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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO SIMÃO PEDRO DOS SANTOS DEDOS CRAVEJADOS DE BRILHANTES, CHAPÉUS DE ESTRELAS CARREGADOS: A ÉPICA DOS CANGACEIROS NA LITERATURA DE CORDEL Rio de Janeiro 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

SIMÃO PEDRO DOS SANTOS

DEDOS CRAVEJADOS DE BRILHANTES, CHAPÉUS DE ESTRELAS CARREGADOS:

A ÉPICA DOS CANGACEIROS NA LITERATURA DE CORDEL

Rio de Janeiro

2015

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SIMÃO PEDRO DOS SANTOS

DEDOS CRAVEJADOS DE BRILHANTES, CHAPÉUS DE ESTRELAS CARREGADOS:

A ÉPICA DOS CANGACEIROS NA LITERATURA DE CORDEL

Tese de Doutorado apresentada ao

Programa de Letras Vernáculas da

Universidade Federal do Rio de

Janeiro como requisito para a

obtenção do Título de Doutor em

Letras Vernáculas (Literatura

Brasileira).

Orientador:Prof.ª Doutora

AnéliaMontechiariPietrani

Rio de Janeiro

2015

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Ficha elaborada pela Biblioteca José de Alencar – Faculdade de Letras/UFRJ

S237d Santos, Simão Pedro dos.

Dedos cravejados de brilhantes, chapéus de estrelas carregados: a épica dos cangaceiros na literatura de cordel. – Rio de Janeiro, 2015.

209 f.; 31 cm.

Orientadora: Profa. Dra. Anelia Montechiari Pietrani. Tese (Doutorado) – Departamento de Letras

Vernáculas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

Bibliografia: f. 203-209. 1. Linguagem Brasileira. 2. Literatura de cordel. 3.

Memória. I. Título. II. Pietrani, Anelia Montechiari.

CDD 869.0991

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RESUMO

SANTOS, Simão Pedro dos. Dedos cravejados de brilhantes, chapéus de estrelados

carregados: a épica dos cangaceiros na literatura de cordel. Tese (Doutorado em Letras

Vernáculas) – Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas. Rio de Janeiro: Faculdade

de Letras/UFRJ, 2015.

A presente tese defende a ocorrência de uma matéria épica da literatura de cordel com ênfase

no cangaço, a partir de uma memória oral como fundo para a memória escrita. Para a

idealização mítica contemporânea aos cangaceiros, com rara exceção, usou-se a primeira

pessoa do discurso. O processo de feitura desses textos era calcado em uma primeira pessoa a

que chamamos de Eu épico, pelos motivos inerentes à conturbada trajetória das personagens.

A ideia de fazê-los heróis, no entanto, se prolonga até os dias atuais, já com a isenção poética

pertinente à distância no tempo. Nas narrativas épicas do cordel, há filetes espontâneos com

as técnicas das narrativas clássicas como a invocação, a rememorização, a sobrenaturalidade,

as façanhas inusitadas, mas ainda, e principalmente, há íntimo diálogo com textos medievais e

ibéricos legados ao Nordeste no período colonial. Narrativas como as de Carlos Magno e

outras são a essência da invenção e reinvenção dos heróis locais. Este estudo se fundamenta

em textos de Anazildo Vasconcelos, Arnold Hauser, Eric Hobsbawm, Aglae Lima de

Oliveira, Câmara Cascudo, Rui Facó, Jerusa Pires Ferreira, entre outros, que constituem o

apoio teórico nos estudos do cordel épico. O corpus analisado se compõe de textos de

Leandro Gomes de Barros e Francisco das Chagas Batista, pioneiros do cordel brasileiro, e se

estende aos poetas contemporâneos, que igualmente abordaram a temática ora proposta.

Palavras-chave: Literatura brasileira, cordel, cangaço.

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ABSTRACT

SANTOS, Simão Pedro dos. Dedos cravejados de brilhantes, chapéus de estrelados

carregados: a épica dos cangaceiros na literatura de cordel. Tese (Doutorado em Letras

Vernáculas) – Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas. Rio de Janeiro: Faculdade

de Letras/UFRJ, 2015.

This thesis argues for the occurrence of an epic matter in the literature of cordel with

emphasis on cangaço, from an oral memory as background for writing memory. For a

mythical idealization of the cangaceiros in their contemporary times, with rare exception, it

was used the first-person speech. The process of making these texts was trampled in a first

person which we call “I epic”, for reasons inherent in the troubled history of the characters.

The idea of making them heroes, however, extends to the present, as with the poetic

exemption concerned to the distance in time. In the epics, there are spontaneous fillets with

the techniques of classical narratives as the invocation, the rememorization, the supernatural,

the unusual exploits, but also and above all, there is intimate dialogue with medieval and

Iberian texts bequeathed to the brazilianNordeste in the colonial period. Narratives such as

Carlos Magno’s stories and others are the essence of the invention and reinvention of local

heroes. This study is based on texts written by AnazildoVasconcelos, Arnold Hauser, Eric

Hobsbawm, Aglae Lima de Oliveira, CâmaraCascudo, RuiFacó, GerusaPires Ferreira, among

others, which are the theoretical support in the epic studies of cordel. The corpus analyzed

consists of texts written by Leandro Gomes de Barros and Francisco das Chagas Batista,

Brazilian pioneers in literature of cordel, and extends to contemporary poets, who also

addressed the theme proposed here.

Keywords: Brazilian literature, cordel, cangaço.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................11

1 – HISTÓRIA E MEMÓRIA: CORDEL PARA SER CONTADO, CORDEL PARA

SERCANTADO . ......................................................................................................................20

2 – TECEDORES DE HISTÓRIAS: A INVENÇÃO DOS CANGACEIROS ... ....................37

2.1 – Romanceiro guardado, memória transferida ........... ...............................................44

2.2 – Aedos nordestinos: penas inspiradas, histórias para contar .. ..................................62

2.3 – Antônio Silvino, Lampião e outros heróis: os fatos, os feitos, o mítico, o

místico........................................................................................................................... ..........96

2.4 – Anábase e catábase: o inferno, o céu e o pouso no sertão .. ..................................131

3 – AMORES: MARIAS E DADÁS – VÊNUS NO SERTÃO ... ..........................................141

3.1 – Tantas mulheres... marias bonitas que se multiplicam........................................ 145

3.2 – Canções de amor: o cordel e outros cantares ......................................................155

4 – OFICINA DO CORDEL: A INSPIRAÇÃO, O SUOR .. .................................................165

4.1 – Metalinguagem: o exercício da palavra-texto . .....................................................167

4.2 – intertextualidade: diálogos possíveis . ...................................................................179

4.3 –A construção:“Tijolo com tijolo num desenho mágico” . ......................................191

CONSIDERAÇÕES FINAIS .. ...............................................................................................200

BIBLIOGRAFIA .. ..................................................................................................................203

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INTRODUÇÃO

No dia a dia do engenho,

toda a semana, durante,

cochichavam-me em segredo:

saiu um novo romance.

E da feira do domingo

me traziam conspirantes

para que os lesse e explicasse

um romance de barbante.

(“Descoberta da literatura”, João Cabral de Melo Neto, em A

escola das facas)

Uma primeira dificuldade que se tem na proposição dos estudos de literatura de cordel

é a ausência de pesquisa, de sistematização, de teorização, que a coloque no bojo das

discussões literárias. Estudos que as universidades e outros centros de pesquisas ainda estão a

dever. Não há nos tratados literários nenhuma consideração abrangente no sentido da crítica,

do entendimento estrutural e da mentalidade do universo criador dessa literatura.

Desse modo, entende-se que propor estudos dessa expressão da cultura popular é lidar

com um natural desafio. Há de se conceber, portanto, que isso termina por ser tarefa, embora

instigante, árdua, de investigação de um fazer artístico-literário que não perde importância por

ainda não se ter tornado na sua totalidade objeto de estudos nas academias, que intentam

privilegiar manifestações eruditas como produção do espírito criativo, e que, embora voltado

para um povo, ainda considera como legítimo um matiz literário elitizado.

Dentre os poetas da primeira geração do cordel brasileiro destacam-se Leandro Gomes

de Barros (1865 – 1918), a quem se atribui ser o iniciador dessa linguagem no Nordeste do

Brasil, Francisco das Chagas Batista (1882 – 1930), Antônio Ferreira da Cruz (1876 - ?), João

Melquíades Ferreira da Silva (1869 – 1933), Silvino Pirauá de Lima (1848– 1898), Severino

Milanês (1906 – 1967) e José Camelo de Melo Resende (1885 – 1964).

Dos poetas elencados acima, há a seguinte lista de obras sobre a temática do cangaço:

Antônio Silvino: vida crimes e julgamento; A história de Antônio Silvino; História completa

de Antônio Silvino, sua vida de crimes e seu julgamento; Interrogatório de Antônio Silvino;

História de Antônio Silvino - continuação e Vida de Antônio Silvino, de Francisco das Chagas

Batista.

De José Camelo de Melo Resende se destaca Uma das maiores proezas que Antônio

Silvino fez no sertão pernambucano e, de Leandro Gomes de Barros, Antônio Silvino no jury:

debate de seu advogado; Antônio Silvino o rei dos cangaceiros; Antônio Silvino se

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despedindo do campo; Os cálculos de Antônio Silvino; Como Antônio Silvino fez o diabo

chocar; A confissão de Antônio Silvino; Exclamações de Antônio Silvino na cadeia; A ira e a

vida de Antônio Silvino; As lágrimas de Antônio Silvino por Tempestade; Luta do diabo com

Antônio Silvino; Morte de Tempestade (Antônio Félix); O nascimento de Antônio Silvino; As

proezas de Antônio Silvino; O sonho de Antônio Silvino na cadeia, em que lhe apareceram as

almas de todos os que elle matou); Todas as lutas de Antônio Silvino; A visão de Antônio

Silvino.

Leandro Gomes de Barros lidera, portanto, a lista de títulos sobre Antônio Silvino.

Atente-se que na poética desse autor não há nenhuma narrativa sobre Virgulino Ferreira, o

Lampião, pois seu ingresso no cangaço se deu a partir de 1920, ocasião em que o poeta já

havia falecido. Nesse caso, a temática do cangaço perdeu grandes lances poéticos, a exemplo

de tantos textos com exploração de assuntos variados, todos da verve do poeta paraibano.

É importante lembrar as diferenças entre o popular e o folclórico, uma vez que o

caráter deste será sempre a oralidade, o anonimato, a imprecisão cronológica e a persistência

(CASCUDO, 1978, p. 23). O que torna o popular diferente do folclórico é justamente sua

contemporaneidade e sua aproximação no tempo e no espaço. O cordel, todavia, não se

enquadra na linguagem do folclore (salvo raras exceções), por sua inserção na modernidade,

constituindo texto de fazer individual, e, portanto, por apresentar autoridade reconhecida –

embora por muito tempo mantenha o caráter da leitura em roda, como ocorre com o folclore,

além de quase sempre ser fácil identificar no tempo a criação de determinado texto. Outra

característica do texto em cordel é sua inserção na palavra escrita. Pode-se então afirmar que

se é material gráfico pode até abordar elementos de oralidade, mas não constitui memória

oral.

Podemos inferir que a literatura de cordel pode alimentar um tipo de persistência,

como por exemplo, a tentativa de se manter numa era em que o rádio, a televisão, o cinema,

os jornais, a informática, a internet, linguagens que compõem o cenário da modernidade e da

pós-modernidade, que se afirmam a cada passo. Nesse aspecto, o cordel termina por dialogar

com toda essa soma de tecnologia avançada, estabelecendo uma adaptação que o torna

também uma linguagem igualmente dinâmica, guardadas as diferenças que lhes competem.

Faz-se necessário aventar que essa adaptação da linguagem do cordel às mudanças que o

acompanham no Brasil há mais de cem anos faz dele resistente e persistente dentro dos

avanços e das evoluções que alcançamos.

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Essas criações populares europeias, já conhecidas no Brasil desde o período colonial, e

que diferem daquelas folclóricas, como quadrinhas sobre o Cabeleira, resultaram em texto

matricial, para toda uma poética dos cordelistas brasileiros, sobretudo no que concerne ao

cangaço e o que dele derivou em criação espiritual configurada numa literatura que aponta o

heroísmo de homens que aterrorizaram o Nordeste brasileiro por décadas.

Obviamente o heroísmo de um Carlos Magno difere daquele de um Lampião, mas os

escritos em torno do conquistador europeu e suas façanhas deram ao nosso poeta popular

nordestino a chave para que sua poética em torno de um Antônio Silvino ou um Lampião

fosse ao jeito das proezas e do heroísmo do lendário imperador Carlos, rei medieval dos

francos.

O tema de Carlos Magno subsiste, é transferido, mas, localizado, passa a ter caráter

nordestino. Toda a valentia do herói medieval insere-se no ambiente e na linguagem próprios

dos cangaceiros. Há de se lembrar que os cangaceiros são heróis-bandoleiros da modernidade,

aventureiros que comportam nova linguagem, e, portanto, apresentam os problemas da

modernidade. Desse modo, um Carlos Magno medieval não se adaptaria ao enredo de um

cordel do século XX. Por esse motivo, mesmo que seja inconsciente, a poética da literatura de

cordel recria a temática de Carlos Magno e jamais transcreve seu conteúdo, como propõem

alguns pensadores da matéria.

Para o sertanejo, a figura e a pessoa do cangaceiro representam seu ideal heroico e, por

essa razão, esse mesmo sertanejo sempre se interessou e sempre quis ler ou ouvir os cantares

sobre seus heróis. Se o homem do sertão via no cangaceiro o medo, percebia também que se

fazia necessário o cantar e o louvor em sua honra, pois isso não seria apenas a afirmação

desse herói, mas também do homem e da terra, representados no canto que ele sintetiza.

Observador de todas essas passagens entre o sertanejo e o cangaceiro, entre o temor e

a admiração, os poetas detinham um quê de obrigação por revelar fatos e manter essa

memória. Evidente que havia esse temor do povo em relação ao cangaceiro, ao mesmo tempo

em que havia uma busca por um herói, e este não podia ser outro, senão o próprio cangaceiro.

O povo precisava se apegar às figuras desses homens como escape e saída para suas

amarguras, as injustiças vividas, as secas, a fome e a miséria. Os cangaceiros representavam o

que os políticos, por exemplo, não ofereciam: um sentimento de justiça.

Ao enfrentarem o sistema vigente e ao combaterem os coronéis, os cangaceiros

transmitiam ao povo a conta exata da bravura e do destemor que esse mesmo povo não

mostrava, uma vez que não tinha as forças necessárias para o desafio diário contra um coronel

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de barranca, pois na luta para sobreviver esse povo dependia quase sempre de um destes

senhores feudais e a ele tinha de se curvar.

Responsáveis por guardar a memória coletiva, cantadores e poetas da literatura de

cordel sintetizam e divulgam essas lutas e essas histórias por meio da voz, os primeiros, e da

letra e da voz, os cordelistas,que, ao tirarem do prelo seus textos, perambulam por feiras e

ruas, praças e cidades, contando valentias e bravuras que perpetuam a saga dos cangaceiros e

os fazem heróis, afirmando-os, mas afirmando ainda o próprio sertanejo, pois este passa a ser

representado no cantar que resume a coletividade de que faz parte. Falar e fazer constituem

para o povo atitude de coragem e destemor. A coragem e os elementos de que o povo não

dispunha para executá-la estavam nas mãos dos cangaceiros e, sendo este vencedor, o povo

estará vingado e a justiça estará feita.

O poeta tem extrema importância em seu grupo social ao centrar seu texto na lida do

cangaço, pois é o único que dispõe do poder da palavra para a captação efetiva da realidade

que propõe focar como observador e como instrumento de ligação entre o cangaceiro e o

leitor possível ou mais precisamente o ouvinte das histórias que sintetiza e conta e até canta.

Entretanto, como porta-voz de seu povo, o poeta tem o cangaceiro igualmente como seu herói,

pois a bravura, a força, a sagacidade do cangaceiro têm de, primeiramente, chamar a atenção

do poeta. A musa da poética popular capta o momento exato de afirmar o herói frente ao povo

e a partir daí o imaginário se faz, não sem um foco no mundo dos fatos ou dos reais

acontecimentos.

O canto épico do cordel, como nos clássicos, apresenta dois planos que auxiliam no

entendimento da natureza do texto: uma realidade patente, calcada num fato, e uma realidade

mítica. A realidade patente depõe da história e de tudo que dela se conta como certeza. A

realidade mítica torna-se o resíduo do que ficou da história ou o que dela se extrai, mas há

nisso um dado interessante: é o mítico que termina por funcionar com foros de verdade, pois é

a verdade que resta e a que o povo e o seu poeta querem e aprovam. O poeta tem por função,

portanto, levar à coletividade o que colhe dessas duas realidades, para dar à sua obra o caráter

de canto épico. Os fatos evidenciam a história, e o imaginário dá relevância ao mítico ou

imaginário, sustentando a narrativa, dando-lhe a grandeza que merece um texto épico.

Na crônica do Nordeste do final do século XIX e início do XX, crimes diversos

envolviam grupos familiares rivais por circunstâncias as mais variadas como as de ordem

político-partidária, pequenas dissensões em torno de delimitações de terra, questiúnculas por

posses de animais, crimes de desonra à filha de determinada casa, e, consequentemente à

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família, entre outros. Todos motivavam desavenças que se estendiam por anos a fio e

fatalmente abarcavam outra situação: grupos familiares agregados, de um lado e de outro das

refregas, no dever da defesa mútua se digladiavam severa e sinceramente. Nesse ambiente de

tensão e morte, os chefes dessas famílias, no cumprir de seu trato de honra, quase sempre

coronéis, fazendeiros, senhores de terras e posses, ou pequenos aliados como agricultores,

posseiros, servos, terminavam por perecer em lutas, às vezes, desiguais. Morriam, porém, na

defesa da palavra empenhada e da honra de serem aliados.

Ao utilizarem o interessante recurso de um Eu que narra as aventuras cangaceirescas,

os poetas se defendem e se privam de represálias por parte dos cangaceiros e das volantes.

Criar mecanismo que lhes permita divulgar cotidiano tão delicado e perigoso é conferir

expediente de proteção que se estende, com pequena exceção, a todos os cordelistas

contemporâneos do cangaço como um quase inconsciente silencioso pacto. A esse Eu que

representa inteligente saída de criação literária para evidenciar a vida e a ação dos cangaceiros

trataremos de Eu épico. Sustentação poética dos cordelistas, é recurso que representa a voz

aos cangaceiros, pois eles mesmos narram, de forma clara e não menos contundente, suas

histórias. Ao se valer desse Eu épico, os poetas tratam, por exemplo, de furtos, roubos, mortes

horrendas, saques e ataques a pequenas cidades e povoados, ao mesmo tempo em que se

redimem, pois, apesar de ser poema épico, a terceira pessoa que lhes colocaria em apuros não

aparece no texto.

Portadores de virtudes e defeitos, atributos dos heróis, os personagens das narrativas

do cordel épico passam a um só tempo a ideia de que seu heroísmo se faz presente quando se

aponta sua valentia ligada ao enfrentamento dos poderosos locais, representados por coronéis

e fazendeiros, bem como quando do enfrentamento do poder constituído, de natureza mais

abrangente, o que envolve o estado, suas leis e suas forças militares.

Devemos, porém, lembrar que, apesar de receios quanto aos cangaceiros ou ao estado,

há predisposição dos poetas em cristalizar as aventuras e façanhas dos cangaceiros como algo

que caracterizaria o mito segundo as expectativas de parte do povo e de acordo com suas

perspectivas. O poeta sintetiza esse caráter mítico em resposta ao povo.

Abra-se um parêntese para lembrar não só a existência do cordel épico paralelamente

ao período em que os cangaceiros desempenham suas atividades como sua resistência ao

tempo, fenômeno próprio da matéria épica, mas se estendendo aos nossos dias, isto é, seu

curso corre para além do tempo em que o cangaço existiu. Além do mais, o cordel épico atual,

diferente daquele coetâneo aos cangaceiros, usa a instância narrativa, como nos épicos

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clássicos, centrada na terceira pessoa do discurso. Esse distanciamento no tempo faz com que

os poetas se sintam livres para criar e isso influencia no seguinte comportamento: embora

muitos vejam com simpatia os ideais do cangaço, podem agora apresentar visão diferente de

tudo o que propunham os poetas na época em que viveram os cangaceiros.

Desse modo, os poetas surgidos após os anos 40, marco final do cangaço, podem tanto

fazer crítica ferrenha aos cangaceiros ou dirigir-lhes, com visão humorada, a pilhéria e a

galhofa, como lhes devotar admiração exaltando-lhes a bravura. Na verdade, no pós-cangaço

esses textos podem trazer estima ou repulsa sobre os cangaceiros, o que depende do ponto de

vista de cada poeta.

Para manter vivas as histórias do cangaço, os poetas compunham e compõem uma

rede de textos que, conforme mostrado acima, extrapolam o tempo em que viveram os

cangaceiros, havendo toda uma produção de cordéis de natureza épica que passa pelos anos

50 e chega aos nossos dias. No cordel épico, entretanto, o que aparece é a razão de o poeta

engrandecer os atos dos cangaceiros como reconhecimento às suas ações e de acordo com o

que entendem por bravura, como por exemplo, o enfrentamento desses cangaceiros aos

poderes constituídos e aos seus representantes, os poderosos locais, ou seja, coronéis,

fazendeiros, comerciantes, políticos.

Resultante de um acontecimento grandioso, o canto épico se torna igualmente grande,

na medida em que o poeta desfigura a realidade histórica, tornando-a rica de elementos que

extrapolam o acontecimento real, transformando-o, através de recursos míticos, em narrativa

de caráter épico. Na literatura de cordel, essa narrativa também se dá de forma a se apresentar

com recursos parecidos aos do canto épico clássico. As desrealizações do mundo

cangaceiresco se dão de tal forma que não há como negar as realizações míticas, não havendo,

embora, como negar as instâncias do real.

No primeiro capítulo desta tese “História e memória: cordel para ser contado, cordel

para ser cantado”, se faz uma abordagem dos fatos que envolvem a trajetória dos cangaceiros

do ponto de vista da realidade, isto é, dos acontecimentos marcadamente históricos de sua

época e o que vivenciaram, mas que, transpostos para a linguagem da literatura de cordel,

adquirem caráter de memória que se estende até os dias atuais. Há também vários exemplos

de como pensadores viram o fenômeno cangaço e como se divide esse pensar em pró e contra.

Outro dado igualmente importante é que essas narrativas, por terem um “leitor

oralizado”, são contadas mediante duas estratégias: a da leitura – quase sempre em voz alta –

pelos poucos que sabiam ler, em roda, nos serões, em meio a parentes, amigos, achegados e

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aquela que se dava pelo canto a palo seco, i.e, sem auxílio de amplificadores de som, nas

feiras, nas praças, nas ruas, às vezes de memória, pela repetição; noutras, apenas de memória

por não se saber ler. O ritmo, a rima, a estrofação constituíam elementos mnemônicos que

facilitavam tanto a leitura como sua consequente memorização.

O seguinte capítulo, “Tecedores de histórias: a invenção dos cangaceiros”, traz

conjecturas sobre os poetas que tiveram como tema os grandes embates dos cangaceiros e

suas vitórias em meio inóspito e brutal. Há ainda a apresentação e consequente discussão

sobre como se criou todo um romanceiro em redor desses heróis e como essa memória foi

transposta para o cordel. Inegavelmente, Antônio Silvino e Virgulino Ferreira, nessa ordem,

foram os mais importantes cangaceiros, cada um a seu tempo e com seu estilo, e em torno dos

quais se deu toda a realidade artístico-literária da literatura de cordel. Não se deixou de

mencionar outros cangaceiros anterior e posteriormente ao auge e derrocada do fenômeno

cangaço.

Em “Romanceiro guardado, memória transferida”, primeiro subcapítulo do segundo

capítulo, há uma abordagem do cordel local e de sua afirmação no povo brasileiro e

nordestino, a partir da segunda metade do século XIX, sobretudo na sua transição para o XX,

com os poetas Leandro Gomes de Barros, Francisco da Chagas Batista, João Melchíades

Ferreira da Rocha, Severino Milanês da Silva, Silvino Pirauá de Lima e Antônio Ferreira da

Cruz, todos a obterem em velhos textos ainda medievais alicerce matricial que, transferido, se

presta a erguer construções poéticas de sabor local.

O segundo subcapítulo, “Aedos nordestinos: penas inspiradas e histórias para contar”,

faz um levantamento do que vem a ser, na ótica dos poetas populares, a representação do

cangaceiro como herói, sem perdermos de vista o elenco teórico possível, desenvolvido

academicamente e a partir de estudos que tiveram o mito como mote. Nossa pesquisa tem

como objetivo estabelecer e demonstrar atos heroicos no percurso da poética literária do

cordel, no tocante a esse herói que provém do cangaço. Seguramente, nosso olhar se volta

para a realidade de um herói inserido na cultura nordestina e de acordo com os cordelistas que

desenvolveram sua capacidade de escrever segundo a representação de um mito local, com

vistas, inclusive, para a afirmação coletiva do povo nordestino e brasileiro.

No terceiro subcapítulo, intitulado “Antônio Silvino, Lampião e outros heróis, os

fatos, os feitos, o mítico e o místico”, serão abordados os fatos e os feitos dos cangaceiros de

Antônio Silvino a Lampião, além de outros que fizeram a história do cangaço. O texto faz

notações pontuais que remetem ao período colonial com seus embriões do que viriam a ser os

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cangaceiros pelos séculos XIX e XX. As peripécias desses homens, sua violência, seus

índices de tolerância, seus embates, seus conchavos, teorias várias a seu respeito, tudo se

discute, além de se fazerem mostras de textos de cordel que ilustram os fatos e o mítico, o

místico e o político.

Em “Catábase: a descida ao inferno e a subida ao bom sertão”, quarto subcapítulo,

discute-se o espaço mítico a que os cangaceiros recorreram para configurar sua luta diária. É o

lugar em que os poetas populares inserem seus heróis, e não teria como ser outro. Palmilhar

esse espaço é descer/viver no inferno/sertão. É de lá retornar para alcançar a categoria de

herói. A marca primordial dessa aventura é se sair vitorioso. Ser levado pelo destino sem

olhar para trás é galgar a heroica galeria. O sertão é o grande inferno que os cangaceiros têm

de enfrentar. O inferno é a sobrevivência em meio à aridez não apenas geográfica, mas dos

homens: “coronéis”, senhores de terras, políticos, governo, polícia. Eles, os cangaceiros, são

também áridos, secos, valentes. Viver nessa ambientação é viver no inferno. De lá sair é não

só se purgar, mas tornar-se herói.

É sabido que não se fazem heróis com a marca do anti-herói. Os cangaceiros são, na

poética do cordel, heróis. Embora pelo olhar clássico lhes faltem a plástica e a genética

olímpicas, por outro lado, o sobrenatural, os elementos mágicos, o encantamento, a bravura e

a altivez pertinentes a um filho de deuses gregos, não lhes foram negados. Se não há a

interferência dos deuses em suas ações, a poesia popular, no entanto, lhes dão todas as faces

que caracterizam um herói: a força em meio à luta, a sagacidade, a sabedoria. No panteão

nordestino, os grandes cangaceiros são os heróis segundo o que lhes imputa seu povo e sua

gente, na ânsia, inclusive de, coletivamente, se afirmar. Os poetas percebem isso e tornam

vivos um Jesuíno Brilhante, um Antônio Silvino, um Lampião.

No terceiro capítulo, “Amores no cangaço: Marias e Dadás – Vênus no sertão”, a

intenção é mostrar que o cordel épico traz também em seu bojo as “tágides” sertanejas. Foram

elas acabocladas e trigueiras mulheres que seguiram seus homens sem pensar em

consequências, ou se nelas pensaram, não se intimidaram, pois o amor, mais forte,

sobrepujava a quaisquer perigos e as fez caminhar por ínvios sertões, no afã de, ao lado de

seus companheiros, cultivarem o que há de mais precioso no ser: amar. Sofreram e morreram

por esses loucos amores. Os cordelistas souberam devotar tributos a essas Vênus do sertão.

Nesta tese, mencionamos também canções de amor que foram imortalizadas na memória

brasileira e pertenceram tanto aos bandos propriamente quanto aos demais artistas brasileiros

de todas as épocas e gêneros.

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No quarto e último capítulo desta tese, “Oficina do cordel: a inspiração, o suor”,

versaremos sobre o fazer poético desses autores que registraram e registram o cotidiano do

Nordeste num esforço para perpetuar a cultura e a história da região. Quase todos

semialfabetizados, esses poetas, em muitas ocasiões, tecem sobre o próprio fazer literário,

independentemente da temática focalizada. Nos cordéis épicos, a presença do metapoema é

uma realidade, sobretudo quando há uma tentativa de se explicar o porquê do tema e de sua

abordagem. Pode-se afirmar com propriedade que mais de 90% desses autores não dão conta

dessa característica teórica em seus textos. Além disso, mostras e discussões sobre

intertextualidade serão uma presença constante nos textos de literatura de cordel, conforme

verificaremos.

É notório que esses fenômenos se dão na própria tradição do cordel e sempre foram

comuns a esse texto, especialmente pela ideia que os poetas trazem de inspiração: batalhar

com a palavra em duro trabalho, explicar seu enredo ou feitura, dialogar com outros textos

tanto na sua forma escrita como na leitura em voz alta para o respeitável público.

Devemos ainda acrescentar que, no que concerne à ortografia dos textos de cordel,

optamos por manter a sua autenticidade, com seus supostos “desvios” gramaticais,

respeitando o tempo em que foram produzidos e o conhecimento que têm seus poetas, no

tocante à normatividade da língua portuguesa.

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1 – HISTÓRIA E MEMÓRIA: CORDEL PARA SER CONTADO, CORDEL PARA SER

CANTADO

Vários poetas escreveram

Esta história também...

(José Costa Leite, em Nascimento vida e morte de Antônio

Silvino)

A História no seu sentido mais universal sempre fornecerá ao pesquisador a busca a

fundo dos acontecimentos. É imprescindível ir aos documentos, aos papéis, aos museus, às

bibliotecas, aos jornais, a fim de se resgatar o passado e de se tentar entendê-lo e interpretá-lo.

Na literatura, a busca pela comprovação dos fatos não é nem será um fim. Sua ligação com

um passado histórico qualquer está em com ele dialogar, se há intenção poética de se produzir

texto, por exemplo, de caráter épico.

Seguramente, qualquer evento da história da humanidade em todos os tempos trará

sempre um quê de relato paralelo. A aplicação do termo se ajusta ao texto que remete a tudo

o que se extrai de um dado real, isto é, propriamente histórico, e se estende, com o tempo, a

um imaginário erudito ou popular, numa espécie de resíduo da própria história, para se

constituir, em relato épico, versão tanto erudita quanto popular. Os relatos populares tendem a

representar as verdades em que o povo acredita e de que extrai tudo o que o legitima e com

que se identifica. Isso dá a impressão de que sua história só é real se contada, narrada por ele

ou pelo poeta, seu representante. Destarte, o povo alimenta sua própria história e a guarda

pela memória oral – quase sempre – em detrimento, a princípio, do texto escrito, pesquisado,

analisado academicamente. Acumulados na memória coletiva, os relatos populares se

transpõem de geração a geração e terminam por serem testemunhas de épocas as mais remotas

e das mais variadas histórias e vivências.

Desse modo, pode-se aventar que A história do imperador Carlos Magno permaneceu

por muito tempo na memória popular europeia porque foi não só aceita, mas identificada com

esse mesmo povo. As façanhas do lendário imperador também aguçaram o imaginário popular

brasileiro, já que a história de suas investidas foi para cá transplantada em livretos que,

igualmente, de forma oral se espalharam, ainda no período colonial, sobretudo, em solo

nordestino, espaço em que esses livrinhos de aventuras se arraigaram. Do mesmo modo,

narrativas como A Donzela Teodora, A princesa Magalona, Roberto do Diabo, João de

Calais, entre outras, legaram igual imaginário à verve nordestina. Essas faces importantes de

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21

narrativas de bravura com caráter medieval instigaram a adaptação e o desdobramento de

outras narrativas, desta feita, locais, com temática ajustada à saga dos cangaceiros.

A memória coletiva, também chamada de tradição oral, que H. Moniot (1982) define

como “tudo aquilo que é transmitido pela boca e pela memória” (p.102), tem importância no

período colonial, pois constituía a cultura oral do elemento indígena presente quando do

achamento do Brasil, com seus mitos, suas lendas, sua dança, sua música, suas narrativas de

tempos primordiais, com os idosos a passar de geração a geração as mais intrínsecas

tradições. Para ilustrar esse contato do europeu com a tradição oral nativa, veja-se o que narra

Jean de Léry, (1980) em crônica de viagem do século XVI:

Certa vez ao percorrermos o país, eu, outro francês chamado Tiago Rousseau e um

intérprete, dormimos uma noite na aldeia de Cotina; pela madrugada, ao retomarmos

a marcha, vimos chegarem de todos os lados os selvagens das vizinhanças, os quais

foram reunir-se em número de quinhentos a seiscentos numa grande praça. [...]

Durante cerca de duas horas os quinhentos ou seiscentos selvagens não cessaram de

dançar e cantar de um modo tão harmonioso que ninguém diria não conhecerem

música. Se no início dessa algazarra me assustei, já agora me mantinha absorto

ouvindo os acordes dessa imensa multidão e sobretudo a cadência e o estribilho

repetido a cada cópia: He, he ayre, heyrá, heyrayre, heyra, heyre, yuê [...]. Como eu

ainda não entendia bem a língua dos selvagens, pedi ao intérprete que me

esclarecesse sobre o sentido das frases pronunciadas. Disse-me ele que haviam

insistido em lamentar seus antepassados mortos e em celebrar-lhes a valentia.

(LÉRY, 1980, pp. 210, 214, 215)

No entanto, à medida que a civilização brasileira avança, começa a estabelecer e a

traçar outros contatos com textos orais, ou até escritos – mas com menor incidência –,

transpostos para cá com o advento de povos como o africano, o judeu, o árabe, que aportaram

principalmente num Nordeste que começava já a amalgamar mitos indígenas e portugueses de

um primeiro momento, para daí em diante deixar de ser luso-indígena e passar a sofrer

influência multicultural em razão da chegada e consequente diálogo com tantos povos.

Graças a esses contatos, fenômenos culturais que passam a integrar a tradição

nordestina, guardam, originalmente, caráter desse imaginário transposto, ao qual foi somado,

de modo natural, o imaginário autóctone, numa espécie de rede que se costurou com fios

multicoloridos para se apresentar carregada de significados locais representados ora pelo

homem do litoral, ora pelo do sertão.

Nesse caudal de cultura e ao lado da História, que constata e sustenta fatos e

fenômenos sociais, sobrevive o lendário, o realismo mágico, o sobrenatural, com o fim de

alimentar o mito. Ao se tocar no Nordeste cangaceiresco, percebe-se que esse fenômeno, para

subsistir e se afirmar, necessitou de algo a mais com que se envolvesse, para se tornar

legitimo: o imaginário popular. Na verdade, com o fim de se afirmar, qualquer povo tem de se

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munir de explicações as mais variadas para consolidar seus mitos. Nesse caso, para o povo, o

imaginário parece mais importante do que o registro propriamente histórico.

Nas culturas populares, apesar de não parecer, o imaginário sobrepuja a História e

nunca o contrário, pois aquele se dissemina de geração a geração e prevalece na memória da

comunidade, e esta termina por se restringir à escola, à biblioteca, à academia. Dessa forma,

se o povo não tem acesso nem contato com o registro que o documenta, isto é, a História, de

forma natural, reinventa, recria sua própria história, e isso só é possível pelo exato viés desse

imaginário, que diferentemente da história, que se restringe ao registro do real objetivo, se

exercita a partir do inconsciente coletivo em aberto e produzi os discursos onírico, mítico e

artístico.

Se por outro lado, a História tenta explicar, entender os fenômenos humanos

racionalmente, de forma empírica, o povo também busca se explicar, se entender e contar a

sua própria história. É como se, ao buscar fazer sua história e tudo o que a envolve, creditasse

ao imaginário todo o entendimento em torno de si, de sua origem e fundação. A História,

propriamente, funciona como re-historicização, ou seja, busca deter-se apenas no lógico, no

racional, com toda a importância e compromisso que essa ciência tem na narração e

interpretação dos fatos. No saber popular, porém, há a capacidade de contar/recontar a seu

gosto, e até segundo um caráter de subjetividade individual/coletiva, aquilo que a História

pretende analisar de forma isenta. A História é ciclo fechado; o imaginário, aberto, para se

renovar sempre.

Na história nordestina, o cangaço é uma das ocorrências que chamou a atenção de

estudiosos de várias ciências e de artistas das mais diferentes linguagens. Realidade vivida no

espaço sertanejo, o cangaço instiga a História, a Sociologia, a Antropologia a interpretá-lo e

entendê-lo, e a Literatura e outras artes a representá-lo. Associado ao ciclo das secas, à

pobreza e à miséria – em qualquer estudo ou representação artística –, o tema do cangaço será

sempre polêmico, pois depende do ponto de vista, inclusive político, de quem o observa. No

ambiente acadêmico, a formação e orientação política (quase sempre de esquerda) dos

pesquisadores dirão da maior ou menor querela em torno do assunto que, por anos, não só

afligiu, mas encantou o Nordeste brasileiro. Nas artes, rara a representação que não seja

voltada para a justiça e igualdade social.

Nomeadamente, o cangaço não está ligado apenas à miséria, à pobreza e à fome,

afirmativa trivial de considerável parte dos estudiosos. É certo que o meio em que se deu esse

fenômeno, por questão geográfica e climática, é propenso a essa pobreza, miséria e fome, a

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ponto de Billy Jaynes Chandler (1981) asseverar que “a grande época do cangaço brasileiro

começa com a mortífera seca de 1877-1878 e alcança seu apogeu quantitativo com a de 1919”

(p. 27). No entanto, havia nesse mesmo ambiente inóspito uma gente abastada cuja riqueza

era justificativa para as ações dos salteadores andantes e sua consequente sustentação. Havia

nas terras palmilhadas pelos cangaceiros, apesar das secas, uma prodigalidade em reses,

fazendas, comércio, armazéns, coletorias, entre outros, lugares em que os bandoleiros

empreendiam sua força e violência para amealhar fortuna e poder (financeiro e político), ao

mesmo tempo em que se faziam ou se deixavam propagar como defensores da justiça e dos

pobres.

Em estudo acurado sobre o banditismo, afirma Eric Hobsbawm (2010):

Ao mesmo tempo, porém, o bandido é inevitavelmente arrastado à trama da riqueza

e do poder, porque ao contrário dos outros camponeses, ele adquire aquela e exerce

este. Ele é “um de nós” constantemente envolvido no processo de associar-se a

“eles”. Quanto mais bem-sucedido é um bandido, tanto mais ele é ao mesmo tempo

um representante e paladino dos pobres e parte integrante do sistema dos ricos.

(HOBSBAWM, 2010, p. 118)

Observe-se que a disputa pelo poder, em todos os sentidos, era inerente aos

cangaceiros. Há, porém, de se destacar que lhes interessava,sobremodo, o poder econômico ao

político, devido a sua não fixação em lugar algum, por seu cotidiano desmedido e sem pouso

certo, por seu natural caráter nômade e por estarem sempre em fuga, quando não em combate

com as forças volantes de sua área de atuação.

Um chefe cangaceiro ou seus comandados não podiam se aquartelar e mostrar

qualquer poder em lugar fixo, determinado. Dessa forma, seu poder político se dava

indiretamente, pela influência, por exemplo, de amizades políticas com coronéis de quem

viessem a ser aliados.

De acordo com Vera Ferreira e Antônio Amaury (2009):

Em todos os estados percorridos por Lampião, existiam coiteiros de grande poder

político e econômico, com exceção do Rio Grande do Norte. No Ceará estava

Antônio Joaquim de Santana, pai do secretário de Justiça do estado. Na Paraíba, o

[...] coronel Pereira. Em Pernambuco existiam vários, entre eles o coronel Ângelo da

Gia e, surpreendentemente, o comandante das forças volantes, Theophanes Ferraz

Torres, que chegou a vender munição a Lampião, segundo depoimento de pessoas

da época [...]. Finalmente, Em Sergipe, o coiteiro mais conhecido era Antônio de

Carvalho, o Antônio Caixeiro, pai do interventor [governador] do estado, o capitão

do Exército doutor Eronildes de Carvalho. (FERREIRA e AMAURY, 2009, pp. 34-

35)

Ao referir-se ainda à rede de aliados e coiteiros, Lampião, em entrevista ao médico

Otacílio Macedo, em 1926, em Juazeiro do Norte, só se mostra decepcionado com o temido e

influente coronel José Pereira Lima, o Zé Pereira, chefe da chamada revolta de Princesa, na

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Paraíba, que, no início de 1930, declara a hoje cidade de Princesa Isabel, como República de

Princesa, e, portanto, território independente dentro daquele estado da federação. Privados,

anteriormente, de boa amizade, rompem e se tornam inimigos figadais, de quem afirma

Virgulino Ferreira na entrevista a Macedo: “De todos os meus protetores, só um,

miseravelmente, me traiu. Foi o coronel José Pereira Lima, chefe político de Princesa. É um

homem perverso, falso e desonesto, a quem servi durante anos, prestando os mais vantajosos

favores de nossa profissão”. (FERREIRA E AMAURY, 2009, p. 306)

No entanto, há outro coronel com quem Lampião se indispõe, apesar da amizade que

também nutriam anteriormente. Trata-se do coronel baiano Petronilo de Alcântara Reis,

conhecido por coronel Petro, que terminou por trair o bando comandado por Lampião e de

quem, por esse episódio, passa a ser tão perseguido que foge de suas fazendas:

A convivência entre os dois era bastante amistosa e sempre que se encontravam, a

recepção era amável. Até que, ao ser atacado por uma volante baiana, o grupo de

Lampião matou o sargento Afonso. Ao revistarem o corpo do sargento, foi

encontrado um bilhete assinado pelo coronel Petro indicando os locais frequentados

pelo grupo, além de instigar os policiais a eliminarem Lampião. Foi a conta. Ao

descobrir mais uma traição, lampião e seu grupo passaram a destruir as fazendas do

coronel.

O coronel Petro ainda tentou enfrentar o cangaceiro, mas os prejuízos eram tão

grandes que o levaram a abandonar a luta e retirar-se da região para preservar a

própria vida. (FERREIRA E AMAURY, 2009, p. 194)

Ressalte-se que Virgulino Ferreira, para quem o cangaço fora profissão, mantivera o

primeiro contato com outro coronel, o padre Cícero, importante e poderoso líder espiritual e

político, nos idos de 1926, em casa do poeta popular João Mendes, na cidade de Juazeiro do

Norte-CE, ocasião em que tratara com o santo patriarca nordestino de assunto relativo à

Coluna Prestes. Em relação àquele estado e ao padre, declara Lampião:

Sempre respeitei e continuo a respeitar o estado do Ceará, porque nele não tenho

inimigos. Nunca me fizeram mal e, além disso, é o estado do padre Cícero. Como já

disse, tenho a maior veneração por esse santo sacerdote, porque é o protetor dos

humildes e infelizes e, sobretudo, porque há anos protege minhas irmãs que moram

no Juazeiro [...]. Convém dizer que eu ainda não conhecia o padre Cícero, pois esta é

a primeira vez que venho a Juazeiro. (FERREIRA E AMAURY, 2009, p. 310)

Como afirmado anteriormente, e de acordo com essa citação, pode-se inferir que a um

chefe cangaceiro importava, além do já citado poder econômico, apenas rápido e sorrateiro

contato político a exemplo deste com o padre, como uma espécie de suporte e sustentação

para as ações que propõe executar. Dispor de apoio político é, de todas as formas, ter aval

para cruzar fronteiras, agir livremente, fazer conchavos, contar com proteção de várias

vertentes e de diversos lugares por que tinha de passar. Ter tamanho apoio permite a um chefe

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cangaceiro agir como se tivesse ele próprio mando e força política. Pelo menos indiretamente,

devido às cartas brancas que conduzia.

Saliente-se, porém, que, tanto na literatura de cordel quanto nos estudos sobre o

cangaço, Antônio Silvino e Virgulino Ferreira, os dois grandes chefes, por ironia, talvez, ou

de modo inconsciente ou até consciente ou devido a não exercerem o poder político, se

autointitularam, cada um no tempo em que atuaram como governadores do sertão, em

desafio, literalmente, às autoridades e aos poderes constituídos.

Nesse caso, perceba-se que, de uma forma ou de outra, havia por parte dos bandoleiros

referidos uma inconsciente vontade de mando, no sentido mesmo político, embora isso jamais

fosse possível, e decerto, Silvino e Lampião disso tinham consciência.

Num momento qualquer de sua trajetória, Lampião endereça carta ao então

governador do estado de Pernambuco, Júlio de Melo, que lhe fora entregue pelas mãos de

Antônio Guimarães, chefe de polícia do estado. A missiva chegou a Guimarães por

intermédio de Pedro Paulo Mineiro Dias, engenheiro e representante comercial da Standart

Oil, que teria sido feito refém dos cangaceiros capitaneados por Virgulino Ferreira e fora

liberado sem pagamento de resgate. Frederico Maciel (1988) apresenta o conteúdo do texto

escrito por Lampião em que reza os motivos da partilha do estado entre o litoral e o sertão:

fica o mar por conta do governador e o sertão segundo o mando do chefe cangaceiro:

Senhor governador de Pernambuco,

Suas saudações com os seus.

Faço-lhe esta devido a uma proposta que desejo fazer ao senhor para evitar guerra

no sertão e acabar de vez com as brigas. [...] Se o senhor estiver no acordo, devemos

dividir os nossos territórios. Eu que sou capitão Virgulino Ferreira Lampião,

Governador do Sertão, fico governando esta zona de cá por inteiro, até as pontas dos

trilhos em Rio Branco. E o senhor, do seu lado, governa do Rio Branco até a

pancada do mar no Recife. Isso mesmo. Fica cada um no que é seu. Pois então é o

que convém. Assim ficamos os dois em paz, nem o senhor manda seus macacos me

emboscar, nem eu com os meninos atravessamos a extrema, cada um governando o

que é seu sem haver questão. Faço esta por amor à Paz que eu tenho e para que não

se diga que sou bandido, que não mereço. Aguardo a sua resposta e confio sempre.

Capitão Virgulino Ferreira Lampião, Governador do Sertão (MACIEL, 1988, p. 38)

A atitude de Lampião (se de deboche, se irônica, se verdadeira, embora pelo tom

pareça verdadeira) é de caráter universal entre os bandidos. A ânsia pelo poder traduz, em

termos políticos, a ideia mesma de tomá-lo do estado e de ter maior domínio em sua

comunidade. Se se descartar o Virgulino Ferreira desvencilhado de proposta propriamente

política, revolucionária, de tomada do poder em nome do povo, é possível que a missiva

endereçada ao governador de Pernambuco não tenha valor de protesto pelo poder. Nesse caso,

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soa irônica e constitui apenas insulto. Do contrário, sua atitude seria de defesa do povo e de

tomada do poder pela revolução, mas isso, de fato, não condiz com as propostas do

bandoleiro.

Sobre Antônio Silvino igualmente corre a lenda de que se arvorava a governar o

sertão, a que chamava de estado. Como fizera Lampião (e talvez este o fizera por imitação a

esse seu antecessor), há registro de mensagens sarcásticas enviadas por Silvino às autoridades

de seu tempo. Ao presidente (termo em voga na época para os governadores dos estados) da

Paraíba, conforme Leonardo Mota (1982), enviara telegrama irônico, desafiador e com uso de

trocadilhos:

Ao folclorista Dr. José Rodrigues de Carvalho, então Secretário de Estado, mandou

ele [Antônio Silvino] dizer em referência ao Chefe de Polícia Dr. Antônio Massa e

ao presidente Castro Pinto: -“Pise milho, sesse massa e dê a esse pinto pra comer

que o mal dele é fome!” (MOTA, 1982, p.181)

Leandro Gomes de Barros, com texto em terceira pessoa (raro, já que é

contemporâneo de Antônio Silvino), entre crítico e verdadeiro, apresenta a tonalidade política

que marcou o cangaceiro e o seu apoio, inclusive, a um político local em processo de eleição

também na Paraíba. No texto, a mesma proposta de o governador dominar a capital, e ele,

Silvino, o sertão:

A Paraíba do Norte

Hoje está em desatino;

Uns se queixam do governo,

Outros de Antônio Silvino,

A política parece

Brincadeira de menino.

[...]

Antônio Silvino disse

Que agora, na Paraíba

O que não votar com ele

Pode ir arrumando o quiba,

O eleitor pobre apanha,

O rico morre ou arriba!

Diz ele que se o Governo

Lhe tomar a eleição,

Ele tem o doutor rifle

Para ganhar-lhe a questão,

E a dona ponta de faca

Lhe dispensa proteção.

[...]

Antônio Silvino disse:

- “Eu não aliso ninguém...

Se Rego barros perder,

A coisa aqui não vai bem...

Em pilão que eu piso milho

Pinto não come xerém...

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Tenho uma opinião:

Que morro porém não minto!

Aqui, sem ser Rego Barros,

Outro vindo, eu não consinto!

Eu só voto em galo velho

Quem quiser que vote em pinto...

Telegrafei ao Governo

E ele lá recebeu,

Mandei dizer-lhe: - Doutor,

Cuide lá no que for seu:

A Capital lhe pertence,

Porém o Estado é meu!!!” (BARROS apud MOTA, 1982, pp. 179-181)

De todo modo, é do cotidiano do banditismo social a tentativa de tomada do poder

constituído. Se Lampião ou Antônio Silvino não eram politizados a esse ponto, a carta do

primeiro e o telegrama do segundo revelam, porém, o que era práxis entre os bandidos sociais

ao longo da história. Hobsbawm (2010) mostra o acabado retrato desse comportamento nos

bandidos tanto da Europa quanto da Ásia diante da fragilidade dos governos em territórios

dominados por bandidos:

A debilidade do poder propiciava o potencial para o banditismo. Com efeito, até

mesmo os impérios mais fortes – o chinês, o antigo Império Romano em seu apogeu

– consideravam que certo grau de banditismo era normal e endêmico nas áreas

fronteiriças dedicadas ao pastoreio em zonas congêneres. [...] Como fenômeno de

massa (vale dizer, como ação independente de grupos de homens violentos e

armados), o banditismo somente ocorria onde o poder era instável, estava ausente ou

havia entrado em colapso. Nessas situações, o banditismo passava a ser endêmico,

ou até mesmo pandêmico [...]. Em tais momentos, líderes independentes de homens

armados podiam penetrar, eles próprios no mundo do poder real, do mesmo modo

como, em outras épocas, clãs de cavaleiros e salteadores nômades haviam

conquistado, por terra ou por mar, reinos e impérios. (HOBSBAWN, 2010, pp. 30-

31)

Os documentos enviados por Lampião e por Silvino constituem mais uma espécie de

crítica ácida desses chefes cangaceiros do que uma realidade/sonho de poder político a

conquistar para o povo. Textos desaforados como este sempre foram direcionados aos

poderosos tanto locais, isto é, coronéis, prefeitos, juízes, como aos de patentes mais

destacadas, como governadores. A ironia representava o pensamento dos cangaceiros, por

acharem fracos, impotentes e inoperantes não só essas autoridades, mas também seus agentes

nas perseguições aos bandos. As narrativas de cordel apresentam essa face de governadores

do sertão encontrada em Antônio Silvino e em Lampião. Sobre o primeiro, também

cognominado Rifle de Ouro, escreve Leandro Gomes de Barros:

Pergunta o valle ao outeiro

O Iman à exhalação

O vento pergunta a terra

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E a brisa ao furacão

Respondam todos em coro

Esse é rifle de ouro

Governador do sertão. (BARROS, apud CURRAN, 2001, p. 68)1

Sobre Lampião há o seguinte excerto, que também dá conta das questões políticas em

que o cangaceiro se quer meter. Narra o poeta:

Nos sertões onde eu governo

A justiça é positiva

O juiz é meu fuzil

Donde toda lei deriva

Todos me pagam imposto

E quem não pagar com gosto

Conte com minha ofensiva. (BATISTA apud CURRAN, 2001, p. 72)

Além dos já supracitados protetores e amigos de Lampião, é importante apontar outros

como os fazendeiros e comerciantes coronel Antônio da Pissara, de nome Manuel Teixeira

Leite (que em dado momento foi obrigado pelo tenente Alencar, chefe de volantes, a entregar

o coito de Lampião e seus sequazes); coronel José Abílio D’Ávila, coronel Joaquim Rezende,

todos, amigos, coiteiros e parceiros em várias situações (Cf.: OLIVEIRA, 1970, pp. 318-320).

Essas relações de amizade constavam dos mais variados interesses: os de ordem política, da

compra de armas, de munição, (de que mais o chefe precisava) e negócios de toda a natureza.

Ter apoio de quem detivesse poder era importante para todos os chefes cangaceiros, de

Antônio Silvino a Virgulino Ferreira, pois esses contatos com os todo-poderosos coronéis era,

de certo modo, estratégia de sustentação política e consequente manutenção do próprio

cangaço.

A propósito do chamado coronelismo, as primeiras notícias que se têm a seu respeito

no Brasil vêm do século XVII e estão ligadas à capitania de Pernambuco. Com a criação do

Governo Geral, em 1549, a terra continua a ser repartida em Sesmarias, ou seja, segue a

cultura do latifúndio, reduto do senhor de terras que dá origem ao coronel.

Luiz Luna e Nelson Barbalho (1983) dão conta desse fenômeno e apontam:

O primeiro coronel com patente que apareceu no sertão de Pernambuco, nomeado

pelo governador Pedro de Almeida, em 1674, ao tempo da Guerra dos Palmares, foi

o fidalgo Luiz do Rego Barros, filho do capitão-mor Francisco do Rego Barros e

descendente em linha reta de Arnau de Holanda. Essa patente é histórica por ser a

primeira expedida oficialmente e foi produzir seus efeitos na área que veio a ser a

Comarca de São Francisco, território que pertencia a Pernambuco [...]. (LUNA e

BARBALHO, 1983, p. 28)

1 Como as informações referentes à data de publicação dos folhetos de cordel são muitas vezes divergentes, e

outras até inexistentes, optamos por indicar entre parênteses apenas o último sobrenome do autor e a indicação

da página de onde foi transcrito o fragmento citado.

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Ainda no contexto dos coronéis, faz jus voltar aos tempos conturbados do século XIX,

quando da abdicação de D. Pedro I, em 7 de abril de 1831, protagonizada pela força das

classes abastadas e dos proprietários rurais, grandes senhores da terra. Nesse momento

histórico e com a independência consolidada, a regência trina faz com que os coronéis

detenham poderes, pois ganha força um sistema paramilitar criado pelo próprio Feijó, com o

nome de Guarda Nacional, e que se estende até os idos de 1922, quando é extinta no governo

de Epitácio Pessoa (Cf.: LUNA e BARBALHO, 1983, pp. 123 e 131).

O ato de criação da Guarda Nacional tem o sentido, inclusive, de inibir as reações e

agitações populares, além das ameaças de insubordinação de tropas militares insatisfeitas

tanto na Corte quanto nas províncias. Esse temor levou os liberais, por medo e insegurança, a

pensarem na instituição de forças paramilitares:

Em tais condições, na sessão de maio de 1831, era lido o texto do decreto-lei

instituindo a Guarda Nacional. Com sua criação, aboliam-se as Milícias, cujas

forças, contudo, ainda permaneciam vivas por alguns anos, sendo extintas à

proporção que se instalavam os corpos da nova organização militar [...]. A Guarda

Nacional empresta caráter oficial aos tradicionais coronéis de barranco. (LUNA e

BARBALHO, 1983, p. 132).

