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DEFESA DE TESE BOIA, Mônica da Silva. O ensaio de María Zambrano no contexto da modernidade. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, 2011. Tese de Doutorado em Letras Neolatinas. Área de Concentração em Estudos Literários Neolatinos. Opção em Literaturas Hispânicas. BANCA EXAMINADORA __________________________________________________________________ Professora Doutora Silvia Inés Cárcamo de Arcuri (UFRJ) – Orientadora __________________________________________________________________ Professora Doutora Ester Abreu Vieira de Oliveira (UFES) __________________________________________________________________ Professor Doutor Marco Lucchesi (UFRJ) __________________________________________________________________ Professor Doutor Júlio Dalloz (UFRJ) __________________________________________________________________ Professora Doutora Ana Isabel Guimarães Borges (UFF) __________________________________________________________________ Professora Doutora Elena Palmero González (Suplente – UFRJ) __________________________________________________________________ Professora Doutora Mirtis Caser (Suplente – UFES) Defendida a Tese de Doutorado. Conceito: Em: / / 2011.

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DEFESA DE TESE

BOIA, Mônica da Silva. O ensaio de María Zambrano

no contexto da modernidade. Rio de Janeiro,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de

Letras, 2011. Tese de Doutorado em Letras Neolatinas.

Área de Concentração em Estudos Literários Neolatinos.

Opção em Literaturas Hispânicas.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________________

Professora Doutora Silvia Inés Cárcamo de Arcuri (UFRJ) – Orientadora

__________________________________________________________________

Professora Doutora Ester Abreu Vieira de Oliveira (UFES)

__________________________________________________________________

Professor Doutor Marco Lucchesi (UFRJ)

__________________________________________________________________

Professor Doutor Júlio Dalloz (UFRJ)

__________________________________________________________________

Professora Doutora Ana Isabel Guimarães Borges (UFF)

__________________________________________________________________

Professora Doutora Elena Palmero González (Suplente – UFRJ)

__________________________________________________________________

Professora Doutora Mirtis Caser (Suplente – UFES)

Defendida a Tese de Doutorado.

Conceito:

Em: / / 2011.

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O ENSAIO DE MARÍA ZAMBRANO NO CONTEXTO DA MODERNIDADE

por

Mônica da Silva Boia

Departamento de Letras Neolatinas

Tese de Doutorado em Letras Neolatinas (Área de Concentração em Estudos Literários Neolatinos. Opção em Literaturas Hispânicas) apresentada ao Conselho dos Cursos de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutora.

Orientadora: Professora Doutora Silvia Inés Cárcamo de Arcuri.

U F R J

1º Semestre de 2011

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Para minha família,

Aos meus pais, Erineuto (in memoriam) e Aidê,

ao meu irmão Leonardo e

aos meus avós José (in memoriam) e

Atenísia (in memoriam)

pelo amor, pelo apoio e pelas conversas que

me indicaram os possíveis rumos da

minha vida e da minha carreira.

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A G R A D E C I M E N T O S

À minha família,

pela compreensão e pelo carinho constantes nos momentos de alegria

e de dificuldade. Sem dúvida, os meus pais, Erineuto (in memoriam) e Aidê e o meu

irmão, Leonardo, desempenharam um papel fundamental durante a realização dessa

pesquisa, por meio da qual tivemos a oportunidade de crescer juntos e trilhar o

caminho da criação, do conhecimento e da cumplicidade. Aos meus avós (in

memoriam) e tios pelo amor incondicional e pela preocupação com o meu bem-

estar e com a minha felicidade.

A todos os amigos,

próximos ou distantes sempre presentes em minha trajetória, que, de

alguma forma, colaboraram para o término desse trabalho.

À minha orientadora,

Silvia Inés Cárcamo de Arcuri, Doutora e amiga, que acompanhou

todo o meu percurso acadêmico. Sua confiança no meu trabalho, competência e

generosidade conduziram-me a descobrir o espanhol e, em especial, os encantos da

literatura. Depois de sua colaboração na escritura da minha Dissertação de

Mestrado sobre A construção do sujeito no discurso autobiográfico de Miguel

de Unamuno (1998), agradeço à minha grande professora por me orientar

novamente, agora, nessa Tese de Doutorado.

A todos os Professores,

que comigo gentilmente compartilharam o seu conhecimento e

consolidaram a minha formação acadêmica.

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À Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro,

na figura de todos os seus funcionários que, todo o tempo,

procuraram me ajudar em tudo o que fosse necessário.

À Academia Militar das Agulhas Negras,

instituição onde trabalho, um muito obrigada especial por todo o apoio que o

Comando, a Divisão de Ensino, o Chefe da Seção de Ensino “G” e o Chefe da

Cadeira de Espanhol me deram, para que eu pudesse realizar e concluir o meu

Doutorado. Agradeço também a todos os Oficiais da Cadeira de Espanhol,

companheiros de lavor e inestimáveis amigos, pelo entendimento e pela

solidariedade nos momentos em que mais precisei de sua ajuda nas substituições ou

trocas de aulas ou ainda em outras missões. A todos, o meu mais sincero afeto e

gratidão.

À Associação Educacional Dom Bosco,

por todo o incentivo e auxílio econômico.

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BOIA, Mônica da Silva. O ensaio de María Zambrano no contexto da modernidade. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, 2011. 248 fls. Tese de Doutorado em Letras Neolatinas. Área de Concentração em Estudos Literários Neolatinos. Opção em Literaturas Hispânicas.

RESUMO

A importância do ensaio de María Zambrano no contexto da modernidade. De uma perspectiva diacrônica, contemplam-se, entre outros, alguns dos seus textos mais sobressalentes: “Por qué se escribe” (1934 – Revista de Occidente), “La reforma del entendimiento español” e “Misericordia” (1937 e 1938, respectivamente – Hora de España), La confesión: género literario y método (1943) e El hombre y lo divino (1955), a fim de representar o desenvolvimento cronológico e intelectual do pensar filosófico da ensaísta malaguenha. Essa organização pretende evidenciar as transformações que a escritura zambraniana adotou ao longo do tempo, sob a influência de vivências tão marcantes como a Guerra Civil Espanhola e o extenso exílio de 45 anos, que se notabilizou, para a autora, como uma experiência metafísica única.

A partir de uma necessidade visceral e irrenunciável pelo desejo de escrever e um compromisso político e social entusiasta a favor da República, María Zambrano assume a postura ética e estética de uma intelectual moderna, que analisa o pensamento espanhol e ocidental, reinterpretando uma proeminente tradição cultural e artística nas figuras literárias clássicas de sua nação, como Cervantes e Galdós e, também, pensadores de outros países, a partir de parâmetros conceituais referentes ao trágico moderno. A autora, em seu discurso ensaístico, valoriza, como uma rejeição dos valores impostos por uma modernidade que privilegia o exclusivismo do triunfo, da razão e do coletivo, o re(encontro) do indivíduo degredado e perdido no mundo e do mundo, como uma realidade e uma metáfora de sua própria vida.

O sentido confessional autobiográfico dos escritos zambranianos deixa-nos claro a interpenetração existente entre as experiências contingenciais da ensaísta e seu ofício de pensadora filo-poética, que revelam um sujeito em construção, que gravita entre os limites misteriosos e imprecisos da realidade e da ficção, na medida em que lê a história e a individualidade. A dádiva de criar do artista outorga ao ser humano a possibilidade de reconstrução contemporânea do sentimento do divino, como resposta a uma aspiração primordial de transcendência.

Palavras-chave: Ensaio. Modernidade. Trágico.

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BOIA, Mônica da Silva. El ensayo de María Zambrano en el contexto de la modernidad. Río de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Facultad de Letras, 2011. 248 hjs. Tesis de Doctorado en Letras Neolatinas. Área de Concentración en Estudios Literarios Neolatinos. Opción en Literaturas Hispánicas.

RESUMENLa importancia del ensayo de María Zambrano en el

contexto de la modernidad. De una perspectiva diacrónica, se contemplan, entre otros, algunos de sus textos más sobresalientes: “Por qué se escribe” (1934 – Revista de Occidente), “La reforma del entendimiento español” y “Misericordia” (1937 y 1938, respectivamente – Hora de España), La confesión: género literario y método (1943) y El hombre y lo divino (1955), a fin de representar el desarrollo cronológico e intelectual del pensar filosófico de la ensayísta madrileña. Esa organización pretende evidenciar las transformaciones que la escritura zambraniana adoptó a lo largo del tiempo, bajo la influencia de vivencias tan marcantes como la Guerra Civil Española y el extenso exilio de 45 años, que se notabilizó, para la autora, como una experiencia metafíscia única.

A partir de una necesidad visceral e irrenunciable por el deseo de escribir y un compromiso político y social entusiasta a favor de la República, María Zambrano asume la postura ética y estética de una intelectual moderna, que analiza el pensamiento español y occidental, reinterpretando una proeminente tradición cultural y artística en las figuras clásicas de su nación como Cervantes y Galdós y, también, pensadores de otros países, a partir de parámetros conceptuales referentes a lo trágico moderno. La autora, en su discurso ensayístico, valoriza, como un rechazo de los valores impuestos por una modernidad que privilegia el exclusivismo del triunfo, de la razón y de lo colectivo, el (re)encuentro del individuo degredado y perdido en el mundo y del mundo, como una realidad y una metáfora de su propia vida.

El sentido confesional autobiográfico de los escritos zambranianos nos deja claro la interpenetración existente entre las experiencias contingenciales de la autora y su oficio de pensadora filo-poética, que revelan un sujeto en construcción, que gravita entre los límites misteriosos e imprecisos de la realidad y de la ficción, en la medida en que lee la historia y la individualidad. La dádiva de crear del artista otorga al ser humano la posibilidad de reconstrucción contemporánea del sentimiento de lo divino, como respuesta a una aspiración primordial de transcendencia.

Palabras clave: Ensayo. Modernidad. Trágico.

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BOIA, Mônica da Silva. María Zambrano´s essay in the context of modernity. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro Federal University, Language College, 2011. 248 pages. Doctorate Thesis in Romance Language. Area of concentration in Romance Literary Studies. Option in Spanish Literatures.

ABSTRACT

The importance of María Zambrano’s essay in the context of modernity. From a diachronic perspective, include, among others, some of their noteworthy texts: “Por qué se escribe” (1934 – Revista de Occidente), “La reforma del entendimiento español” y “Misericordia” (1937 and 1938, respectively – Hora de España), La confesión: género literario y método (1943) and El hombre y lo divino (1955). This organization aims at presenting the transformations which the Zambranian writing adopted over the course of time based on such remarkable experience as the Spanish Civil War and the long exile of 45 years, which became known to the author as a metaphysical experience unique.

From a deep and indispensable need for the desire of writing and from a political and social exciting commitment in favor with the Republic, María Zambrano takes on an ethical and aesthetic posture of a modern intellectual who analyses the Spanish and occidental thought re-interpreting a prominent cultural and artistic tradition of literay classical figures like Cervantes and Galdós and, also, thinkers from other countries, from conceptual parameters for the modern tragic. The author, on her essay speech, values, as a rejection of the values imposed by a modernity which favors the exclusivity of the triumph, the reason and the collective, the finding again of the individual annihilated and lost in the world and the world as a reality and a metaphor of her own life.

The confessional autobiographic sense of the Zambranian writings make the interpretation existing between the author’s own experience and her occupation of philo-poet thinker clear. It reveals a person in construction and gravitates between the myterious and imprecise limits of reality and fiction in that reads the history and individuality. The gift of the artist to create grants human beings the possibility of reconstruction of the contemporary sense of the divine as a response to the aspiration of transcendence.

Keywords: Essay. Modernity. Tragic.

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“[...] en el ensayo se comienza insistiendo en el valor de la ignorancia [...]

como punto de partida y de llegada del filosofar y en la convicción de que lo sabido

no clausura el saber porque la esencia de la actividad filosófica radica en la actitud

de búsqueda más que en el resultado obtenido.”

CHAMIZO DOMÍNGUEZ, J. P., 1984, pp.17, 18.

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S I N O P S E

O ensaio de María Zambrano no contexto da modernidade. A Revista de Occidente, a revista Hora de España, Filosofía y poesía, La confe-sión: género literario y método e El hombre y lo divino como uma representação da evolução cronológica e cognoscitiva do pensamento filo-sófico zambraniano. O exílio como uma experi-ência metafísica singular. A crítica da tradição literária e cultural espanhola e o conceito do trá-gico moderno. A presença da confissão autobio-gráfica no discurso ensaístico e a leitura da his-tória e do eu. A recriação contemporânea do sen-timento do divino no homem e a vontade de transcendência.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ...13

2. O ENSAIO COMO UMA ESCRITURA DO SÉCULO XX ...25

2.1. A modernidade em crise e o discurso ensaístico ...31

2.1.1. A recepção da época moderna na cultura espanhola ...35

3. UM CONCEITO DIFERENTE DO TRÁGICO ...37

3.1. A representação do herói trágico no mito do escritor ...39

3.2. A razão poética como método de reconciliação ...40

4. MARÍA ZAMBRANO NA REPÚBLICA E NA GUERRA CIVIL ...44

4.1. Uma pensadora na Revista de Occidente ...59

4.2. Dimensão reflexiva e política em Hora de España ...83

4.2.1. Revolução, modernidade e reencontro com o passado ...86

5. DIÁLOGOS COM A TRADIÇÃO ESPANHOLA ...94

5.1. Cervantes ...95

5.2. Galdós ...108

6. UMA FALA COM A CONTEMPORANEIDADE: Cernuda ...140

7. A EXPERIÊNCIA INTELECTO-EMOCIONAL DO EXÍLIO ...159

7.1. O desamparo do homem ...160

7.2. A poesia como uma forma de pensar o trágico ...163

8. A CONFISSÃO AUTOBIOGRÁFICA NO ENSAIO ...170

8.1. A escritura como simulacro ...171

8.2. A confissão e o leitor ...176

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9. A TRANSCENDÊNCIA ...194

9.1. O binômio originário homem-sagrado ...196

9.2. O homem moderno e suas relações com o divino ...199

10. CONCLUSÕES ...208

11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...222

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1. INTRODUÇÃO

A presente tese constitui uma extensão de alguns temas discutidos na

Dissertação de Mestrado em Literatura Espanhola, que defendemos na própria

Universidade Federal do Rio de Janeiro no ano de 1998 e que teve o título de A

construção do sujeito no discurso autobiográfico de Miguel de Unamuno,

escritor espanhol basco, nascido em 1864 e integrante da geração de 1898. Esse

trabalho também teve a orientação da Professora Doutora Silvia Cárcamo, que

compõe o corpo docente dessa mesma instituição.

Naquela época do mestrado, o objetivo da nossa pesquisa foi estudar a

construção de um sujeito ficcional trágico dentro da obra unamuniana, a partir do

discurso autobiográfico. A conexão que intencionamos fundar entre os escritos

autobiográficos de Miguel de Unamuno e os sucessos históricos do final do século

XIX e do princípio do século XX baseou-se no fato de que o autor evidenciava, na

obra de arte, uma insatisfação do homem na cultura européia e, sobretudo, espa-

nhola. Na verdade, entendemos que a autobiografia, na visão de um breviário da

existência humana convertido em matéria literária, concebe a vida, a história e a

arte como capazes de desempenhar a missão de renovar perpetuamente o encanto

enigmático da criação.

De maneira semelhante ao que pretendemos fazer agora, a nossa pesquisa

de mestrado formou-se a partir de três pilares de sustentação, que consideramos

intimimamente ligados. Foram eles: a autobiografia, o trágico e a modernidade.

As obras selecionadas para a abordagem do tema da Dissertação de

Mestrado, A construção do sujeito no discurso autobiográfico de Miguel de

Unamuno, procuraram abranger a heterogeneidade artística do referido escritor

através de um corpus integrado por três obras: Teresa (poesia – 1924), Diario

íntimo (diário – composto por cinco cadernos recopilados, com uma primeira

publicação póstuma em 1970) e Cómo se hace una novela (romance – 1926, em

francês; 1927, em espanhol). Nessas três obras, a intertextualidade, forte

característica das produções modernas, estava presente de forma intensa.

Teresa apresentava como intertexto a obra de Gustavo Adolfo Bécquer, um

dos grandes nomes do romantismo espanhol. A interferência romântica de

Bécquer na literatura moderna unamuniana intenciona sublinhar uma crítica

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mordaz do escritor basco ao movimento literário do romantismo. Além disso, a

autobiografia pôde ser observada de uma maneira interessante, em vista de que

Miguel de Unamuno desdobra-se em outro personagem chamado Rafael, poeta

romântico desconhecido apaixonado pela falecida Teresa, a quem lhe dedica esse

livro de poesias, que leva o nome da amada.

Em Diario íntimo, cativou-nos a atenção a reflexão de Miguel de Unamuno

com referência aos seus próprios escritos e à identidade de autor construída por

ele mesmo ao longo do tempo, da qual já se percebe escravizado artisticamente.

Na obra, abordam-se, o papel do escritor perante o seu público e a conhecida

problemática das angústias da efemeridade da vida terrena, por meio das copiosas

remissões às passagens bíblicas. Os temas veiculados são originários de uma

profunda crise espiritual que experimentou o autor nos últimos anos do século

XIX, a qual modificou o rumo da sua vida e a sua concepção do mundo.

Finalmente, em Cómo se hace una novela, Miguel de Unamuno, através da

autobiografia, propõe uma renovação do romance, que deixará de ser uma obra

estruturada com princípio, meio e fim, para ceder lugar à uma obra aberta, onde o

leitor possa desempenhar um papel importante na criação literária e na qual o

mesmo se reconhecerá como um indivíduo com poder de transformação dentro da

própria história contada. A participação na configuração da obra literária

transforma, sem dúvida, o leitor, entendido artisticamente igual ao escritor como

uma entidade ficcional, em pessoa humana, vital e concreta, que abandona a

recepção pura e simples da mensagem e aceita o diálogo da construção da obra de

arte.

A pesquisa contou com o suporte teórico de autores que se ocuparam da

autobiografia, como uma forma de expressar a cultura moderna e o conceito do

trágico dentro dessa mesma cultura. Essas observações são relevantes, pois

queremos ressaltar que, nessa Tese de Doutorado, iremos revisitar alguns dos

pressupostos teóricos que utilizamos na Dissertação de Mestrado evidentemente

com um enfoque diverso para o estudo do ensaio de María Zambrano.

Assim, na Dissertação de Mestrado, a autobiografia foi discutida por

teóricos como Philippe Lejeune, Paul De Man, Georges Gusdorf e Nora Catelli,

que a tratam como um espaço de criação ficcional e simbólica. O conceito do

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trágico foi abordado por pensadores como Nietzsche, Rafael Argullol e o próprio

Unamuno, os quais nos possibilitaram a compreensão do conflito e do estado de

impotência frente à circunstância histórica, instaurados no momento finissecular.

