Deborah Hornblas Travassos- Judaismo Messianico

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  • Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    Departamento de Lngua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas

    Deborah Hornblas Travassos

    Judasmo Messinico no Brasil: A Beit Sar Shalom: Um Estudo de Caso

    So Paulo 2008

  • Deborah Hornblas Travassos

    O Judasmo Messinico no Brasil: A Beit Sar Shalom:

    Um Estudo de Caso

    Dissertao apresentada ao Departamento de Lngua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas, da Universidade de So Paulo para obteno do Ttulo de Mestre.

    Orientador: Prof. Dr. Marta F. Topel

    So Paulo 2008

  • Ao meu pai por sua imensa sabedoria, minha me por toda sua pacincia e compreenso, minha filha Tamara razo do meu viver e ao Marcos companheiro de todas as horas.

  • Agradecimentos:

    professora Dra. Marta Topel, minha orientadora e estimuladora intelectual.

    Ao rabino Daniel Woods que me recebeu de braos abertos em sua

    comunidade e que sempre se disps a colaborar com meu projeto. comunidade Beit Sar Shalom que to generosamente me recebeu

    durante quase dois anos.

    Ao rabino Alexandre Leone por sua grande erudio que tanto colaborou

    para essa dissertao, Aos rabinos Michel Schelesinger e Daniel Toitou e o Sr.

    Alberto Milkewitz pela rpida resposta aos meus questionamentos.

    Daniela Guertzenstein por sua pronta disponibilidade em me atender. Ftima Previdelli por sua por preciosa colaborao ao revisar essa

    dissertao.

    Aos amigos to queridos: Fabrcio Gerardi, futuro grande intelectual,

    Alessandra Bachini, amiga de tantos anos e a primeira a me incentivar a volta

    universidade, e Paulo Travassos por ser um pai presente.

    A todas as pessoas que participaram, contribuindo para a realizao

    deste trabalho, direta ou indiretamente meus sinceros agradecimentos.

  • Resumo

    O objetivo central desta dissertao foi mostrar como os judeus messinicos da sinagoga Beit Sar Shalom vem a si prprios e como so vistos pelos grupos de fora de suas fronteiras tnicas, no caso, como eles so vistos pelas lideranas judaicas seculares e religiosas da cidade de So Paulo.

    O judasmo messinico uma religio que mistura elementos do cristianismo, pois acredita que o messias enviado por Deus Jesus, e do judasmo, porque mantm parte de seus rituais, festas e tradies. A partir da anlise realizada foi possvel concluir que se trata de um tipo paradigmtico de religio sincrtica, em que os elementos ora do cristianismo, ora do judasmo so cuidadosamente selecionados e aplicados a seu corpo doutrinrio.

    O trabalho foi desenvolvido a partir da etnografia da sinagoga messinica Beit Sar Shalom localizada em So Paulo no bairro de Higienpolis. Foram analisados aspectos ritualsticos dessa religio, assim como aspectos identitrios a exemplo de rituais de iniciao e de passagem comparando-os com rituais judaicos tradicionais.

    Palavras chaves: judasmo, cristianismo, messianismo, sincretismo religioso, identidade religiosa.

  • Abstract

    The central objective of this dissertation was to show how messianic jews from Beit Sar Shalom synagogue see themselves and how they are seen by the groups outside their ethnicity frontiers, in the present case, how they are seen by Jew leadership secular and religious from So Paulo city.

    Messianic Judaism is a religion that mixes elements of Christianity, because they believe that the messiah sent by God is Jesus and Judaism because maintaining part of the rituals, festivities and traditions.

    The results of this analyze should be seen as indicators that the religion was concluded as a kind of paradigmatic syncretic one, in which elements of Christianity and Judaism are carefully selected and applied to the doctrinaire body.

    The study was developed having as starting point the ethnography of the Beit Sar Shalom, messianic synagogue, located in So Paulo in the borough Higienpolis. Ritualistic aspects of this religion were analyzed as were identity aspects such as initiation and passage rituals, comparing them with traditional jewish rites.

    Keywords: Judaism, Christianism, messianism, religious syncretism, religious identity.

  • Sumrio

    Introduo................................................................................................................1

    Captulo I O surgimento do judasmo messinico ................................................7 1.1. Os cristos primitivos judeus do tempo testamentrio 1.1.1 Os judeus messinicos e o cristianismo primitivo.........................................16 1.2. A identidade judaica 1.2.1. A questo judaica ao longo da histria................................................17 1.2.2. A questo da identidade judaica e a Beit Sar Shalom.........................21 1.3. Uma breve histria das religies no Brasil......................................................26

    1.3.1. Os judeus no Brasil moderno.......................................................................30 1.3.2. O judasmo messinico no Brasil: a histria da Beit Sar Shalom...................................................................................................................33

    1.4. Judasmo messinico e o sincretismo religioso

    1.4.1. O sincretismo religioso.................................................................................37

    1.4.2. O judasmo messinico e o sincretismo religioso............................... ........43 Captulo II O messianismo no judasmo.............................................................49 Captulo III Os rituais

    3.1. A sinagoga messinica...................................................................................54

    3.2. shabat e kidush...............................................................................................59

    3.3. As festas

    3.3.1. A Pscoa judaica e a Pscoa crist.....................................................62 3.3.2. A Pscoa para os judeus messinicos....................................... ........64 3.3.3. Rosh h-Shan....................................................................................66

    3.3.4. Yom Kipur............................................................................................67

  • 3.3.5. Rosh h-Shan e Yom Kipur para os judeus messinicos..................68 3.4. Os rituais de iniciao e passagem

    3.4.1. A circunciso........................................................................................70

    3.4.2. A circunciso para os judeus messinicos..........................................71 3.4.3. Bar Mitzv............................................................................................72

    3.4.4. Bar Mitzv para os judeus messinicos...............................................73 3.4.5. A converso para o judasmo..................................................... ........75 3.4.6. A converso para o judasmo messinico.......................................... 76 Captulo IV Os judeus messinicos falam de si 4.1. Teologia

    4.1.1. Quem Jesus Cristo para os judeus messinicos?....................................80 4.2. O papel da Tor............................................................................................84

    4.3. O papel do Talmud..........................................................................................87

    4.4. O Estado de Israel..........................................................................................90

    4.5. A Sho como fator identitrio..........................................................................94

    Captulo V Os judeus messinicos falam sobre os outros 5.1. Os judeus messinicos falam sobre o judasmo.............................................96 5.2. Os judeus messinicos falam sobre o cristianismo......................................100 Captulo VI Os judeus falam sobre os judeus messinicos..............................105 Concluso............................................................................................................117

    Bibliografia

    Questionrio

    Fotos

  • 1

    Introduo

    O trabalho Judasmo Messinico no Brasil: A Beit Sar Shalom: Um Estudo de

    Caso uma pesquisa baseada em uma etnografia. Existem atualmente algumas

    sinagogas messinicas na cidade de So Paulo e vrias espalhadas pelo Brasil e

    pelo mundo; a Beit Sar Shalom foi escolhida para ser estudada por ter sido a

    primeira sinagoga messinica brasileira.

    O judasmo messinico um movimento religioso surgido no final do sculo XIX na Inglaterra, essa religio prega essencialmente que Jesus o messias

    enviado por Deus, apesar dessa crena, no se consideram cristos e se declaram

    judeus. Os judeus messinicos afirmam que a sua religio a judaica, a mesma dos apstolos e do prprio Jesus, e por isso mantm a tradio judaica nos rituais religiosos, na celebrao das festas judaicas, nos modos de vestir como, por exemplo, o uso do solidu, nos servios religiosos realizados em sinagogas e no uso

    da lngua hebraica. Esses aspectos sero todos analisados no decorrer do trabalho.

    importante frizar que os judeus messinicos no vem nenhuma contradio na sua religio, consideram perfeitamente possvel (e desejvel) serem judeus e ainda assim acreditarem que o messias, na figura de Jesus, j veio e voltar, tese essa que vai contra a crena do judasmo rabnico que ainda espera pelo messias que ser enviado por Deus.

    Durante a pesquisa surgiram diversos questionamentos e entre as

    problematizaes mais relevantes encontram-se a questo da identidade judaica e como ela construda na Sinagoga Beit Sar Shalom (Casa do Prncipe da Paz),

  • 2

    comunidade judaico-messinica localizada Rua Albuquerque Lins, n. 1282 no bairro de Higienpolis, So Paulo.

    O trabalho sobre judasmo messinico foi um exerccio etnogrfico que incluiu diferentes tipos de atividades. Durante um ano e meio, de julho de 2005 a janeiro de 2007, a Beit Sar Shalom foi visitada todas as sextas-feiras, inclusive nos dias dos

    feriados religiosos judaicos como Pessach (Pscoa), Rosh h-Shan (ano novo) e Yom Kippur (Dia do Perdo) e seus rituais observados detalhadamente. Um dirio foi mantido com os registros das observaes. A inteno ao realizar essa pesquisa

    de campo foi a de levantar a maior quantidade de dados que ajudassem a compreender diferentes aspectos da identidade religiosa dos judeus messinicos.

    No perodo da observao participante dos rituais dessa sinagoga foi realizada

    uma entrevista com Daniel Woods, lder religioso da comunidade, que foi gravada e

    transcrita. A entrevista teve como objetivos traar a histria da fundao da Beit Sar Shalom, a trajetria pessoal de Daniel Woods e o que o religioso pensa de questes como o Holocausto, o Estado de Israel, alm, obviamente, de questes ligadas ao

    judasmo messinico, como os rituais de iniciao, as festas e a sua doutrina religiosa. A tcnica utilizada para fazer a entrevista foi a de deixar o entrevistado

    livre para expressar todas as suas lembranas com um mnimo de interrupes por

    parte da entrevistadora, pois se tratava da histria oral baseada nas suas memrias

    e a interferncia da entrevistadora poderia poluir essas recordaes. Existem

    segundo Lino Rampazzo1 dois tipos de entrevista: aquela padronizada ou

    estruturada, onde h um roteiro de entrevista pr-estabelecido e h aquela

    entrevista despadronizada ou no-estrurada, nessa o entrevistador livre para

    adaptar suas perguntas a determinadas situaes e em geral as perguntas so

    1 RAMPAZZO, Lino. Metodologia cientfica. So Paulo: Loyola, 2002. pp. 108-110

  • 3

    abertas. A entrevista com o rabino Woods seguiu a segunda recomendao de

    Rampazzo.

    Daniel Woods foi extremamente receptivo nos encontros necessrios para

    gravar a entrevista (trs encontros realizados nos dias 30/08/2005, 23/09/2005 e 18/11/2005), feitos na sede da Beit Sar Shalom e declarou diversas vezes que minha pesquisa e a entrevista ajudariam a esclarecer pontos considerados obscuros da sua religio. Segundo ele, um trabalho acadmico ajudaria a mostrar s pessoas, principalmente aos judeus no messinicos, os fundamentos do judasmo messinico e a sua seriedade enquanto religio.

    Numa segunda fase da entrevista, foram feitas perguntas especficas quanto

    aos rituais de iniciao, rituais de passagem, festas, posicionamentos da Beit Sar

    Shalom em relao Sho2 e ao Estado de Israel.

