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Dedico este livro aos meus queridos pais, Martijn
Willem e Helene: devo ‑vos a vida e todo o amor
que recebi, amor que sinto ainda hoje.
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Índice
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
CAPÍTULO 1 A vida antes da guerra . . . . . . . . . . . . . . . . 13
CAPÍTULO 2 Um futuro incerto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
CAPÍTULO 3 As primeiras impressões
de Bergen ‑Belsen . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
CAPÍTULO 4 O dia a dia no Campo. . . . . . . . . . . . . . . . . 71
CAPÍTULO 5 Duras perdas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
CAPÍTULO 6 O reencontro com Anne Frank . . . . . . . . .111
CAPÍTULO 7 A libertação de Bergen ‑Belsen. . . . . . . . . .135
CAPÍTULO 8 O regresso à Holanda. . . . . . . . . . . . . . . . .159
CAPÍTULO 9 Nova vida em Inglaterra . . . . . . . . . . . . . . .183
CAPÍTULO 10 O recomeço da vida . . . . . . . . . . . . . . . . . .205
Epílogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .219
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Introdução
Infelizmente, não existe o botão «Delete» na mi‑
nha mente. Gostaria de poder apagar o que vi e
vivi e, especialmente, a sensação de sofrimento.
Esse sofrimento não estava só dentro de mim, estava
fora. Eu respirava o sofrimento, ele fazia parte do meu
mundo. Mas depois, penso: de que me adiantaria es‑
quecer? O que ganharia com isso? Paz? Talvez, mas
uma paz falsa, uma paz cega, pois sei que esquecer é
permitir que outros, nos nossos piores pesadelos, tam‑
bém possam passar por isso. Eu recordo para poder vi‑
ver, porque esquecer significa morrer e perder de vez a
minha família.
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Sobrevivi ao HolocauSto
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Quando o mundo recorda os acontecimentos do
Holocausto, coloca a si mesmo a seguinte pergunta,
sempre: Como pudemos permitir que isto acontecesse?
Como pôde o ser humano ser capaz de tamanha bru‑
talidade, de tamanho desamor? Ainda hoje me coloco
perante esta questão, e creio que a minha família —
aquela que construí ao juntar os pedaços de mim depois
da guerra — também o faça. As histórias dos campos
de concentração geram pesadelos nos adultos como se
fossem pequenas crianças indefesas.
Se para os adultos isto é pesado, imagine como será
para as crianças. Uma vez, quando um dos meus ne‑
tos era pequeno, perguntou ‑me sem mais nem menos:
«Avó, é verdade que os alemães davam sabão aos judeus
dizendo ‑lhes que iam tomar banho, mas queriam na ver‑
dade matar essas pessoas?» Esta história nunca estaria
distante de mim; eu sou a história. Demorei algum tem‑
po até assimilar a pergunta do meu neto, fiquei paralisa‑
da diante da possibilidade de acabar com a sua inocência
infantil. Mas o que dizer então? O meu neto precisava de
saber o que era o horror e que, infelizmente, o horror po‑
deria existir: «Sim, é verdade. Por isso temos de lutar até
ao fim para que isto nunca mais aconteça.» Nesse instan‑
te tive de engolir o meu orgulho e a recordação amarga
dos tempos em que a dor era a única forma de viver.
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Introdução
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Nunca mais acontecer… O tempo escorre entre os
nossos dedos. O Holocausto distancia ‑se cada vez mais,
mas, ainda assim, temos de mantê ‑lo sempre presente.
É triste, mas o mundo ainda sofre tanto com guerras...
Vou morrer a lutar para que outros seres humanos não
sofram nem percam sua a dignidade, como aconteceu
com os judeus naquela época, como aconteceu comigo.
A necessidade de contar essa história nasce da necessi‑
dade de consciencializar o mundo.
Preciso de superar a dor e seguir em frente. Andar
de cabeça erguida e contar sobre os dias em que eu não
podia sequer olhar nos olhos dos representantes das
«raças superiores», como assim nos fizeram acreditar.
Muito me passou pela cabeça sobre a importância de
contar a minha história, por mais dolorosa que fosse,
mas era preciso esperar pela oportunidade certa, pela
pessoa certa. Depois de alguns desenganos do destino
e de tentativas que terminaram frustradas, recebi em
minha casa a Marcia Batista, que me incentivou a con‑
tar esta história e que se mostrou a parceira ideal para o
projeto, pois, assim como eu, ela acredita na importân‑
cia de contar a história do Holocausto àqueles que não a
conhecem, àqueles que não sabem o suficiente, que não
se conformam ou, pior, que ainda não conseguem acre‑
ditar. Pensamos que é preciso esclarecer esse período
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sombrio da história mundial quantas vezes forem ne‑
cessárias, para que nenhuma outra vida seja desperdi‑
çada pela ignorância ou pela intolerância. Essa é a nossa
luta e o nosso legado.