Quanto à relação cangaceiro/coronel, se um chefe do primeiro grupo, conforme já

ventilado, não podia centralizar poder, se pode supor esse mesmo poder pulverizado na figura

do segundo, se aliados, na busca mútua por força e apoio, recompensados pela troca de

serviços e favores. Sempre houve alianças entre chefes cangaceiros e coronéis, pois sem a

cobertura destes, aqueles não agiriam por tanto tempo e impunemente.

Segundo Aglae Lima de Oliveira, o coronel Zé Abílio foi acusado muitas vezes de ter

fornecido munições a Lampião. Em Bom Conselho de Papacaça (atual Bom Conselho – PE),

os irmãos Ferreira ficaram a expensas do dito coronel por vários anos:

Virgulino tinha verdadeira estima e respeito pelo coronel de Bom Conselho. Jamais

se desentenderam. O coronel conhecia tão bem Lampião, que por ocasião da morte

desse bandido, foi convidado para o reconhecimento do cadáver. Autoridades

lavraram o documento, arquivando-o no Batalhão da Polícia Militar, sediado em

Maceió. (OLIVEIRA, 1970, p. 318).

Padre Cícero, igualmente havido como coronel dos maiores do Nordeste, também

mantivera contato com Lampião, conforme anteriormente mencionado. Na verdade, Floro

Bartolomeu da Costa, médico particular e conselheiro do padre em questões políticas, sugere

e articula a visita do bandoleiro à cidade sagrada do Nordeste, pois é Floro encarregado pelo

governo federal para dar combate aos ideais políticos de Luiz Carlos Prestes.

Assevera Abelardo Montenegro (1973):

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30

A 8 de março de 1926, falecia no Rio de Janeiro, o caudilho Floro Bartolomeu da

Costa.

Anteriormente, havia sido ele comissionado no posto de general pelo presidente

Artur Bernardes, para comandar as tropas que lutariam contra a coluna Prestes,

Floro Bartolomeu organizaria um Batalhão Patriótico e teria autorização de nomear

os seus lugares-tenentes.

Recebia Floro do Banco do Brasil uma ajuda de custo de mil contos de réis e o

Governo lhe fornecia, ainda, armamento. (MONTENEGRO, 1973 p. 286)

O presidente Artur Bernardes, ao que parece, não se lembrara de que poderes

paramilitares como a Guarda Nacional, remanescente do Império, haviam sido desfeitos por

Epitácio Pessoa quatro anos antes. Autorizar a criação do Batalhão Patriótico é continuar a

manter todo um poderio nas mãos de coronéis e senhores de terras no Nordeste. Constituíam

esses grandes proprietários oligarquias rurais de extremo poder e violência.

Desse modo, coronéis continuam a mandar, sobretudo, no sertão sob a proteção e a

chancela de um Estado igualmente atrasado, cujas forças políticas e militares não se

mostravam eficientes no combate aos seus problemas internos. Quanto a contratar a Lampião

e seu bando para agirem em represália à Coluna, embora não houvesse a concordância de

padre Cícero, vence o deputado, e o sacerdote cede.

Se havia um clamor para que se prendesse Lampião, se havia uma imprensa

independente que isso cobrava, por outro lado, havia uma imprensa complacente e dócil para

com o padre. O jornalista J. Matos Ibiapina, do O Ceará, em 16 de março de 1926, asseverava

“que padre Cícero não protegia criminosos por interesse pessoal para deles usar na defesa de

sua política. Fazia-o por bondade e para demonstração de prestígio” (MONTENEGRO, 1973,

p. 288).

Gonçalo Ferreira da Silva, ao escrever o cordel Evangelho primeiro do padre Cícero

Romão, remete a essa bondade de patriarca e conselheiro de todos os que o procuravam,

inclusive cangaceiros:

Serviu de mediador

Entre a dura autoridade

E o voraz cangaceiro

Que a fraca sociedade

O deixara sem nenhuma

Espiritualidade.

Padre Cícero deixava

O seu interlocutor

De agressivo, sereno

Com respeitoso temor

No fim ainda lhe dava

Humana aula de amor.

Protegia cangaceiros

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31

Mas de modo diferente

Muitas vezes ministrando

Um conselho inteligente

Querendo que fosse humano

Sem deixar de ser valente. (SILVA, p. 6)

Além do prestígio de que o padre gozava, houve o acatamento, por sua parte, das

sugestões de Floro Bartolomeu (na ocasião, recém-falecido) em relação ao jovem Virgulino

Ferreira e sua promoção. Por consideração ao ex-deputado, o desfecho da patente termina por

acontecer, independentemente de todas as reais repulsões tanto ao sacerdote quanto a

Lampião, mas principalmente ao padre:

Relativamente a Lampião e seu grupo, padre Cícero não cederia ao governo um

milímetro sequer de sua posição, pois considera a palavra empenhada por Floro

[Bartolomeu] uma questão de honra.

A campanha contra padre Cícero pelo fato de receber Lampião, incorporando-o ao

Batalhão Patriótico para cumprir a palavra empenhada por Floro, generalizava-se em

todo o país. (MONTENEGRO, 1973, p. 289)

As querelas e as motivações políticas dos agitados anos de 1920, sobretudo naquilo

que diz respeito à Coluna Prestes e ao seu alastrar de ideais comunistas por todo o país, fazem

com que o padre defenda e proteja Lampião e seu bando, pois o cangaceiro se envolve com os

propósitos de combater a Coluna. Os apelos do deputado Floro Bartolomeu fizeram com que

Lampião apoiasse a luta contra os comunistas, embora, seguramente, o cangaceiro não

soubesse na íntegra o que vinha a ser esse olhar político de Luiz Carlos Prestes e de seu

grupo. Seu interesse na prometida outorga da patente de oficial do polêmico Batalhão

Patriótico também lhe era rendoso, pois o cangaço era já um negócio. Em entrevista

concedida em Juazeiro do Norte e publicada no jornal O Ceará, de 17 de março de 1926,

responde Lampião a uma pergunta do repórter quanto a abandonar o cangaço, “que se vai se

dando bem com o negócio e não pensa em abandoná-lo” (MELLO, 2004, p. 118).

Lampião adentrou a cidade sagrada do Ceará com 49 homens a quatro dias da notícia

da morte do próprio Floro Bartolomeu, que pelo menos dois meses antes dessa fatalidade

havia coagido por carta Virgulino Ferreira a tomar parte nesse evento histórico de combate à

Coluna Prestes.

Épica e triunfal é a entrada do bando a Juazeiro. Num misto de temor e de admiração,

o povo não resiste à curiosidade. O fato foi descrito da seguinte forma:

No dia 4 de março de 1926, Lampião e 49 cangaceiros chegavam a Juazeiro. Nas ruas, para vê-los, aglomeravam-se umas quatro mil pessoas. Estavam

os bandidos bem armados e municiados. Vestiam, na maioria, brim cáqui. Calçavam

alpercatas de rabicho e chapéu de couro. Usavam lenços de cores diversas amarrados

ao pescoço. Conduziam rifles e fuzil mauser, revólver e punhal. Traziam à cintura

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32

três a quatro cartucheiras, acondicionando nelas, cada homem, um total de 400

balas. (MONTENEGRO, 1973, p. 286)

Havia, é certo, na trajetória e no encalço dos cangaceiros poderosos inimigos, pois

essa lida dividia opiniões, mas nessa ousada investida os cangaceiros contavam muito com a

habilidade de dialogar ou de alguém por eles exercer essa função com mandatários locais em

diversas situações. Padre Cícero, poderoso que era, teve a sagacidade e, igualmente, a

capacidade não só de contornar qualquer posição contrária, mas de receber o bando e cumprir

com a promessa empreendida por Bartolomeu. Concedeu a patente sugerida tanto por este e

tão desejada por Lampião:

Após o café da manhã do dia seguinte, encaminhou-se à Igreja Matriz de N.ª S.ª Das

Dores. Palestrou demoradamente, em audiência particular, com o padre Cícero

Romão Batista. Lampião manifestou ao sacerdote o grande desejo de ser incluído no

Batalhão Patriota. Batalhão das Forças Legais, sediado em Campos Sales, estado do

Ceará. Solicitou sua interferência a fim de conseguir o despacho de sua promoção ao

posto de capitão. [...] o Padre Cícero redigiu a patente. O Dr. Pedro de Albuquerque

Uchoa, engenheiro agrônomo, a pedido do padre, assinou o documento. (OLIVEIRA, 1970, p. 58).

Consta que Lampião, na conversa com o padre, além da patente de capitão que requere

para si, exige que se nomeiem seu irmão Antônio Ferreira e Sabino Barbosa de Melo como 1.º

e 2.º tenentes, respectivamente. Na lavratura do documento em que se concede a patente a que

tanto ansiava Virgulino Ferreira, vê-se que fora atendido o cangaceiro em sua petição.

O documento dava a Lampião a possibilidade de atravessar livremente os estados do

Nordeste sem sofrer perseguição policial de nenhuma espécie, como um tipo de salvo-

conduto. Nesse momento, estava o cidadão Virgulino Ferreira à frente de seu grupo como

integrante das Forças Legalistas que davam combate a Prestes. No entanto, o cangaceiro não

percebeu que fora logrado, pois o papel que o punha como oficial não teria valor, e, portanto,

não gozava do reconhecimento das ditas Forças. De todo modo, a empreitada surtiu relativo

efeito: atualizou o armamento com substituição do rifle já antiquado por modelo de 1908,

além de seus soldados mais aguerridos terem ganhado cerca de 400 cartuchos,e os demais,

300, tudo fornecido e legado por Floro Bartolomeu, a quem, conforme já dito acima, fora

confiado recrutar o Batalhão Patriótico de Juazeiro (Cf.: OLIVEIRA, 1970, p. 59).

Nos seguintes termos, padre Cícero lavra as patentes de Virgulino Ferreira, Antônio

Ferreira e Sabino Barbosa de Melo:

Nomeio ao posto de capitão o cidadão Virgulino Ferreira da Silva, a 1.º tenente

Antônio Ferreira da Silva, a 2.º tenente Sabino Barbosa de Melo, que deverão entrar

no exercício de suas funções, logo que deste documento se apossarem. Publique-se e

cumpra-se.

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33

Dado passado no Quartel das Forças Legais do Juazeiro, Batalhão Patriota, sediado

em Campos Sales.

Juazeiro, 12 de abril, de 1926. (OLIVEIRA, 1970, p. 59)

Havia ainda no texto o seguinte adendo: “Reconheço ao senhor capitão Virgulino

Ferreira da Silva o direito de se locomover livremente, transpondo as fronteiras de qualquer

estado com os patriotas” (OLIVEIRA, 1970, p. 59).

Faz jus descrever a bela narrativa do fardamento de Virgulino Ferreira, a partir dali,

capitão Virgulino Ferreira da Silva: “Lampião vestiu-se como verdadeiro capitão. Túnica

Cáqui, na platina três galões de sutache branco, botas e chapéu de massa, cartucheira e

talabarte. Um jovem capitão de 28 anos de idade. Reuniu toda a família e tirou fotografias”.

(OLIVEIRA, 1970, p. 59).

Desse momento histórico, registra-se ainda a visita que o poeta José Cordeiro fez a

Lampião, encontro que resultaria no folheto Visita de Lampião a Juazeiro, (Cf.:

CARVALHO, 2002, p. 69), cujos trechos mais importantes transcrevemos abaixo:

Tudo quanto já expus

Exijo a publicidade

Para que todos conheçam

O que é uma verdade

Como bem, esta visita

Quero que saia descrita

Com toda sinceridade.

A causa dessa visita

Vou dizer de antemão

Para que ninguém suponha

Que foi mera presunção

Eu entrei aqui amarrado

Foi mediante um chamado

Dum homem de posição.

Portanto não vão julgar

Que eu seja presumido

Só penetrei na cidade

Não foi por ser atrevido

Foi atendendo um chamado

Do homem mais elevado

Que eu tenho conhecido.

Foi por intermédio desse

Que obtive o perdão

Dele também recebi

A minha nomeação

Troquei, disso não duvido

Minha farda de bandido

Por outra de capitão.

Em troca dessa patente

(Quem me deu assim o diz)

Vou perseguir revoltosos

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Enquanto houver no país

Com esta resolução

Marcharei para o sertão

Com fé que serei feliz.

Não serei mais cangaceiro

Sou capitão Virgulino

Nem também serei ladrão

Só fico sendo assassino

Troquei velhas profissões

Por 3 bonitos galões

Da polícia, que destino!

Agora, seu Zé Cordeiro

Já expus toda verdade

Com minha autorização

Pode dar publicidade

Todo mundo dê por visto

Que está descrito nisto

A maior realidade.

Não espero pra levar

Um romance publicado

Porque o tempo não dá

E mesmo eu estou vexado

Mas espero no sertão

Me chegar sem delação

Este livro desejado. (CORDEIRO, pp. 20-21)

Na história do cangaço, há de se concordar, o mais importante chefe de bando foi,

incontestavelmente, Virgulino Ferreira da Silva. Há de se ressaltar, porém, que antes do

capitão há outras tantas histórias de cangaceiros cuja biografia não se deve olvidar, inclusive

pelo valor de inegável pioneirismo, a exemplo de José Gomes, o Cabeleira, com atuação ainda

no século XVIII, e de notória e comprovada existência. Segue lista de outros nomes

importantes que remonta aos idos do Império e se prolonga até o século XX, especificamente,

os anos de 1940, marco do fim do cangaço. Havia os que se tornaram conhecidos pelos nomes

das famílias a que pertenciam, o que denota a formação de grupos familiares, os que traziam

os nomes acrescidos dos topônimos de origem e os que detinham apelidos por motivos vários:

Cunhas, Patacas, Lucas da Feira, Cacundos, Mourões, Moquecas, Liberatos, Guarabiras,

Brilhantes, Curundu, Rio Preto, Pinto Madeira, Feitosa, Calango, Cacheados, Simões,

Massuna, Viriatos, Adolfo Meia-Noite, José Antônio Ataíde, Salvaterra, Manuel Basílio,

Cipriano Queirós, Né Pereira, Cassimiro do Navio, Sinhô Pereira, Irmãos Porcino. (Cf.:

OLIVEIRA, 1970, p. 322).

Frise-se que o último bandoleiro importante (OLIVEIRA, 1970, p. 358) tomba em 23

de março de 1940, pelas mãos da tropa volante do coronel Zé Rufino. Trata-se de Corisco,

que, numa derradeira missão de fidelidade à memória de Virgulino Ferreira, tinha por

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35

finalidade vingar a morte do amigo e compadre, que havia sido morto na Grota de Angicos,

em Sergipe, a 28 de julho de 1938.

Lembre-se que o banditismo errante tem na história brasileira um longo trajeto.

Documentos mais antigos dão conta de que já no século XVII há registros de protótipos dessa

vida marginal andante que, de algum modo, figuram como proto-história do cangaço, termo

este, que, por sua vez, se populariza e passa a ocorrer correntemente de finais do século XIX

ao XX e atualmente.

Quanto à existência de bandos armados no período colonial brasileiro, note-se certo

medo e tensão no povo e a preocupação das primeiras autoridades que já mencionavam a

presença de banditismo itinerante. Corrobora a ocorrência desses protocangaceiros coloniais

Frederico Pernambucano de Mello, que aponta:

Descrevendo os primeiros tempos da capitania de Duarte Coelho, Oliveira Lima

refere várias vezes à insegurança que a caracterizava, pela irrefreada atuação de

criminosos em correrias sem fim. No século XVII, ainda mais intensa revela-se a

ação de salteadores e bandidos, segundo palavras do mesmo cronista. (MELLO,

2004, p. 93)

No século XVII, em terras pernambucanas, constata-se a presença de atores de vida

marginal, em maioria, holandeses, seguidos de franceses. Nesse lapso de tempo em que os

batavos aqui estiveram, nossos avós aprenderam alguns rudimentos de um banditismo que se

estende por séculos, a considerar sua origem no passado colonial tanto do Brasil português

quanto no holandês:

Ao longo do período de colonização holandesa no Nordeste, vamos surpreender

nosso banditismo caboclo enriquecido pela presença de estrangeiros, desertores das

tropas de ocupação, sendo de franceses e holandeses o contingente mais expressivo

que se mesclava aos aventureiros da própria terra e aos negros fugitivos. (MELLO,

2004, p. 93)

Ainda:

E não ficamos nisso apenas. Houve mesmo chefes de grupos que eram holandeses.

Assim o caso do célebre Abraham Platman, natural de Dordrecht, ou ainda certo

Hans Nicolaes, que agia na Paraíba à frente de trinta bandoleiros por volta de 1641.

Três anos após esta data, em 1644, os manuscritos holandeses fazem referência a

outro chefe de bandidos que já se tornara notório: Pieter Piloot, igualmente

holandês. Eram os boschloopers, salteadores ou, literalmente, batedores de bosque,

da designação holandesa do século XVII. (MELLO, 2004, pp. 93-94)

Destarte, pode-se inferir que essa espécie de banditismo nômade apresenta uma

antiguidade que vai ao período colonial e que se renova ao longo dos tempos, mas sempre

com atitude e proposta semelhantes: tumultuar a ordem, pilhar, invadir comunidades inteiras,

tomar de assalto a vida privada dos inimigos, de pessoas simples e de famílias comuns,

promover a vingança – sempre ligada à morte ou ao infortúnio de um parente próximo –,

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36

enfrentar os poderosos de vida estável e estabelecida e deles roubar para distribuir com os

menos afortunados. Eis o mito que acompanha e sustenta esses homens dispostos a enfrentar à

vida e à morte.

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2 – TECEDORES DE HISTÓRIAS: A INVENÇÃO DOS CANGACEIROS

“Tecer era tudo que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.”

(“A moça tecelã”, Marina Colasanti, em Doze reis e a moça no

labirinto do vento)

Roland Barthes (1971, p. 18) afirma que são inúmeras as narrativas do mundo. Há de

se concordar, pois, sem narrar e sem se deixar narrar, o homem cairia em esquecimento e,

nesse caso, correria o risco de perder suas memórias. Narrativas são estratégias para se

guardar memórias com um fim: legá-las à posteridade como dado identificador de

experiências positivas ou negativas, mas que se prestem a referencial qualquer.

As narrativas, sobretudo aquelas em que se trabalha o poema épico, sintetizam a busca

do homem por uma identidade e, portanto, por uma afirmação que, na verdade, se dá

coletivamente. Trata-se de uma tentativa de se inserir em um contexto, se reconhecer para se

fazer reconhecido. Desse modo, pode-se inferir que mediante um poema épico uma

comunidade, uma sociedade qualquer tenta, pela sua história, dar como importante sua

existência no tempo e no espaço. É, em suma, seu estar no mundo, porém sempre com um

olhar para a coletividade e sua memória. Mircea Eliade (apud TÂMEGA, 1986, p. 82), afirma

que “a memória não retém facilmente eventos individuais e figuras autênticas, mas funciona

através de estruturas diferentes: retém categorias, ao invés de acontecimentos, e arquétipos,

em lugar de personagens históricas”.

Pode-se entender que há coerência em se conceber no mito cangaceiresco não um

indivíduo, apesar dos nomes que se destacaram como líderes, mas grupos de heróis que

representam categorias, entidades que soam como referencial de valentia, bravura e até de

honradez de toda a coletividade de cangaceiros, o que evidencia arquétipos ideais para a

coletividade externa ao cangaço: o povo.

Note-se a ideia de que, desde tempos mais remotos da cultura humana, o homem busca

narrar com base em seus mitos e suas lendas como a referendar os arquétipos de que fala

Eliade. Essas narrativas nada são, senão uma tentativa de estabelecer entre homem e realidade

um elo que servirá como marco de constante procura pela origem desse homem e dessa

mesma realidade. Entenda-se que esse narrar envolve várias linguagens e pode se dar de

várias formas.

Sobre narrativas afirma Roland Barthes:

Há em primeiro lugar uma variedade prodigiosa de gêneros distribuídos entre

substâncias diferentes, como se toda matéria fosse boa para que o homem lhe

confiasse suas narrativas: a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada,

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38

oral e escrita, pela imagem fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de

todas estas substâncias [...]. (BARTHES, 1971, p. 18)

Desse modo, e com base na afirmação acima, pode-se inferir que a literatura de cordel

com sua múltipla face explora também matéria épica, e assim pode ser entendida, desde que

guarde ou se aproxime de características que envolvam essa espécie de narrativa. Se narrar,

numa concepção épica, é apresentar distanciamento da matéria narrada e usar de objetividade

para mostrar essa dita matéria, pode-se mencionar a existência de textos do universo do cordel

que se inserem nas narrativas próprias do gênero épico, principalmente, aqueles textos pós-

cangaço, i.e, os escritos que se dão depois dos idos de 1938, ano da morte de Lampião e

Maria Bonita e de nove de seus companheiros, o que estabelece o fim do cangaço. A distância

temporal faz com que o poeta se centre na 3.ª pessoa do discurso conforme característica do

poema épico, segundo se constata nos seguintes versos do poeta Gonçalo Ferreira da Silva,

em Lampião, capitão do cangaço:

[...]

Só a alma luminosa

do homem missionário

ouve a voz interior,

e tendo o dom necessário

faz poesia da seiva

de um caule imaginário.

Poeta não ouve vozes

Só com humanos ouvidos,

Ausculta a alma das coisas

Com diferentes sentidos

Para que os não são poetas

Ainda desconhecidos.

Este poema que fala

De cangaço e de sertão

É, apena, à cultura

Uma contribuição,

Um documentário vivo

Da vida de Lampião.

Por ser uma obra feita

À luz da verdade viva,

Mostra a face nobre, humana

E até caritativa

De Lampião, se tornando

A menos repetitiva. (SILVA, p. 1)

O narrador contemporâneo dos cangaceiros, como os poetas clássicos, tentava

observar com distância no tempo e no espaço os fatos da saga do cangaço para contá-

los/recontá-los com a isenção que lhes deveria ser intrínseca, embora quase sempre não

consiguisse, devido não só à espontaneidade de seus textos e à natureza da poesia popular,

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39

mas também, seguramente, devido à ausência de conhecimento teórico do narrar épico e à

proximidade no tempo e no espaço do episódio narrado. Parece que o pouco distanciamento

desse espaço e tempo não permite ao poeta se afastar do universo narrado. Observe-se no

texto Antônio Silvino, o rei dos cangaceiros, de Leandro Gomes de Barros, como se faz

presente a natureza do cantar épico:

[...]

O povo me chama grande

E como de fato eu sou

Nunca governo venceu-me

Nunca civil me ganhou

Atrás de minha existência

Não foi um só que cansou.

Já fazem 18 anos

Que não posso descansar

Tenho por profissão o crime

Lucro aquilo que tomar,

O governo às vezes dana-se

Porém que jeito há de dar?!

O governo diz que paga

Ao homem que me der fim,

Porém por todo dinheiro

Quem se atreve a vir a mim?

Não há um só que se atreva

A ganhar dinheiro assim.

Há homens na nossa terra

Mais ligeiros do que gato,

Porém conhece meu rifle

E sabe como eu me bato,

Puxa uma onça da furna,

Mas não me tira do mato.

Telegrafei ao governo

E ele lá recebeu,

Mandei-lhe dizer: doutor,

Cuide lá no que for seu,

A capital lhe pertence

Porém o estado é meu. (BARROS, p. 1)

Atentos às duas mostras acima, percebemos a essência de caráter épico que os textos

contêm. No narrar em que há maior distância no tempo e no espaço, e naquele em que isso lhe

é próximo, há, percebe-se, o intento de se resgatar a presença de um ideal mítico. Nota-se no

primeiro texto uma tentativa do poeta de se manter fora da matéria narrada, por recebê-la

“pronta, processada ao nível do real, o que impede sua participação no mundo narrado”

(SILVA, 1987, p. 14), o que atesta seus escritos como inerentes ao poema épico, e no

segundo, de algum modo, se pode apontar para uma matéria épica ainda em formação.

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40

Ao se estabelecer que a narrativa se insere como forma de manifestação humana ligada

à arte do contar, pode esta ser concebida como prosa de ficção – caso do romance, do conto e

da crônica –, mas também estará presente na epopeia, no poema épico e até na história, pois

esta última, embora com olhar científico, relata acontecimentos quaisquer do passado.

Ao narrar, o homem busca guardar sua história, e neste caso, há o sentido de registrar

um tempo determinado, seja este o do mito primordial, da ficção – mais contemporânea –, ou

até o do relato de caráter denotativo. A narrativa traz em si a marca interessante de ser, ora

algo ficcional, ora relato de um fenômeno qualquer da existência humana. É possível que a

importância da narrativa esteja nesses detalhes.

Ao atentarmos nas narrativas mais antigas da humanidade, deparamos com relatos que

envolvem a Bíblia (com seus diversos tons, inclusive épicos); o Alcorão, (igualmente próximo

à primeira, com desenrolar de temas épicos); Homero (Ilíada e Odisseia); Virgílio (Eneida);

Camões (Os lusíadas), entre outros. Todos a expor e até a delinear a história identitária de seu

povo.

A pertinência desses textos está em contar algo que tem a ver com a origem essencial,

primordial, que alimenta histórias cerzidas ao sabor da oralidade. Trazem, ademais, uma carga

semântica ligada a uma tradição do contar que passa de uma geração a outra. É o narrar que

sobrevive e resiste ao peso do calendário, em legado que se compõe de mitos e tradições de

que uma comunidade se vale, no sentido de se colocar e de se fazer presente na cultura

humana, mediante sua história, mas com a finalidade de se integrar e de se afirmar no grande

bojo de uma história longa e maior, que depõe da própria natureza e da formação e

contribuição humanas na composição do mundo.

Se a “narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada oral ou escrita”,

segundo a fala barthesiana, (Cf.: BARTHES, 1971, p. 18), entendemos que feitos podem ser

narrados e aos poetas cabe fazê-lo, segundo sua cultura, seus costumes, sua escrita, ou até sua

oralidade, desde que tenha como intenção afirmar seu povo e um herói de sua realidade.

Com efeito, a uma face da literatura de cordel que busca o herói de seu povo e sua

representação, impute-se a cor de poema épico. Apesar das oscilações quanto ao fazer épico,

entenda-se o cordel narrativo apenas como aproximação com pontos essenciais desse fazer,

propriamente, a invocação, a grandiloquência, o distanciamento (principalmente após a

derrocada do cangaço) ou não (se os cordelistas eram contemporâneos desse fenômeno

histórico) da matéria narrada, a presença do herói, entre outros elementos que a matéria épica

exige.

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41

O cordelista Manuel D’Almeida Filho usou de precisão épica ao trazer a figura de

Virgulino Ferreira com fala em terceira pessoa, segundo o episódio heroico que lhe resultou

na alcunha de Lampião, a saber, o constante disparar de seu rifle ainda recruta, quando o fora

da lei, neófito, ingressava no bando e na cartilha de Sinhô Pereira, seu mestre, a quem,

posteriormente, sucede:

[...]

Foi à procura do bando

Do velho Sinhô Pereira

Que unido a Luiz Padre

Mantinha uma cabroeira

Lutando contra os carvalhos

Sem se arredar da trincheira.

Virgulino e os três irmãos

Sinhô Pereira aceitou

E como eram valentes

O velho os admirou,

Com inteira confiança

No mesmo dia os armou.

Um rifle papo amarelo

Virgulino recebeu

E poucos dias depois

Um grande combate deu

E nessa batalha foi

Quando Lampião nasceu.

Nessa campanha enfrentou

Uma volante guerreira,

Virgulino atirou tanto

Que secou a cartucheira

E o fogo de sua arma

Parecia uma fogueira.

Isso porque era à noite,

Virgulino disse, então,

Que na boca do seu rifle

Não deixou de ter clarão

Iluminando às campinas

Parecendo um lampião.

Nisso Luiz Padre disse:

- melhorou nosso destino,

Não falta mais lampião

Nesse sertão nordestino,

Porque temos o clarão

Do rifle de Virgulino

Para aclarar as estradas

Nos mais incertos instantes,

Basta Virgulino dar

Os seus tiros cintilantes,

Assim jamais cairemos

Na tocaia das volantes.

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Desde esse dia que foi

Virgulino batizado

Por “Lampião” e o seu rifle

Foi por um fuzil trocado

Que iluminou o Nordeste

No tempo de seu reinado. (D’ALMEIDA FILHO, p. 5)

Evidentemente, não há acordo nos escritos de cordel quanto à maneira como cada

poeta escreve, devido à sua inserção na poesia popular. O sentido desses textos se dá não só

pelo quê de liberdade e espontaneidade que trazem, mas pela diversidade dos olhares de seus

poetas e de seu fazer, seu construir, seu transpirar. De todo modo, no que respeita ao cangaço

e à exuberância que o poeta pretende dar aos que dele fizeram parte e a suas ações, há uma

intenção de caráter épico, independentemente de sua apresentação em primeira ou em terceira

pessoa. O intuito do poeta termina por se tornar maior que as teorizações estéticas em torno

ou a partir de seus textos. O poeta sabe o que escreve e de quem fala e por quê. E seu leitor

entende.

Criar, inventar tantos Silvinos constitui necessidade primeira do povo e de seus poetas.

Essa invenção, presente em qualquer grupo humano, depõe da necessidade de afirmação da

coletividade e, portanto, isso resulta em discussão acerca de uma necessidade e de seu fator

urgente: o mito local e, consequentemente, da nacionalidade. Desse modo, a presença de um

herói torna-se imprescindível nas narrativas de caráter épico, o que faz surgir em maior ou

menor proporção uma poesia calcada em fundamentos de matéria épica.

Destarte, pode-se afirmar que o herói e seu nascimento podem ou não estarem insertos

em uma realidade, pois o que há, na verdade, é propriamente uma ideia que se desdobra da

necessidade de um povo de sentir sua grandiosidade e, desse modo, se afirmar. Oriundo ou

não de um fato, pode-se dizer que a todo povo é possível criar seu herói.

A invenção de um Antônio Silvino, de um Lampião está ligada ao fenômeno do

cangaço, ou seja, ao acontecimento ou fato. A visão que deles o povo tem os torna grandes

referenciais de luta que vão de encontro a todos os desmandos de um Nordeste aos cuidados

da sorte no enfrentamento dos problemas que lhe são inerentes: secas, fome, injustiça,

políticos, fazendeiros, coronéis. Desse microcosmo e dessa mentalidade nasce o mito e o

herói locais.

Só para abrir um parêntesis, é importante que se mencione a presença de bandoleiros

errantes não apenas no Nordeste do Brasil. Sobre isso, Gustavo Barroso (Heróis e bandidos,

1917) e Câmara Cascudo (Viajando o sertão, 1975). O primeiro afirmara: “não somente nas

zonas sertanejas existem cangaceiros” (p. 14) e completara: “os bandidos não são produtos

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exclusivos das terras brasileiras do Nordeste: em todos os povos têm existido com

dominações diversas” (p. 17). Para Cascudo, “o cangaceiro não é um elemento do sertão, mas

uma figura que existe em todos os países e regiões mais diversas” (p. 42). Com o ideal de

cangaceiro que defende os menos favorecidos, com o perfil de herói do povo, o bandoleiro

nobre ocupa vasta geografia universal e pode estar nos Estados Unidos (Jesse James [1847 –

1882]); em Portugal (José Teixeira da Silva, o Zé do Telhado [1818 –1875]), no México

(Pancho Villa, [1877 – 1923]); na França (Louis-Dominique Cartouche, [1693 –1721]) e

Charle-Alfonse-Paul Ballay [1826–1900]); na Itália (Giuseppe Musolino [1875 – 1956]).

Eric Hobsbawm (2010) faz menção ao bandoleiro italiano Salvatore Giuliano (1922 –

1950) que atua de 1943 até a morte, não só a serviço da máfia italiana, pelas mãos de quem

morre, mas paradoxalmente, a serviço e em luta pelos pobres a quem distribuía o resultado de

seus saques e de quem se torna herói. Atua numa Sicília de extrema miséria e pobreza.

Sobre Giuliano, aponta o autor:

[...] igualmente importante, é o fato de que ele [Giuliano] foi o último membro, na

vida real, de uma antiga espécie com cuja extinção as pessoas não se conformaram:

o bandido popular. Na grande novela, os pobres e fracos continuam a sonhar com a

desigualdade humana e a injustiça, e ali sempre existiu e ainda existe um papel para

Robin Hood. Turiddu Giuliano foi a última pessoa de verdade de quem se tem

registro moldada para isso. (HOBSBAWM, 2010, p. 279)

Como os cangaceiros brasileiros, o chefe italiano de bando não era visto apenas pelo

povo, ele próprio se via como o redentor e protetor de sua gente. Inventado ou não, esse tipo

de herói tem ou toma para si as causas do povo que nele deposita a sua fé.

Por esse mesmo povo diz o bandido lutar até o fim. O excerto abaixo denuncia a

autodenominação do herói:

Não há dúvida alguma de que ele próprio se via nesse papel, tanto quanto qualquer

bandoleiro o tenha feito, e que grande número de sicilianos pobres o aceitaram

como tal. [...] um dos poucos policiais honestos a persegui-lo, o obstinado Lo

Bianco, atesta que por mais de uma vez ele distribuiu milhares de liras a pessoas

em dificuldades. Para essa gente, Giuliano era um deus. (HOBSBAWM, 2010, p.

279)

Desse modo, percebe-se que ao longo da história há uma necessidade premente de se

criar heróis. E isso é próprio do humano. Pode-se pensar ainda que os heróis são formulações

imaginárias e não remetem à Antiguidade porque são eternamente humanos ou humanamente

eternos. Por certo, e por causa do humano, aí estão Lampião ou Robin Hood, Giuliano ou

Jesuíno Brilhante. Cada qual no seu tempo e com sua importância. Todos feitos na forja do

povo e dos poetas.

Page 42: dedos cravejados de brilhantes, chapéus de estrelas carregados

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2. 1. ROMANCEIRO GUARDADO, MEMÓRIA TRANSFERIDA

Uma literatura popular, antes desses escritos a que se convencionou chamar de

literatura de cordel, se afirmou no Nordeste brasileiro mediante temática talvez encontradiça

apenas naquela região e foi dividida em temáticas, a saber: o das secas periódicas, do gado, da

agricultura, das festas da plantação e da colheita, das festividades religiosas, o que terminou

por formar uma rede de motes para a literatura que representa o homem local. Nesse

enredamento, em meio a tanto contar, dois ciclos temáticos se destacam por apresentar tema

significativo para a cultura nordestina: o das secas e do cangaço, este último, com

representação épica dos homens que viviam o banditismo rural na transição do século XIX

para o XX, e já de acordo com uma linguagem literária local consolidada: a literatura de

cordel, na forma e na estrutura que se conhece até nossos dias.

Faz-se necessário ressaltar que, no tocante a grupos de bandidos de existência anterior

ao final do século XIX, quase não há textos, e os poucos que há são esparsos e não muito

consistentes para serem enxergados como material épico, o que leva à ideia de que a poética

do cordel épico se justifica e se dá na passagem do século XIX para o XX, tempo em que essa

literatura se afirma em meio à população, sobretudo, nordestina.

Mencionemos que os autores brasileiros da literatura de cordel têm sua arte como um

meio não só de expressão, mas de apreensão dos sentimentos de seu povo, isto é, da alma

nordestina. Aplicada à mentalidade nacional desde o final do século XIX, pode-se afirmar que

uma literatura popular já se fazia presente na cultura do chamado Novo Mundo, desde os

tempos coloniais. De sua presença na América hispânica, há dados que o comprovam

textualmente. Luiz da Câmara Cascudo apresenta o seguinte texto de apoio:

Dom Francisco Rodriguez Marin, citado por Juan Carrizo, procurou no Arquivo

Geral das Índias, em Espanha, os registos de despachos das naus que partiam para a

América, pesquisando livros que seriam enviados nos séculos XVI e XVII. A partir

de 1580, ano da posse de Felipe II, unificando administrativamente a Península

Ibérica, Marin depara veinte resmas de Pierres y Magalona mandados para Nueva

Espana e Puerto Belo. A frota de 1599 levou siete caxas donde van quarenta resmas

de minudencias, como Carlos Manos e Oliveiros de Castilla y outras muchas suertes

de livros e coplas para niños [...] em 1603 seguem seys libros de Carlos Mano, doces

Doncelas Teodor [...]. (CASCUDO, 1978, p. 198)

Informa Cascudo que esses livros viajavam do México para a Argentina, via Peru e

sugere que “o mercado brasileiro fosse o mesmo” (CASCUDO, 1978, p. 198). A afirmativa é

pertinente, embora não se subsidie em pesquisa, uma vez que o Brasil pode ter tido acesso a

esses textos se se levar em conta que os referidos escritos eram mandados para a América do

Sul pela Espanha, que do século XVI ao XVII, ou seja, de 1580 a 1640 domina Portugal e,

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conseguintemente, tem influência em suas colônias, período que ficou conhecido por reinado

dos Filipes. Basta esse lance histórico para se validar e atestar a ideia de que os livros

apontados por Cascudo poderiam ter chegado à colônia portuguesa da América. Note-se,

todavia, a confluência histórica, cultural e literária que esses dois países ibéricos sempre

viveram, o que leva à conclusão de que, independentemente de quaisquer outros fatores, esses

livros eram naturalmente passivos de chegar até o Brasil.

É importante mencionar que no final do século XIX esse material literário popular

trazido para o Brasil, de algum modo, refletiu na obra de Machado de Assis, pelo menos em

pequena mostra. Em 1896, esse autor reúne sob o título Várias histórias uma série de contos

entre os quais figura Uns braços, no qual o contista aponta para a presença dessas narrativas

populares com circulação também no Rio de Janeiro, então capital do Império. Possivelmente,

apreciada ainda em prosa, a narrativa a que remete o autor de Dom Casmurro era encontrada

em folhetos a que se chamavam também de literatura de cordel. No texto machadiano, o

jovem Inácio é apresentado como leitor de antigos folhetos (nesse caso, não necessariamente

cordéis como se concebe na atualidade, mas essas mesmas narrativas a que o adolescente lê

foram matrizes do que, coincidentemente, desde o final do século XIX se afirmou no

Nordeste, igualmente com o nome de folheto, já em versos, e, contemporaneamente,

conhecido por literatura de cordel). O excerto de Uns braços atesta uma vez mais a

antiguidade dessas narrativas populares no Brasil:

Inácio passava os [dias de domingo] todos ali no quarto ou à janela ou relendo um

dos três folhetos que trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão,

debaixo do passadiço do Largo do Paço. Eram duas horas da tarde. Estava cansado,

dormira mal à noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou-se na rede,

pegou em um dos folhetos, a Princesa Magalona e começou a ler. (ASSIS, 1955, p. 57)

Silvio Romero, contemporâneo de Machado de Assis, apresenta importante

informação quanto à existência dos referidos folhetos e à sua variante como literatura de

cordel, o que comprova não ser novo o vocábulo no Brasil, no que se refere a esses pequenos

livros de narrativas simples ligados à cultura e ao entretenimento populares pela leitura.

Afirma o crítico sergipano sobre equivalência de nomes desses textos tanto aqui quanto em

Portugal:

A literatura ambulante e de cordel no Brasil é a mesma de Portugal. Os folhetos

mais vulgares nos cordéis de nossos livreiros de rua são: A história da donzela

Teodora, A imperatriz Porcina, A formosa Magalona, O naufrágio de João de

Calais, a que se juntam: Carlos Magno e os doze pares de França, O testamento do

galo e da galinha, e agora, bem modernamente, as poesias do pequeno poeta João de

Sant’Anna de Maria sobre a guerra do Paraguai. (ROMERO, s/d., p. 257)

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Confirma ainda Silvio Romero que “nas cidades principais do Império ainda veem-se

nas portas de alguns teatros, nas estações das estradas de ferro e noutros pontos, as livrarias de

cordel” (ROMERO, s/d., p. 257), para asseverar em seguida que “o povo do interior ainda lê

muito as obras de que falamos; mas a decadência por este lado é patente: os livros de cordel

vão tendo menos extração depois da grande inundação dos jornais” (ROMERO, s/d., p. 257).

Não obstante a literatura de cordel ou folheto, outra de sua nomenclatura (já conhecida

assim no Brasil), tivesse no povo e na sua história ancoradouro, não é possível encontrar

quase nada a respeito das façanhas desse povo no que toca a episódios históricos pelo menos

do século XIX ou anteriores. Timidamente, Sílvio Romero relaciona, além dos vistos

anteriormente, dois títulos em torno de fatos contados em versos populares e que se

assemelham à estética dessa literatura. O mesmo Romero faz a seguinte observação: “A falta

que notamos no cancioneiro brasileiro é a de simples referência aos notáveis fatos de nossa

história social e política e os seus homens mais representativos e eminentes” (ROMERO,

1980, p 167).

Todavia, o autor de Contos populares do Brasil pondera: “a ausência não se pode

dizer completa, porque se encontram duas canções, uma relativa ao Filgueiras da revolução de

1824 em Pernambuco e províncias próximas até ao Ceará, e a outra referente ao fato da

Independência em 1822” (ROMERO, 1980, p. 167).

Segue o texto que corrobora as afirmações de Romero no que respeita à

Independência, sob o título de Conversa entre um corcunda e um patriota. O primeiro,

partidário de D. Pedro I, o outro, um idealista da República. O texto se dá em forma de

diálogo, em que C refere ao Corcunda e P, ao patriota:

C. –Deus lhe guarde, meu senhor.

P. –Venha com Deus, cavalheiro,

Venha logo me dizendo

Se é corcunda ou brasileiro.

Vejo-lhe divisado

Na cabeça um grande galo

Bem me parece ser

Da vazante o espantalho.

C. – Sim, senhor, eu sou corcunda

E morro pelo meu rei;

Esta divisa que trago

É da sua leal lei.

Se o senhor é patriota,

Provisório cidadão,

Se fala contra o meu rei

É judeu, não é cristão. [...] (ROMERO, 1980, p. 169)

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O outro texto que Sílvio Romero caracterizou como narrativo é o que trata da história

de Pereira Filgueira, insurreto que toma parte e é um dos líderes e um dos heróis do braço

cearense da Confederação do Equador nos anos 20 do século XIX. O diálogo se dá da

seguinte forma:

– O que tens Joaquim Inácio,

Que de cores vens mudado?

– Meu cunhado Gonçalinho

Foi preso para o Escalado.

O Filgueira assim que soube

Mandou chegar seu cavalo,

E correu à rédea solta

Em busca do Cantagalo.

Foi chegando e foi dizendo

Com a sua mansidão:

– quero meu sobrinho solto

Que o vejo na prisão.

Responde o cabo da tropa,

Por ser homem malcriado:

Seu sobrinho há de ser morto

Depois de eu morto ou picado. [...] (ROMERO, 1980, pp. 172-173)

Pereira Filgueira, que foi considerado bandido, talvez pelo Estado que sempre rotulou

os que contra ele se levantam, teve entrada no gosto do povo, o que levou Sílvio Romero a

opinar sobre bandidos que viram heróis de narrativas populares:

O que o povo no Filgueiras principalmente viu - foi o tipo perfeito de bandido,

porque outra coisa não foi essa espécie de Ferrabrás, de Valentão e desordeiro, ao

que se depreende da leitura do mais sugestivo dos historiadores brasileiros, o mais

desabrido, o que melhor enxerga as questões sociais, - o perspicaz João Brígido.

(ROMERO, 1980, p. 167).

Essa tradição, porém, de narrar os fatos heroicos da vida dos bandoleiros é constante

na literatura popular, porque o poeta vislumbra que o público para o qual escreve se sente

representado pelo cangaceiro, e por diversos motivos: o enfrentamento dos poderosos, a luta

em armas, as adversidades do meio, a valentia, a identificação com o próprio povo.

Abra-se um parêntese para frisar que não se deve confundir quadrinhas com textos de

literatura de cordel. Aquelas, de prática comum no Brasil, registram diversos momentos da

cronística nacional como as que circulam com tanta profusão, por exemplo, ao tempo e em

torno de D. Pedro II, em tom de elogio, de protesto, de galhofa, o que reflete uma poética

popular, mas não correspondem aos textos de cordel, pois estes exigem peripécias, noção de

espaço, de tempo, personagens, diálogos, sequência no enredo, a que os cordelistas chamam

também de oração, devido a se pretender elaborar texto narrativo (como o dos cordéis épicos),

o que não ocorre às quadrinhas, segundo se mostra a seguir:

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Atirei um limão n’água

De pesado foi ao fundo;

Os peixinhos responderam:

Viva Dom Pedro II.

Ou:

Quando ia hoje

Pela Rua das Violas,

Pedro Segundo

Deu um tiro de pistola.

Quando ia hoje

Pela Rua do Sabão,

Pedro Segundo

Deu um grande escorregão.

Observados os pontos mais importantes da literatura popular, com suas diferentes

faces, como a separação entre o que são quadrinhas e o que é narrativa, percebe-se a

predileção popular pela narrativa heroica, pois o povo tem necessidade de construir, de

montar, de forjar a história com que se identifique nos seus ideais de valentia e que traduzam,

igualmente, ideais de heroísmo. A citação de Romero leva-nos a notar que há no povo a

necessidade de criar heróis, e o faz, já que isto representa ideal coletivo. Para representá-lo,

esse mesmo povo vê em seus heróis os traços mais marcantes de valentia. E essa qualidade

não está associada a furtos, latrocínios, assassinatos, assaltos gratuitos, mas à coragem, à

ousadia, à astúcia, à forma com que agem esses personagens, o que leva esse povo a esquecer

dos desmandos e lembrar, guardar apenas atos de coragem, de desafios, de pudores, de honra:

imagens perfeitas para se eleger um herói. Os poetas, os cordelistas, os cantadores elegeram

esses heróis do povo segundo o ideal do mito que se deu por transferência e influência de um

mito e de uma poética popular europeias que não diminuíram, de forma alguma, os que aqui

recriamos, pois, do contrário, não haveria tantos motes para os cantares locais.

Ainda no que respeita à literatura de cordel na Europa, principalmente em Portugal,

Carlos Nogueira, em estudo apurado para a Revista Eletrônica Ehumanista, aponta:

Se é possível encontrar romances populares publicados em folhetos ou fascículos,

com uma elaboração retórica que implica uma certa complexidade na organicidade

das formas (frases longas, orações intercaladas, anástrofes, hipérbatos, léxico por

vezes erudito) e dos conteúdos, também são comuns os folhetos com quadras

tradicionais ou nelas inspirados, com histórias organizadas em quadras

tradicionalistas ou com cantigas narrativas, que seguem de perto os modelos já

adstritos à oralidade comunitária. (NOGUEIRA, 2012, p. 5,

<www.ehumanista.ucsb.edu>).

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Carlos Nogueira é ainda mais preciso: [...] folhetos de cordel e folhas volantes – em

verso, em prosa ou em verso e prosa – publicados entre os séculos XVI e terceiro quartel do

século XX. (NOGUEIRA, 2012, p. 2).

Em cordel mais recente sobre o próprio cordel, isto é, em texto metalinguístico, o

poeta Rodolfo Coelho Cavalcante admite a origem europeia dessa linguagem tão cultivada no

Nordeste brasileiro, embora defenda a diferença de um e de outro, com vistas a assegurar que

o cordel nacional não tenha a ver com o estrangeiro:

[...]

Cordel quer dizer barbante

Ou senão mesmo Cordão,

Mas Cordel-Literatura

É a real expressão

Como fonte de Cultura

Ou melhor: poesia pura

Dos poetas do sertão.

Na França, também Espanha

Era nas bancas vendida

Que fosse em prosa ou em verso

Por ser a mais preferida,

Com seu preço popular

Poderia se encontrar

Nas esquinas da Avenida.

Era em pequeno volume

A edição publicada,

Tamanho quinze por doze

Pra melhor ser publicada,

Isso no século XVIII

Depois de noventa e oito

Foi aos poucos desprezada. (CAVALCANTE apud ABREU, 1999, pp. 105-106)

Diferentemente do texto de Rodolfo Cavalcante, disposto em estrofes de sete versos,

porém muito usadas em cordéis de todas as épocas no Brasil, ressalta Câmara Cascudo que a

“sextilha setissilábica, forma absolutamente vitoriosa na literatura de cordel brasileira,

ABCBDB, é tão antiga quanto a quadra, como ensinava Carolina Michaëlis de Vasconcelos,

dizendo-a popularíssima no século XVI” (CASCUDO, 1978, p. 351).

Herdeiros dos jograis medievos, cantadores e cordelistas tiveram e têm importância no

Nordeste como tiveram seus irmãos da velha Europa. Divulgadores de uma poesia que de

cidade em cidade se fazia andante, tinham os poetas medievais por função espalhar a poesia,

levando-a ao povo através de narrativas de feitos e mitos que todos ouviam.

Anteriores à invenção da imprensa, e depois a ela afeitos, os jograis europeus levavam

poesia àqueles que ainda se encontravam em condição avultada de analfabetismo. Com uma

poesia de caráter oral, passada, em muitos casos, ao texto manuscrito, antes do advento dos

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tipos metálicos, os poetas tinham por finalidade a diversão e o entretenimento, mas também o

resgate de mitos fundadores, de narrativas prodigiosas, de valentias, de aventuras de

cavaleiros ambulantes, entre outras nuanças do imaginário dos povos e de suas histórias.

Se o mundo sofre modificações, sobretudo no Renascimento, mudanças ocorrem

também entre os poetas populares que se adaptam às novidades e inovam sua maneira de

comunicação, uma vez que a cultura popular está sempre apta a acompanhar o tempo e suas

transformações. De acordo com Diegues Jr. (1973), “[s]e os jograis, populares ou palacianos,

cantando nas festas, e animando o povo, constituíam como que a comunicação dessa poesia

popular, claro que a forma de difusão se foi transformando de acordo com as próprias

transformações do tempo” (p. 36). Nesse caso, se pode afirmar que uma dessas

transformações do tempo teria sido a invenção da imprensa. Após Gutemberg, toda forma de

comunicação sofre avanço, e a poesia popular, ao viver esse avanço, passa a ser impressa e

divulgada com mais facilidade, o que a faz conhecida em tantas partes do mundo quanto

possível e até no Novo Mundo. Se a reprodução de textos por avançado mecanismo da época

é de grande contribuição à cultura, apesar da grande massa de não alfabetizados, o povo se

beneficia ainda com seus jograis, pois à roda deles acorre como ouvinte atento de histórias de

reinos distantes, de mitos, de santos, de milagres, de feitos grandiosos.

Em período que alcança o medievo europeu, os jograis detinham o poder de espalhar,

disseminar narrativas e fazer com que o povo tomasse contato com um mundo de

sensibilidade e criação artística que o tornava encantado e o levava a guardar, decorar o que

se mostrasse mais interessante, o que fez com que narrativas medievais chegassem aos mais

diversos lugares da Europa, constituindo-se os jograis em importante elemento de

comunicação.

Atribuída a jograis franceses, toda essa poesia popular atravessa a França, cruza

fronteiras, chega à Alemanha, Inglaterra, Espanha e Portugal e daí até a colônia brasileira, o

que termina, com o tempo, a alcançar a cultura local, seu povo e seus poetas, que a adaptam,

mesclada a outras tintas que se incorporaram à cultura local.

Desde o tempo em que aportou no Brasil, essa literatura originou e influenciou,

gradativamente, a narrativa popular do Nordeste. Desse modo, pode-se enxergar, na origem

da literatura de cordel brasileira, toda uma gama de poetas que se esforçaram por disseminar

no Velho Mundo uma poesia que depõe de aventuras e de valentia, de heroísmos e de lutas

que marcam o que é próprio de narrativa e dessa natureza: a afirmação do povo mediante

cantos nacionais e de seus heróis.

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A respeito da literatura de cordel e de suas origens, afirma Leda Tâmega:

A literatura de cordel é sem dúvida, herdeira da tradição medieval, mas não daquela que

se criou e desenvolveu no sul da França pela arte dos trovadores. Não, suas raízes

devem ser procuradas mais ao norte, na Normandia, na Flandes, na Picardia, melhor

dizendo, nos cantões da langue d’oil, com os trovadores criadores das canções de gesta,

com os poetas que celebraram os feitos heroicos e patrióticos dos nobres senhores, as

explorações guerreiras dos heróis nacionais e dos cavaleiros cristãos contra os infiéis.

(TÂMEGA, p. 1986, p. 80).

É certo, porém, que a literatura de cordel brasileira em sua versão mais moderna é um

legado ibérico introduzido no Brasil por Portugal, mas suas raízes mais distantes e profundas

têm como solo todos os países do Velho Mundo. Da comprovada origem ibérica, do cordel

brasileiro basta observar como se pautaram seus poetas na tradição oral dos romanceiros

portugueses e espanhóis, conforme apontado anteriormente.

Há de se notar essa influência quando se percebe que os hoje chamados textos

matriciais constituíam leitura ou audiência obrigatória nos serões familiares à roda de

histórias de lutas de cavalheiros e aventureiros europeus. Pela leitura constante ou por sua

importância na oralidade, esses textos terminaram por ser incorporados à memória e ao

imaginário do homem do Nordeste, além de se prestarem à inspiração/transpiração para as

composições locais. Desse modo, o cavaleiro Roldão se transmudou facilmente em Antônio

Silvino; Carlos Magno, em Lampião.

Jerusa Pires Ferreira (1979) coloca a História de Carlos Magno como texto matricial

“de tudo o que surge em um cordel épico nordestino” (p. 16). Verdade é que, como texto

matricial, a história de Carlos Magno tem como espelho e mote os ideais de bravura, valentia

e batalhas em torno da e pela Igreja, em nome de que o grande cavaleiro conquistava terras e

reinos em toda a Europa medieval, razão por que teve sua história narrada em verso e prosa,

sobretudo a partir do século IX. Transferidos para o Nordeste, os episódios heroicos desse

cavaleiro da Igreja influenciam como textos-matrizes produções avultadas de cordéis épicos

que tão somente adaptaram os ideais que interessavam daquela narrativa medieval à realidade

e ao chão dos cangaceiros.

Quanto a essa adaptação, é ainda Jerusa Pires Ferreira quem dá a ideia do que seja o

cordel épico nordestino e sua poética calcada no texto matricial, segundo a qual “verifica-se

um verdadeiro acordo intuitivo e tácito, combinação a obedecer a imperativos de ordem vária,

inclusive as de mercado e à sua novidade, sempre na direção de cobrir o mais amplamente

possível o texto matricial” (FERREIRA, 1979, p. 17).

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Afora assertivas como “acordo intuitivo e tácito” entre cordelistas e texto matricial,

chama a atenção a afirmativa “cobrir o mais amplamente”, uma vez que nos passa pelo menos

dois sentidos: a) o do “apagar” ao máximo as ideias do texto matricial para que venha à baila

a noção de que se criou algo novo, original, e nesse caso, se perderia quase por completo o

conceito de matriz; b) o de que “cobrir o mais amplamente” soe como o texto a que se copiou

quase na íntegra (como as crianças em alfabetização a cobrir letras), não sobrando espaço

para o ideal de criação, no que resulta correr o risco de se afirmar que prevaleceu a matriz. Na

verdade, se pode inferir da sensibilidade do espírito criador que seu parâmetro de

originalidade seja o moto-contínuo processo de criação e recriação, de colagens e releituras,

de olhares e refeituras sempre resultantes de alguma matriz.