    Aps um ano e meio de observao participante, foi distribudo aos membros

    da comunidade messinica um questionrio (anexado ao final do trabalho) com perguntas fechadas do tipo: nome, endereo, profisso, data de nascimento,

    quantas vezes por semana freqenta a Beit Sar Shalom, etc. e perguntas abertas do

    tipo: qual a religio praticada atualmente? Como conheceu a Beit Sar Shalom? O

    que significa ser judeu? Dessas perguntas algumas eram fceis de responder como: qual a sua religio? e no encontraram nenhum tipo de resistncia daqueles que

    se dispuseram a responder o questionrio. J as questes mais complexas do tipo

    o que significa ser judeu para o Sr.(a)? encontraram uma resistncia bem maior, e dos questionrios que foram respondidos, vrios entrevistados deixaram em branco

    (no responderam) essas questes.

    2 Sho- hebraico-Holocausto.

  • 4

    Muitos dos freqentadores da Beit Sar Shalom se recusaram ao responder o

    questionrio, s vezes alegando falta de tempo, ou mesmo afirmando que no

    responderiam a questionrios, pois poderiam ter suas palavras distorcidas e

    alteradas (segundo os membros da comunidade isto ocorreu em outras ocasies). Alguns prometeram responder ao questionrio na semana seguinte, mas nunca o

    devolviam. Foram inclusive feitos vrios apelos por Daniel Woods para que as

    pessoas respondessem ao questionrio, mas ainda assim houve grande resistncia.

    A recomendao feita por Lino Rampazzo3 de que o entrevistador esteja presente quando o questionrio respondido nem sempre foi possvel nesse caso,

    j que como fora assinalado houve uma recusa muito grande em responder s perguntas e essas eram fundamentais para a pesquisa. Apenas cinco questionrios

    foram respondidos na presena da pesquisadora, oito foram enviados via e-mail e os

    outros trs foram entrevistados por telefone.

    Dos cerca de cinqenta freqentadores assduos da Beit Sar Shalom, apenas

    dezesseis responderam ao questionrio e ainda assim depois de muita insistncia

    (apenas cinco responderam rapidamente). Considero ser esse um dado da pesquisa que merece discusso e que permite elencar algumas hipteses como, por exemplo,

    existe certo incomodo entre os membros da Beit Sar Shalom em falar abertamente

    de sua religio? Existe algum temor de no serem reconhecidos como verdadeiros

    judeus? As respostas a essas questes sero discutidas nesse trabalho.

    Um aspecto importante a ser ressaltado que nos anos de 2005 a 2007, o

    nmero de pessoas que freqentavam a Beit Sar Shalom diminuiu sensivelmente,

    dos cerca de cinqenta fiis que eram vistos no incio desse trabalho restaram

    menos de trinta membros ao final desse estudo de caso, o que dificultou ainda mais

    3 RAMPAZZO, Lino. Metodologia cientfica. So Paulo: Loyola, 2002. pp. 110-114

  • 5

    a pesquisa. No foi possvel apurar quais os motivos que levaram diminuio do

    nmero de pessoas.

    O objetivo dos questionrios foi o de compreender de forma ampla quem so as pessoas que freqentam a Beit Sar Shalom e como elas se auto-identificam. As

    dificuldades encontradas durante o processo mostram que os fiis messinicos

    dessa sinagoga tm problemas identitrios, isto fica provado na resistncia que tm

    de ser identificados, dizem temer retaliaes da comunidade judaica (alguns disseram isso textualmente) e apresentam um comportamento arredio em relao aos que esto do lado de fora das suas fronteiras identitrias, citando Barth4. Essa

    to complexa questo ser discutida no captulo I no item a identidade judaica.

    O captulo I do trabalho baseou-se em levantamento bibliogrfico sobre

    questes como as origens dos cristos primitivos, a identidade judaica, uma breve anlise das religies no Brasil contemporneo e o sincretismo religioso.

    O captulo II inclui uma breve pesquisa sobre o messianismo judaico: qual a viso do judasmo rabnico sobre esse assunto e como a viso messinica se modificou ao longo do tempo, desde o perodo bblico at aps a destruio do

    Templo no ano 70 da era comum.

    O captulo III dedica-se descrio da sinagoga Beit Sar Shalom, seus rituais

    mais importantes como a celebrao do shabat e a beno do vinho. Tambm nesse

    captulo foram descritas as principais festas judaicas como Pessach, Rosh h Shanah e Yom Kipur e como essas efemrides so celebradas entre os judeus messinicos. Os rituais de iniciao, como a converso e a circunciso, alm do

    ritual de passagem a maturidade religiosa, o Bar Mitzv, foram analisados tanto do

    ponto de vista judaico rabnico como da perspectiva do judasmo messinico. Esse

    4 POUTIGNAT, Philippe e FERNAT, S. Jocelyne.Teorias da etnicidade. So Paulo. Unesp, 1997. pp.185-228.

  • 6

    exerccio teve como objetivo desenvolver um contraponto que destacasse as singularidades da celebrao das festas judaicas pelos judeus messinicos da Beit Sar Shalom.

    O captulo IV foi dedicado analise da viso teolgica do judasmo messinico: Quem Jesus Cristo para os judeus messinicos? pergunta fundamental para entendermos a sua viso de mundo. Outras questes discutidas

    foram: Qual a importncia que os judeus messinicos atribuem Tor (Lei mxima para os judeus rabnicos) e ao Talmud. Diferentes assuntos de relevante importncia identitria para o judasmo tambm foram abordados nesse captulo: a exemplo de como os judeus messinicos se relacionam com o Estado de Israel e o Holocausto? Essas perguntas forma respondidas pelos freqentadores da sinagoga

    Beit Sar Shalom e posteriormente analisadas.

    No captulo V, o esforo foi compreender como os judeus messinicos, atravs das entrevistas concedidas, dos questionrios respondidos, atravs de suas

    publicaes (livros e folhetos distribudos na sinagoga messinica) e da internet vem o judasmo rabnico e o cristianismo. importante ressaltar que o cristianismo, nesse captulo do trabalho, foi analisado como um todo, apenas com uma leve

    separao entre o catolicismo e as denominaes crists de vertente protestante.

    O VI e ltimo captulo analisa a maneira como o judasmo v o judasmo messinico com esse objetivo foram feitas entrevistas com lideranas judaicas da cidade de So Paulo.

    Nas concluses finais tentei sintetizar e destacar as caractersticas religiosas

    que singularizam o grupo estudado que constitui uma categoria que oscila entre o

    judasmo rabnico e o cristianismo.

  • 7

    Captulo I - O surgimento do judasmo messinico

    1.1. Os cristos primitivos judeus do tempo testamentrio

    Os Judeus messinicos se consideram herdeiros diretos dos primeiros

    seguidores de Jesus, que apesar da crena no messias mantinham as tradies

    judaicas. A fim de esclarecer o contexto do surgimento desses primeiros cristos segue um breve relato da composio poltico e social do perodo testamentrio:

    Em 37 a.C. Herodes, O Grande5 se tornou rei da Judia que estava sob

    domnio romano, seu reino foi marcado por um alinhamento poltico e cultural com

    Roma e diversos projetos de construo foram realizados nesse perodo. Depois da sua morte, o reino foi dividido, por Augusto, imperador romano, entre os filhos de

    Herodes. Arquelau6 tornou-se etnarca7da Judia, Samaria e da Idumia, enquanto

    Herodes Antipas 8tornou-se tetrarca 9da Galilia e parte da Transjordnia. O reino de Herodes foi basicamente uma criao da poltica romana e esses o apoiavam como

    soberano.

    A regio uma estreita rea situada entre a frica e a sia como uma espcie de corredor entre essas duas reas, possua ento provavelmente uma superfcie de

    34.000 km e cerca de 650 mil habitantes, era dividida em reas menores como:

    Judia, Samaria e Galilia, a oeste; Ituria, ao norte; Gualantade, Batania,

    5 REICKE, Bo. Histria do tempo novo testamento. So Paulo: Paulus, 1996.

    6 Arquelau deposto por Augusto no ano 6 a.C.A Judia, Samaria e Idumia passam a ser governadas

    diretamente por procuradores romanos. A capital da provncia passa a ser Cezara. REICKE, Bo. Histria do tempo do novo testamento. So Paulo: Paulus, 1996. 7 Etnarca significa aquele que governa uma etnia, exerce funes administrativas e judicirias.

    8 Construiu no ano de 17 a.C. a capital de sua tetarquia s margens do lago Genezar e chama-a de Tiberades em

    homenagem ao imperador Tibrio. 9 Do grego tetrarca, tssara = quatro, e rcho= senhor, portanto tetrarca senhor de um quarto (de territrio).

  • 8

    Tracontede, Aurantede, Declope e Peria, a leste e Idumia ao sul10. A regio

    depois da morte de Herodes, O Grande, manteve seu sistema de administrao,

    essa orientao s teve fim com a guerra de 66 d.C. Do ponto de vista poltico esse

    perodo ficou conhecido como Pax Romana.

    O poder efetivo estava nas mos dos romanos, mas em geral estes

    respeitavam a autonomia interna das suas colnias. O sumo sacerdote tinha o poder

    de gerir questes internas, atravs da Lei Judaica; este, porm, era nomeado e

    destitudo pelo imperador romano. O centro do poder dessa regio era a cidade de

    Jerusalm, local em que ficava o Templo, de onde governava o sumo sacerdote

    assessorado por um Sindrio de 71 membros, composto de sacerdotes, ancios e

    escribas.

    A sociedade do imprio era dividida em vrios grupos como Saduceus,

    formados por grandes proprietrios de terra, comerciantes e pelos membros da elite

    sacerdotal, que tinham o controle do Sindrio. Os Escribas, ou doutores da Lei. Os

    Fariseus, que de maneira geral eram nacionalistas e hostis ao imprio romano, esse

    grupo era formado por leigos, mas extremamente rigorosos no cumprimento da Lei e

    os Zelotas, extremamente nacionalistas, contrrios a Roma11. Havia ainda outros

    grupos formados pequenos e mdios proprietrios rurais, alm de comerciantes, os

    trabalhadores em geral e os miserveis, mendigos e escravos.

    Segundo Bo Reicke12, devido sua posio geogrfica, a regio da Judia e

    imediaes eram de passagem por onde circulavam comerciantes, mensageiros,

    soldados, etc., era um local que possua importantes centros urbanos, como

    Cezaria e Jerusalm. Existia nessa regio uma pequena manufatura de cermica,

    10 Encyclopaedia Judaica Jerusalm. Vol. 8 pp. 635-638.

    11 A Bblia Sagrada - Edio Pastoral. So Paulo: Paulus, 1991.

    12 REICKE, Bo. Histria do tempo do novo testamento. So Paulo: Paulus, 1996.

  • 9

    construo civil e tecelagem. Havia tambm um comrcio interno e externo bastante

    ativo; a principal atividade econmica, no entanto, era a agricultura.

    Contudo, as diferenas sociais no eram s pautadas na riqueza individual,

    mas tambm em outros critrios como: sexo, funo religiosa e pureza tnica.

