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A PESSOA DESDOBRADA José Luiz FIORIN 1 • RESUMO: Greimas afirma que há dois mecanismos com que o enunciador instaura no enunciado pessoas, espaços e tempos: a debreagem e a embreagem. Esses conceitos foram apenas esboçados pelo semioticista francês. Este trabalho, depois de explicitar e exemplificar esses dois procedimentos enunciativos, discute-os, para mostrar que, para explicar a utilização dos tempos, das pessoas e dos espaços no texto, é necessário desdobrá-los em dois níveis, o da narração e o do narrado. Examina, em seguida, mais detidamente os mecanismos de debreagem e embreagem actanciais. • PALAVRAS-CHAVE: Enunciação; debreagem; embreagem; pessoa. Agora a música já não a libertava, não a impedia de pensar. Dançava dividi- da, uma parte dela no que fazia, a outra vendo-a fazer. Pepetela 1 Os mecanismos de debreagem e de embreagem Greimas entende o processo de geração do sentido como um percurso gerativo, simulacro metodológico do ato real de produção significante, que vai do mais simples e abstrato (estruturas a quo) até o mais complexo e concreto (estruturas ad quem), por meio de mecanismos de conversão. Esse percurso gerativo mostra os níveis de invariância crescente do sentido e dá a cada um desses níveis uma descrição metalingüística adequada. Nesse percurso, distingue-se a imanência, que diz respeito ao plano de conteúdo, da manifestação, que é a união de um plano de conteúdo com um ou vários planos de expressão. No nível de imanência, há os seguintes patamares: o fundamental, o narrativo e o discursivo. A enunciação é, então, vista, como aliás o tinha feito Benveniste, como instância de mediação, que assegura a discursivização 1 Departamento de Lingüística - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP -05508-900 - São Paulo - SP. Alfa, São Paulo, 39: 23-44, 1995 23

Debreagem e Embreagem.- Fiorin

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A PESSOA DESDOBRADA

José Luiz FIORIN1

• RESUMO: Greimas afirma que há dois mecanismos com que o enunciador instaura no enunciado pessoas, espaços e tempos: a debreagem e a embreagem. Esses conceitos foram apenas esboçados pelo semioticista francês. Este trabalho, depois de explicitar e exemplificar esses dois procedimentos enunciativos, discute-os, para mostrar que, para explicar a utilização dos tempos, das pessoas e dos espaços no texto, é necessário desdobrá-los em dois níveis, o da narração e o do narrado. Examina, em seguida, mais detidamente os mecanismos de debreagem e embreagem actanciais.

• PALAVRAS-CHAVE: Enunciação; debreagem; embreagem; pessoa.

Agora a música já não a libertava, não a impedia de pensar. Dançava dividi­da, uma parte dela no que fazia, a outra vendo-a fazer.

Pepetela

1 Os mecanismos de debreagem e de embreagem

Greimas entende o processo de geração do sentido como um percurso gerativo, simulacro metodológico do ato real de produção significante, que vai do mais simples e abstrato (estruturas a quo) até o mais complexo e concreto (estruturas ad quem), por meio de mecanismos de conversão. Esse percurso gerativo mostra os níveis de invariância crescente do sentido e dá a cada um desses níveis uma descrição metalingüística adequada. Nesse percurso, distingue-se a imanência, que diz respeito ao plano de conteúdo, da manifestação, que é a união de um plano de conteúdo com um ou vários planos de expressão. No nível de imanência, há os seguintes patamares: o fundamental, o narrativo e o discursivo. A enunciação é, então, vista, como aliás já o tinha feito Benveniste, como instância de mediação, que assegura a discursivização

1 Departamento de Lingüística - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP -05508-900 - São Paulo - SP.

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da língua, que permite a passagem da competência à performance, das estruturas semióticas virtuais às estruturas realizadas sob a forma de discurso (Greimas & Courtés, 1979, p.126). A montante dessa instância de mediação estão as estruturas semio-narrativas, "formas que, atualizando-se como operações, constituem a compe­tência semiótica do sujeito da enunciação" (p.127). A jusante aparece o discurso.

Se a enunciação é a instância constitutiva do enunciado, ela é a "instância lingüística logicamente pressuposta pela própria existência do enunciado (que com­porta seus traços e suas marcas)" (p.126). O enunciado, por oposição à enunciação, deve ser concebido como o "estado que dela resulta, independentemente de suas dimensões sintagmáticas" (p.123). Considerando dessa forma enunciação e enuncia­do, este comporta freqüentemente elementos que remetem à instância de enunciação: de um lado, pronomes pessoais, demonstrativos, possessivos, adjetivos e advérbios apreciativos, dêiticos espaciais e temporais, em síntese, elementos cuja eliminação produz os chamados textos enuncivos, isto é, sem nenhuma marca de enunciação; de outro, termos que descrevem a enunciação, enunciados e reportados no enunciado (p.124).

Manar Hamad propõe considerar o conjunto enunciativo que engloba todas as marcas de enunciação disseminadas no texto-objeto como uma totalidade estrutural. Esse processo enunciativo colocado no interior do enunciado não é a enunciação propriamente dita, cujo modo de existência é ser o pressuposto lógico do enunciado, mas é a enunciação enunciada. Teríamos, assim, dois conjuntos no texto-objeto: a enunciação enunciada, que é o conjunto de marcas, identificáveis no texto, que remetem à instância de enunciação; o enunciado enunciado, que é a seqüência enunciada desprovida de marcas de enunciação (para essa distinção, cf. também Courtés, 1989, p.48). Esse processo enunciativo, visto como um microuniverso semântico completo, seria analisado de acordo com o percurso gerativo. Esse processo de enunciação enunciada seria metalingüístico em relação ao processo do enunciado enunciado. Isso significa que uma relação hierárquica se estabelece entre esses dois processos, que dependem de dois sistemas distintos. Hamad coloca a oposição /enunciação enunciada/ vs. /enunciado enunciado/ em paralelo com a oposição /estabelecimento e validação do contrato/ vs. /performance/. Tal contraposição permite ver o enunciado enunciado como uma performance, o que modifica'seu estatuto de mero objeto-valor que se transfere do enunciador para o enunciatário. Se a enunciação enunciada desempenha em relação ao enunciado enunciado o papel que as seqüências contratuais exercem em relação à performance, ela participa do estabelecimento do enunciado enunciado, uma vez que este será desenvolvido de acordo com o contrato enunciativo firmado (Hamad, 1983, p.35-46).

Catherine Kerbrat-Orecchioni (1980, p.30-1) fala de enunciação em sentido estrito e em sentido lato. Aproveitaremos sua sugestão, alterando, entretanto, o que se considera sentido estrito e sentido lato. Serão considerados fatos enunciativos em senüdoJatp todos os traços lingüísticos da presença do locutor no seio de seu enunciado, mostrando o que Benveniste (1966, p.258-65) chamava a subjetividade na

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linguagem. É o estudo desses traços enunciativos que fazem Orecchioni (1980) e Fuchs (1983, p. 15-33). Em sentido estrito, os fatos enunciativos são as projeções da enun­ciação (pessoa, espaço e tempo) no enunciado, recobrindo o que Benveniste chamava o "aparelho formal da enunciação" (1974, p.79-88).

