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1 IX ENCONTRO DA ABCP Segurança Pública e Segurança Nacional DEBATENDO O PAPEL DO ARMAMENTO PARA GUARDAS MUNICIPAIS: O CASO DE SÃO CARLOS-SP Natália Maximo e Melo (UFSCar) Brasília, DF

DEBATENDO O PAPEL DO ARMAMENTO PARA GUARDAS … · Já em 2012, um grupo de guardas entregou um abaixo-assinado à Câmara de vereadores, a partir disso, esta promoveu a consulta

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IX ENCONTRO DA ABCP

Segurança Pública e Segurança Nacional

DEBATENDO O PAPEL DO ARMAMENTO PARA GUARDAS MUNICIPAIS: O

CASO DE SÃO CARLOS-SP

Natália Maximo e Melo (UFSCar)

Brasília, DF

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04 a 07 de agosto de 2014

DEBATENDO O PAPEL DO ARMAMENTO PARA GUARDAS MUNICIPAIS: O

CASO DE SÃO CARLOS-SP

Natália Maximo e Melo (UFSCar) Resumo do trabalho: A expansão de Guardas Municipais pelo Brasil deve ser compreendida dentro do contexto pós-Constituição de 1988. Diante disso, há a preocupação de se adequar as instituições estatais do controle social para um contexto democrático. Este paper especificamente se preocupa com a questão do armamento da Guarda Municipal (GM) e foi motivado pelo fato de que em 2012, a Câmara Municipal promoveu uma consulta à população ao longo de um mês a fim de por em debate político a necessidade de armamento letal para a GM. A Guarda Municipal de São Carlos (GMSC) foi criada por uma lei de 2001, sua função foi definida em lei como de “caráter preventivo e educativo, integrando um sistema articulado e cooperativo de Segurança Pública”. Há um processo de questionamento periódico acerca do armamento da Guarda Municipal, principalmente por parte da Câmara de vereadores que busca pautar temas para o executivo municipal. O tema está presente no cotidiano de trabalho dos guardas municipais. Neste estudo de caso, pretende-se apresentar os vários sentidos em disputa acerca do armamento dos guardas da GMSC. A pesquisa se desenvolveu a partir de coleta de notícias de jornal local, consulta da legislação nacional e municipal e entrevistas. Palavras-chave: Segurança Pública, Guarda Municipal, prevenção à violência

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1. Introdução

Este trabalho busca compreender o papel do município nas políticas de Segurança,

tendo como estudo de caso o município de São Carlos, no interior do estado de São Paulo.

Este paper especificamente se preocupa com a questão do armamento da Guarda

Municipal1 (GM) e foi motivado pelo fato de que em 2012, a Câmara Municipal de São

Carlos promoveu uma consulta à população ao longo de um mês a fim de pôr em pauta a

necessidade de armamento letal para a GM de São Carlos.

A Guarda Municipal de São Carlos (GMSC) foi criada por uma lei de 2001 quando

iniciou uma nova gestão municipal. Nesse mesmo período vários municípios brasileiros

(Mesquita Neto, 2011) passaram a ter como uma das metas de governo a Segurança

Pública.

Para Mesquita Neto (2011) o conceito de Segurança Pública é ambíguo e tanto pode

significar “uma condição ou situação de fato, de convivência ordenada, pacífica e tranquila,

em uma determinada comunidade ou sociedade” (p. 32), como também pode significar uma

função do Estado, ou seja, conjunto de ações voltadas para a ordem realizadas por agentes

estatais, principalmente policiais e guardas. Nesse sentido, Segurança pública é termo que

se diferencia de segurança privada.

Porém, nos anos 2000 os municípios passam a implementar políticas de segurança

baseadas no conceito de Segurança cidadã, tendo como objetivo não apenas a repressão

ao crime mas, principalmente, a prevenção à violência. O conceito de segurança cidadã

surge nas décadas de 1980 e 1990, na América Latina, após governos autoritários a fim de

dar ênfase ao papel do Estado de garantir a segurança dos cidadãos e não do governo em

um contexto democrático (Mesquita Neto, 2011, Soares, 2005).

Segundo Mesquita Neto (2011)

“políticas de segurança cidadã adotam estratégias preventivas ou repressivas para lidar com os problemas de crime, violência e insegurança. Estratégias repressivas são aquelas baseadas na punição ou na ameaça de punição como forma de impedir ou dissuadir a prática de crimes e violências por indivíduos, grupos e organizações. Estratégias de prevenção são aquelas baseadas em ações orientadas para a redução da incidência e da reincidência de crime e violências e para minimização de danos. São centradas não na punição ou ameaça de punição de indivíduos, grupos e organizações que praticam crimes e violência, mas na redução dos fatores que aumentam o risco (fatores de risco) e no aumento dos fatores que diminuem o risco (de proteção) de crimes e violências” (p. 86)

1 Alguns municípios nomeiam de Guarda Civil, ou ainda, Guarda Civil Municipal. Na grande São Paulo há a Guarda Civil Metropolitana uma vez que esta pode atuar em vários municípios que compõem a região metropolitana. Aqui, usaremos apenas o termo Guarda Municipal pois é assim que estas corporações estão nomeadas pelo Ministério da Justiça.

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A criação e reforma de Guardas Municipais pelo Brasil2 deve ser compreendida

dentro do contexto pós-Constituição de 1988. Diante disso, há a preocupação de se adequar

as instituições estatais do controle social para um contexto democrático. Azevedo (2006)

aponta que há um novo processo de gestão das conflitualidades e municipalização da

Segurança Pública em que surgem propostas de novos modelos institucionais direcionados

à prevenção do crime e valorização dos Direitos Humanos e Cidadania.

No novo contexto democrático aponta-se, de um lado, para a necessidade de

reformas nas instituições policiais que melhor se adéquem ao novo regime (Soares, 2007;

Costa, 2004), por outro lado, também são incentivadas a criação de novas formas

organizacionais como as Guardas Municipais e Polícias Comunitárias, assim como a

participação de outros atores sociais nas políticas públicas de Segurança pautados no

envolvimento com as áreas de educação, cultura, lazer, assistência social (Dias Neto, 2012;

Azevedo, 2006).