    Ainda segundo Bo Reicke a mais importante instituio religiosa era o Templo

    que, aps ser destrudo por duas vezes, estava sendo reconstrudo nessa poca.

    Nesse local eram realizados os sacrifcios, l o Sindrio se reunia, era onde as

    riquezas e impostos e objetos de culto eram guardados, era considerado o centro de toda vida religiosa, econmica e poltica judaica.

    As sinagogas tambm eram centros religiosos e local de encontra e de

    discusses no s sobre a religio, mas tambm sobre aspectos da vida da

    comunidade. As festas religiosas eram muito importantes possuindo grande valor no

    cotidiano judaico, por serem tambm momentos de perpetuao da memria e da tradio.

    Assim, o judasmo no era uma religio monoltica, havia diferentes subgrupos, principalmente Fariseus, Saduceus, Zelotas e Essnios13, citados por

    Flvio Josefo em sua obra.

    Provavelmente, Jesus viveu no primeiro sculo e os apstolos continuaram

    suas pregaes levando suas idias populao de outras localidades como Grcia

    e Sria. Na regio da Judia e imediaes a sinagoga era instituio essencial para

    13 Essnios grupo minoritrio que estava organizado como uma comunidade monstica em Qram, rea

    localizada perto do Mar Morto, desde o sculo II a.C.at o sculo I d.C., quando em 68 foram eliminados pelos romanos durante a Guerra Judaica. Rejeitavam a adorao de templo, consideravam os sacerdotes de Jerusalm ilegtimos. Viviam em regime comunitrio com regras extremamente rgidas e possuam uma teologia de carter escatolgico. Entre os ritos estava a prtica do batismo por imerso. Alguns autores consideram que tanto Joo Batista como Jesus pertenciam a esse grupo. A Bblia Sagrada - Edio Pastoral. So Paulo: Paulus, 1991.

  • 10

    vida religiosa. Esse tipo de comunidade fora criada na dispora, onde a necessidade

    de ter um local para reunies sociais e religiosas era muito grande14.

    Segundo Bo Reicke os primeiros seguidores de Jesus, assim como todos os

    autores do Novo Testamento eram provavelmente judeus. A bblia crist est recheada de referncias s Escrituras Hebraicas, festas, como por exemplo, a

    Pscoa, alm de instituies e tradies judaicas.

    Assim podemos citar Paulo, um dos mais importantes seguidores de Jesus e

    autor das Cartas contidas no Novo Testamento, afirma que Jesus nasceu

    submetido a uma lei (Gal.4:4) e que ele se fez ministro dos circuncisos para honrar a fidelidade de Deus, no cumprimento das promessas feitas aos pais (Rom 15:8).

    Fora os Evangelhos h muito pouca referncia histrica sobre Jesus. Durante

    cerca de 1800 anos, o cristianismo teve por certo que o relato dos Evangelhos e de

    Ato dos Apstolos era factual. Apenas no perodo do Iluminismo do sculo XVIII, na

    Europa, se desenvolveu uma nova abordagem bblica. At hoje uma das nicas referencias histricas da vida de Jesus aquela citada na obra de Flvio Josefo15

    em Testeonium Flavianum, quando o autor descreve a condenao e a morte de

    Jesus. Uma referncia explicita de Josefo encontra-se em Antiguidades Judaicas, h

    ali dois textos mencionando Jesus de Nazar, no qual se refere a Tiago como: o

    irmo de Jesus tambm chamado o Cristo 16.

    14 REICKE, Bo. Histria do tempo do novo testamento. So Paulo: Paulus, 1996.

    15 Flvio Josefo, nascido na Palestina de um cl sacerdotal no ano de 37 d.C. Josefo Ben Matias morreu depois

    de 94 d.C. provavelmente em Roma. Embora fosse lder das foras judaicas na Galilia durante a revolta contra Roma (66-70), rendeu-se a Vespasiano, que o ps em liberdade quando ele predisse que o general romano se tornaria imperador. A partir de 69 d.C. tornou-se hspede da casa flaviana, famlia imperial de Vespasiano, de modo que Tito o levou para Roma e instalou-o no palcio imperial. Ali nos anos 70, ele escreveu A Guerra Judaica (originalmente em aramaico, mas traduzida para o grego) como propaganda a fim de mostrar a futilidade da revolta contra os romanos. Por volta de 94 d.C. concluiu As Antiguidades Judaicas em vinte volumes, uma histria dos judeus dos tempos dos patriarcas era romana. Encyclopaedia Judaica Jerusalm. Vol. 10, pp. 253-264. 16

    http://www.simpozio.ufsa.br Enciclopdia Simpozio Captulo 3. O cristianismo da fase do mesmo Jesus. Acesso em 05/03/2006.

  • 11

    Os primeiros historiadores romanos a fazerem referncia aos cristos so

    segundo Bo Reicke: Plnio o Moo, Cornlio Tcito, Suetnio Tranqilo. Essas

    referncias ocorrem mais de cinqenta anos aps a morte de Jesus. Nos arquivos

    oficiais de Roma, que incluem as Atas do Senado (Acta Senatus) e as Correspondncias do Imperador (Comentarii Principis) nada se encontra a respeito de Jesus.

    Os judeus da regio da Judia e imediaes, desde Alexandre Magno, viviam num mundo helenizado em que grande parte da populao falava grego, os livros

    bblicos que haviam sido compostos em hebraico e aramaico tinham sido traduzidos

    para o grego.

    A Carta aos Hebreus, livro que compe as Escrituras Crists pode ter sido

    endereada aos judeus de Jerusalm, Um questionamento pertinente seria porque essa Epstola foi composta em grego e no em hebraico? Uma resposta a essa

    pergunta seria que provavelmente Carta foi endereada comunidade crist em

    Roma17. Um argumento importante para a destinao desse documento aos

    romanos que Hebreus ficou conhecida antes em Roma do que em qualquer outro

    lugar. Em meados do sculo II, Justino, escrevendo de Roma, demonstrava

    conhecer a Carta18.

    A maioria dos estudiosos do livro bblico Hebreus diz haver trs estgios nessa

    Epstola, dois desses estgios esto no passado. Essa argumentao pressupe

    que a comunidade que iria ler compreendia o raciocnio das Escrituras Judaicas

    (alguns consideram Hebreus como um Midrash19) e teriam conhecimento da liturgia

    17 FLUSSER, David. O judasmo e as origens do cristianismo. Rio de Janeiro: Imago, 2002. Vol. II

    18 Ibidem.

    19 Midrash hebraico - significa busca, procura. Mtodo homilitico de interpretao da bblia no qual o texto

    explicado diferentemente do seu significado literal. Midrash tambm o nome dado a vrias colees de comentrios bblicos, compilados da Tor Oral.

  • 12

    judaica. Na primeira parte da carta (Hb 2,3-4; 6,4-5) os hebreus teriam sido convertidos e evangelizados; na segunda parte (Hb 13,3 e 5,11; 6,12) comea a perseguio aos cristos e na terceira (Hb 13,3 e 5,11; 6,12) essa perseguio cessa, mas continua a existir uma ameaa iminente.

    Aparentemente, segundo Flusser, havia certo medo de que os destinatrios de

    Hebreus se sentissem atrados a voltar religio anterior, ou seja, retornassem ao judasmo. A questo que surge aqui : Por que cristos poderiam voltar quilo que j haviam renunciado, ainda mais aps a destruio do Templo?

    Apesar dessa influncia greco-romana, os judeus se distanciavam de certos aspectos da vida civil por causa das restries que a religio judaica impunha, como por exemplo, compartilhar a mesa com pagos, que no seguiam as leis dietticas

    judaicas.

    A regio da Judia, Samaria, Galilia, Iturpia, Gualantade, Batania,

    Tracontede, Aurante, declope, Peria e Idumia do Sul desse perodo, eram

    cortadas por estradas, construdas por Herodes, O Grande. O sistema romano de

    estradas facilitava as viagens de comerciantes, mas tambm de pregadores. A

    procura das cidades se fundamenta numa maior densidade populacional, atingindo

    assim uma quantidade muito maior de ouvintes do que na zona rural. Nas cidades

    conviviam pessoas de diferentes origens, essa mistura provavelmente deu a origem

    necessidade de pertencer a um grupo tnico cultural, disso resulta a grande

    procura pelas sinagogas que reuniam as pessoas no s para os rituais religiosos,

    mas tambm para discutir os diferentes assuntos que diziam respeito aos interesses

    da comunidade.

  • 13

    Esse novo contexto nos conduz a diversos questionamentos entre eles aquele

    que procura compreender quem eram os seguidores de Jesus nesse primeiro

    perodo, Segundo Luigi Schiavo:

    A pesquisa exegtica e histrica sobre as origens do cristianismo defendia uma relao evolutiva e descontinua entre judasmo e cristianismo. Evolutiva por considerar que o cristianismo primitivo representava um salto qualitativo em relao ao judasmo. Descontinua porque o cristianismo se afirmaria como superao de crenas e prticas religiosas judaicas. As duas tendncias religiosas teriam acabado na separao entre sinagoga e igreja, oficializada j na dcada de 90d. C. Para os estudiosos a continuidade consistiria no fato de Jesus estar profundamente inserido nos movimentos de reforma tpicos de seu tempo; enquanto descontinuidade seria, posteriormente, provocada, sobretudo, por fatores externos, como a desclassificao dos cristos da condio de religio licita por parte da autoridade romana e a institucionalizao do cristianismo no sculo II, que provocou uma organizao hierrquica e doutrinal20.

    Desde o seu surgimento o cristianismo se via como um herdeiro do judasmo, mas segundo Flusser 21 difcil crer que os judeus aceitassem com naturalidade o cristianismo; os novos elementos da mensagem crist e sua estrutura diferem de

    forma estrutural do judasmo, muito difcil pensar que a religio judaica fundada num absoluto monotesmo iria compartilhar a crena da divindade de Jesus. Dessa

    forma a nova crena que surge tornou-se a nova religio dos gentios. Para o autor,

    j a partir do segundo sculo, a maioria dos cristos julgava que o modo de vida judaico era proibido.

    20 SCHIAVO, Luigi. Anjos e messias. So Paulo: Paulinas, 2006. pp. 19-20

    21 FLUSSER, David. O judasmo e as origens do cristianismo. Rio de Janeiro: Imago, 1988. pp.165-169.

  • 14

    Ao analisarmos a histria das religies percebemos que a maioria das

    comunidades religiosas surgiu de uma comunidade prvia, que supera a

    antecessora. Esse movimento por diversas vezes acaba resultando em cisma.

    David Flusser afirma que o cristianismo no se originou em crculos

    essnios22. Entretanto, segundo o autor Christian Ginsburg (historiador orientalista), citado por Flusser em sua obra Judasmo e as origens do cristianismo, os essnios

    foram os precursores do cristianismo, pois, a maior parte dos ensinamentos de

    Jesus, o idealismo tico e o ideal de pureza espiritual faziam parte das prticas

    dessa seita. Existe, ento, segundo Ginsburg, a possibilidade de os primeiros

    cristos terem sido membros advindos dessa seita, diferentemente do que para

    Flusser que defende a teoria de que durante o perodo entre a morte de Jesus e a

    converso de Paulo, alguns judeus interpretaram a vida, morte e ressurreio de Jesus luz do judasmo. No momento em que nasce o cristianismo, esses judeus deveriam representar uma minoria, pessoas que deveriam compartilhar uma forma

    especfica de judasmo, que no prevalecia sobre a maioria dos judeus, todavia essa nova f encontrou entre os gentios um terreno muito mais frtil. Para esses gentios

    tornarem-se cristo significava superar a f judaica. Ao se tornarem cristos, eles no se tornavam s iguais aos que professavam o judasmo, mas sentiam-se superiores a eles.