Miguel de Unamuno parte de um sentimento trágico experimentado pela

modernidade para reagir inteligentemente aos conceitos florescentes de confiança

inquebrantável no cientificismo, no progresso e na razão. Com referência à obra

unamuniana, o eu, no papel de sujeito da enunciação, domina o texto regido por

um espaço autobiográfico. Desse ponto de vista, a relação determinante entre o eu

autobiográfico e a modernidade literária permite-nos traçar uma identidade entre

escritura e autobiografia, onde há com um impacto deveras negativo uma tomada

de consciência da imanência ontológica em contraposição à transcendência

teológica que, durante muito tempo, havia povoado de modo inconteste a

consciência do homem.

A nossa condição dentro da modernidade é trágica, pois a perda da fé em

um tempo infinito e maravilhoso, fomentado na Idade Média, fez-nos cair na

trágica realidade de que somos seres para o nada, condenados a desaparecer para

sempre. Miguel de Unamuno, na verdade, utilizou uma crise religiosa pessoal,

com o objetivo de justificar, por meio da ficção, uma mudança de pensamento na

história. É, de fato, o uso ficcional de sua crise religiosa, que nos autoriza afirmar

que o escritor basco pretendia ser o centro de atenção da sua própria produção

artística. Através do recurso autobiográfico, o autor pôde transformar-se em uma

espécie de herói trágico moderno com uma missão ética na sociedade e com o

objetivo de se imortalizar pela palavra artística. Os mitos dos deuses Dionísio e

Apolo desenvolvidos pela tragédia grega trazem-nos uma lição muito importante

na construção do trágico moderno, que é o uso da máscara: o autor é ele mesmo e

outro(s) simultaneamente; é portador de uma máscara ou máscaras, tendo o poder

da metamorfose, e isso é essencial em qualquer forma de arte. É imperativo que o

a(u)tor transforme-se no ser que representa. O autor-ator tem orgulho de se sentir

como um ser supremo, pois o teatro, que é o canal mais tradicional e adequado

para a representação da tragédia, atribuiu aos atores o privilégio dos deuses de se

transmutar em formas e pessoas diversas. A autobiografia aborda à miude o

mistério da alteridade, já que somos, em última instância, uma multidão

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constituída por um corpo e por uma mentalidade influenciados pela história de

variados lugares e povos. Todo sujeito e texto autobiográficos representam uma

comunidade social, testemunha de um tempo e de um espaço vital. No entanto,

essa capacidade de se transmutar em outros faz com que o autor-ator se desligue

da velocidade natural do tempo e vislumbre como inviável igualar-se a um Deus,

sendo tal constatação a causa de um sofrimento terrível e interminável. Esse

sofrer verdadeiramente a existência faz parte da missão do ser humano para

descobrir a sua identidade e encontrar o real sentido da sua vida, apesar de

estarmos fadados a buscar respostas para o que se estabeleceu como indecifrável.

Esse é o fundo trágico da existência da humanidade, constante em todas as formas

de cultura, mediatizada pela consciência do homem de sua insignificância, de sua

solidão e de sua impotência frente ao futuro.

O estudo realizado comprovou plenamente as hipóteses de que, em Miguel

de Unamuno, triunfa a onisciência sobre uma composição esfacelada somente na

aparência. O trânsito entre o eu e o outro em Unamuno é um fracasso da mesma

forma que a sonhada modernidade, posto que não há como lutar contra o

progresso e os seus males, da mesma maneira que não há como lutar consigo

mesmo: os dois são irreversíveis e invencíveis. Assim sendo, a obra unamuniana

caracteriza-se também por demonstrar que o artista já almejava repensar as suas

identificações com o mundo e com a arte. As obras de Miguel de Unamuno são

caracterizadas por formas estilísticas paradigmáticas, que possuem o intuito de

consolidar uma imagem e um modo de escrever muito peculiares ao autor, pois a

figura unamuniana de escritor literário ao lado do desejo constante de vencer o

tempo e de conseguir a imortalidade pela palavra artística apresentava,

igualmente, o objetivo de polemizar a condição trágica do homem frente à crise

do fim do século XIX e do princípio do século XX, onde se constatou o inegável

fracasso da modernidade.

Pretendemos deixar claro, no Mestrado, que o intertexto é o eco de um

mundo de leituras e, no escritor, a leitura é o indicador mais fiel da formação de

uma consciência. O mundo interior do artista e o mundo externo da história

apresentam transformações constantes, já que se prefiguram por uma ilusão, uma

interpretação que fazemos por meio de inferências obtidas por experiências de

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vida referenciais. Se formos capazes de mudar nossa interpretação pessoal,

interna, e histórica, externa, conseguiremos descobrir universos completamente

novos e inusitados. Para Miguel de Unamuno, autobiografar-se era o mesmo que

relatar a história, na qual o homem espanhol deseja encontrar a sua filiação, a sua

origem. O sentimento da solidão do artista em seu ofício, abordado tantas vezes

por Unamuno, concorreu com as mesmas raízes do sentimento religioso

essencialmente importante em sua produção literária, no sentido de que nos

contemplamos como órfãos, que possuem a obscura consciência de que fomos

extirpados de Alguém ou Algo, cujo profundo conhecimento nos foi denegado. A

obra autobiográfica unamuniana, que utiliza a religião como filão inventivo,

empreende concomitantemente uma busca, uma fuga e um regresso em direção ao

Todo na tentativa de restabelecer os laços que uniam o homem ao Grande Criador

de toda criação, pois não há nada que fascine mais o escritor que tal poder de

conceber, engendrar.

Essas considerações iniciais acerca da nossa pesquisa de Mestrado

pareceu-nos assaz pertinente, pois já naquele tempo, há um pouco mais de dez

anos atrás, uma ideia de tema para iniciar um projeto de Curso de Doutorado

começou a se revelar. Entre os teóricos selecionados para a pesquisa no Mestrado,

começamos a ler com interesse a ensaísta espanhola María Zambrano, que nasceu

em Vélez-Málaga, em 1904 e faleceu em Madri, em 1991. A ensaísta foi discípula

de Ortega y Gasset e lecionou nas Universidades de Madri (Espanha), Morelia

(México) e Havana (Cuba). Esteve durante 45 anos exilada, onde publicou três

das obras que iremos estudar, Filosofía y poesía (1939), La confesión: género

literario y método (1943) e El hombre y lo divino (1955). Em 1984, retornou a

Espanha, para a cidade de Madri, que, como todo o país, gradativamente, foi

reconhecendo a importância da autora para a cultura nacional, visto que há uma

produção crítica bastante significativa na Espanha sobre a obra de María

Zambrano. Podemos destacar alguns fatos relevantes que comprovam claramente

o prestígio da autora no círculo literário espanhol como a publicação, em 1966, do

artigo de J. L. Aranguren “Los sueños de María Zambrano” na Revista de

Occidente, onde se inicia uma valorização do mérito da obra zambraniana dentro

do seu próprio país. Nesse mesmo ano, o texto de J. A. Valente, intitulado “María

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Zambrano y el sueño creador”, publicado na revista Ínsula (núm. 238), contribuiu

no despertar de uma consciência na Espanha em torno a María Zambrano e do

destaque da sua escritura como uma leitura do pensamento e da cultura espanhola.

Em 1981, concederam-lhe o Prêmio “Príncipe de Asturias” de Comunicação e

Humanidades pela Fundação de mesmo nome. A revista Los Cuadernos del

Norte dedica à figura e à obra de María Zambrano um número especial (núm. 8),

no qual se recolhe, junto a outras e importantes colaborações, o testemunho e o

reconhecimento do filósofo E. M. Cioran. Em 1984, lança-se um número dos

Cuadernos Hispanoamericanos em homenagem à escritora. Em 1987, aparece

um amplo dossiê de documentos e textos de María Zambrano na revista

Anthropos. Nesse mesmo ano, inaugurou-se a Fundação María Zambrano. Em

1988, enfim, brindam à autora com o “Premio Cervantes de Literatura”. A nosso

ver, sem dúvida, todas essas homenagens justificam a relevância da escolha dessa

ensaísta espanhola para uma Tese de Doutorado, sobretudo, no Brasil, onde

muitos não conhecem a figura e a obra de María Zambrano.

Na presente tese, propomo-nos a analisar, a partir de uma perspectiva

diacrônica, alguns dos ensaios de María Zambrano, relacionando o gênero

ensaístico com dois pilares de sustentação fundamentais que, como vimos,

também embasaram a nossa dissertação: a modernidade e o trágico, os quais

representariam uma configuração do pensamento filosófico da autora articulado à

uma leitura da história e de uma tradição literária espanhola no século XX.

Evidentemente, as nossas indagações iniciais girarão em torno dos alicerces de

apoio que estabelecemos para levar a termo a pesquisa. Obedecendo a essa

orientação de estudo, perguntamos: os ensaios filosóficos zambranianos adquirem

novas características ao longo de sua criação artística? Se os textos da autora, na

verdade, vão sofrendo transformações, como essas modificações ocorrem? Essas

mudanças realmente respondem à uma vivência particular da autora em seu

tempo? Existe a presença da ideia do trágico nesses escritos, que corresponderia a

uma condição do homem dentro do contexto da modernidade? Por questões de

delimitação do recorte de análise e para que consigamos atender a essa abordagem

ao longo do tempo como estratégia de investigação metodológica,

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estabeleceremos períodos capitais de criação artística da escritora, que,

claramente, acompanharão momentos sobressalentes da história da Espanha.

Na medida em que ansiamos trilhar os caminhos de juventude, amadureci-

mento e auge artístico-criativo de María Zambrano, precisaremos ater-nos a ensai-

os por nós considerados de maior envergadura para a linha de estudo escolhida.

Dessa forma, apresentaremos ordenadamente os ensaios que serão lidos como

vertentes de análise e direção para o nosso estudo. O sumário dessa tese procurou

mostrar uma linha didática de investigação, que, introdução à parte, apresenta ca-

pítulos, que associam fortemente o ensaio, a modernidade e o trágico, além de en-

focar, de maneira ampla, escritos que acreditamos serem vitais para o desenvolvi-

mento do nosso pensamento. São eles: “Por qué se escribe” (Revista de

Occidente, Madri, t. XLIV, n.º 132, junho 1934, pp. 318-328), “La reforma del

entendimiento español” (Hora de España, Valência-Barcelona, n.º IX, setembro

1937, pp. 13-28), “Misericordia” (Hora de España, Valência-Barcelona, n.º XXI,

setembro 1938, pp. 29-52), Filosofía y poesía (México, 1939), La confesión:

género literario y método (México, 1943) e El hombre y lo divino (México,

1955). É óbvio que outros textos de María Zambrano irão compor, à maneira de

suporte teórico e discursivo, os capítulos desse trabalho, já que esse material foi

lido, estudado e contribuiu, portanto, para iluminar o nosso entendimento com re-

lação aos ensaios condutores do tema da tese.

Durante a sua juventude, María Zambrano viveu em Madri, onde concluiu

a sua formação acadêmica e conseguiu publicar os seus primeiros trabalhos filo-

sóficos. Ao lado do lançamento do seu primeiro livro em 1930, Horizonte del li-

beralismo, a ensaísta espanhola escreveu, nesse tempo, com regularidade, haja

vista os seguidos anos de publicação, para algumas revistas como Los Cuatro Vi-

entos (1933), Cruz y Raya (1933-1934), Revista de Occidente (1933-1934),

Cuadernos de la Facultad de Filosofía y Letras (1936), El Sol (1936) e Hora

de España (1937-1938).

Após dissertarmos sobre as questões do discurso ensaístico, a problemáti-

ca da modernidade e o sentimento do trágico moderno no segundo e no terceiro

capítulo da tese, “O ensaio como uma escritura do século XX” e “Um conceito di-

ferente do trágico”, respectivamente, no capítulo seguinte, “María Zambrano na

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República e na guerra civil”, faremos alusão ao dramático conflito espanhol que

tão categoricamente influenciou a vida da autora malaguenha. Nesse mesmo capí-

tulo, procuraremos discorrer sobre a importância das revistas literárias espanholas

do início do século XX, que propiciaram a diversos escritores, entre eles, María

Zambrano, desenvolver um pensamento vanguardista de notáveis inovações esté-

ticas, que, mais tarde, associou-se a um compromisso ético de refletir e lutar pela

reconquista de um espaço legitimamente republicano e democrático usurpado

pelo golpe de estado perpetrado pelas tropas franquistas em 1936. Na publicação

da Revista de Occidente, tomaremos o ensaio “Por qué se escribe” (Madri, t.X-

LIV, n.º 132, junho 1934, pp.318-328), primeiro texto filosófico de María Zam-

brano, o qual revela uma nascente produção da autora situada antes de 1936, pre-

cedendo, portanto, o nefasto advento bélico que arrasou a estrutura da Espanha e a

vida dos espanhóis. Antes, porém, de analisar “Por qué se escribe”, estudaremos

dois outros ensaios precedentes escritos por María Zambrano também na Revista

de Occidente, cujos títulos são “Hoffmann: «Descartes»” (resenha, Madri, t.XX-

XIX, n.º 117, março 1933, pp.142-145) e “Robert Aron y Arnaud Dandieu. «La

Révolution Nécessaire»” (resenha, Madri, t.XLIV, n.º 131, maio 1934, pp.209-

221). Acreditamos que esses dois outros textos delineam alguns dos pressupostos

mais sobressalentes do pensamento estético zambraniano, antecipando a constru-

ção de “Por qué se escribe”, cujas ideias irão se transmutando e aperfeiçoando ao

longo de sua obra literária ensaística.

Sem lugar a dúvidas, a contribuição de María Zambrano na Revista de

Occidente a torna ainda mais conhecida do público leitor e revela uma formação

erudita, na qual já se pressente a constituição de uma filosofia singular em torno

do poético, sustentada na reflexão da crise do pensamento ocidental e da política

social espanhola.

No quinto capítulo, “Diálogos com a tradição espanhola”, discutiremos

como o período de 1937 e 1938 inclui os duros anos de conflito na Espanha, onde

a crise do país coincide dramaticamente com os problemas políticos e sociais

europeus. Nessa época, observaremos uma significativa escritura de ensaios para

a revista Hora de España, que demonstrarão o desassossego e a reflexão

inteligente e desalentadora de María Zambrano, com respeito às desventuras

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vividas pelo seu país de origem a partir da construção de textos que manifestam

um olhar filosófico-crítico sobre a história e se apóiam na tradição cultural

literária espanhola, que, no nosso caso, de acordo com os textos escolhidos, estará

representada pelas figuras de Miguel de Cervantes e Benito Pérez Galdós. Para

esses anos específicos de criação estética da autora, selecionaremos os ensaios

“La reforma del entendimiento español” (Valência-Barcelona, nº IX, setembro

1937, pp.13-28) e “Misericordia” (Valência-Barcelona, n.º XXI, setembro 1938,

pp.29-52) da revista Hora de España. Dentro desse capítulo, ainda, verificaremos

a relação entre Benito Pérez Galdós e Luis Buñuel, visto que este cineasta

espanhol produziu Nazarín (1958) e Tristana (1970), filmes baseados em duas

obras importantes do escritor canário com o mesmo nome.

O sexto capítulo, “Uma fala com a contemporaneidade”, examinará o

poema “Díptico español” do poeta sevilhano Luis Cernuda, que compõe a obra

Desolación de la Quimera, publicada em 1962. Essa análise servirá como outro

ponto de vista a respeito da figura de Galdós, que além da Espanha, de suas

tradições e crenças, aparece, no texto, como um exemplo desse passado de glória

espanhol.

O sétimo capítulo irá abordar o ano de 1939, onde María Zambrano

publica Filosofía y poesía, obra que estabelece relações com o exílio voluntário

da ensaísta iniciado justamente nessa data, no qual, apesar da distância em sua

estada por diversos países da América e da Europa, como México, Porto Rico,

Cuba, Roma e Suíça, sempre revelou interesse e preocupação pela terra natal e

seu povo, jamais deixando de publicar suas reflexões que, nessa obra,

metaforizam essas aflições, por meio de importantes lucubrações sobre a ética, a

mística, a metafísica e a poesia na história ocidental da filosofia, polemizada, em

seus primórdios, por Sócrates, Platão, Kierkegaard e outros pensadores

originários. Daí o fato de que María Zambrano defenda que o pensamento, a

filosofia e a poesia amalgamam-se por instituírem diálogos que conformam a

realidade ou o simulacro inóspito de toda a nossa cultura ocidental, na proporção

em que complementam o estar angustiado do homem no mundo e em si mesmo.

No oitavo capítulo, por meio da obra La confesión: género literario y

método (1943), pretendemos discutir como María Zambrano conjuga o ensaio e a

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autobiografia confessional para simbolizar a crise entre a existência e o

racionalismo da modernidade. Esse capítulo denuncia que as relações entre a vida

e a criação artístico-literária de María Zambrano são muito evidentes e como a

sua história foi pautada por uma série de conflitos e crises, essa obra aparece com

uma grande ênfase no conhecimento espiritual e no saber da alma, alicerçados,

principalmente, nas confissões de São Agostinho e de Jó, a fim de procurar

explicar o sentimento angustiante de estar perdido tanto do mundo como também

no mundo. O estudo dessa obra parece-nos muito importante no sentido de que

anuncia o encaminhamento filo-poético do pensamento zambraniano em direção

ao desejo de transcendência, tema do nono capítulo do nosso trabalho. Assim,

esse período considerado proeminente e literariamente pleno de María Zambrano,

no qual nos deteremos como última etapa do corpus dessa pesquisa dedica-se ao

estudo de um dos seus livros mais emblemáticos ou a sua obra fundamental, como

ela mesma chega a sugerir, El hombre y lo divino (1955). A partir dessa fase de

amadurecimento e apogeu criativo, María Zambrano caminha cada vez mais para

um contínuo reconhecimento de sua contribuição à cultura espanhola, o que, por

sua vez, afiança a qualidade e a relevância de sua obra no contexto literário

espanhol e, em consequência, confere validação ao nosso intuito de trabalho. El

hombre y lo divino, conforme o título, tratará do binômio homem-divino, que,

segundo reconhece a própria autora, na 2ª edição dessa obra, em 1973, poderia

representar todo o conjunto da sua criação literária. Na medida em que analisamos

a existência humana, é imprescindível meditar sobre a presença do divino, posto

que a sensação de elementos preeminentes ao homem ou o seu enigma invade o

imaginário coletivo desde tempos muito remotos. A filosofia zambraniana explora

essa temática pelo viés de que a não total exclusão de pólos terrenos e divinos na

vida do homem levam-no a vivenciar uma multiplicidade de interpretações desses

lugares, de acordo com suas experiências históricas, as quais manifestam

momentos de notoriedade e obscurecimento com relação a ambos os conceitos.

Por meio da abordagem desses ensaios, que representam épocas marcantes

da vida e do pensamento de María Zambrano, podemos notar que a autora

malaguenha, além de contar a própria história em uma, digamos assim,

‘autobiografia ensaiada’, realiza, consequentemente, uma leitura da história da

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Espanha, tomando como farol o pensamento tradicional do ocidente. Esse fato,

portanto, realmente, destaca a sua proeminência dentro do ensaísmo espanhol do

século XX.

A pesquisa contará com um suporte teórico de autores, que se ocuparam

do ensaio, como uma forma de expressão literária subjetiva, moderna,

assistemática e híbrida, capaz de conjugar o ficcional e a retórica com a

representação da realidade por meio da leitura de uma época e suas tradições.