A enunciação, tanto num sentido como no outro, é a enunciação enunciada, isto é, marcas e traços que a enunciação propriamente dita deixou no enunciado. Esta é da ordem do inefável: só quando ela se enuncia pode ser apreendida. Assim, como diz Coquet, "a enunciação é sempre, por definição, enunciação enunciada" (1983, p.14).

Depois de distinguir o que é enunciação enunciada e enunciado enunciado, é preciso definir o que é enunciação reportada. Ela "corresponde a um simulacro - no interior do discurso - da relação de comunicação entre enunciãdõfe~enunciatário" (Courtés, 1989, p.49). A enunciação enunciada é a maneira pela qual o enunciador impõe ao enunciatário um ponto de vista sobre os acontecimentos narrados. A enunciação reportada cria diferentes efeitos de sentido, como de objetividade, de subjetividade, de realidade, de que falaremos mais adiante.

Vejamos um exemplo de enunciação reportada:

Uma semana depois, Virgília perguntou a Lobo Neves a sorrir, quando ele seria ministro:

- Pela minha vontade, já; pelas dos outros, daqui a u m ano. Virgília replicou:

- Promete que a lgum dia me fará baronesa?

- Marquesa, porque eu serei marquês.

Desde então fiquei perdido. Virgília comparou a águia e o pavão, e elegeu a águia, deixando o pavão com o seu espanto, o seu despeito e três ou quatro beijos que ele dera. Talvez cinco beijos: mas dez que fossem não queria dizer coisa alguma. O lábio do homem não é como a pata do cavalo de Átila, que esterilizava o solo em que batia; é justamente ao contrário. (MA, I , p.561)

Esse enunciado é um simulacro da enunciação. Os actantes quéíalam, o espaço e o tempo simulam os elementos correspondentes da enunciação. Com efeito, o narrador dá a palavra a outrem, que passa a dizer eu, o fato passa-se num momento anterior ao momento da enunciação, mas no texto há um conjunto de reflexões que parecem feitas no instante do ato enunciativo.

A enunciação deve ser analisada ainda como a instância de instauração do sujeito. Benveniste, em seu célebre artigo "Da subjetividade na linguagem", diz que a propriedade que possibilita a comunicação e, portanto, a atualização da linguagem é que é "na e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito, uma vez que, na verdade, só a linguagem funda, na sua realidade, que é a do ser, o conceito de ego" (1966, p.259). A subjetividade é a "capacidade de o locutor pôr-se como sujeito" e, por conseguinte, a subjetividade estabelecida na fenomenologia ou na psicologia é apenas a emergência no ser de uma propriedade fundamental da linguagem: "é 'ego' quem diz 'ego'. Encontramos aqui o fundamento da 'subjetividade', que se determina pelo estatuto lingüístico da 'pessoa'" (p.259-60). O eu existe por oposição ao tu e é a condição do diálogo que é constitutiva da pessoa, porque ela se constrói

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na reversibilidade dos papéis eu/tu. "A linguagem só é possível porque cada locutor se coloca como sujeito, remetendo a si mesmo como eu em seu discurso. Dessa forma, eu estabelece uma outra pessoa, aquela que, completamente exterior a mim, torna-se meu eco ao qual eu digo tu e que me diz tu . " A categoria de pessoa é essencial para que a linguagem se torne discurso. Assim, o eu não se refere nem a um indivíduo nem a um conceito, ele refere-se a algo exclusivamente lingüístico, ou seja, ao "ato de discurso individual em que eu é pronunciado e designa seu locutor" (1966, p.261-2). O fundamento da subjetividade está no exercício da língua, pois seu único testemunho objetivo é o fato de o eu enunciar-se (p.261-2).2

Como a pessoa enuncia num dado espaço e num determinado tempo, todo espaço e todo tempo organizam-se em torno do "sujeito", tomado como ponto de referência. Assim, espaço e tempo estão na dependência do eu, que neles se enuncia. O agui é o espaço do eu e o presente é o tempo em que coincidem o momento do evento descrito e o ato de enunciação que o descreve. A partir desses dois elementos, organizam-se todas as relações espaciais e temporais.

Porque a enunciação é o lugar de instauração do sujeito e este é o ponto de referência das relações espaço-temporais, ela é o lugar do ego, hic etnunc. O conjunto de procedimentos destinados a constituir o discurso como um espaço e um tempo povoados de atores diferentes do enunciador constitui para Greimas a competência discursiva em sentido estrito.

Os mecanismos de instauração de pessoas, espaços e tempos no enunciado são dois: a debreagem e a embreagem. 3 Debreagem é a operação em que a instância de enunciação disjunge de si e projeta para fora de si, no momento da discursivização, certos termos ligados a sua estrutura de base com vistas à constituição dos elementos fundadores do enunciado, isto é, pessoa, espaço e tempo (Greimas & Courtés, 1979, p.79). Na medida em que, como mostra Benveniste, a constituição da categoria de pessoa é essencial para a constituição do discurso e o eu está inserido num tempo e num espaço, a debreagem é um elemento fundamental do ato constitutivo do enun­ciado e, uma vez que a enunciação é uma instância lingüística pressuposta pelo enunciado, contribui também para articular a própria instância da enunciação. Assim, a discursivização é o mecanismo criador da pessoa, do espaço e do tempo da enunciação e, ao mesmo tempo, da representação actancial, espacial e temporal do enunciado (p.79).

2 Essas idéias de Benveniste já foram acusadas de idealistas e psicologizantes. No entanto, parece-nos que tais

acusações carecera de fundamento. Não pode haver psicologismo n u m sujeito fundado na l inguagem; só é idealista

u m autor que concede à l inguagem autonomia em relação à v ida material, o que não acontece com Benveniste.

A o contrário, talvez com uma certa má vontade, pudesse ser imputada a ele a et iqueta bakht in iena do "objet iv ismo

abstrato" (1979, p . 55-75). Sobre a questão do sujeito, cf. também Krysinski, 1987, p .181.

3 Os termos advêm da tradução francesa do termo shifteis, ut i l izado por Jakobson em seu art igo "Les embrayeurs,

les catégories verbales et le verbe russe" (1963, p. 176-96). O lingüista russo mostrava nesse art igo que a significação

geral de u m embreante não pode ser definida fora de uma referência à mensagem. Greimas cr iou os verbos e os

substantivos de ação e deu a eles u m sentido part icular (ver Parret, 1988, p . 143-73).

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Uma vez que a enunciação é a instância da pessoa, do espaço e do tempo, há uma debreagem actancial, uma debreagem espacial e uma debreagem temporal. A debreagem consiste, pois, num primeiro momento, em disjungir do sujeito, do espaço e do tempo da enunciação e em projetar no enunciado um não eu, um não aqui e u m não agora. Como nenhum eu, aqui ou agora inscritos no enunciado são realmente a pessoa, o espaço e o tempo da enunciação, uma vez que estes são sempre pressu­postos, a projeção da pessoa, do espaço e do tempo da enunciação no enunciado é também uma debreagem (p.79).

Há, pois, dois tipos bem distintos de debreagem: a enunciativa e a enunciva. 4

A primeira é aquela em que se instalam no enunciado os actantes da enunciação {eu/tu), o espaço da enunciação (aqui) e o tempo da enunciação (agora), ou seja, aquela em que o não eu, o não aqui e o não agora são enunciados como eu, aqui, agora (p.80).