No Brasil, nos anos 2000, em meio a um contexto de aumento de taxas de

criminalidade e incentivos do governo federal para que os municípios promovessem ações

que reduzissem tais taxas, o conceito de segurança cidadã e prevenção à violência foram

importantes para embasar ações de criação ou reformas das Guardas Municipais, criar

secretarias para a área de segurança, conselhos, fóruns para participação popular e o

planejamento de programas envolvendo várias áreas do governo como educação, cultura,

assistência social juntamente à segurança pública, tendo como alvos bairros identificados

com maiores taxas de criminalidade e vulnerabilidade social3.

2 Dados sobre o perfil das Guardas Municipais são coletados pelo Ministério da Justiça desde 2003 por meio de um questionário enviado a todas as Guardas do país, no entanto, não há obrigatoriedade em responder tal questionário. A disponibilização de tais dados ao público não é rápida. O último relatório disponibilizado é de 2010 e se refere ao período de 2003 a 2006. O Ministério da Justiça coletou informações de 211 Guardas sendo que 150 estavam na região Sudeste (estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo), o que corresponde a 71% do total de GMs. Este dado não tem variado desde 2003. Outra fonte de dados é o IBGE. Este aponta para a existência, em 2009, de 865 Guardas municipais no país (em um total de 5565 municípios brasileiros). São Paulo é o segundo estado com maior número de Guardas Municipais concentrando 21% das corporações existentes no país.

3 No que se refere à atuação dos municípios em matéria de Segurança Pública uma série de

trabalhos foi produzida a partir de estudos de caso e que demonstram a implementação e avaliação das políticas de diversos municípios como, por exemplo, Santos-SP, (Perrenoud, 2007), Rio de Janeiro (Miranda, Freire e Paes, 2008), Barra Mansa-RJ (Ribeiro e Patrício, 2008), Diadema-SP, Belo Horizonte-MG, Recife-PE, São Paulo e Resende-RJ (Ricardo e Caruso, 2007). Também está presente a preocupação com a participação popular, por exemplo, no Conselho de Segurança Municipal em Lavras-MG (Oliveira, Pereira, Silva e Oliveira, 2007) e no Rio Grande do Sul (Cunha, 2009) onde as agendas municipais de Segurança voltaram-se para ações preventivas e articuladas com vários órgãos da administração pública (Educação, Saúde, Assistência Social, Esporte e Lazer).

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Em São Carlos houve a implementação de um Plano Integrado de Segurança não só

criava a Guarda Municipal como também previa a melhoria da iluminação pública, o

cadastramento das famílias pobres em programas assistenciais, criação de Fundo Municipal

de Segurança Pública, apoio material às Polícias Militar, Civil, Ambiental e Corpo de

Bombeiros, atenção prioritária à criança e ao adolescente, ao Jovem autor de ato infracional,

a criação e implementação do conselho municipal de segurança pública e Programa de

recuperação de espaços públicos.

A GMSC é, desde a sua implementação em 2002, subordinada à Secretaria de

Governo e não há secretaria municipal destinada à Segurança urbana. Sua administração

funciona em sede única, não havendo outros locais da cidade com postos de serviço da

GMSC. Os guardas (total de 175 no momento da pesquisa) são responsáveis por proteção

do patrimônio público municipal, bens, serviços e instalações, fazem patrulhamento pelas

ruas, praças e avenidas, assim como, vigilância em unidades de serviço público municipal,

por exemplo, escolas e postos de saúde. Em serviço os guardas portam tonfa, gás pimenta,

coletes antibalísticos, algemas, além do rádio comunicador.

A lei municipal que cria a GMSC a define como de “caráter preventivo e educativo,

integrando um sistema articulado e cooperativo de Segurança Pública” (lei municipal no.

12.895 de 2001). Está aí explícita a concepção de uma corporação que teria foco em ações

de prevenção e não repressão. Já em 2006, esta lei foi alterada para acrescentar na

definição da GMSC: “corporação fardada e armada em serviço”. Essa alteração na lei já

indica uma possível mudança na função da GMSC para que sejam acrescentadas às suas

ações, além da prevenção, também a repressão.

Desde 2007, há pronunciamentos de vereadores na Câmara Municipal defendendo o

armamento letal para a GMSC. Segundo relatos de um guarda em função administrativa, em

2008, houve de fato a intenção de armar a corporação, mas com a mudança de governo

municipal a iniciativa foi abandonada.

Já em 2012, um grupo de guardas entregou um abaixo-assinado à Câmara de

vereadores, a partir disso, esta promoveu a consulta pública pela internet e o resultado

aponta para 85% de respostas favoráveis ao armamento, de um total de 199 respondentes.

Apesar da pequena participação da população para a questão relacionada à segurança,

Especificamente sobre Guardas Municipais, há o estudo Mello (2010) em Niterói-RJ quem percebe o conflito entre noções de cidadania e a ação repressiva que precisavam empreender junto a camelôs e também o de Veríssimo (2009) que explicita o cotidiano dos guardas do Rio de Janeiro as relações hierárquicas dentro da corporação, o trabalho nas ruas e chama a atenção para o “embuste” que envolve o interesse em torno da visibilidade do guarda nas ruas. No entanto, todos estes estudos de caso não dão enfoque para a questão do armamento letal para as GMs e as mudanças no cotidiano de trabalho que a sua implementação pode acarretar.

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sendo que São Carlos é um município de cerca de 236.457 habitantes (segundo estimativa

de 2013 do IBGE), o que se percebe é que há um processo de questionamento periódico e

cada vez mais intenso acerca do papel da Guarda Municipal de São Carlos e o uso de

armamento letal. Questionamento este vindo de um grupo de guardas e também da Câmara

de vereadores que busca pautar temas para o executivo municipal mas que encontrou

entraves ao longo de mudança do poder executivo no município.

Foi feita uma entrevista com o vereador que aprovou a consulta pública realizada em

2012. Questionado sobre o armamento da Guarda Municipal ele responde que defende que

a GMSC seja armada desde que tenham devido preparo, treinamento e todos os requisitos

da legislação. Para ele, sem o armamento letal “fica uma Guarda simplesmente para

guardar prédio público. Mesmo assim, se a gente olhar bem, os dias mudaram, não é?”.