Percebe-se que nas narrativas do cordel épico pode desaparecer o ideal Carlos Magno

e surgir o ideal Jesuíno Brilhante ou Antônio Silvino ou Lampião. Mas o que torna original o

novo texto é ter sido pensado, repensado mediante elementos que identificavam na essência

aquele cavaleiro medieval; no entanto, naquele momento de criação/recriação, a novidade era

apresentar o herói estritamente local. Assim observado, há um ineditismo de personagens, de

ações, de peripécias e não propriamente uma cópia de textos matriciais. A adaptação do texto-

matriz ao meio sertanejo marca a necessidade de criação do herói autóctone. É certo que a

força narrativa da História de Carlos Magno tem a ver, na sua raiz, com a realidade do

cangaço nordestino, por tornar comum em valentia Carlos Magno, Jesuíno Brilhante, Antônio

Silvino, Sinhô Pereira, Lampião e outros, já que, segundo cada época e sua mentalidade, o

leitor estará diante de seus heróis.

Sabe-se também que os cordelistas detinham ou detêm ainda pouca instrução escolar

(raros os academicamente instruídos), e nesse sentido não constituía tarefa fácil buscar textos

matriciais para fundamentar os seus sem daqueles fazer cópia. Havia esse poeta de ser exímio,

uma vez que o herói do novo texto deveria ser identificado com o Nordeste e nunca com

Carlos Magno, por exemplo. O poeta havia de convencer seu leitor da autenticidade da

narrativa que apresentava. Nesse caso, a criação/recriação com que o leitor/ouvinte depararia

teria de fazê-lo vislumbrar o seu herói com suas peculiaridades.

Afirma Jerusa Pires (1979) que, nos cordéis que têm uma matriz como base, o autor

transcreve trechos inteiros, mas também cria (p. 24). Discorde-se desse ponto. Na verdade,

não há transcrição: o autor de cordéis épicos brasileiros, na sua consciência literária, não

transcreve texto matricial. O que pode ocorrer são importações apenas de ideias, como

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aventado anteriormente, e essa transposição para o novo texto é apresentada ao leitor/ouvinte

como sua mais nova novela de cavalaria.

Para mais bem se entender essas alegações, note-se o que afirma ainda Jerusa Pires

Ferreira, com o que se há de concordar:

Num cordel épico, cuja realidade é contemporânea do poeta, ele terá como base

épicos anteriores, mas há a possibilidade de ele criar mais intensamente.

O poeta pode usar elementos dos cordéis épicos de origem europeia, Carlos Magno,

por exemplo, porém falando dos cangaceiros a realidade narrativa é bem outra,

fazendo maiores chances de uma criação mais autêntica. (FERREIRA, 1979, p. 24).

É justo afirmar que a colagem de ideias constituiu uma prática no cordel épico, que

isso até prevalece no texto, mas não refere à mera cópia ou transcrição de textos inteiros,

como assegurara anteriormente a autora de Cavalaria em cordel. Buscar no texto matricial o

foco de seus escritos poderia ou até pode ser hábito recorrente do poeta popular, entretanto, o

transcrever, o copiar não o levaria a se permitir poeta. Nem seria autêntico.

A influência do romanceiro ibérico se dá claramente na criação dos cordelistas.

Leandro Gomes de Barros, que começa a escrever no final do século XIX, atesta essa

afirmativa. Esse poeta se notabilizou por ter cultivado a herança de textos que muitos séculos

antes circularam pela Europa medieval e reproduziam gestas de valentia como A história de

Carlos Magno ou as narrativas de esperteza e inteligência como a História da donzela

Teodora, entre outras, escritas em prosa, ou por vezes, em verso e prosa, e a que Leandro,

primeiramente, verteu/reproduziu exclusivamente em versos de cordel, mas que em seguida

serviram de matrizes caríssimas à verve deste e de tantos poetas que as acomodaram às

narrativas locais.

Entretanto, quando reproduziu/recriou em versos de cordel brasileiro os textos

supracitados, Leandro Gomes de Barros assume o quanto lhe foram importantes essas

matrizes. A história de Carlos Magno foi motivo para Leandro escrever títulos como A

batalha de Oliveiros com Ferrabrás e A prisão de Oliveiros, respectivamente (Cf.:

CASCUDO, 1953, p. 448). Do mesmo autor é História da donzela Teodora, de matriz

medieval, que junto aos imediata e anteriormente textos citados comprova o quanto são

resultantes das leituras de escritos originais. Ao seu leitor, informa o poeta sobre o ato de

verter/reproduzir aquilo que já era comum às leituras ou às audiências de costume de seu

povo: o contato com antigos textos trazidos da Península Ibérica, o que nos leva à certeza de

sua migração para o cordel de feição local. Ao dar início à História da donzela Teodora,

Leandro Gomes de Barros esclarece que apenas verteu/reproduziu o texto matricial para os

versos de cordel:

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Eis a real descrição

Da história da donzela

Dos sábios que ela venceu

E aposta ganha por ela

Tirado tudo direito

Da história grande dela. (BARROS, p. 1)

Ao finalizar o mesmo texto, o poeta confirma, ainda uma vez, a transcrição em versos

daquilo que era narrado em prosa:

Caro leitor, escrevi

Tudo que no livro achei

Só fiz rimar a história

Nada aqui acrescentei

Na história grande dela

Muitas coisas consultei. (BARROS, p. 31)

No cordel A batalha de Oliveiros, transcreve Leandro de Barros o episódio em que

Carlos Magno se indispõe com Roldão, um de seus soldados:

[...]

Carlos Magno observou

Que nem um se ofereceu,

Logo aí se entristeceu

Chamou Roldão e o mandou.

Disse Roldão – eu não vou

Nem eu nem meus companheiros

Nos combates derradeiros

Esgottamos os valores,

Quem foram merecedores

Foram os velhos cavalheiros. Carlos Magno quando ouviu

A resposta de Roldão

Se encheu de tanta paixão

Que um ferro lhe sacudiu.

Roldão quando olhou que viu

O sangue dele descer,

Não pode mais se conter,

Se armou com tal furor

Que não foi ao imperador

Por Ricardo se interver. [...] (BARROS, p. 5-6)

Na passagem original em prosa, lê-se o seguinte trecho:

“[...] Quando Carlos Magno ouviu tais palavras a Roldão se encheu tanto de cólera e

ira que lhe atirou com uma manopla de ferro e lhe deu pela cara. Vendo Roldão o

seu sangue, lançou a espada com grande furor e provavelmente mataria o imperador

se não se metessem outros cavaleiros de permeio”. (História de Carlos

Magno, p. 27)

Nítida a transferência do texto europeu para o nordestino. Ao trabalhar o original em

versos, Leandro Gomes de Barros populariza-o ainda mais, já que seu público, mais ouvinte

do que leitor, o traz na memória e transmite-o a tantos outros ouvintes quanto possível. É

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55

notória também a transmissão e popularização desse texto pelos cantadores repentistas, que

em desafios se digladiavam para mostrar conhecimento da novela e até se comparar aos heróis

em apresentações para seu público. Leonardo Mota (1921, pp. 62-63) dá conta de um desafio

entre os famosos cantadores Manuel Serrador e Josué Romano:

– [...]

Se você tiver

Força de Sansão,

Presa de leão,

Coragem dobrada,

Encontra uma espada

Igual à de Roldão!

– Você falou-me em Roldão...

Conhece dos cavaleiros,

Dos Doze Pares de França,

Dos destemidos guerreiros?

Falarás-me alguma coisa

De Roldão mais Oliveiros?

– Sei quem foi Rodão,

O Duque Reguiné...

E o Duque de Milão

E o Duque de Nenmé...

Sei quem fou Galalão,

Bonfin e Geraldo

Sei quem foi Ricardo

E Gui de Borgonha,

Espada medonha,

Alfanje pesado. [...]

Ainda quanto à influência das novelas de cavalaria em prosa no cordel, sobretudo no

Nordeste, e em relação tanto aos poetas quanto aos leitores, discorre Edson Carneiro (apud

FERREIRA 1979): “Carlos Magno e seu barões glorificados nas canções de gesta vivem no

Brasil onde chegaram não nas asas da poesia, mas nas páginas de Estórias em Prosa, que

figuram entre os poucos livros que o povo lê” (p. 15).

Como mencionado anteriormente, o Brasil e o Nordeste interioranos conhecem o ciclo

carolíngio há muito tempo, tomadas por base informações de Câmara Cascudo, Edson

Carneiro, Jerusa Pires Ferreira, Maria Isaura Pereira de Queiroz, entre outros. Quanto à

circulação da velha novela no Brasil profundo, informa Câmara Cascudo:

A história de Carlos Magno e dos doze pares de França foi, até poucos anos, o livro

mais conhecido pelo povo brasileiro do interior. De escassa popularidade nos

grandes centros urbanos, mantinha seu domínio nas fazendas de gado, engenhos de

açúcar, residências de praia, sendo, às vezes, o único exemplar impresso existente

em casa. Raríssima no sertão seria a casa sem a História de Carlos Magno, nas

velhas edições portuguesas. Nenhum sertanejo ignorava as façanhas do Pares ou a

imponência do Imperador da barba florida. (CASCUDO, 1953, p. 441).

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56

A narrativa das batalhas e conquistas do imperador Carlos Magno e de seus soldados,

ao longo do tempo, influenciaram tanto os cordelistas nordestinos, que, em finais do século

XIX, a poética do cordel adaptara a vida de conquistas e andanças do imperador Carlos

Magno às lidas cotidianas do cangaço. Nesse aspecto, ressalte-se que as semelhanças,

reservadas as diferenças, entre os cangaceiros e esses personagens medievais se tocam pelo

viés da bravura, do destemor, das conquistas, das lutas renhidas. Ao lado de seus homens de

confiança, chefes de cangaço empreendiam duros combates, enfrentavam a morte e não

cediam diante daquilo em que acreditavam.

Transpostas para o Brasil, as histórias de Carlos Magno e de outros nomes marcantes

da oralidade e do imaginário europeus passaram a tecido de fundo heroico a ser desfiado para

se recriar em ambientação nordestina essa saga cangaceiresca de bravura, de coragem e de

conquistas em adaptações que se justificam, talvez, por no Brasil não haver um referencial

de fôlego para a épica popular antes daquela dos cangaceiros, e que representasse os ideais

heroicos que os poetas queriam dá legitimação. O texto carolíngio, como acima apontado,

originalmente em prosa, se desdobra por transferência ou imitação em versos, porque as

estrofes rimadas mais bem se enquadram à alma nordestina, o que legitima a literatura de

cordel brasileira frente a leitores e ouvintes, em detrimento da prosa europeia. Nesse sentido,

a abordagem de valentia presente na narrativa de cordel trata do herói autóctone com a

invencibilidade típica de seu coirmão europeu.

Acrescente-se ainda: a narrativa que se afirma no Nordeste do Brasil é toda medieval e

popular. Não há evidência, por exemplo, de que textos gregos ou latinos tenham influenciado

os poetas populares, o que é de fácil compreensão, já que as narrativas greco-latinas são

clássicas. Além do mais, o Portugal que para cá se desloca impregna a colônia de cultura

medieval e católica e, por consequência, as narrativas para cá transferidas se faziam

carregadas de elementos que configuravam essa orientação católico-medieval e popular.

Embora o achamento do Brasil tenha se dado já no Renascimento, o país de natureza

essencialmente católica que nos colonizou em meio à crise da fé não haveria de permitir ou

evitava ao máximo tudo o que remetesse ao paganismo e à racionalidade em meio ao povo,

pois sua principal meta era a de dilatar a fé e o reino.

Para configurar essa influência católico-medieval na literatura de cordel brasileira, faz

jus apresentar mais uma vez a musa do poeta Leandro Gomes de Barros na já citada Batalha

de Oliveiros com Ferrabrás. Percebe-se que Oliveiros, cristão e sobrinho de Carlos Magno,

vence o mouro Ferrabrás, a quem converte à força ao cristianismo. No desfecho da narrativa,

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porém, ambos os heróis são extremamente virtuosos na medida em que sua luta se dá segundo

os ideais que defendem. Essa atitude, de algum modo, será o embrião daquilo que Leandro

Gomes de Barros e outros poetas transferirão para os cangaceiros em narrativas que lhes

dedicaram.

No que respeita à Batalha de Oliveiros com Ferrabrás, veja-se a quantos elementos

cristãos o poeta remete:

Eram doze cavalleiros

Homens muito valorosos,

Destemidos, animosos,

Entre todos os guerreiros,

Como bem fosse, Oliveiros

Um dos pares de fiança

Que sua perseverança

Venceu todos infiéis

Foram doze leões cruéis

Os doze pares de França.

Todos eram conhecidos

Pelos leões da Igreja,

Pois nunca foram à peleja

Que nella fossem vencidos,

Eram por turcos temidos,

Pela Igreja estimados

Porque quando estavam armados

Suas espadas luziam,

E os inimigos diziam:

– Esses são endiabrados.

[...]

Aquele foi que entrou

Dentro de Jerusalém

Não respeitando ninguém

Até apóstolos matou.

No templo sagrado achou

Balsamo que Deus foi ungido

Cousas que tinham servido

Na paixão do redentor,

A coroa do Senhor

Tudo elle tem condizido.

[...]

Beijou a cruz da espada

Prosseguio em oração!

Oh! Virgem da Conceição!

Maria pia e sagrada,

Mãe de Deus immaculada ,

Esposa casta e fiel

Pelo vinagre e fel

Que Christo bebeu na cruz,

Rogae por mim a Jesus,

Nessa batalha cruel. (BARROS, pp. 1, 3, 13 )

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Outro detalhe importante, como se observa, é que não há por parte de nenhum dos dois

guerreiros atos de covardia: de início, o suposto vencedor, Ferrabrás, não aceita a vitória sem

que seu oponente, embora debilitado, recorra às armas. Desse modo, Oliveiros aceita

continuar a refrega de posse de suas armas:

[...]

E partiu determinado

A Ferrabrás degolar,

Mas não poude aproveitar

O golpe descarregado.

O turco pulou de lado,

Um golpe nele mediu.

Quando Oliveiros sentiu

O braço lhe estremeceu

Do golpe que recebeu

A sua espada cahiu.

Assim mesmo inda pegou-a

Mas tinha o braço dormente.

O turco rapidamente

Partiu a ella, apanhou-a

Chegando examinou-a,

Ficou muito admirado

E disse enthusiasmado

– Oliveiros estás vencido,

Isso ahí está decidido

Porque já estás desarmado.

Porém pega tua espada

Não quero vencer-te assim,

Mesmo quero ver o fim

Dessa batalha encantada,

Pois que está tão dilatada

Que já estou mal satisfeito

Respondeu-lhe – só acceito

Por minhas armas tomadas

Toma-la por mão beijada,

Isso não é de direito. (BARROS, p.19)

A influência da tradição literária popular medieval na poética do cordel nordestino

decorre, sem dúvida, da leitura em que bravura, destreza e coragem se emolduram em canções

de gesta que se conhecem desde o século IX, a exemplo de A História de Carlos Magno e os

doze pares de França, com a qual o poeta e o povo nordestino se identificaram. Ao adaptar e

aproveitar dos poemas carolíngios e de outros textos de igual matriz, os poetas da literatura de

cordel, principalmente, os pioneiros, agregam aos seus textos com temática no cangaço, e na

proporção de seus limites intelectuais, características de identificação com esses medievos

heróis. Recriaram, pois, um mundo de heróis redivivos na geografia, na cultura, no sotaque,

nos ideais de justiça e no caráter nordestino.

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Ressalte-se que, em muitos casos, os primeiros cordéis pareciam transparecer apenas o

intento de noticiar fatos em torno dos acontecimentos que envolviam os cangaceiros, todavia,

o que disso resultava, na verdade, era o transmudar do bandido em herói, pois suas façanhas

traziam coloração de justiça, uma vez que terminava por prevalecer a ideia de que a opção do

cangaceiro era a de auxiliar os desvalidos, os pobres, os necessitados, já que o Estado,

propriamente, a máquina pública abandonava seus cidadãos à sorte, e a Justiça, pouco ou

raramente, olhava pelos oprimidos.

No cordel Antônio Silvino, o rei dos cangaceiros, de Leandro Gomes de Barros, o

senso de justiça do bandoleiro se dá, por ironia, em casa de um padre para quem, segundo o

texto, era anátema aquele que desse apoio a cangaceiros. Curiosamente, a caridade cristã

presente, por exemplo, no ciclo carolíngio, não se dá no caráter nem na mentalidade do

sacerdote. A voz do texto que segue é de Antônio Silvino, que em primeira pessoa narra a

injustiça do pastor católico, contrariamente ao que pensa o cangaceiro sobre promover a

justiça:

[...]

O velho padre Custódio,

Usurário, interesseiro,

Amaldiçoava quem desse

Rancho a qualquer cangaceiro,

Enterrou uma fortuna,

E eu sonhei com o dinheiro!…

Então fui na casa dele,

Disse, padre eu quero entrar,

Sonhei com dinheiro aqui!…

E preciso o arrancar,

Quero levá-lo na frente

Para o senhor me ensinar.

O padre fez uma cara,

Que só um touro agastado,

Jurou por tudo que havia,

Não ter dinheiro enterrado,

Eu lhe disse, padre-mestre,

Eu cá também sou passado.

Lance mão do cavador,

E vamos ver logo os cobres,

Esse dinheiro enterrado

Está fazendo falta aos pobres,

Usemos de caridade

Que são sentimentos nobres.

Dez contos de réis em ouro

Achemos lá n’um surrão,

Três contos de réis em prata

Achou-se n’outro caixão,

Eu disse: padre não chore,

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Isso é produto do chão.

O padre ficou chorando

Eu disse a ele afinal

Padre mestre este dinheiro

Podia lhe fazer mal

Quando criasse ferrugem

Lhe desgraçava o quintal.

Ajuntei todos os pobres

Que tinham necessidade

Troquei ouro por papel

Haja esmola em quantidade

Não ficou pobre com fome

Ali naquela cidade. (BARROS, p. 7)

Percebe-se que Antônio Silvino, como um Robin Hood, – outro arquétipo de justiça

social do Ocidente e até do mundo, agregado à mítica dos cangaceiros –, saqueia o padre para

exercer a piedade cristã e dividir com os necessitados. Tirar dos ricos e dividir com os pobres

não é mérito dos cangaceiros nordestinos, é mito universal que o romanceiro do cordel

absorveu, adaptou e fez disseminar entre leitores ou simples ouvintes.

Para Ruth Lêmos (1983), “na representação do cangaço, os poetas têm como horizonte

um imaginário povoado de heróis antigos” (p. 81). Nesse caso, abrem-se leques de

possibilidades que levam a ideias de que, do fato ou realidade do cangaço, os poetas

recolhiam traços soltos da oralidade que lhes interessavam e imprimindo-os ao seu texto,

criavam. Frise-se, no entanto, que nesse tecido há um criar/recriar, uma vez que os ouvidos do

povo e de seu poeta sempre foram prenhes das linhas antigas que teceram outras histórias

trazidas de outros tempos e que se tornaram voz comum na tradição nordestina: cantigas de

heróis antigos que habitavam o sertão velho. Na poiesis do cordel épico, a busca pelos heróis

antigos resultou na criação/recriação das valentias que o poeta adaptou e atualizou ao mundo

dos cangaceiros. Dessa forma, há um texto matricial que se faz redivivo, sobreposto,

criado/recriado, de maneira que os cangaceiros tanto podem ser um Carlos Magno, um

Oliveiros, um Roldão como eles mesmos.

Os textos matriciais figuram na literatura de cordel como suporte de importância

crucial para os poetas sempre acorrerem como campos para sua transpiração:

Uma ou outra vez o poeta vai buscar na literatura universal, como fez Leandro

Gomes de Barros ao escrever a História de Pedro Cem, na realidade Sem, da

Donzela Teodora, da Batalha de Oliveiros com Ferrabrás, da Prisão de Oliveiros,

etc. [...] A Batalha de Oliveiros e demais temas foram tirados do livro de Carlos

Magno, que circulou nos princípios deste século por todos os lugares do Brasil. (ALMEIDA, 1976, p. 9).

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Em A prisão de Oliveiros e dos seus companheiros, Leandro Gomes de Barros deixa

clara a menção ao texto matriz e à sua utilização na feitura do seu texto. Deixa transparecer

ainda que, num Nordeste de cultura oral como o de então, a narrativa já era conhecida e

guardada de memória anteriormente à versão que fizera em cordel:

Quem leu a batalha horrenda

De Oliveiros e Ferrabraz,

Não deve ignorar mais

O que é uma contenda

Vê uma luta tremenda,

Como se ganha a vitória

Pôde guardar em mimória

O combate mais horrível

Paresse até impossível

O passado dessa história.

[...]

Carlos Magno também

Tinha doze cavalleiros

Como outros iguais guerreiros

O mondo hoje não tem

Nunca temeram alguém

Segundo dia a história

Tinham nas espadas a glória

Nunca torceram perigo

Nunca foram a inimigo

Que não contassem Victória. (BARROS, p. 1)

Ressalte-se, porém, que a saga desses heróis antigos, às vezes, é reavivada, recontada

em versos de cordel, como apontado no exemplo acima, e noutras, tem o ideal de bravura

transferido especialmente para os cangaceiros, com forma e conteúdo também expressos em

cordel. O texto matricial, como é próprio do nome, serve apenas de modelo à criação/recriação

ou reinvenção do herói sertanejo, trigueiro, local, nordestino, num primeiro momento,

contemporâneo do poeta que quase o alcança no rastro das alpercatas e na quentura do fuzil.

Feito sob a medida do herói antigo, o cangaceiro dos primeiros tempos da literatura de cordel é

o herói instantâneo. Urge que seja.

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2. 2. AEDOS NORDESTINOS: PENAS INSPIRADAS E HISTÓRIAS PARA CONTAR

E a liberdade feito um pássaro de seda

Voava alto nos meus planos de menino

Nas travessuras imitava os meus heróis

Luiz Gonzaga, Lampião e Vitalino.

(“Meninos do sertão”, de Petrúcio Amorim e Maciel Melo)

Do Nordeste de história para contar, é necessário que se aponte a antiguidade de uma

poesia popular que já se norteava para a temática do banditismo errante, o que ocorre desde o

século XVIII, com ênfase na existência de Cabeleira, um bandido que espalhou morte e medo

no Recife e seu entorno.

Arnold Hauser (1972) afirma que “cada época cultural tem o seu Homero, os seus

Nibelungenlied (canção dos Nubelungos) e sua Chanson de Roland” (p. 236). No Nordeste do

Brasil, esses Homeros se apresentam durante todo o ciclo do cangaço e até nossos dias, em

textos que se afiguravam à matéria épica desde o apogeu do cangaço, sobretudo no final do

século XIX, com a produção de folhetos ou cordéis temáticos, o que se dá até a derrocada

daquele fenômeno histórico na década de 1930. Depois dessa queda e até os dias atuais, o que

há são os diversos desdobramentos de textos identificados com propostas propriamente

épicas, com a ressalva de que, se não apresentar matéria épica, esses cordéis podem trazer a

sátira, o humor, a desconstrução do mito pela rejeição, inclusive, daquilo que seria a

mitificação de cangaceiros.

No período em que Cabeleira atuava no banditismo nordestino não era costume

chamar esse tipo de salteador de cangaceiro, embora houvesse o vocábulo cangaço para

designar complexo de armas que costumavam trazer os malfeitores (Cf.: TÁVORA, 1973, p.

199). Por esse tempo também já havia registros de pequenas narrativas em versos sobre o

bandoleiro referido e sua atuação em considerável área de Pernambuco. Esse material, no

entanto, embora escrito em versos, ainda não representava o que veio a ser chamado de

literatura de cordel somente no século seguinte. Os rudimentos de narrativa sobre o malfeitor

em questão se dão a partir de quadras que entraram para o contexto de criação folclórica, uma

vez que não há identificação de autoria, senão aquela nascida da e na verve coletiva. Só com o

tempo essas pequenas narrativas se tornaram naquelas de maior fôlego e enredo, ajustadas a

uma linguagem literária tida e havida por literatura de cordel.

A trajetória de José Gomes, o Cabeleira, foi romanceada por Franklin Távora e

constitui o texto mais conhecido desse autor. Com o título de O cabeleira, a narrativa vem a

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63

público no século XIX e traz vários exemplos das quadrinhas populares acima apontadas. A

respeito do aproveitamento desses textos orais e populares, explica o autor:

Embora neste número o protagonista da presente narrativa, o qual se celebrizou na

carreira do crime, menos por maldade natural, do que pela ignorância que em seu

tempo agrilhoava os bons instintos e deixava soltas as paixões canibais.

Autorizavam-nos a formar este juízo do Cabeleira a tradição oral, os versos dos

trovadores e algumas linhas da história que trouxeram seu nome aos nossos dias

envolto em uma grande lição. (TÁVORA, 1973, p. 31)

Em seguida, compara a bravura de Cabeleira aos grandes nomes da tradição heroica de

origem medieval e ainda menciona a função dessas quadrinhas e sua influência no

comportamento das crianças nos grupos familiares que as herdaram da tradição oral:

À sua audácia e atrocidades deve seu renome este herói legendário para o qual não

achamos par nas crônicas provinciais. Durante muitos anos, ouvindo suas mães e

suas aias cantarem as trovas comemorativas da vida e morte desse como Cid ou

Robin Hood pernambucano, os meninos tomados de pavor, adormeceram mais

depressa do que se lhes contassem as proezas do lobisomem ou a história do negro

do surrão muito em voga entre o povo naqueles tempos. (TÁVORA,1973, p. 31)

Note-se que é já tradição enxergar nos bandidos um heroísmo somente ombreado às

legendas de elementos que sempre foram referenciais de bravura desde o mais remoto

medievo: Cid, Robin Hood, Carlos Magno, entre outros, por mais que tenham esses

salteadores sertanejos sua vida marcada pelo crime e violência. A primeira transcrição de

quadrinhas que aparece no romance dá conta de avultada oralidade, mediante autêntica

criação do “espírito popular”, como disse o narrador:

Fecha a porta, gente,

Cabeleira aí vem.

Matando mulheres,

Meninos também. (TÁVORA, 1973, p.32)

Como o Cabeleira salteava em companhia de seu pai e de certo pardo de nome

Teodósio, a poética popular registra essas passagens da vida do minúsculo bando:

Corram, minha gente

Cabeleira aí vem;

Ele não vem só,

Seu pai vem também.

Meu pai me pediu

Por sua benção

Que não fosse mole

Fosse valentão. (TÁVORA, 1973, pp. 38-39)

Há no romance, entre as quadrinhas, a coincidente transcrição de uma sextilha,

composição comum à literatura de cordel longos tempos mais tarde. A disposição dos versos

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se assemelha à construção adotada pelo cordel, mas nada representa nesse sentido por ser

apenas coincidência:

Lá em minha terra,

Lá em Santo Antão,

Encontrei um homem

Feito um guaribão

Pus-lhe um bacamarte

Foi pá, pi, no chão. (TÁVORA, 1973, p. 50)

Com rima pobre e pouco criativa, os versos foram recolhidos juntos com as quadrinhas

para ilustrar o romance histórico de Távora. A propósito das trovas contidas nessa narrativa,

há ainda a presença de um desafio, também em quadras, a partir das personagens Negro e

Caboclo, o que confirma ter o texto vários elementos tirados à tradição nordestina da poesia

oral, provavelmente cantada, atribuída à criação popular, com o seguinte enredo: Marcolino é

o delator que aponta o esconderijo – um canavial –, último reduto do facínora, antes do

fatídico dia de condenação à pena capital. A musa popular aborda a tentativa de Marcolino em

convencer os que estão à sua volta da certeza do esconderijo de Cabeleira, ao que os presentes

terminam por improvisar sobre o que ouviram. O narrador de O Cabeleira se apropria dessa

tradição oral e transcreve-a:

Negro: Vosmecê, seu Marcolino

Vai atrás do Cabeleira?

Se quiser pegar o cabra,

Monte na besta foiveira.

Caboclo: Monte na besta fouveira

Ou no cavalo cardão,

Não há de pegar o cabra

No meio desse mundão. (TÁVORA,1973, p. 166)

Os textos apontados acima confirmam o quanto a poesia popular de natureza oral

acompanha os acontecimentos nacionais desde pelo menos o século XVIII, se tomarmos por

base a narrativa de O cabeleira, que, escrita no século XIX, tem como ponto de partida

passagens históricas do século anterior, num registro da vida e de tudo que envolve a

criminosa trajetória de José Gomes e seus comparsas.

O romancista, em texto a que chamou de Notas do autor, informou não apenas a

profusão de trovas populares sobre Cabeleira – embora deixe claro que em seus esforços de

coleta só tenha pinçado as de que se utilizou – como explicou que as transcreveu na íntegra, o

que atesta a autenticidade dos escritos por ele coletados:

Confirmo aqui tudo o que deixei dito no texto a respeito do meu protagonista.

Por mais extraordinária que pareça – ele na realidade não se mede pelos moldes

vulgares e conhecidos – o Cabeleira não é uma ficção, não é um sonho, existiu e

acabou aqui como se diz.

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Foi objeto de muitas trovas matutas e sertanejas, de episódios dramáticos e anedotas

acinte engendradas para amedrontar a bazófios importunos [...].

Não obstante terem sido numerosas as trovas de que foram assunto sua vida e morte,

e haver eu metido minhas melhores forças por conseguir elas, o pelo menos quantas

bastassem para dar, com uma notícia mais larga do célebre valentão, uma amostra

por onde pudesse ser devidamente aferida a musa popular do Norte há um século,

não pude obter mais as que entremeei no texto.

Não me atrevi a mudar-lhes uma só palavra, uma vírgula sequer. [...] Não quis usar

dessa faculdade. Fez-me escrúpulo tocar no legado que tem por si a consagração de

algumas gerações; e como eu recebi dos nossos maiores, assim o receberá de mim a

posteridade. (TÁVORA, 1973, p. 195)

Há de se notar que os versos transcritos por Franklin Távora não constituem narrativas

que representem a literatura de cordel, embora representem a voz e o sentimento populares no

que respeita ao fenômeno que o povo acompanha, ou seja, a saga do Cabeleira em meio aos

canaviais de Recife e de grande área em volta. Ao empreender coleta de material poético da

cultura popular oral, o autor de O Cabeleira já levantava a proposta de um regionalismo

literário e da criação de uma “literatura do Norte”.

É importante que se aponte a presença de poesias populares que sempre registraram e

atualizaram fenômenos sociais, políticos, religiosos, folclórico-messiânicos, entre outros, a

partir, sobretudo, da criação de quadrinhas que impregnaram o gosto popular e se perpetuaram

na cultura brasileira, inclusive como depoimentos de uma época, e cuja representação mais

legítima, fora do eixo Nordeste, são as que envolveram a maioridade de d. Pedro II, e com que

o povo manifestava nas ruas: “Queremos Pedro II/ embora não tenha idade/ a nação dispensa

a lei/ e viva a maioridade”.

Da era pós-Cabeleira, e para trazer mais um exemplo, mostre-se que a musa popular

continua com suas quadras a registrar tantos eventos quantos sejam possíveis a respeito do

cotidiano do Nordeste brasileiro. Liberato Cavalcante de Carvalho Nóbrega, nome importante

da Paraíba na primeira metade do século XIX, foi político e delegado de polícia, antes de

entrar para a ilegalidade do cangaço levado por inimizades políticas e pessoais.

Em ABCs, composições mnemônicas muito cultivadas no Nordeste, em quadras,

inicialmente, e depois em sextilhas, quando adaptados à linguagem do cordel, muitos nomes

importantes do cangaço tiveram vulgarização. Nas quadras a seguir, o foco é o acima citado

Liberato Nóbrega, de acordo com material poético atribuído ao poeta Hugolino Nunes da

Costa, o Hugolino do Teixeira (1832 – 1895) coletado por Rodrigues de Carvalho (apud

CASCUDO, 1982, pp. 23-24):

Senhores, me dê licença

Para uma história inteira:

Ver contar uma desgraça

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Que sucedeu no Teixeira.

Liberato, delegado,

Foi prender um Guabiraba,

Por causa dessa prisão

Quase o Teixeira se acaba.

Muitos foram os textos que instigaram o imaginário não só dos poetas como da

população. Nesse sentido atribua-se aos poetas populares a responsabilidade fazerem dos

cangaceiros os mitos a que o povo admira e por quem apresentam predileção. Não poucos

foram os textos de raízes orais que levaram os ouvintes (fale-se mais em ouvintes que leitores,

sobretudo nos primórdios dessa cultura da poesia popular) a disseminarem a memória

cangaceiresca de geração a geração.

No Brasil, a literatura de cordel, na configuração e formato atuais, tem pouco mais de

cem anos e sua popularização está ligada, entre outros aspectos, a dois fenômenos históricos

importantes vividos pelo Nordeste brasileiro: as secas periódicas – mote, inclusive, de

variadas abordagens artísticas – e o cangaço, motivo da literatura de cordel,

comprovadamente, a partir de 1904. Francisco das Chagas Batista é o poeta que primeiro

escreveu folhetos sobre essa temática, em composição estrófica de seis versos, com tema na

vida de Antônio Silvino, cangaceiro de nomeada do Nordeste e cuja atuação se deu entre os

anos de 1896 a 1914.

Rute Brito Lêmos afirma que

O advento do cangaço organizado coincide com o início da publicação sistemática

de folhetos. O cangaço passa a ser tema preferencial e é possível supor que

contribuiu em grande medida para firmar essa literatura.

É notável, então, o desencadeamento de uma produção ampla e constante voltada

para os feitos de Antônio Silvino, e da qual se depreende um verdadeiro memorial.

(TERRA, 1983, p. 81)

Ainda de acordo com essa autora, “dos quarenta e cinco poemas populares

identificados como de autoria de Chagas Batista, quatorze são sobre Antônio Silvino e cinco

sobre Lampião” (TERRA, 1983, p. 44). Atente-se, porém, que Silvino fora tema mais

constante para a pena de Francisco das Chagas Batista, não por ser, talvez, mais importante do

que Virgulino Ferreira, mas por anteceder a este em aproximadamente 24 anos na vida do

cangaço. Desse modo, a impressão é a de que em Chagas Batista a narrativa sobre Silvino

sobrepuja a de Lampião pelo hiato que os separa no tempo. Mas, ao se afirmar como

cangaceiro, é notória a fama adquirida por Lampião, o que o torna o mais importante

personagem do universo que escolheu, a partir de olhares tanto positivos como negativos.

Page 65: dedos cravejados de brilhantes, chapéus de estrelas carregados

67

Lembre-se, portanto, que, se na poética inicial da literatura de cordel imperava Antônio

Silvino, é natural que em torno dele não somente poetas populares, mas a mídia da época o

tivessem em mira como, principalmente, tema de notícia, de arte e de debate.

No cordel Antônio Silvino: vida, crimes e julgamento (primeira parte); a segunda trata

do julgamento), de Chagas Batista, é Antônio Silvino quem conta sua história em primeira

pessoa. No final do texto, o cangaceiro justifica sua entrada para o mundo do crime:

[...]

Somente à fatalidade

Eu devo a minha prisão,

Pois todos sabem que eu era

Um indomável leão!

E nem eu sei por que foi

Que me entreguei à prisão. (CHAGAS BATISTA, p. 30)

Observe-se ainda no seguinte trecho:

Não me prenderam, entreguei-me,

Porque fui impulsionado

Pelo destino, talvez!

Vi-me ferido e roubado,

Vim morar nesta prisão,

Cumprir a lei do meu fado. (CHAGAS BATISTA, p. 30)

Note-se que o personagem que ganha voz no texto se veste de heroicidade, já que sua prisão

decorre de fatalidade. O poeta passa a clara noção de que um herói não se deixaria prender pelas forças

policiais. O ato de se entregar, pelo inesperado dos ferimentos em combate, traz ao cangaceiro a

consagração de sua trajetória, pois o poeta encontra uma saída honrosa para um indomável leão, o que

delineou no imaginário popular os traços que arquitetaram o ideal heroico vivido pelo personagem e

sentido pelos circunstantes que já o tinham na conta de justo, benfazejo e valente.

Faz-se necessário lembrar que, embora este seja um estudo da narrativa épica na

literatura de cordel, e, portanto, de cantos a um herói, Lampião não sofre encômios do poeta

Francisco das Chagas Batista. Esse autor, ao focalizar a vida desse cangaceiro, se mostra

indignado a seu respeito, o que se percebe em expressões como assassino cruel, desonrador e

ladrão (Cf. TERRA, 1983, p. 104).

Já Antônio Silvino figura em todos os textos de Chagas Batista e de Leandro Gomes

de Barros como um guardador da honra, salvador das famílias e respeitador dos semelhantes

como mostra a narrativa deste último, no seguinte episódio, também em primeira pessoa:

Fui de madrugada em casa

De um inimigo que eu tinha

Por fortuna achei cerrada

A janella da cozinha

Tirei café, rapadura

Carne guisada e farinha.

Page 66: dedos cravejados de brilhantes, chapéus de estrelas carregados

68

Achei detraz de uma porta

Um rifle já carregado

Esse eu não poude deixar

Que estava necessitado

Fiz de conta que era meu

Que a onça tinha quebrado.

Ouvi o ressono delle

Passei sem alteração

Achei três contos de réis

Em cima de um marquezão

Contei vi o que tinha

Mas nesse não puz a mão.

E deixei em cima d’elle

A bainha e o punhal

Dando a conhecer a elle

Quem era eu afinal

Vi o dinheiro e deixei

Aquillo como signal. (BARROS, pp. 11-12)

Nessa altura da narrativa, o poeta dá voz às pessoas da casa invadida e evidencia sua

reação ao perceber que não se tratava de qualquer inimigo, mas de um cangaceiro fino:

A mulher do fazendeiro

De manhã se levantou

Fez um alarme tão grande

Que o marido se assustou

Porque não achou a carne

Nem o café que guardou.

Gritou ao Mario homem!

Acorde que está roubado

Elle foi ver o dinheiro

Aonde tinha deixado

Achou tudo e a bainha

Que eu tinha depositado.

Como diabo foi isso?

Disse elle em desatino

Aqui não entrou ladrão

Entrou cangaceiro fino

E uma ação como essa

Só faz Antônio Silvino. (BARROS, pp. 12-13).

[...]

O poeta mostrara essa atitude de Silvino em sua narrativa, atribuindo-lhe traços

fundamentais do heroísmo que a idealização é capaz de produzir. Rodrigues Carvalho, ao

estudar meticulosamente a vida no cangaço, anos mais tarde, estabelece comparações entre

Antônio Silvino e Virgulino Ferreira e seu comportamento no tocante à sacralidade dos lares

da geografia de suas atuações:

E em se tratando de decoro, essa diferença ainda avulta mais. Pode-se dizer que

Antônio Silvino fora um príncipe e Lampião um lacaio. A honra das famílias

Page 67: dedos cravejados de brilhantes, chapéus de estrelas carregados

69

sertanejas que este miseravelmente emporcalhava, cobrindo de toda espécie de

excremento moral, para aquele era intangível qual relíquia sagrada. Infenso à

cobiça e avesso à vilania, o lar de seu inimigo era para ele tão inviolável quanto o

de seu amigo mais querido. Se houvesse oportunidade poderia roubar-lhe a própria

existência, porém a honra da sua família seria respeitada acima de tudo como se

fosse sacrossanta. (CARVALHO, 1961, p. 376)

A honesta ação do cangaceiro, seu respeito pela vida do inimigo e dos de sua casa,

vulneráveis em sono profundo, revelam a finura do bandoleiro: jamais enfrentar o outro, pela

vida ou morte, senão desperto. Sorrateiro, apenas toma o rifle de que estava necessitado. O

dinheiro não interessara nem a vida dos outros. Víveres que furta, revelam a necessidade em

que se encontrara. Note-se que o reconhecimento do feito do cangaceiro emana do próprio

inimigo: E uma ação como essa/ só faz Antônio Silvino. Nesse sentido, pode-se recorrer a

Vernant, que indaga e concomitantemente responde:

Como poderia o herói ser responsável por um sucesso que nunca pode conquistar? O

que caracteriza a proeza heroica é sua gratuidade. A fonte e a origem da ação, a

razão do triunfo não se encontram no herói, mas fora dele. Ele não realiza o

impossível pelo fato de ser um herói; ele é um herói pelo fato de realizar o

impossível. (VERNANT, 1990, p. 434)

Depara-se mais uma vez com o ideal de herói dos poetas populares, tendo em vista a

rejeição que Virgulino Ferreira sofria, sobretudo como noviço no cangaço. Atente-se aos

estudos de Martha Abreu e Rachel Soihet (2003), que observam e apontam em trecho de

cordel de Francisco das Chagas Batista o quanto Lampião fora vítima da letra do poeta, o que

confirma o anti-heroísmo desse cangaceiro, segundo o olhar do cordelista, como

anteriormente ventilado:

[...]

Diz o primeiro decreto

No seu artigo primeiro:

Todo e qualquer sertanejo,

Negociante ou fazendeiro,

Agricultor ou matuto

Tem que pagar o tributo

Que se deve ao cangaceiro.

No parágrafo primeiro

Deste artigo elle restringe

A lei somente aos ricos

Dizendo: - a lei não attinge

Ao pobre aventureiro

Pois quem não possue dinheiro

Diz que não tem e não finge. (BATISTA apud ABREU e SOIHET, 2003, p. 123).

Atente-se para a segunda estrofe: o poeta deixa transparecer um ato de nobreza do

bandido, ao tributar ao mesmo tempo ser este complacente com os pobres, pois se não têm,

não fingem.

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É perceptível, no entanto, a represália que sofre Lampião nos versos dos poetas

populares tidos como iniciadores dos cordéis épicos. É possível que isso se dê por motivos de

Antônio Silvino ocupar no imaginário do povo a face do “gentil homem”, termo que Câmara

Cascudo usa em referência primeira a outro cangaceiro, Jesuíno Brilhante – anterior a

Antônio Silvino –, o que se estende também na mítica popular a este último, que por seu turno

fazia questão de pertencer à “escola romântica” do cangaço. É possível que acerca de

Lampião compusessem espécies de contracantos justificados, talvez, pela quantidade de

crimes e maldade atribuídos ao bandido, sobretudo, no início de sua vida de bandoleiro.

No que concerne à crônica sobre outros cangaceiros, não se evidencia rejeição da

poética popular, a exemplo dos cantos ao já citado Silvino, a Jesuíno Brilhante, a Adolfo

Meia-Noite, entre outros, todos igualmente bandoleiros, mas tidos e havidos na condição de

heróis sertanejos, pois honravam as famílias e eram gentis, como querem tanto os poetas

quanto o povo. De Adolfo Meia-Noite, quadrinhas populares e soltas, i. e, sem um enredo, e

ainda não sob a forma de cordel, dão conta de seu heroísmo e louvam sua atitude de morrer

sem se entregar. O cangaceiro morre na Serra do Teixeira, Paraíba do Norte, em 1880. Versos

anônimos rezam sobre o caráter do homem Adolfo Rosa Meia-Noite e de como, à traição, fora

morto pela polícia:

Adolfo nasceu nas Varas

De Afogados de Ingazeira

Província de Pernambuco

Foi sua terra primeira.

Não podendo trabalhar

A Paraíba procurou.

De todos os inimigos

Meia Noite se vingou.

- Tenho uma coisa comigo,

Desde a hora de nascer;

Não mato sem precisão

Nem corro sem ver de quê.

Era homem de coragem,

De muito bom coração,

Só matava peito a peito,

Pois nunca foi um ladrão.

As praças da Paraíba

Na Fazenda do Bom Fim;

Lhe fizeram a traição,

Lhe dando o triste fim. (Apud CASCUDO, 1982, p. 112).

As quadrinhas acima representam e revelam ainda importante depoimento: na mítica

popular, nenhum cangaceiro, aqueles tidos por verdadeiros heróis, não matava de forma

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71

banal, não roubava sem motivo, pois eles não eram tidos por ladrões. Se o faziam, era pela

sobrevivência e necessidade. Se não trabalhavam, era porque, perseguidos pelo governo e por

inimigos, não tinham chão para se fixar. Nunca se entregavam. Preferiam a honra da morte

em combate. Todos, de Jesuíno Brilhante a Adolfo Rosa Meia-Noite, morreram à traição

protagonizada pelas próprias forças volantes, o que ocorreu igualmente a outros bandoleiros

como Virgulino Ferreira e Corisco.

É necessário lembrar que, diferentemente desses primeiros cangaceiros, a glória de

Lampião e sua inserção no cancioneiro popular só se dão, como esperado, após sua morte, e

ainda pelo afastamento cronológico de seus feitos. O herói Virgulino Ferreira da Silva entra

para o circuito épico da literatura de cordel, principalmente, nas décadas de 1950 (período de

efervescência de valorização do Brasil) e 1960 (reação à ditadura militar), tempo, esse último,

em que intelectuais de esquerda passam a estudar, a entender, a elevar o cangaço à condição

mítica nacional, como espécie de reação ao golpe militar de 1964. Desse modo, mitos como o

de Lampião ou do cangaço, levam os estudiosos a discutirem não só o seu nome de Virgulino

Ferreira, mas o cangaço como entidade de força que contraria o poder estabelecido e contra

este se levanta. Nessa ocasião, aos cangaceiros são dados atributos que ultrapassam a ideia de

que lutavam em causa própria, para alcançar, pelo olhar dos intelectuais, principalmente de

esquerda, o mérito da defesa dos fracos, dos pobres e dos oprimidos pelos poderosos.

Observem-se estudos como os de Rui Facó, Maria Christina Matta Machado, Eric

Hobsbawm, entre tantos, para se entender a mentalidade dessa geração, que atua, alguns,

ainda na década de 1950, e outros, nos anos de 1960 e seguintes. Veja-se texto de

engajamento político2 de Christina Matta Machado, que ao mencionar a morte dos pais de

Lampião em Alagoas, especificamente em Matinha de Água Branca, pela volante do capitão

pernambucano José Lucena, alega: “Naquele instante morre Virgulino Ferreira e nasce

Lampião, que se tornaria mais tarde o mais famoso cangaceiro, que veio a liderar o único

movimento armado de longa duração no Brasil”. (MACHADO, 1978, p. 37). “Movimento

armado” é o termo que chama a atenção, principalmente, por ser típico da época em que o

texto é redigido.

A socióloga Isaura Queiroz aponta para a relação que fora feita, também na década de

1960, em leitura sobre o fato de que o cangaço teria sido visto como resistência aos poderosos

em estudos que incluem as artes, a Sociologia, a História. Conclui a intelectual: pouco a

pouco, na literatura, o gênero de vida específico do cangaço. (Cf.: QUEIROZ, 1978, p. 18).

2 Trata-se de tese sobre o cangaço, que a autora não concluiu, devido a ter falecido precocemente.

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O simbólico da luta dos cangaceiros para esses estudiosos urbanos está em

representarem resistência aos poderosos e ao sistema arcaico de poder que se instala no Brasil

desde o período colonial. A lida dos cangaceiros passa, com os intelectuais e políticos de

esquerda, a sintetizar o real combate à política e aos coronéis de uma época em que o poder

local a eles pertencia em detrimento dos que a eles viviam subjugados.

Antes, porém, da discussão cangaceiros x poderosos e da valorização dos primeiros, a

peculiaridade de Antônio Silvino quanto à poética popular, e como antecessor de Lampião, é

o fato de, embora inserido no crime, usufruir, concomitantemente, da marca da nobreza e de

prestígio, o que ocorrera a outros cangaceiros, como anteriormente mencionado, tanto na

visão do povo quanto na dos poetas. Tido como grande cavaleiro andante num Nordeste com

fortes traços medievais, Silvino se afirma como um justo defensor do povo nos estados em

que atua, a saber: Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Tendo como bandeira a

vingança pela morte do pai, Antônio Silvino assume o chamado cangaço independente, porém

segundo uma moral e ética que são as de não desrespeitar famílias, de não macular as moças,

de respeitar a todos e somente roubar aos que têm para dividir com os despossuídos.

Ao agir nesses moldes, e talvez por estratégia, Antônio Silvino acaba por conquistar

seu espaço e a admiração do povo, além da síntese de sua vida e seus feitos pelas mãos dos

poetas populares. Em A vida de Antônio Silvino, de 1904, com reedição em 1905, 1906 e

1907, o testemunho do heroísmo do cangaceiro se dá em meio a uma ótica que põe Silvino

como vítima do sistema. Sua heroicidade não se dá só pela resistência física, mas por sua

indignação diante dos desmandos e atrocidades sociais e políticas do Nordeste. Conforme o

trecho que segue, há quase uma justificativa e uma defesa do cangaceiro pelo poeta, que

sempre em primeira pessoa, dá voz a Silvino:

[...]

Alguém me chama covarde

Porque eu uso correr,

Podem chamar, mas eu corro,

Porque preciso viver;

E quem se fizer de duro

Que espere para morrer.

Alguns dizem que eu sou

Malvado de profissão.

Me chamam de desordeiro,

Acusam-me de ladrão;

E muitos fogem de mim

Como a cruz foge do cão.

Saibam todos que não sou

Como dizem, tão malvado;

Se aos meus inimigos

Page 71: dedos cravejados de brilhantes, chapéus de estrelas carregados

73

Eu tenho assassinado

É porque eles me ofendem,

A matá-los sou obrigado.

E também não sou ladrão,

Pois não vivo de roubar:

Para não morrer de fome

Peço a quem tem para dar;

Faço isto porque o governo

Não me deixa trabalhar...

Defendo a honra e a inocência,

Só ofendo a quem me ofende,

Só firo a quem me fere

Ou a quem ferir-me pretende;

E o que me fizer mal

Juro que se arrepende. (BATISTA, pp.46-47)

Há uma justificativa muito comum para a história de jovens que entravam no cangaço:

a vingança pela morte do pai. Referência imprescindível no lar em toda a cultura ocidental

judaico-cristã, a figura do pai representa a ordem, a moral, o sustentáculo da família em todos

os níveis. Na cultura nordestina, a presença paterna sempre se mostrou muito forte como

ancoradouro. A morte do pai, sobretudo, aquela da surpresa de um assassinato, termina por

constituir um vazio que deve ser preenchido e isso se dá pela vingança. Vingar o pai morto,

fazer essa justiça, é ter a sensação de que o vazio foi preenchido. Na cultura sertaneja, vingar

a morte de um ente querido é torná-lo presente no meio familiar, é fazê-lo reviver, e tornar

toda a casa igualmente vivaz. É como se próprio morto voltasse e se autodefendesse.

A profissão de fé que rege a entrada e a luta de Antônio Silvino para o cangaceirismo

se dá no seguinte passo:

[...]

Aos que mataram meu pai

Entrei em perseguição

Nas lutas me acompanhara

Zeferino meu irmão;

De me fazer criminoso

Creio que tive razão. (BATISTA, p. 2)

Essa voz aponta para a vingança de Antônio Silvino e de sua luta em defesa da honra

não só pessoal como do grupo familiar. Sua vingança é a de seu pai e a do grupo a que este

estivera atrelado. Vingar o pai é vingar todo um mecanismo envolvido por laços de fidelidade

decorrentes de anos atados não somente por parentesco, mas por laços afetivos e de amizade,

como comprova o sobrenome Silvino, adotado pelo cangaceiro em homenagem ao provável

parente e aliado, Silvino Aires, na verdade, seu padrinho e também cangaceiro, como será

mostrado posteriormente.

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Percebe-se que a luta da vingança envolve sempre membros do grupo familiar: Antônio

Silvino, Zeferino, seu irmão, e outros possíveis parentes. Verifica-se, ainda, que o provável

parentesco ou amizade profunda da família de Antônio Silvino com os Aires (de que se destaca

o nome de Silvino Aires) foi o motor de toda a trama e entrada de Antônio Silvino para a vida

de crimes (Cf.: QUEIROZ, 1977, p. 41). Silvino não executa vingança somente em nome de

seu pai: a honra e o sangue a serem desforrados configuram não um ato isolado em relação ao

genitor assassinado do cangaceiro, mas o clã dos Aires, por quem o pai de Silvino morre, teria

a honra vingada na vindita.

Como em autodefesa, a partir do texto de cordel, diz Antônio Silvino “ter razão de se

tornar criminoso” e tenta se justificar se colocando como justiceiro. De suas mãos e de sua

violência acontece o que deveria ser atribuição do Estado, sempre omisso: a justiça. Prender,

julgar, condenar ou absolver, matar, prestar assistência aos pobres e necessitados, agir

politicamente passa a ser ofício de Antônio Silvino, que, à solta pelo sertão, faz o papel do

ausente Estado em todas as instâncias:

[...]

No bacamarte eu achei

Leis que decidem questão

Que fazem melhor processo

Do que qualquer escrivão.

As balas eram os soldados

Com que eu fazia prisão (BATISTA, p. 4)

Ainda com relação à sua lei, afirma Antônio Silvino:

[...]

Onde estou não se rouba

Nem se fala em vida alheia,

Porque na minha justiça

Não vai ninguém para cadeia:

Para logo o que tem feito

Com o sangue da própria veia! (apud. MOTA, 1982, p. 177)

Segundo a visão do poeta popular, o Estado não tem forças para prender Antônio

Silvino e, num canto que representa toda a admiração (o cangaceiro é invencível e somente

quando quis se rendeu definitivamente às forças oficiais), é elevado à categoria do homem

que termina por representar força maior que a de seu principal perseguidor, o próprio Estado:

[...]

Porque Antônio Silvino

(uma é ver, outra é contar...)

Lutou dezenove anos,

Fez o governo cansar

E só puderam prendê-lo

Quando ele quis se entregar (apud MOTA, 1982, p. 181)

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A impunidade nas sociedades sertanejas pelas autoridades era tamanha, que esse

crônico excesso de violência e vingança entre grupos se estendeu por anos seguidos por todo

o Nordeste, o que faz originar o cangaço e leva as populações sertanejas a um misto de medo

e pavor, mas de admiração pelo cangaceiro, devido à sua coragem no enfrentamento dos

poderosos e, de certo modo, na defesa desses desvalidos. Por outro lado, surge o poeta, que,

voz desse povo, agrega e sintetiza todo um cantar de caráter épico em torno da aventura

cangaceiresca.

A crônica sobre como Antônio Silvino ingressa no crime se dá da seguinte forma: em

uma sub- região da Paraíba, conhecida como Teixeira, berço de cantadores repentistas, quatro

grupos familiares se revezam no poder, a saber, os clãs dos Dantas, dos Cavalcanti Aires, dos

Carvalho Nóbrega e dos Batistas (de que descende Silvino). Os dois primeiros filiados ao

Partido Liberal e os dois últimos, ao Conservador. Quando um dos Aires, Idelfonso

Cavalcanti Aires, ascendeu ao poder, os Dantas, seus aliados, forjam seu assassinato em 1875

e acusam dessa morte um de seus inimigos, especificamente Liberato de Carvalho Nóbrega, a

quem Idelfonso Aires substituíra e de quem fora perseguidor.

Silvino Aires, filho do assassinado Idelfonso, não aceitara a alegação de que a morte

de seu pai tenha sido provocada por seu inimigo, mas por um seu aliado e, auxiliado por

Pedro Batista de Almeida, o Batistão (pai do futuro Antônio Silvino) dá cabo da vida do

verdadeiro assassino de seu pai (Cf.: TERRA, 1982, p. 82).

