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DEBRAY_Uma ciência dura: a angelologia

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DEBRAY, Régis. Uma ciência dura: a angelologia. In: DEBRAY, Régis. Transmitir: o segredo e a força das ideias. Petrópolis, RJ: Vizes, 2000. pp.46-42

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IVl!~III I 'I lassos profanos (dos quais

I' I I I 1 1 1 1 1 ' ' " I I ,IU Ii , nte e nco a origem, como pro-

dilltl, d e u r n 1 11 logem retroutivo}, nco sao os menos

III" ' menos sinceros. A Biblia, os Evangelhos 0 Co-

l' ,r pet.em eles, sco os defensores da vida, do ornor e

do froternidode. Eas reliqioes que reivindicam tais valores

provoc~m exterminios e matam-se entre si. Trazem em

se~ bojo ~,~xclusao, a hierarquia e os argumentos de au-

torrdade. Eescandaloso. Nco se p6ra de trair a palavra

de Deus, do Messias, do Profeta." De onde vem 0 senti-

~ento de escondolo s Por uma ampla parte da justaposi-

ceo = estado inicial (ou pressuposto como'tal) ao estado

terminal da trcnsmissoo, com a ornissco do que se passa

entre esses dois estados e do processo em seu conjunto.

? ~ue, de ~m ponto de vista moral, causa a revolta do

orfao das o~,gens, con,:,oca int~lectualmente 0 rnidioloqo.

Para. e_ste,e _ o esquecimento indevido das rnediccoes e

restricoes de incorporocco que transforma uma metamor-

f~se que e incompreensivel em uma contrcdicco que e

vl!uperada. P~r ~ao que~er entrar na 16gica des- opera-

coes, 0 crente 'n,d,g~ado fica escondolizodo, primeiro pas-

so para a den uncia do bode expiat6rio. 0 midioloqo

co~tentar-se-~ ~_mcompreender. Nao sem pedir cos her-

delr~s das rellglo.es obrccrniccs (chomadas, por engano,

do l.ivro] que cceitern consultar 5 us pr6prios arquivos.

Uma ci€mciadura: a angelologia

Com efeito, aqui, nco estamos afirmando noda de novo.

Nad? que, desde 0 alvorecer dos tempos, j noo tenha sido

rncnifesrodo.

. Transportar uma mensagem, onuncior uma noticia

diz-se em grego angelein. 0 mensag iro ou 0 dsleqcdo

chama-se angelos. Aconteco 0 que ocont c r aos anjos

p~r transportarem boas-novas, teremos cuidado em

nao esquecer a odvertericio de Rilke, no infcio da Se-

gundo elegia de Ouino, sobre esse estranho p6ssoro

da desqrocc: "Todo anjo e assustodor. E, no entanto ,

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desgrac;ado de mim / Invoco-vos, p6ssaros da alma qua-

se mortais / Sabendo que sois... "

Segundo parece, os anjos nco existem. Seja no ceu ou

na terra. Com efeito, isso e verossimil. Mas j6 foi provadoque "0 homem se pensa nos mitos" (Levi-Strauss); olern

disso, tudo indica nas primeiras mitologias religiosas uma

ciericio do homem balbuciante, por meio de figuras e me-

t6foras. A teologia crista pode e deve (para os nco-cren-

tes) ser lida como uma antropologia em estado selvagem.

Ea angelologia, em particular, como uma midiologia em

estado mistico, ou gasoso. Para n6s, sob esseneologismo,

trata-se de prosseguir e determinar com precisco, aqui

embaixo, uma tarefa comec;ada de forma erudita e h6

muito tempo, mas nas nuvens: a anatomia dos anjos.

Sem duvido, os anjos de nossa infancia nco tern 0

prestigio estrutural dos totens da Nova Guine, e nossa his-

t6ria sagrada ndo tem 0 mesmo atrativo ex6tico dos mitos

de Dakota do Norte analisado por Malinowski ou Levi-

Strauss. Reconhece-se aos ontropoloqos 0direito de pers-

crutar longamente lendas de ursos e estruj6es entre os

indios Manamini ou de 6guias transformadas em homens,

sendo que tais mitos de reencarnac;ao prevalecem entre

os clcs hopi da mostarda selvagem. Por que nan otribuir

o mesmo valor documental, quanto ao funcionamento do

espfrito humano, a nossos contos de drag6es e de ho-

mens-p6ssaros? E mais diffcil tornarmo-nos etn610gos de

nossas crenccs dornesticcs. mas a priori ndo parece ser

mais absurdo de supormos na hist6ria das reliqioes - da-

quelas que estruturaram granc!es civilizar;;6es e que pas-

saram pela prova do tempo -, tanto informac;ao sobre as

leis da natureza e da sociedade, quanto a que e possivelencontrar nas mitologias esquim6 ou polinesic.

