam o trabalho de detenção de “bandidos”, esses dados
são contados como sendo trabalho da Polícia Civil apenas. Isso significa uma invisibilidade e
falta de reconhecimento do estado quando ao “real” trabalho desempenhado pelas Guardas
Municipais.
Um último elemento que justifica a GM “forte” é o crescimento do tráfico como maior
problema das cidades na atualidade. Esta é a justificativa para reestruturar a guarda, armar,
equipar, dar treinamento para vir a fazer esse serviço.
No que se refere especificamente ao armamento letal, o inspetor se atém a
responder a possíveis críticas quanto ao despreparo das Guardas Municipais comparando-
as às Polícias, invertendo, assim, os argumentos apresentados pelos comandantes militares
quanto ao fraco treinamento dos guardas. O inspetor questiona, por sua vez, a capacitação
das Polícias Militar e Civil para uso da arma de fogo e diz que enquanto as GMs precisam
atualizar a cada dois anos os treinamentos dos guardas a fim de permanecer em convênio
com a Polícia Federal, já as Polícias estaduais não passam pelo mesmo procedimento. Para
ele, o preparo das Polícias é questionável e diz enfaticamente: “E a Polícia Militar? E a
Polícia Civil? Quantas reciclagens, quantas vezes eles passam por psicólogo, quantas vezes
eles fazem avaliação?”
Se na alta hierarquia da GMSC importa relacionar custos-benefício e discutir as
funções da GM a partir da interpretação da legislação, os recursos financeiros do município
e as relações entre instituições do governo municipal e estadual, já entre os guardas, a
utilização do armamento está referenciado às condições de trabalho, à relação com a
“população” e com o “bandido”. Não é a interpretação da lei que está em questão mas sim
sua execução. Os guardas, em geral, expressam que “a lei deve ser cumprida” mas o modo
como ela é feita depende das ordens do Comando. Há aqui uma outra forma de
racionalidade baseada em um senso prático e moralidade presentes nas relações do dia a
dia de trabalho.
Para os guardas, questionar acerca da necessidade do armamento faz com que
expressem uma série de preocupações com suas condições de trabalho, periculosidade,
percepções sobre a expectativa da população e comparações com o trabalho da Polícia.
Estes aspectos serão tratados nos itens que se seguem.
5. A questão do armamento para os guardas: periculosidade e melhoria nas condições
de trabalho
15
Entre uma recusa absoluta do armamento letal e uma defesa deste há vários
elementos levantados a partir da fala dos guardas entrevistados. Os fatores de
periculosidade envolvendo o uso da arma letal, assim como, a distinção do trabalho da GM e
da PM também estão presentes no raciocínio dos guardas municipais, porém, como
relações presentes no cotidiano do trabalho.
No que se refere à periculosidade do trabalho dos guardas há de se considerar qual
o tipo de ocorrências mais frequentes no trabalho dos guardas. Os dados da tabela a seguir
foram os únicos disponibilizados pelo Comando da GMSC para a pesquisa. As informações
foram retiradas do questionário enviado pela GMSC ao Ministério da Justiça em 2012
(contendo dados de 2011).
Como é possível se ver pela tabela, a guarda recebe maior número de solicitações
dos próprios públicos do que chamados relacionados a crimes violentos. Entre as
ocorrências de 2011 chama a atenção a quantidade de serviços prestados para o Conselho
Tutelar e, na sequência, a assistência a escolas municipais e apoio à Defesa Civil.
Tabela 1: Tipos de ocorrências atendidas pela GMSC em 2011
Tipo de ocorrência quantidade
Conflitos/brigas interpessoais 8
Acidentes de transito 44
Violência doméstica 4
Defesa civil 45
Dano ao patrimônio (público e privado 17
roubo 0
Extorsão mediante sequestro 0
Entorpecentes (porte e uso) 0
Escolta de valores 0
Fiscalização de posturas públicas 6
Encaminhamentos ao conselho tutelar 226
Participação em reuniões comunitárias 2
Assistência em escolas 72
16
total 298
Fonte: Questionário Perfil das Guardas Municipais - Ministério da Justiça 2012
A atuação da GMSC é marcada, predominantemente, à proteção do patrimônio e dos
servidores públicos. Tem-se um total de 170 prédios do município sob proteção da GMSC
além de praças e parques. Também há uma central de videomonitoramento da GMSC a
partir da qual uma equipe de guardas recebem as imagens das câmeras de segurança
localizadas nas ruas da região central e de grande circulação.