    A partir dos anos 70 d.C. quando o Templo foi destrudo durante o episdio

    conhecido como a Guerra Judaica, a poltica tolerante de Roma em relao aos

    judeus foi revista. Os reflexos desses acontecimentos marcaram as relaes entre judeus e cristos com seu rompimento, segundo Flusser:

    22 Esse grupo ou seita judaica asctica que teve existncia desde mais ou menos o ano de 150 a.C. at o ano de

    70 d.C. O termo Essnio provem do srio asaya e do aramaico essaya ou essni, todos com o significado de mdico. Encyclopaedia Judaica Jerusalem. Vol. 3, p. 180.

  • 15

    Desde o comeo, o cristianismo se viu mais ou menos como o herdeiro do judasmo e como sua verdadeira expresso, ao mesmo tempo, que sabia que tinha passado a existir pela graa especial de Cristo. Como a grande maioria dos judeus no concordava com seus irmos cristos nessa reivindicao, o cristianismo tornou-se uma religio de gentios para quem, a partir do sculo II, era proibido observar os mandamentos da lei de Moises. J ento a maioria dos cristos julgava que o modo de vida judaico era proibido at mesmo para os judeus que haviam adotado o cristianismo, atitude que mais tarde se tornou posio oficial da Igreja23 .

    Os reflexos desse rompimento se encontram nos textos neotestamentrios

    como, por exemplo, na j citada Carta aos Hebreus24.

    O contexto scio-poltico da regio onde viveu Jesus favorecia o surgimento de

    movimentos messinicos, fundamentalmente em funo da opresso da dominao

    romana e das divises internas no prprio judasmo. Jesus teria nascido nesse momento. Quem seriam seus seguidores uma pergunta difcil de responder j que os relatos histricos da poca so escassos e pouco confiveis.

    Como fora assinalado, a sociedade judaica do tempo testamentrio no era monoltica, havia profundas divises internas que podem ter sucitado a criao de

    variados movimentos, da qual o messianismo fazia parte. Numa regio de conflitos

    como era a Judia e suas imediaes desse perodo, a salvao por um humano

    ungido por Deus que poderia ter poderes de restaurar a ordem social provavelmente

    foi aceita por parte da populao. O maior exemplo dessa manifestao foi o

    surgimento do grupo formado pelos essnios que procuravam a partir de um

    comportamento social asctico resolver os conflitos da sua sociedade.

    23 FLUSSER, David. O judasmo e as origens do cristianismo. Rio de Janeiro: Imago, 1988. Vol. III, pp. 19-

    20. 24

    Site: http://www.ifcs.ufrj.br- artigo escrito por professora Dr. Andria Cristina Lopes Frazo da Silva. Acesso em 06/03/2006.

  • 16

    Como vimos existem duas teorias bsicas em relao a quem foram os

    primeiros cristos. A primeira afirma serem os cristos judeus que passaram a aceitar Jesus como o legtimo Messias e assim teriam rompido com o judasmo de origem, enquanto a segunda teoria afirma que a grande massa dos seguidores de

    Jesus no era formada fundamentalmente por judeus, mas por gentios que viviam na regio e por onde os apstolos fizeram sua peregrinao proselitista.

    1.1.1. Os judeus messinicos e o cristianismo primitivo

    Os Judeus Messinicos que freqentam a sinagoga Beit Sar Shalom baseiam

    a sua legitimidade na primeira teoria, ou seja: se Jesus e os apstolos no fundaram nenhuma nova religio, nasceram judeus e assim permaneceram e no h, segundo eles, nenhuma contradio em se auto-definirem como judeus. Para os seguidores do judasmo messinico, a Bblia Crist uma continuidade cronolgica da Bblia Hebraica, ou seja, ela diacrnica, no existindo ruptura entre os dois textos.

    Assim sendo, os freqentadores da Beit Sar Shalom alegam que praticam a

    mesma religio dos judeus do tempo testamentrio que seguiram Jesus e que acreditavam ser ele o messias enviado por Deus e essa religio o judasmo.

  • 17

    1.2. A identidade judaica

    1.2.1. A questo judaica ao longo da histria

    Os freqentadores da Beit Sar Shalom se identificam como judeus, mesmo que muitos no tenham nascido judeus e no tenham passado por nenhum processo de converso formal. Para Daniel Woods, lder dessa comunidade,

    suficiente se sentirem judeus e viverem como judeus. O rabino afirma que para ser judeu fundamental viver como judeu e isso implica na observncia de rituais, festas, alm obviamente do Brit mil25 no caso do sexo masculino. Isto nos remete a

    uma breve reflexo sobre a identidade judaica.

    A problemtica da identidade judaica apresenta numerosas questes que foram abordadas por diferentes pesquisadores pertencentes a diversas disciplinas,

    como Srgio DellaPergolla e Bernardo Sorj, como muitos outros estudiosos, ambos concluem que ser judeu vai muito alm das fronteiras religiosas.

    Discutir a identidade judaica fora de Israel contemplar o ambiente de dispora em que vive a comunidade judaica, dentro desse contexto, as diversas correntes do judasmo adquirem em cada situao novos sentidos. Esse ambiente produz novas relaes identitrias, e dentro da atual situao mundial em que se

    tornam comuns as quebras de barreiras nacionais e da globalizao, a identidade

    judaica se apresenta cada vez mais como uma construo pessoal. 26

    25 Brit mil - hebraico circunciso dos meninos judeus ao stimo dia de vida.

    26 SORJ. Bernardo. Dispora, judasmo e teoria cultural. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003

  • 18

    Segundo Bernardo Sorj: toda identidade incompleta sem a imagem de alteridade. Os mitos de origem nacional na tradio europia a constituram na

    contraposio e por vezes na negao, do outro 27.

    Responder o que ser judeu obviamente requer um esforo maior do que o pretendido por esse trabalho, uma interrogao que no tem uma resposta fcil e

    nica.

    Antes da Revoluo Francesa, os judeus eram identificados e se identificavam como um povo que tinha uma religio comum e que vivia sob as leis de um

    determinado pas que impunha a fora de seu direito a todos que viviam em seu

    territrio. Com a emancipao que o Iluminismo do sculo XIX trouxe Europa, o

    conceito de nao e nacionalidade passa a fazer pauta de preocupao dos novos

    cidados que surgem nesse momento, entre eles os judeus. E estes comearam a se definir mais como etnia e nao e menos como grupo religioso. Quando falamos

    do conceito de nao no devemos pens-lo como uma fatalidade histrica, mas

    uma busca consciente de pertencer a uma nao.

    O sionismo que surge durante o Sculo XIX nasce como uma manifestao de

    um nascente nacionalismo judaico e no como uma reao ao anti-semitismo. Os judeus se sentem fora do nacionalismo europeu e constroem a sua prpria noo de nacionalismo e identidade tnica e cultural, no mais baseados na religio comum,

    mas no conceito moderno de nao28.

    Como fora mencionado, antes do Iluminismo o judeu se identificava e era identificado como pertencente a uma religio, o que tambm determinava seu

    27 SORJ, Bernardo. Sociabilidade brasileira e identidade judaica, in SORJ, B. Identidades judaicas no Brasil

    contemporneo. Rio de Janeiro: Imago, 1997. p.149 28

    AVINERI, Shlomo. La idea sionista. Jerusalem: La Semana Editora, 1993.

  • 19

    estatuto legal. A sociedade crist tinha sua organizao poltica como expresso dos

    dogmas cristos e, nesse contexto, o judeu era excludo, porm tolerado.

    O Iluminismo e a Revoluo Francesa romperam com esse equilbrio, pois a

    partir desse novo contexto histrico, os judeus passaram a ser iguais aos outros cidados, surgiram novos dilemas que a estrutura tradicional da Kehil29 no era

    capaz de solucionar.

    Segundo Avineri, a partir da segunda metade do Sculo XIX aparece um

    movimento de retorno dos judeus a Israel, esse movimento que culminou no sionismo mudou a histria do povo judeu e a natureza do seu lao com a terra de Israel30. O sionismo surgir no como uma resposta ao anti-semitismo, mas como

    uma resposta ao nacionalismo e ao liberalismo do Sculo XIX.

    Esse dilema em que o judeu europeu ocidental se encontra no pode ser resolvido com a converso religiosa, o nacionalismo do Sculo XIX estava coberto

    de determinismo cultural e racismo. O sionismo surge como um movimento que

    resgata um sentimento nacionalista e de autoconscincia.

    Paradoxalmente, mesmo aps a criao do Estado de Israel, em 1948,

    continuou a polmica sobre as caractersticas e atributos que definiriam os judeus. Seria um grupo tnico, uma nacionalidade, uma religio, uma ideologia, um conjunto de tradies? Apesar das mltiplas abordagens e dificuldades para definir quem

    judeu, existem tentativas de aproximao ao fenmeno. Assim DellaPergolla afirma que de uma maneira geral usamos para definir judaicidade, a adeso s prticas religiosas, a cultura judaica, a afirmao de etnicidade e a ligao com o Estado de Israel:

    29 Kehil- hebraico grupo de judeus que formam uma congregao.

    30 Ibidem.

  • 20

    Nas sociedades contemporneas que experimentam processos intensos de secularizao, aculturao e interao social, as linhas demarcatrias que separam diferentes grupos religiosos, tnicos e culturais no so mais rgida e claramente demarcadas, como acontecia no passado. Mltiplas bases de identificao entre indivduos e grupos podem coexistir. Como a identificao no regulada legalmente, indivduos podem mudar suas preferncias durante seu ciclo vital. Indivduos de origem judaica podem vivenciar diferentes nveis de vinculao ao judasmo ou comunidade judaica, e podem resolver cortar os respectivos elos, adotando ou no outra identidade. Estas mudanas atitudinais so reversveis: pessoas que negam seu vnculo com o judasmo podem mudar de idia mais tarde. Alguns, ainda, podem admitir ou negar a identidade judaica dependendo das circunstncias 31.

    Ainda segundo DellaPergolla, h um modo de vinculao ao judasmo que ele denomina de resduo cultural. Esta forma de liame inclui pessoas que sentem

    alguma ligao, mesmo que tnue com o judasmo, em algum lugar da sua histria pessoal:

    Vista sob este contexto particular, a cultura um conceito mais vago e subalterno, especialmente quando consideramos que a maioria de quem exibe esse modo de identificao judaica ignora literalmente a filosofia e a literatura judaica e, fora de Israel, a lngua hebraica. Um resduo cultural provm de um parmetro mais ambguo [...] e no proporciona uma aliana mutuamente excludente com respeito aos estranhos (como ocorre com a religio e com a comunidade tnica), e pode com maior facilidade ser adquirida, compartilhada ou perdida. Tambm nesse caso, elementos espordicos de religio e etnicidade/comunidade podem acompanhar o modo residual cultural de identificao, no qual, sem dvida, se expressa sobretudo mediante um nexo intelectual individual, qualquer que seja seu grau de intensidade 32.