Segundo Gustavo Barroso (1930, p. 86), há ainda algumas querelas entre os grupos

rivais, sobretudo, por Silvino Aires, porém os Dantas protagonizam um esquecimento de mais

ou menos 20 anos. Há uma trégua, Silvino Aires vai plantar e criar, e, no tempo certo, os

Dantas entram em cena por meio de um subdelegado, seu parente, da já mencionada região do

Teixeira, que em 1897 ataca o território dos Aires, alegando que seus agregados e moradores

são ladrões de cavalos e os espanca. Dessa feita, Silvino Aires forma seu bando e vai à forra:

invade a serra do Teixeira reduto dos Dantas. No meio do bando se encontrava Manuel

Batista de Morais, que depois se torna Antônio Silvino filho do sobredito Pedro Batista de

Almeida, cuja morte ocorrida em 1896, por um dos Dantas, jura vingar.

Os registros apontam que Silvino Aires fora preso por volta de 1898 (Cf.: BARROSO,

1930, p. 88) e a partir de então Manuel Batista de Morais passara a chefia de bando com o

pseudônimo de Antônio Silvino e sobrenome adotado em honra de seu padrinho, dito Silvino

Aires. Do prenome [Antônio], informa (CASCUDO, 1982, p. 29) não lhe saber a origem.

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A narrativa sobre Antônio Silvino aborda a injustiça em todas as suas configurações,

vivida num Nordeste rural, atrasado e carente. Nordeste, igualmente, de ricos avarentos, de

políticos-coronéis, de ricos aliados dos cangaceiros, de ricos contrários a estes. Território dos

que negam e dos que dão o pão de que o cangaceiro precisa.

O robinhoodismo do cangaço não é de todo imaginação de pensadores de esquerda.

Havia, porém, os que defendiam que, de Antônio Silvino a Virgulino Ferreira e outros, o que

buscavam era o pão fácil e que a luta que empreendiam era, na verdade, para si e em torno de

si, com a ressalva da divisão com seus soldados do lucro de suas investidas. Aos comandados

cabia soldo garantido, porém aos chefes incorria amealhar maior quinhão. A fortuna que

acumulavam esses tinha cofre certo: seu bolso. Eles e seus aliados e colaboradores mais

próximos se afortunavam, portanto.

Mas há de se apontar que no imaginário da poesia popular os chefes de bando são

apontados como heróis do povo sofrido em luta contra o sistema político e econômico

estabelecido e com poucos a deter poder político e econômico, enquanto a maioria tem de se

contentar com a pobreza e miséria extremas, em luta constante para sobreviver. Tirar dos

ricos e distribuir com os mais pobres é exercer, na visão épica dos poetas populares,

verdadeiro papel de Robin Hood. O poeta registra a ocasião em que Antônio Silvino, em uma

de suas façanhas, fizera justiça na distribuição com os pobres do que tirara do estado e dos

ricos em vila do Pilar, na Paraíba:

[...]

Então dirigi-me à loja

Do mesmo Napoleão,

Lá quaro contos de réis

Na gaveta do balcão

Encontrei, e vi que Amim

Tocava aquele quinhão...

À municipalidade

Pertencia esse dinheiro,

Porém eu que do governo

Sou o principal herdeiro,

Apossei-me desse cobre

E em guardá-lo fui ligeiro!

Quando da loja saí

Eu fui à colletoria

Alli deu-me o colector

O cobre que em cofre havia

Sendo este do governo

A mim também pertencia.

Visitei todo o commercio

Fiz muito bom apurado

E vi que de muito povo

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Eu me achava acompanhado

Alguns pediam-me esmolas:

Então não me fiz rogado.

Uns quatrocentos mil réis

Com os pobres distribuí

Não serve isto para minh’alma

Porque esta eu já perdi,

Mas serve pros miseráveis

Que estavam nus e eu vesti. (BATISTA, p. 26)

Na estrofe acima, a impressão é a de que há um desapego ao dinheiro da parte de

Silvino. É como se a fortuna fosse passageira e o dinheiro não fosse a primeira e principal

meta da vida. A alma é, no dizer do cangaceiro, a riqueza maior. E como afirmado no

discurso narrativo acima, a pecúnia não vale se a alma se perde: Não serve isto para

minh’alma/ Porque esta eu já perdi. Doar aos pobres aquilo que se pilha dos ricos é se

afirmar como um Robin Hood. Esse caráter despojado que a oralidade tributa à vida desse

cangaceiro leva Leonardo Mota a afirmar que Antônio Silvino por longos anos representou o

bom ladrão, o bandido que, a seu modo, procurava fazer justiça social, tirando dos ricos para

dar aos pobres (MOTA, 1967, p. 10).

Essa bondade traz à mentalidade popular a ideia de que o cangaceiro está ao lado dos

desfavorecidos, de que os defende e protege-os. O poeta ao perceber essa nuança dá natural

destaque ao cangaceiro como herói. O poeta representa todo um canto coletivo, e,

conseguintemente, a vontade do povo de ter o seu herói e como tal, que enfrente toda uma

ordem/desordem empreendida pelos poderosos e opressores. E a ideia do povo não é

contrariada: o cangaceiro arca com o enfrentamento do poder pela força de armas, mas com a

coragem pessoal num frente a frente com a violência em luta de morte. Nesse caso, o

cangaceiro será sempre um herói. Nesse sentido, Gustavo Barroso afirma que “o tipo mais

interessante de cangaceiro é o possuído da quixotesca fantasia de proteger os fracos, de fazer

triunfar a Justiça, de endireitar os erros, de sanar faltas, valente, esforçado em lutas, feroz e

impiedoso para o inimigo [...]” (BARROSO, 1962, p. 98-99).

É possível que Antônio Silvino tivesse se espelhado em um dos cangaceiros mais

justos que o antecedera: Jesuíno Alves de Melo Calado, o Jesuíno Brilhante (1844 -1879),

sobre quem Câmara Cascudo (1982) transcreve os sentimentos do povo, por ocasião de sua

morte e da falta que fizera: “certas injustiças acontecem, porque Jesuíno Brilhante não existe

mais” (p. 111). E conclui o próprio autor: “Era [Jesuíno] o paladino, o cavaleiro andante, sem

medo e sem mácula a serviço do direito comum e natural” (p.111).

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É imprescindível que se aponte o quanto a temática da luta contra as injustiças, a

desordem subvencionada pelo estado, a reversão do estabelecido por parte dos cangaceiros se

estendem por outras linguagens artísticas. O narrador de Cangaceiros (1976), de José Lins do

Rego, romance publicado em 1953, traz uma reflexão quanto aos sentimentos do povo no

tocante aos cangaceiros e à justiça por eles praticada em meio à miséria da população

sertaneja: “Este nosso sertão é assim mesmo, senhora Josefina, há de se sofrer do Governo, de

rezar com beato, ou lavar os peitos, obter justiça com os cangaceiros” (p. 39).

Na literatura de cordel, o olhar do povo para Antônio Silvino reflete-o como aquele

que não pensava apenas nos desafortunados, mas na proteção às famílias, na honra de suas

filhas e na sua própria remissão:

[...]

Tomei dinheiro dos ricos

E aos pobres entreguei.

Protegi sempre as famílias

Moças pobres amparei

O bem que fiz apagou

Os crimes que pratiquei. (BATISTA, p. 16)

Note-se que a poética popular em torno dos cangaceiros conota quase sempre

recriações do universo oral, pois a falta de documentação leva à inventividade como se os

poetas, ao garimparem os anseios do povo por um herói, criassem e desrealizassem,

concomitantemente, os fatos para dar ao texto matiz épico. A inserção do cangaceiro na

poesia popular é tão inventiva, que sua filtragem no crivo dessa poesia termina sendo

positiva. Antônio Silvino sintetiza as aspirações de justiça de seu povo:

[...]

Silvino fez muitas coisas

Ajudando a classe pobre

Ele tomava do rico

Que era metido a nobre

E dava uma coisinha

Ao pobre que não tinha

Uma moeda de cobre. (COSTA LEITE, p. 2)

Se a concepção do herói é uma justificativa para afirmação de um povo, haverá

sempre a quem aliar grandes defeitos e grandes virtudes para que esse herói seja constituído e

represente os defeitos e as virtudes desse povo. O herói, sem dúvida, constitui a forja e a

invenção. É a idealização a que todo o povo recorre como referencial de mito.

Segundo todos os dados históricos, como já mencionado, Antônio Silvino entra para o

mundo do crime com o propósito, a princípio, de vingar a morte do pai. Fato idêntico ocorre a

Virgulino Ferreira. Na poesia popular, os versos de cordel não deixam passar incólumes os

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79

dois eventos que envolveram, em épocas diferentes, as famílias Silvino e Ferreira,

respectivamente. A morte do pai de Antônio Silvino é lembrada pelo poeta Francisco das

Chagas Batista:

[...]

Meu pai fez diversas mortes

Porém não era bandido;

Matava em defesa própria

Quando se vi agredido,

Pois nunca guardou desfeita,

Morreu por ser atrevido.

[...]

No ano noventa e seis

Meu pai foi assassinado

Pela família Ramos

Já sendo nosso intrigado,

Um deles, o José Ramos,

Que era subdelegado.

Para punir esse crime

Ninguém se apresentou;

A Justiça do lugar

Também não se interessou;

Aos bandidos a polícia

Pareceu que auxiliou.

E eu, que vi a Justiça

Mostrar-se de fora à parte,

Murmurei com meus botões:

- Também hei de arrumar-te!

Não quero código melhor

Do que seja o bacamarte. (BATISTA, p. 4)

Sobre a morte de José Ferreira, pai de Virgulino Ferreira, se lê:

[...]

José ouviu Virgulino

Lhe dizer algo ofegante

Que em seu encalço andava

A furiosa volante

De Alagoas, disposta

A ataque fulminante.

José aparentemente

Ignorou o aviso

Mas saiu em passos lentos

Acabrunhado, indeciso

Lamentando em seus rapazes

Tanta falta de juízo.

Ensurdecedor tropel

Por tiroteio mesclado

Ouviu-se em torno da casa

Com o triste resultado:

José numa grande poça

De sangue quente deitado.

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80

Naquele sombrio dia

De tanta desolação,

De tanta raiva e ódio

Nascia para o sertão

O nosso famigerado,

Destemido Lampião. (SILVA, p. 14-15).

A consequência desses assassinatos era a busca pela vingança. Segundo a idealização

popular, os filhos buscavam a justiça que não havia para os mais pobres. Nas mortes em que

se envolviam grupos familiares, os clãs mais abastados se beneficiavam da justiça, por haver,

mutuamente, troca de favor tanto político quanto social. Já a solução encontrada pelos mais

pobres era a da justiça levada a efeito pelas próprias mãos, o que levava o cidadão à

ilegalidade, passo curto para a entrada no banditismo não só como meio de efetivar essa

justiça, mas como espaço de apoio e proteção. Fora da lei e na marginalidade, ao entrar para o

cangaço, o jovem se via apto e livre para atuar e sobreviver nas caatingas. Sem o trabalho, e

em constante perseguição por forças policiais, a consequência era o roubo, o saque, o

sequestro, as invasões a fazendas, ao comércio, a vilas e pequenas cidades como forma de se

obterem recursos de sustentação à vida que se escolheu.

É certo que os poetas populares e até o povo nos momentos primeiros de uma poética

do cangaço distinguiam os modos de atuação de um Antônio Silvino e de um Virgulino

Ferreira: ao primeiro, o imaginário dá foros de cavalheirismo; ao segundo, de truculência e

irracionalidade. A face não recomendada de Virgulino Ferreira, em vida, faz com que Antônio

Silvino, também em vida, porém encarcerado, tivesse no povo e, consequentemente, na

poética popular, olhar mais digno.

Evidentemente, só a distância no tempo, já referida neste trabalho, depura Lampião

para o imaginário popular e de criação poética. Note-se que Antônio Silvino fora elevado à

categoria de herói em seu próprio tempo, e Lampião, como típico do canto épico, com o

distender do tempo.

Num Nordeste de antigos costumes coloniais, em que o pré-requisito da palavra

empenhada era comum até em meio ao banditismo, o caráter de Antônio Silvino era tido

como algo positivo, ao passo que o de Virgulino Ferreira, talvez por mais jovem e

inexperiente, não fosse digno de confiança, devido às suas oscilações no trato com a palavra,

o que só o tempo foi o responsável por mudar.

Na narrativa a seguir, detalhes da vida de Antônio Silvino foram concebidos de

acordo com a proposição do personagem épico. Ao narrar a prisão do bandoleiro, o poeta

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81

levou o leitor a acreditar no destino pertinente aos heróis, uma vez que o desfecho de sua vida

fora pré-estabelecido. O feito da prisão do cangaceiro, que se entregou às Volantes, não

representou sinal algum de fraqueza ou covardia, pelo contrário, o fez ingressar na categoria

dos heróis, visto que, baleado em luta, e o mais grave, ferido à traição, além de perder

companheiros e ter tido surrupiados os bens de que dispunha, não se deixou prender. Teve a

hombridade de se entregar:

[...]

No pai de um meu companheiro

Uma surra eu tinha dado;

(já fazia quatro anos)

E o cabra havia jurado

De me matar à traição

Em um momento aprazado.

Esse cabra traiçoeiro

Perto de mim atirava

Por detrás de uma pedreira –

Vendo que eu não o olhava,

Atirou-me por detrás

Quando eu menos esperava!

E uma bala de Mauser

Pelas costas me varou,

E saindo pelo peito,

Um rombo enorme deixou,

Caí no chão quase morto

E o cabra ali me roubou.

Levou-me todo o dinheiro

E um anel de brilhante,

Levou-me um grande punhal

E u rifle muito importante,

Não pude me defender

Porque estava agonizante.

Quando despertei da síncope,

Foi que me senti ferido;

Ali procurei meu grupo

Que de mim tinha fugido,

Tudo quanto eu possuía

Tinha desaparecido.

Com dificuldade ergui-me,

Depois de ter-me sentado,

Olhei em redor e vi

Um homem no chão sentado,

Era o amigo Joaquim Moura

Que se achava baleado.

Chamei-o ele se sentou

E me disse: - estou perdido,

Mas não me entrego à polícia.

Portanto eu me suicido...

Deu um tiro na cabeça,

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82

Morreu sem dar um gemido.

Quis eu também suicidar-me

Mas as armas não achei;

O veneno que eu trazia

Nos bolsos não encontrei,

Levantei-me e a uma casa

Quase de rasto cheguei.

Ao dono dessa vivenda

Pedi que fosse chamar

O comandante da força

Para a ele me entregar,

Pois eu estava quase morto

E queria me confessar. (BATISTA, p. 29).

Perceba-se que a narrativa aborda a exata questão de o mundo do cangaço se dar no

eixo mesmo da figura paterna. O inusitado ainda é que a vingança contra Silvino ocorre no

próprio bando: o cangaceiro ofendido lava a honra do pai, surrado em algum momento pelo

próprio Antônio Silvino, que entrara num bando para vingar a morte do pai, com o passar do

tempo, e ironicamente, quase fora morto por alguém que, igualmente, tivera o pai injustiçado,

senão pela morte, propriamente, mas pela morte moral de uma surra.

Quanto à fraqueza de Antônio Silvino ao pensar em suicídio, é próprio do herói, em

algum momento de sua trajetória, a recusa no enfrentamento do traçado de seu destino,

embora esse mesmo destino se encarregue de elevá-lo em seguida, ao alento procedente de

força superior.

Pierre Vernant (1990) nos apresenta lição ideal da natureza do herói e de seus possíveis

fracassos, diante das adversidades a que está sujeito:

Indivíduo à parte, excepcional, mais do que humano, o herói, deve, no entanto,

assumir a condição humana; ele conhece as suas vicissitudes, provações, limitações;

deve enfrentar os sofrimentos e a morte. O que o define, no interior mesmo do seu

destino de homem, são os atos [...] que, abolindo os seus próprios limites, ignorando

todos os interditos comuns, transcendem a condição humana e, como um rio que

sobe até sua fonte, vem ajuntar-se à força divina. (VERNANT, 1990, p. 341-

342)

Percebe-se nos versos anteriores que o entregar-se à força divina de que fala Vernant,

de algum modo, se configura no “confessar-se” a que deseja o cangaceiro. Note-se que à

polícia ele trata apenas de se entregar. O confessar-se é a tentativa de buscar a força e o

perdão divinos, embora se encontre sem forças físicas, esgotado, mas não arrependido de sua

vida pregressa, do que decorre o matutar a fraca ideia de suicídio, conforme apresentado

páginas à frente na mesma narrativa:

[...]

Já me confessei a um frade

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Mas não estou regenerado

Acho-me muito abatido

E estou desequilibrado;

Agora com o suicídio

Eu vivo impressionado. (BATISTA, 30).

Novamente, o poeta dá voz ao herói, que se defende de possíveis acusações quanto a

ter fraquejado, devido a ter se entreguado às forças policiais:

[...]

A bala que me feriu

Pelas costas penetrou,

Saiu no peito direito

E o pulmão me afetou

Mas só prostrou-me porque

A cardite me atacou..

[...]

Somente à fatalidade

Eu devo a minha prisão,

Pois todos sabem que eu era

Um indomável leão!

E nem eu sei por que foi

Que me entreguei à prisão.

Não me prenderam, entreguei-me,

Porque fui impulsionado

Pelo destino talvez

Vi-me ferido e roubado,

Vim morar nesta prisão,

Cumprir a lei do meu fado. (BATISTA, p. 30).

É perceptível como, na voz que o poeta empresta ao cangaceiro, este se coloca como a

se justificar ao povo, que não pode nem deve tê-lo nem vê-lo como um fracassado. É sabido

que nos textos épicos o herói é levado à quase fatalidade, mas o destino termina por torná-lo

vencedor.

No que concerne às narrativas de cordel sobre Lampião, poetas populares do mesmo

período em que o cangaceiro atuou, ou pouco tempo após sua morte, se expressam em seus

folhetos com visão contrária ao bandoleiro, como se seguissem uma escola de repúdio criada

pelos cordelistas do início do século, a exemplo de Francisco das Chagas Batista, João

Martins de Ataíde e outros. É de Ataíde o texto de 1946, portanto, oito anos após as mortes de

Angicos, em que o poeta se expressava da seguinte maneira sobre Virgulino Ferreira:

Assim naquela atitude

Rosto firme, olhar insano

Quem o visse não dizia

Ser um ente desumano

Prestava atenção a tudo

Com um caráter sisudo

Parecia um soberano. (ATAÍDE, p. 1)

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Observe-se que houve cordéis contrários ao capitão Virgulino Ferreira da Silva

durante sua trajetória, e alguns com esse mesmo caráter, imediatamente após sua morte. No

entanto, Isaura Queiroz (1982, p. 66) aponta para o reconhecimento do herói-bandido, e nesse

bojo inclua-se o próprio Lampião, a partir da década de 1950, com Assis Chateaubriand,

fundador dos Diários Associados e da televisão brasileira, que criou e instituiu a Ordem do

Cangaço. Embora pareça irônico, a comenda era outorgada a brasileiros que dessem provas

de amor à pátria, ou a estrangeiros, porventura afeitos ao Brasil, e ainda a brasilianistas. É

esse nacionalismo urbano, no dizer de Queiroz (1982, p. 68), que faz com que um

aproveitamento do cangaço seja elemento positivo no que respeita à reflexão do nacional em

voga naquela década.

Os poetas populares, ao escreverem sobre o cangaço terminavam por apontar marcas

que por muito tempo foi realidade na história do espaço geográfico nordestino: a violência, a

morte banal, o assalto, o sequestro, não passaram incólumes aos cordéis. No entanto, esses

textos ultrapassaram as fronteiras do cangaço e fizeram a população, principalmente a

sertaneja, sofrer o carimbo genérico de ser tida como gente violenta e má, e em alguns casos,

conivente com os cangaceiros, como alegavam as forças nacionais e estaduais de segurança,

representadas na geografia do cangaço, pelas volantes, tão impetuosas quanto os cangaceiros.

O poeta popular, que sempre se autodenominou representante de seu povo, em algum

momento, no tempo do cangaço, segura e sabiamente, se tolheu de empreender abordagem

que soasse como apologia aos bandoleiros, mas não se permitiu também criticá-los.

Tomando-se por base o pós-cangaço, cordéis anticangaço, e principalmente, anti ou até pró-

Lampião passaram a ser publicados desde depois da chacina de Angicos, em Sergipe, até os

anos 1950 e de lá até os dias atuais.

A partir da década de 1950, surge uma nova visão política sob a bandeira do

desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek. A crença numa sociedade moderna se

construiria por um olhar para o crescimento industrial, mas também cultural e político

centrado em valorizar elementos identificadores da nacionalidade brasileira, mediante

manifestações do folclore e da cultura popular, agregados pelo pensamento universitário e

urbano de esquerda que manifestava ideais nacionalistas em contraposição às influências

estrangeiras, que já se configuravam e tiveram início no pós-guerra. Nesse caso, a

possibilidade se construir um mito da nacionalidade faz com que aquilo que se restringia a

possível mito de origem rural, tome-se urbano e abrangente. Cria-se o mito do cangaço como

uma forma não apenas de chocar a sociedade conservadora, mas de contestar essa mesma

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sociedade em todos os aspectos: políticos, propriamente, econômico e cultural, e que se

voltava mais para a cultura estrangeira, do que para a nacional, oscilação que remete a certa

falta de identidade. Nesse período cultural e de tantas experimentações artísticas, a temática

do cangaço se dá em todas as linguagens de orientação urbana:

É também nessa década de 50 que se dissemina nas artes a utilização do tema do

cangaço – na pintura, na gravura, na literatura, no cinema, no teatro – numa

perspectiva em que ora se mesclam, ora se separam os temas dominantes do herói

humano e justiceiro e do nacionalismo. (QUEIROZ, 1966, p. 66)

Ao se tomar a ideia de assimilação do cangaço como temário acadêmico e artístico,

percebe-se que a postura intelectual e os estudos e análises desse fenômeno passam a encarnar

alguma dualidade. Tanto isso se dá que a designação para esse heroísmo ocorre segundo um

vocábulo que se forma a partir de um duplo que se opõe, embora para compor um único

campo semântico. O cangaceiro é um herói-bandido ou bandido-herói:

Dir-se-ia que, sob a mitologia dos bandidos-heróis, operava-se uma tomada de

consciência dos problemas mais cruciais da atualidade brasileira, efetuada pelas

elites intelectuais e artísticas e se inscrevendo nas diversas obras. Data também

desse período o interesse pelo estudo do cangaço por historiadores, antropólogos,

sociólogos, cujas interpretações também se orientam em uma ou em ambas as

direções. (QUEIROZ, p. 66)

Note-se que no Brasil os cangaceiros foram tidos como heróis, sem a negação da

marca do bandoleiro, pois a intenção dos intelectuais, nomeadamente, aqueles contrários aos

poderosos, foi a da valorização de seu aspecto heroico, uma vez que o que se buscava era uma

simbologia no mito da resistência a questões políticas que se estabeleceram e se instalaram

antes, durante e após a Segunda Guerra Mundial, período em que ditaduras se instituíram em

vários países. Além do mais, a disseminação do imperialismo norte-americano no pós-guerra

não deixou de ser uma ditadura econômica e cultural sobre vários povos, inclusive o

brasileiro, o que pesou também na escolha de um mito que fosse popular, nacional e,

consequentemente, autêntico.

Há, no entanto, entre os estudiosos do fenômeno do cangaço opiniões díspares: os que

viam nisso consequência de ordem política e social, com a manutenção da pobreza, da má

distribuição de renda e do não incentivo à educação, a exemplo de Rodrigues Carvalho para

quem “[...] [e]nquanto permanecer o sertanejo com a cabeça e o estômago vazios, queremos

dizer, ignorante e faminto, o banditismo florescerá” (RODRIGUES CARVALHO, 1961, p.

60) ou Rui Facó: “O cangaceiro e o fanático eram os pobres do campo que saíam de uma

apatia generalizada para as lutas que começavam a adquirir caráter social”. (FACÓ, 1972, p.

37). Para Câmara Cascudo: “Os cangaceiros são as figuras anormais que reúnem predicados

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simpáticos ao sertão”. (CASCUDO, 1984, p. 164). E ainda: “Os cangaceiros são a horda

brava e rude, cavalaria frenética e primitiva até no processo de matar”. (CASCUDO, 1984, p.

165). Os exemplos acima são importantes para que se percebam os que enxergam o cangaço

como uma aventura pela aventura, os que veem no fenômeno o gosto pela pilhagem e pelo

roubo ou latrocínio como modos de enriquecimento ilícito e aqueles que veem no fato

questões mais profundas como aquelas de raízes políticas e sociais.

Notem-se, ainda, as contradições no tocante à questão específica de Virgulino

Ferreira: o mesmo Rodrigues de Carvalho que aponta o descaso político para com o sertanejo

“de cabeça e estômago vazios, ignorante e faminto” como sendo o motivo de florescimento

do banditismo, tem Lampião na conta de um dos piores bandidos do cangaço, sem querer ver

que o próprio Virgulino Ferreira é uma vítima do mesmo sistema a que Carvalho se refere:

Seguindo as ordens do novo mentor, [Lampião aqui assume a liderança do grupo de

Sinhô Pereira, que abandona a chefia e o cangaço] indivíduo aberrante, gênio do

mal que parece ter vindo ao mundo para flagelo do gênero humano, tiveram a mais

ampla liberdade de ação. Daí por diante coisas mais sérias iriam acontecer no

sertão. (RODRIGUES DE CARVALHO, 1961, p. 152).

Rodrigues de Carvalho (1961) com ironia amadora, pessoal e sem a racionalidade do

pesquisador afirma sobre Lampião e seu bando: “Se Cérbero tivesse dado um cochilo,

deixando os três portões do inferno à mercê dos pupilos de Satanás não teria sido pior.

Desenvolveu-se rapidamente a mais desenfreada indústria de latrocínio, com assassinatos e

atrocidades inomináveis” (p. 152). Quando trata do cangaço como fenômeno de origem social

e política, o mesmo estudioso se contradiz ao elevar outros chefes cangaceiros, como se,

guardadas as diferenças reservadas à personalidade de cada chefe, de cada cangaceiro, não

pudessem esses ser equiparados ao rei do cangaço em várias ações. É necessário notar o que

diz Carvalho a respeito de Antônio Silvino num quase misto de admiração em comparação

com o que pensa de Virgulino Ferreira:

A conduta de Antônio Silvino posta em cotejo com a de Lampião, oferece aquela

diferença existente entre a água e a creolina. O primeiro era um homem de coração

bem formado por congenialidade, a quem os azares da sorte jogaram na lama do

crime, sem, contudo reduzi-lo à degradação do delinquente profissional

propriamente dito. (RODRIGUES DE CARVALHO, 1961, p. 376)

Faz ainda o referido autor duas parcas linhas de elogio à vida pregressa de Lampião,

para atacar no mesmo texto:

[Lampião] também bom rapaz, honesto e trabalhador com toda a sua família, porém

até o dia em que rolava na sarjeta da criminalidade. Daí por diante foi como quem

despe a roupa de empréstimo, para vestir a que lhe fora talhada sob medida. Desde

que enveredou pela tortuosa senda do banditismo, Virgulino alijava por completo

todas as boas qualidades que aparentemente possuía, para surgir vesgo e sinistro, o

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insensível, lúgubre, desalmado e hediondo sicário profissional que todos

conhecemos. Este sim matava por diversão, desonrava para humilhar, roubava por

cleptomania e jamais mostrou a menor parcela de arrependimento pelas desgraças

que protagonizava. (RODRIGUES DE CARVALHO, 1961, p. 376)

Desse modo, muitos teóricos e poetas passam a impressão de que, no maniqueísmo

reinante no microcosmo do cangaço, há os que optaram por fazer prevalecer o bem em

detrimento do mal e aqueles que escolheram somente o mal em prejuízo do bem, como se

houvesse maior ou menor criminalidade na escalada de violência do banditismo

cangaceiresco. O que há é uma justificativa que depende do grau de simpatia de quem se

dedica à temática, para abonar alguns do crivo do mal e açoitar outros como o verdadeiro mal,

sem a percepção de que, na verdade, o contexto em que vive Antônio Silvino e outros é o

mesmo de Lampião: o mal que todos praticaram nunca sobrepujará o bem. Criadores ou

inventores do universo dos cangaceiros primam por gerir um mito que seja conveniente com

seus pensamentos. Na verdade, o mal que todos praticaram e o bem que porventura vieram a

promover, sofrerão ambiguidades de pontos de vista, pois tudo dependerá das multifacetas

desses olhares.

O salto que sofreu o tema do cangaço, no entanto, se deu com estudiosos e

pesquisadores fizeram uma representação dos cangaceiros como mitos da nacionalidade,

segundo a onda de nacionalismo decorrente da construção de Brasília, da proposta de

Juscelino dos “cinquenta anos em cinco”, da instalação da indústria de automobilística, da

criação da SUDENE, da Petrobras, esta, ainda no segundo governo Vargas etc., tudo a

configurar a ideia de crescimento econômico e a elevar a esperança e autoestima do povo

brasileiro.

Ressalte-se que no nacionalismo de 1930, sobretudo no político, Lampião e seu grupo,

contrariamente, denotavam uma mancha e uma vergonha para a nação e representavam, como

os coronéis, atraso. Sob Vargas, os cangaceiros eram tidos como bandoleiros na acepção

completa da palavra, e nesse caso, tinham de ser eliminados. Destaque-se que a divulgação de

fotos e de curtas filmagem feitos pelo libanês Benjamin Abraão foi aceso o pavio para a

decretação do fim do cangaço pelo próprio governo Vargas.

Ao se voltar para os anos 1950, perceber-se-á que muitos autores, sob tantas

linguagens, trouxeram à tona o tema do cangaço, a exemplo de Lima Barreto, que leva ao

cinema o já tornado clássico O cangaceiro; José Lins do Rego lança Cangaceiros, afora

outros de seus livros em que essa temática aparece; João Guimarães Rosa torna público

Grande sertão: veredas; Ariano Suassuna, O auto da compadecida. Todos trazem idêntica

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proposta temática com vistas não só para a arte, mas à discussão e conscientização de suas

plateias.

Arraigados ao solo e por dele não saírem, embora levassem a vida como bandido e

salteadores perversos, os cangaceiros terminaram reconhecidos por seu apego a terra, à

cultura telúrica, aos costumes e usos de seu povo, o que resultou em motivo de observação de

estudiosos e literatos que viram no fenômeno do cangaço todo um quê de representação de

um nacionalismo real que aponta para o homem plantado em sua pátria. Remanescente de

uma “civilização do couro”, Lampião, que fora vaqueiro e almocreve, desde adolescente

confeccionava apetrechos de couro como chapéus, embornais, alpercata, perneiras, que usava

no bando, além de enfeitá-los com bordados de vistosa cor por ele, igualmente e com

habilidade, feitos. Os versos abaixo transcritos mostram como comportava Lampião antes de

ingressar no cangaço:

[...]

Foi amansar potros bravos ,

Correr atrás de zebu,

Domar outros animais,

Num gibão de couro cru,

Tornou-se o maior vaqueiro

Das terras do Pajeú.

Aprendeu a fazer selas,

Gibões, arreios, perneiras,

Chapéus de couro e alforges,

Embornais, atacadeiras,

Andava pelas cidades

Vendendo tudo nas feiras. (D’ALMEIDA FILHO, p. 4).

O poeta Antônio Américo narra, igualmente, as atividades do futuro cangaceiro:

Em uma escola primária

Ficou no ano terceiro.

Com doze anos de idade

Pra trabalhar de vaqueiro,

No sertão pernambucano

Foi seu trabalho primeiro.

Começou como vaqueiro

Aprendeu a fazer sela,

Chapéu de couro, arreios

Feitos de sola amarela,

Courona, gibão, perneira,

Pra vender em Vila bela.

E assim de feira em feira

O que fazia vendia,

Nas zonas do Pajeú,

Vendendo mercadoria,

Depois com tropas de burros

trabalhou na freguesia. (MEDEIROS, p. 3).

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O excerto seguinte dá a dimensão da busca dos intelectuais pela afirmação do cangaço

como representatividade heroica nacional. Percebe-se que há duas questões importantes para

o entendimento do cangaço pelo olhar intelectual: o posicionamento político em relação aos

que detêm o poder e uma ideia patente de nacionalismo não menos político, embora com a

visão empolgada do país que poderia dar certo:

A compreensão do cangaço se alargava para além dos limites de sua existência

efetiva, invadindo as paragens do imaginário e se enriquecendo com significados

múltiplos, que não pertenciam nem à sua origem, nem a toda sua vigência real.

Toda esta efabulação em torno do cangaço fora norteada, principalmente, por dois

parâmetros: a oposição de certos intelectuais contra as camadas dominantes e sua

representação, o governo; um sentimento nacionalista generalizado, que as

condições econômicas reforçavam. (QUEIROZ, 1982, pp. 66-67)

Há de se perceber que a resistência dos cangaceiros se deu em todos os aspectos: do

enfrentamento do sistema político, à obstinação em ombrear valentemente com a classe

dominante que os perseguia, até a busca pela natureza nordestina que, paradoxalmente, os

abrigava e lhes era temerosa, fatos que levaram os intelectuais a afirmá-los como heróis

nacionais.

Desde que o império do cangaço se acentuou no Nordeste brasileiro, em torno dele se

criou e intensificou uma canção de gesta local. Houve aquelas que lhes eram contemporâneas,

e as que vieram depois e se prolongaram até os dias atuais, num moto contínuo que prima por

urdir histórias de bravura: homens que não se entregavam e que lutavam armados ou não, até

o limite das forças e às últimas consequências.

Há exemplos típicos do cangaço, como os de José Leite de Santana, o Jararaca, que,

corajosamente e desamarrado, morreu nas mãos da polícia e não se dobrou: “Cavou sua

própria sepultura, distante das catacumbas dos cristãos. Os soldados deram-lhes dois tiros,

abreviando-lhe a morte” (OLIVEIRA, 1970, p. 169). Corisco, da mesma forma, não capitulou

diante das forças policiais: “[...] Zé Rufino avistou Corisco e disse: ‘Corisco, se entregue.

Garanto sua vida’. O chefe respondeu a bala. [...] Corisco, escolhendo um ‘santo lenho’ para

se apoiar, foi baleado pelas costas”. (OLIVEIRA, 1970, p. 359). O poeta Manuel D’Almeida

Filho narra o episódio vivido por Corisco em cordel:

[...]

O tenente Zé Rufino

Ficou mais enfurecido

Ao constatar que Corisco

À noite havia fugido

Em procura de outros portos,

Deixando os capangas mortos

E conduzindo o ferido.

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Sim, pois um rastro de sangue

O tenente descobriu

Como uma prova cabal

Que um bandido se feriu;

Seguiu a trilha bem cedo

Até perto do lajedo

Por onde o bandido sumiu.

Rastejando pelas pedras

Sem olhar marca nem lista,

Só perto do pôr do sol

Foi encontrada uma pista;

No vermelhão vespertino

A volante de Rufino

Perdia o bando de vista.

Porém o tenente agora,

Pelos soldados perdidos,

Tornou a perseguição

Incessante aos foragidos,

Sem ter descanso nem trégua,

Metro a metro, légua a légua,

Até pegar os bandidos.

Os soldados da volante

Três dias não descansaram

Até que no quarto dia

Os bandidos alcançaram;

Já sem panos para as mangas

Pelo ledo dos capangas

Só dois casais escaparam.

Foram Dadá e Corisco,

Rio Branco e sua amante

Que fugiram no escuro

Sem descansar um instante,

Sempre correndo abaixados,

Assim não foram notados

Pelos olhos da volante.

Corisco ia baleado,

Dadá fez-lhe um curativo

No braço ferido que

Tinha aspecto negativo,

Pois estava roxeado

Parecendo gangrenado,

Marcando um fim decisivo.

Queimando em febre, Corisco

Demorava na viagem,

Enquanto Dadá nas costas

Levava toda a bagagem;

O outro casal na hora

Os deixou em foi embora

Sem olhar camaradagem. (D’ALMEIDA FILHO, pp. 28-29)

Prossegue o poeta com a narração do momento em que Corisco foi ferido, em

companhia apenas de Dadá, sua esposa – um casal que com eles estava decidiu deixá-los e

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91

seguir caminho em fuga –. Combalido e fragilizado, o casal lança fora as armas pesadas para

adquirir mais mobilidade na caminhada tortuosa que ainda pretendia fazer. A fatalidade estava

em seu encalço:

Era chegado o momento

Do “salve-se quem puder”,

Pois quem quer mal para os outros

Recebe o mal que não quer;

Em crimes de grande monta

Era o ajuste de conta

De Corisco e da mulher.

Jogaram fora os fuzis,

Arma à vista não levavam

Para não causar suspeita

Nos lugares que passavam;

Só armas curtas num saco

Enrolados num casaco

Secretamente guardavam.

O casal numa fazenda

Pela precisão que tinha

Pediu arrancho e lhe deram

Numa casa de farinha,

Enquanto a volante dura

“lambendo uma rapadura”

Já perto da casa vinha.

Dada quando viu a tropa

Gritou: - Corisco, cuidado!

Porém o grito foi tarde:

Estava tudo cercado -

Corisco, como uma lebre,

O corpo queimando em febre,

Gemendo, desacordado.

Rapidamente a volante

Num ataque de surpresa

Metralhou o cangaceiro,

Que, como uma vela acesa,

Apagou-se numa rede

Em um canto da parede,

Sem um gesto de defesa.

Dadá ainda correu,

Porém um soldado viu,

Passou-lhe fogo num pé

Que ela, embolando caiu:

Depressa foi agarrada,

Com uma corda amarrada,

Desmaiou, não resistiu. (D’ALMEIDA FILHO, p. 29)

Outros tantos cangaceiros, destacados ou não, morreram, mas não se deram por

vencidos. Não há dúvida de que leitores, e principalmente ouvintes, dessas histórias passam a

admirar esses homens que não se entregaram nem omitiram seus ideais. Desse modo, pode-se

Page 90: dedos cravejados de brilhantes, chapéus de estrelas carregados

92

depreender que narrativas de lutas e valentia, de sangue e enfrentamentos corajosos povoaram

não somente o imaginário, mas, em muitos casos, a realidade social nordestina veiculada por

jornais, revistas e livros, meios mais comuns na época em que se vive o cangaço, além da

oralidade. De todas essas informações os poetas populares souberam aproveitar para terem

como subsidiar seus textos:

Entre os fatos mais falados

Pelas plagas do sertão,

Temos as grandes façanhas

Dos cabras de Lampião

Mostrando as quadras da vida

Do famoso capitão.

Em diversas reportagens

De revistas e jornais,

Com testemunhas idôneas,

Contando fatos reais,

Coligimos nesse livro

Lances sensacionais.

[...] São casos que ainda hoje

Não temos quem os conteste

Porque ficaram gravados

Nas entranhas do Nordeste

Com sangue, com ferro e fogo,

Como a maldição da peste.

Muito embora tenha havido

O sensacionalismo

Sobre os dramas sertanejos

Na era do na banditismo,

Nós apenas escrevemos

O lado do realismo. (D’ALMEIDA FILHO, p. 3)

Como já mencionado, sabe-se da existência de bandos no Nordeste desde o século

XVII, mas é somente no final do XIX que a região se vê tomada por verdadeiros grupos

armados como o bando de Antônio Silvino (do final do século XIX até 1914) e que pela

valentia e coragem foi elevado à condição de herói de sua época de atuação.

O poeta perpetua Antônio Silvino em escritos que tornam os leitores informados de

sua vida e simpatizantes de suas aventuras:

[...]

Leitores, eu vou contar-vos

A minha biografia;

Contar-vos que eu outrora

Não fui quem sou hoje em dia.

Fui homem muito pacato,

E sou uma fera bravia!...

Da minha vida de crimes

Nada vos ocultarei:

Tudo quanto tenho feito,

Page 91: dedos cravejados de brilhantes, chapéus de estrelas carregados

93

Vos juro que contarei;

Quero que o mundo saiba

Quem fui, quem sou, quem serei.

No ano mil oitocentos

E setenta e cinco nasci

No distrito de Afogados

de Ingazeira – onde cresci

Junto aos meus progenitores

Com quem criei-me e vivi.

[...]

Até os vinte e um anos

Vivi calmo e sossegado,

Desfrutando a mocidade

Como um sertanejo honrado

Porém nesta idade o crime

Quis me fazer desgraçado.

No ano mil e oitocentos

E noventa e seis (lembrado

Inda estou), em janeiro

Meu pai foi assassinado,

Por José Ramos da Silva

E um subdelegado.

O José Ramos foi preso

E pra casa de Detenção

Da capital do Estado

Desceu escoltado, então

Ficou o subdelegado

Sem a menor punição.

[...]

Vendo eu que a justiça

Procedia dessa sorte,

Resolvi então ir mesmo

Vingar de meu pai a morte;

Fez-se toda sociedade

Minha inimiga forte!...

Então me vi obrigado

A cingir a cartucheira...

E no mesmo ano, em junho,

Eu fiz a morte primeira;

Matando meu inimigo

- Manuel Ramos Cabaceira.

Foi somente pra vingar-me

Que fiz a primeira morte!

A polícia perseguiu-me...

Eu abracei a má sorte!...

Hoje em dia me conhecem

Pelo bravo herói do Norte! (BATISTA, pp. 1, 2-3)

Lampião, já no século XX, chega a ter mais de cem homens, divididos em subgrupos

liderados por lugares-tenentes de sua confiança.

Page 92: dedos cravejados de brilhantes, chapéus de estrelas carregados

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[...]

Com as primeiras façanhas

Surgiram Lucas da Feira,

O Jesuíno Brilhante

E o malvado Cabeleira

O bravo Antônio Silvino

Com a sua cabroeira.

Porém o grupo maior

Que apareceu no sertão,

Com as maiores façanhas,

Dominando a região,

Foi sem dúvida comandado

Pelo estoico Lampião. (D’ALMEIDA FILHO, p.3)

Quanto a dividir o grupo em bandos, com seus respectivos comandantes, narra o

poeta: [...]

Daí até trinta e quatro,

Lampião viu-se apertado,

Corria de dia à noite,

Dentro do mato fechado,

Pra todo canto que ia

Só encontrava soldado.

Da Bahia a Alagoas,

Por Sergipe atravessando,

Para ver se descansava,

Um dia pegou o bando

E dividiu em três grupos

Cada um com um comando.

O comando de um grupo

Lampião deu a Corisco,

Foi dado outro a Moderno

Que topava qualquer risco,

Ele chefiava o último

Nas margens do S. Francisco.

Os grupos foram espalhados

Pelos lugares distantes

Que com os vários assaltos

Enlouqueciam as volantes

Ninguém não contava mais

Os Lampiões assaltantes.

Porque em um mesmo dia

Lugares eram atacados,

Com 30 ou 40 léguas,

De outros distanciados,

Em nome de Lampião

Eram os fatos consumados.

As tropas desordenadas

Quase nada conseguiam,

Os grupos tinham uns pontos

Aonde se reuniam,

Quando entre si os produtos

Dos assaltos repartiam. (D’ALMEIDA FILHO, pp. 33-34)

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95

Ao redor do fenômeno do cangaço se desenvolveu uma poética da literatura de cordel

que terminou por divulgar e popularizar as ações do cangaço, cujos atores tiveram a vida

registrada em folhetos e passaram a constituir tema recorrente, que, por seu turno, despertou

nos leitores/ouvintes da época em que se viveu o cangaço, ou depois, um interesse que se

estende por anos a fio e até nossos dias, o que sedimentou o mito daqueles que foram tão

intensamente parte da paisagem sertaneja nordestina que com ela se confundiam. Os poetas,

coevos ou não dos cangaceiros, souberam-lhes sempre a importância, e por esse motivo,

colocaram suas penas a rabiscar e a sulcar gestas que lhes perpetuaram as ações em meio ao

ensolarado sertão.

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96

2.3. ANTÔNIO SILVINO, LAMPIÃO E OUTROS HERÓIS: OS FATOS, OS FEITOS, O

MÍTICO, O MÍSTICO

Cantarei meu canto no canto que entoa

Serei o encanto da imaginação

Terei nos baiões, nas cantigas e loas

Os sons e a proa da minha canção.

Do Rei do Baião cantarei o ensino

De um vão Virgulino serei Lampião

Moldado no barro de um rei Vitalino

Cantarei o hino e a voz do sertão.

(“O poeta cantador”, de Flávio Leandro)

É importante que se faça a distinção entre o jagunço e o cangaceiro para que se possa

delimitar o objeto de estudo. Embora possa vir a se tornar um cangaceiro, o jagunço está

ligado diretamente a uma espécie de segurança particular atrelada a um coronel e à guarda de

sua família. O serviço do jagunço é quase sempre trabalho pago. Tendo como sinonímia

capanga ou cabra, o jagunço oferece seus serviços de guardião e não age por conta própria.

Sempre às ordens, cumpre apenas mandados de terceiros, e por esse motivo não se pode

associá-lo, a princípio, aos cangaceiros que aterrorizaram a geografia do sertão nordestino por

algumas dezenas de anos.

Igualmente criminoso, o jagunço tem por obrigação vingar crimes familiares de seus

comandantes, intimidar e até matar inimigos políticos daqueles, lavar honras perdidas ou

ameaçadas. Como pagamento pode ter o dinheiro, o favor e a casa em redor da fazenda. Pode

vir a ser um quase agregado, e desse modo, é dependente direto do coronel, seu suserano.

Pode-se até afirmar ser esse tipo um cangaceiro potencial e, porventura, alguém que pode

ingressar ou integrar com o tempo as fileiras do cangaço. Seu preparo profissional de matador

e agente vingador permite isto, mas, a priori, esta não é uma realidade.

Há de se frisar ainda que nem sempre foi assim: o jagunço também já se inseriu, por

fanático, nas lides religiosas católico-populares como soldado na defesa militar de territórios

sagrados como aqueles capitaneados por Antônio Conselheiro e pelo padre Cícero, no final do

século XIX e começo do XX, respectivamente.

Guiados e fanatizados pelos seus mestres, e pelas causas em que acreditaram, mataram

e morreram. Essa admirável valentia é caminho, sem dúvida, para a violência, e a história

registra os fenômenos de Canudos em Juazeiro – BA, como dos episódios mais violentos da

realidade fanática brasileira. Defesa justificada em nome da crença e da fé, esses

acontecimentos geraram cenas perigosas e tão agressivas quanto aquelas patrocinadas por

coronéis e cangaceiros.

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97

Não se pode deixar de declinar que nesses estados-maiores da história do fanatismo o

jagunço aprendeu a matar, se resignou a morrer, a saquear, a praticar a degola (legada pelas

forças oficiais ao sertanejo) e a perder o medo. Essa violência e destemor foram aprendidos

no terreiro dos coronéis, que prometiam tantas benesses quanto fossem necessários os

trabalhos a serem cumpridos, ou sob as barbas de líderes espirituais, e nesse caso, segundo a

crença em promessas de amparo, assistência e proteção social que o Estado sempre negara,

além da iminência do milagre, da cura e da vida eterna que amainam os sofrimentos na terra.

Se dispensados de seus préstimos pelos seus senhores feudais ou ao verem seus líderes

tombarem, como em Canudos, a saída podia ser outras fazendas e outros senhores a quem

pudessem oferecer seus serviços. Havia também o prestar serviço como vaqueiro ou o

espinhoso caminho do cangaço. Era o que restava.

Fiéis a seus chefes ou líderes, os jagunços vão até o esgotamento na defesa dos feudos

a que pertencem: sejam os seculares, como as fazendas e seus coronéis, ou religiosos. Nesses

últimos, se tornam verdadeiros Carlos Magnos na defesa da fé como ocorreu em Canudos, na

Bahia ou em Juazeiro, no Ceará. A propósito do Ceará, jagunços em 1912 e sob as bênçãos do

padre Cícero lutaram até as últimas consequências em movimento político-religioso

conhecido como Sedição do Juazeiro, na defesa não somente do solo religioso do padre, mas

debaixo do manto da fé, dos ideais políticos que o padrinho nutria. Para jagunços, se o

movimento envolve o padre Cícero Romão Batista, a causa é cristã e de redenção messiânica.

Caldas Aulete (apud CASCUDO, 1998) dava conta de que o termo jagunço “é

brasileirismo e, portanto, vocábulo popular que ocorre na região da Bahia” (p. 468). Para

Câmara Cascudo, o vocábulo pode ter “se espalhado por todo o Brasil com o movimento

fanático de Canudos. É sinônimo de valente, decidido e fanático, o que atesta a ideia de que,

apesar dos crimes e da violência que pratica o jagunço não pode ser confundido com o

cangaceiro”.

Outro estudioso da cultura popular brasileira, Beurrepaire Rouhan (apud CASCUDO,

1998), diz ser o jagunço “guarda-costas de políticos, fazendeiros, senhores de engenhos,

peculiar à Bahia” (p. 468), o que lembra não somente os grandes latifúndios presentes naquele

estado, como os inúmeros aglomerados de famílias poderosas, e o próprio movimento

fanático do século XIX às margens do Rio Vasa-Barris ainda na Bahia. Todos, das poderosas

famílias, ao movimento fanático, têm o jagunço como agregado.

A prática do jaguncismo, porém, rompe as fronteiras baianas e atinge o Ceará,

Pernambuco, Paraíba e outros estados do Nordeste, pois em todos eles há o político-coronel, o

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fazendeiro e o senhor de engenho potentados e ferrenhos inimigos em lutas políticas e por

posse de terras. Envolvidos em crimes de honra ou vinganças familiares, todos precisam dos

préstimos do jagunço.

Necessário lembrar que o catolicismo popular e fanático do sertão nordestino, que

sempre termina em questão de ordem política, é ambiente propício à atuação e à coragem do

jagunço.

Ainda que do ponto de vista etimológico, jagunço é uma espécie de chuço, pau-

ferrado, haste de madeira com ponta de ferro aguçado, arma de ataque e defesa, popular

especialmente na Bahia e Pernambuco (CASCUDO, 1998, p. 468), por associação semântica,

jagunço é aquele que maneja com destreza uma arma pessoal. Nesse caso, é ter o domínio

profissional dessa arma com o fim de matar, mas também pode revelar o camponês que luta

na defesa de sua terra, de sua família, de seus ideais.

Para que possamos compreender essa diferença entre jagunço e cangaceiro, atentemos

no que discorre a esse respeito Euclides da Cunha:

O jagunço é menos teatralmente heroico; é mais tenaz; é mais resistente; é mais

perigoso; é mais forte; é mais duro.

Raro assume esta feição romanesca e gloriosa. Procura o adversário com o propósito

firme de destruí-lo, seja como for. (CUNHA, 1995, p. 125).

Euclides da Cunha compara o gaúcho com o tipo nordestino que em nada lembra o

herói que o imaginário cria. Apesar de suas considerações, de certo modo, preconceituosas,

como a afirmativa de que o sertanejo é antes de tudo um forte, segue o autor fluminense com

o elogio às avessas: “[...] A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o

contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das

organizações atléticas”. (CUNHA, 1995, p. 118). No entanto, sua conclusão entre o homem

nordestino e o do Sul é idêntica à que estabelece com relação a esse mesmo nordestino

sertanejo e o da mesma região, porém litorâneo. Frente ao habitante dos pampas, o homem do

Nordeste termina por apresentar mais coragem, talvez pelo motivo de dispor de menos

recursos no enfrentamento das adversidades, o que torna necessárias agilidade e valentia no

ataque e na defesa. A comparação se faz da seguinte forma:

[...] o gaúcho, vencido ou pulseado, é fragílimo nas aperturas e de uma situação

inferior ou indecisa.

O jagunço, não. Recua. Mas no correr é mais temeroso ainda. É um negaciar

demoníaco. O adversário tem, daquela hora em diante, visando-o pelo cano da

espingarda, um ódio inextinguível, oculto no sombreado das tocaias. (CUNHA,

1995, p. 125).

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99

Embora a comparação de Euclides da Cunha seja entre o gaúcho e o jagunço

conselheirista, este último em luta por uma causa coletiva, o perfil que dele se tem é

justamente o do homem serviçal, aparentemente humilde, mas perigoso ao mesmo tempo,

pois age com espírito que tanto faz enfrentar sem medo seu protetor ou senhor como por ele

pode morrer. Com o tempo, jagunço passa a ser termo que remete ao bandido assalariado que

constitui a imagem do destemor e da astúcia, mas sempre sob o contrato, pois em situação

pacífica nunca executa alguém por conta própria.

Levando-se em conta as informações acima, é fácil perceber por que a imagem do

jagunço para o povo nunca refletirá aquela que se tem de um herói, pois seu trabalho passa a

ser compreendido como outro qualquer. Sua condição de prestador de serviços pode ser

comparada à qualquer atividade de trabalho. O cangaceiro, ao contrário, age livremente, com

independência, a circular de um lado para outro sem prestar contas a ninguém. O que pode

haver é algum diálogo de interesse mútuo com aliados, mas sempre com desconfiança

bilateral. A percepção popular distingue o jagunço do cangaceiro e, num misto de temor e

admiração, vê no segundo, paradoxalmente, um paladino e, no primeiro, um covarde, pois,

apesar de ambos serem criminosos, o agir do jagunço nunca será equiparado ao do cangaceiro

devido à sua natureza traidora.

Como apontado anteriormente, o jagunço pode vir a ingressar nas hordas cangaceiras,

pois, ao trabalhar sob encomenda pode, em algum momento, ter escasseados os seus serviços

ou até perdido terreno de sua atuação, e nesse caso, a opção pelo cangaço não seria

descartada. Todavia, a lógica do cangaço não aceita de bom grado esse elemento, pois sua

atuação anterior junto a poderosos pode representar perigo a olhos vistos, uma vez que estará

fatalmente associado aos olheiros ou o que o valha, tão comuns no contexto dos inimigos do

cangaço, e, desse modo, sua cota de participação no bando será tida como a de possível

informante de forças volantes ou de coronéis inimigos. Detectado o espião, a morte será certa.

Quanto ao sertanejo fanático, ligado a movimentos religiosos populares de santos e

profetas demiurgos de um Nordeste ainda arcaico, crente e farto de carências sociais, políticas

e até religiosas, será de bom alvitre declinar como sua valentia se dá na defesa de suas Mecas

sertanejas, ao ponto de aceitar ser identificado com um tipo a que antes não cogitava, talvez,

se deixar comparar, o de jagunço:

Lá [Canudos] se firmou um regime modelado pela religiosidade do apóstolo

extravagante [...]

Canudos estereotipava o fácies dúbio dos simples agrupamentos bárbaros.

O sertanejo simples transformava-se, penetrando-o, no fanatismo destemeroso e

bruto. Absorvia-o a psicose coletiva. E adotava, ao cabo, o nome até então

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100

consagrado aos turbulentos de feira, aos valentões das refregas eleitorais e

saqueadores de cidades – jagunços. (CUNHA, 1995, p. 192)

Deve-se entender que esse sertanejo simples, no dizer de Euclides da Cunha, na

verdade, não apresentava ou não tinha nenhuma índole para o mal. Pacato, torna-se ou

tornam-no jagunço na defesa de si e na de sua crença, de seu mestre e do arraial ou reduto que

ajudam a construir. Sua fé em dias melhores faz com que, esperançoso, lute em prol de uma

causa para ele nobre. Defender o Conselheiro era, na prática, defender toda a comunidade

com ideias e práticas dignas de uma sociedade que organizava a comum tarefa de dividir o

pão e a fé, a arma e a luta, na ordem e no respeito ao próximo, ao contrário daquilo a que

Euclides da Cunha nomina ironicamente de Urbs monstruosa.

O interesse desse jagunço não é particular, mas incide diretamente na comunidade.

Não se trata de um criminoso apto a matar e ser pago para isso, mas de alguém que na ânsia

de uma vida melhor leva adiante as últimas consequências em torno do Arraial de Canudos.