Essa temática conduz a intermediações inseparáveis com a concepção trágica da

existência que encontra lugar em uma modernidade, cujos saberes e crenças de

gerações anteriores são colocados constantemente em juízo crítico. Assim, como

apoio basilar e científico ao trabalho, contemplaremos o gênero ensaístico a partir

dos estudos de Georg Lukács (1911; 1975), Luis Gómez Martínez (1992), María

Elena Arenas Cruz (1997), Theodor W. Adorno (2003), Belén Hernández (2005)

e Alberto Giordano (2006), que afirmam ser o ensaio um gênero moderno atinente

à vivência do homem na história, que alimenta a necessidade do sujeito em

demarcar uma região ameaçada pela racionalidade e pela industrialização

excessiva da sociedade. A ideia do trágico e suas repercussões hodiernas serão

discutidas por conceitos de Nietzsche, Rafael Argullol (1990), Peter Szondi

(1994) e Roberto Machado (2006), que irão confirmar o carácter fragmentado e

frustrante do indivíduo na modernidade em resposta a uma condição ontológica

inerente, que se alia a fatos concretos desencadeadores de um mal-estar no

mundo, como certeiramente asseverou Freud. É, precisamente, em virtude dos

desastrosos acontecimentos na Espanha a partir, sobretudo, dos anos 30 que María

Zambrano instaura as polêmicas que envolverão o homem no seu tempo, como

fruto da constatação de suas lutas, mas também de sua impotência com relação a

uma modernidade esmagadora, que preconiza o triunfo crescente da ciência, do

progresso e da razão.

A modernidade é um fator assaz importante para a melhor compreensão da

cultura espanhola e também da obra de María Zambrano, no sentido de que a au-

tora escreve a partir dos seus projetos e efeitos. Teóricos como Octavio Paz

(1990) e Eduardo Subirats (1989) certificam que a modernidade acentuou a cons-

ciência da condição trágica, na medida em que detraiu a confiança do homem na

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crença religiosa e nos desígnios divinos, que lhe conferiam a estabilidade emocio-

nal necessária para enfrentar os revesses da história. Na verdade, por que tanto se

diz que somos seres trágicos e o nosso tempo se define como uma atualização da

tragédia clássica? Porque simplesmente temos dúvida, criticamos e não aceitamos

tudo o que é estabelecido, determinado ou canônico. Isso é o que mostra María

Zambrano e é o que nos define dentro das contradições modernas. Evidentemente,

o ensaio, pelas suas características, surge como um canal de comunicação propí-

cio para sedimentar, na eternidade da escritura, os pensamentos contraditórios de

um homem aturdido, que segue, contudo, uma linha ascendente de evolução cog-

nitiva. Dentro da nossa tragédia da insuficiência moderna, esse é, simultaneamen-

te, o nosso desafio, mas também o nosso esplêndido êxito e é exatamente esse

percurso de crescimento espiritual e intelectual que a nossa pesquisa intenciona

comprovar por meio da análise da obra da ensaísta espanhola. Julgamos que a atu-

alidade do texto de María Zambrano insere-se justamente na eleição de um discur-

so ensaístico de comunicação com o leitor-autor, que ao mesmo tempo em que de-

nuncia o esgotamento do projeto onírico material da modernidade, anuncia a in-

surgência de um sentimento trágico humano original, que nos convoca a preen-

cher, a partir do ato mágico de escrever-crescer, o doloroso, contudo igualmente

encantador vácuo da vida.

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2. O ENSAIO COMO UMA ESCRITURA DO SÉCULO XX

Na atualidade, o ensaio desfruta da atenção de uma série de estudos que se

propõem o árduo objetivo de estabelecer algumas de suas características

nucleares, que acabam por colocá-lo em uma posição de destaque no âmbito da

escritura moderna do século XX. Afirmamos ser este um trabalho penoso, em

razão de que o ensaio tem como traço diferenciador a intenção de manifestar uma

perspectiva individual, livre e assistemática sobre um determinado tema e isso,

por si só, já dificulta e muito qualquer esforço de classificação ou norma, que

pretenda regular ou identificar esse tipo de discurso. Apesar dos fatores

complicadores, é justo sustentar que o ensaio pertence a uma peculiar classe de

textos, onde existe uma macro-estrutura fundamental, que salienta a presença de

um gênero dialógico-argumentativo, dado a partir de variadas possibilidades de

enunciação. Por outro prisma complementar, Lukács assegura que o ensaio é, em

essência, uma linguagem que ambiciona questionar conceitos defendidos em uma

vigência histórica.

O ensaio sempre fala de algo já formado ou, na melhor das hipóteses, de algo que já tenha existido; é parte de sua essência que ele não destaque coisas novas a partir de um nada vazio, mas se limite a ordenar de uma nova maneira as coisas que em algum momento já foram vivas. E como ele apenas as ordena novamente, sem dar forma a algo novo a partir do que não tem forma, encontra-se vinculado às coisas, tem de sempre dizer ‘a verdade’ sobre elas, encontrar expressão para sua essência. (Lukács, G., 1911, p.23)

Adorno, por sua vez, com outras palavras, corrobora o pensamento de

Lukács sobre o ensaio como uma maneira de abordar um assunto específico não

inédito sem a obrigação de esmuiçá-lo rigorosa ou exaustivamente ou, ainda, de

colocar-lhe um fim último, pois compreender não significa supor haver esgotado

um tema, mas sim implica o processo de buscar o seu conhecimento, regido pelos

estímulos temporais, espaciais e intrínsecos que influenciam as interpretações

únicas do sujeito.

O ensaio reflete o que é amado e odiado, em vez de conceber o espírito como uma criação a partir do nada, segundo o modelo de uma irrestrita moral do trabalho. Felicidade e jogo lhe são essenciais. Ele não começa com Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que deseja falar; diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, onde nada mais resta a dizer: ocupa, desse modo,

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um lugar entre os despropósitos. Seus conceitos não são construídos a partir de um princípio primeiro, nem convergem para um fim último. Suas interpretações não são filologicamente rígidas e ponderadas, são por princípio superinterpretações [...] Quem interpreta, em vez de simplesmente registrar e classificar, é estigmatizado como alguém que desorienta a inteligência para um devaneio impotente e implica onde não há nada para explicar. (ADORNO, T. W., 2003, pp.16, 17)

A nosso modo de ver, esses conceitos são extremamente pertinentes à

pesquisa que realizamos, porque María Zambrano expressa, praticamente em

todos os momentos, uma vontade de problematização que, de maneira sedutora,

‘moderniza’ os mecanismos culturais que condicionam a sociedade européia e,

sobretudo, espanhola. Além do mais, se aceitarmos o fato de que a escritura, na

forma de uma materialização do pensamento, tem o encargo de fazer com que o

leitor, por outros fluxos de reflexão, observe de uma maneira diferente o que já se

disse antes, poderemos crer que o ensaio é uma modalidade discursiva moderna

esclarecedora e abrangente, porém não doutrinária, que acolhe a dúvida e a

polêmica como uma certeza dentro de seus principais parâmetros de elaboração.

Desse modo, o ensaio caracteriza-se como uma escritura em constante

avanço ou progressão, que denota uma simbiose com o seu tempo, pelo fato de

que a cultura e a comunidade onde surge disponibilizam os instrumentos

necessários para o desenvolvimento da reflexão do ensaísta, que colabora com a

possibilidade de reforma do pensamento em voga. Esse aspecto errático,

descentrado e inespecífico do ensaio, segundo assevera Adorno (ibidem), é o que

lhe outorga a se desobrigar de uma habitual noção de verdade, já que a sua forma

de expor indica sempre só uma aproximação concludente, que solicita

desestabilizar as bases de um mundo exclusivamente lógico.

Assim sendo, a grande adesão ao ensaio nos tempos mais recentes de

nossa história literária articula-se à uma epistemologia da modernidade, que

comumente integra mais de uma forma de expressão e diversos campos do

conhecimento, a fim de imprimir outros enfoques à realidade circundante.

Segundo Belén Hernández (2005, pp.148, 149), a proliferação de publicações

ensaísticas, em nosso tempo, responde a uma necessidade crítica própria da

sociedade moderna, ávida por novas informações e novas vozes dissidentes, que

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mantenham acesas as chamas da argumentação e da força intelectual renovadoras

do meio que, mais do que nunca, nossas contingências reclamam.

Seguindo essa linha de exposição, Arenas Cruz (1997, p.27) defende o

raciocínio de que os textos relacionados a reflexões não puramente técnicas

deveriam ser considerados sob uma perspectiva de orientação mais global que

denomina de ‘gênero argumentativo’, diferentemente da nomenclatura de gêneros

ensaísticos proposta por Aullón de Haro. Essa tentativa de mudança lexical visa

incluir não somente o ensaio, mas também outras classes de textos

argumentativos, como a epístola, o diálogo, a glossa e a miscelânia, que, de

acordo com a autora, funcionaram, durante muito tempo, como uma forma de

reflexão crítica da cultura.

El diálogo, la epístola, la miscelánea, el ensayo, la glosa, el discurso, etc son formas personalizadas de comunicación, donde tanto el yo del autor como el tú del receptor aparecen reflejados, donde el lenguaje está cargado de toda la ambigüedad y riqueza de la lengua normal, donde la razón puede argumentar libremente, en función del aquí y el ahora, sin sujeciones a ningún tipo de lógica formal o de orden en el razonamiento. Sólo estas peculiares condiciones permiten pensar y reflexionar acerca de las cuestiones realmente importantes para la vida, la sociedad y el hombre en su dimensión histórica. (ARENAS CRUZ, 1997, p.45)

Para Arenas Cruz, além do ensaio, todas essas formas discursivas

reivindincam um espaço na teoria acerca dos gêneros literários junto aos modos

tradicionais de expressão lírica, narrativa e dramática, pois traduzem, igualmente,

através dos tempos, a comunicação da consciência humana. Tanto a posição de

Aullón de Haro, como a proposta de Arenas Cruz deixam claro a necessidade

moderna de, ao lado do relevante estudo científico e técnico, tratar urgentemente

de questões antropológicas da existência, que somente esses canais de

comunicação são capazes de realizar. Esse movimento expressivo, conforme

sentencia Lukács (1975, p.23), é fundamental ao que entendemos também como

vivência cognitiva e avanço cultural da sociedade, representante do poder anímico

humano, combustível da própria vida.

María Zambrano, em sua produção ensaística ou, digamos agora como

Arenas Cruz, argumentativa, sempre escrutou a Espanha como um problema, que

merece a reflexão de um homem que a vive e, dessa maneira, constrói-na para um

destino e, realmente, dessa responsabilidade não podemos escapar. A sua obra

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compila artigos e ensaios que incluem a época da guerra civil espanhola,

mostrando uma mulher republicana extremamente compromissada com o seu

tempo, onde analisa sóbria e contundentemente a situação do homem espanhol e

da Espanha naquele momento. Esse ‘dolorido sentir’, como chegou a dizer Azorín

(Epílogo de Las confesiones de un pequeño filósofo, 1904, influenciado por

Garcilaso, Égloga I, 1543), permite à autora, assumindo uma atitude filosófica,

aprofundar-se na intra-história do seu país, buscando as origens de seus

problemas, como a única forma realmente eficaz de levar a cabo o seu

pensamento. Desse ângulo de visão, insistimos em afirmar que os escritos

zambranianos apóiam-se em pilares de uma estrutura estética ensaística

relacionada à modernidade e ao trágico, refletindo recortes temporais que

espelham fases da vida da autora dentro de um carácter provisório e real, porém

também imaginativo, onde se estabelece como fio condutor a relatividade de tudo

o que é considerado definitivo ou absoluto. É justamente nesse aspecto que, para

nós, é muito relevante o estudo da obra zambraniana através de uma perspectiva

de conjunto, com relação aos seus ensaios, sem congelar o nosso olhar em uma

etapa específica, pois o que queremos é apreender a sua forma de pensar durante o

percurso de uma vida literária. Na verdade, é interessante meditar sobre até que

ponto os sucessos concretos favorecem certas mudanças no pensamento

zambraniano, na sua maneira de tratar questões éticas no ensaio ou no seu modo

de construir o próprio ensaio.

De acordo com essas reflexões e levando-se em conta a inevitável

mutabilidade do seguir existindo do mundo e do sujeito, ao longo da sua vida

literária, é possível detectar que María Zambrano sugere modificações temáticas

em seus textos que, algumas vezes, simultaneamente, se contrapõem à abordagem

de umas mesmas questões universais a partir de novos direcionamentos

provocados por estímulos extraliterários. Entendemos essa peculiaridade

autobiográfica na obra de María Zambrano como uma forma possível do ensaio,

uma vez que consegue congregar o pensamento à vida. Devemos acrescentar

ainda que a característica autobiográfica no ensaio de María Zambrano também

patentiza uma reflexão incompleta acerca dos problemas discutidos, posto que a

disposição enunciativa do ensaio apresenta a predominância de um ponto de vista

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particular, que, em geral, é antagônico às perspectivas assentadas pelas crenças de

toda uma herança tradicional. Esse fato, mais uma vez, justifica a defesa do ensaio

como uma forma estética moderna, cuja agudeza crítica e o fortalecimento da

primeira pessoa do sujeito, em contraste com suas variadas tentativas de

obscurecimento na modernidade, encontram-se em franca linha de ascensão em

nossos tempos mais recentes. Segundo José Luis Gómez-Martínez (1992), na

Espanha, se o século XIX marcou brilhantemente a produção do romance, o

século XX foi a idade de ouro do ensaio, apesar de que, no final do século XIX, o

ensaio já mostrava uma presença significativa em diversos círculos intelectuais.

Esse período de opulência do gênero ensaístico no século XX deveu-se, em parte,

na Espanha, à grata influência de certos autores como Miguel de Unamuno e

Ortega y Gasset, que reiteraram e divulgaram, em suas obras, os pressupostos

referentes à essência do ensaio manifestados por Montaigne há três séculos.

A modernidade do ensaio consiste exatamente na dificuldade de sua

classificação, no entanto, este obstáculo não é uma peculiaridade sua, já que são

geralmente frustrantes as tentativas de categorização principalmente no âmbito

ficcional e subjetivo dos gêneros literários, como o romance, a poesia e o drama.

Contudo, essas avaliações são fundamentais, para que possamos trabalhar a partir

de parâmetros de orientação, que, em lugar de limitar, instituam articulações com

outros modos de expressão; daí que o estudo de Arenas Cruz pleiteie a

nomenclatura de gênero argumentativo para um conjunto de classes de textos,

entre eles, o discurso ensaístico. José Luis Gómez-Martínez (1992) alerta que esse

caráter impreciso nos critérios de padronização dos gêneros literários cultiva a

semente moderna da ‘insolução’ e mostra a consciência amadurecida do crítico ao

reconhecer que cada obra de arte possui um peso individual não comparável e

único. O ensaio, assim, respondendo a uma natureza vaga quanto à sua definição e

forma, revela entroncamentos enriquecedores com outros modos de pensar

modernos, como a autobiografia, o diálogo e a confissão, os quais evidenciam que

os acontecimentos factuais não são realidades estáticas, mas fluem e se

desdobram no homem e, em consequência, em suas criações, entre elas, a obra de

arte. É o que Alberto Giordano (2006) procura afirmar por meio da análise do

ensaio de alguns escritores. O autor atesta que o ensaio fomenta o surgimento de

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uma ‘autofiguração subjetiva’, que leva ao que se ensaia a esquecer ou a se

desviar do curso das estratégias que prevêm a construção da imagem do escritor,

distanciando-o, cada vez mais, da capacidade de se reconhecer com motivo da

identificação que realizaria das outras faces diferentes dele mesmo. No ensaio, de

alguma maneira, o outro não constituiria um simulacro alheio de algum nome da

realidade ou de um personagem tradicional, porém anseia consolidar um sujeito

sui generis que se manifesta na subjetividade da figura do escritor. Dentro da

instância individual, o escritor cede à tentação de divulgar uma personalidade

discordante da do ensaísta propriamente dito, com o objetivo de apontar uma

enunciação do saber única, cuja origem está especificada com um nome ficcional

propagador da assinatura de um nome idiossincrático, cuja maior aspiração é

ocupar um espaço de realce também na dimensão da realidade.

(...) cada ensayo es un acto único, un paso de polémica que se ejecuta de acuerdo con condicionantes únicas, para conseguir un efecto disolvente también único. Y lo que haya de verdad en cada caso (la verdad que el ensayo produce en el acto de la polémica, no una verdad a la que se representa, a la que se obedece) vale, en principio, sólo para él. (GIODARNO, A., 2006, p.35)

Alberto Giordano (2006), em seus estudos, profere que a posição subjetiva

do ensaísta edifica-se na sua própria decisão ética de escrever, ato que não

intenciona puramente unir-se ao leque de interpretações diversas sobre algum

autor, tema ou obra, a fim de se alcançar êxito ou insucesso entre a

intelectualidade de uma época todavia nasce, como diria Borges, de uma

voluptuosidade ‘íntima’. Essa ânsia individual, de alguma forma, pretende

esclarecer o sujeito escrevente e satisfazer a sedução que o feito de criar exerce

sobre ele. Essa opinião também é declarada por María Zambrano na obra La

confesión: género literario y método, quando enuncia que:

No se escribe ciertamente por necesidades literarias, sino por necesidad que la vida tiene de expresarse. Y en el origen común y más hondo de los géneros literarios está la necesidad que la vida tiene de expresarse o la que el hombre tiene de dibujar seres diferentes de sí o la de apresar criaturas huidizas. (ZAMBRANO, M., 1995, p.25)

Chama-nos a atenção a maneira de se pensar que a escritura seria um

modo de confissão desvirtuada em consonância com um sentimento de gozo

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necessário em relação a uma subjetividade em crescente exposição, cuja intenção

seria conseguir uma liberdade do escritor favorável à criação de uma metáfora

autorreferencial de si mesmo. A literatura, explica Alberto Giordano (2006, p.62),

pode ser entendida essencialmente como um exercício imaginativo, que possui o

desejo de ver a realidade com olhos singulares. Esse mirar especial sugere que a

importante função desempenhada pela razão está submetida, ou melhor, está

aliada a uma forte vontade de reinventar identidades, espaços e tempos pelo

enfoque do sujeito que medita. Os aspectos culturais da realidade espanhola e

européia foram observados desde a interpretação teórica e vivencial de María

Zambrano, que, inegavelmente, nos permite construir, como leitores, a nossa

própria visão, conformando, assim, a maior esperança didática da filosofia: a

independência emancipativa da consciência e do verbo. Nas palavras de

Wittgenstein, podemos ler: “no quisiera con mi escrito ahorrarles a otros el

pensar, sino, si fuera posible, estimular a alguien a tener pensamientos propios.”