De fato, em todas as letras inscritas nesse ramo da

teologia cat61icachamada "angelologia" encontram-se as

tres propriedades que caracterizam um proce~6rico

de +ronsrnissco: 1) a estrutura- tern6ria que, inevitavel- )\~

rnenre;-coloca um terceiro termo mediador entre a emis-

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" I. II" 1o, l) j truturo de ordem que foz do ter-

It' Itil I till:, "lJll inonirno de hierarquizor, e 3) a estrutu-

/

' t, t ill II vlrovolto que inverte a passagem em obs+cculo. 0

(II 11'r intronsitivo do tronsporte das mensagens, ou 0 ca-

r t r inexorovel da interface, pode ser lido no impossivel

f e a face de Deus com os pecadores; 0 coroter hiercr-

quic~ .doscorpo~ mediadores, na ordenocdo propriamen-

I te md,!ar das milicios celestes; e a trcqedio da inversdo,

na revrravolta do anjo em demonic. Antes de passar em

revista esses diferentes pontos, cornecorernos por lembrar

que a angelologia corresponde a uma preocupccco erni-

nentemente proqmotico (bem mais "rornono" do que "bi-

zantina"): a qestco do conjuntivo. Ndo sao os sonhadores

e o.scontestadores mal-intencionados da cristandade que

se I~teressaram pelo "sexo dos onjos", os pequenos tele-

qrofistcs do Altissimo, mas os decididores e os ordenado-

res, virtuoses na arte de exigirem obediencio. 0 que esto

entre-os-dois e a mais terra-a-terra das preocupocoes, e

em todas as escolas de pensamento, oteics ou fideistas

socialistas ou liberais, e sempre 0angelismo que nco ievo

em consideroco o os anjos. Sejamos realistas: observemo-

los em ocoo, sem encobrir-nos 0 rosto.

Quanto mais especulativa for uma doutrina tanto me-. , '

nos Ira preocupar-se com seus ministros interrnediorios

- preocupocco reservada as pessoas do governo, e que os

pensadores da primeira ordem (ou da primeira gera<_;ao)

concordam em desdenhar como se tratasse de questoes

de segunda ordem. Pensar 0 acionador do mensagem e

pensar 0 Partido ou 0 aparelho, quando so 6 portador de

um projeto de sociedade; e pensar a lqrejo, quando se e

portador de uma mensagem de solvccdo: pensar a ima-gem, quando se e um homem de ideics ou conceitos. Ou

a ponte, quando se abre um caminho. Ou sejo, 0 que

n~n~~ma das categorias socioprofissionais indicadas (dou-

tnnarros, profetas, filosofos e superintendontes das vias

publicas) faz espontaneamente. Como a invcncco dos an-

,,oscorresponde a uma preocupocco de hegemonia, nco

e surpreendente que a angelologio crista tenha definido

seus contornos no momento do endurecimento eclesial,

em plena normolizocco institucional da religioo de Estado

(ano 391). Ao mesmo tempo que a cpcricoo dos primeiros

centros monosticos no Egito e na Golia, ou sejo, Tabennesi

e Lerins (seculos IV e V), a promulqccco das regras de fe

e de vida, as definic;oes conciliares e a fixccco das linhas

de comando sacerdotais. Nco e surpreendente que 0maior

dos cnqeloloqos. Dionisio, 0Areopagita, tenha consegui-

do passar - ou fazer-se passar -, durante muito tempo,

pelo discfpulo e herdeiro de Sao Paulo, ao que tudo indica

homem de instituicco. Ficamos devendo a este a primeira

hierarquia dos ministerios (cpostolos, profetas e doutores) e

a justificativa da diferenco entre opostolos e povos a partir

do modelo dos membros do corpo humane subordinados

uns aos outros. Os homens da lqrejo que mostraram maisvenerocco pelos anjos foram os fundadores de ordens ou

"superiores gerais", de Gregorio Magno a Loyola, passando

por Sao Bernardo e Sao Bento. Todos eles herois da pastoral

(mesma coisa, mutatis mutandis, no movimento operorio,

em que Guesde e Lenin desempenharam 0 papel de ange-

loloqos no lugar do falecido Marx). Sejo qual for a transmis-

sao, nco sao aspombas, mas os fclcoes que se interrogam

sobre os cnjos - ou sobre seus substitutos leigos, nossas

"correias de tro nsrnissdo".

Primeira licco. No firmamento monoteista que, supos-

tamente, estoria vazio, existe uma multidco. Desde 0 ca-

pitulo 6 do Genesis, aparecem os "filhos de Elohim" (para

aperceberem-se de que "as filhas dos homens eram lin-

des"}, seres misteriosos que os comentaristas identificam

com os anjos. Portanto, dupla surpresa: existe carne no

Reino do Espirito, e algo de Multiplo em torno do Uno.Como se 0 poder de Deus nco se bastasse a si mesmo.

Nco e Ele pessoalmente que adverte Agar, a serva egip-

cia, que dcro a luz Ismael; que anuncia a Abrcco que tero

um filho de Sara; que aparece a Davi; que responde a

Esdras perdido na Bcbilonio: ou que serve de guia ao povo

hebreu em sua caminhada. Nno e Ala que dita seus ver-siculos a Maome. E 0 proprio Moises recebeu as Tcbucs