Em luta, mata e morre por essa coletividade. Canudos é a luta ideal do Conselheiro, que

jamais pegou em armas, e de todos os que passam a frequentá-la. É essa psicose coletiva que

torna o jagunço fanático, o que o difere do criminoso profissional.

Pode-se a princípio afirmar que o jagunço fanático não seria um criminoso, mas

alguém que como qualquer discípulo acredita na prédica de seu mestre e, por esse ideal e por

essa esperança messiânica, mata e morre. O jaguncismo de Canudos explica-se mediante, e

principalmente, por uma causa nobre disseminada por seu líder: o paraíso na terra seca, a luta

por uma vida melhor, o resgate da alma sofrida. Paraíso presente, Canudos representa a

conquista, passo a passo, do território de Deus em solo seco, a Terra Prometida há milênios

esperança de hebreus, e, posteriormente, da cristandade.

Lutar, para, ainda na terra, alcançar esse lugar de delícias, o paraíso bíblico, a

Cocanha medieval, vale a pena para a multidão de desvalidos da cristandade popular

sertaneja. Lutar pela Canaã rústica dos sonhos de Conselheiro e de seus crentes é ter nas

armas a defesa de um paraíso conquistado em pleno sertão nordestino, e é, além disso, ter a

posterior senha de entrada para o cruzamento da soleira de um Éden a ser reconquistado.

Defender Antônio Conselheiro é, com efeito, uma garantia para que o céu seja

alcançado e, dessa forma, esse homem simples termina por cometer o crime que talvez em

outra situação nunca viesse a cometer, mas o que vale nesse envolvimento com a morte é a

vida futura: o paraíso. Por esse motivo, o jagunço fanatizado passa a ser mais temido do que

aquele que presta serviços sob encomenda, pois enquanto este age em troca de moeda, aquele

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mata ou morre por promessas de paraísos e canaãs, o que representa colocar fagulhas

próximas a barris de pólvora. A promessa de ascensão dos desvalidos ao paraíso é

infinitamente mais perigosa do que a imediata ascensão pelo dinheiro, pois esta, apesar de

mais concreta, é mais difícil de se tornar realidade, enquanto aquela se torna realidade pela

crença e pela fé. Movido por isso, o indivíduo está disposto tanto a matar como a morrer. É

isso que instiga o fanatismo.

No sertão de Antônio Vicente Mendes Maciel é assim: o homem aparentemente

desgracioso, desengonçado, torto “[...] transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos

relevos, novas linhas na estatura e no gesto” (CUNHA, 1995, pp. 118-119), se uma situação

nova e principalmente inusitada, como é o caso de Canudos, lhe aparece. O Hércules

abandona o Quasímodo de que falara Euclides e surge de chofre o jagunço forte, destemido,

destinado. E o inimaginável acontece.

Para sustentarmos ainda uma vez a diferença entre jagunços ou capangas e

cangaceiros, podemos ver como opina Rui Facó ao assinalar as hordas a serviço de coronéis

cujos feudos se estendem até os anos 30 do século passado:

Aí está o capanga e sua sede – a grande propriedade territorial; o seu comando: o

chefe local, o coronel fazendeiro ou o dono de garimpos.

Estes exércitos mobilizados a serviço dos coronéis do interior não são de

cangaceiros, são de capangas ou de cabras. Homens a soldo, pistoleiros, matadores

profissionais. (FACÓ, 1972, p. 56)

O jagunço ou capanga é de tamanha dependência a um coronel, que, como homem pago,

afilhado ou agregado, em seu encalço há sempre outro igual bandido a lhe dar ordens,

desconfiado, mas ciente, um e outro, de que nada pode deixar de se cumprir, pois a ordem

vem, de fato, do coronel. Rezar por essa cartilha é a maneira de se manter. Ainda viver sob o

teto da casa grande é tirar daí o seu sustento e de sua família, mediante outras atividades:

Não importa que no intervalo entre um assalto à propriedade e a execução de um

crime de morte de algum desafeto do coronel, o capanga esteja vaquejando o gado

ou plantando um roçado. Fazia-o comumente.

Sua dependência econômica e social em relação ao grande proprietário, o

avassalamento da economia seminatural, a falta de terras para a pequena

propriedade, tornavam-no um semisservo que deveria obedecer, sem discutir, as

ordens do patrão, cumprir todas as suas vontades, executar os crimes mais hediondos

por eles ordenados. (FACÓ, 1972, p. 56)

Essa vida é de certa ou total dependência, e quiçá, de tormentas, protagonizadas por

jagunços ou capangas e cabras, em subserviência cega e impensada, dispostos a tudo em

nome do senhor de engenho, do coronel ou do patrão.

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102

O cangaceiro, diferentemente do jagunço, apresentava vida independente, caminhava

livre nos territórios de sua atuação, não tinha apego a lugar algum, não tinha patrão e

teoricamente não se atrelava a coronéis ou fazendeiros, embora com estes mantivessem algum

laço de camaradagem, por necessidade mútua.

Para o povo, no entanto, entre escolher cangaceiros e coronéis, (sempre senhores de

terras, chamados também de “coronéis de barranco”), a preferência, devido à valentia e ao

heroísmo, recaía nos bandidos. Mandatários locais, os coronéis representavam chefes de clãs e

figuravam como grandes senhores “feudais” que massacravam o próprio povo e os seus

comandados, os jagunços. Desse modo, ao se buscar um referencial da terra, o cangaceiro

representava para o povo a busca de alguém que fosse o sumo de seus desejos e esperanças,

pois seus traços de valentia, no embate com os que simbolizam a opressão, os tornavam

heróis.

Não há como ver no tirano um herói, e os coronéis eram esses déspotas, embora

fossem igualmente corajosos no enfrentamento das lutas de seu dia a dia, inclusive contra

grupos de cangaceiros, que não deixam de ser como os coronéis, impiedosos. O que os

diferencia ainda, ao que parece, é que os cangaceiros, por sua mobilidade, e por serem livres,

transmitem ao povo a esperança e certo ideal de liberdade, sem fugir à luta no enfrentamento

das volantes, de outros grupos armados por coronéis, mas se protegendo e aos companheiros,

até que o inimigo dê trégua ou empreenda a retirada. A narração que segue mostra a luta do

bando de Lampião com Clementino Furtado e seu grupo, além da injustiça com que esse age,

a oprimir o homem do povo para dar conta do paradeiro de Virgulino. No texto, se vê a

grandeza do capitão e dos homens a seu comando, em detrimento da personalidade do

sargento, a quem o poeta trata com perceptível ironia:

[...]

O Clementino Furtado,

Fazendeiro do sertão

Sentou praça na polícia

Para pegar Lampião

Recebeu logo as divisas

De sargento, o valentão.

O sargento certo dia

Deitou mão a um coiteiro

Ameaçando matá-lo

Na boca do granadeiro

Para que ele revelasse

Onde estava o cangaceiro.

O coiteiro respondeu

Como na vida passava:

Tinha uns barrigudinhos

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103

E tudo quanto ganhava,

Na venda dumas miçangas

Nem para a boia não dava.

Enquanto isso o sargento

Todo o seu corpo riscava

De punhal, e ele vendo

Que a morte se aproximava

Resolveu levá-lo até

Onde Lampião estava.

Na Serra da Baixa Verde

Lampião tava acoitado

Dentro dum rancho de palha

Com os cabras descansado,

Sem esperar nem por sonho

Que ia ser atacado.

O sargento fez o cerco,

Preparou os seus soldados,

Depois mandou chover balas,

Quase por todos os lados,

Os cabras surpreendidos

Acordaram atordoados.

Lançaram-se à retaguarda

Enfrentando os atacantes,

Fugindo e contra-atacando,

Em manobras fulminantes,

Tentando romper o cerco

Dos soldados vigilantes.

O fuzil de Lampião

Na luta não tinha falha,

Da boca saía fogo

Parecendo uma fornalha

Ou uma metralhadora

Descarregando a metralha.

Lampião era ligeiro

E corajoso também,

No carrego e na descarga

Ele manobrava bem,

Se um cabra dava dez tiros

Ele dava mais de cem. (D’ALMEIDA FILHO, pp. 8-9)

Não obstante a condição de bandido, o cangaceiro pode representar o povo por se

tornar referencial de destemor. Para o imaginário popular, quase sempre seu herói enfrenta,

com número desigual de combatentes e de armas, os poderosos locais (coronéis desafetos,

fazendeiros, comerciantes, prefeitos, juízes), todos, em posição superior, por disporem de

apoio do estado e terem o auxílio das volantes. Duelar com as forças do governo e vencer (em

diversas ocasiões) é ter como certa a entrada para o panteão dos heróis populares. Ainda que

envolvido no mundo do crime, o cangaceiro, por sua intrepidez, é motivo de honra no

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104

universo em que vive e atua, e isso ocorre, porque, como parte integrante de seu microcosmo

e em qualquer época, o homem necessita de mitos que lhe sirvam de arquétipo. Homem do

sertão, o cangaceiro será esse referencial, pois está sempre apto a ir de encontro ao

estabelecido, a enfrentar as forças políticas organizadas, a tomar parte de rebelião espontânea,

voluntária, em nome de algo comum: a honra. Não tipificam os cangaceiros as lutas políticas.

Não há chefes de bando que lutaram, por exemplo, em prol de causas político-sociais, ou pelo

bem-estar do povo, porém, lutar contra as injustiças dos coronéis é erguer bandeira que

equivale à própria justiça social:

[...]

Criou o homem o chicote

Infernalmente inclemente

Para corrigir o erro

Do sujeito intransigente

Lampião foi um chicote

De Deus em forma de gente.

Nunca se viu englobados

Num só vivente mortal

Tanta sede de grandeza,

Nunca sanha tão brutal,

O sentimento selvagem

Bruto do bem e do mal.

[...]

Os coronéis mais valentes,

Os políticos mais ousados,

O juiz mais arrogante,

Os mais cruéis delegados

Na frente de Lampião

Ficavam paralizados. (SILVA, pp. 18 e 22)

Era essa a sensação de justiça que o povo via nesses homens, apesar do maniqueísmo

apresentado pelo poeta hodierno Gonçalo Ferreira da Silva.

Em outro momento, a narrativa popular mostra a valentia dos cangaceiros e motiva seu

heroísmo diante do povo em face da capacidade que mantinham de serem fiéis aos

companheiros e por eles arriscarem a vida. Nessa mesma luta entre o grupo de Lampião e a

polícia de Clementino Furtado, caso importante de fidelidade ocorre, e o poeta cristaliza:

[...]

Durava já duas horas

Essa luta sem cessar,

Lampião foi dar um salto

mas no pulo deu azar

pois recebeu uma bala

no esquerdo calcanhar.

Caiu atrás duma pedra

Porém um cabra leal

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105

Que estava acostumado

Extrair bala a punhal

Correu logo em seu auxílio

Mas teve a sorte fatal.

[...] Com a bala no calcanhar

Lampião foi capengando

Caiu a uns cinquenta metros

E ficou lá esperando...

Enquanto Livino, só

A batalha ia aguentando.

Frente a frente com a tropa

De Clementino Furtado

Nesse instante Meia-Noite

Um negro desassombrado

Pôde fugir conduzindo

Lampião no seu costado (D’ALMEIDA FILHO, p. 9)

Nesse episódio, percebe-se a valentia não só do chefe dos cangaceiros, mas de Livino

Ferreira, seu irmão, que sustentou sozinho o comando da luta, além do cangaceiro Meia-

Noite, que, sem assombro algum, se arriscou, e, em meio ao fogo cerrado, não temeu a tropa

do sargento Clementino, na ânsia de salvar a vida de Lampião. A passagem se assemelha a

um dos cantos da Eneida, de Virgílio, quando da fuga de Eneias com os seus, diante do

incêndio de Troia:

Havia dito e já ao longo das muralhas se ouvia mais nitidamente o crepitar do fogo e

o incêndio rola turbilhões perto de nós. Adiante, pois! Vamos, caro pai sobe para

as nossas costas: eu te levarei nas minhas espáduas, e esse fardo não será pesado.

Ocorra o que ocorrer, haverá para nós dois um só e comum perigo, uma só salvação

[...]. (VIRGÍLIO, s/d. Canto II)

Um dos mais belos versos da Eneida, os passos acima representam a força conjunta e a

proposta de que a luta é de todos e a salvação ou o perigo a todos pertencem. O poeta popular

mostrou essa grandeza dos cangaceiros como forma de consagração legítima do herói, o que

leva à conclusão de que atos heroicos atravessam a história da humanidade e de que não

importam os olhares: o erudito ou o popular dirão da grandeza humana e o homem se faz

grande se suas ações não forem pequenas.

Outro fator que dá caráter heroico aos cangaceiros é o da coragem aliada à luta em

meio hostil como o enfrentamento da natureza e sua exuberância – espaço inclusive, propício

a emboscadas –, da fome, da sede, do desprendimento da vida sedentária, em função da

nômade, o constante embate com as forças policiais, aparelhos do Estado, o ininterrupto

avizinhar da morte tanto no tocante à polícia quanto no que respeita ao bruto refúgio da

natureza e o perigo que esta também representava:

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[...]

Quatro estados reunidos

Tratam de me perseguir,

Julgam que não devo ter

O direito de existir,

Porém enquanto houver mato,

Eu posso me escapulir.

Eu ganhando essas serras,

Não temo alguém me pegar

Ainda sendo um que pegue,

Uma piaba no mar,

Um veado em mata virgem

E uma mosca no ar.

Eu já sei como se passa

Cinco dias sem comer,

Quatro noites sem dormir,

Um mês sem água beber,

Conheço as furnas onde durmo

Uma noite se chover.

Uma semana de fome,

Não me faz precipitar,

Mato cinco ou seis calangos

Boto no sol a secar,

Quatro ou cinco lagartixas,

Dão muito bem um jantar.

Eu passei mais de um mês

Numa montanha escondido,

Um rapaz meu companheiro

Foi pela onça comido,

Por essa também

Eu fui muito perseguido.

Era um lugar esquisito,

Nem passarinho cantava!…

Apenas à meia noite

Uma coruja piava,

Então uma grande onça,

De mim não se descuidava.

Havia muito mocós,

Eu não podia os matar,

Andava tropa na serra

Dia e noite a me caçar,

No estampido do tiro

Era fácil alguém me achar.

Passava-se uma semana

Que nada ali eu comia,

Eu matava algum calangro

Que por perto aparecia

Botava-os na pedra quente

Quando secava eu comia.

Quando apertava-me a sede

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Pegava a croa de frade

Tirava o miolo dela

Chupava aquela umidade

Lá eu conheci o peso

Da mão da necessidade.

Um dia que a tropa andava

Na serra me procurando

Viram que um grande tigre,

Estava em frente os emboscando

Um dos oficiais disse:

Estamos nos arriscando.

E o Antonio Silvino

Não anda neste lugar,

Se ele andasse, aquela onça

Havia de se espantar,

Eu estava perto deles,

Ouvindo tudo falar.

Ali desceu toda a tropa,

Não demoraram um momento,

Um soldado que trazia

Um saco de mantimento,

Por minha felicidade

Deixou-o por esquecimento.

Eu estava dentro do mato,

Vi quando a tropa desceu

O tigre soltou um urro,

Que o tenente estremeceu

Até a borracha d’água

Uma das praças perdeu.

Quando eu vi que a tropa ia

Já n’uma grande lonjura,

Fui, apanhei a mochila,

Achei carne e rapadura,

Farinha queijo e café,

Aí chegou-me a fartura.

Achei a borracha d’água

Matei a sede que tinha,

A carne já estava assada,

Fiz um pirão de farinha

Enchi a barriga e disse:

Deus te dê fortuna, oncinha.

Porque a tua presença,

Fez toda a força ir embora,

O ronco que tu soltasses,

encheu-me a barriga agora,

Eu com a sede que estava,

Não durava meia hora.

E é agora o que faço,

Havendo perseguição,

Procuro uma gruta assim

E lá faço habitação,

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Só levo lá, um, dous rifles

E o saco de munição.

[...]

Pode ter muita coragem

Ser bem ligeiro e valente,

Mas vamos ver suporta

Passar três dias doente,

Com sede de estalar beiço

E fome de serrar dente.

Se não tiver natureza

De comer calango cru,

Passe um mês sem beber água

Chupando mandacaru,

Dormir em furna de pedra

Onde só veja tatu.

Não podendo fazer isso,

Nem pense em ser cangaceiro,

Que é como um cavalo magro

Quando cai no atoleiro,

Ou um boi estropiado

Perseguido do vaqueiro.

Há de ouvir como cachorro,

Ter faro como veado,

Ser mais sutil do que onça,

Maldoso e desconfiado,

Respeitar bem as famílias,

Comer com muito cuidado.

Andar em qualquer lugar

Como quem está no perigo,

Se for chefe de algum grupo

Ninguém dormirá consigo,

O próprio irmão que tiver,

O tenha como inimigo.

O cangaceiro sagaz

Não se confia em ninguém,

Não diz para onde vai,

Nem ao próprio pai se tem,

Se exercitar bem nas armas,

Pular muito e correr bem.

Em meu grupo tem entrado

Cabra de muita coragem,

Mas acha logo o perigo

E encontra a desvantagem

Foge do meio do caminho,

Não bota o meio da viagem.

Porque andar vinte léguas

Isso não é brincadeira,

E romper mato fechado,

Subir por pedra e ladeira,

Como eu já tenho feito,

Não é lá cousa maneira.

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Pegar cobra como eu pego

Quando ela quer me morder,

Cascavel com sete palmos,

Só se Deus o proteger,

Mas eu pego quatro ou cinco

E solto-a, deixo-a viver. (BARROS, pp. 11-14 e 16-17).

A condição de fora da lei e a resistência às autoridades, com quem o povo não se

identifica, dão aos cangaceiros aparato suficiente para que, no imaginário popular, se tornem

heróis absolutos resultantes do surgimento do elemento mítico que permeia a história do

cangaço:

Quando eu vou dar um ataque

Meu pessoal não cochila

Se encontra um batalhão

Aquartelado na vila

Entro sorrindo no jogo

Para ver no fim do fogo

Quem tem roupa na mochila.

O cangaceiro valente

Nunca se rende a soldado

Melhor é morrer na bala

Com o corpo cravejado

De que render-se à prisão

Para descer do sertão

Preso e desmoralizado. (ATAÍDE, p. 1)

No final do século XIX, Sílvio Romero já indicava o meio e o imaginário do cangaço.

Sua plausível justificativa esclarece a afeição do povo e do poeta ou de uma poesia anônima,

da seguinte forma:

Os sertanejos, em cujos centros floresce o banditismo, conhece-lhe os tipos

principais, que se distinguem por suas façanhas.

É por isso que nosso cancioneiro é tão rico em xácaras encomiadoras de bandidos e

facínoras, como Lucas da Feira, o José do Vale, o Cabeleira e outros assim. (ROMERO, 1980, p. 167)

O sertanejo, em busca de referência que justifique uma mítica local, procura eleger o

herói que determine essa afirmação telúrica. Ao identificar em um elemento de sua paisagem

o homem que detenha as qualidades do herói, a consagração se faz. Ao que se observa, não

importam para o sertanejo as atitudes pregressas de quem foi escolhido como referencial

heroico: valem as ações desse homem-bandido-herói. Viver em meio adverso, enfrentar

lances marcantes para a sobrevivência, se confrontar com escudados coronéis, com famílias

tradicionais e suas armas, afrontar poderosos eleva o homem do cangaço a cenário heroico e,

desse modo, vem com ele o molde de homem invencível e inquebrável como os heróis de

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qualquer época da humanidade, segundo seus mitos mais profundos e primordiais. Por essa

razão, se faz pertinente aplicar-se aos que vivenciaram o mundo do cangaço aquilo que

representa o pensamento do próprio homem em relação ao herói, numa síntese sustentada por

Joseph Campbell:

O herói é o homem ou a mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas

pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas. As visões, ideias

e aspirações dessas pessoas vêm das fontes primárias da vida e do pensamento

humanos. (CAMPBELL, 2007, p.28)

É certo que a concepção do herói moderno difere do que se cogita do olhar grego e

convencional. No entanto, entende-se que um ideal de herói remete sempre ao universal e ao

atemporal, uma vez guardado o legado essencial do conceito. Desse modo, o personagem

heroico se fará presente em qualquer instância humana, independentemente do tempo

histórico, da cultura, do espaço em que esteja inserido e de sua representação. Campbell

fundamente e esclarece essa questão ao tratar do herói na modernidade e ao conceber sua

permanência no tempo:

O herói morreu com o homem moderno; mas, como homem eterno – aperfeiçoado,

não específico e universal – renasceu. Sua segunda e solene tarefa e façanha é, por

conseguinte retornar ao nosso meio transfigurado, e ensinar a lição de vida renovada

que aprendeu. (CAMPBELL, 2007, p. 28)

O cangaceiro, como qualquer herói, tinha consciência da morte iminente, mas lutava

até as últimas consequências. Entregar-se, capitular, era a maior afronta e a pior das provas de

covardia. Dificilmente há notícias de cangaceiro que tenha abandonado a carreira, mesmo que

se possa entrever em sua luta proposta de foro pessoal, como a simples vingança, por motivo

vário ou até pela ânsia de enriquecimento, no entanto, mais do que isso, a fama do cangaceiro

está em seus atos heroicos, como bem descreve Gonçalo Ferreira da Silva ao trazer em versos

e justificar a vida de Corisco:

O desnível social

Provocava o desordeiro

Porque este via no rico

Não um senhor fazendeiro

Mas um desavergonhado

E metido a posseiro.

Corisco em sua vida curta

Endiabrado viveu

Sanguinolento, indomável,

Herói que nunca se deu

Por vencido e como herói

Que não se entrega, morreu. (SILVA, p. 32)

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111

Por uma ótica de natureza política de esquerda e pelo viés de uma orientação

igualmente de esquerda, o fenômeno cangaço é abordado pela arte como algo que ocorre

como grito por justiça em nome dos desvalidos do estado, e, principalmente, a partir de um

olhar que se desenvolve dos anos até nossos dias:

No caso do Nordeste, sua mitologia, instituída por toda uma produção

tradicionalista ou oligárquica, será agenciada, a partir da década de trinta, pelo

discurso de intelectuais tanto ligados à esquerda como a setores burgueses da

sociedade, e submetidos a um tratamento acadêmico ou artístico, direcionado por

estratégias e demandas de poder diferenciadas. O mesmo cangaceiro que era visto

pelos tradicionalistas como o justiceiro dos pobres, como homem integrado a uma

sociedade tradicional e que se rebelava por ser vítima da sociedade burguesa,

tornar-se-á, no discurso e obras artísticas intelectuais ligadas à esquerda, um

testemunho da capacidade de revolta das camadas populares e símbolo da injustiça

da sociedade burguesa, ou uma prova da falta de consciência política dos

dominados, uma rebeldia primitiva e mal orientada, individualista e anárquica. (ALBUQUERQUE JR, 1999, p. 193-194)

O povo, no entanto, não pensa dessa forma: na verdade, quer heróis. Identificar no

cangaço elementos que o representem é algo indispensável. No ambiente dos menos

favorecidos, tentar encontrar fatos grandiosos nos cangaceiros é adequar às suas necessidades

e agonia alguém que, embora nada traga de concretude como o pão e a justiça, traga, pelo

menos, para amaciar-lhe o ego, o enfrentamento aos que os oprimem com arbitrariedade. Se

no confronto com aqueles, os cangaceiros não se abalam, o povo, igualmente, não se abala.

Pode-se afirmar, portanto, que o legendário, o mítico é criação mesma do povo que se vê e se

quer bem representado.

Na narrativa de ficção, fica clara a fala do mestre Zé Amaro em Fogo morto, quando

se faz presente a mítica do cangaceiro como combatente dos potentados coronéis, em favor do

povo:

[...] Aquele Lula de Holanda, sem que nem mais, mandava que ele se fosse de uma

casa que o pai levantara. Anos e anos perdidos. E Manuel de Úrsula vinha lhe falar

em direito. Pobre não tinha direito. Quem sabia dar direito aos pobres era o capitão,

era Jesuíno Brilhante, era o cangaço que vingava, que arrasava um safado como

Quinca Napoleão. (REGO, 1990, p. 198)

Segue o diálogo, e o andarilho cego Torquato, corrobora com o desabafo do mestre

seleiro, seu interlocutor, frente às injustiças de que o povo padece:

É o diabo, mestre. Leva um homem a vida inteira numa propriedade, cria raiz na

terra, e chega uma ordem para botar para fora, como se corta um pé de pau. Isto não

está direito. É por isso que eu digo todo dia: homem para endireitar este mundo só

mesmo um Capitão Antônio Silvino. (REGO, 1998, p. 198)

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A figura lendária e mítica do cangaceiro não se restringe apenas ao imaginário da

população menos favorecida. Talvez, por questão de necessidade, a mais avultada parte da

comunidade sertaneja enxergue seu herói com olhos mais aguçados, porém sua centelha

mítica representa toda a comunidade, pois a natureza do herói é coletiva, o que justifica o

cantar épico empreendido pelos poetas de todos os tempos e de todas as realidades.

Assevere-se, para abrir um parêntesis, que, no sertão, além dos cangaceiros, houve

outros heróis que, com seus atos de bravura e destemor, terminam por alavancar igual

imaginário coletivo, a exemplo de personagens marcantes e fortes como Antônio Conselheiro

(1830–1897) e os taumaturgos padres Cícero Romão Batista (1844–1934) e José Antônio

Pereira Ibiapina (1806–1883), entre outros, que, segundo seus propósitos, arrebanharam não

poucos seguidores, levados todos pelos ideais míticos por eles preconizados.

Em se tratando do cangaço, porém, o elemento mítico se mostra mais intenso e vivo,

pois versa sobre valentia diferente, itinerante e não sedentária. Adentrar a paisagem sertaneja

exigia coragem e absoluta resistência física, pois, além do complexo espaço geográfico e dos

perigosos agentes oficiais armados, havia a dura luta contra outras armas inimigas: coronéis

não afinados com ideais do cangaço, a falsidade de supostos amigos, a fome, a sede, as noites

mal dormidas para citar alguns aspectos desse cotidiano, que resumem a um só tempo a vida

amargurada dos cangaceiros, mas, por outro lado, representam pré-requisitos para o

imaginário popular considerá-los entes míticos e, portanto, heroicos.

Sabe-se que o texto épico exige a passagem do real para o mítico. Cabe ao poeta

adotar a desrealização do real, isto é, do fato para se alcançar o mítico, pois, do contrário, as

ações dos cangaceiros não caracterizariam o ideal heroico desejado:

A aderência mítica que desrealiza o fato o fato histórico, desrealiza também o ser

histórico e lhe dá a condição mítica necessária para alcançar a categoria de herói. O

personagem histórico, para ganhar a condição mítica que qualifica o herói, tem de

agenciar também a dimensão mítica da matéria épica, passando do plano histórico

para o maravilhoso. Essa exigência épica define a qualificação do herói e do relato, e

a passagem do plano histórico para o plano maravilhoso se faz através da

grandiloquência. (SILVA, 1987, p. 14)

Exemplifique-se ainda, com o romance de 30, a sintonia do narrador com a identidade

cultural nordestina, no momento em que, em diálogo sobre os cangaceiros, se evidencia a

conversa entre os meninos Carlos de Melo e Maria Clara sobre o transmudar, o encantar-se de

Antônio Silvino, seu disfarce em outros entes da natureza local, o que se entende como o

plano do maravilhoso, segundo a mítica alimentada pelo povo e resgatada por José Lins do

Rego: “As nossas conversas iam longe. Maria Clara indagava por Antônio Silvino. Então me

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derramava em histórias. O cangaceiro se encantava em bicho. Uma tropa vinha atrás dele, e o

que encontrava era um rebanho de carneiros”. (REGO, 1984, p. 140).

Além da ficção, que capta essas mostras da realidade, há a exata crença popular de que

os cangaceiros se utilizavam de rezas fortes que não só os livravam das investidas e das balas

inimigas, como os faziam sumir, se necessário. No imaginário popular essa mítica contribui

com a disseminação de histórias que enriquecem a travessia dos cangaceiros pelas gerações

que seguem:

O cangaceiro é um tipo supersticioso. Acredita na força mágica dos patuás, figas,

orações fortes. Aquele que conduz um amuleto está imunizado dos males exteriores

[...]. O matuto crédulo está convencido de que um cangaceiro detentor de oração

forte pode ad libitum transformar-se num toco, ou fazer que das espingardas que lhe

apontam caiam os fechos, ou então que em vez da carga de chumbo, saia um jato de

urina. (MONTENEGRO, 1973, p. 204-205)

Informa Aglae Lima de Oliveira a respeito da religiosidade, das superstições e das

crendices dos cangaceiros. Quanto às crendices de Lampião, repare-se nos detalhes:

O sal tinha certo mistério. Não se retirava do “rancho” sem deixar um pouco.

Evitava perseguição.

Quando bebia água, punha um pouco por trás da cabeça. Limpava e soprava os anéis

para atrair sorte. As horas preferidas por Lampião para suas orações eram 6 horas da

tarde, meio-dia e meia-noite em ponto.no seu retiro espiritual e nas igrejas, rezava de

olhos fitos nas imagens do altar. Desfiava as contas azuis e brancas de seu rosário.

Em cada mistério, uma medalha. [...] Tinha o pescoço cheio de bentinhos. [...]

Nesses saquinhos, fortes orações escritas e dobradas com uma hóstia consagrada,

furtada do sacrário, misturada com sangue do próprio bandido, e o oferecimento do

credo eram amuletos usados para fechamento do corpo. Lampião conduzia a Vida de

Cristo

de Papini. Jamais matou, torturou um padre. Nunca tirou dinheiro das igrejas, não

admitia tiroteio contra templos. (OLIVEIRA, 1970, p. 119)

Os cordelistas captam as crenças do imaginário popular e em versos traduzem a

desrealização dos fatos. O maravilhoso se dá em vários textos, o que representa a mitificação

perante o povo de seu herói. Dos cangaceiros tardios, a literatura de cordel dá conta da vida de

Antônio Tomás, (1910-1948), um dos últimos cangaceiros. Cearense, Tomás detinha caráter

místico muito forte, o que contribuiu para a literatura popular relatar em versos sua saga não

desvencilhada do elemento maravilhoso, já que esse cangaceiro, segundo a mítica popular,

não só tinha o dom de sumir como teve o pressentimento de sua própria morte. Os versos de

certo poeta que se assinava J. Q. S. C. Reis relatam:

[...]

A polícia muito ativa,

Vivia a lhe procurar,

Porém não acha ninguém

Que dissesse: - Eu vi passar!

Porque onde ele passava

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Era difícil se achar.

Sargento Gouveia um dia

Para a luta se preveniu,

Trouxe uma força volante

E atrás dele seguiu

Porém siquer na terra

Um rasto dele se viu.

[...]

Diziam que ele tinha

Ajuda de reza forte,

Notava a perseguição,

Vinda do sul ou do norte,

Se aparando num toco,

Estava isento da morte.

[...]

Um dia estava jogando

Ouviu o galo cantar,

Urgente parou o jogo

E foi-se a profetizar

Que a sua vida estava

Perto de se liquidar.

Retirou-se e foi dormir

E às quatro horas da tarde

Do dia sete de junho

Tornou, veio com brevidade,

Palestrando entre amigos

Com a mesma atividade.

Nisto chegou-lhe uma amigo

Estava em conversação;

Momento depois uma bala

Traspassou-lhe o coração,

Deu um ai por despedida

Caiu sem vida no chão. (REIS apud CASCUDO, 1982, pp. 41-43)

A vida que se levava no cangaço exigia que assim fosse, isto é, os perigos, as

correrias, a iminência da morte, os risco de ferimento, tudo convergia para a busca da

sobrenaturalidade, pois somente esse recurso servia como alento em, praticamente, toda a

trajetória que os bandos percorriam. Recorrer ao sagrado, e, misticamente, ao fechamento do

corpo era uma prática que acompanhava a história de todos os que fizeram parte do cangaço.

É interessante perceber que na trilha do cangaço não há espaço para a ausência da fé e da

crença, embora todos estivessem na contramão do sagrado e em contradição estupenda,

sobretudo, em relação ao 5.º Mandamento, o “não matarás”, bíblico, revelador da condenação

quanto à prática do tirar a vida ao outro.

O cangaço, entretanto, requeria, além de coragem pessoal, muito além da bravura, a

necessidade da crença, da superstição, da esperança na vida protegida por uma supremacia

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que se traduz na força de Deus, dos santos e de outras proteções a que os cangaceiros

recorriam sempre que lhes fosse possível. Buscar recursos de fé era pleitear a proteção para o

chefe e para todo o bando.

Entre tantos recursos de fé utilizados por Lampião está a interessante oração da “Pedra

Cristalina”, espécie de extrema proteção por envolver os vários símbolos do catolicismo

popular tão praticado por esse chefe cangaceiros e seus companheiros:

Minha pedra cristalina que no mar foste achada entre o cálice e a hóstia consagrada

teme a terra. Nosso Senhor Jesus cristo no altar. Assim teme os corações dos meus

inimigos quando olharem para mim, eu te benzo em cruz e não a mim.

Entre o Sol e a Lua e as Estrelas. As três pessoas distintas da Santíssima Trindade,

meu Deus, na travessia avistei meus inimigos, meu Deus, que faço com eles! Com o

manto da virgem Maria sou coberto e com o sangue de meu Jesus Cristo sou valido.

Se tem vontade de atirar, porém não atira, água pelo cano da espingarda correrá; se

tiver vontade de me furar, a faca da mão cairá. Se não amarrarem os nós, desatarão ,

e se me trancar as portas, se abrirão. (OLIVEIRA, p. 123)

Mas segundo ainda o imaginário popular, os bandos apelavam para outras forças, que,

embora sobrenaturais, fugiam aos padrões religiosos de tradição sertaneja e católica. Observe-

se como o capitão Virgulino agia quanto ao sobrenatural, o que, seguramente, ocorria aos

demais chefes:

Em tropelias e correias pelo sertão, em brigas individuais, em assaltos, em conflitos

de verdadeiras batalhas com 251 tropas do governo, Lampião pôde escapar de

emboscadas, de golpes de faca, e lances de punhal, de descargas de bacamarte, de

tiros de fuzil, de traições de amigos e inimigos; de ferimentos, doenças e males; de

maldições, esconjuras e de feitiços; de envenenamento, de mordidas de cobra e

bichos peçonhentas, graças à proteção do demônio, com quem fez pacto e à

salva­guarda das orações de fechamento de seu corpo. (TAVARES JR. s/d., p. 251)

Versos anônimos da cultura popular, especialmente, sobre Lampião, dão conta de sua

passagem em casa de um feiticeiro para o ritual de fechamento de corpo:

[...]

Foi à casa de Macumba

E ele fez o serviço

Feichou o corpo do rapaz

P´ra bala, faca e feitiço

Então disso a Lampião:

Não haverá valentão

Que pise no teu toutiço.

Primeiro ele sujeitou-se

A um serviço arriscado

Em um caixão de defunto

Passou uma noite trancado

O feitiço o ungiu

E quando ele saiu

Estava de corpo fechado.

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Disse-lhe o velho Macumba

Agora podes brigar

Bala não te fura o corpo

Faca só faz arranhar,

Feitiço não te ofende

E a polícia só te prende

Depois que eu acabar.

Porém, depois que eu morrer

Ficarás de copo aberto

Tudo pode acontecer-te

Deverás andar alerto

Pelos maus será vencido

Deves viver prevenido

Que a morte terás por certo. (ANDRADE apud TAVARES, s/d., p. 252-253)

Observe-se que o cangaceiro, ao ser acuado pelo diabo e ao sair da casa do feiticeiro

que lhe inicia no misterioso mundo da magia e do encantamento, busca a ajuda celeste num

ato eclético e não menos místico que envolve a fé católica. Valer-se dos santos nessas

ocasiões reflete enraizamento de típica da alma nordestina:

Aí o negro partiu

E disse vamos a ela

Você hoje vai comigo

Deixar pronta a panela;

Vou comer-te em panelada

Do fato faço buxada

E do sangue cabidela.

Lampião atirou nele

Mas quando a bala partiu

Na boca o negro aparaou-a

Cuspiu-a fora e sorriu

E disse: bala p’ra mim

É motivo de festim

Foi quem sempre me nutriu.

Então ele com punhal

Tentou furar o diabo

Porém a ponta da arma

Envergou até o cabo

Sem que lhe arrancasse o couro

Satanás por desaforo

Deu-lhe uns cascudos com o rabo.

Lampião ali benzeu-se

E chamou por São Cipriano

Dizendo ao santo, livre-me

Desse negro desumano

Disse o negro com espanto

Não precisa chamar santo

Por que eu mudei de plano.

Acalma-te Lampião

Que não mais te ofenderei

Machoca esses quatro dedos

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117

Que teu amigo serei;

Desejo ser um teu sócio

Vamos entrar em negócio

Pois eu te protegerei. (ANDRADE apud TAVARES, s/d., pp. 253-254)

Não é recente a prática do fechamento de corpo, dos amuletos e das crendices

populares. No período colonial brasileiro isso era uma experiência que remete aos índios,

sobretudo, aos tapuias que “tinham grande canalha de feiticeiros, agoureiros, bruxos e

curandeiros”, nas palavras de Simão de Vasconcelos. O fechamento do corpo, junto a outras

práticas de semelhante calibre, era recurso que buscavam todos os que disso necessitavam.

Folclorista da segunda metade do século XIX, até as duas primeiras décadas do XX, Pereira

da Costa informa:

[Os tapuias] Eram vários e ridículos o modo de dar os seus oráculos e adivinhar o

futuro, e como que endemoniados, revelavam o que lhes vinha à boca, com o

cérebro exaltado ou pelo efeito do tabaco, ou pelas libações de embriagante néctar

fabricado de folhas de jurema, a uns ameaçando de morte, a outros de boas ou de

más venturas, no que acreditava toda a gente [...]. além de todos esses prodígios do

mandingueiro, tem ele ainda o poder de fechar o corpo às pessoas, que, graças a

semelhante predicado, ficam livres e imunes de todos os males e perigos, da mais

certeira pontaria de uma arma de fogo e até mesmo do veneno das cobras. (PEREIRA DA COSTA, 2004, p. 126)

Corriqueiras no Nordeste eram as histórias de que os cangaceiros, famosos ou não,

traziam o corpo fechado. Justamente essa crença popular é o que garante o tom épico de suas

trajetórias, já que sua luta real frente aos inimigos e até ao meio em que viviam era subsidiada

pela crendice que se torna legendária. De qualquer forma, e em muitos momentos,

cangaceiros e volantes cediam devido às baixas de ambos os lados, porém o elemento

mítico/místico de heroísmo é unilateral. Pertence só aos bandos, pois a estes o povo tinha

como heróis que o representavam.

Ranulfo Prata faz descrição detalhada desse imaginário e das crendices e superstições

dos cangaceiros, sobretudo do cotidiano místico de Lampião:

A sua religiosidade é feita de um fetichismo bárbaro e abusões católicas, que se

condensam em um misticismo extravagante e selvagem.

Finge mais superstição do que possui, com o fim de criar em torno de si atmosfera

de mistérios e sobrenatural. Traz pendentes do pescoço, saquinhos encardidos,

bentinhos milagrosos, medalhas protetoras, e um grande Cristo em ouro maciço,

roubado a uma senhora da aristocracia rural de Pernambuco. Não esquece a oração

do meio-dia, hora má, como a da meia-noite, em que o diabo se solta para prender as

criaturas. Quando o sol se empina em raios verticais sobre a cabeça, a sombra

minguada aos pés, nos pousos, nas estradas, nos combates, ele verga os joelhos,

genuflexo, no chão duro, pende a cabeça humilhada, e, contrito, com a grande mão

ossuda e escura a bater no peito, reza com fervor.

Os companheiros, em torno, fitam-no cheios de estranho respeito. [...]

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118

Jamais desrespeitou um padre. Trata-os como pessoas sagradas, intocáveis,

merecedoras de respeito e garantias. Quando os topa pelos caminhos apea-se,

pressuroso, e humildemente lhes beija as mãos.

(PRATA, 1934, p. 225-226)

O poeta popular Elias A. de Carvalho, em cordel intitulado A morte de Lampião, de

1984, narra, entre outras peripécias, a do encontro de Lampião com seu maior inimigo, José

Saturnino, que, já sob a pena de morte, é salvo pela mãe, que apela pelo filho ao chefe

cangaceiro. Atendida, abençoa e fecha o corpo de Virgulino Ferreira:

[...]

Quando chega em Vila Bela,

Por capricho do destino,

Recebe a feliz notícia

Da volta de Saturnino.

Ia matar o desejo

De seu instinto canino.

Tá Saturnino e a mãe

Aparece Lampião.

Os cabras cercando a casa

E ele de fuzil na mão

Entrando de porta a dentro

Parecia um furacão.

Nem o diabo demovia

Lampião dessa vingança.

O homem que o atirara

Naquela maldita dança,

Da qual jamais sairia,

Não tinha mais esperança.

Saturnino aquela altura

Nada mais pode fazer.

Entrou no quarto da mãe

E lá trancado a tremer,

Procurava uma saída

Para escapar de morrer.

E sua mãe, dona Xanda,

Enfrenta a fera selvagem.

Colada à porta do quarto,

Para impedir-lhe a passagem,

Fala com o coração,

Amor materno e coragem.

– Virgulino, meu filhinho,

O que desejas comigo?

Diz Lampião, furioso:

– Nada pretendo contigo.

Sim, matar esse cachorro,

Que a senhora dá abrigo.

– Se teu caso é tirar a vida,

Tire a minha, deixe a dele.

Faça o que quiser comigo

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119

Mas, por Deus, não toque nele!

– Madrinha!... A senhora sabe:

Minha desgraça foi ele!

– Sei perfeitamente, filho.

Foste vítima da maldade.

É justa a tua revolta.

Mas a maior crueldade

Você faz a uma mãe

Que te tem muita amizade!

De fuzil engatilhado

Pra saciar seu intento,

Fita a madrinha e hesita

Diante do argumento.

As palavras da velhinha

Tocaram seu sentimento.

– Tá certo, minha madrinha

Pode ficar sossegada

Que a esse cachorro imundo

Eu não vou fazer mais nada!

Em seu rosto havia lágrima

De seus olhos derramada.

Depois de pedir-lhe a bênção

Se prepara pra partir.

Diz a velha: - Vá com Deus

que enquanto eu existir,

Nenhum de teus inimigos

Ousarão te destruir.

Nunca se soube se a velha

Gostava de bruxaria.

O que se soube é que ela

Em trinta e oito morria.

Meses depois, Lampião,

Também desaparecia. (CARVALHO, pp. 16-18)

Importa ventilar que esses elementos dão legitimidade à narrativa épica da literatura de

cordel, pois a invencibilidade dos cangaceiros traz os rudimentos suficientes para se elencar

as histórias fantásticas do imaginário popular. Manuel Diegues Jr. (Regiões culturais do

Brasil, 1960) aponta para a curiosa informação quanto às crendices vividas no cangaço:

No folclore, onde o cangaceiro ocupa todo um ciclo – o heroico – encontramos

muitos elementos que permitem ver o quanto o fanatismo está empregado nas gentes

sertanejas. As orações para benzimentos e curas são em grande número; não são

menos numerosas as destinadas a fechar o corpo, usadas principalmente pelos

cangaceiros [...] Entre os documentos encontrados nos despojos de Lampião, em

Angico, havia um ofício de Nossa Senhora que pertencia a Maria Bonita. (DIEGUES JR., 1960, p. 157)

Nos cantos épicos clássicos, de sabida natureza pagã, e até no renascentista Os

lusíadas, a presença de deuses, de porções mágicas, de seres sobrenaturais era a certeza de

auxílio ao herói, quando em apuros. Na mítica sertaneja, não só no que concerne aos

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120

cangaceiros, mas ao povo, todos praticantes de um catolicismo-popular, a certeza dessa

sobrenaturalidade se dá por transferência a Nossa Senhora, ao padre Cícero, às velhas

rezadeiras, às místicas mães dos cangaceiros com suas rezas fortes, segundo as crendices

populares.

Da mítica dos poderes sobrenaturais que acompanham os heróis, o cangaço não

escapou. Pressentir o inimigo, ver antes os acontecimentos, sentir quando se pode ou não

empreender uma marcha e até quando invadir um povoado, uma fazenda, é algo vivenciado

nos grupos cangaceiros. Sobre essa prática no bando de Lampião, informa Frederico

Pernambucano de Mello:

Conta-se que Lampião, seguindo as crenças do sertão, lia nas estrelas, sabia

compreender os fenômenos naturais suscetíveis de lhe anunciar um perigo ou uma

traição e também interpretar sonhos. O mugido intempestivo de um boi, os saltos

estranhos de uma cabra, os uivos incessantes de uma raposa nas noites sem lua, os

combates entre pássaros, o choque de um pássaro contra a aba do chapéu de um

cangaceiro, o pio da coruja nas noites silenciosas, o canto do galo fora das horas

habituais eram-lhe perfeitamente inteligíveis.

(MELLO, 1993, p. 93)

Da forte crença católica e popular de Virgulino Ferreira e de seu ecletismo dá conta

ainda Aglae Oliveira: Era do catolicismo antigo: lendas, superstições, rosários, ofícios, ladainhas, novenas,

horas marianas, missões abreviadas e lunário perpétuo.

O lunário perpétuo [...] merecia todo o respeito e crença.

Consultava o horóscopo; aconteciam as previsões. [...]

Lia o “magnífico’ e o ‘lembrai-vos, São Bernardo’ .

Diariamente, rezava o ofício de N. Sa. da Conceição. Em grandes aflições, recitava o

rosário apressado de N. Sa. da Conceição, fazendo cruzes na cabeça. O missal era

marcado por santinhos e cartões de visitas dos amigos. (OLIVEIRA, 1970, p. 120)

Toda essa mística levava o sertanejo a não se importar com a presença dos rastejadores

(profissionais comuns nos bandos e nas volantes), que tinham por função espreitar, medir,

procurar rastros da presença – dependendo de para quem trabalhavam – de um dos grupos,

para avisar do encalço das volantes aos cangaceiros, da perseguição destes contra aqueles. O

homem simples contemporâneo do cangaço preferia acreditar que esses avisos,

principalmente no que se refere ao cangaço, eram avisos sobrenaturais.

Fora ainda a inteligente estratégia dos enterros forjados para consequentes ataques aos

inimigos, às vilas, às pequenas cidades, as pegadas, com as sandálias dispostas ao contrário,

para despistar a polícia, as negociatas com a própria polícia, o fornecimento de armas e

munições, também por membros influentes dessa mesma polícia, que contribuiu para o

aguçamento da criatividade do povo, pois isso resulta, seguramente, na fusão dos elementos

míticos aos de realidade. Em outros termos, foi essa inteligente realidade de estratégias que

redundou em desrealização para se criar o mito. Diegues Jr. informa precisamente sobre

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121

Lampião: “Invariavelmente, os recursos de luta de lampião foram os de sempre, que se

praticavam nas caatingas. As idas e vindas, as pistas falsas, as alpargatas calçadas ao

contrário, deixando rastros em direção oposta à que se seguia” (DIEGUES JR., 1960, 156).

Desse modo, percebe-se que a ideia do cordel épico se sustenta na medida em que haja

subsídios teóricos que, confrontados, assegurem a matéria épica nele contida, a partir de

personagens que agreguem esses mesmos subsídios:

O personagem épico, para alcançar a qualificação do herói, terá de agenciar as duas

dimensões da matéria épica, isto é, além da necessária presença do fato histórico,

terá de pisar o solo do maravilhoso. Logo, é a aderência mítica que, estruturando o

maravilhoso do poema, confere a autenticidade épica do herói e do relato. (SILVA,

1987, p. 29)

Os cantos épicos disseminados pela literatura de cordel no Nordeste, sobretudo,

tornam os cangaceiros não apenas populares, mas fazem com que suas ações redundem em

imaginário que chega a uma realidade mítica local com todos os referenciais das instâncias

míticas universais, guardadas as proporções e as particularidades exatas daquilo que é

universal e do que é local.

Se o herói é aquele que aglutina a valentia, a ira e a luta contra a injustiça no ideário de

um povo, é também o que incorpora, além disso, a imagem do homem que enfrenta a

geografia em que vive, ao dar prova de resistência e obstinação no enfrentamento de

intempéries, no palmilhar as longas distâncias, no entregar-se aos humores da chuva ou do

sol, em embate terrível com a própria natureza. Nesse sentido, os cangaceiros representam o

herói ao agregarem e tomarem para si duas ferrenhas lutas: aquelas dos combates cotidianos,

motivos para os poetas disseminarem :

[...]

Muita gente já conhece

A história de Lampião

Que andou pintando o sete

Pelas terras do sertão

Seu nome era Virgulino

E com Antônio Silvino

Mostrou ser o campeão

Todo mundo já conhece

Sua história e seu passado

Porém existe detalhe

Que ainda não foi contado

E o poeta popular

Se apresenta pra contar

Deixando o povo informado

Sabemos que Lampião

Foi corajoso demais,

Não tinha medo de nada

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122

Por ser astuto e sagaz

Muito vivo e competente

De um sujeito valente

Andava 10 léguas atrás. (COSTA LEITE, p. 1)

E a outra luta é a do inevitável enfrentamento da imponente natureza. Esse destemor

não é outro, senão o do homem valente, do herói de feitura universal até, como se vê no

cordel Antônio Silvino, vida crimes e julgamento, com o maior e mais temidos dos animais

das florestas brasileiras:

[...] Esse rugido abalou a serra

Até o mais fundo reconco

Da furna; a serra tremeu

Desde o cimo até o tronco;

Percebi rapidamente

Que de uma onça era o ronco!

Então atirei na fera

Que sobre mim se lançou

E deu uma tapa no rifle

Que distante o atirou

E ouvindo o estampido

Mais assanhada ficou!

Dei um pulo para trás

E a pistola puxei,

Porém no mesmo momento

Que um tiro lhe disparei

Deu ela na arma outro tapa

E desarmado me achei! (BATISTA, p. 23)

Atente-se, porém, nos recursos que essa mesma natureza proporciona ao herói em seu

auxílio, que, sem a arma de fogo, tem a lua e o punhal como recursos imprescindíveis na luta

em que se envolve:

[...]

Felizmente nessa gruta

Entrava a luz do luar

E o solo era espaçoso...

Continuei a pular,

Me desviando da fera

Que me tentava agarrar!

Num desses saltos eu pude

Puxar da cinta o punhal,

E apertei-o na mão

Com uma ira infernal,

Dizendo: - se eu não morrer,

Mato esse audaz animal! (BATISTA, p. 24)

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123

Nessa passagem o herói se faz pela grandeza de matar sua agressora, apenas porque

em jogo está sua própria vida. O homem integrado, mas ameaçado pela natureza dá lugar ao

herói:

[...]

A onça era tão ligeira

Como o raio de um clarão!

Eu não voava, porém

Mal sentava os pés no chão!

Compreendi que em mata-la

Estava a minha salvação.

E quando a fera avançou

De arma em punho esperei,

E então ao pé da goela

Tal punhalada lhe dei,

Que o punhal enterrado

Dentro dela abandonei. (BATISTA, p. 24)

A grandiosidade do herói em meio à natureza e diante do animal feroz se estabelece

quando, nos estertores da morte, os rugidos da onça abalam as serras, estremecem a natureza

e ainda ameaçam esse herói desprovido de armas:

[...]

A onça ao ver-se ferida,

Um enorme salto deu,

Rugindo com tanta força,

Que a serra estremeceu.

Então por sobre o lajeado

O corpo em cheio estendeu...

Enraivecida, rugindo,

Tentava se levantar,

Procurando em vão com os dentes

A arma do peito arrancar,

E eu, desarmado, temia

Que ela voltasse a lutar. (BATISTA, p. 24)

Note-se na ferrenha luta a igualdade dos pares e o heroísmo de ambos, embora a

narração faça do cangaceiro, por fim, verdadeiro herói, pois esse é o foco:

[...]

Quando a fera se aquietou,

Da gruta me retirei,

E todo o resto da noite

Noutra furna repousei.

Somente pela manhã

Meus companheiros busquei.

E reunido ao meu grupo,

Nessa furna penetramos:

A onça morta a um canto

Logo ao entrar encontramos:

Minha pistola e meu rifle

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124

Ambos quebrados achamos.

Vi que no peito da fera

O punhal estava enterrado

E reparei que meu rifle

Tinha o coice esfacelado!

A pistola achei-a longe,

Com o gatilho quebrado.

Então do peito da onça

O meu punhal arranquei,

E o sangue que ensopava

Logo em um lenço limpei.

Depois com muito cuidado,

Eu a onça examinei... (BATISTA, p. 24)

Por fim, nessa quarta estância da mostra anterior, dá-se um fato interessante e que

remete à centelha humana do herói: seu cuidado e cautela ao examinar o animal. Se a face

heroica, divina, enfrentou a fera e reagiu com absoluta segurança, a humana refletiu, foi

cuidadosa, temeu. O detalhado da descrição da onça, no entanto, fecha a narrativa de bravura

que caracteriza o herói:

[...]

Era uma onça pintada,

De formas descomunais

Os dentes ponteagudos,

Unhas longas, desiguais;

Tinha os músculos dianteiros

Mais grossos que os demais. (BATISTA, p. 25)

Nos passos declinados acima, faz-se necessário perceber que o poeta se utiliza de

recursos da cor local: a onça, as furnas, as grutas, a própria natureza sertaneja, o que denota

tratar o herói local como representatividade do povo igualmente local.

Bandoleiros famosos, a exemplo de Antônio Silvino – um dos mais importantes –, e de

outros igualmente antigos e famosos como Jesuíno Brilhante, Adolfo Rosa Meia-Noite,

Viriato, todos do século XIX ou da transição para o XX, dos quais e de cujas façanhas o povo

sempre teve conhecimento tanto por meio oral como pela leitura de folhetos, romances –

como também são chamados – ou modernamente, literatura de cordel, tornaram-se

responsáveis por cerzir todas essas histórias, legando-as, pelo relato escrito, à posteridade. Os

mais antigos foram trazidos à tona pelos poetas de seu tempo e, para que o povo não os

esquecesse, a musa do cordel dos anos que se seguiram continuou a abordar e a popularizar

nomes mais jovens surgidos já no século XX e que fizeram história, como José Leite de

Santana, de alcunha Jararaca, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, Cristino Gomes da

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125

Silva Cleto, o Corisco e tantos de seus companheiros que se destacaram entre os anos 20, 30 e

40 do século passado.

Para escrever a saga do cangaço, os poetas contemporâneos dos bandidos, a exemplo

de um Francisco das Chagas Batista, um Leandro Gomes de Barros, um João Martins de

Ataíde, entre outros anteriormente citados, utilizavam a primeira pessoa do discurso para dar

voz aos cangaceiros, o que para Mark J. Curran (1973) tinha por função criar realismo na

narração (p. 307).

Com efeito, leve-se em conta o embasamento mais bem fundamentado de Ronald

Daus, (1982) para quem os poetas tomados de autodefesa se utilizavam do recurso de primeira

pessoa com o fim de ressaltar a visão de mundo do próprio cangaceiro para dar o tom épico

aos textos (p. 21). É como se a muralha da primeira resguardasse os poetas na abordagem de

tema tão polêmico:

Os textos do ciclo dos cangaceiros diferenciam-se de todos os outros da poesia épica

nordestina por uma particularidade formal: os escritores empregam muito

frequentemente a 1ª pessoa do singular na narrativa dos acontecimentos.