Resolvo-me a contar, depois de muita hesitação, casos passados há dez anos - e, antes de

começar, digo os motivos porque silenciei e porque me decido. (MC, p.3)

Nesse caso, há uma instalação no enunciado do eu enunciador, que utiliza o tempo da enunciação (o nunc). Trata-se, nesse caso, de debreagens actancial e temporal enunciativas.

Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faço-o eu, e a ciência mo

agradecerá. Se o leitor não é dado à contemplação destes fenômenos mentais, pode saltar o

capítulo, vá direto à narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que é interessante

saber o que se passou na minha cabeça durante uns vinte ou tr inta minutos. (MA, I , p.520)

T e m o s , n e s s e c a s o , d e b r e a g e m t e m p o r a l e n u n c i a t i v a , b e m c o m o u m a d e b r e a ­

g e m a c t a n c i a l e n u n c i a t i v a e m q u e s e i n s t a l a m o s d o i s a c t a n t e s d a enunc i a ção , o eu

e o tu.

Aqui? mas teus filhos estão ali. (CCI)

4 Essa distinção entre enunciat ivo e enuncivo é calcada sobre a distinção entre discurso e história operada por

Benveniste (1966, p.238-45). Lembra ainda a distinção feita por Culiol i (1973) dos modos de enunciação em que

há referências que se efetuam e m relação à situação de enunciação e aqueles e m que as referências se fazem e m

relação ao enunciado; a diferença feita por Danon-Boileau (1982, p.95-8) entre referências por anáfora e referências

por dêixis; a d icotomia efetuada por Harald We inr i ch (1973) entre mundo narrado e m u n d o comentado. É

interessante notar que, a part ir do momento em que se nota que esses são dois mecanismos de projeção da

enunciação no enunciado, a maior parte das crit icas feitas à t ipologia de Benveniste, como as célebres objeções

feitas por S imonin-Grumbach (1983, p.31-69), deixa de ter validade, uma vez que críticos, como, por exemplo, a

ac ima mencionada, baseiam-se fundamentalmente no fato de que há textos construídos com combinações de

pessoas, espaços e tempos excluídas pela definição proposta por Benveniste. Os trabalhos apontados acima

mos t ram que esses dois elementos não são textos, mas mecanismos produtores de textos. Por conseguinte,

podemos concluir que eles const i tuem modos de enunciação dist intos que se comb inam de diversas maneiras

para produzir uma gama variada de textos.

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Nesse caso, temos uma debreagem espacial enunciativa {aqui/ali) e, como se instala um tu no enunciado, também uma debreagem actancial enunciativa.

Na debreagem espacial enunciativa, é preciso levar em conta que todo espaço ordenado em função do aguí é um espaço enunciativo. Assim, o lá que se contrapõe ao aguí é enunciativo. É o que ocorre na "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias:

Minha terra tem palmeiras, Onde canta o sabiá, As aves que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. (...)

Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar - sozinho à noite -Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o sabiá. (...). (GD, p.11-2)

Da mesma forma, na debreagem temporal, são enunciativos os tempos ordena­dos em relação ao agora da enunciação. Considerando-se o momento da enunciação um tempo zero e aplicando-se a ele a categoria topológica concomitância/não concomitância (anterioridade/posterioridade), obtém-se o conjunto dos tempos enun­ciativos. Observe-se que, no texto de Machado de Assis: relatou é um tempo anterior ao agora; agradecerá, posterior.

A debreagem enunciva é aquela em que se instauram no enunciado os actantes do enunciado (ele), o espaço do enunciado (algures) e o tempo do enunciado (então). Cabe lembrar que o algures é um ponto instalado no enunciado; da mesma forma, o então é u m marco temporal inscrito no enunciado, que representa u m tempo zero, a que se aplica a categoria topológica concomitância vs. não concomitância.

Rubião fitava a enseada - eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta. (MA, I, p.643)

O texto principia com uma debreagem actancial enunciva, quando nele se estabelece o actante do enunciado, Rubião. O verbo fitai, no pretérito imperfeito do indicativo, indica uma ação concomitante em relação a um marco temporal pretérito instituído no texto (eram oito horas da manhã). Como o tempo começa a ordenar-se em relação a uma demarcação constituída no texto, a debreagem temporal é enunciva. Aliás, o visse que vem a seguir está relacionado não a um agora, mas a um naquele momento, o que corrobora a enuncividade. O espaço estabelecido no texto não é o aqui da enunciação, é um ponto marcado no texto, á janela de uma grande casa de Botafogo.

A debreagem enunciativa e a enunciva criam, em princípio, dois grandes efeitos de sentido: de subjetividade e de objetividade. Com efeito, a instalação dos simulacros

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do ego-hic-nunc enunciativos, com suas apreciações dos fatos, constrói u m efeito de subjetividade. Já a eliminação das marcas de enunciação do texto, ou seja, da enunciação enunciada, fazendo que o discurso se construa apenas como enunciado enunciado, produz efeitos de sentido de objetividade. Como o ideal de ciência que se constitui a partir do positivismo é a objetividade, o discurso científico tem como uma de suas regras constitutivas a eliminação de marcas enunciativas, ou seja, aquilo a que se aspira no discurso científico é construir um discurso só com enunciados.

Há também debreagens internas, freqüentes no discurso literário e também na conversação ordinária (Greimas & Courtés, 1979, p.80). Trata-se do fato de que u m actante já debreado, seja ele da enunciação ou do enunciado, se torne instância enunciativa, que opera, portanto, uma segunda debreagem, que pode ser enunciativa ou enunciva. É assim, por exemplo, que se constitui um diálogo: com debreagens internas, em que há mais de uma instância de tomada da palavra. Essas instâncias são hierarquicamente subordinadas umas às outras: o eu que fala em discurso direto é dominado por um eu narrador que, por sua vez, depende de um eu pressuposto pelo enunciado. Em virtude dessa cadeia de subordinação, diz-se que o discurso direto é uma debreagem de 2 a grau. Seria de 3 a , se o sujeito debreado em 2° grau fizesse outra debreagem. Embora esse processo possa ser teoricamente infinito, é quase impossível, por razões práticas, como a limitação da memória, que ele ultrapasse o 3 a grau e é muito difícil que vá além do 2 a .

Passemos agora à explicitação do conceito de embreagem.

Ao contrário da debreagem, que é a expulsão fora da instância de enunciação da pessoa, do espaço e do tempo do enunciado, a embreagem é "o efeito de retomo à enunciação", produzido pela neutralização das categorias de pessoa e/ou espaço e/ou tempo, assim como pela denegação da instância do enunciado.

Como a embreagem concerne às três categorias da enunciação, temos, da mesma forma que no caso da debreagem, embreagem actancial, embreagem espacial e embreagem temporal.

A embreagem actancial diz respeito à neutralização na categoria de pessoa. Toda embreagem pressupõe uma debreagem anterior. Quando o presidente diz "O presidente da República julga que o Congresso Nacional deve estar afinado com o plano de estabilização econômica", formalmente temos uma debreagem enunciva (um ele). No entanto, esse eie significa eu. Assim, uma debreagem enunciativa (instalação de um eu) precede à embreagem, a saber, a neutralização da oposição categórica eu/ele em benefício do segundo membro do par; o que denega o enunciado. Denega justamente porque o enunciado é afirmado com uma debreagem prévia (ver todas as questões relativas à embreagem em Greimas & Courtés, 1979, p.119-21).5 Negar o enunciado estabelecido é voltar à instância que o precede e é pressuposta por ele. Por conseguinte, obtém-se na embreagem um efeito de identificação entre sujeito do

5 A embreagem aproxima-se do que a retórica clássica chamava enálage, isto é, a possibilidade de usar formas lingüísticas com valor deslocado em relação a seu valor usual (Lausberg. 1966; 1976).