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da Lei por interrnedio dos anjos. Como se Deus nuo pu-

desse intervir diretamente em nossos neqocios. Entre Ele

e seus profetas, intercala-se uma mediccoo obriqotorio _

o carteiro: em hebraico, rna/ok; em grego, ange/os. Mi-

guel, Gabriel, Uriel ou um outro subchefe. Agar, Lot, Ge-

d~~o e os outros so tratam com ministros do governo

divino, encarregados de rnissco "junto de", embaixadores

de um Presidente que noo chega a ser visto por nenhum

nativo. Do mesmo modo, no Novo Testamento, torna-se

necessaria essamediocco. essesocorro vital, para Josena

fuga para 0 Egito; para Mariareceber no ventre 0Verbo:, '

para ostres magos na busca do presepio: e para asSantas

Mulheres na descoberta do Tumolo vazio, no dia da Res-

surreicdo (a qual noo teve testemunha direta). Jooo dePatmos, autor do Apocalipse (0 desvelamento), observa

que ninquern ve a Deus diretamente. A visoo direta, de

frente, sera a recompensa final das almas no Paraiso - "a

visco beatifica". Daqui ate lo. como em 0 castelo de Ka-

fka, a autoridade suprema, inacessivel, impenetrovel, ex-

pressa-se por representantes que falam em seu nome, em

seu lugar, de uma forma eniqmotico. Assim, aqui embaixo

ou la no alto, e menos ainda nas idas-e-voltas entre os

dois patamares, nada se desenvolve na tronsporencio e

imediatidade, na evidencio cutomotico correspondente

ao do it yourself. Nada de outoqestco dos destinos. Os

decretos do Onipotente nco se executam em tempo

re~l, abertamente, mas otroves de um percurso tempo-

rolizodo em que nada esto decidido de cnternoo. em

que a Providencio tem necessidade de uma economia.

o Nascimento do Cristo requer uma Anunciocdo, en-

quanto a Ascensco, quarenta dias opos a Pcscoo, re-quer elevadores. 0 pr6prio Filho de Deus nco pode ir

ao encontro de seu Pai no Ceu sem a ajuda, escrituroric

e figurativa, de milhares de anjos portadores. Para ele-

ver-se na gl6ria acima dos coros celestes, 0 Cristo ainda

tem necessidade deles. Noo falemos da Assuncuo da Vir-

gem Maria. Ninquern se retira para seus aposentos por

seuspr6prios meios; de tal modo que 0Eternopreviu, para

50

- -cada um de n6s, um anjo da guarda e, para cada povo,

um "arconte", um guia especialmente atrelado a seus

passos (500 Miguel, 0 mais solicitado dos arcanjos, foi 0

anjo da guarda de Israel e passa por ser 0 da Froncc},

o pr6prio retraimento do Absoluto no Abstrato e que,

com 0 monoteismo, tornava inelutovel 0 intercessor, irn-

pondo 0 "Ianc;:amento de uma ponte", pela interface irno-

gina ria, para olccncor 0 divino invisivel a nossos pobres

olhos de carne. Como a faculdade imaginativa preenche

a seporccco kantiana entre 0 inteligivel e 0 sensfvel, 0

Anjo e um monstro necessorio, uma fantasia rigorosa,

sem a qual 0 Incriado primordial nco teria conseguido, de

modo algum, fazer-se entender, nem reconhecer por suas

criaturas. Portanto, "0 nascimento de Deus" teve um res-

gate: e essa superobundoncio de andr6ginos, hibridos,

metaxu (Plctco}, nem completamente encarnados, nem

totalmente desencarnados. A ornbivolencic da interface e

dificil de ser pensada, embora mais fccil de ser repre-

sentada, mais propicia a uma iconografia do que a uma

oxiornotico, mais pr6xima de uma poetico do que de uma

16gica. Os Anjos tornam possivel 0 contato cotidiano,

constitucionalmente impossivel, mas politicamente indis-

pensovel, do infinito com 0 finito, do divino com 0 huma-

no, do espirito com a materia. A Gnose, que regula a

solvocoo a partir do grau de conhecimento, mas se limita,

em excessiva cbstrccco 16gica, ao div6rcio 16gico das

duas ordens de realidades, depende de um preconceito

intelectualista ou purista. Ndo deixa qualquer espoco

para 0 maravilhoso, rnusico ou vitral, para 0 familiar,

para 0impure e para astronsicoes afetivas. Os Perfeitos

participam das realidades divinas sem intermediorios,

sem padres nem sacramentos, sem imagens nem anjos da

guarda. Assim, essa heresia new instituiu uma Igreja lon-

ga, para olern da elite dos Eleitos. Por falta de putti, de

droqoes dotados de garras e de andr6ginos alados, a

Gnose - teria dito Marx (iluminado por Lenin e pelos es-

pecialistas da agit-prop) - nco conseguiu "apropriar-se

das massas para tornar-se forc;:amaterial".

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o Deus dos filosofos, 0 de Spinozo, 0ser absoluta-

mente infinito, causa de si, fora de quem nada pode exis-

tir, noo tem necessidade de anjos. Nem de imagens.

Tampouco de Igreja. A ideio de Ens perfectissimum e muito

astuciosa, mas isso nunca chegou a constituir uma Wel-

tanschauung, um charme contagioso, um foco de incen-

dio. Tudo se passa como se 0 desejo piedoso (metaffsico

demais) de um Deus onipotente e onipresente, sem pro-

teses por assim dizer, nco serio defens6vel a distcncic.