Originalmente isto tinha a ver sem dúvida como medo de represálias: se louvassem

de forma pública o procedimento do cangaceiro, teriam de temer atos de vingança

da polícia. Caso censurassem o cangaceiro, não passariam melhor: os amigos dele o

perseguiriam tenazmente. Salvaram-se desse dilema, redigindo seus textos de forma

que não pudesse comprometê-los: o próprio protagonista conta sua história. (DAUS,

1982, p. 21)

Como a narrativa nesses cordéis pioneiros não se faz de distâncias no tempo e no

espaço, conforme convém ao texto épico, o espaço-tempo no rastro das alpercatas conduziu o

poeta a aguçar a inteligência, a fim de não perder a oportunidade de narrar os fatos, porém

sem deixar abertura para censuras, castigos ou perseguições que pudessem vir a sofrer.

Desse modo, tanto as forças volantes quanto os cangaceiros poderiam usar de

arbitrariedade contra os poetas. Para se resguardar, já que suas narrativas são tecidas sob a

quentura dos fuzis de cangaceiros e soldados, esses mesmos poetas colocaram os cangaceiros

para narrar suas façanhas. Como na épica do cordel dos primeiros momentos o cangaceiro era

um herói quase instantâneo e sua saga se fazia no quente da notícia, diferentemente do herói

clássico que leva tempo para tomar forma, o poeta procurava a melhor maneira de dar a essas

histórias a tonalidade épica na mesma medida das ações dos cangaceiros tanto no tempo

quanto no espaço. E como se houvesse uma urgência por criar heróis, na medida em que é

urgente a afirmação do meio em que circulam os cangaceiros: um Nordeste carente de tudo e

para o qual falta um referencial popular e notório do porte dos grandes cangaceiros,

idealizados segundo o clamor por força, justiça, valentia e heroísmo.

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126

Criar, consciente ou inconscientemente, um ser épico que, herói do relato, conte ele

mesmo suas aventuras, é aparentemente, fugir da natureza épica do relato que deveria se dar

em terceira pessoa, segundo a proposta da matéria épica marcada pelo distanciamento espaço-

temporal e que, por isso, lega suficiente liberdade ao poeta para narrar os acontecimentos. No

entanto, é nessa aparente fuga que está o exato espaço de liberdade de que o poeta necessita,

pois se o cordel épico havia de cantar o contraditório herói cangaceiro, que fosse sem fazer

soar o risco de que estaria a exaltar o crime.

Para fundamentar a ideia de que poetas ou quem ousasse veicular as lidas de bandos

poderiam sofrer represálias tanto do estado e de seus agentes quanto dos cangaceiros, é

importante trazer à tona o episódio que envolve as filmagens do bando de Lampião nos anos

de 1930, levadas a cabo pelo sírio Benjamin Abrahão. Primeiramente, segue Benjamin as

trilhas do rei do cangaço com a finalidade de conseguir a devida autorização para filmar o

bando. Empreitada de risco, que o imigrante não temeu, e, finalmente, seu intento foi

cumprido. Em texto escrito por Lampião a Benjamin se veem os contornos do que pensava

Virgulino Ferreira quanto a questões que envolvessem seu nome e o bando por ele

comandado. Em texto transcrito conforme o original, assim se lê:

Ilmº Sr. Benjamin Abrahão

Saudações

Venho lhi afirmar que foi a primeira peçoa que conseguiu filmar eu com todos os

meus peçaol cangaceiros, filmando assim todos os muvimento da noça vida nas

catingas dus sertões nordestinos.

Outra peçoa não conciguiu nem conciguirá nem mesmo eu concintirei mais.

Sem mais do amigo

Capm Virgulino Ferreira da Silva

Vulgo Capm Lampião (MELLO, 2012, p. 171).

Quanto ao Estado, o periódico Correio do Ceará de 7 de abril de 1937 divulgava o seguinte

telegrama:

Tendo chegado conhecimento Departamento Nacional de Propaganda estar sendo

anunciado, ou exibido na capital ou cidades do interior desse Estado, um filme sobre

Lampião, de propriedade da Aba-Film, com sede na Rua Major Facundo, solicito

vos digneis providenciar no sentido de ser apreendido imediatamente o referido

filme, com todas as cópias, e respectivo negativo, e remetê-los a esta Repartição,

devendo ser evitado seja o mesmo negociado com terceiros e enviado para fora do

país.

Atenciosos cumprimentos – Lourival Fontes, Diretor do Departamento Nacional de

Propaganda do Ministério da Justiça

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Motivos como esses levavam os poetas populares a caminharem na mesma direção: a

da autodefesa em relação a uma e a outra instância. Não se havia de desafiar um estado

repressor nem de ficar vulnerável à sanha dos cangaceiros em sendo seus textos por eles não

compreendidos. A marca do discurso em primeira pessoa não se faz presente apenas nos anos

do Departamento Nacional de Propaganda da era Vargas. Francisco das Chagas Batista

empresta voz em primeira pessoa a Antônio Silvino ainda no início do século XX:

[...]

Leitor, em versos rimados

Vou minha história contar,

Os crimes que pratiquei

Venho agora confessar.

Jurando que da verdade

Jamais me hei de afastar.

Pedro batista de Almeida

E Balbina de Morais,

Casados catolicamente,

Foram meus legítimos pais,

Nascidos em Pernambuco

E do Pajeú naturais.

Nasci em setenta e cinco,

Num ano de inverno forte,

No dia dos de novembro,

Aniversário da morte

Por isso o cruel destino

Deu-me de bandido a sorte. (BATISTA, p. 1)

Note-se que o poeta resolveu inteligentemente a peleja com o tempo e o espaço a ele

tão próximos, ao utilizar do recurso discursivo a que se pode chamar de Eu épico, mecanismo

poético-discursivo que agrega características de poema épico, mas que não pode se narrado

em terceira pessoa, conforme é próprio desse texto. Adotar o termo é considerar que o poeta

levou a um grau particular o sentido da épica no cordel, principalmente no início do século

XX, a partir de um ponto de vista narrativo que se dá segundo o olhar do cangaceiro, e nunca

ou quase nunca do poeta narrador.

Centrar a narrativa em primeira pessoa era garantir que não se incorreria no fardo da

acusação de ser o poeta um delator dos cangaceiros, pois ao bando o texto poderia trazer

pistas e até ser motivo de estratégia para as forças volantes. De outra feita, o mesmo poeta

poderia sofrer perseguição das volantes por seu cantar vir a ser entendido como de apologia

ao crime. Desse modo, apesar da intenção de escrever um poema épico, as penalidades por

que os poetas passariam poderiam vir tanto de um lado, o dos fora da lei, quanto do outro, o

das forças policiais, que rechaçavam impiedosamente a quaisquer atitudes de simpatia por

cangaceiros.

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A dinâmica que a literatura de cordel sempre apresentou no que respeita aos relatos

sempre contíguos aos acontecimentos ou fatos, a rápida feitura do texto, seu baixo custo de

impressão, e, consequentemente, seu baixo preço, sua ligeira disseminação poderiam trazer

subsídios seguros para uma força volante da conta do paradeiro de determinado bando. O

cordel, praticamente informação jornalística, daria conta de noticiar fatos ou de exaltar atos,

concomitantemente, e de acordo com os olhos e a intenção de quem o lesse. Narrar as

façanhas empreendidas por grupos de cangaceiros era se limitar com patentes perigos. Os

poetas não ousariam cair nas mãos de um ou de outro grupo.

Veja-se como Leandro Gomes de Barros, em As proezas de Antônio Silvino, apresenta

o cangaceiro a narrar suas aventuras e desventuras. O texto é de 1908 e traz um eu entre

resignado e a busca do senso de justiça:

[...]

Eu como já estou perdido

Minha vida não tem jeito

Vou mesmo com a desgraça

Que d’ella tiro do peito

Com Ella já não espanto

Da desgraça almoço e janto

Com Ella como e me deito.

Na Parahyba do Norte

Eu sou vigário collado

No Rio Grande do Norte

Eu sirvo de advogado

Em Pernambuco sou tudo

Lá já fiz fallar um mudo

Fiz correr um aleijado.

Eu hoje podia ser

Um distinto cavalheiro

Mas a justiça faltou-me

Devido a não ter dinheiro,

Meu pai foi assassinado

Eu para me ver vingado

Fiquei sendo cangaceiro.

Eu achei um desaforo

Uma falta de ação

Um cabra matar meu pae

E não dá satisfação

Matei e o fiz em postas

Abri ele pellas costas

Arranquei-lhe o coração. (BARROS, pp. 1-2)

Ao dar voz a Silvino, o poeta delega-lhe tom autobiográfico e se exime de qualquer

responsabilidade quanto aos detalhes mais pesados, densos, da narrativa. Na sua voz, o

cangaceiro deixa patente o motivo de se ter tornado cangaceiro, o que confirma sua real

história, segundo os documentos que atestam sua biografia. O realismo de que falou Mark

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129

Curran se apresenta mais dramático e faz a imagem de Antônio Silvino ter boa passagem

entre os leitores/ouvintes de Leandro Gomes de Barros. A coloração que o poeta dá à

narrativa configura o heroísmo que o cangaceiro adquire durante sua atuação.

A ideia de justiça que Antônio Silvino defendia era a justificativa para sua

permanência no cangaço. O fato de ser tido como “um distinto cavalheiro” termina por levar a

comoção popular a entendê-lo como um homem que pensava o bem comum, primava pela

igualdade e tinha na Justiça a instância que deveria ter isenção no trato com os cidadãos,

independentemente do extrato social a que pertença, e não como entidade de olhar unilateral,

e que se faz conivente com os grandes senhores de terra, com as classes privilegiadas, com o

alto comerciante e o político de influência. Esse viés demanda a ideia de que a Justiça estaria

a serviço dos que dispõem de poder social, político, econômico. Em outras palavras, que

funciona de acordo com o que se teria a oferecer.

No cordel A política de Antônio Silvino, esse sentimento de justiça se faz presente com

a ideia de o cangaceiro, em tendo poder político, promover uma sociedade cujos bens sejam

comuns:

[...]

A terra será em comum,

Todos se apossarão,

Ninguém pagará mais foro

Para fazer plantação:

Não haverá nesse tempo

Nem criado nem patrão.

Será geral igualdade

Todos hão de ter direito,

O que foi rico, terá

Ao que foi pobre, respeito.

O graúdo senhor de engenho

Irá trabalhar no eito. (BATISTA apud. DAUS, 1982, p. 130)

Francisco das Chagas Batista continua com o empréstimo da voz do eu a Antônio

Silvino, que se apresenta como aquele que vem em honra do pai, vingá-lo de assassinado

(como já mencionado anteriormente), já que à Justiça não coube cumprir sua missão.

Esse eu que se conta em exaltada voz épica só o faz porque o poeta não se concede

construir seu poema épico com base numa terceira voz. O que se mostra interessante, porém,

é que o texto, apesar do eu, não permite ao leitor atento enxergá-lo fora de uma concepção

épica. Perceba-se o tom elevado, na medida do possível, do cangaceiro, que tenta explicar a

atitude nem tanto “por instinto”, de honrar o sangue paterno:

[...]

Não foi tanto por instinto

Mas sim, por uma vingança

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130

Porque mataram meu pai

Minha única esperança

E eu vingar sua morte

Para mim era uma herança.

[...]

Para a punição do crime

Ninguém se apresentou

A justiça do lugar

Também não se interessou

Inda hoje tenho em suspeita

Que ela ao crime auxiliou.

[...]

Eu chamei pela justiça

Esta não quis me escutar

Me vali do bacamarte

Vi esse me auxiliar

Nele achei todas as penas

Que um código pode encerrar. (BATISTA, pp. 4-5)

Os versos acima são do cordel O interrogatório de Antônio Silvino e trata do ingresso

do bandoleiro no mundo do cangaço e dos motivos dessa atitude. Há de se convir, entretanto,

que a herança de que fala Silvino soa com ironia se a palavra for cogitada não somente como

vingança pela perda do pai, mas como algo duplamente grandioso, o que inclui a real

vingança pelo sangue de seu genitor, mas também o desafiar o próprio estado com sua

ausência de justiça. O sentimento de justiça, não feita a quem de direito, termina por remeter

o indivíduo a agir segundo suas forças e seu senso pessoal de justiça. No discurso do

cangaceiro, sua força vem mesmo do bacamarte que o auxilia, já que a lei não encerra os

códigos contidos nela.

Ao lidar com o imaginário tanto seu como do leitor/ouvinte, os poetas populares

transmitiam a esse mesmo leitor/ouvinte o conceito de que o cangaceiro, por sua busca e sede

de justiça, só cometia atrocidades em havendo motivo muito superior, a exemplo das

inimizades que plantava em sua trajetória: não matavam, não usurpavam sem necessidade.

Não roubavam honra. Todos os chefes de bando, no âmbito do real ou do imaginário sempre

orientaram seus comandados a respeitarem as mulheres, as crianças, os idosos.

Sobre a honra de mulheres e quanto às causas dos roubos, aconselhava Lampião a seu

grupo: [...] respeitem as moças e mulheres casadas. [...] Tirem dos ricos e deem aos pobres.

(Cf.: ARAÚJO, 1985, p. 90). A mítica do cangaço se configura, além do mais, quando seus

chefes orientam a distribuição aos pobres daquilo que dos ricos se tirou.

Essa bondade traz à mentalidade do povo a ideia de que o cangaceiro está ao seu lado

para sua defesa e proteção. O poeta percebe essa nuança e na sua poética é natural o destaque

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131

ao cangaceiro herói. Se o poeta representa seu povo, se seu canto deve ser coletivo por

conceber a vontade das gentes sertanejas por um referencial mítico, de suas mãos brotam

esses heróis a reverter a ordem, embora seja próprio dos heróis revertê-la. Heróis às avessas e

do seu jeito, se não trouxeram uma paz nordestina nem a justiça desejada, seus embornais

floridos foram motes para a poesia e o sonho.

2.4. CATÁBASE: A DESCIDA AO INFERNO. A SUBIDA AO BOM SERTÃO

“Desçamos ao mundo onde nada se vê”

(“Castelo dos iluminados”, Dante Alighieri, em A

divina comédia)

O mito, no sentido que apontamos a partir de textos da literatura de cordel, e em

relação aos cangaceiros, não é aquele à semelhança do que os gregos apresentam. Primeiro, o

tempo é outro; segundo, a proposta é também outra, pois uma foi tornada clássica, a outra,

popular. Para os gregos, o mito tem por função disseminar valores e feitos que seus heróis

representam como a luta em meio às tormentas, as vitórias, a coragem, a astúcia, a

persistência. No mito do cangaço, há valores que até se assemelham aos que os gregos

propunham, porém não há uma unanimidade nessa direção, o que torna os cangaceiros

bandidos para alguns e heróis para outros. A se levar em conta o primeiro argumento, os

cangaceiros não são exemplares, portanto, não representariam o mito. Levando-se em conta o

segundo argumento, representariam o herói, pois este guarda defeitos e virtudes para

representar seu povo: a astúcia, a coragem e a garra são as qualidades que tornam mitos os

cangaceiros, no enfrentamento das adversidades por que sempre passaram.

Na Eneida, livro VI, Eneias estabelece interessante diálogo com a Sibila de Cumes:

Não há provação, ó virgem, que apresente diante de mim um aspecto novo ou

inesperado; tudo imaginei e com antecipação estudei em meu espírito. Só peço uma

coisa: uma vez que é aqui, segundo dizem, a porta do rei do inferno e o tenebroso

Paul, transbordamento do Aqueronte, que me seja permitido ir à presença de meu

querido pai e com ele entreter-me; ensina-me o caminho e abre as portas sagradas. (VIRGÍLIO, s/d., p. 96)

Nas epopeias ocidentais, principalmente as greco-romanas, a menção ao inferno ou

mundo subterrâneo ou das sombras é constante. Metáfora das dificuldades por que tem de

passar o herói, o inferno será sempre o limite, linha tênue entre a angústia e a vitória. A

primeira se dá porque é a estada temporária do herói no Hades; a segunda, porque de lá

regressa. Espaço de aprendizado e de colher experiência, o inferno é a porta do saber, pois é lá

que estão os antepassados: Ulisses, Eneias, Dante, todos, guardadas as proporções e

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diferenças, vão buscar no passado ou na tradição orientações, a partir das quais rumarão seus

caminhos. A condição divina do herói decorre de, ainda que mortal, descer ao inferno e de lá

regressar:

Andei – prosseguiu Ulisses – mais tempo ainda no convívio das sombras. Mas tantas

me perseguiram, tantas me interrogaram, chamando, gritando, chorando, que o medo

tomou-me e resolvi fugir-lhes. Por isso regressei à luz e à alegria da vida, e ordenei

aos meus marinheiros que pegassem nos remos e que remassem depressa. Logo que

o navio sulcou as águas do Oceano, o reino da morte se escondeu no horizonte

fugidio do mar. (HOMERO, s/d., p. 74)

Em A Divina comédia, Dante aborda a temática do inferno na busca do pagão Virgílio,

seu guia, diante do qual treme:

Quando eu me encontrava na metade do caminho de nossa vida, me vi perdido em

uma selva escura, e a minha vida não mais seguia o caminho certo. Ah, como é

difícil descrevê-la! Aquela selva era tão selvagem, cruel, amarga, que a sua simples

lembrança me traz de volta o medo. Creio que nem mesmo a morte poderia ser tão

terrível. Mas, para que eu possa falar do bem que dali resultou, terei antes que falar

de outras coisas, que do bem, passam longe.

Eu não sei como fui parar naquele lugar sombrio. Sonolento como eu estava, devo

ter cochilado e por isso me afastei da via verdadeira. Mas, ao chegar ao pé de um

monte onde começava a selva que se estendia vale abaixo, olhei para cima e vi

aquela ladeira coberta com os primeiros raios do sol. A cena trouxe luz à minha

vida, afastou de vez o medo e me deu novas esperanças. Decidi então subir aquele

monte. Olhei para trás uma última vez, para aquela selva que nunca deixara uma

alma viva escapar, descansei um pouco, e depois, iniciei a escalada. (ALIGHIERI,

2002, p. 9)

Na literatura de cordel, especificamente, nas narrativas sobre o cangaço, a presença do

mundo subterrâneo ou do inferno passa a ser constante. O primeiro texto de que se tem notícia

sobre essa temática é a A chegada de Lampião no inferno, do poeta José Pacheco da Rocha. A

narrativa dá conta da visita que faz Lampião ao inferno. De forma humorada, segundo a

natureza popular da poética do cordel, o texto acontece em cenário do cotidiano de uma

cidade qualquer, com seu comércio, seus armazéns, suas casas de armas, seus vigilantes, seus

escritórios, a exemplo de qualquer cidade com sua vida comum e normal. O poeta transfere a

realidade vivida no espaço da cidade e a recria no inferno, recinto para o qual Lampião é

destinado, para, como os personagens clássicos, adquirir a condição de herói.

Narrado em terceira pessoa, o texto é escrito segundo a ótica de um cangaceiro que

volta do inferno para assombrar o sertão, e dá conta de como a fronteira entre a terra e o

inferno foi cruzada por Lampião, que teve que, sozinho, superar as dificuldades para descer e

alcançar o mundo subterrâneo:

Um cabra de Lampião

Por nome Pilão Deitado

Que morreu numa trincheira

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133

Em certo tempo passado

Agora pelo sertão

Anda correndo visão

Fazendo mal-assombrado.

E foi quem trouxe a notícia

Que viu Lampião chegar

O Inferno nesse dia

Faltou pouco pra virar

Incendiou-se o mercado

Morreu tanto cão queimado

Que faz pena até contar. (PACHECO, p. 1)

O cangaceiro enfrenta, pelas próprias forças, como é comum ao herói, o primeiro

obstáculo representado pelo porteiro do inferno, que lhe proíbe a entrada, com a alegação de

que tem de cumprir ordens superiores:

Vamos tratar da entrada

Quando Lampião bateu

Um moleque ainda moço

No portão apareceu:

- quem é você, cavalheiro?

- Moleque, eu sou cangaceiro;

Lampião lhe respondeu.

- Moleque, não; sou vigia

E não sou seu parceiro

E você aqui não entra

Sem dizer quem é primeiro...

- Moleque, abra o portão

Saiba que eu sou lampião

Assombro do mundo inteiro! (PACHECO, p. 2)

O diálogo tenso entre Lampião e o vigia leva este a consultar o grande chefe para

saber como agir diante do cangaceiro, e se lhe permite a entrada no inferno:

[...]

Então esse tal vigia

Que trabalha no portão

Dá pisa que voa cinza

Não procura distinção

E o negro escreveu não leu

A macaíba comeu

Ali não usa perdão.

O vigia disse assim:

Fique fora que eu entro

Vou conversar com o chefe

No gabinete do centro

Por certo ele não lhe quer

Mas conforme o que disser

Eu levo o senhor pra dentro.

Lampião disse: vá logo

Quem conversa perde hora

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134

Vá depressa e volte já

Eu quero pouca demora

Se não me derem ingresso

Eu viro tudo asavesso

Toco fogo e vou embora. (PACHECO, pp. 2-3)

Percebe-se que, ao descer ao inferno, o herói mantém a mesma intolerância com que

viveu na terra. Apesar do humor do texto, Lampião é colocado como se não percebesse que

mudou de dimensão, o que denota que sua valentia integra a memória popular como a daquela

que enfrenta qualquer espécie de poderoso. Consciente, ou inconscientemente, o poeta deixa

transparecer que, se o inferno que o cangaceiro viveu na terra não lhe foi menos duro e cruel,

e ao qual desafiou sem fugir, na mansão inferior, esse enfrentamento não poderia ser diferente

nem decepcionante. Virar o inferno às avessas e incendiá-lo é desafiá-lo e demonstração de

que não há perigo que o cangaceiro tema.

A anunciação pelo vigia de que Lampião aguarda ordens para entrar no inferno deixa o

chefe do inferno perturbado e irredutível. A graça do texto fica por conta do medo do diabo de

perder para o cangaceiro, o que acaba ocorrendo. A ironia de só chegar gente ruim ao

inferno, o desejo de expulsar boa parte dos que já se encontram lá, o julgamento que Satanás

faz do bandido para impedi-lo de cruzar o tenebroso portão revelam a grandeza do nome do

fora da lei. Virgulino Ferreira é nome historicamente internacional por sua valentia e

atrocidades; desse modo, não justifica, segundo o chefe da escura mansão, a estada do

cangaceiro naquele local. Diante da fala do vigia, as reações de seu chefe são as mais

inusitadas:

[...]

O vigia foi e disse

A Satanás no salão

Saiba vossa senhoria

Que aí chegou Lampião

Dizendo que quer entrar

E eu vim lhe perguntar

Se dou-lhe ingresso ou não.

- Não senhor! Satanás disse

Vá dizer que vá embora

Só me chega gente ruim

Eu ando muito caipora

Eu já estou com vontade

De botar mais da metade

Dos que tem aqui pra fora.

- Lampião é um bandido

Ladrão da honestidade

Só vem desmoralizar

A nossa propriedade

E eu não vou procurar

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Sarna para me coçar

Sem haver necessidade.

Disse o vigia: patrão

A coisa vai se arruinar

Eu sei que ele se dana

Quando não puder entrar

Satanás disse: isto é nada

Convide aí a negrada

Leve os que precisar.

- Leve cem dúzias de negros

Entre homem e mulher

Vá na loja de ferragens

Tire as armas que quiser

É bom avisar também

Para vir os negros que tem

Mais compadre Lucifer. (PACHECO, pp. 3-4)

Nesse sentido, é pertinente que se verifique uma colocação de Hannah Arendt quanto à

questão de como a impossibilidade do diálogo desdobra certos acontecimento e o que disso

decorre:

As armas e a luta pertencem à atividade da violência, e a violência, distinguindo-se

do poder, é muda; a violência tem início onde termina a fala. Quando usadas com o

propósito de lutar, as palavras perdem sua qualidade de fala; transforma-se em

clichês. O modo como os clichês instalaram-se em nossa linguagem cotidiana e em

nossas discussões, pode ser um bom indicador não só do ponto a que chegamos ao

nos privarmos de nossa faculdade da fala, mas também de nossa presteza para usar

meios de violência mais eficazes para impor nossos argumentos. (ARENDT, 1995,

p. 22)

A partir do que afirma a filósofa alemã, entende-se que Lampião, embora irônico,

tenta estabelecer diálogo, primeiro com o vigia, e posteriormente, com o superior do inferno,

por intermédio desse mesmo guarda e têm frustrados seus planos, devido ao irredutível chefe.

Nesse sentido, a fala perde o valor, soa como o clichê mencionado por Arendt, pois passa a

lugar comum, por tornar-se repetição, o que resulta perda de força argumentativa.

Nas estrofes imediatamente anteriores, percebe-se o que seria a possibilidade de

diálogo. Nas que seguem, é perceptível o exato momento em que, não havendo essa troca de

comunicação, recorrem ambos os lados à violência, o que leva à conclusão de que respostas

pelas armas decorrem do esvaziamento de diálogos. A não aceitação de uma conversa

deflagra o conflito que se dá tanto por meio de armas quanto com recursos outros como paus,

pedras, as próprias mãos, os braços, apetrechos do cotidiano, o que manifesta a

irracionalidade da lida de violência:

[...]

E saiu a tropa armada

Em direção ao terreiro

Com faca, pistola, facão

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Cravinote e grandeiro

Uma negra também vinha

Com a trempe da cozinha

E pau de bater tempero.

Quando Lampião deu fé

Da tropa negra encostada

Disse: só na Abissínia

Oh! Tropa preta danada!

O chefe do batalhão

Gritou de arma na mão

- Toca-lhe fogo, negrada!

Acabou-se o tiroteio

Por falta de munição

Mas o cassete batia

Negro rolava no chão

Pau e pedra que achavam

Era o que as mãos achavam

Sacudiam em Lampião.

- Chega traz um armamento!

(Assim gritava o vigia)

Traz a pá de mexer doce

Lasca o gancho de caria

Traz um birro de Macau

Corre, vai buscar um pau

Na cerca da padaria!

Lúcifer mais Satanás

Vieram olhar do terraço

Todos contra Lampião

De cacete, faca e braço

O comandante no grito

Dizia: briga bonito

Negrada, chega-lhe o aço.

Lampião pode apanhar

Uma caveira de boi

Sacudiu na testa dum

Ele só fez dizer, oi...

Ainda correu dez braças

E caiu enchendo as calças

Mas eu não sei de que foi. (PACHECO, pp. 5, 6 – 7)

É possível que, por influência judaico-cristã, o poeta recorra ao mito de Sansão, em que,

num momento inusitado e até gracioso, o herói dos hebreus se utiliza do improvável, quando,

segundo o relato bíblico, seus conterrâneos o entregam ao povo filisteu. Num lance próprio do

herói, e com ajuda sobrenatural, Sansão se liberta das amarras que o prendiam e age:

Três mil homens de Judá desceram então à caverna da rocha de Etã e disseram a

Sansão: "Você não sabe que os filisteus dominam sobre nós? Você viu o que nos

fez?"

Ele respondeu: "Fiz a eles apenas o que eles me fizeram".

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Disseram-lhe: "Viemos amarrá-lo para entregá-lo aos filisteus".

Sansão disse: "Jurem-me que vocês mesmos não me matarão".

"Certamente que não!", responderam. "Somente vamos amarrá-lo e entregá-lo nas

mãos deles. Não o mataremos." E o prenderam com duas cordas novas e o fizeram

sair da rocha.

Quando ia chegando a Leí, os filisteus foram ao encontro dele aos gritos. Mas o

Espírito do Senhor apossou-se dele. As cordas em seus braços se tornaram como

fibra de linho queimada, e os laços caíram das suas mãos.

Encontrando a carcaça de um jumento, pegou a queixada e com ela matou mil

homens.

Disse ele então:

"Com uma queixada de jumento

fiz deles montões.

Com uma queixada de jumento

matei mil homens". (LIVRO DE JUÍZES, Cap. XV, vv. 11-16)

Lampião também vive episódio semelhante, embora segundo a visão humorada do

poeta: [...]

Lampião pode pegar

Uma caveira de boi

Sacudiu na testa dum

Ele só fez dizer, oi...

Ainda correu dez braças

E caiu enchendo as calças

Mas eu não sei de que foi. (PACHECO, p. 7)

Uma carcaça de boi é também algo simbólico em relação ao espaço de que o

cangaceiro procede. Mais uma vez, o poeta se utiliza de experiências cotidianas da vida

sertaneja para compor, por transferência, o cenário da luta de Virgulino Ferreira no inferno.

Peças como caveiras de boi, de jumentos e assemelhados já compunham a paisagem de

representação de morte tanto para o leitor como para o cangaceiro. Se, diferentemente de

Sansão, que, segundo a lenda, matou mil homens com a queixada de jumento, a morte de

apenas um, no inferno, com artimanha que se assemelha à do personagem bíblico, denota a

necessidade de se sair de situações as mais variadas com os recursos de que se dispõem,

mesmo que da forma mais inusitada. Matar um ou mil não faz diferença para quem enfrentava

legiões. Ambos os heróis se assemelham pela inteligência com que os narradores lhes fizeram

sobressair do embaraço com que se envolveram.

Nesse aspecto, o poeta leva o leitor a, como receptor, se enredar à narrativa e não só

decodificá-la, mas imaginar as cenas resultantes da leitura, abstrair naquele sentido que

propõe Guinsburg (2001) de esse leitor não se fazer simples, mas de pôr “em andamento a sua

aparelhagem, não só de percepção e decodificação, mas de reativação na cena de seu

imaginário, com a animação de sua sensibilidade” (p. 21). Ao colocar Lampião no inferno, o

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poeta conduz o leitor à expectativa de que o cangaceiro se sairia da situação em que se

encontrava, uma vez que na paisagem sertaneja em atuação no cangaço se saíra de

circunstâncias as mais extraordinárias:

[...]

Estava travada a luta

Mais duma hora fazia

A poeira comia tudo

Negro embolava e gemia

Porém Lampião ferido

Ainda não tinha sido

Devido à grande energia.

Lampião pegou um seixo

E rebolou-o num cão

Mas o que, arrebentou

A vidraça do oitão

Saiu um fogo azulado

Incendiou-se o mercado

E o armazém de algodão.

Satanás com esse incêndio

Tocou no búzio chamando

Correram todos os negros

Que se achavam brigando

Lampião pegou a olhar

Não vendo com brigar

Também foi se retirando. (PACHECO, p. 7).

A mudança inesperada de cena se dá no momento em que Lampião, ao se utilizar de

um seixo como arma para sair da insustentável situação em que se encontrava, surpreende

não somente a todos os moradores do inferno como ao leitor, que pode ter no riso a reação

maior, mas pode também inferir da inteligência do texto não só em armar, engendrar a

inusitada saída do herói do inferno, mas em trazer solução surpresa para fechamento do

próprio texto, o que representa o ponto final de alto relevo da narrativa.

Ao se retirar sorrateiramente, como o texto sugere, o cangaceiro adquire um quê de

humanidade. Se como herói não visse “com quem brigar”, a saída como tal não é das mais

nobres e, nesse sentido, o poeta faz o mito/linguagem cair nas graças do leitor. É justamente

nesse aspecto que Kothe (1987) afirma que “à medida que o herói épico decai em sua

epicidade, ele tende a crescer em sua “humanidade” e nas simpatias do leitor/expectador” (p.

14). Esse mesmo leitor depara-se também com um último desfecho, uma última constatação:

o inferno em polvorosa diante das perdas. A narrativa se encerra com a reclamação dos

maiorais do mundo das trevas:

[...]

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Houve grande prejuízo

No inferno nesse dia

Queimou-se todo o dinheiro

Que Satanás possuía

Queimou-se o livro de pontos

Perdeu-se vinte mil contos

Somente em mercadoria.

Reclamava Lucifer:

Horror maior não precisa

Os anos ruins de safra

Agora mais essa pisa

Se não houver bom inverno

Tão cedo aqui no inferno

Ninguém compra uma camisa. (PACHECO, p. 8)

Nas duas estâncias, pode-se perceber que o foro de herói do cangaceiro está em

constituir uma vontade popular e coletiva de vencer as adversidades, de enfrentar poderosos,

atingir a medida maior do anseio de todos. Numa visão ainda humorada, mas não menos

verdadeira, o poeta lança para o leitor a ideia de que esse mito/linguagem é a configuração do

herói pícaro segundo preconiza ainda Kothe (1987) com sua teoria a esse respeito: “o herói

épico é o sonho de o homem fazer a sua própria história; o herói trágico é a verdade do

destino humano; o herói trivial é a legitimação do poder vigente; o pícaro é a filosofia da

sobrevivência feita gente” (p. 15).

Esse herói da “filosofia da sobrevivência feita gente” é encontrado, por exemplo, num

João Grilo de O auto da compadecida, com seu enfrentamento dos poderosos: o que envolve

o padeiro e sua mulher, o clero, o senhor de fazenda, até um grupo de cangaceiros, numa

sociedade composta de injustiças. No inferno, o cangaceiro, por tantas peripécias, não deixa

de ser um pícaro, para, na busca de uma saída inteligente, agora sem o poder das armas, e só

com o da inteligência, ter num seixo o grand finale para a vitória sobre o poderoso inimigo: o

inferno.

Em desfecho carregado ainda de ironia/humor, mas com verdade, o poeta se dirige ao

leitor para dar conta do paradeiro de Lampião:

[...]

Leitores, vou terminar

Tratando de Lampião

Muito embora que não possa

Vos dar a explicação

No inferno não ficou

No céu também não entrou

Por certo está no sertão. (PACHECO, p. 8)

Como os heróis clássicos, Lampião foi levado à catábase, ou seja, esse descer ao “mundo

subterrâneo, com todo o sortilégio que lhe confere o misterioso desconhecido [...] como um

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reino onde a verdade pode ser encontrada ou, pelo menos, ouvida, porque as almas dos que

desapareceram da terra a podem contar mais livremente, testemunhas que foram das muitas

peripécias já lendárias por que passaram no mundo dos vivos”. (ROSADO FERNANDES,

1993, p. 347).

Descer ao inferno e de lá sair é algo inerente aos heróis. Na mítica brasileira e

nordestina Virgulino Ferreira da Silva, com sua centelha humana, morreu. Lampião, por outro

lado, segundo sua centelha divina, vive. E “por certo está no sertão”.

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3 – AMORES NO CANGAÇO: MARIAS E DADÁS – VÊNUS NO SERTÃO

O sertão cria homens fortes e mulheres belas e cria também

devoradoras paixões no mais tímido peito da mais recatada

donzela.

(Jorge Amado, em ABC de Castro Alves).

Há pelo menos duas versões sobre as mulheres que se encaminharam para o cangaço:

as que tiveram o propósito de se juntar ao homem a quem amavam, espontaneamente, e as

que, raptadas, terminaram por amar, com o tempo, o homem a quem perigosamente tiveram

de acompanhar.

Faz-se necessário lembrar que essas mulheres antes de ingressarem no cangaço

tiveram habitual viver doméstico: seus lares, suas famílias, a dedicação doméstica, tudo

segundo a tradição familiar nordestina. No entanto, seu desprendimento (como anteriormente

aludido, forçado ou não) para vivenciar o cangaço incluía a coragem que, sob a égide da

tensão, era imprescindível, para se sentirem seguras já que tinham a vida presa por fio tênue e,

portanto, não sabiam o que era a vida e a morte.

No mundo do cangaço, há de se ressaltar, todos os que dele tomaram parte tinham

referencial familiar, religioso, cultivavam o respeito à moral, aos bons costumes sociais, além

de, quase todos, serem provenientes de famílias com posses, isto é, proprietários de pequenas

áreas rurais (uns até de grandes fazendas) das quais tiravam o sustento doméstico. Todos

procedem do meio rural. Todos alegavam vingança como idêntico motivo da escolha de

entrada para o cangaço: a morte do pai, de um parente próximo, de um amigo íntimo era

argumento forte e mote dessa tomada de decisão.

Quanto às mulheres que tomam parte desse universo, há de se considerar igual

referência encontrada nos homens: família, religião, moral, bons costumes, vida econômica,

em muitos casos, relativamente estável, salvo em períodos de seca, embora outras tivessem

origem muito humilde.

Das filhas de proprietários rurais constam Ilda Ribeiro de Souza, a Sila; Maria Gomes,

a Maria Bonita; Sérgia Ribeiro, a Dadá, entre outras, que deixaram para trás a casa paterna,

espontaneamente (Maria Bonita) ou raptadas (Dadá e Sila), entre tantas, que terminaram, a

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exemplo das duas últimas, por se apaixonar e amar seus companheiros, atitude que as torna

fortes por seguirem seus homens até a derrocada do cangaço. Perderam a vida nessas

perigosas trilhas Neném de Luiz Padre, (1936) e Maria Bonita e Enedina (dois anos mais

tarde). Outras pagaram com a prisão, durante o cangaço, e após o episódio de Angicos, em

1938.

Em depoimento em torno de sua vida antes de entrar para o cangaço e sobre os

referenciais de família, diz Ilda Ribeiro de Souza, a Sila:

Nasci em Poço redondo, uma cidadezinha do interior de Sergipe, localizada no

semiárido nordestino, banhada pelo Rio São Francisco. Foi lá que nasci, na Fazenda

Recurso, no dia 26 de outubro de 1924. A Fazenda Recurso pertencia a meu pai e a

meu tio China [...]. Ambos viviam da pecuária e da agricultura. Meu pai, Paulo

Gomes de Souza, e minha mãe, Josefa Gomes de Souza, sempre viveram em Poço

Redondo. Quando minha mãe morreu, eu contava cinco anos de idade. Aos treze,

perdi meu pai. Órfã, fiquei aos cuidados dos irmãos mais velhos. Apesar de tudo não

podia me queixar da sorte, pois se meus parentes não eram ricos, também pobres não

eram; tinham do que tirar o pão de cada dia. Trabalhar, sim, porque no sertão toda

criatura de Deus que se preze, trabalha. (SOUZA, 1997, p. 19)

Quanto à vida em criança, depõe:

Como toda criança, gozava também dos meus momentos de folguedos. Picula,

chicotinho queimado, boca-de-forno e bonecas de pano que eu mesmo preparava

com esmero e bom gosto. Marietinha, Tila e Doza, minhas amigas de infância,

tinham em mim sua pequena costureira. Fazia os vestidinhos de suas filhas e

empregadas. Aprendi a fazer renda de almofada, pois em Poço Redondo todo

mundo era rendeira [...]. Eu já desempenhava, contudo, alguns afazeres: lavar as

roupas dos irmãos, também os pratos e as panelas da casa, além de pegar água na

fonte. Sabia tirar leite das vacas e das cabras. (SOUZA, 1997, p. 19)

Ainda no tocante ao lar como ambiente de aconchego e núcleo da família, percebe-se

na vida de Maria Bonita igual infância e adolescência em comparação com todos os que

vivem essa fase na cidade ou no campo, em qualquer época: “Convivendo com os irmãos e

parentes próximos, suas brincadeiras resumiam-se nas rodas, passa-anéis, bonecas feitas de

sabugo de milho vestido com pano.” (ARAÚJO, 1985, p. 168).

A vida digna, no sentido econômico, se dava da seguinte forma:

O criatório em maior quantidade era de miunças: cabras, cabritos, ovelhas. Não se

deixando de ter também algumas vacas, e o leite para beber puro como também

misturado com farinha. Aliás, muitas vezes pilava-se o piruá de milho de pipoca,

isto é, os grãos que não estouravam, e o fubá grosseiro era levado já no fundo da

cuia ao pé da vaca que estava sendo ordenhada no curral. Esguichava-se o leite

morno do animal no tosco recipiente e quando o fubá sobrenadava à tona do leite,

bebia-se gostosamente. (ARAÚJO, 1985, p. 168)

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143

Há de se perceber pelo excerto acima, quanto era simples a vida do sertanejo com seus

hábitos, pequenos prazeres cotidianos, a lida com o gado grande e pequeno, demais afazeres.

Na vida familiar de Maria de Déa, posteriormente conhecida por Maria Bonita, nada ou pouco

diferenciava das demais mulheres que ingressaram no cangaço. Todas depõem, salvo

pequenas diferenças, do mesmo estilo de vida, do modo como foram criadas e orientadas

pelos pais e irmãos mais velhos, em um código sertanejo que visava à dignidade, ao respeito

humano, religioso e social.

Para Bachelard (2000), “o mundo é um ninho; um imenso poder guarda os seres do

mundo nesse ninho” (p. 116). Nossa reflexão com respeito à afirmativa do autor de A poética

do espaço, e com vistas à temática que ora abordamos, é a de que a mulher, ao ingressar nas

lidas do cangaço, começa a perder, aparentemente, o espaço do ninho. A casa, no sentido mais

restrito e até figurado de lar como família, núcleo familiar, lugar daqueles que vivem sob o

mesmo teto, se perde num primeiro momento, já que a nova casa dessa mulher passa a ser o

mundo.

A perda do ninho como espaço do núcleo familiar é compensada com o aparato desse

novo ninho-mundo, espaço não fixo, nômade, sem um referencial, sem um endereço, sem os

caracteres de um pouso a que se possa chamar de lar. A proteção desse e nesse novo ninho-

mundo-lar se dá pelo “céu imenso apoiado sobre a terra imensa”, de que fala Herder, citado

por Bachelard (2000, p. 116). Portanto, há de se apontar, todos os cangaceiros e cangaceiras,

inclusive o casal Lampião–Maria Bonita, nunca deixaram de sonhar, e eram sequiosos com a

volta, o restabelecimento e consequente estabelecimento do lar no seu sentido mais

tradicional, como sempre lhes foi passado.

Para a sertaneja que ingressa no cangaço, a ideia de lar não se perde, embora sua

atitude de entrada para esse universo marginal não a deixe vivenciar o lar de que saiu ou o que

queria construir. Entra em pauta nessa nova opção de vida o ninho-mundo que acima

apontamos: um lar que, como aquele estabelecido e estável, demanda ordem, limites,

tradição, respeito, costumes inerentes aos lares convencionais do sertanejo: a busca da

proteção divina (o céu de Herder) por meio de orações, ladainhas, contrições é comum aos

bandos, sobretudo aquele comandado por Lampião. Vive-se num lar aberto, vulnerável. É

mister que se busque o imenso poder de que nos fala Bachelard, como apelo à proteção de um

ninho que se faz itinerante e nômade.

Ao deixarem as casas dos pais e, às vezes, de seus maridos, caso de Maria de Déa, a

Maria Bonita, essas mulheres tinham de ser suficientemente fortes para acompanharem seus

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144

homens em um mundo de incerteza, sombra e morte, sem a mínima condição de se pensar em

um teto, uma vez que a vida se fazia de confrontos, correrias e emboscadas. A casa como

espaço de refúgio passa a ser uma impossibilidade. Nem as casas dos coiteiros, salvo em

situações de tranquilidade passageira, eram seguras para a vida que os cangaceiros para si

propuseram.

Cangaceiros mais antigos tinham mulheres e filhos ou noivas, mas deles não se faziam

acompanhar. Praticavam seus assaltos, faziam suas rondas, empreendiam suas façanhas, mas

voltavam aos seus lares, pois tinham todos morada fixa. Convém lembrar que nesse lapso de

tempo o cangaço não era ainda profissão. Em muitos casos, funcionava com a argumentação

que sempre prevaleceu durante toda a história cangaceiresca: vingança em causa própria ou

em nome de amigos: vingava-se o pai, o irmão, um familiar qualquer. Um amigo. Às vezes,

famílias da comunidade também eram defendidas e protegidas por esses andarilhos justiceiros

ainda no século XIX, sobretudo a partir de sua segunda metade. Mas todos os

protocangaceiros eram pequenos proprietários de terras. Nelas e delas viviam e para ela

retornavam.

Ao virar profissão e sem deixar de ter como pretexto a vingança, os cangaceiros

passam a viver no nomadismo. A princípio essa forma de vida dispensa as mulheres. Não há

como dividir com o sexo oposto uma vida que oferece riscos iminentes. Comprometer-se com

a vida no cangaço é, inclusive, ser estorvo: o ser mulher, as gravidezes, a agilidade – que

talvez não tenha –, o saber atirar para defesa própria (se for possível) e do bando. Destreza e

mobilidade, tudo levava a crer, não eram inerentes a mulheres, o que representaria um

percalço na vida e sobrevivência do grupo cangaceiro.

É inerente, porém, aos homens amar: homens e mulheres em sociedade e, não importa

a circunstância, têm seus amores e devem amar. A vida moderna no cangaço terminou por não

impedir que Cristino Gomes da Silva Cleto, o Corisco, tivesse sua Sérgia Ribeiro da Silva, a

Dadá; que Zé Sereno tivesse sua Ilda Ribeiro de Souza, a Sila; que Luiz Pedro tivesse sua

Neném; que Lampião tivesse sua Maria Bonita, para citar alguns. E isso é a busca humana por

constituir um lar.

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145

3.1 – TANTAS MULHERES... MARIAS BONITAS QUE SE MULTIPLICARAM

Maria, a mais bonita

Que uma bola prateada,

Usava batom e fita

E andava bem armada [...]

(Fanka, em A mulher e o cangaço)

Ao viver o nomadismo, próprio do cangaço, os grupos eram compostos apenas por

homens, pois, pelos motivos aventados anteriormente, não era possível ter nos bandos a

presença feminina. No entanto, com a entrada de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, e

com sua ascensão no comando de grupo importante, dividido em subgrupos de 8 a 10 homens,

num total de mais de cem, a quem chefiou, o rei dos cangaceiros termina por admitir ingresso

de mulheres para o bando sob suas ordens.

Nos idos de 1929, o próprio e dito Lampião, em suas passagens pelas bordas do rio

São Francisco, faz contatos e tem o apoio de uma família, a do fazendeiro José Felipe de

Oliveira e de Maria Joaquina da Conceição, a dona Maria Déa, e deixa seu coração se

apunhalar pela beleza de Maria, a mais bonita:

Por ocasião dessa segunda estada na fazenda, uma das filhas do casal estava

presente. Seu nome era Maria Gomes de Oliveira, mas todos a chamavam de Maria

de Déa. Era uma jovem de dezoito anos, morena, de cabelos pretos e olhos azuis, de

estatura mediana. Era casada, mas estava, naquele momento, de relações cortadas

com seu marido, José Miguel da Silva, mas conhecido como Zé de Nenê. O

relacionamento entre os dois não vinha bem há algum tempo, e ambos já haviam se

separado mais de uma vez. (FERREIRA e ARAÚJO, 2009, p. 225)

Lampião e Maria de Déa se mostram simpáticos mutuamente, conversam, sabem um

do outro, e o cangaceiro deixa-lhes peças de lenços para bordar quando sabe de sua habilidade

quanto a isso, na esperança de voltar em determinado tempo. É na volta para pegar a

encomenda que os corações se apaixonam e se dão. Começam a namorar, conforme atestam

os depoimentos prestados pelas irmãs de Maria Bonita, a saber, Antônia Oliveira Santos,

conhecida por Dorzina, e Amália Oliveira Silva, a Dondon (Cf. FERREIRA e ARAÚJO,

2009, pp. 225-226).

O agravante dessa amizade é a perseguição empreendida com mais afinco pelas

volantes à casa do patriarca dos Oliveira, a partir da notícia que provavelmente se espalha. A

família, diante da problemática, não tinha como agir: como impedir que o cangaceiro não os

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visitasse? Qual seria sua reação? Desse modo, Lampião frequentava a família da moça, e a

polícia, em represália, igualmente investia em visitas de investigação à referida fazenda, o que

levou o patriarca dos Oliveira a tomar a atitude de trocar de domicílio:

Certa ocasião chegou à Malhada da Caiçara, [Fazenda da Família] uma volante tão

violenta, que após os interrogatórios de praxe para saber o destino de Lampião,

começou a destelhar a casa, derrubar cercas e ameaçar incendiar tudo.

Zé Felipe viu-se obrigado a mudar-se, indo para Alagoas, num local conhecido

como Salomé. Maria, pensando no bem-estar de seu pai e de seus familiares, e não

querendo deixar de ver Lampião, tomou a mais importante decisão de sua vida:

resolveu acompanhar Lampião e ir-se embora com ele definitivamente.

(FERREIRA e ARAÚJO, 2009, p. 226)

O poeta Antônio Teodoro dos Santos, anos mais tarde, em registro de cordel, narra o

episódio dessa decisão de Maria Bonita quanto a acompanhar Virgulino Ferreira:

[...]

Sei que em suas andanças

O senhor muito precisa

De uma mulher ao seu lado

Que saiba bem onde pisa

E prepare as refeições,

Costure e pregue botões

Em blusão, calça e camisa.

[...]

A conversa de Maria

Lampião ouviu calado,

Sem alteração, sorrindo,

Como quem já conformado;

Convidou-a prazenteiro,

À sombra de um imbuzeiro,

Parecendo apaixonado.

Como que hipnotizado

Na beleza de Maria,

Sentindo o perfume dela,

Lampião se derretia,

Tanto se contraditou

Que no final terminou

Querendo o que não queria.

Conversaram muito tempo

Dos capangas afastados,

Que com tais perspectivas

Ficaram muito alarmados,

Sem entender quando viram

Que os dois na hora saíram

Já caminhando abraçados.

Ficaram mais assombrados

E sem compreender bem

Porque sabiam que o chefe

Não confiava em ninguém,

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147

Porém nas mãos de Maria

Tudo que vinha comia

Com confiança também.

Maria que deu seu corpo

Sedento de mil desejos

Sentia exalarem todos

Os aromas sertanejos,

Pelo amor genuíno

Embriagou Virgulino

Com o sabor de seus beijos. (SANTOS, 23-24)

Desse modo, a sertaneja da Bahia seguiu ao lado do homem a quem amou e esse

exemplo terminou por atingir a outras mulheres, que, desassombradas, tomaram destino por

difíceis caminhos, como o tempo comprovou.

Da lista de multiplicação de tantas Marias que enveredaram os caminhos e

descaminhos do cangaço em nome de perigoso amor, declinam-se: Mariquinha, (uma ex-

cunhada de Maria Bonita), que resolve tomar novo rumo e seguir, junto com a comitiva do

cangaço, em companhia de Ângelo Roque, de codinome Labareda; Dadá (de Corisco);

Neném, morta em combate, (de Luiz Pedro); Durvalina (de Moreno); Sila (de Zé Sereno);

Lídia, (de Zé Baiano), morta tragicamente, pelo próprio companheiro, sob a acusação de tê-lo

traído; Inacinha (de Gato); Adília (de Canário); Cristina, (de Português), morta tragicamente

também sob a alegação de infidelidade conjugal; Maria Jovina (de Pancada); Dulce (de

Criança); Moça (de Cirilo Engrácia); Otília (de Mariano); Maroca (de Mané Moreno); Maria

Ema (de Velocidade); Enedina, (de Cajazeira), morta no massacre de Angicos; Rosalina (de

Chumbinho); Estrelinha (de Cobra Viva); Hortênsia (de Volta Seca); Lacinha (de Gato Preto);

Iracema (de Lua Branca); Eleonora (de Azulão); Lili (de Moita Braba); Catarina (de

Sabonete); Mocinha (de Medalha); Maninha (de Gavião); Maria Juriti (de Juriti); Dora (de

Arvoredo); Marina (de Laranjeira); Dinha (de Delicado).

É notório que, antes de Maria Bonita, houve outras mulheres na vida de Lampião,

porém, não havia a permissão de se manterem laços, a fim de que não se perturbem as ações

do bando. Entre tantos depoimentos de estudiosos da temática do cangaço, Luiz Luna

informa:

Antes dela [Maria Bonita], outras, naturalmente, passaram pela vida de Lampião.

Mas foram rápidas demais, não deixaram maiores vestígios. No princípio, Virgulino

chegou mesmo a proibir a presença das mulheres no bando. Elas ficavam em

determinadas fazendas ou cidades, aguardando as problemáticas passagens dos

cangaceiros. Depois, Lampião foi transigindo aos poucos, até que ele próprio se fez

acompanhar de algumas mulheres, antes do reinado absoluto de Maria Bonita.

(LUNA, 1972, p. 93)

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Antônio Kydelmir Dantas, em sextilhas de cordel apresenta os nomes dessas

admiráveis mulheres que por seus homens enfrentaram as caatingas, as volantes, os coronéis,

a própria morte:

[...]

Começa a segunda fase

De Lampião no cangaço.

Na Bahia, em Alagoas

Em Sergipe deixou o traço

Em todos estes estados

Há presença do seu braço.

Diferente de outros chefes,

Daquela gente ferina,

Que não queriam nos grupos

A presença feminina,

Surgiu a Maria Déa

Quebrando toda rotina.

Uma morena formos,

Com os olhos de catita,

Independente e valente

Sedosa igual uma chita,

A rainha do cangaço

Foi a Maria bonita.

Com sua entrada no grupo,

Ficou o espaço aberto,

Para os outros cangaceiros

Que queriam ter, por perto,

Suas amantes com eles,

Para aquecer seu deserto.

A presença feminina,

O cangaço humanizou.

A mulher por ser mais fina,

Logo ele transformou,

Ficando menos sangrento

E muitas vidas poupou.

[...]

Logo depois da rainha,

Nas margens do São Francisco,

Apareceu a princesa

De temperamento arisco,

Foi Sérgia da Conceição,

Companheira de Corisco.

[...]

Só ela pegou em armas,

Nunca saiu na carreira

Que enfrentou a polícia,

Comandando a cabroeira

Mais das vezes defendendo

Seu marido na trincheira.

Sila foi outra guerreira,

Daqueles tempos atrás,

Que serviu com Zé Sereno,

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149

Seu marido e capataz,

Escreveu a sua história:

Memórias de guerra e paz.

Durvinha ou Durvalina

Companheira de Moderno

Jurava ao companheiro

Para sempre amor eterno,

Com a morte de Virgínio

Viu as portas do inferno.

Até que enfim, resolveu

Num clima morno e sereno,

Juntar-se ao maior amigo

Como este mundo é pequeno

Morreu há pouco casada

Com o Antônio Moreno.

[...]

Adília era de Canário,

Cristina, de Português.

Lili foi de Moita Brava

E Enedina se fez

No bando, com cajazeira,

Morreram os dois de uma vez.

[...]

Neném foi de Luiz Pedro,

O cangaceiro fiel.

Otília, de Mariano,

Este lhe foi infiel,

Lhe trocando por Rosinha

Fazendo feio papel.

[...]

Áurea de Manoel Moreno,

Um cabra paraibano,

Dizem que era muito frouxo,

De lutar não tinha plano.

Maria, de Azulão

E Lídia de Zé Baiano.

[...]

Maria! Teve um bocado,

Mais ou menos afamada.

Teve Maria dos Santos,

Por Mariquinha é lembrada.

Também Maria Jovina

Ou Maria de Pancada.

Teve Maria Isidoro,

Maria de Gitirana.

Ângelo Roque teve duas:

A mariquinha e a Ana,

Laura Alves ou Doninha,

Disposta alagoana. (DANTAS, p. 5–10)

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Dentre tantas cangaceiras Ilda Ribeiro de Souza, a Sila, depois de Maria Bonita e

Dadá, talvez seja a mais interessante dessas mulheres. Verdadeira em suas colocações a

respeito do que passou e viveu no cangaço, não deixa de elogiar o capitão Virgulino e sua

companheira, mas também não se omite de apontar as crueldades que presenciou durante sua

estada em meio à gente de bando.

As informações de Sila, decerto por verdadeiras, são atenuadas pela maneira como

depõe. Admiradora do casal Lampião-Maria Bonita, é perceptível seu carinho quando deles

fala. Ademais, são seus conselheiros e amigos incondicionais, segundo se depreende de suas

informações.