Neste livro não os convido a acompanhar uma histó‑
ria feliz. Convido ‑os, talvez, a vivenciar um futuro com
mais tranquilidade e harmonia. Nas páginas deste livro
irão ler relatos de acontecimentos que permanecem
eternamente na minha memória, como um filme sem
fim, e que me fazem ter pesadelos até hoje. Mas não me
posso calar diante do que aconteceu e do que sobrevivi
para contar. O preço da liberdade é a eterna vigilância.
Como disse George Santayana, filósofo e poeta espa‑
nhol: «Aqueles que não podem lembrar o passado estão
condenados a repeti ‑lo.»
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CAPÍTULO 1
A vidA Antes dA guerrA
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Será que pressentimos aquele momento em
que a nossa vida é virada de cabeça para baixo,
e o que uma vez tratamos como familiar passa
a não mais existir? Será que eu soube o exato instante
em que o curso da minha vida seria alterado para sem‑
pre? Às vezes penso naqueles momentos de infância,
recordo ‑me de tempos com o meu pai, a minha mãe
e os meus dois irmãos. São lembranças tão distantes
que chego a esforçar ‑me para que a sua tonalidade em
branco e preto não se apague ainda mais. Chego até a
questionar ‑me se esses dias realmente existiram, se não
faziam parte de um conto de fadas contado por outras
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pessoas, talvez por uma enfermeira, no período do pós‑
‑guerra, para que eu recuperasse melhor e mais rapida‑
mente daqueles momentos sombrios.
As fotos lembram ‑me que ainda tenho a minha sa‑
nidade e, para meu alívio, que esses tempos foram real‑
mente vividos. Pego numa foto e observo os meus pais
felizes no seu casamento: foram momentos tão bons,
tão cheios de amor, que me deixam feliz por ainda não
os ter esquecido. A infância remete ‑me para sorrisos,
para risadas, para a leveza e a liberdade. Rostos tão ale‑
gres, tão puros, condenados à inexistência pelo simples
acaso do destino de terem nascido judeus. Tempos como
aqueles fizeram com que muitos de nós nos questionás‑
semos sobre o porquê de termos nascido nessa condi‑
ção. Não por desamor ao que éramos — pelo contrário,
ser judia era um orgulho e não havia outra forma de
ser —, mas restava sempre a dúvida: Porquê connosco?
Porque é que eles nos fizeram aquilo?
As nossas histórias nunca são apenas nossas. A mi‑
nha história, a história de Nanette, confunde ‑se com
uma história maior, a dos judeus na Segunda Guerra
Mundial. Compreender a minha trajetória é compreen‑
der a história da Europa, do mundo naquele tempo:
quantos milhões de vidas não foram modificadas du‑
rante esse período? O dia 10 de maio de 1940 mudou a
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minha para sempre. Hitler invadiu a Holanda com a
sua poderosa Luftwaffe, a força aérea alemã, e em pou‑
cas horas já dominava importantes pontos do país.
A Holanda era um local visado pelo Führer, devido à
proximidade com a França, um dos principais inimi‑
gos da Alemanha nazi. Sem reação perante a investida
alemã, o governo holandês rendeu ‑se após cinco dias,
deixando a sua população nas mãos dos nazis. Era o
começo do fim.
Antes de Hitler, porém, tudo era tranquilidade. Nas‑
ci no dia 6 de abril de 1929 em Amesterdão, capital
da Holanda, filha de pai holandês e mãe sul ‑africana.
A minha mãe, chamada Helene, era uma mulher à
frente do seu tempo e tinha trabalhado como secretá‑
ria antes de se casar com o meu pai. Após o meu avô
materno ter falecido, uma das suas irmãs mais velhas
(eram quatro no total) deu aulas e começou a traba‑
lhar como professora, ajudando no sustento da casa
juntamente com uma tia da minha mãe. De seguida,
incentivou as mais novas a estudar secretariado e tam‑
bém a trabalhar — era de facto uma casa de mulhe‑
res modernas. Depois do casamento, que aconteceu
quando ela tinha 25 anos, a minha mãe não voltou a
trabalhar fora de casa, mas continuou a exercer o seu
papel de mulher forte. Um dos seus maiores legados
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foi a educação que deixou aos filhos: a sua dedicação e
os seus ensinamentos deram ‑me a direção correta para
que eu seguisse em frente mesmo quando os tempos
eram impossíveis de se viver.
Desde cedo que conheço o significado da morte e
como ela pode alterar o decurso da nossa vida. O meu
irmão mais novo, Willem, nasceu com problemas car‑
díacos e morreu aos quatro anos de idade. A minha
mãe já sabia que isso ia acontecer e estava preparada,
preparando ‑nos também a nós. Recordo ‑me de um
dia, logo após a morte do meu irmão, em que ela me
disse: «Nanne, querida, eventualmente irá haver cura
para essa doença. Infelizmente o Willem não viveu o
suficiente. Por isso, quando um dia tiveres um filho,
não te preocupes.» A morte do meu pequeno irmão,
infelizmente, seria apenas a primeira grande perda na
minha vida.