    31 DELLAPERGOLLA, Sergio & Schemetz, Uziel . La demografia de los judios de latinoamerica. Rumbos.

    Jerusalem, n. 15, pp.17-37, mar. 1996. 32

    DELLAPERGOLLA, Sergio. Assimilacin/continuidad judia. Mexico: Fondo Cultura Economica, 2000. pp. 467-485.

  • 21

    1.2.2. A questo da identidade judaica e a Beit Sar Shalom

    A fim de compreender como expressam a identidade judaica, os fiis da Beit Sar Shalom, entre outros exerccios, receberam um questionrio com perguntas

    relativas ao seu pertencimento religioso, porm vrios membros da comunidade se

    recusaram a responder s perguntas e se colocaram numa postura defensiva

    dizendo temer serem reconhecidos pelos que esto fora de suas fronteiras

    identitrias como no judeus. A princpio, apenas cinco questionrios foram respondidos e entregues em mos, outros oito foram respondidos via e-mail, e trs

    por contato telefnico, quando foram reproduzidas oralmente as perguntas dos

    questionrios.

    Outra importante fonte de informaes quanto questo da identidade judaica no caso da Beit Sar Shalom foi a entrevista concedida por Daniel Woods, lder dessa

    comunidade. Durante trs horas de entrevista, concedidas em trs diferentes datas,

    foi relatada a histria da Beit Sar Shalom e de sua fundao por Emanuel Woods -

    pai de Daniel - a descrio dos rituais de iniciao, de passagem, as festas

    religiosas, e a questo identitria de seus membros.

    Nessa entrevista, o religioso fez questo de frizar diversas vezes que um

    judeu de nascimento e que a aceitao de Jesus Cristo como messias s o faz mais judeu, pois trata-se da religio dos primeiros que seguiram Jesus Cristo, os cristos primitivos, que nasceram judeus e que mesmo aceitando Jesus como o Messias esperado, ainda assim permaneceram judeus.

    Daniel Woods tambm ressaltou que para se tornar judeu messinico necessrio ser judeu no corao e o ideal, segundo sua fala, passar por um processo de converso formal. Um crente no judeu deve, portanto, se converter ao

  • 22

    judasmo antes de se tornar judeu messinico. A Beit Sar Shalom faz a converso ao messianismo, mas para converter-se ao judasmo rabnico (definio da halach), segundo Woods, necessrio recorrer ao judasmo rabnico. Esse importante ritual de iniciao ser explicitado no terceiro captulo desse trabalho.

    O universo de freqentadores da Beit Sar Shalom pequeno, atualmente em

    torno de trinta membros assduos, esse nmero vem decrescendo desde que a

    pesquisa comeou a ser realizada em julho de 2005, quando o nmero de fiis era em torno de cinqenta pessoas.

    Nove das dezesseis pessoas que responderam ao questionrio se

    identificaram como judeus, e no como judeus messinicos, atribuindo assim o mesmo significado s duas religies.

    No livro Manifesto Judeu Messinico de David Stern, uma das preocupaes

    bsicas definir o que um judeu messinico e tentar comprovar que no existem diferenas entre ser judeu messinico ou judeu. Assim: [...] quem , ento, judeu messinico? Minha primeira escolha entre definies : A pessoa que nasceu judia ou se converteu ao judasmo, que verdadeiro crente em Yeshua e reconhece a sua judaicidade [...] 33.

    Ou ainda:

    [...] premissa deste livro que no existe conflito algum entre ser messinico e ser judeu. Crer em Yeshua uma das coisas mais judaicas que um judeu pode fazer. O crente judeu em Yeshua no se defronta com a necessidade de renunciar a parte de seu judasmo a fim de se tornar mais messinico, ou ter que renunciar a parte de sua f messinica para ser mais judeu34.

    33 STERN, David. Manifesto judeu messinico. Rio de Janeiro: Editora Louva-a-Deus, 1989. pp. 18-19.

    34 Ibidem.

  • 23

    O autor tambm afirma que acha estranho que judeus que ele denomina de no-messinicos tentem excluir os judeus messinicos da comunidade judaica, pois Stern alega que os discpulos de Jesus eram todos judeus, as Escrituras Crists foram escritas por judeus e baseadas na Bblia Hebraica, o conceito de Messias judaico, alm de o prprio Jesus ter sido judeu.

    A partir, portanto, da anlise do livro Manifesto judeu Messinico adotado pelos membros da Beit Sar Shalom e das entrevistas concedidas pelos seus

    freqentadores conclui-se que para essas pessoas, ser judeu messinico ser judeu, ou seja, o judasmo e o judasmo messinico so a mesma religio, com algumas diferenas, mas pertencentes mesma categoria religiosa. Da a auto-

    identificao como judeu e no como judeu-messinico, pois segundo os fiis da sinagoga messinica estudada neste trabalho trata-se exatamente da mesma

    religio.

    Desta forma, os membros da comunidade Beit Sar Shalom se reconhecem

    como judeus, apesar de ao menos onze deles (dos dezesseis questionrios j respondidos) no serem judeus por nascimento e no terem passado por um processo de converso ao judasmo35. Os que se declaram judeus de nascimento (quatro dos questionrios respondidos) alegam que em nenhum momento deixaram de ser judeus. Uma pessoa afirmou ser filha de casamento misto (me catlica e pai judeu) e respondeu que sempre se sentiu pertencente religio judaica. Trs dos entrevistados declararam que esto resgatando suas origens judaicas, e, portanto, se sentem judeus e no vem necessidade de converso ao judasmo.

    Segundo Barth, a identidade uma forma de organizao e classificao

    social sendo uma categoria relacional. Assim, a cultura de um grupo em contato

    35 Segundo a Halach judeu aquele cuja me judia,ou que se converteu ao judasmo.

  • 24

    com outros no desaparece ou se funde simplesmente, como afirmavam os tericos

    da aculturao, mas ser utilizada para estabelecer contrastes. Nestas

    circunstncias no conservada a cultura como um todo, mas sero ressaltados

    alguns traos, justamente para mostrar sua singularidade36.

    O antroplogo considera o grupo identitrio como uma forma de organizao

    social em que enfatiza a interao, apesar disso o grupo no se dilui, pois mantm

    um complexo organizado de comportamentos e relaes que marcam fronteiras

    identitrias entre os de dentro e os de fora. Na construo e manuteno dessas

    fronteiras, traos culturais so usados como marcas diferenciais, mas apenas

    algumas dessas diferenas so consideradas significativas pelos autores e no a

    soma total das diferenas.

    A cultura, no o elemento definidor de identidade, mas constitui um arsenal

    geralmente usado para marcar distines, visto que etnia implica numa situao de

    alteridade afirmao de ns perante o outro. Nessa perspectiva o contato com o

    outro leva a uma exarcebao de certos traos da tradio cultural que se tornam

    diacrticos; assim a cultura original, ou parte dela, assume uma nova funo: marcar

    fronteiras. Alm do mais, a cultura pode ser manipulada pelo grupo que movido por

    seus interesses busca espao prprio ou esboa resistncia. Se um indivduo

    depende, para a sua segurana, de apoio espontneo ou voluntrio de sua prpria

    comunidade, preciso que a auto-identificao como membro dessa comunidade

    seja expressa e confirmada de modo explcito, sendo que qualquer comportamento que seja desviante desse padro pode ser interpretado como um enfraquecimento da identidade.

    36 BARTH, Fredrik.Grupos tnicos e suas fronteiras. So Paulo: Unesp, 1997. pp. 185-228.

  • 25

    A identidade se ativa ou no em determinado contexto: s vezes no convm

    mostrar a identidade. Compreender a identidade compreender seu contexto, ou

    melhor, os contextos responsveis em cada caso particular. Os atores passam seus

    dias escolhendo, optando, negociando, avaliando, calculando e maximizando. Eles

    avaliam os custos e benefcios de cada um de seus atos.

    Identidade, para Barth e seus seguidores, portanto uma questo de auto-

    definio e de definio por parte dos outros. A auto-incluso e a incluso dos outros

    so elementos fundamentais.

    Neste sentido, no h uma identidade primordial, no h uma lista imutvel de

    traos onde se pode dizer quais as caractersticas que sero sublimadas e quais no

    sero. O que relevante no o contedo cultural, mas o limite negociado pelo

    grupo em contextos precisos, ao desenvolver sua interao com os demais. Os

    aspectos que assinalam a fronteira identitria podem mudar, mas subsistir a

    dicotomia entre membros e no-membros.

    Pertencer ou no a um grupo37 uma questo fronteiria, e esses limites no

    so fixos e existentes a priori, eles so construdos e porosos, seus atores passam

    de um lado a outro da linha que divide a sua etnia das outras, movidos por seus

    interesses. Se for da vontade e interesse desses indivduos se verem e serem vistos

    como pertencentes a determinado grupo, eles assim o faro, sinais diacrticos

    exarcebados so a prova desse comportamento.

    37 POUTIGNAT, Philippe e STREIFF F., Jocelyne. Teorias da etnicidade. So Paulo: Unesp, 1997.

  • 26

    1.2. Uma breve histria das religies no Brasil

    No Brasil, o catolicismo chegou com os colonizadores que aqui se

    encontraram com as religies indgenas; posteriormente, a escravido trouxe

    consigo as religies africanas que foram articuladas num vasto sincretismo38.

    A religio catlica sempre foi majoritria no Brasil. Os chamados protestantes histricos, que tm como representantes as Igrejas Reformadas de origem norte-americana e europia que se estabeleceram no pas desde o sculo XIX, esto

    completamente enraizados na sociedade brasileira e se reproduzem, no pela

    prtica proselitista, mas fundamentalmente pela herana familiar. Suas principais

    Igrejas so: Luterana, Batista, Presbiteriana, Metodista, Episcopal e Congregacional39. Nesse grupo esto includas as igrejas que se estabeleceram no Brasil a partir dos ciclos migratrios do sculo XIX. Nessa poca a tolerncia

    religiosa aumentou devido ao intenso comrcio com a Inglaterra em virtude da vinda

    da famlia real portuguesa e a Abertura dos Portos a partir de 1808. Entre as

    denominaes que chegaram ao pas podemos citar: a Igreja Anglicana, a Confisso Luterana (alem) e as vrias igrejas reformadas (holandesa, armnia, sua e hngara) 40.

    O segundo grupo formado por evanglicos pentecostais teve sua origem no

    reavivamento do protestantismo nos Estados Unidos; esse grupo tem o culto

    centrado no dom das lnguas e da cura41, alm da crena da volta eminente de

    Cristo. interessante salientar que as Igrejas Pentecostais so comumente

    38PASSOS, Joo Dcio (org.). Movimento do esprito: matrizes, afinidades e territrios pentecostais. So Paulo: Paulinas, 2005. 39

    PRANDI, Reginaldo. Um sopro do esprito. So Paulo: Edusp, 1998. 40

    PASSOS, Joo Dcio (org.). Movimento do esprito: matrizes, afinidades e territrios pentecostais. So Paulo: Paulinas, 2005. 41

    PRANDI, Reginaldo. Um sopro do esprito. So Paulo: Edusp, 1998.