(WITTGENSTEIN, L., 1988, p.13) Utilizando as ideias de Concha Fernández

Martorell (2004), julgamos que as interpretações possíveis dos ensaios

zambranianos pelas referências concretas à sua obra conduzem o leitor a entender

o texto como uma oportunidade de conhecer um pouco mais o ser humano e suas

condicionantes históricas, tendo como ponto pendular dinamizador os elementos

culturais que o próprio autor e a crítica são capazes de produzir. Eticamente,

portanto, o ensaio, como uma obra de arte da modernidade que se afirma e se

nega constantemente, notifica, além de valores referentes ao estilo e à tentativa de

uma forma peculiar, atributos que afetam a subjetividade tanto do escritor, como

também do leitor. Tanto um como outro são incitados, pela pujança da criação

estética, a pensar, a imaginar e, consequentemente, a escrever e a ler algo que

valha por si só, na medida em que há a representação de um sujeito autor e leitor,

que possui a característica de ser único, especial e irrepetível.

2.1. A modernidade em crise e o discurso ensaístico

É ponto pacífico que o papel que a modernidade desempenha no

pensamento filosófico artístico dos séculos XIX e XX e também, convenhamos,

em nossa contemporaneidade é fundamental, já que continuamos a vivenciá-la e a

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sofrer as suas consequências positivas e negativas até hoje. Alguns admitem e

outros rechazam a ideia de uma modernidade eterna, porém, de qualquer maneira

e fora as opulentas críticas, é fato que, cambaleante e um pouco instável, ela ainda

se encontra em curso, embora saibamos, com Octavio Paz (1990, p.31), que o

termo perde a sua significação assim que acabamos de produzí-lo. Em vista disso,

Octavio Paz (ibidem) afirma que o moderno é tão difícil de discutir dado o seu

caráter efêmero e cambiante. Na verdade, vivemos vários momentos de

modernidade ao longo dos tempos. Ora, o moderno é o que experimentamos em

nossa circunstância atual. Pensando dessa forma, realmente seria possível falar de

uma eterna condição moderna. Octavio Paz sustenta que “La Edad Moderna no

tardará en ser la Antigüedad de mañana. Pero, por ahora, tenemos que resignarnos

y aceptar que vivimos en la Edad Moderna, a sabiendas que se trata de una

designación equívoca y provisional.” (ibid., pp.31, 32) A reflexão filosófica, fruto

de todas as transformações havidas na sociedade moderna, consistiu justamente

na negação do racionalismo, que havia impregnado a existência humana desde a

segunda metade do século XIX, estendendo-se no século XX. Vários pensadores

do século XX, entre eles, María Zambrano, considerarão a razão como uma

ferramenta insuficiente para explicar, com certa plausibilidade, o nosso mundo.

Isso pode ser explicado em virtude de que, na própria modernidade, a ciência

derrubou conceitos antes inquestionáveis por ela mesma em um movimento de

asserção e negação contínuas, o que também caracteriza e muito os tempos

modernos. Esse, opina José Luis Ocasar, foi um tiro fatal contra toda uma

concepção do universo oferecida pelo racionalismo. Diz o autor: “si la propia

ciencia comienza a desdecirse de sus enunciados básicos, ¿qué confianza puede

suponer para una humanidad que había destruido la religión con la propia

ciencia?” (OCASAR, J. L., 1997, p.12) Podemos contrabalançar essa afirmação

com as suposições de Octavio Paz (1990, pp.31, 32) que declara existir muitas

teorias a respeito do surgimento ou do começo da modernidade, que incluem o

renascimento, a reforma, a descoberta da América, a criação dos estados

nacionais, o nascimento do capitalismo, a ascensão da burguesia e a revolução

científica e filosófica. Octavio Paz (ibidem) assevera que todas essas conjeturas

são possíveis somente se vislumbradas a partir de uma visão de conjunto, pois só

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assim é viável ter uma compreensão mais coerente dessa problemática.

Acreditamos ser esse pensamento extremamente óbvio, visto que a modernidade

não se caracteriza por um ou outro acontecimento isolado. Como explica Paz

(ibid., p.33), isso ocorre, porque a modernidade é por si só o espelho do não

completo ou se distinguiria por ser um híbrido histórico. Na verdade, ela foi

semeada a partir de uma série de fatores, acontecimentos e descobertas

importantes que vieram a consolidar a ideia de que tudo é transitório e

possivelmente não de todo correto ou incorreto. Se tudo é relativo e cambiante, o

que devemos pensar? Pensar mudando, pensar duvidando, pensar polemizando

assim como faz o ensaio que não pretende esgotar nenhum tema pelo suposto

primordial de que nenhum conhecimento é defintivo. A completude do pensar é

impossível em qualquer espaço de tempo. Isso já muito bem defendia Montaigne:

Reflexiono sobre las cosas, no con amplitud sino con toda la profundidad de

que soy capaz, y las más de las veces me gusta examinarlas por su aspecto más inusitado. Me atrevería a tratar a fondo alguna materia si me conociera menos y me engañara sobre mi impotencia. Soltando aquí una frase, allá otra, como partes separadas del conjunto, desviadas, sin designio ni plan, no se espera de mí que lo haga bien ni que me concentre en mí mismo. Varío cuando me place y me entrego a la duda y a la incertidumbre, y a mi manera habitual que es la ignorancia. (MONTAIGNE, M., 1962, p.303)

A teoria de Montaigne sobre o ensaio confirma a crise do domínio do

saber técnico na modernidade, pois todas as circunstâncias estão sujeitas ao olhar

daquele que vê e como cada indivíduo vê de um jeito, toda e qualquer observação

sempre modificará as condições do que é visto. Embora a fugacidade dos

conceitos presente no pensamento do século XX seja muito salutar, lançou-nos

em um abismo do nada. Se tudo em que acreditamos pode mudar a qualquer

momento, desfazer-se como pó, então nós não temos, em realidade, nada, todas as

nossas crenças são tão fortes como um castelo de areia. Esse é todo o nosso

fascínio e todo o nosso drama até os dias atuais. A filosofia comprova que os

tempos mais recentes definem-se a partir de uma preemência para desfigurar

ideias e projetos, enfim o conhecimento. Mais do que nunca, temos a consciência

de que a evolução cognoscitiva está não exatamente em descartar, mas em

desafeiçoar, o que seria, no final das contas, o pensar e o ensaio não é outra coisa

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a não ser isso, alinhando-se, desse modo, a toda uma vigorosa forma de

pensamento relacionada principalmente aos nossos dois últimos séculos.

A utopia é uma questão importante da modernidade debatida por Octavio

Paz. Para o autor (1990, p.33), as grandes revoluções que propiciaram o

surgimento da história moderna encontraram inspiração no pensamento do século

XVIII, porque essa centúria foi próspera em uma série de projetos de reforma

social e também em utopias. Não podemos negar que a racionalização da vida foi,

sem dúvida alguma, um projeto utópico. É certo que, pelas utopias, o mundo

cometeu várias injustiças, mas, de qualquer forma, a utopia, mal ou bem, nos

trouxe ao lugar em que estamos agora. Foi, graças à utopia, que foram realizadas

as ações e os sonhos ambiciosos da modernidade. Paz (ibidem) acredita que as

utopias do século XVIII foram o grande estímulo que conduziu os rumos da

história dos séculos XIX, XX e, por que não dizer, também entusiasma as

aspirações do século XXI, já que, sem algum tipo utopia, não é possível existir. A

utopia tem tudo a ver com a crítica; ela é, na realidade, a sua outra face. Assim

sendo, para Octavio Paz (ibid.), quem elabora uma crítica está propondo alguma

esperança utópica; somente uma idade crítica tem condições de idealizar utopias.

Como sonhos ativos da razão, as utopias pretendem e, algumas vezes, conseguem

transformar-se em revoluções que mudam o caminho da história de nações e

povos. A utopia, para Paz (ibid., p.34), é outro traço característico da Idade

Moderna, que denota a importância que o futuro ocupa na vida do homem. O

melhor não se encontraria no passado tampouco no presente, ainda estaria por vir

no porvir.

Levando-se em consideração que a utopia, eixo motriz principal da

modernidade, funda-se na idealização onírica do que ainda não existe no plano

concreto, Octavio Paz (ibid., p.32) afirma que a era moderna tem seu início como

uma crítica da religião, da filosofia, da moral, do direito, da história, da economia

e da política. Como já dissemos, a crítica sinaliza o nascimento da Idade Moderna

e funciona como um método de análise, de criação e de ação, que questiona o

progresso, a ciência, a técnica, as revoluções e todo o mais que merecer também

ser criticado. Dessa forma, todas as noções cimentadas que possuíamos em

relação ao ser humano, a valores e à verdade caíram por terra, visto que a história

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e o homem avançaram, mudaram e, em um e em outro ponto, evoluíram

significativamente. No entanto, o problema é que essas transformações em lugar

de nos conceder o sentimento do otimismo, acabaram legando-nos enormes

preocupações, na medida em que não conseguimos confiar nelas plenamente. Por

exemplo, o que devemos pensar da engenharia genética, da energia atômica, da

informática e da tecnologia? Essas áreas do conhecimento, junto à uma série de

esperanças e utopias, causam e ainda vão nos provocar inumeráveis angústias e

perturbações que muitos escritores estão discutindo nas diversas obras artísticas e

filosóficas de nosso tempo.

2.1.1. A recepção da época moderna na cultura espanhola

A modernidade, como um fenônemo abrangente que vai influenciar toda a

Europa, tem semelhantes reflexos na história social e cultural espanhola. Dizemos

semelhantes, visto que, de acordo com Eduardo Subirats (1987, p.94), desde o

século XV, a Espanha não acompanhou diretamente os fenônemos culturais, entre

eles as correntes religiosas e filosóficas, que desaguaram na cultura moderna. A

modernidade filosófica de teor humanista e os desejos de liberdade e autonomia

do sujeito foram experimentados, por grande parte da cultura espanhola, como

algo distante e negativo. A diferença no entender a modernidade na Espanha

explica-se pelo fato de que toda a reforma do pensamento europeu que acabou

alavancando o crescimento tecnológico interagiu com a decadência social

espanhola e a continuada perda de controle e influência econômica e política

sobre as colônias. A cultura moderna e a racionalização, defende Subirats

(ibidem), foram impopulares na Espanha, pois exigiam o sacrifício de uma

herança religiosa, mitológica e poética central na conformação da cultura

tradicional do país. Com efeito, o moderno, dentro da realidade espanhola, foi

compreendido de uma maneira negativa no momento em que ameaçou a

estabilidade e o status de uma história sócio-cultural secular, que assentava sua

identidade em um poderoso sistema de influência, sobretudo, religioso. Daí que a

modernidade, principalmente, na Espanha tenha adquirido um signo trágico todo

especial, que favoreceu o desenvolvimento de uma filosofia crítica direcionada à

transcendência, onde o sujeito se assoma como uma forma de conhecimento

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empírico possível, contrapondo-se a um movimento de despersonalização da

sociedade, a partir da organização burocrática da vida do homem e da cultura de

massa. Desse ponto de vista, repetimos, María Zambrano parte de um cenário de

crise e, portanto, desenvolve uma filosofia também da crise, oriunda de um

trágico rompimento epistemológico da razão, da ciência e da história com

elementos culturais subjetivos, como a moral, a ética e a religião. Essa filosofia

crítica, regida obviamente por características conceituais instáveis, norteará toda

uma concepção do trágico dentro do panorama moderno do século XX.

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3. UM CONCEITO DIFERENTE DO TRÁGICO

Em determinados momentos de impotência e angústia diante da

implacabilidade da existência, a crença espiritual torna-se cada vez mais

apremiante na vida do homem e o faz dar-se conta de que a ciência e o

pensamento racionalista não são suficientemente competentes para sanar as suas

mais íntimas necessidades. O político e ensaísta peruano José Carlos Mariátegui

profere que:Ni la razón ni la Ciencia pueden satisfacer toda la necesidad de infinito que

hay en el hombre... No se vive fecundamente sin una concepción metafísica de la vida. El mito mueve al hombre en la historia... La historia la hacen los hombres poseídos e iluminados por una creencia superior, por una esperanza superhumana... Los motivos religiosos se han desplazado del cielo, a la tierra. No son divinos, son humanos, son sociales. (MARIÁTEGUI, J. C., In: SKIRIUS, J., 1994, p.22)

Indissociavelmente à ideia da modernidade e dos limites do racionalismo,

aparece o conceito do trágico que, tendo suas origens milenares evidentemente na

tragédia, desfrutou dentro da história de momentos de clímax e opacidade. Ao

lado das incertezas de uma definição ocidental com respeito à tragédia como uma

emoção, uma atitude ou um gênero, existe a forte crença de que o estado trágico

surge na representação de uma vivência histórica muito particular, na qual

provavelmente uma fragilidade religiosa, social, política e cultural estão

acentuadas.

Com base nos estudos de Peter Szondi (1994, p.175), podemos afirmar

que Aristóteles pensou em uma poética da tragédia, mas foi Schelling, no final do

século XVIII, quem idealizou uma filosofia do trágico. A partir dessa constatação,

é possível inferir que a filosofia do trágico nasceu de uma recepção da poética de

Aristóteles e, reinventando um processo originário de transformações, ela vai se

modificando ao longo do tempo, sempre adquirindo uma nova representatividade,

em um movimento mimético de abstração do conhecimento, que legará sempre o

aprendizado prazeroso da descoberta reveladora. De acordo com Szondi (ibidem,

pp.175-178), portanto, a tragédia possui dois pontos de vista diferentes: a poética

da tragédia e a filosofia do trágico. Em Aristóteles, funda-se uma tradição de

análise poetológica da tragédia, na qual predominará, ao lado de sua finalidade

ética e moral, a preocupação pela forma, pela estrutura e pela organização,

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favorecendo, na verdade, o estudo da técnica poética em geral. O que nos

interessa nesse trabalho, entretanto, é justamente a filosofia do trágico como uma

manifestação de uma determinada sabedoria ou perspectiva do mundo que a

modernidade vai preferir chamar de trágica.

Dessa maneira, nos últimos dois séculos, mas, sobretudo, no século XX,

sob os efeitos de uma construção moderna, a noção do trágico sofreu reajustes no

panorama da cultura ocidental, sendo alvo da atenção de filósofos, escritores

literários e pensadores em geral. No bojo dessa reformulação, é evidente que se

mantiveram peculiaridades intrinsecamente ligadas ao vocábulo original em

questão, em que se sublinha a sua relação com uma imagem de perigo, ameaça,

violência, além da sensação da iminência de um destino fatal inevitável, de uma

derrota implacável e da própria morte, ou seja, existe uma conexão com uma

efetiva visão trágica do mundo, a qual é negociada constantemente a partir de uma

contingencialidade. A percepção trágica do homem com respeito à sua

mortalidade é um sentimento que o aflige sobremaneira justamente pela

consciência da impossibilidade de reverter tal situação escatológica. De modo

assustador, talvez a morte seja realmente a única barreira trágica que o homem

ainda não conseguiu transpor verdadeiramente e talvez, enfim, esse seja o motivo

pelo qual o tema provoque tanto encantamento na esfera filosófica, literária e em

outros campos do saber. O trágico é potencializado a um patamar de

procedimento estético na literatura, colaborando com a construção de um ideário

metafísico, que pretende estabelecer determinadas reflexões sobre a condição

humana, sobre o espaço que ocupamos no mundo.

A concepção literária do trágico como uma simbologia de um momento

ímpar da vivência humana, que busca uma verossimilhança entre o dramático e a

realidade empírica do ser humano, configura-se como um importante sinal da

angustiante desarmonia entre o homem e a contingência na qual está inserido.

Entre as diversas peculiaridades existentes nas interpretações do trágico, segundo

Roberto Machado, a mais importante delas talvez seja exatamente aventar uma

possibilidade de visão ontológica da tragédia. Escreve o autor: “[...] quando se

fala de pensamento filosófico moderno sobre a tragédia, “filosófico” tem o

sentido forte de “ontológico”, isto é, a tragédia diz alguma coisa sobre o próprio

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ser, ou a totalidade dos entes, a totalidade do que existe.” (MACHADO, R., 2006,

p.44) Essa impressão resultante das consequências da modernidade apresenta

conexões com o advento da secularização e da decepção do homem em relação ao

mundo e aos rumos seguidos pela civilização, corroborada pela crescente

mecanização da natureza e pela minimilização do ser humano.

3.1. A representação do herói trágico no mito do escritor

No âmbito literário espanhol, ao lado de outros nomes de vulto no espaço

europeu como Shakespeare e Racine, o sentimento trágico apresentou uma

profícua substantividade com as obras de Cervantes (1547-1616), Lope de Vega

(1562-1635), Calderón de la Barca (1600-1681), Galdós (1843-1920), Unamuno

(1864-1936) e García Lorca (1898-1936), só para citar cronologicamente alguns

dos ícones da cultura literária à qual pertence María Zambrano. Importante é

salientar que, sob outra óptica histórica, os alicerces que motivaram a criação

literária européia romântica e pós-romântica revelaram que o século XIX e o

século XX continuaram com uma tendência de perspectiva trágica tanto na

Europa como na Espanha, seguindo uma forte herança deixada por escritores

precedentes. Na realidade, esses dois séculos também foram tragicofílicos. Enfim,

indubitavelmente, os termos ‘tragédia’ e ‘trágico’, com o passar dos tempos e das

experiências do homem em seu contexto, resignificaram-se em diversos

panoramas cotidianos da existência, recebendo, desse modo, interpretações

distintas conforme os momentos históricos vivenciados, sem se relacionar

precipuamente com as suas remotas procedências. Com outras leituras, na

modernidade, o conceito do trágico foi revitalizado e utilizado como indício

sintomático da problematização do homem. O escritor, no papel de um intelectual

que pensa sobre a sociedade, a história e a cultura, muitas vezes, aparecerá como

um herói que buscará compreender as opções que fizeram o homem, quiçá,

inevitavelmente, trilhar certos caminhos e não outros, respondendo às

necessidades da condição humana dentro dessas respectivas ‘atualidades’, melhor

ainda, em consonância com o tempo a partir do qual se reflexiona.

Gostaríamos de destacar, desse modo, o fato da filosofia evidenciar que a

reflexão sobre o trágico gira em torno também da questão da teatralidade do

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discurso, em que irrefutavelmente aparece, como já abordamos antes, a poética do

eu heróico. Rafael Argullol (1990, p.13) anuncia que o trágico implica uma

contemplação heróica do homem, pois esse difícil entendimento da limitação da

existência humana somente poderia provocar um sentimento de resignação, caso

não estivesse acompanhada de uma ‘vontade heróica’ em relação àquilo que, em

princípio, não se poderia ter em relação ao que se acredita ilimitado. Essa

identificação do artista com a figura do herói trágico é o que confere maior

veracidade e caráter moderno ao texto e cria uma consciência nova e

revolucionária da concepção do mundo. Para Argullol (ibidem, pp.17, 21, 22, 23),

o pensamento trágico moderno é desenvolvido desde o movimento romântico, no

qual a revitalização do sujeito tem a intenção de indicar a retomada de uma ideia

renascentista, que vislumbrava ilusoriamente o homem como unidade de poder,

de conhecimento e de subjetividade contrastadas tragicamente com as frustrações

da impotência, do mistério e da natureza não domesticada. Em sua obra, María

Zambrano não deixa de responder aos critérios estéticos de uma intelectual

moderna, que autoprojeta, no século XX, a figura do herói trágico dentro da

representação de um mito de escritor, a fim de expressar as suas vivências

pessoais, o seu país e a Europa, a partir de um testemunho particular sob a forma

de ensaio, capaz de exprimir as suas reflexões originadas de um caudaloso e rico

conjunto de leituras filosófico-literárias.