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enunciado e sujeito da enunciação, tempo do enunciado e tempo da enunciação, espaço do enunciado e espaço da enunciação.

Vejamos mais um exemplo de debreagem actancial em que o tu é substituído por um ele:

Disto resultou que o curador de cobra quase afinou a canela de tanto levar e trazer recado. Sua caixa de peçonha andava de um lado a outro como o ventão dos agostos. E o caso ganhou substância, foi tão falado e refalado, que Juju Bezerra, da intimidade de Caetano de Melo, veio ao Sobradinho em missão de harmonia:

- Que é isso, amigo Ponciano? Que cobra mordeu o coronel? (CL, p.122)

O vocativo amigo Ponciano é uma debreagem actancial enunciativa, pois introduz um tu no enunciado. Quando ele d i z " Que cobra mordeu o coronel?", o coronel não é um ele, mas um tu, em vista da neutralização dos dois termos, o enunciativo e o enuncivo.

Você lá, que é que está fazendo no meu quintal?

A embreagem espacial concerne a neutralizações na categoria de espaço. Lá está, nessa frase, empregado com o valor de aí, espaço do enunciatário. Esse uso estabelece uma distância entre os actantes da enunciação, mostrando que a pessoa a quem o enunciador se dirige foi colocada fora do espaço da cena enunciativa.

A embreagem temporal diz respeito a neutralizações na categoria de tempo. Tomemos como exemplo o poema Profundamente, de Manuel Bandeira:

Quando ontem adormeci Na noite de São João Havia alegria e rumor Estrondo de bombas luzes de Bengala Vozes cantigas e risos Ao pé das fogueiras acesas

No meio da noite despertei Não ouvi mais vozes nem risos Apenas balões Passavam errantes Silenciosamente Apenas de vez em quando O ruído de um bonde Cortava o silêncio Como um túnel. Onde estavam os que há pouco Dançavam Cantavam Eriam Ao pé das fogueiras acesas?

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- Estavam todos dormindo Estavam todos deitados Dormindo Profundamente

Não pude ver o fim da festa de São João Quando eu tinha seis anos Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo Minha avó Meu avô Totônio Rodrigues Tomásia Rosa Onde estão todos eles?

- Estão todos dormindo Estão todos deitados Dormindo Profundamente. (MB, p.217-8)

Quando chegamos à segunda parte, compreendemos que ontem é na véspera do dia de São João do ano em que o poeta tinha seis anos (naquele tempo). Essa neutralização entre o tempo enunciativo ontem e o tempo enuncivo na véspera, em benefício do primeiro, é um recurso para presentificar o passado, reviver o que aconteceu naquela noite de São João, em que o poeta adormece e vive, no tempo antes, rumor e alegria e, no tempo depois, silêncio. Nessa noite, à vigília do poeta corresponde o sono profundo dos que tinham dançado, cantado e rido ao pé das fogueiras acesas.

Ao debrear enuncivamente a véspera da festa de São João, no início da segunda parte, o poeta afasta o que revivera, transformando essa revivescência em lembrança. Nos termos de Benveniste, a primeira parte deixou de ser discurso, ou seja, vida e passou a ser história. Há então uma debreagem enunciativa e volta-se para a vida presente. À vigília de outrora corresponde a vida de hoje; ao silêncio de antanho corresponde a não vida hodierna. O poeta está vivo e só, pois todos os que ele amava estão mortos e enterrados (dormindo e deitados).

A embreagem temporal resgatou o tempo das brumas da memória e recolocou-o lá novamente.

Dizem Greimas & Courtés que a embreagem, ao mesmo tempo, apresenta-se como um desejo de alcançar a instância da enunciação e

como o fracasso, como a impossibilidade de atingi-la. As duas "referências" com cuja ajuda se procura sair do universo fechado da linguagem, prendê-la a uma exterioridade outra - a referência

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ao sujeito (à instância de enunciação) e a referência ao objeto (ao mundo que cerca o homem enquanto referente) - no f im das contas, só chegam a produzir ilusões: a ilusão referencial e a ilusão enunciativa. (1979, p.120)

Os exemplos dados acima são de embreagem homocategóríca, que ocorre "quando a debreagem e a embreagem que a segue afetam a mesma categoria, a de pessoa, a do espaço ou a do tempo" (Greimas & Courtés, 1979, p.121). A embreagem em que as categorias presentes na debreagem e na embreagem subseqüente são distintas é chamada embreagem heterocategórica:

Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações nasci. (Jorge de Sena, Poesias III)

A verdadeira pátria do homem é a infância. (Scorza)

... o pintor transferiu-se para o exílio voluntário. (...) "Eu sou o momento" , garantia então, quando realizava u m Auto-retrato em Milão... (apud Lúcia Teixeira, T2)

No primeiro caso, instalado o eu na debreagem, o predicativo deveria conter um termo com o traço /pessoa/. No entanto, neutralizam-se pessoa e lugar, em proveito do último. No segundo caso, a debreagem determinaria um predicativo com termo designativo de lugar. Entretanto, neutralizam-se lugar e tempo em proveito do último. No terceiro, a neutralização dá-se entre pessoa e tempo. Assim pessoa e lugar confundem-se, tempo e espaço enleiam-se, pessoa e tempo misturam-se quase que numa percepção sinestésica do mundo.

Um excelente exemplo de embreagem heterocategórica é o uso, muito freqüente em português, de uma medida temporal para indicar uma medida espacial.

Fica a três horas de carro daqui.

É preciso ainda distinguir entre embreagem enunciativa e enunciva. Aquela ocorre quando o termo debreante é tanto enunciativo como enuncivo, mas o embrean-te é enunciativo. Assim, por exemplo, num outdoor, em Minas Gerais, a frase "Em Minas, o futuro é agora" debreia a posterioridade enunciativa e nega-a com a concomitância enunciativa, em benefício da última. A embreagem é enunciativa porque é um elemento do sistema enunciativo que resta no enunciado.

Chama-se embreagem enunciva aquela em que o termo debreante pode ser enunciativo ou enuncivo, mas o termo embreante é enuncivo:

Encurtando, aconselhei o major a fazer a ceata com a menina de suas paixões em recinto de conhaque e beberetes:

- Como no Taco de Ouro, seu compadre. Para esses preparativos não t em como o Taco de Ouro.

Que procurasse o Machadinho, u m de costeleta escorrida até perto do queixai, que logo aparecia mesa bem encravada no escurinho.

- Nem o major precisa abrir a boca. Machadinho vendo a cara pintada da peça, sabe no imediato que é negócio sem-vergonhista. (CL, p.173)

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A primeira fala do narrador e a debreagem interna de 2 a grau indicam que a pessoa com quem o coronel falava era o major. Ocorre, portanto, uma debreagem enunciativa. Quando o coronel diz o major, temos um ele (termo enuncivo) a ocupar o lugar do tu. Portanto, trata-se de uma embreagem enunciva.