  • 27

    discriminadas por protestantes histricos e pela Igreja Catlica42. O pentecostalismo brasileiro, no entanto, nunca foi homogneo e desde a sua criao sempre

    apresentou diferenas internas43. As duas primeiras Igrejas dessa onda foram a Congregao Crist e a Assemblia de Deus, fundadas respectivamente em 1910 e

    191144.

    Na dcada de 1950, com a chegada dos missionrios da Cruzada Nacional de

    Evangelizao, vinculados Igreja do Evangelho Quadrangular, teve incio a fragmentao do pentecostalismo.

    O terceiro movimento pentecostal comea na segunda metade dos anos 1970,

    cresce e se fortalece nas dcadas de 1980 e 1990. A Igreja de Nova Vida, fundada em 1960 no Rio de Janeiro pelo missionrio canadense Robert McAlister foi a

    primeira de uma longa srie, encabeada pelas Igrejas Universal do Reino de Deus (RJ, 1977), Internacional da Graa de Deus (RJ, 1980), e Cristo Vive (RJ, 1986), estas trs ao lado da Comunidade Evanglica Sara Nossa Terra (GO, 1970) e Igreja Nacional do Senhor Jesus Cristo (SP, 1994), so as principais igrejas surgidas no perodo. Tal corrente denominada neopentecostal45.

    Essa onda apresenta peculiaridades doutrinrias e prticas religiosas

    singulares, e por no reivindicarem vnculos histricos explcitos, so chamadas

    tambm de pentecostaslismo autnomo. No existem apenas igrejas tradicionais de um lado e pentecostais do outro, apresentando assim um panorama religioso

    brasileiro bastante complexo46.

    42 MARIANO, Ricardo. Neo pentecostais sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. So Paulo: Loyola,

    1999. 43

    Ibidem. 44

    Ibidem. 45

    Ibidem. 46

    PASSOS, Dcio. Movimento do esprito: matrizes, afinidades e territrios pentecostais. So Paulo: Paulinas, 2005.

  • 28

    Segundo Jos Bitencourt Filho, no Brasil h tambm outras religies. Essas

    guardam entre si um trao histrico comum: todas nasceram nos EUA ao longo do

    sculo XIX, como resultado de revelaes msticas de seus lderes: Testemunhas de

    Jeov, Adventistas do Stimo Dia, Santos dos ltimos Dias (Mrmons), e a Cincia Crist47 constituem exemplos dessa categoria.

    O censo de 2000 promovido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    (IBGE), trouxe entre seus resultados a mudana de perfil das opes religiosas brasileiras. De um pas essencialmente catlico, o espectro de alternativas religiosas

    aumentou, assim como o nmero de seus adeptos. Cresceu tambm o nmero de

    pessoas que se declararam sem religio.

    O socilogo brasileiro Flvio Pierucci, por exemplo, costuma enfatizar dois

    aspectos dessa mudana: por um lado, a quebra de monoplios religiosos e a

    proliferao de alternativas, por outro, a diversidade de opes religiosas continua

    pequena: o Brasil ainda se constitui num pas essencialmente cristo e novos

    experimentos no costumam se afastar muito dessa herana48.

    Segundo Eduardo Rodrigues da Cruz:

    A influncia da Igreja Catlica continua diminuindo no contando mais com o apoio da esfera pblica, esvaindo-se a sacralidade das instituies e das hierarquias, alm do desgaste de ritos e crenas e o descomprometimento dos agentes religiosos. Assim, o catolicismo tende a ser um grupo religioso entre os demais 49.

    47 Ibidem.

    48 PIERUCCI A. F. Secularizao e declnio do catolicismo, em SOUZA, B.M. e Martino, L.M.S (orgs.)

    Sociologia da religio e mudana social: catlicos, protestantes e novos movimentos religiosos no Brasil. So Paulo: Paulus, 2004. 49

    CRUZ, Eduardo Rodrigues da. A persistncia dos deuses - religio, cultura e natureza. So Paulo: Unesp, 2004. pp.18-19.

  • 29

    O aumento mais significativo, tanto em termos percentuais como em termos do

    nmero de aderentes, certamente dos evanglicos, em particular dos pentecostais.

    Uma das razes para isso que em tempos de crise, as religies de entusiasmo

    tornam-se mais atraentes. Registra-se tambm o aumento significativo das religies

    denominadas neocrists (Testemunha de Jeov e Adventistas do Stimo Dia). Por outro lado, o nmero de pessoas aderentes aos cultos afro-brasileiros, em especial a

    umbanda, tm diminudo50.

    As religies afro-brasileiras so formadas primeiramente pelas religies

    tradicionais de origem africana. At os anos 1960, as religies tradicionais afro-

    brasileiras estavam circunscritas s populaes negras como religies tnicas,

    perdendo aos poucos esse carter para se constituir em religies universais abertas

    a todos. Candombl na Bahia, Rio de Janeiro e So Paulo, Xang em Pernambuco

    e estados vizinhos, Batuque na regio sul do Brasil, Tambor de Mina no Maranho e

    estados da regio amaznica so as vrias denominaes do candombl. A

    Umbanda surgiu na regio sudeste do pas nos anos 1930 resultado do contato

    entre o espiritismo europeu (os espritas seguem a religio do francs Alan Kardec, introduzidas no Brasil no final do sculo XIX) e o candombl51.

    No panorama religioso brasileiro ainda temos: Judasmo, budismo, Mrmons,

    Seicho-No-I, Perfect Liberty, Igreja Messinica, Santo Daime, alm de prticas esotricas52. Como faz questo de afirmar Pierucci:

    A maior parte dos brasileiros que hoje abandona o catolicismo adere a um outro ramo do cristianismo. O evangelismo pentecostal, portanto, ao se implantar e expandir, nada mais faz do que

    50 Ibidem.

    51 PRANDI, Reginaldo. Um sopro do esprito. So Paulo: Edusp, 1998.

    52 Ibidem.

  • 30

    recristianizar os catlicos desistentes ou desapontados com sua antiga igreja 53.

    Segundo pesquisa Datafolha de 2007, o catolicismo continua a perder adeptos

    especialmente para os protestantes pentecostais: 64% dos entrevistados se

    declararam catlicos contra 70% em 2002, 72% em 1998 e 74% em 1996; 3% de

    espritas, 5% outras religies, 5% evanglicos no pentecostais, 17% evanglicos

    pentecostais, 6% sem religio54.

    1.3.1. Os judeus no Brasil moderno

    Segundo a Encyclopdia Judaica Jerusalem55, a moderna comunidade judaica no Brasil, constituda basicamente de judeus do leste europeu, teve seu incio formal em 1903 quando as primeiras tentativas para estabelecer comunidades agrcolas

    foram feitas na regio sul do pas. Por ocasio da Primeira Guerra Mundial, o Brasil

    tinha uma populao judaica de 5000 a 7000 pessoas, aps a Guerra houve um aumento significativo da imigrao judaica. Entre as dcadas de 1920 e 1930 chegaram ao pas cerca de 28.000 indivduos vindos principalmente da Europa

    Oriental (de acordo com dados fornecidos pelas entidades judaicas de assistncia aos imigrantes da poca).

    O ano de 1930 foi um ponto de mudana na poltica de imigrao brasileira

    que se tornou mais restritiva e teve um efeito negativo sobre a imigrao judaica. Em 1937, a tendncia para selecionar imigrantes na base de sua origem tnica foi

    53 PIERUCCI, Antonio Flvio em GAARDER, Jostein. O livro das religies. So Paulo: Cia. das Letras, 1999.

    p.283. 54

    Folha de So Paulo, 6 de maio de 2007. 55

    Encyclopedia Judaica Jerusalem .Vol. 4. pp. 1322-1333.

  • 31

    levada ao extremo quando uma circular secreta foi criada e postada nos diversos

    consulados brasileiros no exterior:

    Getlio Vargas aprovou a Circular Secreta n.1.127 que passaria a regulamentar a concesso de vistos nos passaportes dos judeus interessados em imigrar para o Brasil. Esta prtica de bastidores se fazia necessria dada a impossibilidade de se promulgar uma legislao anti-semita que, certamente, atrelaria a imagem do Brasil aos regimes nazi-fascistas. Ao mesmo tempo, em decorrncia do sistema de quotas adotado desde 1934, nem todos os vistos poderiam ser indeferidos, obrigando o Itamaraty a sustentar uma poltica de aparncias artifcio garantido pela postura americanfila de Oswaldo Aranha56.

    O contedo dessa Circular impunha rgidas regras no controle da entrada de

    judeus no Brasil. As Constituies de 1934 e 1937 e um decreto de 1938 introduziram um sistema de quotas de imigrao, tais quotas no poderiam exceder

    2% a mais do total de imigrantes de qualquer pas no perodo de 1884-1934 e dos

    quais 80% teriam que ser trabalhadores rurais.

    Apesar disso, a imigrao judaica, especialmente da Europa nazista, continuou por vrios meios. De tempos em tempos, disposies especiais eram tomadas para

    permitir a imigrao de pessoas com certas habilidades especiais ou para parentes

    de cidados brasileiros. A lei tambm permitia que as autoridades brasileiras

    transformassem vistos de turistas em vistos permanentes. Desta forma, cerca de

    17500 pessoas entraram no Brasil entre 1933 e 1939. Em 1940, o governo

    brasileiro, a pedido do Vaticano, permitiu a entrada de aproximadamente 3000

    refugiados dos nazistas que haviam se convertido ao catolicismo57.

    56 CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O anti-semitismo na era Vargas. So Paulo: Perspectiva, 2001 p.115.

    57 Ibidem

  • 32

    No perodo de 1956/1957, 2.500 judeus do Egito e cerca de 1.000 do Norte da frica, principalmente do Marrocos, foram admitidos e de tempos em tempos pequenos grupos tambm foram recebidos. De acordo com o censo oficial, a

    populao judaica em 1940 era de 55.668 habitantes e em 1950 de 69.957. Os nmeros reais, no entanto, deviam ser muito maiores. Em 1969, a populao judaica era estimada em 130.000 a 140.000 distribudos nas grandes cidades, como So

    Paulo e Rio de Janeiro58.

    Diferentemente de muitos pases do mundo, o censo brasileiro traz uma

    pergunta sobre a filiao religiosa. No caso especfico dos judeus as dificuldades se multiplicam alm do componente religioso, pois os indivduos podem se identificar

    tanto religiosamente como etnicamente, culturalmente e historicamente. Aquele

    indivduo que, por exemplo, no se identifique com a religio judaica, mas que encontra outras formas de identificao com o judasmo, no ser contabilizado como judeu atravs do censo. 59.