Para este vereador, o objetivo da consulta à população foi “deixar pública a vontade da

maioria e para o prefeito ver que realmente nós aqui cobramos, aqui pedimos, nós temos

razão. Mas não depende da gente, depende da prerrogativa do prefeito”. Então, diante do

argumento de que os tempos mudaram, a consulta pública aparece como um mecanismo de

pressionar o prefeito, pautar um tema ao executivo sob a justificativa da “vontade da

maioria”.

Apesar da pouca repercussão entre a população da cidade, o tema está presente no

cotidiano de trabalho dos guardas municipais. Neste estudo de caso, pretende-se apresentar

os vários sentidos em disputa acerca do armamento dos guardas da GM de São Carlos

como forma de tensionar os limites entre as estratégias de prevenção e repressão das

políticas municipais de segurança pública.

A pesquisa se desenvolveu a partir de coleta de notícias de jornal local, consulta das

legislações nacional e municipal, assim como, entrevistas. Foram entrevistados: o

comandante da GMSC na gestão municipal 2009-2012 e o comandante e o inspetor-chefe

de 2013, também foram entrevistados 10 guardas em funções diferentes (2 em função

administrativa, 4 em patrulhamento e 4 em posto fixo). A intenção das entrevistas não foi

construir uma amostra representativa da corporação (que é composta por 175 guardas) mas

sim, obter relatos que permitissem compreender como eles percebem seu papel na

segurança no município e a necessidade do armamento. E esta questão, por sua vez,

permite perceber que há dissenso em torno da interpretação das leis, as quais tem

repercussões no cotidiano de trabalho dos próprios guardas.

A pesquisa exigiu, então, que fossem buscados os aspectos legais acerca das

Guardas Municipais para se compreender a partir de quais parâmetros legais se disputam as

concepções acerca do papel do município e de atuação das Guardas Municipais na

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Segurança Pública. Sendo assim, antes de relatar o estudo de caso realizado, trataremos a

seguir dos principais temas envolvidos na regulamentação das GMs e seu armamento no

Brasil.

2. Marcos legais e institucionais para a criação das Guardas Municipais

O principal tema atual no que se refere às Guardas Municipais no Brasil é a

inexistência de uma regulamentação federal visando a padronização e regulação dessas

corporações. Desde 2003 está em tramitação o Projeto de Lei 1332 do deputado Arnaldo

Farias de Sá (PTB-SP) para a regulamentação do parágrafo oitavo do artigo 144 da

Constituição Federal, a seguir: “§ 8º - Os Municípios poderão constituir guardas municipais

destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.” Tal

projeto de lei foi aprovado recentemente - em 23 de abril de 2014 - na Câmara dos

deputados e segue para o Senado. Um dos pontos desta PL 1332 é a regulamentação do

uso do armamento letal para estas corporações.

Constitucionalmente, a Segurança Pública é dever do Estado, direito e

responsabilidade de todos e é exercida constitucionalmente pela Polícia Federal, Polícia

Rodoviária Federal, Polícias Civis, Militares e Bombeiros. Não sendo incluída nesta relação

de instituições as Guardas Municipais, assim, abre-se espaço para interpretações de que

não são elas instituições da Segurança Pública.

A respeito do papel do município neste campo, encontram-se entre os estudiosos da

Segurança Pública duas posições distintas. Uma delas defende que a municipalização da

Segurança Pública só pode ser feita por meio de uma emenda a Constituição, como

apontado por Souza em nota técnica à Câmara dos Deputados em 2000. Por outro lado, há

estudos que defendem a municipalização da Segurança Pública baseado no argumento

legal de que a prevenção à violência é dever de todos (Ricardo e Caruso, 2007, Azevedo,

2006, Veríssimo, 2009). Sendo assim, tal argumento permite considerar as Guarda

Municipais como igualmente responsáveis pela Segurança nos municípios.

No artigo 144 da Constituição há referência às Guardas Municipais e seu papel de

proteção dos “bens, serviços e instalações”, contudo, na falta de uma regulamentação

nacional que defina as funções e a forma de organização das Guardas Municipais

brasileiras, este texto constitucional abre espaço para, ao menos, duas interpretações

distintas no âmbito do município.

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De um lado, há a interpretação que afirma que não teriam as Guardas Municipais

poder de polícia4, ficando apenas restritas à vigilância patrimonial do município. De outro

lado, argumenta-se em defesa da atuação mais ampla das Guardas Municipais ao

considerar que o principal “bem” de um município é a sua população. Portanto, caberia

também às Guardas Municipais atuar na segurança dos cidadãos. Essa defesa é feita, por

exemplo, por associações de guardas municipais.

Acompanhando ao longo de 2013 sites de corporações tanto policiais quanto de

guardas municipais, encontra-se discussões dirigidas de cada corporação a outra. Por

exemplo, oficiais militares fazem lobby junto aos deputados federais contra a aprovação da

Emenda Constitucional que amplia os poderes das Guardas Municipais. De outro lado,

desde 1992, há congressos anuais reunindo representantes de Guardas Municipais de todo

o Brasil para discutir padrões de organização das corporações e reivindicações comuns para

formulação de propostas no Congresso Nacional.

Mais recentemente, em 2009, há um Movimento Nacional dos Guardas Municipais de

todo o país denominado Marcha Azul Marinho - nome que faz referência à cor da farda da

maioria das Guardas. Esta Marcha acontece anualmente na qual guardas de várias cidades

do Brasil se encontram em Brasília e se manifestam em frente ao Congresso Nacional

reivindicando uma Emenda Constitucional e lei que regulamente a profissão, garanta uma

maior forma de atuação, tendo como foco de ação a população e não apenas o patrimônio

do município. Como foi mencionado anteriormente, apenas em 2014, o projeto de lei foi

aprovado na Câmara sendo agora submetido ao Senado antes de se tornar lei.

O que se percebe é que há disputas em torno de quais são os atores legítimos a

participar do campo da Segurança Pública no Brasil. No sentido dado por Bourdieu (1996),

no campo - que é político - são disputados significados, leis e também recursos financeiros.