A embreagem pode ainda classificar-se em externa, quando produzida por uma instância enunciativa pressuposta pelo enunciado, e interna, quando feita por uma ins­tância enunciativa já inscrita no enunciado:

Escorregava do rosto de Juju Bezerra admiração pela maestria deste Ponciano Azeredo Furtado no manobrar gente da ribalta. Ponderou que isso é que era falar certo, mostrar o dedo da sabença:

- É o que eu digo. Não há como o coronel para uma demanda no Foro ou uma prática de safadeza. (CL, p.173)

A partir de uma instância pressuposta, faz-se a debreagem actancial enunciativa eu e, em seguida, efetua-se a embreagem enunciva, neutralizando-se I a e 3 a pessoas, em proveito da última. Assim, pela maestria deste Ponciano de Azeredo Furtado significa pela minha maestria. Trata-se, nesse caso, de uma embreagem externa. No segundo caso, em que o coronel significa tu, a embreagem é efetuada por uma instância do enunciado (Juju Bezerra) a quem foi delegada a palavra. Temos aqui o exemplo de uma embreagem interna.

A embreagem, ao contrário da debreagem, que referencializa as instâncias enunciativas e enuncivas a partir de que o enunciado opera, desreferencializa o enunciado que ela afeta (Greimas & Courtés, 1979, p.121). Observe-se o último exemplo dado acima. A embreagem faz que o coronel, que Juju Bezerra admirava, oscile entre a pessoa com quem se fala e a pessoa de quem se fala. É como se Juju não falasse com o coronel, mas com outros sobre o coronel. Essa desreferencialização faz que a admiração de Juju Bezerra se eleve ao mais alto grau, se exalce.

Os mecanismos de debreagem e de embreagem não pertencem a esta ou àquela língua, a esta ou àquela linguagem (a verbal, por exemplo), mas à linguagem pura e simplesmente. Da mesma forma, todas as línguas e todas as linguagens possuem as categorias de pessoa, espaço e tempo, que, no entanto, podem expressar-se diferen­temente de uma língua para outra, de uma linguagem para outra.

No filme La nave va, de Fellini, a personagem que funciona como sujeito observador, ao piscar para a platéia, efetua uma debreagem actancial enunciativa, pois instaura o enunciatário no enunciado. Da mesma forma, quando Tom Jones, no filme do mesmo nome (Inglaterra, 1963, direção de Tony Richardson), joga o casaco na câmera para que o espectador não veja os seios da mulher que ele acabara de salvar das mãos de um soldado, ele desreferencializa o enunciado (é filme mesmo...), pro­duzindo uma embreagem actancial, pois a debreagem primeira (Tom Jones do enun­ciado) passa a embreagem (Tom Jones instaura-se como eu pela constituição do tu).

No quadro A catedral de Ruão, de Claude Monet (1894), busca-se não o objeto, que permanece sempre imutável, mas a cambiante impressão que ele causa aos olhos

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e à alma do artista. Assim, não há nesse quadro senão o esboço de um enunciado enunciado, enquanto há uma forte enunciação enunciada, uma vez que todos os traços são apreciações que remetem à instância enunciativa. O artista esforça-se por obter a instantaneidade (o nunc): quando o efeito luminoso muda, o quadro será outro. Assim, temos nele uma debreagem temporal enunciativa, em que se procura revelar a concomitância em relação ao momento da enunciação.

Na tela A condição humana, de Magritte, quando olhamos, vemos uma janela enquadrada por cortinas, pela qual se vê a paisagem exterior. Quando baixamos os olhos, percebemos que se trata de uma tela, pois aparecem as pernas do cavalete. Trata-se de um simulacro do ato enunciativo e de suas ilusões: a pintura mostra que o pintor pintou x, y, z. Temos, nesse caso, uma enunciação reportada.

Esses exemplos mostram que aquilo que se refere à instância da enunciação (debreagem, embreagem, enunciação enunciada, enunciação reportada, enunciado enunciado, enunciativo, enuncivo, ego, hic et nunc) constitui um conjunto de universais da linguagem. O que é particular a cada língua ou a cada tipo de linguagem são as maneiras de expressar esses universais.

Todos esses mecanismos produzem efeitos de sentido no discurso. Não é indiferente o narrador projetar-se no enunciado ou alhear-se dele; simular uma concomitância dos fatos narrados com o momento da enunciação ou apresentá-los como anteriores ou posteriores a ele; presentificar o pretérito; enunciar um eu sob a forma de um ele etc.

2 Enunciando o problema do conceito greimasiano de debreagem e de embreagem

Os conceitos de embreagem e de debreagem concernem, na teoria greimasiana, apenas à instância da enunciação. Greimas & Courtés, ao esboçar esses conceitos, partem da clássica distinção entre narrativas em I a e 3 a pessoas e consideram que há debreagem enunciativa, se o narrador se projetar no enunciado, e enunciva, quando essa projeção não se dá. Por conseguinte, esses mecanismos não servem para explicar as pessoas, os tempos e os espaços do enunciado enunciado, pois, num mesmo discurso, coexistem actantes da enunciação e do enunciado, bem como tempos e espaços enunciativos e enuncivos. Cabe lembrar que todos os tempos, as pessoas e os espaços do discurso organizam-se, direta ou indiretamente, em razão da instância enunciativa. Esse fato leva-nos a postular, para as categorias de espaço, de tempo e de pessoa, dois tipos diferentes de debreagem: uma debreagem da enunciação e uma do enunciado. Aquela cria uma enunciação enunciada, ao projetar no enunciado os actantes, o tempo e o espaço da enunciação, e um enunciado enunciado ou gera apenas um enunciado enunciado, deixando ausente do discurso a enunciação enun­ciada. A debreagem do enunciado estabelece actantes, espaço e tempo da enunciação

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no enunciado enunciado, produzindo um efeito de identidade dessas três categorias na enunciação e no enunciado, ou, então, constitui uma não identidade entre elas. Esses dois tipos de debreagem não têm o mesmo estatuto, pois a do enunciado está subordinada à da enunciação, assim como o enunciado enunciado é hierarquicamente inferior à enunciação enunciada, já que, como mostra Manar Hamad (1983, p.35-46), esta participa do estabelecimento daquele. Com efeito, a debreagem que chamamos da enunciação engendra a enunciação enunciada e o enunciado enunciado. Dentro deste, opera-se a constituição dos efeitos de identidade e de diferença em relação àquela. Para aclarar a necessidade dessa distinção, analisemos mais detidamente o problema da debreagem e da embreagem actanciais.

3 Debreagem e embreagem actanciais

A postulação de dois níveis de debreagem implica o alargamento desse conceito greimasiano. No caso da pessoa, isso se deve ao fato de que não só a voz que enuncia está ligada à instância da enunciação, mas também as pessoas que designam os actantes da narrativa são indicadas em relação ao eu do narrador. Como há u m nível da narração (enunciação) e um do narrado (enunciado), devem-se distinguir as pessoas da enunciação e do enunciado.