    As primeiras estatsticas confiveis da presena judaica no Brasil provem do censo de 1940, cujos resultados s foram conhecidos em 1943. Anteriormente a essa data foram divulgados nmeros e estimativas exageradas, segundo Ren

    Daniel Decol: [...]400 mil judeus viviam no Brasil; 150 mil entraram nos ltimos seis meses O Meio Dia jornal Carioca [...] 60.

    Quando os dados censitrios foram publicados, soube-se que a comunidade

    judaica tinha algo em redor de 50 mil pessoas.

    Durante o perodo em que a questo judaica era debatida publicamente, comearam os trabalhos de preparao do censo de 1940, os judeus foram

    58 Ibidem.

    59DECOL, Ren Daniel. Explorando os dados censitrios. Revista Brasileira de Cincias Sociais, n. 16. p.31. 60

    DECOL, Ren Daniel, apud- Lesser, 1955.p.231.

  • 33

    enumerados em uma categoria independente da pergunta sobre religio. A

    persistncia do grupo como categoria nos censos de 1950 em diante pode ser

    explicada, talvez, pelo interesse sociolgico em uma minoria com caractersticas

    scio-demogrficas especficas.

    Nos 100 anos entre as dcadas de 1870 e 1970, mais de cinco milhes de

    imigrantes chegaram ao Brasil61. Comparada com os demais fluxos, a imigrao

    judaica relativamente recente no Brasil. A partir dos anos 1960, tanto a imigrao geral como a judaica entraram em declnio, a partir desse momento, essa ltima s pode contar com seu crescimento vegetativo.

    1.3.2. O judasmo messinico no Brasil: a histria da Beit Sar Shalom

    Os judeus messinicos, ao se identificarem como judeus entram nos nmeros do censo, todavia no existe nenhum estudo ou pesquisa oficial que indique a

    quantidade de pessoas pertencentes a esse movimento religioso no pas.

    Existem diversas sinagogas messinicas pequenas espalhadas pela cidade de

    So Paulo, nos bairros do Bom Retiro (Beit Mashiach), Brooklin (Cabalat Shabat) e na cidade de Ribeiro Preto (Shaarei Tikvah), alm de outras cidades brasileiras como: Belo Horizonte, na Congregao Ministrio Ensinado Sio e Ministrio

    Proftico Shem Israel, em Curitiba a Congregao Maoz Israel; no Rio de Janeiro,

    Ministrio Pedras-Vivas e Congregao Judaico-Messinica Beit Tefil Yesuha; e

    em Vitria (ES) a Congregao Netivyah.

    61 Ibidem.

  • 34

    Segundo David Stern62, autor do Manifesto Judeu Messinico, o moderno

    judasmo messinico teve sua primeira referncia em John Toland na obra Nazarenus. Toland, no entanto, no cita fontes, nem documenta o surgimento dos

    primeiros movimentos judaicos messinicos.

    No incio do Sculo XIX nasceu o movimento cristo-hebreu na Inglaterra e em

    1886 foi fundada em Kishinev, na Moldvia, a primeira Congregao judaico-messinica moderna por Joseph Rabinovich. Em 1976, a Hebrew-Christian Aliance

    of Amrica mudou seu nome para Messianic Jewish American Alliance (MJAA). No ano de1979 foi fundada nos Estados Unidos no estado do Novo Mxico, a Union of

    Messianic Jewish Congregation (UMJC). Destes movimentos, o mais conhecido o Jews for Jesus, movimento nascido em 1970, em So Francisco, na Califrnia nos

    Estados Unidos63.

    A escolha da Beit Sar Shalom como objeto de pesquisa partiu do princpio de que provavelmente foi essa a primeira sinagoga messinica fundada em So Paulo,

    na dcada de 1950, por Emanuel Woods (pai de Daniel Woods), norte-americano, que partindo do seu pas de origem se dirigiu ao Brasil com o propsito estabelecido

    de aqui fundar uma sinagoga messinica. As outras congregaes messinicas so

    posteriores (mas no h referncias confiveis sobre as datas de suas fundaes).

    Segundo relato de Daniel Woods em entrevista concedida em julho de 2005, a sua famlia originria, pelo lado paterno, de judeus vindos da Rssia e da Hungria e do lado materno, de judeus muito antigos nos Estados Unidos, que participaram inclusive da Guerra de Independncia e teriam suas razes na Frana e Alemanha.

    62 STERN, David. Manifesto judeu messinico. Rio de Janeiro: Louva-a-Deus, 1989.

    63 Ibidem.

  • 35

    Os avs de Daniel Woods se conheceram nos Estados Unidos, casaram-se e

    tiveram doze filhos. A famlia Woods conheceu o judasmo messinico por intermdio de dois irmos de sobrenome Cohen, rabinos que organizavam grupos

    de estudos numa loja pequena do bairro do Brooklin na cidade de Nova York. Duas irms de Emanuel Woods (pai de Daniel Woods) foram a essa loja e se converteram ao judasmo messinico, passaram a crer que Jesus era o messias e anunciaram sua nova crena famlia que as perseguiu, inclusive o pai de Daniel.

    Ainda segundo o relato de Woods, seu pai comeou a estudar o judasmo e se interessar por respostas que, segundo ele, o judasmo tradicional no conseguia resolver. Convenceu-se, ento, que Jesus era o verdadeiro messias.

    Posteriormente Emanuel Woods teria ido a uma yeshiv64 onde conheceu sua futura

    esposa. Nesse ponto o relato se torna confuso e os dados do relato do entrevistado

    no condizem com a realidade e as regras existentes nas yeshivots, pois nesse tipo

    de escola no so aceitas moas e Daniel afirma que os pais estudaram juntos numa yeshiv tradicional em Chicago, mas no citou o nome dessa entidade.

    A famlia Woods chegou ao Brasil em 1951, segundo Daniel, atendendo a uma

    espcie de chamado de Deus. Nessa poca, Emanuel e sua esposa j tinham quatro filhos, o quinto, Daniel, foi o nico que nasceu no Brasil. Na poca Emanuel

    Woods pregava nas ruas do bairro paulistano Bom Retiro e era constantemente

    rechaado e ridicularizado

    Segundo Daniel Woods, a Beit Sar Shalom uma congregao que sempre foi

    independente, uma iniciativa particular de seu pai e no est ligada a nenhuma outra

    64 yeshiv- hebraico- colgio talmdico para estudantes homens solteiros, desde a puberdade at vinte e poucos

    anos de idade

  • 36

    entidade nacional ou internacional e teria sido o prprio Emanuel Woods que

    desenvolveu todo o ritual praticado na sinagoga.

    A Beit Sar Shalom uma comunidade pequena, que conta com

    aproximadamente cinqenta membros/associados fixos, mas com alguns

    freqentadores eventuais advindos de outras denominaes religiosas, a exemplo

    de judeus, pentecostais e neo-pentecostais, que vm sinagoga messinica tanto por curiosidade, como por laos de amizade com seus integrantes.

    Dos questionrios respondidos temos uma pequena amostra das religies de

    origem dos membros da Beit Sar Shalom: um membro se declarou catlico por

    nascimento; um filho de me catlica e pai judeu, quatro judeus por nascimento, dois da Igreja Batista Esperana, dois da Igreja Adventista do Stimo Dia, dois da Igreja Renascer em Cristo, trs da Igreja Universal do Reino de Deus e trs se declararam Protestantes.

  • 37

    1.4. Judasmo messinico e o sincretismo religioso

    1.4.1. O sincretismo religioso

    A palavra sincretismo costuma ser malvista e rejeitada, segundo Ferreti, Sincretismo palavra maldita que provoca mal estar em muitos ambientes e em muitos

    autores. Diversos pesquisadores evitam mencion-la, considerando seu sentido como

    sinnimo de mistura confusa de elementos diferentes, ou imposio de evolucionismo e

    colonialismo65.

    No Dicionrio de Sociologia66, o sincretismo definido como nome genrico

    utilizado por vrios autores no campo da antropologia no Brasil, para designar o

    fenmeno religioso resultante do encontro de religies. O Brasil um pas em que o

    sincretismo religioso tem sido abordado frequentemente, mas essa assiduidade nem

    sempre procurou compreender de forma mais ampla o significado e implicaes

    dessa categoria.

    Primeiramente o termo sincretismo foi elaborado com o propsito de dar conta

    das religies africanas no Brasil e vrios autores, tanto do passado como do

    presente, tm se preocupado com esse tema. Um dos autores mais conhecidos que

    abordaram esse assunto foi Nina Rodrigues67, mdico fundador do campo de

    Estudos Afro-brasileiros, que discorre sobre o sincretismo usando expresses como

    justaposio, equivalncia de divindades e iluso de catequese.

    65 FERRETI, S. Repensando o sincretismo. So Paulo: Edusp, 1995. p. 13

    66 BARRETO, M.A. P. Dicionrio de sociologia. Rio de Janeiro: Globo,1977.

    67 RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros baianos. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,

    1935.

  • 38

    Nina Rodrigues defendia a idia de que o negro por ser inferior ao branco

    no teria a capacidade de abstrao necessria s religies monotestas e por

    compreenderem de foram errnea o cristianismo teriam a necessidade de criar

    equivalncias entre os orixs africanos e os santos catlicos. Para o autor, o

    sincretismo um dilema, e sendo assim no h soluo possvel para compreender

    essa questo. Esse dilema aparece quando h a interpretao do negro na

    sociedade republicana, o problema fundamental nessa poca o da assimilao,

    que segundo o mdico no seria possvel, j que considera os negros, inassimilveis.

    Ainda dentro dessa viso evolucionista, outro estudioso das religies afro-

    brasileiras, Arthur Ramos68,usava o termo sincretismo, mas diferentemente de Nina

    Rodrigues; considerava o sincretismo como resultado harmonioso de contatos

    culturais sem que houvesse nenhum tipo de conflito.

    Outro terico que se ocupou com a questo do sincretismo foi Roger Bastide69

    que se preocupou em compreender a lgica desse fenmeno. Para o autor, o

    sincretismo religioso se faz por justaposio, ou seja, o sincretismo no est no simblico, mas na aproximao dos agentes e dos emprstimos mentais; assim, as

    conexes se fazem a partir das experincias pessoais dos atores religiosos.

    Podemos tambm citar Reginaldo Prandi70 que divide a histria das religies

    afro-brasileiras em trs fases: o perodo inicial de sincretizao; o de

    branqueamento, com a formao da umbanda; e o de africanizao, a partir de

    1960. Para o autor, o candombl surge como forma de preservao do patrimnio

    68 RAMOS, Arthur. A culturao negra no Brasil. So Paulo: Nacional, 1942.

    69 BASTIDE, Roger. As religies africanas no Brasil. So Paulo: Pioneira, 1971.

    70 PRANDI, Reginaldo. Referncias sociais das religies afro-brasileiras: sincretismo, branqueamento,

    africanizao. Rio de Janeiro: Pallas 1999.

  • 39

    cultural negro71. O movimento de retomada da frica pelo candombl procurava desfazer o sincretismo com o catolicismo

    Muitos outros autores aqui no citados tambm se preocuparam em

    compreender o sincretismo religioso, principalmente aquele no qual se imbricam a

    religio catlica e as religies africanas. Nesse trabalho essa abordagem ter como

    foco de indagao um universo bem diferente: o do Judasmo messinico, que

    aparentemente, une aquilo que irreconcilivel. Os judeus messinicos se identificam como judeus, porm aceitam Jesus Cristo como messias; j para os judeus tradicionais, o salvador prometido por Deus ainda no veio, portanto dentro do aspecto doutrinrio notamos diferenas abissais entre essas duas manifestaes

    religiosas, que apesar disso so superadas pelos judeus messinicos.