3.2. A razão poética como método de reconciliação

A razão poética foi um estilo zambraniano utilizado expressamente como

uma possibilidade de realização não somente estética, mas também ética e

pessoal, mostrando-se, para a autora, cada vez mais necessária em nossos tempos,

nos quais a severidade do racionalismo vulnera o espírito humano e oculta as

dimensões enigmáticas da vida. Por meio da palavra literária, esse método

zambraniano possui o poder de iluminar os caminhos misteriosos da história e

conceder-lhes um depoimento que aspira a contribuir para a formação de uma

consciência circunstancial e ampla no homem ante um mundo por vezes confuso,

ameaçador e sombrio. A história, na concepção de María Zambrano, manifesta-se

como uma espécie de mal necessário que desafia o ser humano a superá-la ou

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transcendê-la, posto que a existência compõe um universo desejoso por

confidenciar infinitas e insuspeitadas revelações. Em contraposição aos presságios

de guerras na Europa e de difíceis tempos de ditadura, a linguagem artística, a

razão poética de María Zambrano ocupa um lugar privilegiado ao oferecer

explicações da realidade em uma relação de significado diferenciada. Dentro de

um contexto ocidental, a opção estética zambraniana denota uma leitura política,

ética e social de seu país, que necessita urgentemente exteriorizar-se por meio de

uma liberdade enunciativa da escritura ensaística, crítica e poética, como um

modo de reforçar os seus questionamentos com referência à história.

María Zambrano, em “Adsum” (1955, In: ZAMBRANO, M., 1987a, pp.3-

7), exibe uma experiência de declaração do eu, a partir da exposição da sua

criação literária, que conjuga pensamento-conhecimento e invenção-teatralização

da referencialidade escritural ao dissertar sobre a sua profunda vocação filosófica,

onde a morte e o nascimento metaforizam o signo trágico da existência oriunda do

desejo divino.

Había querido morir, no al modo en que se quiere cuando se está lejos de la muerte, sino yendo hacia ella. No la había llamado, simplemente debió de ponerse en marcha por el camino que a ella lleva o quizá equivocarse; quizá fue que cayó en una trampa o que se fió de un espejismo; un error. Y el error se paga con la muerte. Por eso es inexorable morir para todos. También porque nunca se ha estado vivo del todo ni sea posible estarlo. [...] La tragedia única es haber nacido. Pues nacer es pretender hacer real el sueño. Nacer es realizar o pretender realizar el sueño de nuestros padres; el sueño de Dios inicialmente. (ZAMBRANO, M., 1987a, pp.3, 4)

Em “Adsum”, a autora comenta alguns de seus escritos, à primeira vista

mais sobressalentes, na Revista de Occidente. O primeiro texto que menciona é

“Por qué se escribe”. Nele, mantém suas concepções sobre a existência de três

formas de razão: a razão cotidiana, a razão mediadora, a qual, esclarece, aparece

depois no prólogo de seu livro El pensamiento vivo de Séneca (1944) e, embora

sem declarar exatamente a expressão, a razão poética, recuperada um pouco mais

tarde em seu outro ensaio “Hacia un saber sobre el alma”, publicado

primeiramente na Revista de Occidente em dezembro de 1934. Após alguns

anos, em 1950, o referido ensaio passa a compor um livro com o mesmo título.

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Rememorando alguns de seus ensaios, a escritora garante que suas

apreciações sobre a razão poética também surgem, entre outras publicações, em

uma nota sobre um livro de Antonio Machado, ““La guerra” de Antonio

Machado” redigida em dezembro de 1937 para a revista Hora de España. A

autora explica que esses artigos foram publicados muito próximos às vicissitudes

da guerra civil espanhola. Para María Zambrano, não somente os infortúnios

experimentados na Espanha nesse período, mas também a história em geral é

captada na forma de um constante processo de transmutação poética, que visa

reconstruir uma identidade subjetiva e transcendente do homem na modernidade.

Diante dessa perspectiva, o ensaio, para Arenas Cruz (1997, p.55), submete a

experiência argumentativa às idiossincrasias do escritor, que, em lugar de revelar

um conhecimento arbitrário, almeja alicerçar e defender uma posição particular

em seu tempo. Sendo assim, o papel singular do ensaísmo literário de María

Zambrano, dentro dos juízos levados a cabo com referência à uma racionalidade

moderna, é digno de uma contemplação crítica investigativa. É óbvio que o

tratamento temporalmente diferenciado de determinadas problemáticas em

estudos filosóficos, como o que estimula o ser humano a um exercício tão

espinhoso como a escritura ou o autoexame de sua própria história e cultura ou

ainda o pensar sobre a importância de uma razão poética no âmbito da existência

e a religação espiritual do indivíduo com o sentimento do divino, está

estreitamente conectado à assertiva de que o homem caracteriza-se como uma

questão fundamental para si mesmo, visto que denota um eterno desejo pela

realização pessoal, anímica e material. Certamente, se a plenitude da satisfação

existencial fosse uma meta facilmente alcançada em nossas contingências, não

seria viável a contínua problematização humana ao longo da história da filosofia e

da literatura. O tema da ‘razão poética’, ao contextualizar as obras zambranianas e

conformar um dos núcleos primordiais do seu pensamento, serve ao propósito de

dilucidar os matizes característicos de uma subjetividade moderna, influenciada

por uma sucessão de fatos culturais, históricos e sociais extremamente distintivos,

que peculiarizam a situação trágica do homem na modernidade provocada pelos

excessos do racionalismo. A razão poética cumpre a função de humanizar a

história e recobrar os valores espirituais do homem moderno.

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Tomando-se em consideração todo o exposto anteriormente, dentro da

presente pesquisa, ratificamos que as correspondências existentes entre o discurso

ensaístico, o discurso filosófico, o conceito atualizado do trágico, as reflexões

suscitadas pelo fenômeno da modernidade e todos os seus vetores intrínsecos de

abordagem perfilam-se como pilares de sustentação que consideramos

intimamente correlacionados e aparecem como parâmetros fundamentais ao

desenvolvimento do nosso pensar.

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4. MARÍA ZAMBRANO NA REPÚBLICA E NA GUERRA CIVIL

Na medida em que María Zambrano lutou em prol da República e vivenci-

ou, ao lado do povo espanhol, a alegria da vitória de um novo regime de projetos

políticos e sociais mais liberais, com uma forma de governo mais justa e democrá-

tica, porém, logo depois derrubado pelo golpe militar que desencadeou a catástrofe

da guerra civil, julgamos conveniente abordar o percurso temporal que ambientou

esses momentos importantes da história espanhola e condicionaram, de um modo

contundente, a obra da ensaísta.

De acordo com os fatos históricos que antecederam a guerra civil espanho-

la, a deposição temporária dos Bourbons absolutistas por ação das tropas de Napo-

leão Bonaparte em 1808, a Guerra de Independência contra a ocupação francesa, a

abertura, em 1810, das Cortes de Cádiz e a proclamação da Constituição liberal de

1812 marcaram o desaparecimento do Antigo Regime espanhol, considerado, du-

rante o reinado de Carlos III, um modelo de Despotismo Esclarecido. Entretanto,

ao longo do século XIX e no início do século XX, a Espanha não conseguiu levar a

término, no âmbito político e social, a sua revolução burguesa, a fim de construir

um espaço de institucionalidade liberal e democrática sólida.

Na Espanha, o século XIX protagonizou muitas lutas entre liberais e abso-

lutistas, entre isabelinos e carlistas, personagens rivais da Casa de Bourbon e, mais

tarde, entre monarquistas e republicanos com o pretexto da perda das colônias

americanas e filipinas. Por outro lado, a economia espanhola, do final do século

XIX ao princípio do século XX, apresentou um acelerado incremento especialmen-

te nas indústrias mineiras e metalúrgicas, que granjearam uma grande expansão na

Primeira Guerra Mundial ao proporcionar insumos às partes em contenda. Esse

importante crescimento, contudo, não ofereceu transformações nas condições soci-

ais dos espanhóis, que viam a agricultura permanecer em poder de latifundiários,

com enormes extensões de terras sem cultivar. Para agravar tal situação, a pujante

influência da Igreja Católica também contribuía a uma não concretização de refor-

mas sociais, pois era aliada dos interesses da elite agrária. A monarquia espanhola

precisava sustentar-se na força militar para preservar o regime. Infelizmente, a

queda da monarquia e a chegada da república em 1931 não alteraram as circuns-

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tâncias vivenciadas. Para completar o preocupante quadro, a Igreja e o Exército

mantiveram-se monárquicos e as tentativas de golpe fizeram-se frequentes.

Juntamente aos avanços econômicos, houve um aumento do movimento

operário, cuja fundação da sua primeira sociedade ocorreu em 1840, na cidade de

Barcelona, disseminando-se logo depois por todo o país. Sobretudo na Catalunha,

principal região industrial espanhola, o anarquismo notabilizou-se como a tendên-

cia política mais propagada entre os trabalhadores. Nesse tempo, havia uma vio-

lência muito grande entre as classes, inclusive, com grupos de extermínio, que ten-

tavam aniquilar os sindicatos por meio da morte dos seus principais representantes

e adeptos. Eram assíduas as insurreições armadas de direita e de esquerda.

Com o afastamento por renúncia do ditador Primo de Rivera devido a

escândalos de corrupção, o rei Alfonso XIII procurou restabelecer o regime parla-

mentar e constitucional. Para tal, em 1931, convocaram-se eleições municipais,

que deram a vitória aos monarquistas, embora os republicanos tivessem conquista-

do a maioria dos votos nas grandes cidades. Alfonso XIII, profetizando a explosão

de uma guerra civil, deixa o trono e, assim, é proclama a Segunda República Espa-

nhola. A promulgação da Constituição de 1931 tornou a Espanha uma república

democrática para os trabalhadores de todas as classes com a separação entre igreja

e estado, Parlamento unicameral, regime parlamentarista, sufrágio universal, com

direito a voto também das mulheres e dos soldados, e autonomia regional para o

País Basco e a Catalunha. Confiava-se na possibilidade de encetar a prática do plu-

ralismo político e da diversidade de partidos, que garantiriam a liberdade de ex-

pressão e a criação das organizações sindicais. Além disso, os títulos de nobreza

foram extintos, estabeleceu-se o divórcio, uma lei agrária de 1932 implementou a

expropriação dos latifúndios, as propriedades religiosas foram disponibilizadas à

nação e o ensino leigo quase vingou se não fosse a carência de professores e esco-

las. Com essas mudanças, crescia o anseio de que a Espanha fosse capaz de acom-

panhar os demais países ocidentais e de introduzir, enfim, reformas realmente mo-

dernizantes.

Essas enérgicas transformações, todavia, não se realizaram na prática, pois

se esvaíram na violência desmedida de todos os lados e em várias greves e rebeli-

ões. Os militantes de direita organizaram-se em três movimentos, a saber: a Confe-

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deração das Direitas Autônomas, de Gil Robles, as Juntas da Ofensiva Nacional

Sindicalista (JONS) e a Falange Espanhola fundada por José Antonio Primo de Ri-

vera em 1933. A direita, unida através desses três movimentos, logrou, em 1933,

vencer e derrubar o gabinete de Manuel Azaña, Presidente do governo da Espanha,

e os dois governos considerados moderados que se lhe seguiram. Em 1936, a Fren-

te Popular, coligação criada pelos principais partidos de centro-esquerda da Espa-

nha, inclusive os nacionalistas, ganhou as eleições e devolveu o poder a Azaña.

Em contrapartida, o desejo de que as reformas sociais colocadas em vigor fossem

promissoras e as esperanças de um futuro próspero para o povo incompatibiliza-

ram-se com os interesses dos segmentos mais conservadores e tradicionais da soci-

edade espanhola, que, igualmente, se sentiram abalados pela ocupação de terras

pelos camponeses, pelos incêndios de instituições religiosas e pelo empastelamen-

to e destruição dos jornais da oposição.

O assassinato do líder monarquista José Calvo Sotelo por agentes da Guar-

da de Assalto e por pistoleiros socialistas em julho de 1936, provavelmente em re-

presália à morte, algumas horas antes, de um oficial, o tenente Castillo, agravou

muito a crise, irrompendo a revolta militar que deu início à guerra civil espanhola.

O poder militar do Exército foi fundamental para a oposição ao governo legítimo

da República. Em 1936, um grupo de generais, entre eles, Emilio Mola, Francisco

Franco, José Sanjurjo, Joaquín Fanjul e José Enrique Varela, encontrou-se para es-

tudar o possível sucesso de um golpe. Em julho de 1936, a guarnição militar do

Marrocos espanhol rebelou-se. Nos dias que se seguiram, outras guarnições milita-

res em território espanhol também se sublevaram, principalmente, nas regiões do

centro e do norte do país. Nas províncias de Madri e Barcelona, as forças de segu-

rança, apoiadas por trabalhadores armados pelo governo, subjugaram os revolto-

sos. Na realidade, enquanto a república conseguia controlar as principais cidades

industriais da Espanha, os nacionalistas conquistavam espaço em regiões agrícolas

importantes, o que resultou em uma austera falta de alimentos nas áreas dominadas

pelos republicanos. Desse modo, as fábricas possuíam, como única alternativa,

adequar-se a uma rigorosa, porém necessária redução do mercado em função da

guerra.

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Após a morte do líder da rebelião, o general Sanjurjo, em um desastre, a re-

centemente constituída Junta de Defesa Nacional nomeou o general Francisco

Franco como Chefe de Estado e Comandante Supremo. Franco, ao congregar alia-

dos simpatizantes ao movimento, escolheu a cidade de Burgos como sede do seu

governo provisório durante a guerra civil espanhola. O governo socialista, fundado

no direito e na justiça, presidido por Francisco Largo Caballero, possuía prestígio e

soberania em Madri, entretanto, as contundentes pressões à capital levaram-no a

uma compelida mudança à província de Valência. No ano de 1937, em Barcelona,

depois de um conflito entre anarquistas e comunistas, Francisco Largo Caballero

foi substituído por Juan Negrín. A inteligente estratégia do fator supresa somada à

superioridade das tropas militares franquistas, que contavam massivamente com o

apoio da Alemanha de Hitler e da Itália de Mussolini, renderam ao governo de

Franco o controle de Cádiz, de Saragoça, de Sevilha e de outras cidades do sul do

país, além dos limites da fronteira portuguesa. Contou-se, ainda, com a ajuda de

António de Oliveira Salazar, ditador português entre 1932 e 1968, que facilitava o

aprovisionamento dos rebeldes. Também em 1937, da cidade aragonesa de Teruel,

os nacionalistas avançaram rumo a Málaga, Bilbao, Santander e Gijón. Em contra-

partida, Madri resistiu ao assédio das forças militares nacionalistas durante mais de

dois anos. Na época, os republicanos tinham a esperança de serem apoiados pela

França e pelo Reino Unido, contudo esses países adotaram uma política não-inter-

vencionista, receando, provavelmente, uma guerra generalizada. O maior auxílio

veio da União Soviética que, desde 1936, começou a enviar aviões, tanques, asses-

sores técnicos e material militar. O México também colaborou e um comitê reuni-

do em Paris organizou o recrutamento de voluntários estrangeiros em defesa da

República, formando as chamadas Brigadas Internacionais, que conseguiram ven-

cer as tropas italianas em Jarama e Guadalajara em 1937. Em abril desse ano, avi-

ões alemães, em reforço militar aos nacionalistas, bombardearam a cidade basca de

Guernica, fato considerado o maior evento trágico da guerra civil espanhola, cuja

devastadora demonstração de força bélica instigou a perplexidade e a revolta da

opinião pública do mundo todo.

A oeste de Madri, no povoado de Brunete, deu-se uma das grandes batalhas

da guerra civil e os nacionalistas, depois de uma sangrenta luta, derrotaram os re-

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publicanos. Um pouco mais tarde, a ofensiva republicana, depois de um cerco que

durou vários dias, retomou a cidade de Saragoça nas batalhas de Aragão e, em se-

guida, Belchite, entretanto, a obstinada defesa das tropas nacionalistas fizeram

com que essas vitórias não resultassem em nenhuma vantagem significativa para o

governo ameaçado, pois os dois confrontos desgastaram o lado da República e pro-

vocaram centenas de mortes, delatando um grave equívoco do seu exército popu-

lar: a falta de preparo para sustentar as posições conquistadas em um ataque, de

início, bem-sucedido. Seu maior triunfo foi a investida contra Teruel, onde um

exército de mais de cem mil homens forçou a cidade a se render. No ano seguinte,

em 1938, Franco reconquistou a cidade de Teruel após uma intensa contra-ofensi-

va, cujo auge foi a batalha de Alfambra. Depois disso, Franco pôs em execução a

marcha das tropas até o Mediterrâneo, mas, ao invés de começar o ataque pela Ca-

talunha, cometeu, segundo conta a história, uma séria falha estratégica, quando op-

tou por uma complicada ofensiva a Valência. A consequência dessa decisão foi a

desastrosa batalha do rio Ebro, que teve início em julho de 1938. Com o objetivo

de socorrer Valência, os militantes da República acometeram cruzando o rio. Nos

três meses de duração da campanha, o lado republicando foi sucumbindo aos inin-

terruptos contra-ataques do adversário. As tropas nacionalistas alcançaram a vitó-

ria e dirigiram-se rumo à desembocadura do rio Ebro, onde a Espanha republicana

foi segmentada em duas. Essa operação de guerra teve como resultado a exaustão

do exército popular e a perda republicana de mais de 85.000 homens.

Em janeiro de 1939, o exército franquista entrou em Barcelona, ocasionan-

do uma maciça evasão, pela fronteira francesa, dos ativistas republicanos, extenua-

dos e insatisfeitos com a irredutível linha de combate dos comunistas e de Juan

Negrín, que, incansavelmente obstinados, persistiam na estratégia de resistência.

Em março, o coronel Segismundo Casado deu um golpe de estado contra Negrín e

tratou das condições para a rendição. Um pouco depois, os nacionalistas chegaram

a Madri, encontrando uma cidade exaurida e debilitada pela fome. No dia primeiro

de abril, foi declarado o fim da guerra, instaurando-se, por todo o país, o regime

personalista de Francisco Franco, que durou até a sua morte no ano de 1975. Com

a guerra civil espanhola, só em combate, mais de meio milhão de vidas foram sa-

crificados, excetuando-se os que morreram de fome, desnutrição e doenças diver-

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sas oriundas do conflito. A guerra civil espanhola, como uma luta de cunho ex-

pressamente ideológico e político, foi seguida pelo mundo todo com grande aten-

ção, pois se via, nesse estado de beligerância, o anúncio de um enfrentamento in-

ternacional.