Tal como a minha mãe, o meu pai também era uma
pessoa admirável. Martijn Willem era holandês e foi
sempre um homem promissor. Naquela época, no co‑
meço do século xx não era comum frequentar a facul‑
dade e por isso foi estudar na Escola de Comércio de
Amesterdão. Entrou cedo para o Banco de Amesterdão
e foi aos poucos alcançando posições com cada vez
maior responsabilidade até chegar ao cargo de diretor.
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Era muito inteligente e falava diversas línguas. Uma vez
fez uma viagem à Escandinávia e quando voltou disse‑
‑me: «Nanne, da próxima vez que viajar para a região
irei saber falar a língua escandinava». Eu não duvidava
de que ele conseguiria.
Os meus pais sempre foram carinhosos, mas, mes‑
mo à sua maneira, quiseram ensinar ‑nos, a mim e ao
meu irmão, o valor da responsabilidade: estudar e ter
notas suficientes para passar de ano? Isso não era res‑
ponsabilidade deles, mas sim nossa; nós é que devía‑
mos saber quando fazer os trabalhos de casa, quando
estudar para o teste e em que aspeto precisávamos me‑
lhorar. Ao relembrar os anos que vivemos depois deste
momento feliz, não consigo deixar de agradecer pela
maneira certa como nos criaram. Os campos de con‑
centração eram lugares com o único propósito de extin‑
guir o povo judeu. Para os nazis, ali não existia família
ou ser humano. Eu não era a Nanette, filha de Martijn
e Helene, era apenas mais uma prisioneira sem ros‑
to, sem nome, sem direitos. Como poderia sobreviver
se ainda sentisse a necessidade de estar agarrada aos
meus pais?
Na primária a vida ainda era normal e as escolas tam‑
bém. A segregação ainda não tinha começado, o que sig‑
nificava que os cristãos e os judeus estudavam juntos.
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Ainda podíamos viver em liberdade, e eu aproveitava
isso muito bem. Apesar de não ter recebido muitas re‑
primendas, hoje olho para trás com um sorriso, pois es‑
tava longe de ser uma menina sossegada — o que deve
ter dado algum trabalho aos meus pais. Lembro ‑me de
cenas da infância nas quais comia maçãs do vizinho,
subia aos telhados; era verdadeiramente endiabrada.
Eu fazia tudo o que não imaginariam de uma menina
comportada naquele tempo. O meu irmão, Bernard
Martijn, dois anos mais velho do que eu, era mais quie‑
to; nem parecia que era eu a filha.
Morávamos numa casa grande, com três andares.
Eu gostava de fazer ginástica e aproveitava o espaço
todo que tinha para praticar os meus exercícios. Ima‑
gine a minha mãe a chamar ‑me para o jantar e eu pen‑
durada pelos quartos em anéis de ginástica… É preciso
aproveitar os momentos bons e felizes! Nunca sabe‑
mos o que irá acontecer, nunca tínhamos como ima‑
ginar o que se passaria connosco. Outra atividade de
que eu gostava bastante também era ler livros, jornais,
tudo! Ia buscar o jornal do meu pai logo pela manhã
e, enquanto subia as escadas, ia lendo as manchetes
do dia. Não sei como é que ele não desconfiava des‑
sa demora! Quer dizer, era possível que desconfiasse,
mas ele também gostava de saber que a sua filha se
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interessava pelas coisas do mundo — era uma mente
aberta como a minha mãe.
Hoje vejo que os meus pais nos incentivaram a for‑
mar a nossa própria opinião, a não ter visões impostas
que só prejudicam a evolução do mundo. Era assim, por
exemplo, que eles lidavam com a religião. Nunca fomos
judeus ortodoxos, tradicionais. Pelo contrário, a minha
mãe dizia que não gostava de nada que fosse exagera‑
do, e o meu pai era um liberal nato. Mas isso não quer
dizer que a nossa educação não foi moldada pelos pre‑
ceitos da religião. O meu pai fez ‑me estudar durante
cinco anos com um jovem rabino, achava importante
que eu tivesse conhecimentos da nossa história. Não
costumávamos ir religiosamente à sinagoga, mas caso
fosse necessário, o meu pai não hesitaria em realizar
um minyan, uma oração pública em grupo com pelo
menos dez judeus adultos.
Com o passar dos anos, os tempos mudaram.
Lembro ‑me do mês de novembro de 1938, quando
ocorreu a terrível Noite dos Cristais, em que as pro‑
priedades dos judeus foram saqueadas e sinagogas
queimadas por toda a Alemanha — Hitler começa‑
va claramente a concretizar o seu plano de expulsar
e exterminar os judeus. No entanto, na Holanda, as
pessoas continuavam a não perceber a iminência da
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situação de perigo em que o país se encontrava: pelo
facto de termos permanecido neutros na Primeira
Guerra Mundial, todos acreditavam que isso acontece‑
ria novamente.