Como tornbern nco serio defens6vel uma porta sem do-

brodicos, nem um lexica sem sintaxe. Coube asalmas sim-

ples do fe crista corrigir 0 tiro dos doutores eruditos que

sempre estiveram desconfiados em relccoo a esses bas-

tardos que sao os anjos, esses seres inclassific6veis, essasturbulencies irritantes, nos quais 0purista ha de denunciar

sem dificuldade uma ressurqencio politefsta, uma recafda

na magia cssfrio-bobilonico , uma lament6vel influencio

estrangeira. De fato, os Livros doAntigo Testamento ante-

riores 00 cativeiro de Bcbilonio nco mencionam os cnjos

por seus nomes; do mesmo modo, 0 demonic permanece

of cnonimo e sem anatomia personalizada - olern daque-

la, um tanto imprecisa, do serpente. Abodco, Asmodeu,

Satan6s cheqoroo mais tarde. 0 Livro de Jo relaciona a

doenco, as pragas e a morte diretamente a Deus; quanta

00 diabo, so h6 de aparecer sob seu nome, diabolos, com

a troducco tardio do Bfblia em grego, conhecida como a

dos Setenta. Do mesma forma, Paulo desconfiava do culto

de cdorccoo dos anjos (Epfstola aos Colossenses 2(18).

Para quem anuncia Jesus como mediador unico do salva-

c:;ao,"keriqrnc" proprio do cristianismo, 0 Anjo e um sujei-to perigoso. E,no entanto, no economia crista do solvocco,a Natividade, que poderia ter posto um tormo a missco

dos Anjos, nco conseguiu elirninc-los. 0Modiador unico

que e 0 Cristo ainda +ero necessidado do ministros, de

mensageiros, de go-between entre 0 c6u c a terra. Os

anjos permanecem associados a todos os acramentos do

fiel, a propria Igreja e a coda indivfduo. Volta dos anjos,

volta do reprimido rnonotelsto.

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Por terem entrado no cristandade de forma discreta,

por baixo e pela imagem, a propria teologia especulativa

ndo conseguiu, com 0 tempo, livrar-se deles. Pormais tar-

dias que tenham sido introduzidas (final do seculo IV), as

pro+icosde representocco e devocco acabaram suprimin-

do, com uma grande sequronco midioloqico, as repug-

ncncics doutorais. Parasatisfazer a libido optico, a primeiro

arte crista foi obrigada a servir-se do repertorio decorativ o ·

poqco. 0das Vit6rias antigas, as Nikes, essas mulheres

aladas que coroavam os vitoriosos, 0 dos amores, 0 dos

genios romanos que, em poteros e sarcOfagos, eram re-

presentados com a palma e a coroa. Assim, a partir do

seculo V , um modele visual antigo uniu-se a um dado tex-

tual biblico para atribuir aos espiritos celestes 0 corpo de

homens-possoros que nunca mais os abandonaram e que

podemos encontrar ainda noalto das colunas e nas salas de

cinema, qenio do Bastilha ou efebos alados de Cocteau, Pa-

solini ou Wenders. Portanto, essaschicotadas e efervescen-

cias coloridas, que se desenvolvem com as miniaturas

medievais e os afrescos do QuaHrocento, subverteram nos-

sas categorias loqicos. A figurac:;ao piedosa estava a frente

da conceituclizocoo doutoral (a imagem precede sempre a

ideio). Efoi necessorio que as pessoas de teses e dogmas

corressem otrcs das pessoas de imagens (caminho que

dever6 ser feito de novo, na esteira do cristianismo, por

qualquer teoria profana do terceiro excluido}.

Segunda licco. Todas as propriedades do corporocco

angelica foram sujeitas a coucco entre os doutores da

Igreja, exceto uma: a disposicco em ordens sobrepostas,

o esca/onamento. Esses funambulos nco se apresentam

como girovagos, mass60 "incardinados". Longe de ser um

eletron livre, cada um tem sua fila, seu lugar, sua patente.

Como acontece nos Forces Armadas. A especificidade do

anjo e 0 sorriso que seduz os poetas; mas "den Engel

Ordnungen" (Rilke) interessam oshomens da ordem. Todo

o mundo compreende que os dernonios estejam organi-

zados segundo 0 modelo militar. Mais surpreendente, mais

rica de sentido, a rnilitorizocdo original dos sfmbolos do

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fluido, do ornovel e do pacifico. Troqico coincidencio: oope-

rador de conversco de um a outre nivel de realidade, do

sobrenatural ao natural, e um operador de subordinocco.

"A ordem" funciona nos dois sentidos. De saida, por suas

propriedades comparativas, ja inferior a Deus, superior aos

homens, mais materia do que 0 primeiro, menos do que os

segundos, 0Anjo conotava uma ideio de posicco, de lugar,

em uma ordem fixa e preestabelecida. As indicocoes hieror-

quicas espalhadas pelo Antigo Testamento e presentes em

Sao Paulo (Epistola aos Hesios 1) 1;Epistola aos Colossen-

ses 1,16L desenvolveram-se na obra de um teoloqo oriental

que escreveu, em grego, entre os seculos V e VI, 0 Pseudo-

Dionisio, dito 0Areopagita.