Além da Constituição, que abre para a possibilidade do município criar guardas

municipais, a Lei n. 10.826 de 2003, que rege o Sistema Nacional de Armas, incorpora os

guardas municipais como profissionais que podem ter o porte de arma de fogo mediante

vários critérios. O porte de arma de fogo é autorizado para GMs das capitais, regiões

metropolitanas e municípios com mais de 500.000 habitantes. Para municípios entre 50.000

e 500.000 os guardas podem portar arma de fogo apenas em serviço. A concessão do porte

4 É o poder da administração pública em restringir o uso de bens, atividades e direitos individuais em prol do bem coletivo. Em geral, quando se trata do poder de polícia na atuação dos guardas está-se referindo a possibilidade de abordar um indivíduo suspeito e prendê-lo. Tal poder de polícia se refere ao art. 301 do Código de Processo penal para o qual: “Qualquer um do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes, deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”.

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de arma de fogo para as GMs fica condicionada à criação pelo município de uma

corregedoria própria e autônoma e também à existência de uma ouvidoria para fiscalizar,

investigar, auditar e propor políticas de qualificação dos integrantes da GM. Esses

profissionais devem ser submetidos a estágio de qualificação profissional de no mínimo 80h

ao ano.

Mesmo sem uma regulamentação federal específica para as GMs, ao longo dos anos

2000 houve inúmeros incentivos federais aos municípios para a constituição de Guardas

assim como outras ações na área de Segurança.

Em 2001, quando da criação no âmbito do Ministério da Justiça do Fundo Nacional

de Segurança Pública, garante-se que os municípios que tivessem Guardas Municipais

poderiam receber apoio deste Fundo para projetos na área de Segurança Pública para

treinamento do corpo policial ou de guardas municipais mediante comprometimento na

redução dos índices de criminalidade. Estes incentivos fizeram com que, de fato, apesar dos

conflitos acerca das interpretações da legislação, houvesse uma legitimação das Guardas

Municipais.

Em 2003 começa a implementação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP)

pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), órgão vinculado ao Ministério da

Justiça. O SUSP visava articular todas as instituições de Segurança Pública desde o nível

local ao federal, assim como criar um currículo de treinamento padronizado para os diversos

agentes da Segurança, incluindo os Guardas Municipais. Há, por exemplo, um Manual de

Formação de Guardas Municipais elaborado pela SENASP no qual há um currículo mínimo

padrão que deve ser aplicado a todas as Guardas do país.

Tendo apresentado esse panorama de marcos legais e institucionais para a atuação

do município e das Guardas Municipais no campo da Segurança Pública no Brasil, no item a

seguir será apresentado o estudo de caso da Guarda Municipal de São Carlos, localizada no

interior do estado de São Paulo.

2. O Comando da GM: calculando custo-benefício acerca do armamento

Como já mencionado, em 2001, a prefeitura de São Carlos lança o “Plano Municipal

Integrado de Segurança Pública” visando atuar sobre as causas da violência. Dentre os

objetivos do Plano estava a criação de uma Guarda Municipal para segurança dos bens e

serviços públicos. No entanto, nesse período, ainda não estava previsto pela Lei 10.826/03

(conhecido como Estatuto do Desarmamento) o porte de arma de fogo para guardas

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municipais. Por isso, naquele momento não estava em questão a criação de uma

corporação armada em São Carlos, segundo um dos entrevistados.

A GMSC foi criada sob uma perspectiva de Guarda Comunitária (nas palavras do

comandante entrevistado), visando a aproximação com a comunidade e o relacionamento

com os cidadãos, sem o objetivo de combate à criminalidade.

Um dos guardas entrevistados – o qual faz parte da GMSC deste o início e atua na

sede administrativa - comenta que o primeiro comandante5 (período entre 2002 a 2008)

prezava, nos treinamentos, assuntos ligados aos Direitos Humanos. Ao longo do seu

período no Comando da GMSC promoveu várias palestras sobre este tema. Esse primeiro

comando formulou o Código de Conduta que condensa as normas disciplinares dos

membros da corporação e regula os comportamentos dos guardas.

Segundo este mesmo entrevistado, com a mudança dos governos municipais e

consequente mudança de Comando da GMSC, as duas turmas de guardas que se seguiram

já não tiveram um treinamento focado nos Direitos Humanos. As regras internas foram

afrouxadas e as condutas dos guardas também foram se alterando já que não havia o

mesmo rigor e disciplina do primeiro comandante.

Pelo relato deste guarda, se percebe que a mudança de gestão municipal e com ele,

o Comando da GMSC fez com que houvesse um progressivo afastamento dos princípios a

partir dos quais a GMSC foi criada, o que se verificou na diferença de treinamento entre as

turmas que se seguiam. Mas, é interessante notar a importância dada para as regras

disciplinares e a supervisão intensa como forma de manter os princípios e a conduta

homogênea entre os guardas.

O ex-comandante da GMSC (gestão 2009-2012) é oficial reformado do Exército e

explicou, ao ser entrevistado em 2012, que “a gente tem priorizado o patrimônio e a guarda

comunitária, guarda cidadã”. Embora não promova mais capacitações aos guardas sobre

esse tema enfatiza essa nomenclatura para justificar sua posição contrária ao armamento da

corporação.

A decisão sobre o armamento de uma Guarda Municipal passa por vários elementos.

Este ex-comandante diz que é necessário, por um lado, calcular custo-benefício e então

elenca vários questionamentos contendo elementos que devem ser considerados pelo

5 A hierarquia do GMSC é formada por Comando, inspetor-chefe, e guardas municipais. O Comando da Guarda é composto por comandante e subcomandante, os quais são cargos indicados pelo prefeito. Os comandos são em geral recrutados entre policiais militares ou oficiais do exército reformados. Os inspetores também são cargos ocupados por indicação. Já os guardas são servidores públicos concursados.

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administrador público para o cálculo da alocação dos recursos, mas também, das

consequências dessa decisão política.

Esse guarda vai levar a arma para casa? Ele vai ter onde guardar a arma? A sede da GM tem onde guardar as armas? Teria que reforçar a segurança da sede. Teria que ter ao menos 80 armas para os guardas revesarem e o custo de cada uma é de 2500,00 e cada munição é de 10,00. Seriam mais pessoas armadas na cidade. Isso é bom? Em lugares em que não há assalto atualmente, pode ser que entrem para roubar a arma do guarda”.