Além da neutralidade que ocorrera na Primeira
Guerra, o que também transformara a Holanda num
lugar mais seguro para se morar foi o antissemitismo
oculto no país — existia, mas não era tão explícito como
na Polónia, por exemplo. É fácil observar que Hitler
plantou a semente num terreno fértil. Quando publi‑
cou, em 1925, A Minha Luta, o livro escrito enquanto
estivera na prisão, tinha um coro pronto para se juntar
a ele quando nos chamava, judeus, de «vermes para‑
sitas». Juntando isso ao facto da Alemanha estar qua‑
se destruída em termos económicos, políticos e sociais
após a Primeira Guerra, é o suficiente para que o guião
da peça esteja pronto para ser encenado. Lembro ‑me
que o meu pai costumava dizer que «era diretor no ban‑
co, apesar de ser judeu».
Depois do dia 10 de maio de 1940, não havia margem
para dúvidas: a situação só iria piorar para os judeus na
Holanda. Os nazis ordenaram que todos os holande‑
ses se registassem e declarassem como judeus ou não
— eu e a minha família assinámos a nossa sentença
de morte a 22 de março de 1941. Esses registos, assim
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como a administração de todos os guetos na Polónia
que mantiveram os judeus praticamente em prisões,
foram realizados pelos Conselhos Judaicos estabele‑
cidos pelos nazis. Tais instituições tiveram um papel
muito polémico durante o Holocausto.
Aos poucos, os judeus foram excluídos da socieda‑
de, e eu fui vendo a minha liberdade a ser cada vez
mais limitada — do mesmo modo que a vida em toda
a Holanda, a minha vida também iria começar a mu‑
dar para pior. No final de 1940 os funcionários públi‑
cos judeus foram demitidos, bem como as professoras.
Posteriormente, mais medidas foram adotadas para nos
isolar dos holandeses com o intuito de mostrar que não
tínhamos direito a viver ali.
Já não podia andar de bicicleta. Transportes pú‑
blicos, parques públicos e cinemas também eram
proibidos, e vários estabelecimentos comerciais exi‑
biam a placa que tanto me angustiava: PROIBIDO
A JUDEUS. De modo a poder frequentar os poucos lu‑
gares a que estávamos autorizados a ir, era necessário
usar a Estrela de David amarela que nos identificava
como judeus, algo que fazia com que eu me sentisse
extremamente vulnerável. Além disso, os judeus não
podiam ser proprietários de uma empresa ou mesmo
exercer as suas profissões. Infelizmente, apesar da
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tentativa do banco de evitar a perda de uma importante
liderança, o meu pai também foi demitido. Ainda hoje
não consigo acreditar na loucura disto tudo. Mal sabia
eu que a impossibilidade de compreensão seria ain‑
da mais desanimadora à medida que Hitler avançasse
com o seu plano.
Após uma operação extremamente organizada à ma‑
neira alemã, os nazis tinham informações suficientes
sobre os judeus holandeses para continuar com os seus
desmandos. No final de 1941 foi comunicado que os ju‑
deus não poderiam frequentar a escola que quisessem
(isso seria bastante pretensioso da nossa parte, não?).
Na Holanda foram criados 25 colégios judaicos, e eu
tinha de passar a frequentar um deles. Não sei ao certo
qual foi a minha sensação naquele momento. Era sim‑
plesmente o que tínhamos de fazer e assim foi feito,
mas imagine o que foi para uma menina de 12 anos,
curiosa acerca do mundo e descobrindo ‑se a si mesma,
ter de mudar todo o seu conceito de vida de uma ma‑
neira abrupta. Eu não iria voltar a ver os meus colegas
da escola cristãos, nem frequentar as suas casas ou co‑
memorar os seus aniversários — e tivemos de aceitar
isso, como se os alemães se tivessem tornado deuses
da nossa vida, ao jogar os dados do nosso próprio des‑
tino. A maioria dos holandeses, motivados pelo medo,
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acabou por aceitar as decisões sem questionar ou pro‑
testar. Não havia mais nada a fazer e era assim que a
nossa vida iria ser no futuro.
Foi nesse novo colégio judaico que eu conheci uma
menina magra, bonita, de sorriso cativante e que cha‑
mava a atenção de todos pelas suas histórias e frases
inteligentes. Por uma mera coincidência do destino,
eu e a Anne Frank ficámos na mesma escola e na mes‑
ma classe. Todos ali eram judeus, entre professores e
alunos, algo que se foi tornando bastante dramático ao
longo da guerra. No primeiro ano, a minha turma era
composta por trinta alunos; no segundo éramos apenas
dezasseis. As pessoas simplesmente desapareciam e
não sabíamos nada sobre elas, não se comentava nada.