Fala-se de arbitrariedades do rei do cangaço, se se mencionam decisões de morte ou

vida, mas a ex-cangaceira deixa transparecer com lucidez a normalidade do que ocorria

naquelas vidas em meio à violência, assassinatos, perseguições policiais, correrias, farras,

bebedeiras, coitos e coiteiros, banhos em rios, festas, brincadeiras, rezas.

As palavras de Sila, ao se referir à amizade com Maria Bonita, deixam transparecer a

intimidade mútua, a satisfação e o respeito pela companheira que viria a cuidar inclusive do

enxoval de seu primeiro filho e de quem viriam a ser padrinhos.

Note-se na citação sobre o nascimento de seu filho:

Sem dúvida alguma o inverno estava bastante frio. Chovera muito naquele ano.

Minha barriga avolumara-se enormemente, e parecia prestes a estourar. Pelos meus

cálculos meu filho nasceria entre junho e agosto, e eu o esperava ansiosamente.

Queria ver aquela criaturinha, filha da caatinga e das correrias pelo sertão, acariciar-

lhe o rosto e dizer-lhe quanto o amava. (SOUZA, 1997, p. 68)

Veja-se como Maria Bonita era mencionada:

Maria Bonita preparava o enxovalzinho do futuro sertanejo. Embora simples,

empregava-se nele com tanto esmero que eu quase a via como uma segunda mãe da

criança que estava por nascer. Ela era assim: dava-se de corpo e alma às pessoas às

quais se afeiçoava. E éramos praticamente duas irmãs. (SOUZA, 1997, p. 69)

Quanto a Lampião e suas histórias com relação às mulheres, cangaceiras ou não, há

dados controversos. Há quem mencione suas crueldades diretas ou indiretas, no tocante às

mulheres, como sua omissão quanto a Zé Baiano, que ferrava mulheres no rosto com as

iniciais JB. Já com relação a seu calar em casos como os das cangaceiras Lídia e Cristina,

acusadas de traição amorosa e mortas em consequência disto, direta ou indiretamente, diante

dos olhos fechados dos chefes Lampião e Corisco, respectivamente.

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151

Para entendermos melhor esses episódios e seus desdobramentos, atentemos na citação

que segue:

Como em toda sociedade, acontecem casos de infidelidade, embora em raras

ocasiões, entre os cangaceiros. Estranhamente, as mulheres sempre pagavam a

traição com suas próprias vidas. Tivemos exemplos de Lídia, mulher de Zé Baiano;

Lili, de Moita Brava; Cristina, de Português, entre outros. Aos homens infiéis nada

acontecia. (FERREIRA e ARAÚJO, 2009, p. 50)

Não descobrirmos nem entendermos o porquê de os homens infiéis em meio ao

cangaço não sofrerem retaliação ou dano algum. É possível que isso se dê devido à cultura da

falocracia tão presente no código de honra não apenas cangaceiresco, mas predominante na

sociedade machista de todos os tempos. No sertão isso não soa como novidade.

No entanto, um dado curioso envolve Lampião: Billy Chandler, estudioso do

fenômeno do cangaço, aponta o quanto esse chefe de cangaceiros era cordado no que respeita

às mulheres, estejam estas no cangaço ou integrem a sociedade sertaneja comum. Nesse caso,

o autor relacionado acima deixa claro nesse passo o respeito devotado por Virgulino Ferreira

a elas:

Lampião avisava a diversas pessoas durante a tarde que haveria um baile à noite.

[...]. Para que a festa fosse um sucesso, Lampião deu ordens a uma das mulheres

para que arranjasse bastantes moças, de preferência, acrescentou, das classes mais

modestas. [...]. Houve a dança. Metade dos homens compareceu, enquanto os outros

montavam guarda, e a pedido de Lampião exibido um filme. As moças foram

tratadas com respeito, porque Lampião ameaçou castigar qualquer um que se

excedesse. (CHANDLER, 1981, 140)

Detalhe: anteriormente a esse baile, houve invasão à cidade de Queimadas, e como

consequência, a morte de sete soldados na delegacia, além da arrecadação em dinheiro,

exigida por Lampião, episódio seguido de bebedeira e comilança à vontade. O ano era o de

1930 e, pela data, o chefe já havia se juntado a Maria Bonita.

Ainda com relação a Virgulino Ferreira, um ex-cangaceiro de alcunha Zabelê dá conta

das preocupações do capitão em relação ao respeito e à ordem dentro do bando, fora dele e

principalmente no que toca às mulheres: “Respeitem as moças e mulheres casadas. Com as

raparigas façam tudo o que der no pensamento” [...] (LINS, 1998, p. 90).

Outro detalhe: apesar do discurso de Lampião no respeito às mulheres e às moças, há

um quê nessa fala que traduz e nivela os homens no milenar desrespeito com as prostitutas:

fazer-lhes o que der no pensamento.

No entanto, com relação à honra das mulheres, era o capitão Virgulino Ferreira

contundente. Repare-se no excerto com relação a Sabiá, um de seus cabras:

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Era um bandido jovem. Dezoito anos. Passou pouco tempo no grupo. Foi morto a

tiros de fuzil pelo próprio Lampião. Sabiá desonrou a filha de 13 anos de um

fazendeiro da Lagoa do rancho, estado da Bahia. Consumado o crime, o cangaceiro

entrincheirou-se e pretendia atirar nos companheiros que ousassem castigá-lo.

Lampião foi pessoalmente à sua trincheira. Sabiá gritou que atiraria em Lampião. O

capitão Virgulino fuzilou o cangaceiro, antes bateu-lhe com a coronha do fuzil,

quebrando-lhes os dentes. (OLIVEIRA, 1970, p. 175)

Mas há de se destacar a mítica feminina no que envolve os cangaceiros: o sonho de

muitas mulheres segundo o que se via e se sabia da vida aventureira dos cangaceiros. Para

Daniel Lins (1997):

Muitas mulheres sonhavam com Lampião, almejavam um dia se juntar ao cangaço.

Tocadas pela poesia, pelo imaginário, pelo desejo de aventura, de paixão e combates

representados pelo cangaço, muitas viam na vida do bando uma promessa redentora.

Outras, à maneira de alguns jovens, viam o cangaço enquanto espaço de liberdade,

de rebeldia. As mais românticas buscavam as emoções da natureza selvagem

acopladas aos calafrios de uma epiderme buliçosa em simbiose com os sonhos

ecológicos. Em um universo onde o perigo e o prazer davam ao presente um caráter

de peste e de fim de mundo, a partilha simples de uma alegria efêmera, [...] tinha

também a força do milagre. (LINS, 1997, p, 68)

Fanka, cordelista contemporânea, em canto ao reinado dessas mulheres interessantes,

faz uma mostra do quanto foram fortes, de como tomaram parte nessa ambientação, de como

foram destemidas, de como viveram num universo masculino, violento e fechado e que

anteriormente não as aceitava:

[...]

Da história do cangaço

Muito tem para saber:

Enfeite e bala de aço,

Conhaque para beber.

A mulher participando

Sugerindo nesse bando

Outro jeito de viver.

[...]

Violência era o lema

Desse bando do sertão,

Porém, para este tema,

Houve uma amenização

Com a força feminina

Ingressando, de menina

Mudando essa visão.

[...]

A mulher só ingressou

A partir de Lampião.

Muita coisa se mudou

Com a sua opinião,

Pois Maria interferia

Da maneira que podia

Em cada situação.

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153

Maria, a mais bonita

Que uma bola prateada,

Usava batom e fita

E andava bem armada,

Se o carro dirigia,

A Ford toda rangia,

Em tudo ela foi ousada.

Dada foi audaciosa,

Rimava na pontaria,

Era muito corajosa

Na briga e na montaria.

Vou aqui citar Otília,

Com destaque para Sila

Que merece horária.

[...]

Pela vida cangaceira

Ninguém faz a opção.

É pedaço de trincheira

Que padece o coração.

Nessa sina traiçoeira

Não se vê outra maneira,

É só guerra e confusão.

No resgate da memória

Tudo pode acontecer.

Aparece na história

A mulher para tecer

Outro lado da versão

De Pereira a lampião

Ela procurou vencer! (FANKA, pp. 1, 2-3).

O texto, de olhar feminino, e, portanto, com a sensibilidade de quem vive o ser

mulher, apresenta o sonho, a tensão em momentos cruciais, mas também o sentimento de

liberdade que Daniel Lins aponta.

Portanto, não era só de liberdade e idealização que viviam as cangaceiras. Episódios

de extrema violência foram presenciados, e de toda natureza: “tribunal” em que se decidia

pela vida ou a morte do outro, pequenas querelas por ciúmes, mortes por traição conjugal,

morte em combate, entre outros eventos. Sila relata que a morte de uma cangaceira provocou

uma dor muito forte no bando, e, sobretudo, em Luiz Pedro, um dos cangaceiros mais valentes

e fiéis aos grupos a que pertencia: o de Lampião e o subgrupo de Zé Sereno. Conta a ex-

cangaceira que Neném fora morta em combate com a volante comandada pelo sargento Luz,

composta por doze soldados, e que atacou o grupo de Zé Sereno. Narra Sila o suposto

enlouquecimento de Luiz Pedro e como procedeu:

Luiz Pedro desesperou-se, e uma loucura momentânea apossou-se dele. Pôs-se em

pé e começou a atirar em direção aos soldados. Expunha-se ao fogo da volante.

Outro companheiro do bando derrubou-o ao chão e o arrastou para o mato, livrando-

o de morte certa. (SOUZA, 1997, p. 40)

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Ainda em outro momento, Sila fala da perda irreparável de Neném tanto para ela, mas

principalmente para seu companheiro:

Neném morta. Esta ideia não me deixava em paz; impossível conviver com ela.

Desespero maior que o meu só mesmo o de Luiz Pedro: homem valente e destemido,

não conseguia disfarçar a dor que lhe corroía a alma. Embora homem, (e eu jamais

vira um homem chorar), ele não se continha. As lágrimas rolavam-lhe da face

macerada e ele lamentava-se abertamente. Queixumes de fazer dó, de partir o

coração de qualquer um. (SOUZA, 1997, p. 41)

A vida brutal do cangaço não negou o amor das mulheres. Por algum tempo o que se

negou foi o acesso dessas mulheres aos perigosos caminhos trilhados por homens belicosos, e

por isso não menos prudentes. Homens cheios de amor, ávidos por amar e de corações com

portas escancaradas ao amor. Os arroubos que se deram em dois ou três momentos, e com

perdas de vidas se deram por motivos de traição amorosa, tendo por vítimas apenas as

mulheres. O que esperar de rudes homens desonrados? O que esperar de homens e mulheres

traídos em qualquer sociedade? Em qualquer momento da história?

Desse modo, é a partir do amor arrebatado de Lampião e Maria Bonita que no cangaço

é possível amar e deixar livre o caminho para o amor, apesar dos riscos que sabiam correr as

mulheres e os homens, ao optarem por investir num amor que dependia desse estilo de vida.

Raptadas muitas mulheres, caso de Sila e Dadá, porém, segundo elas, em discursos

muito parecidos, foram extremamente respeitadas, passado o susto, e por todo o tempo em

que maritalmente viveram. Outras, porém, entravam para os bandos por espontânea vontade:

perigos, riscos, aventuras, mas seguir o homem amado era apostar e jogar com a vida que

poderia ou não dar certo. O amor traz consigo o importante detalhe do arriscar. Nesse caso,

quem arriscou é porque não tinha medo de amar nem de morrer. E muitas amaram. E algumas

morreram. E todas vivem. Suas memórias aí estão.

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155

3.2 – CANÇÕES DE AMOR: NO CANGAÇO, NO CORDEL, NOUTROS CANTARES

Um olhar silencioso,

Um toque suave e mudo,

São, espiritualmente,

Pelo nobre conteúdo,

Gestos que não falam nada,

No entanto, dizem tudo.

(Gonçalo Ferreira da Silva, em Maria Bonita, a eleita do rei)

Sempre houve poesia no e sobre o cangaço, apesar da brutalidade em que viviam os

cangaceiros. O canto, como em qualquer grupo social, leva à ideia de que se presta para

espantar os males. É possível. A vida e a criação poética afloravam em meio hostil quando o

cantar ecoava nas caatingas nos intervalos em que a paz se fazia presente. Cantos de guerra, a

exemplo de Mulher rendeira, entoada quando da feitura de saques, num misto de alegria e

deboche, é bela criação forjada no cangaço e, de certa forma, um canto a essa mulher do

cangaço. Cantar é próprio de homens e pássaros. E isso redunda aos homens como um quê de

liberdade por eles pretendido. Como eram homens que se pretendiam pássaros, os cangaceiros

cantavam. E o faziam por e com amor.

Há na e sobre a história do cangaço uma profusão de textos que revelam cantares

amorosos de docilidade rústica, mas de beleza simples e, por isso, pura. Uma poesia, às vezes

amorosa, noutras não, sempre se deu tanto no meio e fora dele. Poetas cantaram e cantam o

lirismo do cangaço em todos os tempos e em linguagens que se transpõem mutuamente, por

exemplo, do cordel para o cinema; do repente para o cordel; da música para as artes plásticas;

da dança para o romance e teatro, entre outros em constante movimentação.

De autoria propriamente cangaceiresca, Mulher rendeira é clássico atribuído

tradicionalmente, mas sem provas, a Lampião. Tem autoria reclamada também por Volta Seca

(Antônio Alves de Souza), ex-cangaceiro do bando do rei do cangaço; por Zé do Norte

(Alfredo Ricardo do Nascimento), compositor paraibano, cuja versão a ele tributada teve a

voz da atriz Vanja Orico e Demônios da Garoa, em O cangaceiro, de 1953 (Companhia Vera

Cruz), e é cantada até os dias atuais.

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156

Na verdade, o mais acertado é afirmar que, transposta para o âmbito do folclore, justo

por falta de autoria comprovada, cada um que com ela tem contato acrescenta-lhes os versos

que forem convenientes. Na versão de Volta Seca, a letra se dá dessa forma:

Olê mulher rendeira

Olê mulher rendá

A pequena vai no bolso, a maior vai no embornal

Se chora por mim não fica, só se eu não puder levar

O fuzil de lampião, tem cinco laços de fita

O lugar que ele habita, não falta moça bonita [...]

Em Zé do Norte, especial para O cangaceiro, assim aparece:

Olé, Mulher Rendeira,

Olé mulhé rendá

Tu me ensina a fazer renda,

eu te ensino a namorá.

Lampião desceu a serra

Deu um baile no Cajazeiras

Botou as moças donzelas

Pra cantar "mulher rendeira"

As moça de Vila Bela

Não tem mais ocupação

Sé que fica na janela

Namorando Lampião.

De Volta Seca a Luiz Gonzaga, de Zé do Norte a Chico César e Elba Ramalho, mais

modernamente, todos cantam versões a que foram acrescentados versos sempre renovados.

Sempre foi notório o diálogo de Lampião com as artes. Sabe-se de seu capricho com

trajes, chapéus, o colorido dos lenços, o bordado, as alpercatas bem cuidadas. Élise Grunspan-

Jasmin (2006) apresenta texto em que se atesta o comportamento do bando de Lampião

quanto ao seu cotidiano de pendor artístico, sobretudo masculino:

Eram homens que cortavam e costuravam suas roupas [...] sabiam também

confeccionar todo tipo de objeto e de roupas de couro. Bem antes de entrar para o

cangaço, Lampião confeccionava e costurava suas roupas e sabia bordar á máquina..

duas fotografias apresentam Lampião e Luiz Pedro bordando os paramentos e suas

roupas com a ajuda de uma máquina Singer. (GRUNSPAN-JASMIN, 2006, p. 136)

Igual sensibilidade o capitão Virgulino Ferreira apresenta no que diz respeito à poesia

(ele mesmo um poeta, conforme já mostrado anteriormente), à música, à literatura de cordel,

ao cinema, à cantoria de viola com seus repentistas, à leitura de revistas como O Cruzeiro, A

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157

Revista Ilustrada, de jornais como O Globo, entre outros. Em entrevista da cangaceira Sérgia

da Silva, a Dadá, se vê a demonstração de como o grupo, em tempos de paz se portava no que

se refere ao entretenimento dos cangaceiros:

A gente cantava muito nos forrós, pois já gostava de dançar. Quem era solteiro

dançava com o fuzil arrastando o pé. [...] Lampião apreciava muito dos folhetos de

cordel como também de ouvir um violeiro. Agora quem quisesse agradar Corisco,

desse um folheto de feira. No nosso bando tinha o Gitirana que cantava muito na

viola e tinha uma voz bonita de dar gosto de ouvir. Quando aparecia um tocador, a

gente sempre fazia um forró. [...] Todo mundo gosta de dançar r do xaxado.

(GRUNSPAN-JASMIN, 2006, p. 136)

Outro cangaceiro, Beija-Flor, depõe e comprova a entrevista de Dadá no que respeita

ao grupo e subgrupos de Lampião e como seus integrantes vivenciavam e tinham

sensibilidade para a linguagem do espírito:

Nas noites de lua, os bandidos sentavam no chão, bebiam cachaça, Lampião tocava

sanfona e Maria Bonita acompanhava no bandolim. Os cangaceiros cantavam

modas. Canções que falavam de sua vida aventurosa e cheia de perigo. Também

falavam de amor. (GRUNSPAN-JASMIN, 2006, p. 136)

Quanto ao depoimento de Beija-Flor, não há comprovação do bandolim a que se refere

tocado por Maria Bonita. De resto, Lampião sempre se fez acompanhar da sanfona, na

verdade, harmônica tocada nesses intervalos de paz. Dentre os artistas do cangaço, além do

próprio Lampião, de Volta Seca, de Virgínio, de Moderno, entre outros, é Gitirana o cantor

maior e poeta do grupo como já mencionado por Dadá e confirmado por Aglae Lima de

Oliveira (1970) em retrato que traça do bandoleiro:

Dotado de inteligência e animador das festas nos arraiais e ranchos. De cor moreno-

escura, cabelos lisos e de traços finos. Seus versos tinham rima. Seus cantos eram

animados e explosivos. Sapateava, gritava em simpáticos repentes. Os versos tristes

comoviam Gitirana. Era até barítono. Ninguém, no bando, e onde chegavam,

cantava melhor do que Gitirana. Os versos quentes, espontâneos e simples eram bem

aplaudidos pelos companheiros e pelas sertanejas. Era baiano e apreciava remexidos.

(OLIVEIRA, 1970, p. 176)

Dos versos atribuídos a Gitirana, os transcritos abaixo depõem de sua verve lírica de

pureza ingênua:

Amô remexe ca gente

Chegando de supetão

Mais pió qui dô de dente

É sinti parpitação.

Cabrocha pra sê bunita

Bunita cumo os amô

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158

Basta um vestido de chita

E na cabeça uma frô!

Toda cacrocha bunita

Num sabe tê sintimento

Vistida entonce de chita

Só sabe tê trivimento.

Quando escurece o sertão

É mais bonito que o má

Cumo bate o coração

Si de noite faz luar. (GITIRANA, apud OLIVEIRA, 1970, pp. 176-177)

Quanto a essa presença lírica no cangaço, informa Amaury Araújo (1982):

A música era uma das poucas manifestações artísticas permitidas pelas condições

errantes do cangaço. Havia entre os cangaceiros alguns com verdadeiros dotes

repentistas, de que usavam e abusavam não só quando entravam em combate –

quando descompunham e injuriavam o inimigo –, mas durante as caminhadas

intermináveis pelos carrascais ou quando paravam para arranchar-se num pé de

serra.

Nas bocas de noite, após comer farinha e carne seca moqueada, descansando as

pernas, o grupo ouvia Cacheado, o Suspeita, Gitirana, o alagoano bamba da

embolada, e outros de menor capacidade criadora. (ARAÚJO, 1982, p. 38)

Perceba-se no lirismo amoroso do cangaceiro Cacheado uma dor saudosa que

provavelmente atravessava boa parte da noite em canto nostálgico:

Serenô de madrugada

Essa noite sereno.

Eu nos braços do meu amor,

Serenô não me molhou,

Não me molhou

Não me molhou. (CACHEADO apud. ARAÚJO, 1982, p. 39)

Virgínio, alcunhado Moderno, também se notabilizara por sua veia poética lírico-

amorosa. São a ele atribuídos os seguintes versos:

Devagar, devagarinho

Venha cá minha adorada,

Oh meu benzinho

Vem enxugar meus prantos delirantes

Nas minhas faces um beijinho

Oh querida!

Um beijinho de amor

Minha flor

Que um beijinho mais oculto

Não é fruto

Para um pobre cantor. (MODERNO apud. ARAÚJO, 1982, p. 41)

Segundo Amaury Araújo (1982, p. 42), “Corisco não era cantor que agradasse, mas

depois de uns goles de cachaça ou conhaque punha-se alegre e cantava esta valsinha”:

Tenho saudades de Maura

Daquela Maura amorosa

Daquele céu estrelado

Daquelas noites de rosa.

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Tenho saudades da fonte

Da fonte que tinha ali

Onde Maura se banhava

E eu por Maura me perdi.

Os versos que seguem são do cordelista Manoel D’Almeida Filho, um dos que mais

cantou o amor no universo de Lampião. As estrofes narram como Maria Bonita encantou o

cangaceiro com sua beleza, cuidados pessoais e caprichos e como o chefe se entregou:

[...]

Diante a Maria Déa

Lampião ia cedendo

A beleza dominava

O amor ia vencendo

Não queria, não queria,

Porém terminou querendo.

Todos os cabras ficaram

Um a um mais alarmados

Vendo que o chefe estava

Por Maria apaixonado,

Porque confiava nela

Como um alucinado.

[...]

Maria Déa formosa,

Embriagou Lampião,

Com sua beleza nata

Dominou seu coração,

Suas faces pareciam

Com o luar do sertão.

Entre ela e Lampião

Contam-se muitas histórias,

Com lutas e sofrimentos,

Com alegrias e glórias,

Vexames e prejuízos,

Com fracassos e vitórias.

[...]

Violeiros, repentistas,

Cantando na região,

Batizaram novamente

A mulher de Lampião

Como “Maria Bonita,

A linda flor do sertão”.

[...]

Maria Bonita tinha,

Entre o seu equipamento

Batom, rouge, talco e pasta

Para o seu bom ornamento,

Perfume escova de dentes,

Espelho, pente, armamento. (D’ALMEIDA FILHO, p. 26)

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160

O poeta Antônio Teodoro dos Santos, ao fazer uma abordagem do amor no bando de

Lampião, apresenta o retrato de Maria Bonita, também chamada Santinha pelo chefe. O

cordelista faz um apanhado da vida e das sinas que acompanham a rainha do cangaço: a de

amar e seguir Lampião e a de morrer a seu lado. Nos traços que faz o poeta, Maria Bonita é a

mulher destemida que não teme seguir inusitado amor, que não teme lutar ao lado desse amor

e que se desprende de laços como o casamento que fica no passado para, até a morte, viver.

Viver seu amor, suas aventuras, sua coragem, sem deixar de ser feminina em meio a bruto

sertão. O texto transparece um canto de valorização à mulher marcada pela coragem até as

últimas consequências:

Agora no nosso livro

Vamos abrir um espaço

Para falar de uma jovem

Que tinha os nervos de aço

Com valor de uma pepita,

Ela é Maria Bonita

Também: “A mulher-cangaço”.

Ela nasceu e criou-se

Em um sítio que existia

Abaixo de Paulo Afonso,

No Estado da Bahia,

Linda como uma sereia

Porém tinha em cada veia

O sangue da valentia.

Como que veio marcada

Por um poder diferente,

Desde muito pequenina

Tinha um gênio muito quente;

Ela escondia a coragem

Que enganou muita gente.

Porém os eu nome estava

Gravado na profecia,

Recebeu a influência

Quando foi levado à pia,

Teve como panaceia

O sobrenome de Déa –

Batizada por Maria.

O nome Maria traz

Uma magia de glória,

De luta de sofrimento,

De derrota, de vitória,

Como a que nos trouxe a luz

Que como mãe de Jesus

Passou da vida á história.

[...]

Daí Maria Bonita

Seguiu o seu companheiro

Em todas as suas lutas

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161

Sem exigir paradeiro,

Com prazeres e desgostos

Fazendo todos os gostos

Do seu amor cangaceiro.

[...]

Apesar de ser valente

Maria era afeiçoada

Às coisas bem femininas:

Só andava perfumada,

Impunha todo o rigor –

Quando dava o seu amor

Gostava de ser amada.

As coisas que precisava

Tinha em seu equipamento:

Perfume, batom, espelho,

Rouge, talco e armamento,

Escova de dente, pasta

Pente e mais tudo que gasta

No caso um bom ornamento.

[...]

Era assim como Maria

E Lampião conviviam,

Por uma amor verdadeiro

Que os dois corações sentiam,

Com beijos apaixonados

Como eternos namorados

Mais os carinhos cresciam.

Sempre em luta quando mesmo

Enfrentando um batalhão,

Santinha permanecia

Ao lado de Lampião

Sem sobrosso nem temor

Para ajudar seu amor

Com arma e com munição.

[...]

Lampião e sua amada

Vistos em primeira linha

Receberam balas sem

Saber de onde a morte vinha;

O chefe todo ferido

Morreu sem dar um gemido,

Abraçado com Santinha.

Naquele dia Maria

Deu o derradeiro adeus

A todos que a conheciam

Parentes e amigos seus –

Nos braços de Lampião,

O amor do seu coração,

Entregou a alma a Deus.

Trouxe Maria no sangue

Essa força como um laço,

Onde prendeu ao destino

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Dando-lhe o maior espaço;

Orgulhosa pela sorte,

Recebeu na sua morte

Os horrores do cangaço. (TEODORO, pp. 5, 6, 25, 26, 27, 32)

Como os cordelistas, violeiros e repentistas também se encantavam e ao seu público

com a beleza da baiana a quem chamaram de “Maria Bonita, A linda flor do sertão”, são dos

repentistas contemporâneos Geraldo Amâncio e Ivanildo Nova, sob o mote “Lampião, rei do

cangaço/Foi assombro do sertão”, os versos em que cantam a bravura e o amor do casal,

independentemente de consequências:

Um primitivo Sandino

Um estrategista bruto

Um Fidel Castro matuto

Um Ho Chi Minh nordestino.

Adulto virou menino

Quando teve uma paixão

Aí o seu coração

Muda o ritmo e o compasso

Lampião, rei do cangaço

Foi assombro do sertão.

[...]

Maria, amante e consorte,

Nordestina destemida

Foi companheira na vida

Na desventura e na morte

Sente um choque muito forte

Ao vê-lo morto no chão

Cai sobre o seu coração

Dando o derradeiro abraço

Lampião, rei do cangaço

Foi assombro do sertão.

Outro exemplar de lirismo no cangaço é a toada “Acorda, Maria Bonita”, atribuída a

Lampião, mas com criação tributada ainda ao cangaceiro Volta Seca. A música foi por este

gravada em LP, depois remasterizado para Cd com o título de Cantigas de Lampião. A beleza

do texto se dá pelo inusitado do aviso com relação às volantes: Maria Bonita é evocada, e o

fazer o café e o preparar-se soam como alertas de eventualidades cotidianas:

Acorda, Maria Bonita

Levanta, vai fazer o café

Que o dia já vem raiando

E a polícia já tá de pé.

Se eu soubesse que chorando

Empato a tua viagem

Meus olhos eram dois rios

Que não te davam passagem.

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Cabelos pretos anelados

Olhos castanhos delicados

Quem não ama a cor morena

Morre cego e não ver nada.

[...]

O texto transpôs o cangaço e virou marchinha de carnaval cantada por todo o país. A

influência talvez se dê pelo já mencionado filme O cangaceiro, da década de 1950, e, de certo

modo, pelo nacionalismo que prevaleceu nesse período. A propósito, nessa mesma década há

euforia da construção de Brasília, símbolo de uma nova afirmação nacional, surge a Bossa

Nova como linguagem musical de renovação e afirmação externa do país, há o Cinema Novo

voltado para um pensar a realidade cultural brasileira tanto urbana quanto rural. Época em que

o país se vê e se reconhece. Antes, porém da década de 1950, Jorge Amado transpusera a vida

de Castro Alves em biografia romanceada, sob o título ABC de Castro Alves com inspiração

seguramente na literatura de cordel, cujos representantes sempre cultivaram a técnica poética

do ABC. É o ano de 1941. O narrador menciona para sua suposta interlocutora o episódio

lírico que envolve Lampião e Maria Bonita e seu mútuo caso de amor. A narrativa de fino

ornamento amadiano se inicia com a seguinte e rica imagem:

Lampião teve seu ABC, num ABC foi cantada Maria Bonita que cortou o sertão com

o seu homem e por ele deu a cabeça bem próximo a Propriá. Essa história de tão

trágico amor melhor que eu te contarão as águas do São Francisco que passavam

perto [...]. (AMADO, s/d, p.7)

Como fez Jorge Amado, poetas populares de todas as épocas e gêneros cantaram,

igualmente, o amor no cangaço, especialmente com voz em que o amor de Maria Bonita e

Lampião se faz presente, a fim de que a memória popular não esqueça esses amantes que se

deram por toda a vida e até a morte. Elementos inesquecíveis da paisagem humana nordestina,

Lampião e Maria Bonita representam ainda o retrato de um amor que se fez de eterno laço.

Em linguagem musical, “Maria Cangaceira”, de Téo Azevedo, imortalizado por Luiz

Gonzaga, apresenta versos em que elementos poéticos fazem aflorar com grandeza e

brejeirice o amor do rei e rainha do cangaço:

Maria, Maria

Bonita como a natureza

Bonita como canta a água

Na quebrada da correnteza

Filha do velho José

Maria, beleza rara

Foi nascida e criada

Na Malhada Caiçara

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164

Quando fez dezoito anos

Ó destino treteiro

Casou com Zé de Neném

O remendão sapateiro

Cinco anos depois

Apareceu Lampião

Maria se apaixonou

E lhe entregou o coração.

A música tem um quê de biográfico, resumidamente apresentado, com versos de

abertura que denotam a cangaceira e seu epíteto em comparação com a própria natureza em

torno da qual vivia: “Maria, Maria/Bonita como a natureza/Bonita como canta a água/Na

quebrada da correnteza”.

No universo do cangaço é a caatinga que dita regras para o humano. Se a mulher

escolheu ou foi escolhida para esse caminho, cabe-lhe se adaptar ao modo de vida imposto

pelo meio. Fortes, viveram essas mulheres intempéries as mais variadas em meio a cardos e

serranias. Nesses espaços lutaram, pariram, amaram. Cantadas em verso e prosa em meio ao

cangaço e igualmente fora dele, essas mulheres se doaram a uma causa de que sabiam, talvez

não voltassem. Viveram ou sobreviveram umas. Sofreram muito, todas; escaparam umas;

sofreram e morreram outras. Não se entregaram quase todas, senão a seus homens.

Entregaram-se, poucas, a outros homens, e por isso morreram: tragédias de amores

clandestinos. Nenhuma, ao que se sabe, se entregou a homens de volantes. Nenhuma se

entregou ou entregou companheiros às volantes. Fiéis companheiras, todas deixaram os pais.

Todas deixaram a família: irmãos (exceção para os que as seguiram), avós, tios, primos,

amigos. Todos ficaram para trás. Tudo ficou para trás. Havia um homem, apenas um homem a

ser seguido. Havia um risco de morte, mas havia um traço de vida. Escolhiam os dois. Aliás,

escolhiam os três: o homem, a vida e a morte.

Eis as mulheres do cangaço. Que amaram e viveram e que nunca morrerão.

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4 – A OFICINA DO CORDEL: A INSPIRAÇÃO, O SUOR

[...]

é oficina que ensina

a aguçar setas, pedras:

(João Cabral de Melo Neto. “escrição de Pernambuco como

trampolim” em A escola das facas)

O poeta popular tem à sua frente todo um espaço diante do qual um mundo de

experiências se abre para ser mostrado. A letra, em maioria, e naquele sentido academicista,

pode lhe faltar ou ser precária, mas não o impede da feitura do texto, que, coerente, abrange o

seu leitor específico, aquele a quem se dirige verdadeira e diretamente, isto é, o povo, além de

atingir outro leitor, aquele interessado nas engrenagens dessa oficina.

Na literatura de cordel, esse mundo de experiências se dá das mais variadas formas, e

sob os diversos olhares: o humor, a política, o trabalho, o amor, as injustiças sociais, o

cangaço, todos, como representação do cotidiano tanto do contexto urbano quanto do rural.

Remanescente quase sempre do meio rural, o contato primeiro do cordelista é com a natureza

e as coisas em volta, que, por simples, parecem lhe provocar sensibilidade para o uso das

palavras. Dessa natureza, o poeta retira matéria-prima para sua obra: alegrias, tristezas,

perplexidades, esperanças, desesperanças, a chuva, o sol, a plantação, a colheita.

Nos cordelistas que se voltaram ou se voltam para o cangaço sempre houve ou há um

martelar em oficina de escritos que, além da forma e do conteúdo inerentes ao tema, tende a

dialogar com textos anteriores, isto é, tentam estabelecer pontes com os que já mencionaram a

temática no passado mais distante, mas o fazem também com textos imediatamente

anteriores, e, portanto, contemporâneos. Buscam ainda, alguns, entremear seus escritos com

elementos extras, como o uso de textos de verve anônima, e, nesse caso, de natureza

folclórica. Há ainda a menção a texto de apoio histórico, como livros, jornais e revistas que

representam fontes de consultas para embasamento dessas narrativas, sobretudo, aquelas de

feitio épico. Pode-se aventar ainda na construção desses textos a presença de caráter místico,

metapoético, intertextual e de diálogo com o leitor.

O poeta Antônio Américo de Medeiros, em Lampião e sua história contada em

cordel, dá destaque a esse diálogo com fontes que asseguram ao seu texto não somente

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legitimação de pesquisa, comprovação do assunto ventilado, a busca por dados, mas também

tonalidade metapoética, além da feição de diálogo com o leitor, o que ocorre no texto abaixo:

[...]

Quem desejar conhecer

De Lampião a História.

Foi cangaceiro famoso,

No cangaço teve glória,

O título de Capitão

Ainda está na memória.

Pesquisei todos os livros

Da vida de Lampião.

Juntei o que achei certo

Para versar com noção,

A vida do cangaceiro

Que foi terror do sertão. (MEDEIROS, p. 1)

Quanto ao caráter de metalinguagem, que se discutirá adiante, explica o poeta:

[...]

A história bem contada

Nos dias de Lampião

Trabalho bem pesquisado

O folheto é campeão.

Não podemos ocultar

Isto eu fiz pra propagar

O livro em toda Nação.

A história num cordel

Merece um análise fino

Este trabalho que mostra

Rei do Sertão nordestino

Intriga o levou à morte

Cangaceiro bravo e forte

O capitão Virgulino. (MEDEIROS, p. 48)

Ao explicar a feitura do seu texto, ao confirmar suas pesquisas, ao declarar que “A

história num cordel/merece um ‘análise fino’”, o poeta leva a efeito o fazer metalinguístico, o

questionamento de seu trabalho e seu destino, nesse caso, o de ser veículo de informação para

seus leitores, a intertextualidade, os mecanismos de construção, porém, sem perder a relação

entre o olhar artístico e a inspiração, intrínsecos à proposta dos textos de caráter popular.

Desse fazer e desse olhar tratarão os próximos subcapítulos.

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167

4.1. METALINGUAGEM: O EXERCÍCIO DA PALAVRA-TEXTO

Que é a Poesia?

uma ilha

cercada

de palavras

por todos

por todos

os lados.

(“Poética”, Cassiano Ricardo, em Jeremias Sem-Chorar)

É imperioso observar que os cordelistas têm a mesma consciência da matéria poética

do fazer academicista. Diferencia-os apenas os elementos de construção: enquanto a

argamassa do fazer popular é tirada diretamente da fonte, e por isso, se apresenta em estado

mais puro, a do fazer academicista tem um quê de complexidade que pode ir além da

sensibilidade popular, o que não os impede de, como criadores, tratarem da feitura do próprio

trabalho. A metalinguagem nos poetas populares se dá naturalmente. É como explicar ações

do cotidiano: a construção de um assento de madeira ou feitura de um fogão à lenha, tudo

ligado às práticas e vivências da comunidade em que se vive.

Pode-se cogitar, igualmente, que as explicações desse fazer se dão por imitação do

outro, da tradição, num desenrolar metalinguístico. Escreve Gonçalo Ferreira da Silva os

seguintes versos sobre o seu fazer, no cordel Lampião, o capitão do cangaço:

Este poema que fala

De cangaço e de sertão

É, apenas, à cultura

Uma contribuição,

Um documentário vivo

Da vida de Lampião.

Por ser uma obra feita

À luz da verdade viva,

Mostra a face nobre, humana

E até caritativa

De Lampião, se tornando

A menos repetitiva. (SILVA, p. 1)

O exercício de questionar, de experimentar, de testar a linguagem revela que o ato de

escrever constitui verdadeiro laboratório. Fazer da palavra ferramenta de sondagem de si

mesma é imaginar o carpinteiro a escolher a melhor madeira para cumprir seu trabalho

cotidiano de preciso emadeiramento ou o pedreiro, tijolo a tijolo a elevar sua construção não

sem antes questionar e se questionar.

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Para Samira Chalhub:

[...] linguagem da linguagem (tomando-se como linguagem um sistema de sinais

organizado) é metalinguagem – uma leitura relacional, isto é, mantém relações de

pertença porque implica sistemas de signos de um conjunto onde as referências

apontam para si próprias, e permite, também, estruturar explicativamente a

descrição de um objeto. A extensão do conceito de metalinguagem liga-se, portanto,

à ideia de leitura relacional, equação, referências recíprocas de um sistema de

signos, de linguagem. (CHALHUB, 2005, p. 8)

Há de se perceber, no entanto, que essa “ideia de leitura relacional” tem a ver também

com a presença do leitor. Há no processo de feitura do texto duas linguagens: uma, do poeta,

a outra, do leitor. É este que decodificará o texto a partir do conhecimento que detém, e isso

se dá por uma linguagem, um campo de entendimento que pertence a esse leitor e, com essa

linguagem de que dispõe, tentará decifrar os textos com que teve contato.

Além do questionamento da técnica, o poeta tem de apresentar o talento necessário

para se expressar, pois do contrário, estaria apenas a passar informação, a comunicar um fato.

A respeito dessa marca da arte e da capacidade dos que a ela se dedicam, aponta Carmelo M.

Bonet (1970):

Em todas as artes há algo acessível à maioria: a parte mecânica, a que se relaciona

com a técnica. Qualquer um aprende a pintar ou a tocar piano. Mas quantos se saem

mediocremente. Qualquer um consegue escrever com um pouco de experiência. Mas

dar categoria à expressão é outra coisa. Necessita-se, além da técnica, algo mais: o

que chamavam os antigos “veia”. (BONET, 1970, p. 19)

No fazer artístico, na acepção geral do termo, “veia”, sinônimo de talento, vocação, é

palavra sempre em voga, de que decorrem expressões como “veia artística”, “veia literária”,

“veia musical”, pois não basta a técnica. Desse modo, como em todos os fazeres artísticos, no

literário, talento e técnica são indispensáveis por darem ao texto literariedade. Poetas eruditos

têm consciência técnica e cultivam a ideia de que o fazer, além de construção, não dispensa o

talento. Poetas populares, por seu turno, buscam a técnica, mas utilizam também uma tradição

saída da memória coletiva, que se estende de geração a geração, fazendo-os acreditar, a

maioria considerável, que além do talento e da técnica, a construção poética se dá como

presente do divino. O poeta José Camilo dos Santos, ao escrever o cordel O filho de Garcia,

no primeiro verso da estrofe inicial, demonstra essa interferência divina:

Deus Grande Ser Incriado

Com os seus dons multiformes

Torna-se imaginário

Nos seus mistérios triformes

Simbolicamente fala

Aos gênios “aculeiformes”. (SANTOS, p. 1)

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169

Nessa invocação, percebe-se a busca por Deus, “ser incriado”, como fonte inspiradora

e imaginária “nos seus mistérios triformes” de nítida alusão ao Pai, Filho e Espírito Santo,

forças a que esses poetas recorrem, por as terem, simbolicamente, como fontes em que se

encontram os dons da poesia ou os “dons multiformes” com que são agraciados tantos

“gênios aculeiformes”, i.e., aqueles cujo olhar remete à agudeza, e isso revela entendimento e

discernimento finos e profundos na percepção da realidade e do mundo à sua volta.

Para explicar seus “gênios aculeiformes”, no entanto, o poeta recorre a neologismos e

com versos de feição metalinguística afirma como a poesia se faz e o que é ser poeta:

[...]

E estes “aculeiformes”

Têm a visão “duplicia”

Que abstraticamente

Concretizado procria

Imagens compositórias,

Eis o que é poesia.

Ser poeta é ser geníaco

Sensibilante ao ouvir

As magnificências e

Unificar, concretir

Na visão imaginária

Formar, criar, colorir.

Assim sendo agora mesmo

Vou criar mais um romance

Com ordem do Grande Deus

E a força do meu alcance

Pois ouço a musa dizendo:

“Seu Camilo, avance, avance. (SANTOS, p.1)

Dos termos trazidos pelo poeta, aculeiforme e triforme são dicionarizados. “Duplicia”,

“abstraticamente”, “compositório”, “geníaco”, “sensibilante”, “concretir” procedem da

ambientação vocabular do poeta e de suas vivências linguísticas, o que o faz produzir uma

linguagem particular que estabelece vínculo com as raízes dessas palavras, pois remetem,

respectivamente, ao campo semântico de duplo, abstrato, compor, gênio, sensível, concreto.

Parece evidente que o poeta desdobrou as palavras, talvez na busca de forçar as rimas,

mas sem perder a noção etimológica dos termos trabalhados e levando o leitor a ser capaz de

relacionar o sentido dessas palavras com aquelas de que derivaram. O dom e a técnica para

lidar com as palavras concedem aos poetas a plena liberdade de criação/recriação das coisas,

da realidade e das palavras: “Eis o que é poesia”, como explica o cordelista. Na poesia erudita

esse questionamento do labor poético sempre foi prática constante. Carlos Drummond de

Andrade é exemplo mais acabado dessa práxis. Em O lutador, há um eu lírico que se mostra

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170

surpreso e perturbado com o mistério criador, e assim como José Camilo, se atira na busca

pela essência das palavras:

[...]

Luto corpo a corpo

luto todo o tempo,

sem maior proveito

que o da caça ao vento.

Não encontro vestes,

não seguro formas,

é fluido inimigo

que me dobra os músculos

e ri-se das normas

da boa peleja.

Iludo-me às vezes,

Pressinto que a entrega

se consumirá.

Já vejo palavras

em coro submisso,

esta me ofertando

seu velho calor,

outra sua glória

feita de mistério,

outra seu desdém

outra seu ciúme,

e um sapiente amor

me ensina a fruir

de cada palavra

a essência captada,

o sutil queixume. (ANDRADE, 2001, pp. 244-245)

Em Procura da poesia, é mais categórico quanto à busca das palavras e à construção

poética:

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?

Repara:

ermas de melodia e conceito

elas se refugiaram na noite, as palavras.

Ainda úmidas e impregnadas de sono,

rolam num rio difícil e se transformam em desprezo. (ANDRADE, 2001, p. 249)

Não há ilusão: os poetas sabem e têm consciência de que “lutar com as palavras” é

tentar descarnar-lhes o interminável mistério com a força braçal e sob a dor do criar. Os

poetas sabem, igualmente, que sê-lo “é ser geníaco” e “na visão imaginária, formar, criar,

colorir”.

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171

Em Proezas de Lampião, Luiz Gonzaga de Lima é categórico na metapoesia:

Voltei novamente ao campo

Da poesia rimada,

Pois a pena do poeta

Nunca pode estar parada –

Porque pena preguiçosa

Não faz sucesso em nada.

Por isso, me destinei –

Botei a pena na mão,

Para versar este livro

Com devida precisão.

O seu nome vai na capa:

Proezas de Lampião. (LIMA, p. 18)

Voltar ao “campo da poesia rimada” é voltar-se para o trabalho, para o fazer, a técnica.

Uma ideia de transpiração se dá pelas palavras “pena” e “preguiçosa”: pena como

instrumento de trabalho e “preguiçosa” como negação da ociosidade e afirmação da própria

ideia de que texto é trabalho. Campo pode também se referir ao lugar de vivência do próprio

poeta e de seu público, e quase sempre é, se se pensar esse espaço como aquele da troca de

experiências cotidianas e de trabalho, campo que com enxada se lavra/papel/campo que com a

pena se lavra. Com a enxada se sulca a terra, com a pena se sulca o papel: “Por isso me

destinei/ Botei a pena na mão”.

Torna-se necessário ainda refletir sobre o vocábulo “versar”, que tanto significa

discorrer, abordar como fazer versos, versejar. O poeta versa a respeito do tema escolhido

tendo como matéria de criação narrativa o verso. Vasta é a messe para a “pena do poeta” e

não é pequeno vaso de sementes a ser lançado a seus leitores.

Sabem, entretanto, poetas populares e eruditos que há uma inspiração para o fazer

poético, mas têm ciência também de que há uma técnica, e que, irmanadas, redundam as duas

em construção. Poesia.

Em A verdadeira história de Lampião e Maria Bonita, Manuel Pereira Sobrinho

invoca a força celestial e deixa transparecer a ideia de que o dom sagrado e a inspiração vêm

de Deus:

[...]

Grande Deus senhor dos seres

Mandai-me orientação

Ideias, forças e rimas

De que tenho precisão

Para versar a história

Da vida de Lampião. (SOBRINHO, p. 1)

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172

Há na poética popular um jogo que o poeta estabelece entre o místico e o ato de

escrever: sem aquele este não se realiza. O místico, porém, não se dá apenas no processo de

inspiração em que Deus ou divindades se fazem presentes. A própria Natureza igualmente se

apresenta como musa inspiradora dessa construção. O poeta mais engajado no aspecto em que

poesia e natureza se misturam, ousa se colocar como servidor de Deus e observador da

Natureza sempre disposto a lhes servir. Invocar a Deus é, igualmente, apelar à Natureza, que

também o atende:

Procurei me transportar

Como um ser imaginário

À procura de Lampião

Dentro do meu calendário

Trazendo seus pensamentos

Para o meu vocabulário.

Ligeira, a Natureza

Para mim apareceu

Trazendo ela consigo

Com todo seu apogeu –

Lampião, todo armado

Como antes ele viveu. (BATISTA, p. 2)

No entanto, não haja ingenuidade: o espaço da razão no ato criador da poesia popular

representa também o motivo de o poeta escrever, pois a presença do intelecto é essencial para

as inferências objetivas desse fazer. Nesse aspecto, o divino não aparece e o texto vai direto

ao assunto em diálogo com o leitor, convocando-o à leitura.

Francisco das Chagas Batista, que dá voz em primeira pessoa ao cangaceiro Antônio

Silvino, o faz declarar:

Leitor, em versos rimados

Vou minha história contar,

Os crimes que pratiquei

Venho agora confessar.

Jurando que da verdade

Jamais hei de me afastar. (BATISTA, p. 1)

Leandro Gomes de Barros também adota igual recurso. Ao escrever o texto em que

Antônio Silvino narra sua vida, é o cangaceiro que se apresenta ao leitor, e, literalmente,

apresenta-lhe seu retrato, na verdade, um desenho que ilustra a capa do folheto:

Caro leitor, eis ahi

Meu todo neste retrato,

Todos quantos me conhecem

Dirão que estão muito exacto;

Tirei elle no Ceará,

Perto da villa do Crato. (BARROS, p. 2)

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173

Luiz Gonzaga de Lima se apresenta ao leitor para narrar Justiça de Lampião, com o

intento de estabelecer, como os outros poetas, igual diálogo:

Para os prezados leitores

Que gostam do realismo,

Quero escrever mais um caso

Do tempo do banditismo,

Quando a justiça dormia

No berço do carrancismo.

Não quero enfadar o público

Com frívola narração –

Quero, respeitosamente,

Pedir geral atenção,

Que vou contar mais um caso

Da vida de Lampião. (LIMA, p. 26)

Com as devidas afirmativas de que o texto de literatura de cordel também resulta de

estudo, pesquisa, levantamento sobre o tema, Gonçalo Ferreira da Silva exemplifica abaixo,

sob a tinta da metalinguagem:

Nunca foi dita verdade

Tão definitivamente e dura,

Contundente em muitos lances

Noutros comovente e pura

Como nesta obra, joia

De nossa literatura.

[...] Livros de vários autores

Também foram pesquisados,

Exaustivamente lidos,

Depois de lidos, filtrados

Os lances mais importantes

Depois aqui registrados. (SILVA, p. 1)

O poeta deixa transparecer com o texto acima que o ato da escrita é também o da

leitura, releitura, e, conseguintemente, de reescrita, mesmo que isso não esteja num âmbito

estrita e exclusivamente documental.

Para Mikel Dufrenne (1969), “o intelecto é impessoal: pode e deve sê-lo, para

constituir um domínio de objetos manipuláveis, objetivos que não exigem um compromisso

particular” (p. 133). Nesse caso, sabe-se, o poeta popular também não pode dispensar essa

razão, pois nesse cabedal está o ato de construção do texto. É nesse espaço que se encontram

o apagar e o acender do texto, a borracha e o lápis deslizam no papel em transpiração

constante até o resultado do que se pretende poético. É nesse espaço que se institui o

inevitável encontro do poeta com a razão. Se a inspiração é o encontro com a divindade ou a

natureza para o pretexto da criação, o texto se faz da linguagem-palavra e, para isso, evoca-se

o racional.

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174

Maritain, citado por Dufrenne, distingue três figuras que estendem a ideia do gesto

poético às demais artes, a que chamou de três maneiras de libertar, por vezes, heroicamente, o

sentido poético dos vínculos que o detêm à razão discursiva, pois essa libertação é sempre a

principal ambição do poeta inspirado:

A primeira consiste “em dar imediatamente livre curso à intuição criadora nascida

nas profundezas da alma”. A segunda, ‘invejosa de Deus que careceu de tato

suficiente para criar antes de nós’, exalta o poder criador do homem. A terceira visa

uma procura de si através da poesia. (MARITAIN apud DUFRENNE, 1969, p.134)

No ato de criação da literatura de cordel, essa intuição é uma realidade que se

presentifica quando, num primeiro momento, levamos em conta esse poeta natural,

desarmado de qualquer amarra racional, por agir apenas pela sensibilidade que o envolve a

alma no sentido mais profundo, embora sem se desvencilhar da ideia de que, sem o dom, sem

a verve, não há poesia. É “é o dom necessário” de que fala Gonçalo Ferreira da Silva. Num

primeiro instante, porém, a alma do poeta se confunde com o próprio ato criador, quando o

que predomina é a busca pela inspiração, para, a partir disso, o texto tomar sentido,

propriamente, de que é construção:

Só a alma luminosa

Do homem missionário

Ouve a voz interior,

E tendo o dom necessário

Faz poesia da seiva

De um caule imaginário.

Poeta não ouve vozes

Só com humanos ouvidos,

Ausculta a alma das coisas

Com diferentes sentidos

Para os que não são poetas

Ainda desconhecidos. (SILVA, p. 3)

Ao invocar a Deus, há o reconhecimento do criador supremo por parte do poeta, mas

esse invocar é o pretexto “invejoso” daquele que se pretende igual criador em relação àquele

que, primeiramente, é o Criador. E que é “antes de nós”. No ato de criação do cordel, há

também essa busca por afirmação do homem como criador, e que, como um deus, se arvora à

condição de criador:

Oh! Deus todo poderoso

Dai-me a santa inspiração

P’ra eu descrever em versos

Sem despeito e sem paixão

A mais triste das histórias

Ocorridas no sertão. (SILVA, p. 1)

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175

Costa Leite, em O encontro de Lampião com Antônio Silvino, também se coloca como

o que, primeiramente, necessita da permissão do Criador para empreender sua narrativa:

Peço proteção a Deus

Nas poesias que faço

Saúde e felicidade

Enquanto copio e traço

Este conto nordestino

A luta de Antônio Silvino

E Lampião, rei do cangaço. (COSTA LEITE, p. 1)

Esclareça-se ainda que nos cordéis épicos não há fronteira na invocação a deuses e

musas inspiradores. Ao buscarem proteção para criar seus textos, tanto se invoca a Apolo

quanto a institutos representativos do universo judaico-cristão. De idêntica forma, a Natureza

com sua grandiosidade sofrerá pedido de auxílio na árdua labuta de se guardar memórias em

poesia.

Nos exemplos que seguem, as invocações aludem claramente à cultura clássica.

Mencionar Apolo ou, genericamente, as musas é prática já tornada tradicional na literatura de

cordel, o que denota o gosto dos poetas populares por essa cultura clássica, em muitos casos,

para mostrar conhecimento não somente a seu público, mas a seus pares, o que já se tornou

praxe entre esses poetas. É o que Marlene de Castro Correia (2010, p. 130) chama de

“disfarçada autovalorização do poeta junto ao público, perante o qual ele se define como

detentor-difusor da tradição”.

Ao invocar os deuses e as musas do Olimpo, o poeta se autoafirma perante seu

ouvinte/leitor como aquele que se atém à cultura clássica:

Apolo abre as veredas

Do passado do sertão

Mais um irmão de Silvino

Em minha apresentação

Aqui está no cordel

Dois cabras de Lampião [...]. (SABÓIA, p. 1)

Me inspire ó musa divina

Com toda sabedoria

Daí-me da mais rica mina

As pérolas da poesia

Para rimar meu poema

Nesse interessante tema

Que escolhi neste dia (RINARÉ, p. 1)

Musa mãe da poesia

Me encha de inspiração

Para narrar uma história

Sobre uma grande nação

Que é povo chinês

De milenar tradição (GERALDO, p. 1)

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Perceba-se na estrofe a seguir como se misturam invocações pagãs e cristãs, num

escancarar de portas que deixa conviverem deuses de toda casta:

Vinde musa mensageira

Do reino de Eloim

Traz a pena de Apolo

E escreve aqui por mim

O Assassino da Honra

Ou a Louca do Jardim. (SILVA, p. 1)

Nesse outro exemplo as musas são santas, em plena mistura de tradição católica e

pagã:

Ajudai-me santas musas

Com força suave e leve [...] (SILVA)

Em invocação totalmente cristã, Joel Francisco Borges recorre a Deus para escrever

seu cordel Vida do vaqueiro:

Com o apoio que tenho

Do santo Deus verdadeiro

Que da santa poesia

Eu me tornei um herdeiro

Neste livro vou falar

Sobre a vida do vaqueiro. (BORGES, p. 1)

A natureza, a que o poeta popular sempre foi integrado, constitui motivo de invocação

como se agregasse todas as forças de que o vate necessita:

Ligeira a Natureza

Para mim apareceu

Trazendo, ela, consigo

Com todo seu apogeu [...]. (BATISTA, p. 1)

Mas há ainda das três figuras do “gesto poético” de Maritain aquela em que o poeta se

busca ou diz de si ‘através da poesia’. Gonçalo Ferreira faz a pergunta retórica, para, na

verdade, se dizer num ato de autorreferencialidade:

Onde estaria Gonçalo

Alheio à humana dor?

Possivelmente na fonte

Geradora de amor,

No absconso segredo

Das mãos de seu Criador.

Dirão que não há estética

Neste preâmbulo que faço

Pois tenho que mergulhar

No velho nordeste crasso

Para arrancar um poema

Das entranhas do cangaço. (SILVA, p. 3-4)

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No cordel Trechos da vida de Lampião, Expedito Sebastião da Silva se enquadra nessa

terceira categoria do teórico francês, já que também se coloca no texto que constrói:

Para tirar o leitor

Duma dúvida ou embaraço

Aqui detalhadamente

Ligeiro um resumo faço

Sobre a vida do famoso

Lampião, rei do cangaço.