A defesa deste ex-comandante pelo não armamento da GMSC também se baseia em

relatos de incidentes ocorridos em GMs de outros municípios. Dentre esses relatos uma

sequência de novos elementos são elencados para o cálculo deste custo-benefício em se

armar uma GM. Para ele, há de se pensar que com o armamento haverá uma mudança de

comportamento dos guardas pois, segundo ele, a medida que passarem a portar armas de

fogo passarão a se achar superiores aos colegas que não tiverem, havendo, assim, rupturas

da coesão da própria corporação.

Outra preocupação está na possibilidade de haver mau uso da arma, negligências ou

abuso de poder. Para dar um exemplo de negligência, este ex-comandante relatou um caso

de um guarda que dirigia o veículo segurando a arma terminou atirando na mão do

companheiro de trabalho sentado ao lado. Uma outra cena relatada se refere a um caso de

abuso de poder: dois guardas saíram em perseguição a um carro onde supunham estar um

traficante. Ao pararem o carro e revistarem o motorista descobriram que este era juiz, que

depois, entrou com uma ação contra os guardas.

A possibilidade de haver abusos e crimes cometidos por guardas traz à tona dois

outros aspectos: a falta de regulamentação para a profissão e a comparação com a atuação

da Polícia Militar.

O comandante explicita a lacuna da própria regulamentação desta categoria no Brasil

ao comentar: “um militar quando comete um crime é julgado pela Justiça Militar, tem uma

prisão diferenciada. A GM não tem isso, se um guarda cometer um crime irá para a cadeia

comum junto com os demais criminosos”. Com este exemplo, o comandante passa a discutir

qual a função da GM em relação à Polícia Militar: “não se pode passar por cima da função

de outra corporação, a abordagem ostensiva é função da Polícia. As instituições tem que ser

parceiras e não concorrentes entre si”. O que chama a atenção é que os conflitos com a PM

colocam em xeque o princípio de integração presentes no Plano Municipal e também no

próprio conceito de segurança cidadã.

A preocupação com o armamento dos guardas e a delimitação entre as funções da

GM e da Polícia Militar aparece tanto na fala deste ex-comandante como na fala do

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comandante atual, este é tenente-coronel da Polícia Militar. No entanto, ele tem uma posição

distinta de seu antecessor pois, embora, não aprove o armamento letal para os guardas

municipais, é favorável à arma de choque.

Para ele, a principal função da GMSC é a guarda patrimonial, função para a qual não

considera necessário armamento de fogo. Este comandante traz mais alguns argumentos

para justificar o uso da arma de choque. Primeiramente, ele diz que o armamento de choque

é a tendência de várias polícias do mundo e também das Unidades de Polícia Pacificadora

no Rio de Janeiro e da Polícia Militar de São Paulo. Em sua opção, a arma de choque é

bastante eficiente porém é desconhecida da população, por isso, defende que seja

primeiramente implementada na GMSC o uso dessa arma para que se perceba que não é

necessário uma Guarda armada com revólveres.

Então, elenca suas justificativas e um novo cálculo de custo-benefício para

comprovar que a arma de choque é mais apropriada para as GMs do que a arma letal. O

primeiro dele é a menor letalidade da arma de choque, o que significa não só a garantia da

vida da “população” e do “bandido” (sic) mas também uma menor exposição da GMSC

diante de possíveis erros dos seus guardas. Levando em conta a fragilidade da legislação

para regular o trabalho dos guardas e o fato de que um guarda que cometa um homicídio

será submetido à Justiça comum, a arma de choque é uma forma de armá-los e ao mesmo

tempo minimizar a possibilidade de crimes.

Um segundo fator a entrar no cálculo para a escolha da arma de choque é o próprio

mercado de armas. Assim como todo armamento, a arma de choque é de interesse do

“bandido” mas enquanto há uma grande facilidade de encontrar munição para as armas de

fogo, o cartucho usado para o choque não é ainda facilmente encontrado no mercado.

Assim, há de se considerar na escolha da arma de choque a possibilidade de que o

armamento dos guardas chegue nas mãos dos “bandidos” por meio de roubo ou de um

mercado clandestino.

Assim como seu antecessor, este comandante também considera que há grande

probabilidade de os guardas fazerem mau uso do armamento letal pois, segundo ele, o

treinamento de um guarda está aquém do treinamento dos policiais. Este também é um

elemento que entra no cálculo racional para a decisão de armar a GMSC e que levanta mais

uma vez elementos presentes nos marcos normativos para as GMs, ou seja, treinamento

específico, critérios e avaliações para o porte de arma, a manutenção de seu uso e o

controle dos membros das GMs por corregedoria própria e uma prisão específica.

Os dois comandantes quando entrevistados, ao falarem sobre a possibilidade de

armamento da Guarda Municipal, expressaram cálculos de custos tanto monetário mas

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também cálculos em torno da periculosidade dos armamentos em si e dos usos que este

pode ter entre guardas ou “bandidos”. E segundo essa racionalidade, o armamento letal não

é aprovado.

Mas há ainda outros argumentos a respeito das funções da corporação e do

armamento que são expressos pelo inspetor-chefe e pelos próprios guardas e que serão

explicitados no item a seguir.

4. Defendendo a GM “forte”: armar a Guarda e municipalizar a Segurança Pública

Abaixo do Comando, a hierarquia é ocupada pelo inspetor-chefe. Em 2013, este

posto foi ocupado por um ex-comandante de uma Guarda Municipal vizinha. Com a

mudança de governo municipal, ele foi substituído no Comando da GM da sua cidade de

origem mas foi chamado pelo prefeito de São Carlos para ocupar o cargo de inspetor-chefe

da GMSC. O entendimento dele sobre o papel da Guarda é bastante diferente dos relatos

dos Comandantes já mencionados e é favorável ao armamento letal para os guardas

municipais.

O inspetor-chefe não é militar, teve uma carreira toda como guarda municipal.

Quando foi comandante trabalhou para armar a Guarda Municipal de sua cidade e

transformá-la em uma corporação “forte”, segundo ele, isto é, similar à Polícia Militar,

atuando junto ou mesmo em substituição a ela.