Estariam escondidas ou teriam sido deportadas? No fi‑
nal de junho de 1942 já tinha sido noticiado na impren‑
sa holandesa que os nazis haviam decidido enviar os
judeus para campos de trabalho forçado na Alemanha.
Como a deportação era a possibilidade mais devas‑
tadora entre todas, havia um medo habitual que vivia
entre nós, um medo que fossemos nós e a nossa famí‑
lia os próximos a serem levados. Um dia acordávamos
e não tínhamos primos, no outro a avó era deportada e
desaparecia como se nunca tivesse existido; estes foram
tempos traumáticos. No entanto, foi nesse ambiente
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de sofrimento partilhado que nós, colegas de sala e
de preocupação, conseguimos manter a nossa união.
Cientes de que estávamos a viver uma época difícil,
de muito medo e opressão, evitávamos criar qualquer
tipo de desavença de modo a não a piorar esta situação.
A harmonia de que o mundo carecia naquele momento
era ensaiada por um grupo de crianças judias de não
mais de 14 anos.
A Anne Frank também desapareceu um dia. Ela e
a família esconderam ‑se no início de julho de 1942 no
famoso anexo secreto localizado na empresa do pai,
Opekta Werke, que fabricava matéria ‑prima para geleias
de frutas. Corria um boato de que eles teriam fugido,
mas não sabíamos ao certo. No entanto, durante o pe‑
ríodo em que a Anne e eu convivemos no Liceu Judaico,
pude participar no seu 13.° aniversário. Naquele tempo
os filmes eram em rolo. Vimos uma espécie de propa‑
ganda de fabricação de geleia e depois o filme Rin Tin
Tin. Eram tempos de guerra, e por isso foi servido um
lanchinho simples e todos tinham de regressar às suas
casas antes das 20 horas devido ao toque de recolher.
Alguns biógrafos relatam erroneamente que eu presen‑
teei a Anne com um marcador de páginas. Mas a verda‑
de é que lhe ofereci uma pregadeira. Lembro ‑me disso
como se fosse hoje. Presenciei também o momento em
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que a Anne recebera o seu amado — e posteriormente
muito famoso — diário. Ninguém ali naquela sala da
casa dos Frank iria imaginar que aqueles papéis guarda‑
riam palavras que emocionariam leitores pelo mundo
inteiro. Havia muito naquela sala que nenhum de nós
imaginaria, e que infelizmente não estaria nos nossos
sonhos (como era o da Anne ser escritora), mas nos
nossos piores pesadelos.
No fim de setembro de 1943, estávamos ainda a
dormir quando, logo cedo pela manhã, os nossos so‑
nhos foram interrompidos pela dureza da realidade.
Bateram muito forte na nossa porta, como se quises‑
sem derrubá ‑la, parecia não importar. Não me lembro
se foi o meu pai ou a minha mãe quem abriu a porta, só
sei que eu ouvia muito alto o bater do meu coração, que
acelerava ao mesmo tempo a que se juntava ao medo de
que alguém pudesse ouvir ou irritar ‑se com o barulho.
De repente ali estávamos nós os quatro sem saber o que
fazer diante dos nazis, que nos insultavam brutalmente
e nos apressavam para nos arrancar da nossa casa com
poucas roupas e alguns objetos pessoais. Como em to‑
dos os casos, posteriormente a Pulse* tomou posse da
* Empresa de mudanças contratada pelos nazis para esvaziar os lares dos judeus deportados.
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nossa casa e de tudo o que tínhamos de valor. Não con‑
sigo ainda compreender como é que Hitler conseguiu
tal façanha: transformar homens e mulheres em seres
brutais, sem o mínimo de sentido de humanidade. Este
seria só mais um dos muitos momentos de questiona‑
mento. Depois de setembro de 1943, enquanto perma‑
necia a caça aos últimos judeus escondidos, a Holanda
foi declarada como sendo livre de judeus.
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CAPÍTULO 2
um futuro incerto
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Tudo isto parecia um jogo para Hitler. Depois
de impedir os judeus de utilizarem os trans‑
portes públicos através da organização e estru‑
tura que montara juntamente com o Conselho Judaico,
agora levava ‑me mim e à minha família de elétrico pa‑
ra o nosso futuro incerto — incerto e sem esperança.
O que sentir nesse momento, além de medo? Não há
outra sensação que eu me recorde de conviver tanto
nesse período; o medo tinha ‑se tornado no meu me‑
lhor amigo.
O meu pai não tinha pensado na possibilidade de
encontrarmos um esconderijo, como alguns judeus
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holandeses fizeram ao sentir a iminência do perigo.
A fim de nos escondermos, era necessário ter dinheiro
e confiar naqueles que disponibilizariam o esconderijo,
pois havia a possibilidade de se ser traído e deportado.
O final da guerra era também uma incógnita para todos.
Até quando teríamos de nos esconder? No entanto, sei
que ele confiou na palavra e na boa ‑fé de uma advogada,
e considerou isso o suficiente para se sentir seguro.