Há apenas 14 guardas por turno (jornadas de trabalho de 12x36h) que realizam
patrulhamento em viaturas pelas ruas da cidade. Apesar de ser a função minoritária para a
GMSC é o trabalho de maior visibilidade para a população e é, também, segundo todos os
entrevistados, o de maior periculosidade.
Os principais riscos elencados pelos guardas estão em ocorrências no período
noturno, também em há bairros da cidade percebidos como de maior perigo pois há neles
moradores armados, tráfico de drogas e rixas com policiais, de modo que os guardas
também são hostilizados.
Os dois guardas entrevistados que realizam patrulhamento relataram receber
ameaças de morte frequentemente. Não é à toa que eles defendem enfaticamente o porte
de arma letal como uma forma de melhoria na condição de trabalho. O armamento letal
aparece em suas falas como um meio de proteção pessoal. Dizem já terem vivenciado
situações em que poderiam ter ocorrido troca de tiros e se comovem ao saber de notícias de
policiais mortos por “bandidos” pois entendem que o mesmo pode ocorrer com os guardas.
Em caso de confronto armado, os guardas não tem sequer como se proteger sem ter
armamento similar ao dos “bandidos”.
Para além de ser uma proteção em raros momentos de possível confronto com
“bandidos”, a arma é também um recurso para “impor respeito”, exercer mais autoridade.
Portanto, tendo o recurso da visibilidade da arma, seria esta também uma proteção contra
ameaças e agressões verbais, das quais os guardas são alvos frequentes da população.
Para os guardas que atuam em postos fixos, a necessidade de armamento não é
evidente e os argumentos são diversos. Uma guarda diz que nos seus 5 anos de trabalho na
GMSC nunca sequer necessitou usar o gás de pimenta e, portanto, não acha necessário
armamento. Outros dois guardas dizem que o armamento significaria um aumento de
funções e de responsabilidade sem que isso melhore salário, direitos. Ou seja, para eles o
armamento letal não significa melhoria de condições de trabalho. Um quarto guarda diz
ainda que não quer trabalhar armado pois se assim desejasse teria feito concurso para ser
17
policial. Nesse caso, não trabalhar armado é um fator de distinção positivo na comparação
com o trabalho do policial.
Para todos esses guardas, o porte de arma não corresponde à realidade de seu dia a
dia como guardas, nem mesmo satisfazem a suas expectativas de melhorias de condição de
trabalho as quais estariam vinculadas a melhores salários, treinamentos, reconhecimento,
promoção de carreira e também novos uniformes e viaturas adequadas.
Por fim, uma guarda do setor administrativo - quem tem contato com informações
administrativas do conjunto da corporação - responde não ter uma posição clara a respeito
da necessidade do armamento para a GMSC pois sabe que há colegas que enfrentam
perigo mas, de outro lado, sabe que no conjunto do trabalho da GMSC não há grandes
riscos e os dados das ocorrências demonstram isso. Segundo ela, apenas uma vez em 12
anos de existência da GMSC houve um tiro direcionado à sede da corporação. Além disso,
nunca houve guarda ferido à bala. Os únicos ferimentos graves que já ocorreram foram
decorrentes de queda de moto durante serviço.
6. Os guardas na rua: preocupação com visibilidade e expectativa da população
Os guardas são trabalhadores dos espaços urbanos e sua atuação é visível
publicamente. Veríssimo (2009) analisando a Guarda Municipal do Rio de Janeiro, levanta a
noção de “embuste” como uma forma de “esforço de manutenção das aparências”, em que
há a manipulação da imagem do guarda para interesses políticos. Por exemplo, os locais do
Rio de Janeiro com maior patrulhamento dos guardas são os pontos turísticos, ou ainda, nos
momentos em que haverá a presença de políticos.
Enquanto o “embuste” faz parte de um acordo do guarda com os interesses políticos,
o que os entrevistados aqui ressaltam é uma visibilidade que não é necessariamente
embuste mas que envolve um comprometimento com a população. Todos os entrevistados,
de todas as escalas hierárquicas mencionaram a importância de diminuir a sensação de
insegurança da população, e isso se consegue com a presença visível do guarda nas ruas.
Na fala dos guardas, a população solicita que atuem em situações de perigo, por
isso, não podem ser omissos mesmo que o que foi solicitado não seja sua função. Para dar
um exemplo, um guarda explica que se há um furto em praça pública, a vítima irá chamar o
guarda mais próximo e este não pode responder “chama a polícia, essa não é minha função.