E a ele que se deve uma sisternofizccdo - tendo colo-

cado umas a frente das outras - das hierarquias eclesics-

tica e angelica. Dionisio coloca 0 Exercito do Bem em

ordem de batalha, segundo a celebre Taxis, por coros de-

crescentes: em relocco direta com Deus - Serafins, Que-

rubins e Tronos; Dorninocoes. Virtudes e Potentados que,

por sua vez, devem passar pelo primeiro coro; Principa-

dos, Arcanjos e Anjos (simples soldados das milicias celes-

tes, no posicco mais baixo das dignidades). No verdade,

as proprios Serafins nunca conseguem atingir 0 segredo

intimo de Deus que, fundamentalmente, permanece in-

compreensivel. Deixemos de lade ndo so a questno de

saber se essa subordinocco cria diferencos de natureza ou

simplesmente de funcoo entre os anjos de primeira, se-

gundo e terceira dasse. Mas tnrnbem a questno dos crite-

rios de distribuicdo. E das eventuais prornocoes. Metodio

imaginava os anjos grudados para semprc a sua patente

de origem; Agostinho, mais prudent ,n e pronuncia a

esse respeito. Mas todos os Padr d Igr [o reeonhecem

uma sequencia de ordem. D m 111 i ll d ,Dionisio dis-

tingue tres filas entre 0 ini i te l i! I lJj ticos: bispos,

padres e diocono ; pay d. II I jcld ,no posicoo

mais baixo, 0 'I ' urn 11< " urn II [u] 1 < 1 , enerqurne-

nos, ou se]o, b tiz 1 I ' 1 IH II If b 11 nflu n ia do dernonio,

e os p nit 11' ,I u'lifWI I (1 (IInlnll 11 ureza. Nesta

estrutura tricdico, tomada de ernprestimo a Plotco e as

cosmologias antigas, 0Cristo e 0 primeiro hierarea, ponto

de origem das duas hierarquias, a celeste e a terrestre.

Estc, a sacerdotal, era de fato mais complexa, segundo as

Constituicoes apost6licas: cpos os dicconos, vinham os

subdioconos. leitores, cantores, ascetas, diaconisas, vir-

gens, viuvos e, por ultimo, 0povo, mas0modelo trinitcrio,

paradigma obriqotorio. servia de quadro a todos os qua-

dros. Os nove coros e a Trindade multiplicada por si mes-

ma. Estrutura fractal da serie , Dionisio, talvez, tenha

sentido a necessidade de prevenir uma turbulencio, de re-

gular uma zona instovel ao acentuar os valores de ordem

e de estabilidade contra os do anarquia e do caos que

rondavam em torno desse flutuante. Com efeito,0

anjoe tombern um eontrapoder, imprevisivel, incontrolovel e

insolente diante, e distante, dos moqisterios instituidos.

o operador volante do conexco homem-Deus curto-cir-

cuita os elos da deleqocco, os vinculos obrigat6rios da

cornunicucdo hierorquicc , Ele vai e vem. Todo anjo e um

anti papa em potencio. Pode soprar a um simples fiel

que 0 papa e um idiota, e 0 bispo um simoniaco. 0

energumeno alado oferece ao desesperado - conferir Jo-

ana d'Arc - uma via de recurso para a esperonco, fora do

enclave eclesial fossilizado.

Portanto, esse neoplotonico tinha os pes assentes na

terra: estava preocupado em saber "quem serio 0presi-

dente". 0 qual podero pregar em nome de todos os ou-

tros. 0 primus inter pares, no Sacro Coleqio ou alhures.

Quem podero, no diocese, consagrar quem. Dionisio, 0

iluminado, estava preocupado com a intendencio. As me-taforas solares tinham obcecado "a visco alexandrina do

mundo". A taxinomia dionisiana assume-as, mas, com 0

desnivelamento regulado dos iluminadores, a tronsmissoo

escapava as figuras recebidas do ernonocdo ou do difu-

sao, com as quais se alimenta 0idealismo racionalista ate

nossos dias. Como foi importante esta descoberta: a or-

qonizocoo intransitiva dos operadores da tronsicdol Neste

aspecto, 0muito espiritualista Dionisio superava em re-

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alismo 0"omrie bonum est diffusivum sui" dos escolristi-

cos, assim como 0otimismo too leve das Luzes (que con-

tinua presente na Carta da Unesco). A luz do saber, su-

postamente imaterial, espalhar-se-ia pelo espoco sem

se divisor. Propargar-se-ia de forma continua e de um

so jato. Ora, os anjos distribuem-se em uma especie de

escada de Jcco, cujos degraus, por definicoo , mostram

uma descontinuidade, uma sequencia ordenada de in-

tervalos. A arte dos intervalos e comum a musico e apolitico. Isso faz, pral"icamente, do solfejo, assim como

do etiqueta, melodias e tornbern ciumes. 0 onjo com a

harpa ou com a viola desfia notas em uma pauta com

linhas equidistontes: 0anjo com 0chicote, ou com a vara,

distribui lugares no tribuna com filas equidistcntes. Seranecessorio lembrar que, por rnediocco bizantina, nosso

protocolo vem diretamente do Ceu?7

o materialista a modo antigo nco hesitoro em ver no

hierarquia celeste dos anjos a projecco fontcstico do pro-

totipo terrestre das Casas imperiais, mas a querela do ga-

linha e do ovo parece, aqui, sem per+inencio. Para nos, 0

I I importante consiste em saber nco a imagem correspon-

dente a coda ordem, mas a estrutura de ordem indefini-

\ damente repetivel "no terra como nos ceus". 0 marxista

tem 0 direito de considerar Dionisio como um ideoloqo

pre-feudal da submissco, extraindo seusembustes do car-

7. Coroter regio do Igreia, clerical do Corte: os dois refletem-se um 00ou tro . No

Republica, 0Pre si dente a inda t em uma "Coso" (deno rni nocco o fi ci al do gab i-