O que aconteceu foi que na certidão de nascimento
sul ‑africana da minha mãe (que ela já não possuía) não
constava a sua religião, não constava que ela era judia
e, por causa disso, essa advogada disse que conseguiria
um documento que nos ajudaria. Por um preço, é claro.
Nunca nos chegou a entregar essa certidão, enganando‑
‑nos como fez com outras famílias.
É incrível como a guerra pode acentuar o melhor e
o pior das pessoas — as situações que vivemos e pre‑
senciamos, infelizmente, mostraram muito do pior.
Aqueles que estavam escondidos também não estavam
a salvo, já que temiam ser descobertos por alguém que
os denunciasse em troca de uma razoável quantia de
dinheiro. Não há muito a dizer, apenas que esses eram
tempos de guerra.
Após a nossa captura, atravessando ruas que me pa‑
reciam desertas, rapidamente chegámos à estação de
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Um fUtUro incerto
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comboios de Amstel. Não haveria alguém a caminho
do nosso destino que nos ajudasse? Não poderiam ter
feito algo? De facto, estavam todos muito assustados
para fazer o que quer que fosse. Ajudar um judeu podia
significar a morte. Ninguém viera em nosso socorro,
por isso ali estávamos, prontos para partir. Uma estação
de comboios pode levar ‑nos a muitos destinos: viagens
de férias, viagens de negócios, visitas a familiares dis‑
tantes. No entanto, aquela estação levar ‑nos ‑ia, contra a
nossa vontade, para algo terrível.
O destino seria Westerbork, um campo de transi‑
ção situado no nordeste da Holanda, na província de
Drenthe. A Holanda é um país pequeno, logo, seria
uma viagem curta, de poucas horas. Lembro ‑me que no
comboio íamos acompanhados de guardas, que se que‑
riam certificar de que não fugiríamos e de que chegaría‑
mos ao destino, como se fôssemos os piores criminosos
do mundo.
O campo de Westerbork tinha sido construído pelo
governo da Holanda em 1939 para receber os judeus
refugiados da Alemanha, que tinham medo do peri‑
go crescente que o Partido Nazi representava para sua
segurança. Esta foi uma estrutura muito útil para os
interesses perversos dos alemães. No final de 1941, de‑
cidiram que este era o local ideal para ser o campo de
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transição de judeus holandeses que seriam deportados
para os campos de extermínio. Em julho de 1942, os
alemães assumiram o controlo do local e a operação foi
iniciada. Era um local de paragem antes de se ser envia‑
do para a morte.
O comboio entrava diretamente dentro do campo.
Westerbork era um lugar totalmente inóspito, com pai‑
sagens cinzentas e sem alegria, longe de tudo o que me
lembrasse a cidade de onde partimos e a antiga e tão re‑
cente vida que envolvia brincadeiras cheias de liberdade
plena. No entanto, hoje quando olho para trás e penso
nos dias posteriores a esta passagem, vejo que ali ainda
era um lugar melhor para se viver os tempos de guerra.
No campo havia um grande corredor principal, com
barracões em ambos os lados. Olhei ao redor e vi que ha‑
via guardas e torres de vigilância por todo o lado: o cená‑
rio era sombrio e solitário, era o cenário de uma prisão.
E quem estava a pagar por tudo aquilo? Literalmente,
nós mesmos, porque a manutenção do campo, bem
como a sua expansão, era financiada com os bens con‑
fiscados dos judeus.
Chegámos com os nossos pertences e levaram ‑nos
para sermos registados. Tínhamos de dizer o nosso
nome e de onde éramos, apesar de não sabermos o
que estávamos ali a fazer. Esta ação era repetida nos
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campos de concentração administrados pelos nazis
aos que sobreviviam à seleção para a execução na câ‑
mara de gás, mal chegavam (no caso dos campos de
extermínio). Ironicamente, isto foi algo que fez com
que, depois da guerra, muitas vítimas pudessem ter
os seus últimos passos rastreados pelos familiares que
eventualmente sobreviveram. No momento do regis‑
to, eu e a minha família quase não falávamos; o meu
irmão, que já era de personalidade discreta, estava ex‑
tremamente assustado. Tinham a preocupação estam‑
pada na cara.
Pudemos permanecer com as nossas próprias rou‑
pas, ao contrário daqueles que se tinham escondido ao
serem convocados para a deportação — como o caso da
Anne Frank e a sua família, depois de terem sido desco‑
bertos no seu esconderijo, em agosto de 1944. Os fugi‑
tivos eram considerados «judeus condenados» e eram
obrigados a vestir macacões azuis e a calçar tamancos
de madeira e a permanecer no bloco de punição, força‑
dos a trabalhar nas piores condições e recebendo menos
comida. A família Frank teve de trabalhar a desmante‑
lar antigas pilhas. Qual era o objetivo desse trabalho?