Da vida dele só conto

Trechos que chamam a atenção

De acordo com o que ouvi

Contado pelo sertão

E baseado no livro

Façanhas de Lampião.

Sobre ele algum poeta

Escreve, mas não conhece

A história verdadeira

Então o que acontece

É dizer muitas mentiras

Ferindo a quem não merece.

Portanto, fugindo à regra

Que escreve algum poeta

Adiante dou início

A uma história correta

Contando de Lampião

Trechos da vida completa. (SILVA, p. 1)

Esse dizer-se, apresentar-se no ato criador é algo corrente na literatura de cordel. Não

é pouco o número de autores que assim procede como a manter e preservar a tradição típica

de textos que provêm da oralidade. Antônio Teodoro dos Santos inicia o cordel Lampião, o

rei do cangaço da seguinte forma:

Nestes versos sertanejos

Escritos por minha mão

Baseado nas memórias

Do cangaço no sertão

Vou descrever o destino

Do capitão Virgulino

Que se chama Lampião. (SANTOS, p.1)

Quanto à construção do texto, afirma ainda Challub:

[...] o encontro que aí se dá é o da linguagem: do poeta e do leitor, construtores de

signos. Ou do emissor e do receptor diante de qualquer produção que necessite

expor seus sentidos a um outro que lhe dê existência pelo ato da descoberta de seu

ser. Diante de um poema, de um filme, da música que estimula o sensorial auditivo,

da escultura que convida ao tato, da ciência que permite a especulação, [...],

portanto, de qualquer mensagem organizada como um sistema de signos está o

receptor defrontado com a linguagem. [...] Há sempre o outro deflagrado diante do

eu, há sempre relações – de passividade ou dinâmicas, de criação ou de repetição –

mas sempre relações de linguagens. (CHALLUB, 2005, pp. 5-6)

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O poeta Abraão Batista propõe ao seu leitor as diversas possibilidades de leitura a

partir da linguagem do cordel, no entanto a leitura relacional se dá segundo a linguagem desse

mesmo leitor e sua consequente identificação com os códigos a ele lançados:

Meu leitor, meu amiguinho

Permita a imaginação

Desse encontro imaginário

De kung Fu com Lampião

Na cidade de Juazeiro

Do padre Cícero Romão.

Pois bem, eu vou lhe dizer

Como foi que aconteceu

Para contar quem se feriu

Quem se matou, quem morreu

Depois me diga por aí

Quem contou isso foi eu.

Lembre-se: essa história

É livre e imaginária

Vem do livro do poeta

Que tem na indumentária

Do infinito astucioso

Que não tem medo de pária. (BATISTA, p. 1)

Da mesma forma que o “poeta tem liberdade/sagrado dom da natura”, como escrevera

José Pacheco (Debate de Lampião com São Pedro, p. 8), e se é livre para percorrer os

caminhos do seu texto, o leitor, igualmente, fica livre, segundo seu contexto cognitivo para

imaginar e até completar a narrativa, se for um leitor ativo, atento. Nada é empecilho para um

“encontro imaginário” de Lampião com Kung Fu num diálogo universalizado, já que ambos

são filtrados pelo imaginário popular como ideais heroicos. Se Lampião e Kung Fu confluem

para esse ideal de herói, o leitor também pode confluir para o texto, segundo seu alcance

imaginativo, para estabelecer sua leitura/texto, uma vez que não há fronteiras no universo do

imaginário. Desse modo, autor e leitor se complementam e se completam na ciranda

criação/leitura/recriação.

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179

4. 2. INTERTEXTUALIDADE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

“Um discurso não vem ao mundo numa inocente solitude.”

(Maingueneau)

Outro fato chama a atenção para o ato criador dos poetas populares: há uma

mentalidade artística que os leva a construir a partir de nítido diálogo intertextual. É comum,

na abordagem da literatura de cordel, e sobre quase todos os assuntos, o poeta recorrer,

mencionar textos anteriores, como pontos de partida para o seu. A intertextualidade não só

homenageia um texto anterior como é depoimento de seu prestígio no tempo e no espaço

diante de um novo texto ou autor, e, consequentemente, um novo leitor ou uma nova leitura.

Se um Camões se pauta num Virgílio e este, num Homero é sinal de que há sempre um novo

texto em contato com outro anterior. Nesse caso, a visita de autor a outro termina por levar o

leitor a empreender dupla leitura, pois, ao tomar contato com a releitura de um autor qualquer,

seguramente estabelecerá diálogos com fontes anteriores ao autor, seu contemporâneo.

Para Julia Kristeva (1974), “[...] todo texto se constrói como mosaico de citações, todo

texto é absorção e transformação de um outro texto. Em lugar da noção de subjetividade,

instala‑se a intertextualidade e a linguagem poética lê‑se pelo menos como dupla” (p. 62).

Nos diversos cordéis nordestinos, a realidade do intertexto se faz presente não só naqueles

sobre cangaço, mas numa gama de temas de outra natureza:

Como dizia Drummond

“Cansei de ser moderno

Agora vou ser eterno”

Nesse mundo de meu Deus

Levo os pensamentos meus

Para contar uma história

Da grandeza da vitória

Com a pureza da razão.

Fazendo uma confissão

Como o ovo é da galinha

A história não é minha

Chegou-me pela internete

Sem enfeite, sem confete

Em forma de brincadeira

Do nosso Jorge Ferreira

Um retrô modernizante. (SALLES, p. 1)

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Outro texto do mesmo autor se faz carregar de intertextualidade:

Vários anos se passaram

Na história do cordel

E eu cada dia aprendendo

Sempre de lua de mel

Vou contar um novo enredo

Sem mistérios nem segredo

Escrevendo no papel.

Esse drama não é meu

Nem sei quem foi o autor

Se foi fato verdadeiro

Também não sei não senhor

Conheço desde menino

Por isso agora ensino

Mesmo sem ser professor. (SALLES, p.1)

Desse modo, é convergente a intertextualidade na literatura popular nordestina,

especificamente, nos escritos de cordel.

Conforme ainda de Kristeva (1974), “a palavra literária não é um ponto, um sentido

fixo, mas, um cruzamento de superfícies textuais, um diálogo de diversas escrituras: do

escritor, do destinatário (ou da personagem), do contexto cultural atual ou anterior” (p. 62).

Ao escrever Lampião, rei do cangaço, amores e façanhas, Antônio Teodoro dos

Santos começa seu texto com a transcrição do que chamou de “canto de guerra”, numa alusão

à Mulher rendeira, em explícito trabalho intertextual com a cantiga usualmente cantada pelo

bando, quando este entrava ou saía dos povoados e pequenas cidades invadidos. Em tom de

irônica zombaria, como a desafiar as comunidades atingidas, a canção, raro, não era entoada.

Da conhecida invasão de Lampião e seu bando a Mossoró, no Rio Grande do Norte,

em 1927, informa Fenelon Almeida (1981), quanto à toada em questão e sobre quem era o

cantador do grupo:

[...] era um menino, uma criança, um garoto de apenas 15 anos. Seu nome de

família: Oliveira, o Oliveira. Mas no bando, era tratado e respondia por “Menino de

Ouro”. [...]

Com sua voz de falsete descambando para aligeirado barítono – nem fina nem

grossa – era o “Menino de Ouro” quem puxava os acordes e o refrão de Mulher

Rendeira. (ALMEIDA, 1981, p. 52)

De autoria que oscila entre o folclórico e o popular, a canção é atribuída a Virgulino

Ferreira, ao bando, propriamente, em autoria coletiva, e a outros cangaceiros como Antônio

dos Santos, o Volta Seca, do bando de Lampião.

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181

Ao antepor aos versos iniciais de seu cordel trechos dessas quadras saídas do povo,

além de permeá-lo com outras quadras de igual origem, o que faz em todo o texto, o poeta

agrega-os em seções a que chamou “Canto de guerra”, “Toada satírica do povo” e “Poesia de

Lampião”. Noutras partes do texto, trechos de “Mulher rendeira” aparecem seguidos da

expressão “bis”, comum aos cantos cujas estrofes se desejam repetir em canções quaisquer.

Noutro lance do texto, talvez o mais interessante, se dá a transcrição de pequeno poema

atribuído a Virgulino Ferreira, comprovadamente apreciador de música de cantadores

repentistas e da poesia popular.

Entremear seu texto com outros resultou no enriquecimento do cordel em questão,

uma vez que sobre o cangaço se fazia presente desde muito tempo essa memória popular em

versos, e trazê-los à tona valoriza-os tanto quanto ao cordel. Desse modo, começa seu texto

Antônio Teodoro:

“O fuzil de Lampeão

É coberto de metá

A bala que sai de dentro

Cantando Muié rendá...

Olê, mulé rendera...

Olê, mulé renda...

Tu me ensina a fazê renda

Qu’eu t’insino a namorá

Chorou por mim não fica

Saluçou vai no borná!” (SANTOS, p. 3)

Veja-se que o poeta, ao iniciar seu texto, menciona a memória como algo que sai do

povo, de seu saber e de sua verve:

[...]

Nestes versos sertanejos

Escritos por minha mão

Baseado na memória

Do cangaço no sertão

Vou descrever o destino

Do capitão Virgulino

Que se chama Lampião. (SANTOS, p. 3)

O poeta encaixa outro trecho trazido da memória do cangaço, mas sempre em diálogo

com as ideias que quer transmitir em sextilhas anteriores ou posteriores à transliteração.

Nesse espaço, a menção é aos pais de Lampião. O pequeno texto, em tom de sátira, escarnece

da genitora de Virgulino Ferreira:

“Armei uma arapuca

Pr’a pegar um gavião

Peguei uma cobra preta

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182

Que é a mãe de Lampião.” (SANTOS, p. 4)

Na estrofe que antecede o texto, o poeta se refere aos genitores do rei do cangaço:

[...]

José Ferreira da Silva

E dona Maria José

São os pais de Virgulino

Unidos na Santa Sé

Não suportaram o menino

Foi criado Virgulino

Com seu tio, em Nazaré. (SANTOS, p. 4)

Por todo o texto, se faz notar a presença dessas quadras em distribuição aleatória,

porém, sempre de acordo com as intenções autorais, isto é, em constante conversa com a

narrativa. A escolha dos textos também se fez de modo interessante: há umas de tom

elogioso, outras, de caráter irônico, de modo que todo o escrito se faz acompanhar de

exemplos que se fazem atravessar de ideias, ora afirmativas sobre o cangaceiro, com dados

positivos, ora de outros em que elementos de negação compõem a intertextualidade presente

na narrativa.

Percebamos nesse trecho que rememora a entrada de Lampião para o cangaço, após

perder o pai por assassinato, como o texto em cordel se dá, e como a quadrinha que segue, o

legitima, fechando-o:

[...]

Virgulino nesse tempo

Tinha dezessete anos

Participou à justiça

O que fizeram os tiranos

Alguém disse: - Virgulino

Entrega ao Juiz Divino

Que resolve todos planos.

Ele disse: - É isso mesmo

Isso são coisas fatais

Mas se lê nos Mandamentos:

“honrarás aos vossos pais”

Eu nasci, sei que sou homem

Não garantindo este nome

Não desejo viver mais...

Comprou um rifle e punhal

Na vila de São Francisco

Fez bornal e cartucheira

Sem medo de correr risco

Convidou cada um irmão

Ajuntou no batalhão

Calais, Sabino e Corisco...

“Lá vem Sabino

Mais Lampião

Page 181: dedos cravejados de brilhantes, chapéus de estrelas carregados

183

Chapéu quebrado

Fuzil na mão!” (SANTOS, p. 6)

Ao dar foco ao amor vivido por Virgulino e Maria Bonita, o poeta dispõe entre duas

sextilhas versos que se conhecem até os dias atuais, com suas variantes, e que o folclore

reconhece como cantos entoados no bando do rei do cangaço. O lirismo do texto tem requinte

e beleza matuta, porém, sem deixar a base própria da história desse encontro. Maria de Déa,

como era também chamada, foi mulher de um sapateiro, a quem o poeta satiriza, e de quem,

antes de seguir Lampião, Maria Bonita havia se separado:

[...]

O sol assoprou seus raios

Sobre o véu da catadupa...

Lampeão naqueles matos

Só com Maria se ocupa

E o sapateiro, eu nem falo

Pois o dono do cavalo

Não monta nem na garupa.

“Te alevanta, Maria Bonita

Te alevanta, vem fazer café...

Os cabra na mesa de jogo

Maria Bonita, na máquina de pé!”

Alguém que não conheceu

A mulher de Lampeão

Se nome diz a beleza

E a proeza o coração

Lutava contra a polícia

Tinha coragem e perícia

Destreza no mosquetão. (SANTOS, p. 23)

Em outro trecho, Antônio Teodoro dos Santos apresenta textos tirados da canção

anônima em torno do casal, de seus desgostos, de suas saudades. Como mencionado

anteriormente, o texto transliterado é referente à letra e melodia, pela pista encontrada na

expressão “bis”, além de, dentro do texto, os versos “vibrando uma melodia/ da conhecida

canção” confirmarem a ocorrência da linguagem musical em diálogo com a desse cordel:

[...]

Naquele sertão imenso

Alguém ouviu Lampeão

Vibrando uma melodia

Da conhecida canção

Muita gente até chorava

Pela voz que deslumbrava

Na dor da recordação:

“Não sei se é minha sina

Não sei se é minha sorte:

Tenho saudade e não vejo) Bis

A Ingazeira do Norte...”) (SANTOS, p. 27)

Page 182: dedos cravejados de brilhantes, chapéus de estrelas carregados

184

Quanto a Maria Bonita, a narrativa se dá na saudosa voz da própria cangaceira, na

estrofe imediatamente seguinte:

[...]

Então, Maria Bonita

Com uma voz que admirava

Cantava sua modinha

Que a serrania ecoava

No seu gesto de beleza

Parecia uma princesa

Quando estes versos narrava:

“Adeus casa que eu morava

Sala que eu passeava

Cadeira que eu me assentava) Bis

Janela que nós namorava!...” ) (SANTOS, p. 27)

Ao abordar a intertextualidade, Roland Barthes traz interessante discussão ao

mencionar que essa prática resulta no processo de desconstrução, mas também de

reconstrução de outro texto, ou seja, do novo texto:

O texto redistribui a língua (é o campo dessa redistribuição). Um dos caminhos

dessa descontrução-reconstrução é permutar textos, retalhos de textos que existiram

ou existem em torno do texto considerado e finalmente nele: todo texto é um

intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, com formas mais

ou menos reconhecíveis. [...]

A intertextualidade, condição de todo texto, seja ele qual for, não se reduz,

evidentemente, a um problema de fontes ou influências; o intertexto é um campo

geral de fórmulas anônimas, cuja origem raramente é detectável, de citações

inconscientes ou automáticas, dadas sem aspas. (BARTHES, 2004, p. 275)

Entendamos essa redistribuição de que fala Barthes como um mecanismo de repetição

permitida a que todos os escritores têm acesso, a partir da língua, como se um texto anterior,

ou até contemporâneo, fosse ponto de partida para outros textos. É o olhar ou o sentir de um

poeta, por exemplo, que se estende ao de outro, que o confirma, com novo texto, sem deixar

de ser original, e por isso mesmo, se afirma como construção, ou seja, desconstrói-se, para se

entender a engrenagem de um texto anterior, com o sentido de reconstruí-lo, o que, na

verdade, é já outra construção. Se refletirmos nas “fórmulas anônimas” do autor de O prazer

do texto, todo texto pré-existe anonimamente, e nesse caso, haveria uma autoria coletiva,

porém o que o torna original é o arranjo ou rearranjo que alguns têm a capacidade de

executar, e desse modo, eis a razão do reconhecimento autoral.

Nessa direção, o poeta dá voz do próprio Virgulino Ferreira, já no final da narrativa,

como um fechamento com chave de ouro, sob o título de “Poesia de Lampião”, em que se

transcrevem versos debitados a Virgulino, e nos quais o bandoleiro descreve, entre o lamento

e o orgulho, a sina de ser cangaceiro:

[...]

Page 183: dedos cravejados de brilhantes, chapéus de estrelas carregados

185

Por minha infelicidade

Entrei nesta triste vida

Não gosto nem de contar

A minha história sentida

A desgraça enche o meu rosto

Em minha alma entra o desgosto

Meu peito é uma ferida.

Quando me lembro, senhores

Do meu tempo de inocente

Que brincava nos serrados

Do meu sertão sorridente

Magoado desta paixão

Sinto que meu coração

Bate e chora amargamente...

Meu pai e minha mãe querida

Quiseram me ensinar

No seu coro carinhoso

Ela ensinou-me a rezar

E, à luz dos pirilampos

Ele ensinou-me nos campos

Eu menino a trabalhar.

[...]

Tive também meus amores

Cultivei minha paixão

Amei uma flor mimosa

Filha lá de meu sertão

Sonhei de gozar a vida

Bem junto à prenda querida

A quem dei meu coração...

[...]

Meu rifle atira cantando

Em compasso assustador

Faz gosto brigar comigo

Porque sou bom cantador

Enquanto o rifle trabalha

Minha voz, longe, se espalha

Zombando do próprio horror. (SANTOS, p. 29-30)

Rogel Samuel (1985) em estudo de crítica literária assinala as apreciações

sociológicas de Goldmann e Lukács, para os quais “[...] a superestrutura ideológica do texto

veicula uma ideologia (uma visão de mundo) que não é exclusividade do escritor, produtor do

texto, mas que provém de certa classe social, cuja voz o texto traduz” (p. 189). Os cordelistas

têm essa certeza de que trazem a voz do povo, de que são seu representante e de que lhes

refletem os anseios. Há nesses poetas uma consciência de que o texto já existe, está pronto e

de que eles apenas lhe dão forma, trazem-nos a público, rumina-os, sintetiza-os, traduzem-

nos. No texto que segue, o poeta José Costa Leite é enfático:

[...]

Todo mundo já conhece

Sua história e seu passado

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186

Porém existe um detalhe

Que ainda não foi contado

E o poeta popular

Se apresenta pra contar

Deixando o povo informado. (COSTA LEITE, p. 1)

O poeta Manuel D’Almeida Filho também dá provas de como o texto se constrói a

partir de fonte que já existe:

[...]

Entre os fatos mais falados

Pelas plagas do sertão,

Temos as grandes façanhas

Dos cabras de Lampião

Mostrando as quadras da vida

Do famoso capitão.

Em diversas reportagens

De revistas e jornais,

Com testemunhas idôneas,

Contando os fatos reais,

Coligimos neste livro

Lances sensacionais.

[...]

São casos que ainda hoje

Não temos quem os conteste

Porque ficaram gravados

Nas entranhas do Nordeste

Com sangue, com ferro e fogo,

Como maldição da peste.

[...]

Acreditamos que tenham

Existido outros bandidos,

Mortos ou ainda vivos,

Que não foram conhecidos

Nem lembrados pelo povo

Ficaram assim esquecidos.

Tudo que aqui narramos,

Dos cabras de Lampião,

Lemos ou nos foi contado

Por pessoas do sertão,

Não temos culpa se houve

Erros na informação.

Aos meus admiradores

Levo uma história concreta

Manipulada com fatos

Em cada fonte correta,

Inserida no sertão,

Dos cabras de Lampião,

A narração mais completa. (D’ALMEIDA FILHO, pp. 1 e 48)

Atente-se para uma prática comum aos cordelista: o autor encerra a legitimidade dos

seus versos com o uso de acróstico.

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187

Os textos acima transcritos nos dão a cabal ideia da intertextualidade que o poeta,

efetivamente, buscou no próprio povo que tem seus textos orais guardados na memória. O

poeta praticou o que Roger Samuel aponta das afirmativas de Luckács e Goldmann: “todo

texto revela uma luta de classes, reflexo especular de infraestruturas (Luckács), homologia de

relações sociais (Goldmann) em que o que se passa no texto é o que se passa na coletividade”.

(ROGEL SAMUEL, 1985, p. 189).

Na literatura de cordel, segundo proposta do olhar épico, essa coletividade autoral se

dá tanto do ponto de vista da coletividade, naquele sentido mesmo da tradição popular e

folclórica, quanto pela intertextualidade, na medida em que há a colagem, o diálogo com

textos anteriores e até contemporâneos, algo que se dá talvez intuitivamente, mas não menos

interessante para a construção literária do cordel.

Em Encontro de Lampião com Adão no paraíso, cujos versos ilustram os últimos

parágrafos acima, Manoel D’Almeida Filho faz menção aos cordéis, respectivamente, A

chegada de Lampião no inferno e Debate de Lampião com São Pedro, ambos de José

Pacheco, em ponto de contato nos seguintes versos:

[...]

Falando de Lampião

Não temos nenhum receio,

Pois quem viveu no Nordeste

Sabe bem de onde ele veio;

Do tempo dos coronéis

Foi um produto do meio.

Depois de morto, os poetas

Versaram diversos contos

Mostrando muitas proezas

Nos mais diferentes pontos

Com gracejos que os leitores

Às vezes ficavam tontos.

Quando foi para o inferno

O diabo não aguentou

Sem ninguém poder dar jeito

Lá todo bicho apanhou;

Só foi embora depois

Que o conjunto incendiou.

Foi debater com São Pedro,

Porém correu grande risco

Porque do céu foi expulso

Por efeitos de um corisco

Que caiu do quinto andar

“Jogado por São Francisco”. (D’ALMEIDA FILHO, p. 1)

Em a Chegada de Lampião no inferno, José Pacheco narra:

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188

Um cabra de Lampião

Por nome Pilão Deitado

Que morreu numa trincheira

Em certo tempo passado

Agora pelo sertão

Anda correndo visão

Fazendo mal-assombrado.

E foi quem trouxe a notícia

Que viu Lampião chegar

O inferno nesse dia

Faltou pouco pra virar

Incendiou-se o mercado

Morreu tanto cão queimado

Que faz pena até contar.

[...]

Lampião pegou um seixo

E o rebolou num cão

A pedrada arrebentou

A vidraça do oitão

Saiu um fogo azulado

Incendiou-se o mercado

E o armazém de algodão. (PACHECO, pp. 1 e 7)

Ainda no que tange a essa intertextualidade de Manoel D’Almeida Filho com os dois

folhetos relacionados acima, vejam-se os trechos abaixo do encontro de Virgulino Ferreira no

céu com São Pedro, porém em acalorada desavença que termina por envolver todos os santos

para expulsar o cangaceiro:

[...]

S. Paulo estava na quinta-feira

Mas ouvindo a discussão

Apertou o cinturão

Botou a faca na cinta

Encontrou Santa Jacinta

Que já vinha no caminho

E disse Santo Agostinho

Arretorcendo o bigode:

Arreda, que tu não pode

Eu pego o cabra sozinho.

Porém antes de pegar

Desceu um grande corisco

Jogado por S. Francisco

Da porta do quinto andar

Num tremendo rebombar

Um trovão também desceu

O espaço escureceu

Veio até um pé de vento

Lampião nesse momento

Dali desapareceu. (PACHECO, p. 8)

Afonso Romano de Sant’Anna (1988) cita Foucault e Jacques Derrida como aqueles

que trabalharam bastante a questão da intertextualidade, já que argumentavam “que o texto é

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189

algo sempre em movimento, que há correlação entre as diversas escritas, e que a única

maneira de se aproximar o quanto possível de certa verdade é estar preparado para ler todos

os artifícios que os textos nos preparam” (p.72). Nesse sentido, podemos afirmar que

cordelistas correm juntos na feitura de seus textos com a releitura de outros em tear que exige

sempre mais fios. O movimento de que falam Foucault e Derrida está em ser o texto uma

instância de todos e não um tecido particular. Particular é a originalidade que daí emana.

Luiz Gonzaga de Lima escreveu A chegada de Lampião no purgatório e, seguindo os

passos de José Pacheco, com o texto deste estabelece contato nos seguintes versos: “Lampião

não sendo aceito/ No inferno nem no céu”.

De José Pacheco se lê:

[...]

Leitores vou terminar

Tratando de Lampião

Muito embora que não possa

Vos dar a resolução

No inferno não ficou

No céu também não chegou

Por certo está no sertão. (PACHECO, p. 8)

Em A volta de Lampião ao inferno, de Manoel D’Almeida Filho, se dá a

intertextualidade novamente com Pacheco: “Primeiro foi ao inferno/ Onde não foi recebido”.

Em A chegada de Lampião no inferno, se lê como um cangaceiro que volta desse mesmo

lugar narra a chegada de Lampião por lá, e como este foi recepcionado:

[...]

O vigia foi e disse

A Satanás, no salão:

- Saiba vossa senhoria

Que aí chegou Lampião,

Dizendo que quer entrar

E eu vim lhe perguntar

Se dou ingresso ou não.

- Não senhor, Satanás disse,

Vá dizer que vá embora

Só me chega gente ruim

Eu ando muito caipora

Estou até com vontade

De botar mais da metade

Dos que tem aqui pra fora! (PACHECO, p. 3)

Ao tratar do processo de intertextualidade, assegura Tomasello:

Quando utilizadas em atos de comunicação, [...] habilidades sociocognitivas servem

para criar símbolos linguísticos entendidos intersubjetivamente e perspectivamente,

os quais podem ser usados para convidar as outras pessoas a conceptualizar

fenômenos de alguma das várias perspectivas, simultaneamente, disponíveis. A

internalização de tais atos de comunicação simbólica cria formas de representação

cognitiva especialmente flexíveis e poderosas e essas, então, mais tarde, na

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190

ontogenia, permitem pensamentos metafóricos, dialógicos e reflexivos.

(TOMASELLO, 2003, p. 11)

É nessa perspectiva que trabalham os poetas populares: diálogos que resultam de

releituras, e que, por seu lado, transmudam em novo texto. Na literatura de cordel, são

inúmeros os exemplos desse fenômeno da intertextualidade. Nela há textos deveras originais,

mas o são, porque saídos de diálogos e reflexões sobre como construir seu próprio texto a

partir de outros, sem ter de necessária e piamente imitá-los. Aliás, ressalte-se, o processo de

intertextualidade está além, bem além do de imitação:

[...]

Tudo que aqui narramos

Dos cabras de Lampião,

Lemos ou nos foi contado

Por pessoas do sertão,

Não temos culpa se houve

Erros na informação. (D’ALMEIDA FILHO, p. 48)

Esses procedimentos, embora, de certo modo, intuitivos, nos levam a crer que a

poética do cordel se dá não só pela inspiração, mas pelo trabalho e consequente transpiração

na busca da linguagem, na escolha das palavras, no processo da rima, na busca pelo ritmo.

Inspiração e suor são as argamassas da construção desse texto.

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191

4.3. A CONSTRUÇÃO: “TIJOLO COM TIJOLO NUM DESENHO MÁGICO”

Como um pássaro sem asas

Ele subia com as casas

Que lhe brotavam da mão.

(“O operário em construção”, Vinicius de Moraes)

Em conformidade com a poesia popular, é usual a construção em versos que se dá com

cinco sílabas, as chamadas redondilhas menores, e com sete, tidas por redondilhas maiores.

Na literatura de cordel e noutras modalidades de poesia popular, como as da cantoria do

repente, são usadas métricas que foram consagradas desde finais do século XIX, por todo o

XX e até os dias atuais.

Na Antologia ilustrada dos cantadores (1982), Francisco Linhares e Otacílio Batista

são precisos em suas informações acerca da construção silábica, rímica e rítmica da poesia

popular, especificamente, em versão cantada e de improviso, embora o estudo se enquadre,

igualmente, na poética da literatura de cordel. Alegam os autores que, entre as criações dos

poetas clássicos, que vieram a ser usadas pelos nossos cantadores, estão a quadra, a décima, a

sextilha em decassílabo com rimas cruzadas, e sua variante (Cf.: LINHARES e BATISTA, p.

13).

Há algo que devemos perceber ao longo da história da poética popular: os textos

clássicos ou migraram naturalmente para essa poesia ou foram espontaneamente adotados por

seus poetas. É possível que isso se dê por ocasião de o poeta popular absorver o clássico

como aquilo que já está pronto e pode ser adaptado à sua realidade de autor. Percebe-se, a

partir dessa perspectiva, que o poeta popular, de posse dessas informações poéticas, se sente à

vontade para se dirigir a seu povo com espírito mais galante.

Ao mencionar a décima como de origem clássica, os autores da Antologia ilustrada

dos cantadores alegam ser “um estilo muito apreciado, desde os primórdios da poesia

popular” (LINHARES e BATISTA, p. 19). Comumente, a décima clássica se dá da seguinte

forma: ABBAACCDDC, em versos com rimas consoantes, em que o primeiro rima com o

quarto e quinto; o segundo, com o terceiro; o sexto, com o sétimo e o décimo, e o oitavo, com

o nono. Costumam as décimas serem de sete sílabas poéticas.

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192

Em termos de ilustração, seguimos a Linhares e Batista para trazermos à tona um texto

provavelmente do século XIX, de autoria do paraibano, da Serra do Teixeira, berço da

cantoria brasileira, Antônio Ugolino Nunes da Costa, de alcunha Ugolino do Sabugi, tido

como primeiro cantador nordestino e brasileiro. O texto é glosado segundo o mote: As obras

da natureza:

[...]

As obras da natureza

São de tanta perfeição,

Que a nossa imaginação

Não pinta tanta grandeza!

Para imitar a beleza

Das nuvens com suas cores,

Se desmanchando em louvores

De um manto adamascado,

O artista com cuidado

Da arte aplica os primores. (LINHARES e BATISTA, p. 19)

Quanto à sextilha, informam os referidos autores:

Talvez, por ser mais fácil, seja o gênero preferido pelos nossos repentistas,

principalmente no início das apresentações. A sextilha é uma estrofe com rimas

deslocadas, constituída de seis linhas, seis pés ou seis versos de sete sílabas, nomes

que têm a mesma significação. Na sextilha rimam as linhas pares entre si,

conservando as demais em versos brancos. (LINHARES e BATISTA, 1982, p. 13)

Dessas estrofes de seis versos, pode-se afirmar que se distribuem da seguinte forma:

AABBCC, AABCCB, ABABAB (a mais comum aos cordéis), ABABCC, ABACBC,

ABACCB, ABBAAB, ABBABA, ABBCAC, ABCABC, ABCBAC.

Informa Câmara Cascudo:

[...] o povo não cultivou as formas cultas do soneto nem os versos de 12 sílabas. [...]

A sextilha, verso de seis pés, é a forma popular dos “desafios” e dos romances

publicados em todo o Brasil, comentando assuntos novos ou velhos, líricos ou

guerreiros, políticos, gerais ou locais. (CASCUDO, 1978, p. 351)

Os exemplos são os mais vastos. Um deles é a transcrição de um suposto desafio entre

os poetas populares Passarinho e Melquíades Literatura oral no Brasil, (1978) em que,

inclusive, explicam o processo de sua poética, embora com pequenas irregularidades na

distribuição silábica, entre seis e sete e até oito:

Eu/ não/ ve/jo/ quem/ me a/fron/te

Nes/tes/ ver/sos/de/ seis/pé;

Pe/gue o/pi/nho/, com/pan/hei/ro,

E/can/te/ lá/ se/qui/sé...

Qu’eu/ mor/do e/ be/lis/co a is/ca

Sem/ ca/ir/ no/ ge/re/ré.

Pas/sa/ri/nho/, te/pre/pa/ra

Pa/ra/ le/var/ uma/ pi/sa;

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193

Se a/jo/e/lhe em/ meus/pés,

Ti/ran/do/fo/ra a/ ca/mi/sa,

Na/po/e/si/a /de/se/te

Ver/se/vo/cê/ im/pro/vi/sa. (p. 351)

O outro responde na poesia de sete, que corresponde, no texto, tanto ao verso de sete

sílabas quanto ao de sete pés, a setilha, simultaneamente, pela resposta do outro:

Mel/quí/a/des/,nes/te/sis/te/ma

É/co/mo/ pás/sa/ro/gor/jei/a;

Co/me/ça/ na/ lua/-no/va,

Ter/mi/na/ na/ lua/-chei/a,

A/fi/ne a/ sua/ vi/o/la

Pa/ra/ se/ me/ter/em /so/la

E/ de/pois/ ir/ pra/ca/dei/a! (p. 352)

As variações silábicas se dão nos versos 5.º, da primeira estrofe, com seis sílabas; 2.º e

3.º da segunda, com seis; 1.º e 2.º, com oito; 3.º, 4.º e 5.º, com seis, na terceira estrofe.

Francisco Linhares e Otacílio Batista (1982) citam uma memorável sextilha de

Leandro Gomes de Barros em que este explica seu fazer poético entre o metalinguístico e a

lição moralizante, o que se dá segundo exemplo abaixo:

Meus/ ver/sos/ in/da/ são/ do/tem/po

Que as/ coi/sas/ e/ram /de/gra/ça:

Pa/no/ me/di/do/ por/ va/ra,

Ter/ra /me/di/da/ por/bra/ça,

E um/ ca/be/lo /da/bar/ba

Era uma/ le/tra/ na/pra/ça. (p. 15)

Na estrofe, percebe-se a irregularidade das sílabas métricas, também chamada de pé

quebrado, o que ocorre no 1.º, 5.º e 6.º versos, com sílabas métricas fora de propósito no 1.º

verso, com oito sílabas; no 5.º, com seis e no 6.º, com cinco. No primeiro verso, se o pronome

possessivo –meu estivesse no singular, também fugiria ao setessílabo, comum à construção

da poesia popular. Leia-se: Meu/ ver/so in/da é/ do/ tem/po. O 5.º e 6.º versos escapam às

propostas tão caras ao cordel.

Essas oscilações até ocorrem, mas os poetas têm o cuidado de evitá-las, já que

primam, tradicionalmente, pela métrica. Das sextilhas que seguem, sirvamo-nos dos versos de

Expedito Sebastião da Silva em Trechos da vida completa de Lampião, cordel em que o poeta

se utiliza da devida separação das sílabas poéticas:

Pa/ra ti/rar/ o/ lei/tor

Du/ma/ Du/vi/da ou em/ba/ra/ço

A/qui/ de/ta/lha/da/men/te

Li/gei/ro um/ re/su/mo/ fa/ço

So/bre a/ vi/da/ do/ fa/mo/so

Lam/pi/ao/, rei/ do/ can/ga/ço.

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194

Da/ vi/da/ de/Le/ só/can/to

Tre/chos/ que/ cha/mam/ a/ten/ção

De a/cor/do /[com] /o/ que ou/vi

Com/ta/do/ pe/lo/ ser/tão

E/ ba/se/a/do/ no/ li/vro

“Fa/çan/has/ de/ Lam/pi/ão”. (SILVA, p. 1)

Setessilábicos, os versos apresentam uniformidade clássica, exigência dos que

propõem trabalhar o verso segundo uma métrica que a tradição dita tanto aos repentistas

quanto aos poetas cordelistas.

De acordo com Linhares e Batista, as estrofes de sete linhas ou versos já são uma

criação brasileira, conforme citação abaixo:

O cantador alagoano Manuel Leopoldino de Mendonça Serrador fez uma adaptação

à sextilha, criando o estilo de sete versos, também chamado de sete linhas ou de sete

pés, rimando os versos pares até o quarto, como na sextilha; o quinto rima como o

sexto, e o sétimo com o segundo e o quarto. (LINHARES e BATISTA, 1982, p 15)

A estrofe de sete versos se dá da seguinte forma: AABCBBC, ABBACCA,

ABABCCB, ABACBAC, ABACDCD, ABBAACC, ABBACCA.

No repente e na literatura de cordel, a mais comum das estrofes em sete pés é a que

segue, do poeta José Cordeiro, com o texto A visita de Lampião a Juazeiro:

Lei/tor, vou/ nar/rar/ um/fa/to

Le/gal/men/te/ ver/da/dei/ro

Do/que/ Lam/pi/ão/ fi/ze/ra

A/ vin/te/ de/ fe/ve/rei/ro

E a/ vi/si/ta/ que/ fez

Em/ mar/ço a/ 4/ do/ mês

Ao /pa/dre/ do/ Ju/a/zei/ro. (CORDEIRO, p. 1)

Note-se que os versos 1.º, 2.º, 3.º e 4.º apresentam sete sílabas. O 5.º é de pé quebrado

e o 6.º, ao apresentar o dia do mês em algarismo arábico, aparentemente, não teria as sete

sílabas esperadas. Entretanto, vertido para a palavra, isto é, ao ser escrito, o numeral quatro

converte o dito verso em setessilábico: “em/mar/ço a/qua/tro/do/ mês”.

Outro recurso de que os poetas populares se utilizam é o enjambement ou

cavalgamento, técnica de origem medieval que se aplica à poesia popular e à erudita.

O poeta Antônio Cícero, em seu blog (<http://antoniocicero.blogspot.com.br>),

informa a esse respeito em apurado estudo:

Os poetas modernos usam mais o enjambement do que os clássicos. De fato, com o

verso livre, a importância expressiva do enjambement aumentou. Querendo dar um

exemplo disso, lembrei logo de alguns versos de um livro que iluminou minha

adolescência, "A Rosa do Povo", de Carlos Drummond de Andrade, mestre absoluto

do enjambement. Do poema "Consideração do Poema", por exemplo, lembrei dos

seguintes:

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195

Que Neruda me dê sua gravata

chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakóvski.

O fenômeno do enjambement, encadeamento ou cavalgamento, para Amador Ribeiro

Neto, se dá “quando um verso continua no seguinte sintática, semântica e ritmicamente.” [...]

“Este tipo de verso transmite a ideia de continuidade, envolvimento, de sequência.”

(RIBEIRO NETO,< http://portal.virtual.ufpb.br>).

Um dos exemplos mais criativos de enjambement na poesia popular vem de Severino

Lourenço da Silva Pinto, de alcunha Pinto do Monteiro, considerado até os dias atuais como o

maior poeta do gênero. Se o texto se deu em décima, sob o mote “Quem foi aroeira outrora/

quem está sendo hoje em dia”, o poeta glosou da seguinte forma:

Eu mesmo já fui um dos

Que vi muito gado aqui

Tudo com o ferro de

Doutor Artur Santa Cruz

Onde se avistava os

Grandes rebanhos que havia

Gado de solta e de cria

Dentro da fazenda e fora

Quem foi aroeira outrora

Quem está sendo hoje em dia. (PINTO, apud PEREIRA, 2006, p. 25)

Do poeta Gonçalo Ferreira da Silva sobre Gandhi há o seguinte verso, em que foi

necessária a utilização da técnica do enjambement:

Dia trinta de janeiro

De quarenta e oito, o guia

Espiritual da Índia

Três balaços recebia,

Quando o dia agonizava

Mahatma Gandhi morria. (SILVA, apud PEREIRA, 2006, p. 25)

Carlos Drummond de Andrade em um de seus tantos metapoemas escreve que “Lutar

com palavras/ É a luta mais vã/ Entanto, lutamos/ Mal rompe a manhã” (2001, p. 243).

Os poetas populares têm o dom de lutar com as mesmas palavras, embora muitos

deles, senão a maioria, não teve nem manhãs nem tardes nem as noites em que pudessem lidar

com o saber escolar. Parte considerável deles tem apenas rudimentos de saber aprendidos e

apreendidos em cartas de ABC, em pequenas leituras de jornais, em leituras na própria

literatura de cordel. Esse é o que constitui o depoimento de quase todos. Sua poesia brota da

terra, do chão, da natureza. De suas experiências autóctones vêm o saber, a observação, a

sensibilidade para lidar com as coisas, com os bichos, com as plantas, todos a constituir motes

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196

para a poesia. É desse chão que brotaram o vaqueiro, o gado, as águas, os rios, a valentia, o

cangaceiro. Ali nasceu uma poesia da terra.

Os textos que nasceram e nascem desse olhar e que abordaram e abordam a temática

do cangaço são os mesmos em que há metalinguagem, intertextualidade, pesquisa a fontes

escritas e orais, diálogo com o leitor, técnica legada pela tradição: escansão, ritmo, conteúdo

(a que eles chamam de oração), rima, silabação, todos a se dar espontânea e intuitivamente,

num quase divino criar, mas também num humano e consciente criar.

Num texto em que se comemoram os supostos cem anos de literatura de cordel no

Brasil, o poeta Geraldo Amâncio Pereira (2006, pp. 37 e 39) alude a um título tornado um

clássico, o Romance do pavão misterioso, de José Camelo de Melo Resende, (? – 1964)

publicado em 1959 e tido como um dos maiores exemplos dessa poética. O texto é construído

sob um mote dado por Antônio Klévisson Viana, que diz: O cordel completou um

centenário/Viajando nas asas do pavão. Ao partir dessa ideia, o texto é todo um metapoema:

A maior expressão do menestrel

Não há força que atinja seu alcance

O campônio conhece por romance

Ou então por folheto de papel.

Só depois veio o nome de cordel,

Que em feira era exposto num cordão

Ou então numa lona pelo chão

E um poeta a cantar feito um canário

O cordel completou um centenário

Viajando nas asas do pavão.

Registrando o passado e o presente,

Para tudo o cordel tem sempre espaço:

Pra amor, pra política, pra cangaço,

Romaria, promessa, penitente.

Retirante, romeiro, presidente,

Seca, fome, fartura, inundação...

Qualquer um que quiser informação,

Nele encontra o melhor documentário,

O cordel completou um centenário

Viajando nas asas do pavão.

Dos cordéis, elegeu-se o mais famoso,

Entre métrica, oração, rima e estilo,

O segundo lugar é de João Grilo

E o primeiro, o Pavão misterioso,

A história de um pássaro formoso

Misturando real e ficção.

O enredo imortal de uma paixão

Imprimiu-se no nosso imaginário,

O cordel completou um centenário

Viajando nas asas do pavão.

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197

Ao buscar no cangaceiro o personagem que represente seu povo, o poeta o faz herói da

narrativa numa dura epopeia da vida em meio à cruel realidade do enfrentamento às volantes,

aos coronéis, aos valentes de todos os naipes, à seca, à fome, ao perigo, à vizinhança com a

morte, e, inclusive ao medo, mas também ao destemor de tudo.

É imprescindível lembrar que Carlos Drummond de Andrade, admirador desses poetas

populares, em texto sobre o mais importante deles, Leandro Gomes de Barros, afirma em

crônica intitulada O poeta:

Em 1913, certamente mal informados, 39 escritores, num total de 173, elegeram por

maioria relativa Olavo Bilac príncipe dos poetas brasileiros. Atribuo o resultado a

má informação porque o título, a ser concedido, só poderia caber a Leandro Gomes

de Barros, nome desconhecido no Rio de Janeiro, local da eleição promovida pela

revista FON-FON, mas vastamente popular no Nordeste do País, onde suas obras

alcançaram divulgação jamais sonhada pelo autor de "Ouvir Estrelas". [...] E aqui

desfaço a perplexidade que algum leitor não familiarizado com o assunto estará

sentindo ao ver defrontados os nomes de Olavo Bilac e Leandro Gomes de Barros.

Um é poeta erudito, produto da cultura urbana e burguesa média; o outro, planta

sertaneja vicejando à margem do cangaço, da seca e da pobreza. Aquele tinha livros

admirados nas rodas sociais, e os salões o recebiam com flores. Este espalhava seus

versos em folhetos de cordel, de papel ordinário, com xilogravuras toscas, vendidos

nas feiras a um público de alpercatas ou de pé no chão. (Jornal do Brasil, 9 de

setembro de 1976)

Continua o poeta de Sentimento do mundo:

A poesia parnasiana de Bilac, bela e suntuosa, correspondia a uma zona limitada de

bem estar social, bebia inspiração europeia e, mesmo quando se debruçava sobre

temas brasileiros, só era captada pela elite que comandava o sistema de poder

político, econômico e mundano. A de Leandro, pobre de ritmos, isenta de lavores

musicais, sem apoio livresco, era o que tocava milhares de brasileiros humildes,

ainda mais simples que o poeta, e necessitados de ver convertida e sublimada em

canto a mesquinharia da vida [...]. Não foi príncipe de poetas

do asfalto, mas foi, no julgamento do povo, rei da poesia do sertão, e do Brasil em

estado puro. (Jornal do Brasil, 9 de setembro de 1976)

Manuel Bandeira, afeito igualmente à poesia popular, depois de ouvir uma

apresentação dos irmãos repentistas Otacílio e Dimas Batista e outros, escreveu o poema

Cantadores do Nordeste, cuja temática aborda a poética dos repentistas.

Para Carlos Nogueira (<seer.ufrgs.br/organon/article/view/>), “com Cantadores do

nordeste, o poeta explora a técnica da literatura popular em verso, nomeadamente o ritmo

próprio da cantoria e da correspondente poesia de cordel, atualizando assim os seus propósitos

programáticos de realização de todos os ritmos, sobretudo, os inumeráveis” (p.3).

No texto referido há o reconhecimento do poeta de Estrela da vida inteira à inspiração

dos cantadores: “Caíam rimas do céu”, mas também há a referência ao trabalho e à

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transpiração como parte do processo de construção: “Saltavam rimas do chão! /Tudo muito

bem medido/ No galope do sertão.” A homenagem sincera e humilde do poeta de Pasárgada

foi lançada, primeiramente no Jornal do Brasil de 11 de dezembro de 1959, para depois

constar do Estrela da tarde, (1960), além de compor Estrela da vida inteira (1966), na seção

chamada Louvações:

Anteontem, minha gente,

Fui juiz numa função

De violeiros do Nordeste.

Cantando em competição,

Vi cantar Dimas Batista

E Octacílio, seu irmão.

Ouvi um tal de Ferreira,

Ouvi um tal de João.

Um, a quem faltava um braço,

Tocava cuma só mão;

Mas como ele mesmo disse

Cantando com perfeição,

Para cantar afinado,

Para cantar com paixão,

A força não está no braço:

Ela está no coração.

Ou puxando uma sextilha

Ou uma oitava em quadrão,

Quer a rima fosse em inha,

Quer a rima fosse em ao,

Caíam rimas do céu,

Saltavam rimas do chão!

Tudo muito bem medido

No galope do sertão.

[...]

Saí dali convencido

Que não sou poeta não;

Que poeta é quem inventa

Em boa improvisação,

Como faz Dimas Batista

E Otacílio, seu irmão;

Como faz qualquer violeiro

Bom cantador do sertão,

A todos os quais, humilde,

Mando a minha saudação! (BANDEIRA, 1986, pp. 237-238)

Os poetas populares, especialmente os cordelistas, na busca por um ideal mítico para o

seu povo, fizeram e fazem do cangaceiro o herói de suas narrativas.

Ao pensar a palavra, ao buscar a expressão que mais bem represente o foco de sua

temática, ao tentar não só pensar, mas escrever sob a inspiração e a transpiração, o poeta

popular se faz herói de própria narrativa.

O chão que deu o cangaceiro produziu, igualmente, o poeta. O primeiro escreveu toda

uma história por linhas tortas; o segundo procura trilhar as linhas certas para escrever sua

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matéria poética em luta cotidiana com as palavras que brotam de seu chão e lhe são

ferramentas indispensáveis no contributo à história e à memória de seu povo.

Se os cangaceiros são elevados a heróis de sua narrativa pelos cordelistas, são esses

mesmos poetas os heróis da escrita. Em ensaio abalizado sobre a literatura de cordel, Marlene

Castro (2010) revela idêntica heroicidade entre, por exemplo, a figura de Lampião como herói

e os poetas que o colocam nessa categoria:

Compor literatura de cordel, no Nordeste, de tal modo constituía motivo de

autoafirmação e razão de prestígio, que um folheto sobre Lampião inclui entre

outros atributos desse célebre cangaceiro o fato de que ele “foi sanfoneiro e poeta/

de primeira qualidade” – o que mostra a equiparação, na sensibilidade popular, do

dom da poesia e das virtudes heroicas. (CORREIA, 2010, p. 146)

Se poetas populares de todos os tempos têm um Carlos Drummond de Andrade, um

Manuel Bandeira, um Mário de Andrade, um Orígenes Lessa, um Ariano Suassuna, um

Manuel Diegues Júnior, entre outros, a lhes reconhecerem o trabalho “com o suor do rosto”,

para lembrar Cassiano Ricardo, devem ter a consciência de que sua poesia não é vã, que sua

labuta com a pena no “campo da poesia” só lhe dará frutos bons.

Desse modo, têm de ter em mente, sempre, que vale a pena lavrar, sulcar, rasgar e

regar esse campo.

Que vale a pena lutar com as palavras desde o amanhecer...

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CONCLUSÃO

Os cangaceiros representaram o grito de boa parte do povo, justamente porque essa

parcela da população via-lhes como a marca da justiça que os poderes constituídos nunca

promoviam. Nesse ponto, o clamor por esse direito terminou por ser dirigido a quem

caminhava pela contramão da história: os próprios foras da lei. Desse modo, uma simbologia

de que o cangaço convergia para um ideal de justiça foi, aos poucos, tomando forma tanto na

visão dos poetas populares como na do povo. Na verdade, os poetas aglutinavam esse

imaginário no próprio povo, estivessem vivos ou não os cangaceiros.

Nesse caso, pôde-se, com este trabalho, cogitar a ideia de que o mito do cangaço se

voltava para o passado, se havia a referência aos mortos, a exemplo de um Adolfo Rosa Meia-

Noite, um Rio Preto, um Jesuíno Brilhante (o mais importante destes), entre outros, ou se o

mito estava ali, presente em meio ao povo, no bulício dos pequenos arruados, na ameaça aos

poderosos em favor dos pequenos como lenitivos para tantas dores. Não se deve olvidar ainda

da projeção que esse mito alcançou para além do seu tempo, embora sempre houvesse quem

fosse contrário a qualquer mitificação de bandoleiros. Conscientes da busca de identificação

de seus leitores ou ouvintes com o mito do cangaço, aos poetas cabia captá-lo, processá-lo e

devolvê-lo segundo a vontade de seu povo.

Ao perceberem esse imaginário popular, os poetas o alimentaram compilando histórias

herdadas da tradição oral ou escrita, refazendo-as, ou urdiram, eles mesmos, as narrativas com

base no que ouviam, liam ou porventura testemunhavam. A peculiaridade de terem vindo da

tradição oral, contada e cantada fez com que, ouvidas e guardadas, essas histórias um dia

viessem a ser redivivas, recontadas e atualizadas segundo o ambiente em que se adaptassem, e

com o público pronto a ouvi-las novamente. O olhar para a realidade ficcional ou não sempre

foi comum à literatura de cordel, pois os poetas populares filtram ao seu modo o que lhes

interessa e reinventam sem que se percebam o texto matriz, fato que se dá tanto com histórias

comprovadamente verídicas quanto no tocante àquelas estórias de caráter ficcional, lendário,

mítico.

Ficou evidente que, na matéria épica do cordel, principalmente a que ocorre de forma

pioneira, há um narrador em primeira pessoa a que chamamos de Eu-épico, devido à

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201

proximidade no tempo e no espaço dos episódios narrados. Nesse caso, o narrador deixa de

ser o poeta e o agente da narrativa. O executor do fato narrado e tornado mítico passa a ser o

próprio personagem. O discurso dessa matéria épica é, portanto, do cangaceiro e não do poeta

que, nessas circunstâncias, não opina e fica de fora da matéria narrada.

Pode-se, num primeiro momento, inferir que, no auge do cangaço, o que se propunha

chamar de mito não fosse possível, devido à não cristalização na mentalidade da época desse

ideal. Se o cangaço era fato coetâneo, um ideal de mito ainda não se podia conformar tanto

pela proximidade no tempo quanto em relação ao objeto - cangaceiro -, e ainda no que

respeita ao poeta e ao povo, construtores desse ideal. Há também o agravante de que o

cangaço sofria natural rejeição por boa parte do povo, devido a ser vergonha a se erradicar do

Nordeste brasileiro.

Por outro lado, boa parte da população gritava por justiça, por melhores dias, por uma

sociedade mais igualitária, por um poder público comprometido com os anseios do povo, uma

vez que os políticos não davam importância aos seus concidadãos menos favorecidos. Ver o

cangaceiro como protetor dos mais fracos, adepto da justiça, da partilha em comum, da

distribuição do que é dos ricos para com os pobres passou a ser mote da lavra dos poetas.

Nesse contexto, foi nascendo e se forjando o mito.

A matéria épica do cordel nos leva a pensar num canto coletivo que se aproxima

daquilo a que se pode chamar de canto nacional, com a diferença de que os escritos épicos do

cordel remetem à afirmação do espaço local, que, no entanto, podem representar uma síntese

de afirmação do país. É importante lembrar que essa épica cangaceiresca não constitui canto

nacional, como deveria ser o canto épico, mas essencialmente é como se fosse, se se levar em

conta que a grande história não é feita senão de pequenas narrativas locais. A matéria épica do

cordel, com seu fazer, sua estrutura, seus agentes difere naturalmente da erudita, mas há algo

em sua construção que se assemelha ao caráter da épica clássica: a invocação, a proposição, a

sobrenaturalidade, a afirmação do mito, a realidade que lhes dá suporte e sua desrealização.

Se as narrativas de cordel traziam um Antônio Silvino embebido em perfumes

franceses, de cabelos bem penteados e com cheirosa brilhantina, vestido com elegantes ternos,

com anéis a abrilhantar-lhes os dedos, com o seu Winchester impecável e de quatorze tiros, de

punhal com cabo talhado em ouro e prata, com pistola Browning acompanhada de duas

cartucheiras repletas de balas, como representação do homem moderno, embora embrenhado

nos sertões, se mostrava sintonizado com seu tempo. Eis um verdadeiro herói e cavaleiro da

modernidade.

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A sintonia com a modernidade, sobretudo no grupo comandado por Lampião, e a

consequente utilização do que ela tinha a oferecer fizeram com que os cangaceiros

entranhassem no povo a mítica com que ficam conhecidos. Ajudaram a configurar o mito dos

cangaceiros, entre outras características, seu acesso a recursos da modernidade e da tecnologia

como o uso do telégrafo, do telegrama, de armas modernas, do binóculo; a leitura de revistas,

de livros; a frequência, sempre que possível, ao cinema; o uso do automóvel; o gosto pela

fotografia, pelas bebidas importadas, o uso de lenços de seda inglesa, do zíper nas vestimentas

das cangaceiras.

Estratégias de guerrilha como o uso de chocalhos para fingir animais em bebedouros,

com consequente ataque às tropas volantes, o apagar os rastros na caminhada, o andar em fila

indiana para dar a impressão da pegada de uma só pessoa, o andar sobre as pedras ou por

riachos para não deixar vestígios, o eventual uso de sandálias invertidas entre outros, além das

vistosas indumentárias, dos luminosos chapéus, dos dedos salpicados de brilhantes, tudo isso

é transmudar um Carlos Magno em um Antônio Silvino; um Orlando em um Lampião, com

seus óculos de aros dourados e seu gosto pela novidade.

Se a modernidade chega aos cangaceiros, não há como manter um conteúdo tão

somente medieval em seu perfil. O que podemos elencar de medieval na temática dos

cangaceiros é sua natureza de cavaleiros andantes, soltos, livres, independentes de leis, ou seu

idealismo em favor dos fracos e seu pensamento voltado para o combate aos poderosos. Os

cordelistas tiveram e têm ciência do quanto foram e de como são importantes esses

“cavaleiros medievais” do sertão nordestino, porém ao jeito e ao gosto da modernidade.

O cordel épico, ao apresentar os feitos dos cangaceiros e seu heroísmo junto aos

leitores, o faz ao mesmo tempo como função didática, já que a própria narrativa pode levar o

leitor consciente a entender a lição do que se pode e do que não se pode nem se deve fazer,

pois o mito será sempre uma honesta e sincera narrativa exemplar.

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