    Os integrantes da sinagoga Beit Sar Shalom identificam-se como judeus e crem que Jesus no veio estabelecer uma nova religio, mas de fato cumprir uma

    antiga. Utilizam versculos dos evangelhos para justificar e legitimar sua crena, a exemplo de (Mateus: 5:17) No pensem que eu vim abolir a Lei e os Profetas, No vim abolir, mas dar-lhes pleno cumprimento., ou em (Paulo: Gal. 4:4) que afirma ter Jesus nascido como judeu nasceu submetido Lei e que ele se fez ministro dos circuncisos para honrar a fidelidade de Deus, no cumprimento das promessas feitas

    aos pais (Rom: 15:8). Os judeus messinicos defendem a idia de que as Escrituras Crists so uma continuao lgica do Tanach72, no h uma ruptura

    entre os dois livros. Paralelamente, acreditam que as Escrituras Crists e as

    Escrituras Hebraicas devem ser lidas uma luz da outra73. Assim, o profeta Isaas,

    71 Ibidem.

    72 Tanach:- hebraico - Bblia hebraica

    73 KERMODE, Frank. Guia literrio da bblia midraxe e alegoria: os incios da interpretao escritural.

    So Paulo: Unesp, 1997.

  • 40

    por exemplo, s pode ser compreendido de forma completa sob a tica dos

    Evangelhos.

    muito difcil determinar o momento exato em que certo grupo se transforma numa comunidade distinta ou mesmo numa nova religio. Porm, segundo alguns

    tericos como David Flusser, a idia de continuidade defendida pelos judeus messinicos incorreta [...] devido nfase judaica no monotesmo, difcil perceber como o judasmo poderia aceitar a crena na completa divindade de Cristo.74.

    Essa diferena entre o judasmo e o cristianismo patrstico est refletida nos textos rabnicos nos quais, com o cristianismo na mira, a idia de que Deus teve um

    filho que era divino foi rejeitada.

    O autor ainda complementa:

    Se porventura existiu um grupo puramente judeu cuja crena era idntica da cristologia desenvolvida pela Igreja, tal crena no pode ser descrita como uma forma especfica de judasmo; esse grupo seria uma seita, que provavelmente no poderia prevalecer sobre a maioria dos judeus, e duvidoso se tal seita poderia ter durado muito tempo75.

    Com vistas a tentar compreender esse fenmeno, parece que as teorias

    defendidas por Nicola Gasbarro76, antroplogo italiano e Cristina Pompa77

    antroploga da Universidade de Campinas (Unicamp) tm a capacidade de entender o fenmeno do sincretismo religioso de uma maneira mais complexa. Gasbarro trata

    74 FLUSSER, David. O judasmo e as origens do cristianismo. Rio de Janeiro: Imago, 1988. Vol. III p.168.

    75 Ibidem.

    76 GASBARRO, Nicola. A civilizao crist em ao. [s.n.t]

    77 POMPA, Cristina. A religio como traduo. Bauru: Edusc, 2003.

  • 41

    dessa problemtica analisando o que acontece quando diferentes construes

    culturais entram em contato, a questo : a quem pertence prioridade

    epistemolgica? e como fazer essa anlise sem recorrer categoria do sincretismo?

    Para o autor a resposta est na colocao do cristianismo como uma religio que

    tem o potencial universalizador. Os processos de seleo e comparao so

    analisados mediante os cdigos de comunicao acionados pelos prprios agentes.

    Por sua vez, Leonardo Boff78 em sua obra afirma que todas as religies so

    sincrticas e que esse fato representa a normalidade e no a exceo.

    Cristina Pompa constri a problemtica do sincretismo como:

    A construo do sentido do outro, ou seja, sobre os cdigos colocados em jogo, de um e de outro lado, do encontro colonial, para entender a alteridade humana que penetrava de maneira to inusitada no mundo e no fluir da histria, criando tantos novos universos simblicos com fragmentos dos tradicionais 79.

    Para a autora, a linguagem negociada. No encontro entre duas religies o

    que ocorre a leitura do outro para poder traduzi-lo de forma que seja compreensvel para quem o faz. Elementos que vm do outro s so absorvidos

    quando fizerem sentido, portanto h uma escolha deliberada do que interessa ou

    no, e no apenas uma mistura aleatria em que no h a participao ativa e

    consciente dos agentes.

    Se a linguagem simblica negociada, o sincretismo a lei do outro e

    traduzi-lo de maneira que possa ser compreendido ser o processo de uma

    78 BOFF, Leonardo. Igreja, carisma e poder. Petrpolis: Vozes, 1982.

    79 POMPA, Cristina. A religio como traduo. Bauru: Edusc, 2003.p.24

  • 42

    linguagem de mediao. No se trata de uma simples traduo cultural, existe uma

    escolha. Encontramos explicitada essa escolha na fala de David Stern no seu livro

    Manifesto Judeu Messinico:

    Uma sinagoga messinica no deveria ser apenas uma cerimnia religiosa, com algumas palavras, roupagens e smbolos judeus intercalados. Se for usado material judaico, isto deve ser feito de modo correto; ou se modificarmos a maneira habitual de usar tais itens deveramos faz-lo intencionalmente, e no por ignorncia80.

    O ritual do shabat 81que se realiza na sinagoga messinica Beit Sar Shalom,

    em grande parte igual ao servio judaico tradicional, porm diferentemente desse ltimo, a Tor lida e estudada (s sextas-feiras nas sinagogas tradicionais no se l a Tor, apenas se ora e se louva Deus, no um dia dedicado ao estudo), possvel observar ainda, uma ntida escolha entre o que eles utilizam do ritual

    judaico e aquilo que interessa ao ritual judaico-messinico, a descrio desses rituais ser feita no captulo III.

    A anlise do judasmo messinico, entretanto, no pode ser feita apenas a partir da categoria sincretismo, devemos tambm recorrer categoria de identidade,

    apoiando-nos nas teorias de Fredrik Barth82, que v a relao entre identidade e

    cultura, deslocando o enfoque identitrio dos contedos culturais para a anlise das

    relaes entre os grupos. Portanto, como j foi visto anteriormente, para o autor, a cultura no o elemento definidor de identidade, mas uma gama de estratgias para

    marcar as diferenas existentes, a afirmao de ns perante o outro, a identidade

    no pode ser definida apenas pela cultura, j que essa pode ser manipulada pelo grupo.

    80 STERN, David. Manifesto judeu messinico. Rio de Janeiro: Editora Louva-a-Deus, 1989. p.149.

    81 Shabat hebraico dia do descanso.

    82 BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador. Rio de Janeiro: Contra-Capa, 2000.

  • 43

    A identidade ir ou no ser ativada dependendo do contexto, portanto a

    etnicidade uma questo de auto-definio e de definio por parte dos outros,

    onde as fronteiras entre o ser e o no ser so porosas e elsticas. No caso do

    judasmo messinico, varivel religiosa necessrio acrescentar anlise identitria e como o grupo constri suas fronteiras culturais/religiosas vis--vis outros grupos

    religiosos.

    1.4.2. O judasmo messinico e o sincretismo religioso

    Como j foi visto a Beit Sar Shalom (Casa do Prncipe da Paz), localizada na cidade de So Paulo, foi fundada h cinqenta anos por Emanuel Woods, norte-

    americano, rabino de formao tradicional, que segundo narrativa de seu filho Daniel

    Woods, em determinado momento de sua trajetria como sacerdote teve uma revelao, que lhe mostrou que o Messias esperado pelos judeus j havia estado entre os homens e que retornar; esse Messias Jesus Cristo.

    Emanuel Woods afirmava que sua revelao poderia ser facilmente

    comprovada pelos escritos bblicos, em diversas passagens, mas principalmente nos

    livros profticos, como os de Isaas 7:14 Por isso o Senhor mesmo lhes dar um

    sinal: a virgem ficar grvida e dar luz a um filho, e o chamar Emanuel ou a

    passagem de Daniel 9:26 E depois das sessenta e duas semanas ser cortado o

    Messias, mas no para si mesmo: e o povo do prncipe, que h de vir, destruir a

    cidade e o santurio... ou ainda Miquias-5:2 E tu, Belm Efrata, posto que

    pequena entre os milhares de Jud, de ti me sair o que governar em Israel, e

    cujas sadas so desde os dias da eternidade. Esses so apenas alguns exemplos de passagens nos livros dos Profetas que falam da iminente vinda do Messias, que

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    foram interpretadas pelo rabino Emanuel Woods como uma confirmao de que o

    Messias descrito nas Escrituras hebraicas Jesus Cristo e que um dia voltar.

    A partir dessa profunda ruptura com o judasmo tradicional, o rabino abandonou sua comunidade nos Estados Unidos e emigrou para o Brasil

    acompanhado de sua mulher e filhos, estabelecendo-se em So Paulo, Emanuel

    Woods fundou a primeira sinagoga messinica do Brasil. Aps sua morte, Daniel

    Woods, assumiu o lugar do pai na congregao.

    Dentro da Beit Sar Shalom se mantm grande parte do ritual judaico tradicional, homens e mulheres sentam-se separados, os homens usam kip83e h

    smbolos que remetem ao judasmo por toda parte: Estrela de David, Menor84 e a Tor na tradicional forma de rolo85, alm disso, grande parte do ritual celebrado na

    lngua hebraica. Entretanto e curiosamente, ao lado da Tor vem-se em lugar de

    destaque as Escrituras Crists, tambm em formato de rolo e escritas em hebraico.

    A liturgia feita a partir da Parash86do dia, seguida pelas sinagogas

    tradicionais, porm a haftar87aqui no segue essa tradio e usado como texto

    confirmatrio, algum trecho do Evangelho Cristo. Como por exemplo: a parash da

    semana Vayigash (Ele aproximou-se) Bereshit (Gnesis) 44:18 - 47:27 a haftar Yechezckel (Ezequiel) 37:15 e a Haftar do Brit Hadsh (Novo Testamento) Atos 7:9-16, ou Parash Vaykra (Ele chama) Haftar (Levtico 1:1 e Isaas 43:21 44:23) e Haftar do Brit Hadsh (Hebreus 10:1-18). Essa escolha fundamental, pois a

    83 Kip- hebraico- solidu.

    84 Menor - hebraico-Candelabro de sete braos.

    85 Tor Hebraico- Pentateuco.

    86 Parash - hebraico- seo - diz-se das passagens da bblia que tratam de um tema especfico.

    87 Haftar - hebraico - concluso leitura do livro dos profetas, que segue do sefer Tor, no shabat, festas e

    dias de jejum. A Haftar hoje em dia fixada pelo costume comunitrio, e reflete em geral um dos temas abordados na leitura da Tor, ou associada a algum carter especial daquele dia.

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    partir dela que se dar a confirmao de que o Me