As disputas em torno do papel da Guarda Municipal no campo da Segurança Pública

que se dão em âmbito nacional são reproduzidas na fala deste inspetor. Para ele “tudo é

gerado em questão de interpretação (…) Então, falam que a Guarda não pode fazer a

segurança da população. Mas se a gente for interpretar, qual o maior bem, patrimônio do

município? A população!”

Mais do que armar a GMSC com armas letais, ele defende que haja no Brasil a

municipalização da Segurança Pública, assim como ocorre nos EUA. Ele justifica essa

posição argumentando que quem conhece de fato os problemas do município é quem mora

nele, ou seja, os guardas municipais. Para ele, policiais militares prestam serviço a vários

municípios e, portanto, não se comprometem da mesma forma em trabalhar em uma cidade

onde não estão suas famílias.

Outro argumento a favor de que a gestão da Segurança Pública seja feita no

município se deve a uma melhor aplicação dos recursos. O inspetor-chefe menciona que o

município arca com vários custos para manter a Polícia Militar, desde contas de água e luz,

aluguel de prédio, etc. Para ele, o município deve ser autônomo para decidir sobre

14

Segurança Pública e aplicar recursos de forma mais eficiente. Outro aspecto da gestão da

Segurança Pública está na produção de estatísticas nas quais as GMs são invisibilizadas.

Segundo ele, embora as GMs façam o trabalho de detenção de “bandidos”, esses dados

são contados como sendo trabalho da Polícia Civil apenas. Isso significa uma invisibilidade e

falta de reconhecimento do estado quando ao “real” trabalho desempenhado pelas Guardas

Municipais.

Um último elemento que justifica a GM “forte” é o crescimento do tráfico como maior

problema das cidades na atualidade. Esta é a justificativa para reestruturar a guarda, armar,

equipar, dar treinamento para vir a fazer esse serviço.

No que se refere especificamente ao armamento letal, o inspetor se atém a

responder a possíveis críticas quanto ao despreparo das Guardas Municipais comparando-

as às Polícias, invertendo, assim, os argumentos apresentados pelos comandantes militares

quanto ao fraco treinamento dos guardas. O inspetor questiona, por sua vez, a capacitação

das Polícias Militar e Civil para uso da arma de fogo e diz que enquanto as GMs precisam

atualizar a cada dois anos os treinamentos dos guardas a fim de permanecer em convênio

com a Polícia Federal, já as Polícias estaduais não passam pelo mesmo procedimento. Para

ele, o preparo das Polícias é questionável e diz enfaticamente: “E a Polícia Militar? E a

Polícia Civil? Quantas reciclagens, quantas vezes eles passam por psicólogo, quantas vezes

eles fazem avaliação?”

Se na alta hierarquia da GMSC importa relacionar custos-benefício e discutir as

funções da GM a partir da interpretação da legislação, os recursos financeiros do município

e as relações entre instituições do governo municipal e estadual, já entre os guardas, a

utilização do armamento está referenciado às condições de trabalho, à relação com a

“população” e com o “bandido”. Não é a interpretação da lei que está em questão mas sim

sua execução. Os guardas, em geral, expressam que “a lei deve ser cumprida” mas o modo

como ela é feita depende das ordens do Comando. Há aqui uma outra forma de

racionalidade baseada em um senso prático e moralidade presentes nas relações do dia a

dia de trabalho.

Para os guardas, questionar acerca da necessidade do armamento faz com que

expressem uma série de preocupações com suas condições de trabalho, periculosidade,

percepções sobre a expectativa da população e comparações com o trabalho da Polícia.

Estes aspectos serão tratados nos itens que se seguem.

5. A questão do armamento para os guardas: periculosidade e melhoria nas condições

de trabalho

15

Entre uma recusa absoluta do armamento letal e uma defesa deste há vários

elementos levantados a partir da fala dos guardas entrevistados. Os fatores de

periculosidade envolvendo o uso da arma letal, assim como, a distinção do trabalho da GM e

da PM também estão presentes no raciocínio dos guardas municipais, porém, como

relações presentes no cotidiano do trabalho.

No que se refere à periculosidade do trabalho dos guardas há de se considerar qual

o tipo de ocorrências mais frequentes no trabalho dos guardas. Os dados da tabela a seguir

foram os únicos disponibilizados pelo Comando da GMSC para a pesquisa. As informações

foram retiradas do questionário enviado pela GMSC ao Ministério da Justiça em 2012

(contendo dados de 2011).

Como é possível se ver pela tabela, a guarda recebe maior número de solicitações

dos próprios públicos do que chamados relacionados a crimes violentos. Entre as

ocorrências de 2011 chama a atenção a quantidade de serviços prestados para o Conselho

Tutelar e, na sequência, a assistência a escolas municipais e apoio à Defesa Civil.

Tabela 1: Tipos de ocorrências atendidas pela GMSC em 2011

Tipo de ocorrência quantidade

Conflitos/brigas interpessoais 8

Acidentes de transito 44

Violência doméstica 4

Defesa civil 45

Dano ao patrimônio (público e privado 17

roubo 0

Extorsão mediante sequestro 0

Entorpecentes (porte e uso) 0

Escolta de valores 0

Fiscalização de posturas públicas 6

Encaminhamentos ao conselho tutelar 226

Participação em reuniões comunitárias 2

Assistência em escolas 72

16

total 298

Fonte: Questionário Perfil das Guardas Municipais - Ministério da Justiça 2012

A atuação da GMSC é marcada, predominantemente, à proteção do patrimônio e dos

servidores públicos. Tem-se um total de 170 prédios do município sob proteção da GMSC

além de praças e parques. Também há uma central de videomonitoramento da GMSC a

partir da qual uma equipe de guardas recebem as imagens das câmeras de segurança

localizadas nas ruas da região central e de grande circulação.

Há apenas 14 guardas por turno (jornadas de trabalho de 12x36h) que realizam

patrulhamento em viaturas pelas ruas da cidade. Apesar de ser a função minoritária para a

GMSC é o trabalho de maior visibilidade para a população e é, também, segundo todos os

entrevistados, o de maior periculosidade.

Os principais riscos elencados pelos guardas estão em ocorrências no período

noturno, também em há bairros da cidade percebidos como de maior perigo pois há neles

moradores armados, tráfico de drogas e rixas com policiais, de modo que os guardas

também são hostilizados.