Vou ter que correr atrás, vou ter que tentar”, diz o entrevistado.
Fica claro nesse argumento exposto pelos guardas na rua que nem sempre é
possível cumprir com os ordens do Comandante para que os guardas não realizem funções
18
que não são de sua competência. A visibilidade dos guardas na rua e o comprometimento
em dar resposta à população faz com que tenham que “correr atrás” de dar solução a um
problema.
Os guardas entrevistados afirmam que a população já os associa com polícia e a
utilização do armamento acentuará essa percepção. A partir dessa constatação, outros
argumentos surgem a respeito da necessidade de armar a GMSC. Por exemplo, um dos
guardas afirma que a decisão correta deve se dar entre armar a todos os guardas ou a
nenhum uma vez que a população não saberá diferenciar entre qual guarda está ou não
armado, o que pode expor um guarda desarmado a situações de risco em que não pode
atuar. Alguns dos guardas disseram achar que a população não quer o armamento na
cidade e que esta questão é irrelevante para a população. Outros ainda acham que a
população vai querer uma Guarda “forte”, armada quando for vítima de crimes, então, a
tendência será valorizar que a GM tenha arma letal.
Para os guardas que são a favor do armamento letal, o argumento da expectativa da
população e a visibilidade do guarda na rua são os fatores que guiam suas ações para o uso
do armamento. Um guarda que já trabalhou anteriormente armado como segurança
particular refuta a arma de choque e diz: “ela [arma de choque] não é levada a sério pelo
“bandido”, então, o guarda vai ter que usá-la mesmo. Aí, a população vai ver “o bandido”
caindo e se contorcendo e isso vai sujar a imagem do guarda”. Já a arma de fogo, para ele,
“impõe mais respeito” e, por isso, dificilmente precisaria ser usada.
Seu argumento é interessante ao ser comparado ao do comandante que defende a
arma de choque. Enquanto o comandante faz um cálculo levando em conta o grau de
letalidade e de possibilidade de a arma do guarda se tornar mercadoria para o “bandido”, já
este guarda avalia o uso dos diferentes armamentos a partir da capacidade de “impor
respeito” sobre o “bandido” e ao mesmo tempo, prefere a arma que “não suje sua imagem”,
isto é, que o mantenha como o “respeito” tanto da população quanto do “bandido”.
A população demanda ação do guarda e também o julga. Por isso, há a preocupação
dos guardas em adequar sua visibilidade nas ruas com a expectativa da população. Estar
diante do julgamento da população é critério para o cálculo que o guarda faz de suas ações.
Isto foi muito bem expresso por um dos entrevistados ao dizer que o guarda não pode ser
“covarde” mas, por outro lado, não pode ser “truculento”. E em meio a tantas funções
diferentes no dia a dia de trabalho, seja por ordem do Comando ou por solicitação da
população, o guarda “tem que aprender a ter malícia”, diz o entrevistado.
Tal malícia equivale a um código de conduta informal aprendido no trabalho e que
permite ao guarda interpretar as ordens recebidas e buscar adequá-las às situações vividas
19
na rua quando se vê entre a expectativa da população, de um lado, e necessidade de
imposição de respeito ao “bandido”, por outra.
Enquanto o Comando enfatiza a relação da Guarda com a Polícia afirmando a
distinção entre as funções de cada corporação, e se preocupa com a visibilidade da
corporação perante agentes estatais e de direito como, por exemplo, um advogado, juiz, ou
outra corporação - o que se aproxima da noção de “embuste” - por sua vez, os guardas se
guiam pelas expectativas e julgamentos da população, e essa relação regula muitas das
atitudes do cotidiano dos guardas na rua, expressa pela “malícia” do guarda.
7. Considerações finais
O questionamento acerca do armamento da GM em São Carlos descortinou vários
elementos do trabalho dos guardas municipais que demonstram que a segurança cidadã
que combina estratégias de repressão e prevenção tem várias nuances.
Há mudanças ao longo do tempo a medida que há troca de gestão municipal. Desde
2001, quando a lei de criação da GM de São Carlos definiu sua função de caráter
“preventivo e educativo”, percebe-se um processo que aponta para uma transformação da
corporação aproximando-a de uma função repressiva, policial.