Na realidade, como vimos em um breve relato histórico, a guerra civil es-

panhola constituiu-se de dois lados antagônicos, que professavam convicções polí-

ticas e ideológicas muito diferentes. Por uma parte, havia os poderes do nacionalis-

mo e do fascismo vinculados a grupos sociais e instituições tradicionais do estado

espanhol, como o Exército, a Igreja e o Latifúndio. Por outra parte, posicionava-se

a Frente Popular, que representava o Governo Republicano por meio dos sindica-

tos, dos partidos de esquerda e dos defensores da democracia. O objetivo da direita

espanhola era, através de uma verdadeira cruzada, salvar o país da influência co-

munista e da francomaçonaria, a fim de restaurar os valores tradicionais de uma

Espanha autoritária e católica. Para atingir esse propósito, era necessário, então,

derrubar a República, proclamada em 1931 com a queda da monarquia. O pensa-

mento da esquerda espanhola concordava na urgência de interceptar a progressão

do fascismo, que já havia triunfado em outros países, como a Itália, em 1922, a

Alemanha, em 1933 e a Áustria, em 1934. Conforme deliberações da Internacional

Comunista de 1935, os movimentos de esquerda precisariam acercar-se aos parti-

dos políticos democráticos da classe média para formar uma Frente Popular, que

pudesse opor-se às relevantes conquistas nazi-fascistas. Assim, comunistas (estali-

nistas e trotskistas), anarquistas e democratas liberais deveriam unir forças para pe-

lejar contra a propensão mundial em torno dos regimes a favor da direita. De fato,

o choque entre essas duas ideologias políticas fez com que a guerra civil passasse

de um acontecimento especificamente espanhol para se transformar em um cabo

de guerra entre crenças de poder que altercavam um sonho de domínio hegemôni-

co do mundo. Como advertimos anteriormente, enquanto a Alemanha nazista e a

Itália fascista apoiaram o golpe do general Francisco Franco, a União Soviética po-

sicionou-se do lado do governo legítimo da República.

Na década de 30, a Espanha era considerada um anacronismo histórico,

pois enquanto a Europa ocidental já dispunha de instituições políticas modernas há

pelo menos um século, o estado espanhol ainda configurava um território de puro

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tradicionalismo e nostalgia com referência a um passado imperial magnânimo em

plena modernidade. O país seguia uma doutrina tríplice reacionária composta pelo

Exército, pela Igreja Católica e pelo Latifúndio, cuja última manifestação se en-

contrava na mornarquia boubônica de Alfonso XIII, procurando, com extrema difi-

culdade, perdurar em um tempo que exigia outros sistemas legais, bem como dis-

tintas formas de ser e de pensar. No campo da religião, a igreja simbolizava a con-

tinuação do obscurantismo e da intolerância dos tribunais eclesiásticos da Santa In-

quisição e repudiava as transformações da modernidade. Na zona rural, a quantida-

de de famílias pobres, servas de uma rotina feudal escravizante por parte dos cerca

de cinquenta fidalgos, senhores da metade das terras do país, era imensa, chegando

a somar entre dois a três milhões de camponeses.

O franquismo foi condenado pela Organização das Nações Unidas em

1945. No ano seguinte, delegados diplomáticos foram afastados do território espa-

nhol. No entanto, o embargo internacional ao governo serviu inversamente para re-

forçar um afã nacionalista e afirmar a presença de Franco na condução política do

país, pois o povo, devidamente influenciado por órgãos institucionais formadores

de opinião pública, acreditou que as represálias estrangeiras feriam a honra nacio-

nal.

Sem dúvida alguma, María Zambrano é uma pensadora que subscreve os

ideais republicanos, porém, assistiu ao fracasso dessas mesmas aspirações na polí-

tica do seu país com a guerra civil espanhola, a qual marcou profundamente a sua

vida, sobretudo, ao lhe fazer decidir por um desterro de vários anos. A ensaísta

manifestou-se peremptoriamente contrária à sublevação de parte das Forças Arma-

das contra o governo legítimo da República. Em suas obras, a defesa por um regi-

me de administração estatal republicano, frequentemente combatido por diversas

esferas de poder da Espanha, refletirão a presença de um sentimento trágico na

modernidade.

Em virtude de que, nesse capítulo, iremos estudar a participação de María

Zambrano na Revista de Occidente e em Hora de España, é apropriado salientar

que essas publicações seriadas, como símbolo de uma geração de escritores, um

tempo, um país, um povo, uma história, são cruciais para analisar o espaço literá-

rio e cultural da modernidade, porque permitem visualizar fatores sociais, políticos

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e estéticos dos intelectuais daquele momento, demonstrando suas alianças, con-

frontos e projetos artísticos habitualmente compromissados com a situação da Es-

panha. Ressalvando-se o hiato produtivo ocasionado pela guerra civil espanhola,

as revistas literárias foram capazes de manter os elos entre os escritores exilados

no exterior e o que se preferiu chamar de escritores em condição de exílio interior.

Na Espanha, desde o princípio do século XX, as revistas literárias,

coincidindo com um momento especial de criação artística conhecido como a

idade de prata da cultura espanhola, conquistaram uma função ética e estética

singular na representação dos acontecimentos factuais desse país, chegando a se

alcunhar esse período como a geração das revistas literárias. Entre elas, podemos

mencionar a Revista de Occidente, de 1923, criada por Ortega y Gasset, o

suplemento literário do jornal murciano La verdad, lançado entre 1923 e 1926,

cujos redatores eram José Ballester Nicolás e Juan Guerrero Ruiz, o qual, mais

tarde, também passou a ser publicado como revista, Litoral, impressa, desde 1926,

em Málaga, por Manuel Altolaguirre e Emilio Prados, Carmen, fundada em

Santander no ano de 1927 por Gerardo Diego e complementada com Lola, uma

publicação de caráter festivo, Cruz y Raya, de 1933, dirigida por José Bergamín,

El Mono Azul, de 1936 e Hora de España, de 1937. A verdade é que sem a

colaboração dessas revistas escrever sobre a trajetória literária e histórica

espanhola do início do século XX se tornaria uma tarefa muito mais intrincada. De

acordo com Rafael Osuna:

La historia de nuestras revistas es la historia de nuestra sociedad y sin esta historia no se explicarían ni la formación de los grupos que la hacen, ni las reagrupaciones que efectúan los individuos que los componen, ni la ruptura que como grupos sufren. (OSUNA, R., 1986, p.15)

Conforme acreditam alguns críticos e ressalvando-se as notórias e funda-

mentadas dissidências teóricas, que não são, nesse trabalho, o nosso objetivo de

discussão, segundo Juan Manuel Rozas López (1978, pp.117, 118), a polêmica

Geração de 27, da qual faria parte María Zambrano, notabiliza-se como a geração

das revistas literárias. No entanto, a consciência do relevante papel das revistas li-

terárias na Espanha já havia sido percebida antes do período da idade de prata da

cultura nesse país, por meio da importância que essas publicações tiveram no sur-

gimento dos movimentos de vanguarda, principalmente o ultraísmo, e seus respec-

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tivos estudos sobre as diversas manifestações inovadoras existentes nesse âmbito

artístico no resto da Europa. Dessa época, contamos com títulos como Cervantes,

Ultra, Grecia, Alfar, Cosmópolis, Reflector, Tableros, Horizonte e Plural. Ou-

tras ilustres edições periódicas com a ativa participação da Geração de 27 apare-

cem dentro dessa fase áurea das revistas literárias espanholas, a saber, pelo menos

algumas delas: Litoral, Verso y Prosa, de 1927, dirigida por Juan Guerrero Ruiz

e Jorge Guillén, Mediodía, de Sevilla, Meseta, de Valladolid, La Gaceta Litera-

ria, dirigida por Ernesto Giménez Caballero, Caballo verde para la poesía, de

1935, sob a direção de Pablo Neruda e Octubre, organizada por Rafael Alberti.

Evidentemente, insistimos agora e o reforçaremos mais tarde, os anos em que se

sucedeu a guerra civil espanhola favoreceram a tendência de um caráter ideológico

politizante das revistas, que experimentaram um sinistro refreio produtivo por oca-

sião do conflito e do degredo tanto dos escritores quanto também dos intelectuais

daquele momento. Quando termina a guerra civil, a Espanha, praticamente um de-

serto cultural por causa da fuga da intelectualidade do país, teve as revistas como

uma ponte de união e continuidade entre a tradição literária espanhola e uma nova

geração de leitores: os ‘filhos da guerra’. Estes não só possuíram a oportunidade

de ler, mas, acima de tudo, de conhecer os nomes mais sobressalentes da história

artística do seu país, os quais, desafortunadamente, se encontravam meio esqueci-

dos, na medida em que suas obras ou já não se publicavam mais ou não consegui-

am lá chegar.

Juan Manuel Rozas López (1978, pp.117-126) indica etapas que

conformam uma visão cronológica e uma especificidade temática das revistas

literárias em um período de tempo que abrange os anos de 1910 a 1939, isto é,

desde o nascimento das primeiras vanguardas até o golpe de estado do dia 18 de

julho. Assim, segundo Rozas López, existiriam seis fases distintivas: a primeira

iria de 1910 a 1919 e configuraria uma etapa preliminar com os precursores dos

movimentos literários, a segunda, de 1918 a 1922, representaria a etapa ultraísta, a

terceira, de 1922 a 1925, seria a etapa da poesia pura, a quarta, de 1926 a 1929,

marcaria a idade de ouro das revistas, a quinta, de 1929 a 1936, abrigaria a época

da politização e a sexta e última, de 1936 a 1939, sinalizaria o período da guerra

civil e do exílio. Não temos a intenção de dissertar exaustivamente sobre as seis

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etapas das revistas literárias na Espanha propugnadas por Rozas López, contudo,

nas primeiras fases, queremos ressalvar o interesse que as fundamentações teóricas

do ultraísmo despertaram entre os intelectuais, embora se contestasse a

insuficiência da criação e da qualidade poética desse movimento de vanguarda.

Como havíamos escrito antes, as revistas principais da estética ultraísta foram

Cervantes (1916-1920), Grecia (1918-1920), Cosmópolis (1919-1922),

Reflector (1920), Ultra (1920-1922), Tableros (1921-1922), Alfar (1921-1927),

Horizonte (1922-1923) e Plural (1925). Apesar das grandes dificuldades para

publicação, essas revistas traduziam as maiores tendências dos movimentos

artísticos europeus ao colocar de relevo o imaginário, a reconstrução da linguagem

e a crítica dos valores literários tradicionais, com o intuito de demonstrar as

transformações que estavam ocorrendo naqueles tempos.

Depois de terminado o primeiro grande conflito mundial, o ultraísmo foi o

primeiro movimento autóctone de vanguarda na Espanha, no qual se observa uma

atitude reagente aos desastres do confronto. O desfecho da guerra, além de uma

crise política e graves problemas sociais, suscitou, entre intelectuais e artistas, um

sentimento de fim dos tempos, que requeria iniciar uma era alicerçada em outras

concepções. Desse modo, as vanguardas são interpretadas como uma força

opositora na arte às difíceis contingências sociais e políticas daquele momento.

Ramos Ortega sentencia que “en efecto, los ultraístas se sentían en el umbral de

una nueva época y tomaron sobre sí la misión de forjar una expresión literaria

también nueva, a tono con el momento histórico.” (RAMOS ORTEGA, M. J.,

2001, p.17) A característica principal dessas revistas foi o desejo incessante pela

novidade, estimuladas pela inclinação progressista do seu próprio movimento, que

intencionava romper com um passado de frustrações e decadência ao sonhar com

um futuro repleto de promessas possíveis. É interessante notar que nas páginas

seguintes que analisarão a contribuição de María Zambrano na revista Hora de

España, poderemos averigurar que, inversamente, a ensaísta malaguenha parte à

procura do passado como uma maneira de repudiar a insatisfação do presente e de

reaver, em tempos pretéritos, o esplendor literário da cultura espanhola. Entretanto,

deveras, no caso dos ultraístas, esses escritores ambicionavam reformular

profundamente os valores da sociedade espanhola baseados em uma tradição em

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crise. Embora não tivessem conseguido utopicamente exterminar o passado,

provavelmente esse seu radicalismo de propósitos imediatos tenha precipitado o

fracasso do movimento, o seu triunfo foi superar a resistência às mudanças

inovadoras na poesia, abrindo caminho, mais tarde, ao surgimento e ao êxito

poético da Geração de 27.

É inegável que apesar de que os poetas do ultraísmo tenham desaparecido

juntamente com as suas revistas, essa escola de vanguarda acabou integrando o

espaço literário aonde se desenvolveu a geração seguinte dos poetas de 27,

certamente influenciando, de alguma maneira, a estética renovada desse grupo.

Entre 1921 e 1929, manifestam-se as primeiras criações poéticas da Geração de 27.

Ramos Ortega (ibidem, p.23) profere que alguns escritores do Grupo de 27

publicaram obras em volume somente depois de muito terem progredido na

carreira literária, mas que seus textos já podiam ser lidos por meio da grande

quantidade de revistas em circulação na década de 20. O período compreendido

entre 1923 e 1936, segundo Ramos Ortega (ibid.), apresentou a mais alta

excelência da criação literária espanhola escrita no século XX, onde algumas das

expressões mais significativas podem ser encontradas nas publicações da Revista

de Occidente, Litoral e Verso y Prosa. A importância dessas revistas deve-se não

somente à seleta plêiade de escritores presente nas edições ou à sua proeminente

representatividade naquele tempo, mas também é preciso sublinhar a notória

herança que colocaram à disposição dos seus descendentes e que serviu de canal

de comunicação entre a sua época e a dos anos subsequentes à cisão de 1939.

Dentro da nova geração de 27, constituída em homenagem a Luis de Góngora,

uma das grandes preocupações é o trabalho com a metáfora. Nas revistas desse

momento, vários poetas e intelectuais explicaram o seu conceito sobre esse recurso

de linguagem e de que forma compreendiam o seu papel dentro da poesia. Sua

concepção do uso metafórico em nada se diferenciava das crenças ultraístas, que o

entendiam como a aproximação de elementos em princípio incompatíveis para, em

um processo de transformação extraordinária, construir uma relação de semelhança

inusitada. Podemos afirmar que, de alguma maneira, María Zambrano, como

membro da Geração de 27 ou, caso prefiram, como uma escritora que tangencia

esses tempos, aproveita a noção de metáfora que tanto atraiu a atenção desse

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grupo, para construir o seu método da razão poética em que, igualmente, ideias

supostamente contrárias aliam-se, a fim de instaurar uma nova perspectiva sobre a

criação ensaística literária da autora. Vale a pena citar as palavras de Federico

García Lorca, em sua conferência sobre “La imagen poética de don Luis de

Góngora”, onde o escritor andaluz declara ser o poeta um ‘caçador de imagens’ e

vislumbra, do mesmo modo que os ultraístas, a metáfora como a harmonização de

objetos ou pensamentos contrários: “La imagen es, pues, un cambio de trajes, fines

u oficios entre objetos o ideas de la naturaleza. Tiene sus planos y sus órbitas. La

metáfora une dos mundos antagónicos por medio del salto ecuestre que da la

imaginación.” (GARCÍA LORCA, F., 1932; também em RICO, F., 1984, p.284)

Juan Cano Ballesta (1996) assegura que a transição da década de 20 à

década de 30 simbolizou a passagem da pureza à revolução, onde, conforme uma

pesquisa levada a cabo entre os anos de 1927 e 1928 pela revista La Gaceta

Literaria, o rechaço de muitos dos escritores do Grupo Poético de 27 no tocante à

política justificava-se pela confiança de que a arte ocupava um patamar muito

superior e não deveria se permitir influenciar por essas questões públicas de

excusos interesses e de propagandas em benefício de partidos e aspirações

pessoais. Na verdade, essa rejeição inicial aos assuntos da política transmutou-se

em contundentes inquietações no que tangia aos destinos dos espanhóis e da

Espanha. Conforme o estudo de Ramos Ortega, entre os anos de 1930 e 1936,

[...] el mundo intelectual y artístico español se escindió precisamente por la cuestión de la relación entre arte y sociedad, separándose entre los que siguieron fieles a un ideal de pureza y los que abogaron por un mayor compromiso de su arte con las preocupaciones sociales y políticas del día. (RAMOS ORTEGA, M. J., 2001, pp.25, 26)

Essa tendência à dissensão referida à maneira pela qual o escritor deve

contemplar a arte advertiu-se nos vários projetos de revistas que os autores do

grupo de 27 dirigiram ou neles cooperaram, conciliando-se com a dissipação

paulatina das alianças estabelecidas entre os componentes da própria geração

desde o movimento de homenagem a Luis de Góngora no Ateneu de Sevilha.

Ramos Ortega (ibidem, p.26) explica que esse afastamento relacionado à

concepção artística da poesia entre esses escritores acentuou-se ao longo do

período republicano e os limites fincaram-se na maior ou menor adesão à causa da

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poesia pura. Tomando a obra de María Zambrano, inferimos que a ensaísta

espanhola não se distancia da necessidade da poesia ou, pelo menos, da expressão

poética dentro da literatura da modernidade, como um modo de rehumanizar a arte

e a vida do homem em um espaço de existência trágica a partir da tecedura de

laços de afinidade com o compromisso apaixonado de lutar pelo sonho republicano

e democrático tanto no âmbito da realidade factual, mas também no poderoso

espaço da linguagem metafórica da criação estética.

Após esse percurso pela história de algumas das revistas literárias espanho-

las mais sobressalentes do início do século XX, no que concerne à colaboração de

María Zambrano nas duas publicações seriadas escolhidas para o desenvolvimento

dessa tese, reiteramos que enquanto a Revista de Occidente interrompe as suas ti-

ragens quando inicia a guerra civil, Hora de España assume a responsabilidade

de continuar defendendo a República durante o conflito. Certamente, nessas duas

publicações, a intenção de atuar na formação de uma consciência cultural e políti-

ca com relação aos acontecimentos vivenciados naquele tempo aliou-se a outras

manifestações de criação artística e de crítica literária, além de ensaios e questio-

namentos reflexivos engajados discutidos, por exemplo, também nas páginas das

revistas Cruz y Raya, Los Cuatro Vientos, Cuadernos de la Facultad de Filo-

sofia y Letras e El Sol, que contam com a participação da autora espanhola. As

contribuições zambranianas na revista Cruz y Raya, dirigida pelo escritor e amigo

José Bergamín, começam no ano de 1933 com vários artigos. Vejamos: “‘Cock-

tail de ciencias’”, com a apresentação do discurso de Julio Rey Pastor, “Los pro-

gresos de España e Hispanoamérica en las ciencias teóricas”, “San Basilio”, uma

nota biográfica e antologia, “Señal de Vida”, Obras de José Ortega y Gasset e

“Renacimiento Litúrgico” sobre El espíritu de la liturgia de R. Guardini. Em

1934, a ensaísta publica “Por el estilo de España” sobre a obra Lope de Vega y su

tiempo, de Vossler. Já na revista Los Cuatro Vientos (n.º 2), a autora espanhola,

em 1933, publica “Nostalgia de la tierra”, texto posteriormente utilizado por Paul

Ilie na obra Documents of the Spanish Vanguard, editado pela Universidade da

Carolina do Norte em 1969. Na revista Cuadernos de la Facultad de Filosofia y

Letras, em 1936, María Zambrano escreve o ensaio “La salvación del individuo

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en Spinoza”, tema da sua tese de doutorado. Também em 1936, na revista El Sol,

a autora contribui com “Ortega y Gasset universitario”.