Não sabíamos, assim como não sabíamos o propósito
de muitos dos trabalhos aos quais os judeus eram sub‑
metidos nos campos de concentração.
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Depois do registo, seguimos para os barracões: eu
e a minha mãe fomos enviadas para o alojamento das
mulheres, enquanto o meu pai e o meu irmão para o
dos homens. Apesar de dormirmos separados, durante
o dia havia uma certa liberdade para nos encontrarmos,
algo que fazíamos sempre que podíamos. Dormíamos
em beliches, um luxo, comparado com as condições
que enfrentaríamos posteriormente, ou com a situação
daqueles que conseguiam sobreviver à câmara de gás
em Auschwitz.
Westerbork parecia ‑me um lugar paradoxal, ao abri‑
gar milhares de refugiados vindos de diferentes locais.
Por ser um campo de transição, abrigava visitantes es‑
porádicos e, ao mesmo tempo, pessoas que formaram
ali uma comunidade, um lar. Por exemplo, havia esco‑
las, teatros, hospitais, todas as estruturas que contavam
com uma intensa participação dos judeo ‑alemães que
estavam lá desde o início.
Os judeus holandeses que seriam deportados não
ficavam ali mais do que alguns dias, talvez semanas.
Encontrávamos pessoas que conhecíamos de Ames‑
terdão, mas rapidamente perdíamos o contacto, pois
eram enviados num comboio rumo aos seus maiores
pesadelos. Eu e a minha família ficaríamos naquele
campo por mais tempo, algo que nos dava esperança e
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ao mesmo tempo que me angustiava por já serem tan‑
tos os dias vividos, dos quais tenho memória de serem
muito longos.
Devido à boa e respeitada posição do meu pai, os
nossos nomes passaram a constar na lista Palestina, em
que estavam os nomes dos judeus que poderiam ser
trocados por prisioneiros de guerra alemães e outros
fins. Isso significava que poderíamos ter um pouco de
esperança de nos distanciarmos daquele lugar, daquela
situação — esperança que se mostrou uma ilusão, na
verdade.
Tínhamos uma quantidade razoável de comida, sufi‑
ciente para não passarmos fome. No entanto, tínhamos
perdido todo o conforto das nossas casas. Formávamos
longas filas para aquecer a comida em aquecedores de
ambiente, tomávamos banho em duches de água fria
(mesmo no inverno), e as necessidades eram feitas em
latrinas. Chegar àquele lugar e passar por esta situação
mudou a minha conceção de higiene — infelizmente,
não dava para fazermos nada em relação a isso, apesar
de ter sido muito incómodo.
Não trabalhei em Westerbork, mas ia ajudando
a tomar conta das crianças — que, assim como os
adultos, eram enviados posteriormente para destinos
piores. Pelo menos ali as crianças podiam divertir ‑se
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momentaneamente. Cantávamos e brincávamos com
elas, estimulando um pouco de fantasia naquele am‑
biente sem cor. Os adultos faziam o que podiam para
mantê ‑las longe daquela situação.
Eu e o meu irmão, com 14 e 16 anos, respetivamen‑
te, já não éramos crianças. Além disso, a situação fez
com que tivéssemos amadurecido mais depressa do
que seria natural para a idade, e fazíamos o possível
para não preocupar os nossos pais. Por vezes ouvía‑
mos conversas sobre o que estava a acontecer, mas não
estávamos cientes de tudo. Lembro ‑me de que durante
o período em que estivemos no campo de transição,
o meu pai foi algumas vezes a Amesterdão. O que teria
ido lá fazer? Eu não sei, e até hoje isso é um mistério
para mim.
Westerbork tinha uma vida relativamente calma.
No entanto, tudo não passava de uma ilusão para que
os judeus cooperassem com aquele repugnante plano
e achassem que tudo iria ficar bem. Diferentemente
dos campos de concentração, o local tinha poucos na‑
zis, e os que existiam eram responsáveis pela vigilância
externa do campo. Internamente; a responsabilidade
era da polícia holandesa. Penso que a intenção dos na‑
zis era apenas garantir que os deportados seguissem
o seu caminho. Como alguns judeus chegavam a ficar
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pouquíssimos dias ali, imagino que nem conseguiram
captar o que seria a «vida» naquele local.
Para além dessa aparente vida sem preocupações,
a ansiedade era algo constante no nosso dia a dia. Todas
as segundas ‑feiras, liam ‑se os nomes daqueles que de‑
veriam apresentar ‑se para a deportação. Era algo horrí‑
vel: aqueles que constavam naquela lista desesperavam
tremendamente, aqueles que não estavam suspiravam
com alívio. Ainda não sabíamos ao certo para onde os
transportes nos levariam, mas o conhecido era sempre
melhor que o desconhecido, e já sabíamos da existên‑
cia de campos de extermínio. No entanto, o alívio não
durava mais que uma semana, pois na segunda ‑feira
seguinte ouviríamos nomes novamente, torcendo para
não escutar o nome da nossa família. Aqueles que de‑
veriam partir para os campos de extermínio deveriam
apresentar ‑se no dia seguinte no pátio interno, local de
onde partiam os comboios. Hoje olho para trás e não
consigo imaginar algo mais grotesco do que essa cena:
famílias reunindo os poucos pertences que ainda man‑
tinham para seguir rumo à morte. Que tipo de huma‑
nidade seria essa?