Outras nuances são também pela hierarquia que está no comando. Entre os
membros mais altos da hierarquia - comando e inspetor-chefe – vimos que há definições
distintas sobre qual o papel da GM na Segurança Pública. Ficou explícito que há tanto uma
concepção de Guarda Comunitária, expressa pelo ex-comandante, quanto uma concepção
de GM prioritariamente patrimonial, segundo o Comandante mais recente. Ambos vindos de
organizações militares, são contra o armamento letal para a GM, embora o último defenda a
utilização de arma de choque. Já o inspetor-chefe -ex-comandante de uma GM armada -
tem uma expectativa de que haja municipalização da Segurança Pública e que as GMs
sejam similares às Polícias municipais americanas.
Mediante cada uma dessas interpretações sobre qual o papel da GM na segurança
pública do município, há diferentes cálculos em torno da adoção ou não de armamento para
os guardas, e ainda, qual tipo de armamento (letal ou choque) mais apropriado. Nesses
cálculos há elementos da gestão de recursos públicos, das interpretações da lei,
considerações acerca da relação complementar ou conflituosa com a Polícia Militar, com a
população e com o “bandido”.
Mas para aqueles que vivenciam o trabalho nas ruas também há nuances que levam
em conta as condições de trabalho, a visibilidade dos guardas para a população e um
código de conduta informal expresso pela “malícia” do guarda.
20
Portanto, uma decisão política no sentido de privilegiar estratégias de prevenção e
repressão não é simples. O prefeito, por sua vez, tem indicado que o município deve fazer
convênio com a Polícia Militar para que esta preste serviço ao município e também aponta
para a tendências em adotar armamentos para a Guarda Municipal.
Em 2013, um grupo de 25 guardas municipais fizeram treinamento para utilização da
arma de choque e 20 pistolas foram adquiridas pela GMSC. Contudo, não apenas as armas
de choque serão de disponibilizadas ao uso dos guardas municipais, há notícias de janeiro e
fevereiro de 2014 em que o prefeito anuncia investimentos para aprimoramento da GMSC.
Dentre eles estão novos equipamentos, viatura, uniformes, gás pimenta e também convênio
com a Polícia Federal a fim de dar início aos procedimentos para armar a GMSC com arma
de fogo. E em 24 de janeiro de 2014, o comandante entrevistado acima faz a seguinte fala
em jornal local a respeito dos novos investimentos e diretrizes para a GMSC:
Trata-se de um processo lento, a longo prazo, mas necessário. Já estamos conversando com a Polícia Federal, temos o aval do prefeito e vamos procurar finalizar tudo o mais rápido possível, incluindo as devidas avaliações psicológicas, cursos de treinamento de armamento e tiro e cursos de armeiro. Queremos viabilizar cursos de atualização profissional para todo o efetivo da Guarda Municipal, adquirir novas viaturas, atualizar a rede de radiocomunicação e adquirir spray de pimenta para todos os Guardas Municipais. Nossa intenção é formar uma GM modelo, capaz de dar todo o suporte para a Polícia Militar. Queremos ser ainda mais eficientes em 2014.
O caso do município de São Carlos demonstra que há cada vez maior indistinção
entre as estratégias preventivas e repressivas em um processo que vem se dando em vários
níveis: há desde as mudanças no conteúdo do treinamento das novas turmas de guardas
municipais, o enfraquecimento das regras disciplinares, um lobby de grupo de guardas na
Câmara municipal a favor do armamento letal, comandante com carreira na polícia militar,
um inspetor-chefe favorável a uma GM “forte”, e por fim, um prefeito com um entendimento
de Segurança Público como repressão à violência e combate ao crime.
Um estudo de caso não basta para entender processos que ocorrem em âmbitos
mais gerais, estaduais ou nacionais. De toda forma, rende perguntas que tencionam
conceitos e levam a outras questões de pesquisa:
Em que medida a trajetória da política de segurança no âmbito do município, como
verificado em São Carlos, casos de Segurança cidadã tem se transformado em casos de
intensificação da repressão policial? O conceito de segurança cidadã que visa associar
prevenção e repressão, intersetorialidade, participação estará se esgotando a medida que
se apontam tendências para o predomínio de políticas voltadas para a repressão?
21
Perguntas de amplitude teórica não respondidas por um estudo de caso mas de
importância para se pensar em rumos futuros para as propostas de mudanças institucionais
para a segurança pública.
Referências
AZEVEDO, J. de Souza. Registrar para quê? Uma análise das formas de registro dos
atendimentos da Guarda Municipal de São Gonçalo (RJ). Niterói: UFF. 2012.
AZEVEDO, R. G. Prevenção integrada: novas perspectivas para as políticas de segurança
no Brasil. Florianópolis: Revista Katálysis, v. 9, n.1, jan/jun. 2006.