Na obra Los intelectuales en el drama de España (1937), Zambrano se

refere ao período inicial após a eclosão da guerra civil, lembrando de quando o tra-

balho e o combate revestiram o ‘mono’ azul operário, “que llenaba los ojos en el

Madrid luminoso y espléndido en su tragedia, en el Madrid inolvidable, todavía

intacto, de julio y agosto de 1936.” A título de esclarecimento, El Mono Azul, que

desfrutava de uma grande admiração de María Zambrano, foi uma revista publica-

da pelos republicanos durante a guerra civil espanhola com o apoio da Alianza de

Intelectuales Antifascistas para la Defensa de la Cultura. As suas temáticas

eram muito diversas e englobavam desde instruções militares até escritos sobre li-

teratura e política. O primeiro número foi lançado em 1936 e entre os seus colabo-

radores estão os mais notáveis intelectuais daquele momento, pertencentes, na sua

grande maioria, à geração de 27. Como destaques, podemos mencionar os nomes

dos espanhóis Miguel Hernández, Lorenzo Varela, Antonio Aparicio, Vicente

Aleixandre, Rafael Alberti, Manuel Altolaguirre, José Bergamín, Luis Cernuda,

Antonio Machado e Ramón J. Sender. Entre os estrangeiros, a revista contou com

Pablo Neruda, Vicente Huidobro e André Malraux. A denominação El Mono

Azul inspirou-se no ‘mono’ (espécie de macacão) que trajavam os ‘milicianos’ du-

rante a guerra civil espanhola no corpo de voluntários para lutar pela causa repu-

blicana e pelo seu governo legítimo. Um dos maiores objetivos da revista era al-

cançar os soldados e conscientizá-los do seu papel na defesa da república e do re-

gime democrático em contraposição ao fascismo representado na figura dos suble-

vados. No mesmo período de publicação de El Mono Azul, apareceram outros ca-

nais de comunicação seriados como Milicia Popular, Avance e A vencer.1 Com o

breve panorama exposto, intencionamos sublinhar que compreender a evolução da

obra ensaística de María Zambrano parte, em primeira instância, de uma análise

das publicações ocorridas nas revistas literárias, que acompanharam o tempo da

1 Dada a relevância de El Mono Azul, parece-nos interessante salientar que, entre as seções mais lidas da revista, estava o “Romancero de la Guerra Civil”, onde se compilavam os ‘romances’ enviados por soldados e famílias de todos os rincões da Espanha. Em Buenos Aires, no ano de 1944, Rafael Alberti, na obra Romancero General de la Guerra Española, reuniu esses escritos.

Segundo a história da revista, apesar de algumas dificuldades, El Mono Azul resistiu a quase todo o tempo da guerra, totalizando quarenta e sete números. Suas aparições também acompanharam o jornal La Voz e Cuadernos de Madrid.

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aspiração republicana e o período da guerra civil espanhola como fator de união e

debate entre os intelectuais que delas participaram e, ali, apregoaram e divulgaram

as suas crenças.

Anteriormente, pudemos perceber que María Zambrano apresenta uma

relevante contribuição em publicações seriadas na Espanha. Convém alertar que a

autora espanhola naturalmente também escreveu para revistas em outros países da

Europa e da América, as quais ratificaram e contribuíram com o progressivo

desenvolvimento do seu pensar filosófico, favorecido, sobretudo, em seus vários

anos de exílio. Em outras palavras, María Zambrano vai traçando, a partir de uma

rica experiência pessoal, suas próprias linhas conceptivas de um conhecimento

singular acerca da realidade espanhola e da contingência histórica que lhe

correspondeu existir, configurando, como afirma Julián Marías (1969), uma

estrutura empírica que alia vida e criação artística. A ensaísta interessa-se pela

interpretação de alguns autores que constituem o cânone da literatura espanhola,

expressando, dessa maneira, o desejo de ler e discutir a história de sua época.

Nesse movimento de retroalimentação artística entre Zambrano e a tradição

literária espanhola, a escritora consegue formular sua visão civilizatória a partir da

releitura ou evocação da memória cultural do seu país. Compreendemos que a

escritura que remete ao outro é uma maneira de ouvir o pensamento alheio, com a

finalidade de uma auto-aprendizagem ou auto-enriquecimento diverso, na medida

em que somos uma combinação enciclopédica de experiências, informações,

leituras e sonhos coletivos e individuais, que se interpenetram e se misturam

continuamente. A nossa cultura ocidental, conforme sustenta Rafael Enrique

Aguilera Portales (2007), é a do lógos, engendrada a partir de distintos campos do

saber e modalidades enunciativas. A palavra ‘cultura’ que vem do latim ‘colere’,

que significa cultivar não é senão uma forma particular de ver o mundo e o

homem.

4.1. Uma pensadora na Revista de Occidente

Como já tivemos a oportunidade de observar, consideram-se os anos que

compreendem o período de 1923 a 1936 como a idade de ouro das revistas

literárias. Entre essas importantes publicações está a Revista de Occidente.

Reforçamos que a sua importância não está somente na qualidade de seus textos e

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na plêiade de escritores que fizeram parte de seus colaboradores, mas também se

encontra nas significativas marcas que deixaram e que serviram de elo de

comunicação entre a sua época, os anos subsequentes e a chamada cisão do ano de

1939. É perfeitamente compreensível o fato de que nos anos 30-36 os autores

fossem resituando as preocupações pela criação de um mundo metafórico e

independente de fatores políticos presentes na Geração de 27 por uma politização à

força dos acontecimentos históricos que foram ocorrendo paralelamente às

publicações das próprias revistas, as quais, é evidente, foram juntamente aos seus

colaboradores testemunhas de tais acontecimentos. A literatura deveria deixar de

possuir um caráter eminentemente minoritário e ser capaz de falar ao mundo e às

pessoas de forma geral, onde o autor deveria posicionar-se de maneira clara e

decisiva diante dos acontecimentos políticos e sociais por meio da palavra escrita e

de uma atuação representativa que pudesse defender a liberdade do estado

espanhol. As revistas possuem as etapas de pré e pós-guerra, que imprimiram um

pensamento ideológico à cultura espanhola.

Como afirmamos antes, a Revista de Occidente representa o período

criativo zambraniano antes de 1936, ano em que a Espanha padece sérios

infortúnios com o início da guerra civil. A participação da ensaísta na Revista de

Occidente a torna ainda mais conhecida do público leitor e revela uma formação

erudita inspirada, sobretudo, por Ortega Gasset, García Morente e Zubiri. Seus

escritos dão cabida à constituição de uma filosofia singular em torno do poético

alicerçada na reflexão da crise do pensamento ocidental e da política social

espanhola, onde a guerra civil iniciada em 1936 exercerá um papel fundamental,

pois determinará um exílio voluntário da autora por mais de quarenta anos em

razão do governo franquista. Infelizmente, a Revista de Occidente deixou de ser

publicada no início da guerra civil espanhola.

A Revista de Occidente, como uma publicação espanhola de relevo,

apresenta artigos culturais e científicos heterogêneos pertinentes a várias esferas da

comunidade culta, expandindo-se tanto pela Europa quanto também pela América

Latina. Foi comparada por Ernst Robert Curtius a outras importantes revistas

culturais da Europa naquele momento, como Nouvelle Revue Française e Neue

Rundschau. Sempre ligada às tendências inovadoras do pensamento, da arte e da

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literatura, despertou naturalmente enorme interesse como um veículo irradiador de

uma cultura espanhola e européia em constante renovação pela excelência de seus

colaboradores. No espaço destinado às Humanidades, houve traduções e textos

sobre importantes filósofos contemporâneos. Foi inaugurada e dirigida pelo

pensador espanhol José Ortega y Gasset em 1923 e apresentou edições até 1936.

Sob a responsabilidade de Ortega y Gasset, a Revista de Occidente tinha o

propósito de reestruturar a vida de uma Espanha em decadência por meio de um

trabalho de europeização, que poderia modificar significativamente a cultura

política do país, embora desde a sua fundação em 1923 até 1930, a revista tenha

vivido as opressões do governo ditatorial de José Antonio Primo de Rivera.

Para levar a efeito essa proposta de europeização, partilhou o seu

engenhoso saber com os leitores da Revista de Occidente uma notável lista de

pensadores estrangeiros, como Carl Jung, Thomas Mann, Max Scheler, Georg

Simmel, Albert Einstein, Werner Heisenberg, Jean Cocteau, Luigi Pirandello,

Benedetto Croce e Johan Huizinga. A publicação dos artigos desses intelectuais na

Revista de Occidente com tradução à língua espanhola viabilizou um acesso mais

facilitado do seu saber ao mundo hispânico.

Entre os colaboradores espanhóis, encontramos ícones como Rafael

Alberti, Vicente Aleixandre, Dámaso Alonso, Max Aub, Francisco Ayala,

Américo Castro, Luis Cernuda, Rosa Chacel, Federico García Lorca, Ramón

Gómez de la Serna, Jorge Guillén, Benjamin Jarnés, Gregorio Marañón, José

Antonio Maravall, Ramón Pérez de Ayala e María Zambrano. Por outro lado,

como Ortega y Gasset tinha a intenção de globalizar o conhecimento tornando a

revista plural e aberta a vários países estrangeiros mediante o uso da língua

espanhola era imprescindível a publicação também de autores latino-americanos,

construindo, realmente, uma convergência intelectual pan-hispânica significativa

para a história espanhola de publicações seriadas. A revista contou com artigos de

Jorge Luis Borges, Pablo Neruda, Eduardo Mallea, Victoria Ocampo, Alfonso

Reyes, Torres Bodet entre outros.

De fato, o nome dado à revista refere-se ao objetivo de congregar trabalhos

de pensadores estrangeiros às não menos relevantes produções nacionais. A

Revista de Occidente foi importante na história intelectual espanhola, pois no seu

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período fundacional ocorreram encontros, tertúlias e grupos de discussão nos

gabinetes editoriais da revista, o que a caracterizou como um grande núcleo

catalisador da vida intelectual espanhola, cujos leitores faziam parte de um

segmento extremamente culto oriundo principalmente das universidades e das

profissões liberais. Embora inicialmente a revista não intencionasse abordar

acontecimentos políticos, seu perfil foi alterando-se ao longo dos anos em virtude

das transformações ocorridas no próprio panorama político espanhol,

principalmente a partir do ano de 1929, que se distinguiu como um momento

importante de transição política para o povo espanhol com o abandono, em 1930,

do poder por parte de Primo de Rivera. Essa mudança de postura da Revista de

Occidente procurou aproximar a sua oratória da vida cotidiana espanhola e

despertar o interesse de novos leitores.

Tendo a sua história dividida em fases, a revista cessou suas publicações

em 1936, porém, no ano de 1962, retornou às suas atividades sob a supervisão de

José Ortega Spottorno até o ano de 1980. A partir dos anos 80, a sua filha Soledad

Ortega Spottorno incubiu-se da direção da revista e atualmente lança onze

números por ano, pois o formato dos meses de julho e agosto é duplo.

Como uma publicação já muito conhecida e respeitada no meio intelectual,

María Zambrano começa a publicar na Revista de Occidente em 1933 e

permanece entre seus colaboradores até o ano de 1935, um pouco antes de

terminar a primeira fase da história da revista. No total, a pensadora espanhola

publica oito artigos entre 1933 e 1935, que podemos caracterizar como ensaios

filosóficos, tipo de discurso constante em sua trajetória literária. É interessante

observar que sua vida intelectual recém havia começado efetivamente, já que antes

de sua incorporação à Revista de Occidente havia publicado sua primeira obra

Horizonte del liberalismo (1930), na qual já se encontrava compromissada com o

movimento de oposição à ditadura de Primo de Rivera nesse mesmo ano

terminada. O desejo de uma geração renovadora das ideias e do fim de um regime

político de opressão define essa primeira obra zambraniana de 1930, que, através

de uma filosofia política, leva a termo uma filosofia crítica da modernidade. Com

o liberalismo e a democracia, o homem moderno pode chegar a ser pessoa. No

entanto, para lograr esse objetivo, o ser precisa rediscutir-se, entrar em crise,

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equilibrando-se entre a necessidade de uma inescapável razão histórica e uma

urgente sede de razão poética.

Na Revista de Occidente, no período de 1933 a 1936, a atividade

intelectual em núcleos editoriais foi protéica, propiciando um importante contexto

de debates filosóficos na Espanha. Essa revista era, decerto, um centro que reunia

e disseminava um labor periodístico intelectual de peso, contudo, no ano de 1936,

essa publicação já não existe e, um pouco mais tarde, uma série de escritores

abandona o país e parte rumo ao exílio.

María Zambrano, em seus primeiros artigos, que defendem a República,

dedicou-se a escrever críticas a obras literárias, sob as quais podia desenvolver

seus próprios conceitos artísticos. Vários desses textos podem ser encontrados na

obra Los intelectuales en el drama de España (1937). Nas publicações

posteriores, a autora espanhola começa a abandonar a crítica literária e surge com

textos que vão desenhando um método original de reflexão filosófica. “Por qué se

escribe” e “Hacia un saber sobre el alma” tornar-se-ão emblemáticos dentro do

conjunto de sua obra.

Conforme havíamos explicado na introdução, na Revista de Occidente,

nosso intento é estudar o ensaio “Por qué se escribe” (Madri, t.XLIV, n.º 132, ju-

nho 1934, pp.318-328), primeiro texto filosófico de María Zambrano, que traduz

uma criação originária de cunho marcadamente pessoal anterior a 1936, ano em

que teve início a guerra civil espanhola. Antes dessa análise, contudo, parece-nos

apropriado fazer referência a dois outros ensaios precedentes escritos por María

Zambrano também na Revista de Occidente, cujos títulos são “Hoffmann: «Des-

cartes»” (resenha, Madri, t.XXXIX, n.º 117, março 1933, pp.142-145) e “Robert

Aron y Arnaud Dandieu. «La Révolution Nécessaire»” (resenha, Madri, t.XLIV,

n.º 131, maio 1934, pp.209-221). Acreditamos que, para a nossa pesquisa, esses

dois últimos textos deixam transparecer as linhas mestras que orientam o pensa-

mento estético zambraniano e subsidiam a construção de “Por qué se escribe”,

além de prepararem o leitor para a recepção desse primeiro ensaio filosófico parti-

cular da autora, cujos pressupostos artísticos serão reiterados e desenvolvidos no

decorrer de sua obra.

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No ensaio “Hoffmann: «Descartes»”, María Zambrano comenta o livro de

Hoffmann, escritor alemão, que discute o sistema de Descartes aliado aos seus

pensamentos e crenças, onde também podemos perceber a remissão a alguns dados

biográficos do filósofo francês do final do século XVII. Temos ciência de que

Descartes, como uma das figuras basilares na revolução científica, se notabiliza

como um dos intelectuais mais relevantes e influenciadores na história do

pensamento ocidental. Como o primeiro filósofo moderno, conseguiu cativar a

atenção tanto dos seus contemporâneos como também dos seus descendentes. No

texto, Zambrano afirma que a tradição filosófica aparece, em diversos momentos,

como um questionamento às suas obras e até mesmo a autores inspirados pelo

pensador francês. No processo de construção dos ensaios de María Zambrano,

observamos que a autora remete-se a grandes nomes da filosofia, realizando um

metadiscurso, onde lhe é possível tornar públicas as suas próprias visões sobre o

tema. Em “Hoffmann: «Descartes»”, a escritora malaguenha disserta sobre o ofício

de ser filósofo, como um modo de ser e de viver humano que conduz à promoção

de suas aflições a níveis racionais e teoréticos.

Un filósofo es el hombre en quien la intimidad se eleva a categoría racional; sus conflictos sentimentales, su encuentro –encontronazo– con el mundo se resuelve y transforma en una teoría. Es el hombre que logra cristalizar su angustia en el diamante puro, geométrico y transparente de un pensamiento sistemático, de un logos, el que resuelve sus pasiones more geometrico. La biografía de un filósofo es un sistema. (ZAMBRANO, M., 1933, p.345)

No caminho do filósofo, porém, há muitos percalços, pois antes de tudo ele

é um simples homem, com vacilações e paradoxos. Por isso, a autora diz que a

Filosofia, ao contrário de um dom divino ou iluminação, desponta como um

esforço racional por tentar amenizar um caos interno. Caos interno e metafísico,

que põe em dúvida as próprias circunstâncias. Zambrano assegura que justamente

um homem e um homem de seu tempo foi Descartes em uma Europa em clímax

histórico, na qual a juventude representa a fé de todos ao mesmo tempo em que

questiona o seu próprio contexto. A autora menciona o viver sempre em perigo,

mas conservando a lucidez nietzscheano para se referir à consciência sobre a

natureza da vida e a condição contraditória do homem em um mundo que

experimenta constantemente a crise e o desejo permanente de renovação do

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destino: “La vida del filósofo Descartes nos muestra que no le son necesarias a la

vida humana, aventuras extraordinarias para estar en peligro, pues es ella misma el

acontecimiento más peligroso del universo.” (ibidem, p.346) María Zambrano

critica a intolerância européia às vertigens ou às inseguranças, dúvidas tão

necessárias à rotina da vida, a menos que dificilmente possa se encontrar algo

verdadeiro ou apaziguador que consiga aquietar o anseio dessa busca pessoal. A

vida em desespero é relegada quando o homem não é capaz de constatar a ausência

de algo, embora o destino humano esteja atormentado pelo inquietante sentimento

de carência. Essas angústias são comuns aos pensadores, que tomam para si o

compromisso ético de delatar as incongruências de seu tempo. María Zambrano

considera esse pensamento oposto à situação vital ou às tendências modernas de

bovarismo presentes naquele tempo, pois, segundo a autora, “Madame Bovary y

sus discípulas necesitan que les ocurran cosas, que su vida se vea rota por

acontecimientos inusitados, llegados de fuera, extraños a ella, para darse cuenta,

por el peligro ante lo inesperado, de que en verdad existen.” (ibid., p.347) Em

razão da leitura de María Zambrano, julgamos que o entendimento humano de suas

próprias estruturas culturais, econômicas, sociais, políticas respondem à uma ânsia

de consciência de si mesmo, da descoberta de uma quintaessência primordial do

sujeito, que ao revelar o desconhecido, também se desvela na aventura de sua

existência e no sabor desafiador das incertezas que o rodeiam.