Tradicionalmente, costuma-se dizer que há duas formas de narrar: em primeira ou em terceira pessoa. Essa denominação é inadequada, pois a narração é sempre em primeira pessoa e, por conseguinte, "a escolha do romancista não é entre duas formas gramaticais, mas entre duas atitudes narrativas, de que as formas gramaticais são apenas conseqüência: fazer contar a história por uma de suas 'personagens' ou por um narrador estranho a ela" (Genette, 1972, p.252). Isso significa que a presença da primeira pessoa numa narrativa pode servir seja para designar o narrador como tal (por exemplo, em Os Lusíadas, o narrador designa-se como tal, dizendo: Cantando espalharei por toda parte,/ Se a tanto me ajudar o engenho e a arte. I , 2, p.7-8), seja para dizer que há uma identidade entre o narrador e um dos actantes da narrativa (por exemplo, Brás Cubas: Dito isto, expirei). O termo "narrativa em primeira pessoa" concerne só ao segundo caso. Como diz Genette, "essa dissimetria só confirma sua impropriedade" (1972, p.252). O que é importante ressaltar é que, por definição, só se pode narrar em primeira pessoa, já que é sempre um eu que fala.

Genette afirmava que a ausência do narrador é absoluta, mas a presença tem gradações, já que o narrador pode ser o herói da narrativa ou ter nela um papel secundário (1972, p.253). Em obra posterior, corrige essa posição, mostrando que também a ausência tem gradações (1983, p.71). Com efeito, basta pensarmos nos romances de que o narrador está totalmente ausente, deixando que os fatos se narrem por si mesmos, e aqueles em que um narrador intruso, mesmo sem dizer eu, comenta os acontecimentos, sublinha sua importância etc.

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Por outro lado, é preciso distinguir, quando o eu designa uma personagem, dois etr, que Spitzer já denominava o eu narrante e o eu narrado, pois aquele tem um estatuto diferente deste. Em Dom Casmurro, aliás, essas duas instâncias têm nomes diferentes: Dom Casmurro é o actante da enunciação, Bentinho, o do enunciado. A narração tem a finalidade de unir esses dois eu:

O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. (MA, I, p.810)

O primeiro era "recluso e calado", bem diferente do segundo, que era apaixonado. Barthes diz que "no romance, habitualmente, o eu é testemunha, o eie é que

é ator". Em outras palavras, é necessário diferençar um eu narrador e um eu participante dos acontecimentos: um é o eu do agora; o outro, o do então. Observe-se o seguinte texto:

Eram felizes, e foi o marido que primeiro arrolou as qualidades novas de Tristão. A mulher deixou-se ir no mesmo serviço, e eu tive de os ouvir com aquela complacência, que é uma qualidade minha, e não das novas. Quase que a trouxe da escola, se não foi do berço. Contava minha mãe que eu raro chorava por mama; apenas fazia uma cara feia e implorativa. Na escola não briguei com ninguém, ouvia o mestre, ouvia os companheiros, e se alguma vez estes eram extremados e discutiam, eu fazia da minha alma u m compasso, que abria as pontas aos dous extremos. Eles acabavam esmunando-se e amando-me.

Não quero elogiar-me... Onde estava eu? A h ! no ponto em que os dous velhos diz iam das qualidades do moço. (MA, I , p.1151)

O narrador faz um elogio a si mesmo. Depois, instala um eu ator numa anterioridade. Com uma preterição {Não quero elogiar-me...), ele volta a retomar o eu da narração, que fora substituído pelo eu ator.

Se temos que distinguir um narrador "neutro" de um "intruso", personagens identificadas ou não com o narrador, um eu narrante e um eu narrado, temos, então, quatro tipos de debreagem actancial:

a) debreagem enunciativa da enunciação: quando os actantes da enunciação estão projetados no enunciado, quer no caso em que aparece um narrador "intruso" considerado de terceira pessoa, mas que diz eu, quer quando há um narrador dito de primeira pessoa (evidentemente, naquilo que diz respeito à enunciação enunciada e não ao enunciado enunciado).

No primeiro caso, temos o narrador de Quincas Borba, que se enuncia no enunciado e aí instala um narratário, embora não participe da ação.

Não, senhora minha, ainda não acabou este dia tão comprido; não sabemos o que se passou entre Sofia e Palha, depois que todos se foram embora. Pode ser até que acheis aqui melhor sabor que no caso do enforcado.

Tende paciência; é vir agora outra vez a Santa Tereza. (MA, I , p.681)

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No segundo, temos, por exemplo, o narrador de Dom Casmurro.

Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior; é outra coisa. A certos respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas é também exato que perdeu mui to espinho que a fez molesta, e, de memória, conservo alguma recordação doce e feiticeira. Em verdade, pouco apareço e menos falo. Distrações raras. O mais do tempo é gasto em hortar, jardinar e ler; como bem e não durmo mal. (MA, I , p.810)

Nesse caso, o presente da narração mostra que se trata da enunciação enuncia­da. Por conseguinte, aqui o eu é o eu narrador.

b) debreagem enunciva da enunciação: quando os actantes da enunciação não estiverem projetados no enunciado, como no caso, por exemplo, de O Cortiço, de Aluísio de Azevedo.

c) debreagem enunciativa do enunciado: quando o narrador se identifica com uma das personagens, naquilo que concerne ao enunciado enunciado, ou seja, ao eu actante da narrativa. Por exemplo, quando se narram as peripécias de Bentinho, em Dom Casmurro. Observe-se que os fatos narrados são anteriores ao tempo da narração:

Ia entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e escondi-me atrás da porta. A casa era a da Rua de Mata-cavalos, o mês novembro, o ano é que é u m tanto remoto. . . ; o ano era de 1857. (MA, I , p.811)

d) debreagem enunciva do enunciado: quando se faz referência a qualquer actante da narrativa que não se identifica com o narrador, seja em romances ditos em primeira pessoa, como, por exemplo, em Dom Casmurro:

Eis aqui outro seminarista. Chamava-se Ezequiel de Souza Escobar. Era u m rapaz esbelto, de olhos claros, u m pouco fugitivos, como as mãos, como os pés, como a fala, como tudo. Quem não estivesse acostumado com ele podia acaso sentir-se mal, não sabendo por onde lhe pegasse. (MA, I , p.868)

seja em textos ditos em 3 a pessoa, como em O senhor embaixador, de Érico Veríssimo:

Entre as muitas preocupações que disputavam a atenção de Clare Ogilvy naquela manhã de abril, a maior era a de fazer que o novo embaixador chegasse à Casa Branca na hora marcada. Miche l telefonara-lhe havia pouco, comunicando que seu patrão desejava deixar a residência às dez e meia em ponto. (SE, p.40)

É preciso lembrar mais uma vez que a debreagem da enunciação e a do enunciado não têm o mesmo estatuto, pois esta é subordinada àquela. De fato, a debreagem da enunciação engendra a enunciação enunciada e o enunciado enuncia­do e, então, no enunciado enunciado instaurado, operam as debreagens do enunciado.

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Estão instalados no enunciado os actantes da enunciação e do enunciado. Tudo está claro. O narrador é sempre um eu, que se enuncia ou não; as personagens são o eu, o tu ou o ele. No entanto, nem tudo é tão simples. As relações entre as pessoas neutralizam-se, são flutuantes e intercambiáveis. Isso cria o que Genette (1972, p.254) chamaria uma "vertigem pronominal", ligada à idéia de que a "personalidade" é mais complexa do que parece à primeira vista. Nessa vertigem, os pontos de demarcação oferecidos pelo sistema da língua tomam-se pouco nítidos, vagos, incertos. Saímos do domínio da língua e entramos no do discurso. A embreagem toma o lugar da debreagem.