nete , fo rmado pelo s as ses so res mc is p roxir nos , no Pa la cio do Elis eu [r es iden -'

c ia o fi ci al do chefe de Estado, no f rcnco] ) e os ce rimoni ais do ' li do de rnocro ti co

sao too marcodos por precedencios e titulos, nossas Conselhos de ministros

sao too obcecados por querelas relativas a posicoes hierorquicos, quanto os

rituais rnerovingeos ou as memories de Saint-Simon. A ardem protocolor

muda, mas 0protocolo . 0que, no vida em sociedade, nco sofre qualquer

rnudcncc. Sem duvido, "0respeito pelas formes" e 0que a existencia pol it ico

tem de mais profundo; cssim, ele resiste a todas as mudcncos de regime,

latitude e danorninccco. "Convern separar os homens par meio de rituais

para imped i-I os de s e mas sac ra rem" , d iz ia Sar tr e.

56

tola do neoplatonismo decadente. Preferimos ver nele um

pesquisador de "ciencics politicos", por ontecipccco, que

teria pressentido e, 00mesmo tempo, ocultado, otroves

da cifra mistica, a pungente permonencio do fenomeno

hierorquico. Somos obrigados a reconhecer que nco exis-

te sociedade organizada - ainda que fosse judaica-cristo,

dernocrctico e, ate mesmo, oficialmente iquclitorio - que

nco oferecc, em seus orqoos de direcrio e de execucco,

uma desigualdade meticuloso e, em seus rituais e cerirno-

nias, uma qrcdocoo do superior 00inferior rigorosamente

definida. Quanto mais um coletivo pretender ser "orqcni-

co", tanto mais bem definidas seruo as distancios entre

seusmembros, no organogroma enos cerimoniois. Quanto

mais um coletivo pretender seguir Sao Paulo ("embora seja-

mos vcrios, todavia, somos um so corpo, somos membros

uns dos ou1ros"), tanto mais sera, paradoxalmente, hierar-

quizado. 0 desnivelamento hierorquico e tanto mais acen-

tuado, no nivel inferior, quanto mais elevada for a trans-

ceridencio fundadora, no topo da pirornide dos seres. A

orqonizocco do Igreja co+olico - 00que tudo indica, mo-

narquia absoluta de direito divino -, oferece uma ilustra-

<;00 viva dessa correlccco simplorio, mas tenaz. Ela es-

clarece, sem duvido, a longevidade dessa instituicco (e a

incornpnrovel estabilidade do Estodo do Vaticano).

o pensamento dionisiano, abertura musical, preludio

inspirado, levantou uma ponto do veu. Nco existe media-

<;00 horizontal, qualquer rnediocoo e, de saida, qualifica-

da como grada<;ao - ela e ascendente ou descendente

(anag6ge ou paradosis). Essedesnivelamento faz fu.ncio-

nor toda "trcdicco", entendida como passagem de Inter-

mediorios, do Mestre 00discipulo, do professor ao aluno,do Pai aos filhos, do opostolo ao povo. Os anjos fazem a

corrente, sim, mas com a condicco de que os elos nco

estejam 110 mesmo nivel. A primeira ordem, serafica, en-

contra-se na vizinhanc;a de Deus, enquanto 0 ultimo, an-

qelico, toca no homem. Deus opoic-se no alto da escada,

do mesmo modo que nos, os pecadores, nos apoiamos no

parte de baixo. Por hipotese, retirai a escada: com ela,

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iroo desaparecer os termos do relncdo. A divinizocco do

inteliqencio ou a unico do homem com Deus, fim de toda

atividade hierorquicc, nco pode operor-se de umo sovez,

com um saito do obscuridade para 0 Luz. A hierarquia nco

e um simples quadro social, 0 enquadramento exoterico

de uma ilurninocoo individual; ela inspire e permite a

tronsrnissoo da qrcco , motor e condicco. EmDionisio, e aproprio monifestocoo do divino, a "deiformidade". Se nco

ho hierarquia, Deus nco existe. Mas se existe hierarquia,

ele torna-se inccessivel. 0 sinal degrada-se ao longo do

canal. A optidoo para receber a mensagem divina vai sen-

do minada pela entropia a medida que aumen~a 0 ofos-tamento do receptor em relocdo ao emissor. "A medida

que semultiplicam os degraus na mediccco descendente,a purificocdo, a ilurninocco e a perfeicco perdem sua for-

co e seu brilho,,8. Contrariamente a Plotino, Jombl~coou

seu proprio mestre, Proclus, a processco nco e, oqur, uma

exponsco natural do Uno para fora de si mesmo, uma

efusco do ser, uma irrcdiccoo divina. Seu proodos e dia-

crftico e essa diakrisis e verdadeiramente crttico no sentido

ern que cada esccloo, cada mediocco, volta a representar,

ern rozco da gratuidade dos dons divinos, a Revelocco de

novo. Ao multiplicar escadas e degraus, "a espessura rni-

diotico" do rnundo (Daniel Bougnoux)* equivale a espes-sura espiritucl. Se0 "diobolico" e, ern lingua grega, 0 quedivide, e 0"sirnb6Iico" (sumballein) 0 que unifica, temos

motivos para dizer que a tronsrnissdo do divino esro estru-

turada diabolicamente. 0 diabolos - no sentido proprio:

aquele que cria obstoculos - e 0 outro nome de angelos,

o mensageiro. Perturbadora reversibilidade da ordem em

desordem. Parasintetizar, 0 Diabo nco e 0 Outre de Deus;

mas pode ser Deus no exercfcio de seu poder. 0 ruido

encontra-se na propria mensagem.