A Anne Frank passou por essa mesma rotina e
ouviu o seu nome na lista para o comboio que parti‑
ria no dia seguinte, 3 de setembro de 1944, rumo ao
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campo de Auschwitz. Era um dos últimos transpor‑
tes da Holanda que partiria rumo a um dos mais te‑
midos campos, e levava toda a família Frank mais os
outros quatro moradores do local onde Anne estivera
escondida.
A operação no campo de Westerbork era conduzida
à distância pelo alemão Albert Gemmeker, comandan‑
te do campo e uma figura que permanece rodeada de
mistério até aos dias de hoje. Ele incentivava as mani‑
festações culturais no campo e não era visto a punir os
prisioneiros, algo de que os alemães pareciam ter tanto
prazer. No entanto, às terças ‑feiras lá estava ele, atenta e
placidamente observando aquelas cenas que poderiam
ser a introdução de um filme de horror.
Devido às precárias condições de higiene, a mamã
acabou por apanhar piolhos. Os campos estavam in‑
festados de piolhos, e era extremamente enervante ter
de conviver com aqueles bichinhos sujos, sem poder
fazer nada, sem uma solução e sem a possibilidade de
permanecer limpa. Isso deixou a mamã num estado
terrível de nervos.
Quando me recordo desses dias de longa espera, não
sei como conseguia olhar para a frente. O futuro era
uma incógnita, e não sabíamos o que esperar. O que
sabia com convicção é que me tinham tirado da escola,
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arrancando ‑me brutalmente da minha casa, da minha
vida, e desde aí vivia à espera de um destino que não
mostrava o menor sinal de otimismo. O que poderia
fazer para reagir? Como superar os dias intermináveis?
O que esperar da nossa vida dali para frente?
A tensão e a ansiedade eram tamanhas que um
dia, de repente, desmaiei no meio do campo. Perdi os
sentidos repentinamente, e uma senhora acudiu ‑me.
Recuperei a consciência com as leves bofetadas que
ela me dava no rosto para que eu acordasse. Posso ter
desmaiado devido às condições precárias a que estáva‑
mos submetidos, mas a causa principal foi certamente
o estado de nervos em que eu vivia constantemente.
Teria o meu corpo encontrado uma forma de escapar
de modo a afastar ‑me da realidade que mais parecia
um pesadelo?
E assim fomos vivendo a nossa vida em Westerbork:
mantendo a nossa família unida, tentando afastar, o má‑
ximo possível naquela situação, os pensamentos que
constantemente nos assombravam. Passaram ‑se me‑
ses que pareciam não ter fim e chegámos ao inverno
de 1944, algo que nos angustiava já que não havia água
quente ou o que quer que seja que nos proporcionasse
o mínimo conforto. Seria melhor ali permanecermos
para sempre até ao fim da guerra? Ali, pelo menos, era
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possível sobreviver. No entanto, o plano dos alemães não
envolvia sobrevivência.
Mais uma vez, no dia 14 de fevereiro de 1944, está‑
vamos prontos para ouvir a lista de nomes que segui‑
riam para um lugar ainda mais desconhecido. Dessa
vez, não haveria alívio momentâneo para a minha fa‑
mília: Nanette Blitz, Martijn Willem, Helene e Bernard
teriam de se apresentar no dia seguinte junto ao com‑
boio rumo à deportação. Essa rotina seria ainda repeti‑
da muitas vezes na nossa ausência: seria apenas no dia
15 de setembro de 1944 que sairia o último transporte
de Westerbork, também rumo ao campo de Bergen‑
‑Belsen, levando algumas pessoas e deixando menos de
mil prisioneiros no campo de transição.
Enquanto outros iam embora rapidamente, eu e a
minha família ali ficámos durante quatro meses. Não
sabia dizer se aquilo seria o fim ou o começo. A mesma
cena repetida tantas vezes anteriormente era agora pro‑
tagonizada pela minha família: nós os quatro, à espe‑
ra do comboio, tensos e ansiosos. Secretamente, torcia
para que o comboio nunca chegasse e eu não precisasse
partir dali. No entanto, isso não aconteceu, e tivemos
que embarcar.
O que sentimos naquele momento? Um certo alí‑
vio, porque sabíamos que iríamos para Bergen ‑Belsen,
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um campo em melhores condições do que os outros.
Contudo, esse alívio duraria apenas um breve momen‑
to — não haveria momentos de despreocupação dali
em diante.
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