Além da neutralização actancial num nível microtextual, podem-se neutralizar os actantes ou denegar o enunciado num nível macrotextual. Essas neutralizações e denegações dizem respeito à relação entre a instância da narração e a do narrado. Por isso, o que está em questão não são pontos localizados do texto, mas a globalidade do discurso. Nesse caso, teríamos como que macroembreagens. Há duas formas de realizá-las: o narrador apresentar-se sob a forma de uma pessoa com o valor de outra ou, então, mudar os actantes de nível narrativo. No primeiro caso, se elas concernem ao narrador em sua relação com o que é relatado, há três possibilidades de embrea­gens.

1 A primeira possibilidade é a de um ele que significa eu. Nesse caso, o narrador, que se identificaria com um actante da narrativa, não se enuncia como eu, mas usa a terceira pessoa para referir-se a si mesmo, como se fosse apenas um actante da narrativa.

O caso mais célebre de uma obra em que o ele é usado com o valor de eu é o De Bello Gallico, de César. Ao longo de toda a obra, em que se narra a guerra contra os gauleses, César não se diz eu, mas César. Butor mostra o alcance político extraordinário dessa embreagem (1964, p.69).

L. Domitio, Ap . Cláudio consulibus discendens ab hibernis Caesar i n Ital iam, ut quotannis facere conseuerat, legatis imperat quos legionibus praefecerat, utí, quam plurimas possent, hieme naves aedificandas veteresque reficiendas curarent.(V, l ) 6

2 A segunda é a de um eu que significa ele. Ela ocorre, quando o actante que vem dizendo eu passa a ser tratado por ele no mesmo nível narrativo. É o caso de Esaú e Jacó, de Machado de Assis. Na advertência, o narrador primeiro explica que, "quando o Conselheiro Aires faleceu, acharam-se-lhe na secretária sete cadernos manuscritos, rijamente encadernados em papelão"; que o sétimo trazia o título "Último". Em seguida, diz que ele não fazia parte do memorial, "diário que o

6 Sendo cônsules Lúcio Domício e Ápio Cláudio, César, part indo dos quartéis de inverno para a Itália, como

costumava fazer todos os anos, ordena aos lugares-tenentes que pusera à frente das legiões que cu idem para que

no inverno se construa o maior número possível de naves e para que se consertem as velhas.

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Conselheiro escrevia desde muitos anos e era matéria dos seis"; era uma narrativa e, posto que figurem nela "o próprio Aires, com seu nome e título de conselho, e, por alusão, algumas aventuras, nem assim deixava de ser a narrativa estranha à matéria dos seis cadernos". Nestes "tratava de si" , o que pressupõe que naquela não (MA, I , p.946). Cria-se aqui uma situação curiosa: na medida em que Aires é instalado no enunciado como produtor de uma narrativa e participa dela, deveria ser considerado narrador. No entanto, o próprio narrador primeiro, ao mostrar que Aires figura na narrativa com seu nome e título, deixa claro que o narrador não se identifica com nenhuma personagem. Temos, então, um narrador dito em terceira pessoa. Não poderia ser diferente, já que o observador em sincretismo com o narrador tem uma visão total, é onisciente.Veja-se, por exemplo, o seguinte trecho:

Natividade ia pensando na cabocla do Castelo, na predição da grandeza e da notícia da briga. Tornava a lembrar-se que, de fato, a gestação não fora sossegada; mas só lhe ficava a sorte da glória e da grandeza. A briga lá ia, se a houve, o futuro, sim, esse é que era o principal ou tudo. Não deu pela praia de Santa Luzia. (MA, I , p.953)

Uma narrativa dita em primeira pessoa obrigaria a uma focalização interna. Por outro lado, no entanto, o narrador enuncia-se ao longo da narrativa e comenta os acontecimentos e a própria narração.

Não me peças a causa de tanto encolhimento no anúncio e na missa, e tanta publicidade na carruagem, lacaio e libré. Há contradições explicáveis. Um bom autor, que inventasse a sua história, ou prezasse a lógica aparente dos acontecimentos, levaria o casal Santos a pé ou em caleça de praça ou de aluguel; mas eu, amigo, eu sei como as cousas se passaram, e refiro-as tais quais. Quando muito, explico-as, com a condição de que ta l costume não pegue. Explicações comem tempo e papel, demoram a ação e acabam por enfadar. O melhor é ler com atenção.

Quanto à contradição de que se trata aqui, é de ver que naquele recanto de u m larguinho modesto, nenhum conhecido daria com eles, ao passo que eles gozariam do assombro local; ta l foi a reflexão de Santos, se se pode dar semelhante nome a u m movimento interior que leva a gente a fazer antes uma cousa que outra. (MA, I , p.955)

Para poder intrometer-se no enunciado e não focalizar internamente os aconte­cimentos, o narrador Aires opera uma embreagem, denegando o que estava enuncia­do, o eu torna-se ele.

Aires soube daquela conclusão no dia seguinte, por u m deputado, seu amigo, que morava em uma das casas de pensão do Catete. Tinha ido almoçar com ele, e, em conversação, como o deputado soubesse das relações de Aires com os dous colegas, contou-lhe o ano anterior e o presente, a mudança radical e inexplicável. Contou também a opinião da Câmara.

Nada era novidade para o conselheiro, que assistira à ligação e desligação dos dous gêmeos. Enquanto o outro falava, ele ia remontando os tempos e a vida deles, recompondo as lutas, os contrastes, a aversão recíproca apenas disfarçada, apenas interrompida por u m motivo mais forte, mas persistente no sangue, como necessidade virtual. Não lhe esqueceram os pedidos da mãe, nem a ambição desta em os ver grandes homens. (MA, I , p.1093)

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O narrador Aires, ao negar-se como narrador enunciado, finge colocar-se em outro nível enunciativo, o de autor, o que lhe permite, com toda a liberdade, entrar em sincretismo com um observador onisciente. Por quê? No perfil que o narrador traça de Aires, ou ainda, de si mesmo, está a resposta:

Foi o que ele leu nos olhos parados. É 1er muito, mas os bons diplomatas guardam o talento de saber tudo o que lhes diz u m rosto calado, e até o contrário. Aires fora diplomata excelente, apesar da aventura de Caracas, se não é que essa mesmo lhe aguçou a visão de descobrir e encobrir. Toda a diplomacia está nestes dous verbos parentes. (MA, I , p.1070)

3 A terceira possibilidade é a de um tu com valor de eu. Não se trata de o narrador tratar-se por tu, em pontos localizados do texto, como o faz muitas vezes Aires, no Memorial. É o caso raríssimo de o narrador dirigir-se a si mesmo como tu ao longo de quase toda a obra. É o que ocorre no romance La modification, de Michel Butor. Nele, um homem, Léon Délmont, diretor em Paris do escritório francês da fábrica de máquinas de escrever Scabelli, faz um exame de consciência, pensando em seu presente e em seus projetos, meditando sobre seu passado, fechado num comparti­mento de 3 a classe, durante as vinte e quatro horas da viagem Paris-Roma. Aos quarenta anos, Léon tem um apartamento na Praça do Panteão, três filhos, uma mulher correta, "burguesa" e indiferente. Em Roma, aonde vai com freqüência para receber as determinações da matriz, tem uma amante, Cecília, que trabalha como secretária do adido militar francês. Léon toma a 3 a classe do expresso diurno em lugar da I a

classe do rápido noturno, porque, desta vez, a viagem é paga de seu bolso, uma vez que vai a Roma para convencer Cecília a ir morar com ele em Paris, pois vai dar início a uma ação de divórcio. Na verdade, não se trata de uma verdadeira meditação, pois Léon não reflete sobre os motivos de suas ações ou dos outros, mas em sua mente passam imagens: "lembranças e projetos são imagens sucessivas de Roma que se superpõem; várias visões de Roma misturadas a várias de Paris" (Albérès, 1964, p.73). A modificação é a descoberta de que "transplantada para Paris e vindo a ser sua companheira, Cecília perderá seu encanto; assim como, se ela não fornecer mais a ocasião de uma fuga amorosa, Roma também perderá seu charme" (p.74). Por isso, Léon decide voltar para sua mulher. No livro, há uma luta de imagens, figurativizadas por duas cidades, Paris e Roma. Léon não oscila entre duas mulheres, mas entre duas cidades (p.74-5).