BOURDIEU, P. Razões Práticas. Sobre a teoria da Ação.Campinas-SP: Papirus, 1996.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal:
Centro Gráfico, 1988. 292 p.
BRITO, J. A. R. Política de Segurança Pública no município: a experiência de Fortaleza.
Fortaleza: UECE. 2012
CARVALHO, Cláudio F.. O que você precisa saber sobre Guarda Municipal e nunca teve a
quem perguntar. Curitiba: Santarém. 2009.
COSTA, Arthur T. M. Entre a Lei e a Ordem. Violência e reforma nas polícias do Rio de
Janeiro e Nova York.FGV. 2004
CUNHA, E. P. Os Sentidos da Participação para a Construção de Políticas de Segurança
Municipais (Dissertação de mestrado). Florianópolis: UFSC. 2009.
DIAS NETO, Theodomiro. Em busca de um conceito de Nova Prevenção. Revista
Eletrônica de Ciências Jurídicas. Disponível em: www.pgj.ma.gov.br/ampem/ampem1.asp
Acesso: 12 de dezembro de 2012.
FREIRE, M. D. Paradigmas de Segurança no Brasil: da ditadura aos nossos dias. Aurora,
ano 3, n. 5. 2009. pp. 49-58.
MELLO, Kátia Sento Sé. Cidade e Conflito: Guardas Municipais e Camelôs. Niterói: EDUFF,
2011
MESQUITA NETO, P. Políticas municipais de segurança cidadã: problemas e soluções.
Análises e Propostas. n. 33, dez 2006. Disponível em:
http://library.fes.de/pdffiles/bueros/brasilien/05612.pdf. Acesso em 02 de janeiro de 2013.
_____. Ensaios sobre Segurança Cidadã. São Paulo: Quartier Latin; Fapesp. 2011.
MIRANDA, A. P. M.; FREIRE, L. L.; PAES, V. F. A gestão da segurança pública municipal no
estado do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Segurança Pública. Ano 2. Edição 3. Jul/Ago
2008.
22
OLIVEIRA, V. A. R.; PEREIRA, J. R.; SILVA ; OLIVEIRA, V. C. O Conselho de
Segurança Pública no âmbito da administração pública municipal. Revista Brasileira de
Segurança Pública. Ano 1, Edição 1. 2007.
PERRENOUD, Renato. Políticas municipais de segurança: a experiência de Santos.
Revista Brasileira de Segurança Pública.Ano 1, Edição 1. 2007.
PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO CARLOS. Plano Integrado de Segurança Pública.
Disponível em: Acesso em: 10 de fevereiro de 2013.
RIBEIRO, L.; PATRÍCIO, L. Indicadores para o monitoramento e avaliação das políticas
municipais de segurança pública: uma reflexão a partir de um estudo de caso. Revista
Brasileira de Segurança Pública. Ano 2. Edição 3. Jul/Ago. 2008.
RICARDO, C. de M; CARUSO, H. G. C. Segurança pública: um desafio para os municípios
brasileiros. Revista Brasileira de Segurança Pública. Ano 1, Edição 1, 2007. Disponível em:
http://www2.forumseguranca.org.br/content/revista-brasileira-de-seguran%C3%A7-
p%C3%BAblica-1. Acesso em: 02 de janeiro de 2013.
RODRIGUES, Marco A. Silva. Conversão institucional na reforma da Segurança Pública no
Brasil. São Paulo: USP. 2011.
SENTO-SÉ, J. T (org). Prevenção da violência: o papel das cidades. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005.
SOARES, L. E. A Política de Segurança Pública: histórico, dilemas e perspectivas. Estudos
Avançados 21. 2007. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142007000300006. Acesso
em: 02 de janeiro de 2013.
VERÍSSIMO, Marcus. A estratégia do embuste: a guarda municipal do Rio de Janeiro e as
políticas públicas de segurança. Revista Ética e Filosofia Política, n. 15 vol. 1.Rio de Janeiro:
2012.
_____. De sol a sol, na luta por um lugar ao sol: a Guarda Municipal do Rio de Janeiro e os
ritos, conflitos e estratégias presentes no espaço público carioca.(Dissertação de Mestrado).
Niterói: UFF. 2009.
ZACCARIOTTO, José Pedro. O regular porte de arma de fogo pelas Guardas Municipais.
Jus Navigandi. Teresina, ano, n. 35, 1999. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/1030.
Acesso em: 1 fev. 2013.