Os dois guardas entrevistados que realizam patrulhamento relataram receber

ameaças de morte frequentemente. Não é à toa que eles defendem enfaticamente o porte

de arma letal como uma forma de melhoria na condição de trabalho. O armamento letal

aparece em suas falas como um meio de proteção pessoal. Dizem já terem vivenciado

situações em que poderiam ter ocorrido troca de tiros e se comovem ao saber de notícias de

policiais mortos por “bandidos” pois entendem que o mesmo pode ocorrer com os guardas.

Em caso de confronto armado, os guardas não tem sequer como se proteger sem ter

armamento similar ao dos “bandidos”.

Para além de ser uma proteção em raros momentos de possível confronto com

“bandidos”, a arma é também um recurso para “impor respeito”, exercer mais autoridade.

Portanto, tendo o recurso da visibilidade da arma, seria esta também uma proteção contra

ameaças e agressões verbais, das quais os guardas são alvos frequentes da população.

Para os guardas que atuam em postos fixos, a necessidade de armamento não é

evidente e os argumentos são diversos. Uma guarda diz que nos seus 5 anos de trabalho na

GMSC nunca sequer necessitou usar o gás de pimenta e, portanto, não acha necessário

armamento. Outros dois guardas dizem que o armamento significaria um aumento de

funções e de responsabilidade sem que isso melhore salário, direitos. Ou seja, para eles o

armamento letal não significa melhoria de condições de trabalho. Um quarto guarda diz

ainda que não quer trabalhar armado pois se assim desejasse teria feito concurso para ser

17

policial. Nesse caso, não trabalhar armado é um fator de distinção positivo na comparação

com o trabalho do policial.

Para todos esses guardas, o porte de arma não corresponde à realidade de seu dia a

dia como guardas, nem mesmo satisfazem a suas expectativas de melhorias de condição de

trabalho as quais estariam vinculadas a melhores salários, treinamentos, reconhecimento,

promoção de carreira e também novos uniformes e viaturas adequadas.

Por fim, uma guarda do setor administrativo - quem tem contato com informações

administrativas do conjunto da corporação - responde não ter uma posição clara a respeito

da necessidade do armamento para a GMSC pois sabe que há colegas que enfrentam

perigo mas, de outro lado, sabe que no conjunto do trabalho da GMSC não há grandes

riscos e os dados das ocorrências demonstram isso. Segundo ela, apenas uma vez em 12

anos de existência da GMSC houve um tiro direcionado à sede da corporação. Além disso,

nunca houve guarda ferido à bala. Os únicos ferimentos graves que já ocorreram foram

decorrentes de queda de moto durante serviço.

6. Os guardas na rua: preocupação com visibilidade e expectativa da população

Os guardas são trabalhadores dos espaços urbanos e sua atuação é visível

publicamente. Veríssimo (2009) analisando a Guarda Municipal do Rio de Janeiro, levanta a

noção de “embuste” como uma forma de “esforço de manutenção das aparências”, em que

há a manipulação da imagem do guarda para interesses políticos. Por exemplo, os locais do

Rio de Janeiro com maior patrulhamento dos guardas são os pontos turísticos, ou ainda, nos

momentos em que haverá a presença de políticos.

Enquanto o “embuste” faz parte de um acordo do guarda com os interesses políticos,

o que os entrevistados aqui ressaltam é uma visibilidade que não é necessariamente

embuste mas que envolve um comprometimento com a população. Todos os entrevistados,

de todas as escalas hierárquicas mencionaram a importância de diminuir a sensação de

insegurança da população, e isso se consegue com a presença visível do guarda nas ruas.

Na fala dos guardas, a população solicita que atuem em situações de perigo, por

isso, não podem ser omissos mesmo que o que foi solicitado não seja sua função. Para dar

um exemplo, um guarda explica que se há um furto em praça pública, a vítima irá chamar o

guarda mais próximo e este não pode responder “chama a polícia, essa não é minha função.

Vou ter que correr atrás, vou ter que tentar”, diz o entrevistado.

Fica claro nesse argumento exposto pelos guardas na rua que nem sempre é

possível cumprir com os ordens do Comandante para que os guardas não realizem funções

18

que não são de sua competência. A visibilidade dos guardas na rua e o comprometimento

em dar resposta à população faz com que tenham que “correr atrás” de dar solução a um

problema.

Os guardas entrevistados afirmam que a população já os associa com polícia e a

utilização do armamento acentuará essa percepção. A partir dessa constatação, outros

argumentos surgem a respeito da necessidade de armar a GMSC. Por exemplo, um dos

guardas afirma que a decisão correta deve se dar entre armar a todos os guardas ou a

nenhum uma vez que a população não saberá diferenciar entre qual guarda está ou não

armado, o que pode expor um guarda desarmado a situações de risco em que não pode

atuar. Alguns dos guardas disseram achar que a população não quer o armamento na

cidade e que esta questão é irrelevante para a população. Outros ainda acham que a

população vai querer uma Guarda “forte”, armada quando for vítima de crimes, então, a

tendência será valorizar que a GM tenha arma letal.

Para os guardas que são a favor do armamento letal, o argumento da expectativa da

população e a visibilidade do guarda na rua são os fatores que guiam suas ações para o uso

do armamento. Um guarda que já trabalhou anteriormente armado como segurança

particular refuta a arma de choque e diz: “ela [arma de choque] não é levada a sério pelo

“bandido”, então, o guarda vai ter que usá-la mesmo. Aí, a população vai ver “o bandido”

caindo e se contorcendo e isso vai sujar a imagem do guarda”. Já a arma de fogo, para ele,

“impõe mais respeito” e, por isso, dificilmente precisaria ser usada.

Seu argumento é interessante ao ser comparado ao do comandante que defende a

arma de choque. Enquanto o comandante faz um cálculo levando em conta o grau de

letalidade e de possibilidade de a arma do guarda se tornar mercadoria para o “bandido”, já

este guarda avalia o uso dos diferentes armamentos a partir da capacidade de “impor

respeito” sobre o “bandido” e ao mesmo tempo, prefere a arma que “não suje sua imagem”,

isto é, que o mantenha como o “respeito” tanto da população quanto do “bandido”.