8. Rene Roques, L'Univers dionysien, Paris, Aubier, 1954, p. 104.

* NT: Cf. D, Bougnoux, Introduqao as ciencias do informoqao e do cornonicccdo.

Petropolis, Vozes, 1994,

58

Assim, codificada em linguagem cat6lica, "midiologia"

poderia ser chamada tanto angelologia, quanto demono-

/ogia. E, aqui, surge a terceira licdo. A qualquer instante,

o onjo pode inverter-se em demonic, 0vetor tornar-se

anteparo, 0 canal ficar obstruido. No fundo de cada Mes-

sias (e nco 00 lado ou contra ele}, esto adormecido um

Anticristo. 0 chefe dos dernonios era 0mais elevado dos

espfritos oriqelicos: com efeito, quanta mais um on]o esti-

ver pr6ximo de Deus, tanto maior sera a tentocco em pre-

tender assemelhar-se a Deus. "Tendo ccldo de mais alto,

e ele que ira cair mais baixo": a Rocha Torpeio esto proxi-ma do Capit6lio. Quer consideremos 0 anjo como Deus,

ou 0 vetor como a mensagem, trata-se do lade sctcnico

das sociedades ditas da comunicocco , too bem colocado

em evidencio por Michel Serres. Nossos portadores de no-

tfcias [o nrio sabem fazer-se esquecer. Lacon apresenta-se

no palco psicanalftico como 0 anjo de Freud; todavia, no

fim, ja nco se consulta Freud, mas cita-se Lacon. J o nco

sevai 00 teatro assistir a uma peco de Shakespeare, mas

ver a encenocoo de Lavaudant ou Chereou. Ja nno sees-

cuta um disco de Bach, mas de Glenn Gould. Jo nco se Ieum livro a nco ser ctroves do entrevista do autor que in-

terpretava seu livro no jornal. Ho engarrafamento no ro- 1dovia. Os mediadores ja nco soo osdelicados vol6teis que f ~olcorn voo mal fazem a entrega do mensagem, como 0

Gabriel da Anunciccco feita a Maria. Esses orgulhosos

consideram-se a pr6pria mensagem. 0 engafarramento

midi6tico, versco profana do queda dos anjos, e 0 apre-

sentador que "se exp6e" ou 0 orqco que se revolta contra

sua funcco. Todo 0 poder aos transmissores. Os vefculos

tomaram 0 lugar do passageiro, 0 lugar do sentido - e

limitam-se a transportarem-se a si mesmos. 0cnuncio do

acontecimento toma 0 lugar do acontecimento. Remon-

tando 0 efeito perverso do transporte das mensagens a

sua causa, dir-se-o: 0 que torna possfvel a mensagem tor-

na provovel sua perversoo: ou, em lingua crftica, as con-

dicoes de possibilidade de envio s60 as do desvio. Salobra

crnbivolencio: 0 onjo estava af para proteger-nos do de-

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III 111 . Mas quid do solvocco se 0 onjo revelc-se demo-

IIi ? Oro, 0 risco e inerente a funcco, e a teologia crista

dou-se muito bem conta disso. Contrariamente 00 dual is-

mo de tipo iraniano, essenio ou cotoro. ela recusou a fa-

ci lidade maniqueista de atribuir 00 Mal uma subs-

tancialidade independente. Todo medium eo melhor e a

pior das coisas. Esopo fez disso um proverbio que repeti-

mos todos os dias, mas, no fundo, qual misterio mais an-

gustiante do que a reversibilidade do bem? Satan6s e um

on]o decaido, um anjo rebelde, sim, mas ainda um cnjo.

Sao Jorge nco cessa de permutar com 0 droqco, nco se

tem a certeza de nada, e ainda menos de sua sombra. 0

Mal eo Bemtern a mesma origem e estero sonhando todo

aquele que pretender associar-se oeste sem provar aque-Ie. A passagem pelo canal implica a obstrucco pelo canal.

Nao podemos pretender fazer-nos entender e, ao mesmo

tempo, evitar qualquer mal-entendido; se conseguimos

uma coisa, obre-se a possibilidade do outra. 0 Livro de

Enoc atribui aos anjos decoidos 0 duplo papel de civilize-

dores e de corruptores: tendo vindo para a terra, eles tra-

zem para os homens a espada com a charrua, e 0

coquetismo com 0amor. Desde a primeira rnonhc, a am-

biquidcde estava presente com a decepcco.