O narrador refere-se a si mesmo como vous

Mardi prochain, lorsque vous serez arrivé à Paris, quinze place du Panthéon, dès qu'elle vous aura vu elle saura que ses craintes, que vos désirs vont se réaliser; il ne sera besoin de le l u i dire, il n'y aura pas moyen de le lui cacher, et à ce moment-là elle fera tout pour vous arracher des détails, elle vous demandera quand Cécile doit arriver, mais cela, vous ne le savez pas vous-même, vous ne le saurez pas encore à ce moment-là, vous lui direz que vous n'en savez rien, ce qui sera la vérité pure, mais justement elle ne vous croira pas, elle vous harcèlera de questions parlées ou muettes, etiln'yaura qu'un moyen pour vous d'en sortir, ce sera de lui expliquer point par point comment se sont passées les choses. (MO, p. 161)

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O uso da segunda pessoa faz do leitor um Léon Délmont, que fala a si mesmo, embalado pelo movimento do trem (p.68). É o narratário que o narrador questiona, convidando-o a uma meditação, pois sua vida, como a de tantos outros burgueses, contém o drama banal da existência de Léon.

Uma outra forma de realizar macroembreagens é efetuar a passagem de um actante de um nível narrativo a outro, pois, assim, a ilusão referencial esboroa-se. A semiótica distingue três níveis enunciativos (o do enunciador/enunciatário; o do narrador/narratário; o do interlocutor/interlocutário) e ainda mostra que o último pode ser desdobrado em diferentes graus. É preciso considerar que uma "pessoa" pode passar de um nível a outro, ou de um grau a outro, como acontece no filme A rosa púrpura do Cairo, em que uma personagem do filme primeiro entra no filme segundo, onde vive uma história de amor com o galã, ou num programa da Rede Globo denominado Nunca houve uma mulher como Gilda, exibido em dezembro de 1993, em que as personagens, a todo momento, transitavam de um grau narrativo para outro. A esse fenômeno Genette chamou metalepse, termo tirado da retórica clássica, que designa o fato de dizer que o narrador ou o autor praticam o que está sendo narrado. Por exemplo, observe-se o que diz o narrador de Jacques le fataliste et son maître, de Denis Diderot:

Vous voyez, lecteur, que je suis en beau chemin, et qu'il ne tiendrait qu'à moi de vous faire attendre un an, deux ans, trois ans, le récit des amours de Jacques, en le séparant de son maître et en leur faisant courir à chacun tous les hasards qu'il me plairait. Qu'est-ce qui m'empêcherait de marier le maître et de le faire cocu ? d'embarquer Ja cques pour les Ses? d'y conduire son maître? de les ramener tous les deux en France sur le même vaisseau? Qu'il est facile de faire des contes! Mais ils en seront quittes l'un et l'autre pour une mauvaise nuit, et vous pour ce délai. (JF, 21-p.2)

Para nós, essas metalepses estão sendo consideradas embreagens. Temos a seguinte gama de possibilidades:

a) O narrador apresenta-se como enunciador.

O narrador de Quincas Borba diz:

Este Quincas Borba, se acaso me fizeste o favor de 1er as Memórias Póstumas de Brás Cubas, é aquele mesmo náufrago da existência, que ali aparece, mendigo, herdeiro inopinado, e inventor de uma filosofia. Aqui o tens agora em Barbacena. (MA, I, p.644)

Ao mencionar outra obra do mesmo autor como sua, o narrador confunde os níveis do enunciador e do narrador, isto é, o narrador coloca-se como enunciador.

b) O narrador coloca o narratário no mesmo nível dos actantes da narrativa. O narratário conversa com eles, conhece-os, participa da ação etc. Veja-se este exemplo extraído do conto Linha reta e linha curva, de Machado de Assis:

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Era em Petrópolis, no ano de 186... Já se vê que a minha história não data de longe. É tomada dos anais contemporâneos e dos costumes atuais. Talvez a lgum dos leitores conheça até as personagens que vão figurar neste pequeno quadro. Não será raro que, encontrando uma delas amanhã, Azevedo, por exemplo, u m dos meus leitores exclame:

- A h ! cá v i uma história em que se falou de t i . Não te tratou mal o autor. Mas a semelhança era tamanha, houve tão pouco cuidado em disfarçar a fisionomia, que eu, à proporção que voltava a página, dizia comigo: É o Azevedo, não há dúvida. (MA, II, p.117)

c) O narratário torna-se narrador primeiro, na medida em que recolhe uma narração oral ou recebe um texto dirigido a ele e o edita. É o que acontece em Lucíola, em que Paulo narra sua história a uma senhora cujas iniciais são G. M., para explicar-lhe por que tem tanta indulgência pelas prostitutas, já que ela estranhara essa sua atitude na última vez em que estiveram juntos. O narratário reúne as cartas e faz um livro. Numa nota ao autoi explica a razão do nome do livro e discute a questão da moralidade ou não da narrativa.

d) Um actante da narrativa primeira entra na narrativa segunda ou vice-versa, como no exemplo citado de A rosa púrpura do Cairo ou em Continuidad de los Parques, em Final de juego, de Cortázar, em que um homem é assassinado por uma personagem de u m romance que está lendo.

e) O narrador pode instalar-se na narrativa, quando, jogando com a temporali­dade da narração e do narrado, preenche os "vazios" da história com explicações, como se a narração fosse concomitante aos acontecimentos. Em Ilusões perdidas, de Balzac, há a seguinte passagem:

Enquanto o venerável eclesiástico sobe as encostas de Angoulême, não será inútil explicar a trama de interesses em que vai meter os pés. (CH, v i l , p.433)

As fronteiras dos níveis são móveis. Ultrapassá-las, misturar os graus, fazer de um actante de um nível actante do outro produzem um efeito de sentido de ficção, de metarrealidade, de liberação das rígidas convenções miméticas. Afinal, ficção é fingimento, é o processo pelo qual o homem tem o poder criador atribuído pelo mito à divindade. Com a palavra, cria outras realidades tão reais quanto aquela que recebe essa denominação.

FIORIN, J. L. The split person. Alfa (São Paulo),v. 39, p.23-44, 1995.

• ABSTRACT: Greimas claims that there are two mechanisms by which the enunciator establishes persons, spaces and times in the enunciate: shifting out and shifting in. These concepts were only sketched by the French semiotician. After making explicit and illustrating these two enunciating procedures, this paper discusses them in order to show that to explain the use of times, persons and spaces in a text it is necessary to split them in two levels: narration and narrated. It also examines closely the actantial mechanisms of shifting in and shifting out.

• KEYWORDS: Enunciation; shifting out; shifting in; person.

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