A população demanda ação do guarda e também o julga. Por isso, há a preocupação

dos guardas em adequar sua visibilidade nas ruas com a expectativa da população. Estar

diante do julgamento da população é critério para o cálculo que o guarda faz de suas ações.

Isto foi muito bem expresso por um dos entrevistados ao dizer que o guarda não pode ser

“covarde” mas, por outro lado, não pode ser “truculento”. E em meio a tantas funções

diferentes no dia a dia de trabalho, seja por ordem do Comando ou por solicitação da

população, o guarda “tem que aprender a ter malícia”, diz o entrevistado.

Tal malícia equivale a um código de conduta informal aprendido no trabalho e que

permite ao guarda interpretar as ordens recebidas e buscar adequá-las às situações vividas

19

na rua quando se vê entre a expectativa da população, de um lado, e necessidade de

imposição de respeito ao “bandido”, por outra.

Enquanto o Comando enfatiza a relação da Guarda com a Polícia afirmando a

distinção entre as funções de cada corporação, e se preocupa com a visibilidade da

corporação perante agentes estatais e de direito como, por exemplo, um advogado, juiz, ou

outra corporação - o que se aproxima da noção de “embuste” - por sua vez, os guardas se

guiam pelas expectativas e julgamentos da população, e essa relação regula muitas das

atitudes do cotidiano dos guardas na rua, expressa pela “malícia” do guarda.

7. Considerações finais

O questionamento acerca do armamento da GM em São Carlos descortinou vários

elementos do trabalho dos guardas municipais que demonstram que a segurança cidadã

que combina estratégias de repressão e prevenção tem várias nuances.

Há mudanças ao longo do tempo a medida que há troca de gestão municipal. Desde

2001, quando a lei de criação da GM de São Carlos definiu sua função de caráter

“preventivo e educativo”, percebe-se um processo que aponta para uma transformação da

corporação aproximando-a de uma função repressiva, policial.

Outras nuances são também pela hierarquia que está no comando. Entre os

membros mais altos da hierarquia - comando e inspetor-chefe – vimos que há definições

distintas sobre qual o papel da GM na Segurança Pública. Ficou explícito que há tanto uma

concepção de Guarda Comunitária, expressa pelo ex-comandante, quanto uma concepção

de GM prioritariamente patrimonial, segundo o Comandante mais recente. Ambos vindos de

organizações militares, são contra o armamento letal para a GM, embora o último defenda a

utilização de arma de choque. Já o inspetor-chefe -ex-comandante de uma GM armada -

tem uma expectativa de que haja municipalização da Segurança Pública e que as GMs

sejam similares às Polícias municipais americanas.

Mediante cada uma dessas interpretações sobre qual o papel da GM na segurança

pública do município, há diferentes cálculos em torno da adoção ou não de armamento para

os guardas, e ainda, qual tipo de armamento (letal ou choque) mais apropriado. Nesses

cálculos há elementos da gestão de recursos públicos, das interpretações da lei,

considerações acerca da relação complementar ou conflituosa com a Polícia Militar, com a

população e com o “bandido”.

Mas para aqueles que vivenciam o trabalho nas ruas também há nuances que levam

em conta as condições de trabalho, a visibilidade dos guardas para a população e um

código de conduta informal expresso pela “malícia” do guarda.

20

Portanto, uma decisão política no sentido de privilegiar estratégias de prevenção e

repressão não é simples. O prefeito, por sua vez, tem indicado que o município deve fazer

convênio com a Polícia Militar para que esta preste serviço ao município e também aponta

para a tendências em adotar armamentos para a Guarda Municipal.

Em 2013, um grupo de 25 guardas municipais fizeram treinamento para utilização da

arma de choque e 20 pistolas foram adquiridas pela GMSC. Contudo, não apenas as armas

de choque serão de disponibilizadas ao uso dos guardas municipais, há notícias de janeiro e

fevereiro de 2014 em que o prefeito anuncia investimentos para aprimoramento da GMSC.

Dentre eles estão novos equipamentos, viatura, uniformes, gás pimenta e também convênio

com a Polícia Federal a fim de dar início aos procedimentos para armar a GMSC com arma

de fogo. E em 24 de janeiro de 2014, o comandante entrevistado acima faz a seguinte fala

em jornal local a respeito dos novos investimentos e diretrizes para a GMSC:

Trata-se de um processo lento, a longo prazo, mas necessário. Já estamos conversando com a Polícia Federal, temos o aval do prefeito e vamos procurar finalizar tudo o mais rápido possível, incluindo as devidas avaliações psicológicas, cursos de treinamento de armamento e tiro e cursos de armeiro. Queremos viabilizar cursos de atualização profissional para todo o efetivo da Guarda Municipal, adquirir novas viaturas, atualizar a rede de radiocomunicação e adquirir spray de pimenta para todos os Guardas Municipais. Nossa intenção é formar uma GM modelo, capaz de dar todo o suporte para a Polícia Militar. Queremos ser ainda mais eficientes em 2014.

O caso do município de São Carlos demonstra que há cada vez maior indistinção

entre as estratégias preventivas e repressivas em um processo que vem se dando em vários

níveis: há desde as mudanças no conteúdo do treinamento das novas turmas de guardas

municipais, o enfraquecimento das regras disciplinares, um lobby de grupo de guardas na

Câmara municipal a favor do armamento letal, comandante com carreira na polícia militar,

um inspetor-chefe favorável a uma GM “forte”, e por fim, um prefeito com um entendimento

de Segurança Público como repressão à violência e combate ao crime.

Um estudo de caso não basta para entender processos que ocorrem em âmbitos

mais gerais, estaduais ou nacionais. De toda forma, rende perguntas que tencionam

conceitos e levam a outras questões de pesquisa:

Em que medida a trajetória da política de segurança no âmbito do município, como

verificado em São Carlos, casos de Segurança cidadã tem se transformado em casos de

intensificação da repressão policial? O conceito de segurança cidadã que visa associar

prevenção e repressão, intersetorialidade, participação estará se esgotando a medida que

se apontam tendências para o predomínio de políticas voltadas para a repressão?

21

Perguntas de amplitude teórica não respondidas por um estudo de caso mas de

importância para se pensar em rumos futuros para as propostas de mudanças institucionais

para a segurança pública.

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