"Tudo 0 que e demonic rnontern-se no meio entre os

deuses e os mortais", diz Diotima no Banquete (202 d). 0popel medial do demonic helenico ja era, desde Hesiodo,

o do anjo cristoo: "ele interpreta eleva aos deuses 0 que

vem dos homens e aos homens 0que vem dos deuses (...);

colocado entre uns e outros, ele preenche 0intervalo de

maneira a ligar as partes do grande todo". Alhures, em

Epinomis (984 e), Plo+dositua os dernonios no hierarquia

dos elementos, no nivel do ar, intermediorio entre 0ceu e

a terra. No corneco, 0 daimon, 0 anjo da guarda de 56-

crates, seu conselheiro especial, e bom e benefice. Mas,

ligado como esto 00 mundo dos oroculos, das magias e

do odivinhocoo (manfike), ele ndo poderia escapar, por

muito tempo, a inversco malefica. Assim, ve-se 0lumino-

so interrnediorio tornar-se negro no decorrer das exeqe-

60

ses (Xenocrates, Plutarco, Jomblico que, depois de Plotco,

insistem sobre os maus dernonios}. Por sua vez, 0dogma

cristco estipula que os dernonios foram criados por Deus,

embora indiretamente, e foram criodos bons. Alern disso,

exercem uma certo dorninccoo sobre a humanidade, mas

com a permissco divino. Um terce deles (segundo 0Apo-

calipse, primeira sondagem conhecida sobre a porcenta-

gem dos orgulhosos no bando), os dernonios foram eric-

dos com a natureza e a forma de onjos. Uti lizam os mes-

mos meios - sugestivos, er6ticos e carnais. Para agir sobre

o corpo pelo corpo (mais vulnerovel do que a alma as

tentccces impuras). "0 dernonio, dizia Santa Teresa de

Avila, s6 consegue agir sobre a alma pelo corpo e pelas

faculdades sensiveis" - irncqinocuo, sensibilidade, mem6-ria, faculdades inferiores. No corneco, sao indistintos. A

mulher e a interrnediorio nco s6 entre 0 homem e Sata-

nos, quando ela se choma Eva, mas tombern entre 0 ho-

mem e Deus, quando se choma Maria. Cruel hesitccco

para a qual Baudelaire ja tinha chamado nossa otencdo:

"A mais bela cstucio do Diobo consiste em persuadir-nos

de que ele noo existe". De que modo? Tomando de em-

prestirno 0 sorriso dos anjos. Verdadeiramente esperto eo pecador que sabe reconhecer, na primeira olhadela, 0

bom e 0mau, distinguir 0salvador do exterminador - sera

que ainda existiriam histories de guerra e romances de

amor se 0 homem nco confundisse obrigatoriamente, no

inicio do relocco, uma coisa pelo outra?

oque sepode ler,em resumo, nosAnjos, que tipo delendaa seu respeito existe aqui? Adrnoestocco ou prernonicco s

De um 50S grudado a humana finitude. Aflic;ao e de-somparo. A imediatidode desaporeceu com 0Paraiso, de

modo que eis-nos entregues a incontroloveis intermedio-

rios que multiplicam os degraus do escala a medida que

subimos em direcco do derradeiro objetivo. Temos de

atravessar uma enfiada de porticos, corredores, escadarias,

um dedolo de reflexes mais ou menos enganadores, de

interpretes mais ou menos seguros, de interlocutores mais

ou menos duvidosos. E0que consideramos como um ves-

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tibulo e a propria moradia: centralidade do corredor. 0

onjo e 0 esgar do Deus ausente, 0 trocado de suas evosi-

vas. Podemosver no retorno do Sisifo cnqelico, ao longo da

historic santa, 0 sinal obstinado de nossa incompletude,

clern de que 0adulto ainda esto longe de sair do infuncio,

assim como a historic do pre-historic. Ele tero sempre ne-cessidade de um mestre para aprender a viver sern mestre,

de uma asa portadora para clconcor os curnes. Nco secon-

segue fazer issosozinho. As portas nco seabrem por si rnes-

mas - sem porteiros. Sem vigilantes, guias ou protetores.

Sem irmcos mais velhos. Sem psiquiatras, esses psico-

agentes funerorios que antecedem a morte. Sern primei-

ros da fila para entrar na fila, sem Presidentes para criar

a nocno, sem bons qenios para manter 0 norte.

o cn]o: 0anunciador de nossa subrnissoof Sim, a in-

voluntoric moral desta fobulo por demais negligenciada

murmura-nos ao ouvido que continuaremos para sempre

assistidos, menores e imaturos. 0 perturbador ruge-ruge

desses "possoros da alma" que voltejam, ambiguos, entre

o Eterno enos - entendamo-Io como as tres pancadas no

teatro: tal e nossa enfermidade essencial - a mediccdo

sera 0nosso destino. As olmas nco tern ocessooo que es

e vital a nco ser pela interposicco de corpos estranhos.

Para falar cruamente, e emboro tal seja nosso mais que-

rido desejo, nco he cporencio de que possamos tornar-

nos, algum dia, ateus, no sentido ern que Marx, em A

ouestoo judaica, define a reliqico como 110 reconhecimen-

to do homem por um desvio, por um interrnediorio" (em-

bora reconhecer-se afeu ctroves de um Estado ateu,

acrescenta ele, sejo uma forma de permanecer religioso).

Independentemente do lugar para onde formos, cqnosti-cos ou crentes, um on]o estero a nosso espera na soleirado porta - mestre, cicerone, superior de convento ou guru

-, e serio inutil pretender passar por cima desse interces-

sor. Tudo indica que a relocoo imediata a nos mesmos -

com a qual, como individuos ou comunidade, nco pode-

mos deixar de sonhar - nco ho de ocorrer.

/

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