Pero hoy el intelectual en Europa tiene, además de los motivos permanentes y esenciales que originaron la duda cartesiana, otros críticos, concretos y actuales que añadir al peligro. Como ser humano, dotado de un imperativo de claridad, tiene el europeo de hoy los mismos motivos de Descartes para dudar metafísicamente de la totalidad de cuanto existe. Pero se encuentra, además, viviendo en un mundo en crisis, en medio de una cultura, de una estructura económica y social que parece negarse a seguir sosteniéndole. Ahora más que nunca el intelectual europeo vive en peligro y su imperativo de claridad le exige que viva serena y luminosamente en peligro, alumbrando con su propia luz sin llamas el fondo oscuro en que tal vez su cultura, su mundo y con él el sentido de su propia existencia, pueden disolverse un instante u otro. (ibid., p.348)

É óbvio que essa forma de pensar a realidade em toda a sua amplitude é

inegavelmente influenciada pela ideia de modernidade, que, ao lado da concepção

do progresso, identifica-se com o que é novo, o qual, por sua vez, aponta para a

ruptura do já existente através do procedimento crítico da mudança e da

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renovação. Naquela época de esplendor parisiense do século XVII, certamente,

Descartes, afirma Zambrano, possuía um foco diferente do sentimento da dúvida

em torno de tudo que circunda o homem, pois a sua consciência forma-se mediante

o perigo em que se encontra, sob a égide de uma permanência ou essencialidade

das coisas, quando, na verdade, permanência e essencialidade complementam

conceitos, mas não os abrangem totalmente. Sem dúvida, a escritora espanhola

concebe, por meio de um discurso do saber filosófico sustentado pela consciência

crítica e autônoma do intelectual, uma imagem de ensaísta, que vislumbra a sua

circunstância histórica moderna como uma idade em que incertezas e

transformações de toda ordem fazem parte indissociável da subjetividade em crise

do escritor: “La vida sólo precisa de la conciencia de ser vivida para constituir la

más peligrosa y fantástica aventura que puede pensarse. En su virtud, el filósofo es

el más audaz aventurero, el que ejecuta el más arriesgado juego, poniendo su vida

en el máximo peligro al pretender alcanzar la suma claridad de su conciencia.”

(ibid., p.347)

Em “Hoffmann: «Descartes»”, a ensaísta escreve que o ‘método

cartesiano’, seguindo uma tendência da modernidade, refere-se a um ceticismo

metodológico, no qual se preconiza a dúvida de cada ideia que não tenha clareza

ou que seja distinta. Isso vem contradizer o pensamento grego e da escolástica

tradicionais, que defendiam a existência quase que divina das coisas por elas

precisarem simplesmente existir e era assim porque deveria ser dessa maneira.

Segundo esse ensaio zambraniano, a grande contribuição filosófica de Descartes

foi mostrar que só se pode dizer que existe o que pode ser provado, isto é, eu

duvido até que provem que o objeto da minha descrença é claro, diferente e

irrefragável. A existência cartesiana da subjetividade está na crença de que o eu

duvida e, por conseguinte, prova que é sujeito de alguma coisa e de Deus –cogito

ergo sum. No texto da autora, lemos que Descartes é o precursor do racionalismo

da Era Moderna, movimento a partir do qual foi possível, alguns anos mais tarde, o

surgimento de uma visão reagente propiciada pelo pensamento empírico de John

Locke e David Hume. Conforme esse ângulo de visão, podemos afirmar que o

gênero ensaístico surgiu como uma classe de texto que questiona o sujeito

fabricado pelo absolutismo do racionalismo moderno, na medida em que acaba

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renegando o caráter individual, histórico, biográfico e empírico do homem. Ao

longo do trabalho, será possível comprovarmos que o método ensaístico filo-

poético de María Zambrano adota um impacto dramático espetacular de escritura,

cujo ponto de partida, em resposta à crise da subjetividade, compreende o eu do

ensaísta como uma representação de si mesmo no próprio texto. Dentro dessa

perspectiva, o ensaio configura-se como um gênero discursivo capaz de não

desprezar a experiência, visto que não nega o sujeito como uma instância de

enunciação. Dessa maneira, o filósofo aparece como um pensador que se atribui

uma responsabilidade ética e moral, que almeja se aprofundar nas especificidades

da existência e no projeto de se colocar sempre em tensão, com o objetivo de

converter a sua vivência transparente ou consciente à sua própria razão. Apesar de

ser uma publicação bem posterior, é interessante observar o que María Zambrano

nos confessa em “Adsum” (1955): “[…] cuando lo mido (mi yo), siento que es

mío, que podría ir más allá, pero que este más acá a donde he ido a parar, ahí soy

yo, ahí no tengo más remedio que aceptar responsabilidad, porque es el punto de la

moral y es un punto también de revelación.” (ZAMBRANO, M., 1987, p.70)

Retomando a figura de Descartes, sabemos que, como um inquiridor do seu

tempo, o escritor defendia que a essência do sujeito e da vida era a consciência.

Para María Zambrano, o labor filosófico começa com a percepção do divino,

mediante o qual o homem procura elucidar a vida diária para escapar da

ignorância, da falta, do desconhecimento do ser mediante o extrapolamento de

todos os conceitos racionais. A atitude filosófica está precisamente no ato

indagador que pretende entender as ‘coisas da vida’. Ao lado da atitude filosófica

interrogadora, sedenta por acalmar a tragicidade indigente do desconhecimento,

emerge, na concepção literária zambraniana, a atitude poética, que responde aos

desassossegos do homem, preenchendo os seus vazios e atribuindo, de alguma

forma, sentido a tudo, enfim, conferindo-lhe identidade. Se aceitarmos a realidade

de que o ato de perguntar é eterno e que continuamente conceitos estão sendo

destruídos ou revistos pelo pensamento humano, teremos, inegavelmente, a

consciência de que sempre retornaremos ao estado atemorizante, sagrado ou

trágico do começo. Esse conceito da necessidade de regressar ao princípio de tudo,

tendo como objetivo a autocompreensão é promovido pelo pensamento

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zambraniano diversas vezes na escritura das suas obras e, nós, o abordaremos de

modo intenso.

A interpretação desse ensaio zambraniano, “Hoffmann: «Descartes»”, é-

nos pertinente, pois, como vimos, surge como um ponto crítico de inflexão da

modernidade, que María Zambrano vai desenvolver de uma maneira repetidamente

inovadora em seus escritos, tomando como sustentação basilar a assertiva de que o

homem moderno tem a característica de persistir na dúvida em relação a quase

tudo, pois se nos é claro que o mundo da modernidade é o da crise, o do perigo, é

natural que a busca por uma clareza jamais é categórica, pelo contrário, ela se

renova por meio da recusa ao absolutismo de valores ditos permanentes e na

brecha do pensar revigorado de que tudo o que existe, inclusive o eu, pode mudar a

qualquer momento.

Em “Robert Aron y Arnaud Dandieu. «La Révolution Nécessaire»”

(resenha, Madri, t.XLIV, n.º 131, maio 1934, pp.209-221), María Zambrano

explica que na obra se critica o pensamento, a obra teórica e a consequente

inspiração revolucionária comunista de Marx mediante a ideia da revolução como

essência criadora do homem, opondo-os às concepções de Bakunin, teórico

político russo, expoente principal do anarquismo, o qual expressaria o verídico

sentido da revolução. Segundo o último:

El instinto de revuelta es un hecho primordial, animal, se le encuentra en diferentes grados de cada ser viviente, y la energía, la potencia vital de cada uno, se mide según su intensidad. En el hombre, al lado de las necesidades económicas, deviene ella el agente más poderoso de todas las emancipaciones humanas. (BAKUNIN, M., 2009 apud ZAMBRANO, M., 1934, pp.209, 210)

A natureza revolucionária e anarquicamente transformadora faz parte da

idiossincrasia humana e da sociedade, como forma de sua (re)criação e como fonte

geradora da (re)construção da história através da consciência pessoal e do

estabelecimento da ordem pública, que identificam o ser humano como um ente

em conflito pela crise do mundo capitalista.

Bakunin parte –nos dicen los autores– de una naturaleza humana concreta, naturalmente es revolucionaria. Esta persona concreta está dentro de la masa, pero la masa no es de distinta contextura que la persona concreta; en ella sigue siguiendo el instinto revolucionario creador, es, como el individuo, anárquica. (ibidem, p.210)

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Bakunin, defensor da ‘teoria da ação política’, acreditava que o objetivo

revolucionário deveria atuar no sentido de aniquilar o Estado, ‘as coisas’ e não o

homem. Lutava a favor da continuidade de uma herança antiautoritária e em prol

da característica anarquista descentralizadora da autoridade e do Estado, que

pretendia possibilitar o desenvolvimento do indivíduo e dos países. Na verdade,

Bakunin deixou muitos ensinamentos, visto que, depois de sua morte em 1876,

fatos políticos como a Insurreição Anarquista do Rio de Janeiro em 1918, a Guerra

Civil Espanhola e a Revolução Espanhola em 1936 tiveram intensa participação de

defensores de uma mentalidade anarquista. María Zambrano tenta esclarecer o

conceito de algumas terminologias utilizadas em La Révolution Nécessaire, como

‘masa’, ‘sociedad’, ‘estado’:[…] masa es la reunión humana espontánea, anárquica, para pasar a la cual el

individuo no ha tenido que tender ningún puente, pues ningún abismo les separa. Al igual que en el hombre existe una naturaleza espontáneamente revolucionaria, es decir, que en el hombre en su pureza es revolucionario, la sociedad, en su pureza a-estatal, es de idéntica naturaleza revolucionaria. Existe una identidad de naturaleza esencial entre individuo y masa. El hombre y la masa son espontánea y necesariamente anárquicos y revolucionarios […] (ibid., p.211)

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María Zambrano reflete também sobre outros conceitos colocados a

maneira de citação no seu texto crítico sobre La Révolution Nécessaire, como o

enfrentamento entre o indivíduo e a sociedade considerados igualmente

anárquicos, onde, na realidade, portanto, inexiste uma oposição. Esses são

fenômenos de ‘idêntica natureza’, já que um se insere no outro como seres vitais

formados a partir de uma vivência comum. De outro lado, certo segmento da

crítica opina que Marx substitui o conceito de ‘massa’ por ‘classe’. Assim, quem

realizaria a revolução comunista seria a classe, onde a figura do homem

incorporaria a do proletário e não a massa como homem. Na visão zambraniana,

isso acaba resultando em um mascaramento dos ideais revolucionários do

marxismo, além de colocá-lo em paralelo com o capitalismo burguês, na medida

em que é o homem como burguês que se protege da revolução marxista e é o

homem como proletário dentro de uma classe desfavorecida e oprimida que deseja

substituir a elite dominante. Segundo a autora, essa dicotomia aparece como um

equívoco recorrente no pensamento anarquista. Dessa perspectiva, capitalismo e

comunismo partem de uns mesmos princípios e sucumbirão sob os efeitos de suas

próprias revoluções. O progresso define-se por meio da ideia de acumulação e

crescimento nos âmbitos monetário, científico e tecnológico, que nutrem a

permanência e tornam materialmente promissor o nosso projeto histórico. Na

concepção de Eduardo Subirats, o plano da modernidade nasce ao mesmo tempo

em que o plano do progresso, estando, por conseguinte, um unido

indissociavelmente ao outro. Como o termo ‘modernidade’ traz à memória a noção

de crise, Subirats afirma que modernidade, crise e progresso são peças-chave que

singularizam o nosso tempo. O espírito crítico moderno favorece a utilização de

um discurso polifônico, onde a figura do intelectual surge como uma entidade à

margem da opinião comum.

A finales del siglo pasado, Karl Marx puso en entredicho el ideal romántico del progreso cultural, el cual suponía una identidad de principio entre el desarrollo científico-técnico y la libertad humana en un plano espiritual y social. Su análisis sociológico-filosófico muestra la herida de una sociedad a partir de entonces definida como antagónica. Es cierto que, entre tanto, la capacidad política y tecnológica de integración de los Estados modernos desarrollados, permiten neutralizar este antagonismo, bajo formas de control institucional en lo que respecta a los conflictos sociales entre clases, o bajo las formas de intervención militar en lo que respecta a los conflictos entre países pobres y ricos. Pero la realidad de una

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sociedad antagónica de intereses persiste en la conciencia de todos. (SUBIRATS, E., 1991, pp.129, 130)

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A verdadeira revolução aparece muitas vezes abandonada pelos

revolucionários atuais. Contra isso é que María Zambrano também adota a posição

do intelectual dissidente e oposicionista, que promove sua personalidade artística a

partir da construção de uma identidade em resistência, cuja distinção essencial é a

de possuir afinidade com o fracasso e a perda da mesma forma que Unamuno, em

seu tempo, procedia à criação de um herói trágico moderno, cuja peculiaridade

fundamental era vencer a morte e o esquecimento funesto da existência humana

por meio da salvação da escritura imortalizadora. Dessa maneira, o sujeito, como

instância de enunciação, necessita reafirmar-se em situações de polêmica, para que

o ensaio cumpra o objetivo de denúncia que o impulsiona e justifica. O ensaio

cresce à luz de uma responsabilidade discursiva que deseja reforzar valores do

lado contrário do poder constituído.

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Dentro desse ensaio sobre La Révolution Nécessaire de Robert Aron e

Arnaud Dandieu, María Zambrano propõe-se a debater diversos capítulos dessa

obra dada a importância que o tema infunde em suas concepções filosóficas do

existir em defesa da luta pela realização histórica e espiritual de si mesmo. Em La

Révolution Nécessaire, um dos capítulos comentados é ‘Esprit et Révolution’,

que discute brevemente a natureza da ‘verdadeira revolução’ instaurada mediante

um sentimento de crise, que inaugura uma ordem nova em resposta à uma angústia

do indivíduo. A autora espanhola comenta que Marx admite que existe a luta de

classes, em que o regime dominante se apóia no segmento social menos

favorecido. Por esse motivo, para María Zambrano, esse é o núcleo da obra, apesar

de ainda tecer-lhe algumas críticas sobre a falta de esclarecimentos sobre as

relações entre indivíduo e sociedade, que aparecem com terminologias

precipitadas e oscilantes. Em La Révolution Nécessaire, a ensaísta ainda

polemiza o capítulo ‘De la esclavitud al servicio’, o qual revela que o fato de

existir o proletariado, uma classe explorada tanto econômica como também

espiritualmente, possibilita o nascimento das autênticas revoluções, pois, de uma

forma ou de outra, o povo toma consciência de sua condição e de sua importância,

entendendo, assim, que merece um lugar mais destacado na pirâmide social, a fim

de obter um padrão de vida mais elevado e digno. Zambrano afirma que esse

querer, essa ambição e também a frustração são o alimento do movimento

revolucionário legítimo, embora a figura do proletário seja a que passe

permanentemente por crises situacionais dentro da historia das sociedades

capitalistas. A revolução apresenta, na sua essência, a ideia da criação, cujo

fundamento encontra-se no momento presente, com o intuito de conseguir um

resultado diferente e novo no futuro. Sua característica principal é a

imprevisibilidade que alberga a oportunidade de recomeçar ou mudar o que

insatisfatoriamente se vive.

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María Zambrano escreve, com apoio na análise de La Révolution

Nécessaire, que o elemento primordial revolucionário cristaliza-se na tensão

propiciadora da criação, cujo ponto de partida é o presente buscador de uma

realidade inédita, diferente, a qual funcionará como uma tentativa de válvula de

escape para a desorganização vigente: “Revolución es eso: afloración de algo, un

nuevo orden que antes no existía y que viniendo a sustituir a un viejo desorden no

está dado, sin embargo, enteramente en función de ese orden, aunque venga a

remediarle.” (ZAMBRANO, M., 1934, p.215) No entanto, a fé no homem deve

prosseguir para a instauração das esperanças em um futuro renovador. O

sentimento revolucionário é inerente à constituição humana e ao desenvolvimento

da própria história. María Zambrano assevera que o livro em questão foi escrito na

mais alta sensibilidade vivenciada em sua época e, por isso, padece a carência de

distanciamento para vislumbrar de maneira mais imparcial os problemas, que

alertam para a necessidade de uma busca de teorias libertadoras do homem em seu

meio, que anunciem uma filosofia radical de transformação. Com efeito, os

intelectuais sempre lutam por encontrar ideias que lhe permitam uma iluminação

ante si mesmos e ante as coisas do mundo, que sirva como subsídio para

compreender a essência e os mistérios anímicos primordiais do homem. O espírito

em crise de mudança, portanto, como o maior desejo revolucionário, manifesta-se

pela violência como princípio vital, pois luta com a finalidade de autopreservar-se

e sobreviver às intempéries da existência.

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Para Zambrano, guerra e crise desfrutam de uma origem eminentemente

filosófica, pois constituem a própria vida e vida e filosofia possuem ligações

estreitas, fazendo nascer o próprio conceito da razão vital, propugnado por Ortega

y Gasset. Em La Révolution Nécessaire, segundo María Zambrano, o desejo de

uma teorização do homem persiste no capítulo ‘Theorie de la Révolution’, onde o

cartesianismo e o hegelianismo se criticam como uma manifestação do

pensamento racional acerca da vida do homem. A realidade não está sujeita tão

somente à razão humana, mas também possui uma característica enigmática que

não se pode prescindir e que escapa ao controle racional e é exatamente nesse

espaço oculto e desconhecido que sonha o futuro, onde o homem poderá exercitar

sua capacidade inventiva, criadora. Ao longo de seus primeiros textos, julgamos

que María Zambrano já sugere, constrói e desenvolve sua teoria sobre a razão

poética, como uma necessidade espiritual do homem na sua vida, que o conduz ao

divino, enfim, à uma possibilidade de transcendência. A multiplicidade do sujeito

esclarece que o ser humano não está formado essencialmente só pela capacidade

de ter consciência, ou seja, pela racionalidade. Se assim o fosse, correríamos o

risco de ser um todo homogêneo muito mais empobrecido sob as tensas rédeas da

razão. Para nós, é transparente o modo como María Zambrano manifesta, em

vários pontos de seu discurso, a sua crítica do racionalismo, o que vai se tornar

uma perspectiva dominante em seu ensaio. Desse modo, podemos inferir que o

discurso ensaístico, como uma escritura em constante avanço ou progressão,

denota uma simbiose com o seu tempo, pelo fato de que a cultura e a comunidade

onde surge disponibilizam os instrumentos necessários para o desenvolvimento da

reflexão do ensaísta, que colabora com a possibilidade de reforma do pensamento

em voga. Esse aspecto errático, descentrado e inespecífico do ensaio, segundo

certifica Adorno (2003, p.17), é o que lhe outorga a se desobrigar de uma habitual

noção de verdade, já que a sua forma de expor indica sempre só uma aproximação

concludente, que solicita desestabilizar as bases de um mundo exclusivamente

lógico.

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O filósofo alemão George Simmel (2008), também citado por Eduardo

Subirats (1991, p.130), referiu-se, do mesmo modo, à crise da modernidade sob o

uso da expressão ‘tragédia da cultura’. Simmel, reeditando ideias de outros

pensadores como Scheler e Cassirer, estudou os aspectos dissociadores e

aniquilantes que o progresso com o desenvolvimento econômico e científico-

tecnológico apresenta e os efeitos alienantes para a cultura que advêm do

racionalismo prático da sociedade. Juntamente a um processo expansionista

moderno, verificam-se também perdas significativas para o ser humano, que lhe

mostram que todo processo civilizatório possui preços a pagar. Em um rápido

parêntesis, permitimo-nos acrescentar que, há muito, esse pensamento vem sendo

debatido por autores como Freud, visto que, na sua obra Mal-estar na civilização,

escrita em 1929, o fundador da psicanálise já polemiza a questão da repressão

social, onde o homem está vulnerável a um tipo de controle, que o alheia e inibe o

seu próprio desenvolvimento. José Donizetti Morbidelli sustém que, como o

instinto humano é primordialmente agressivo, quando o homem se liberta de um

sistema opressor, a sua inclinação é a de destruir o meio em que vive. Na verdade,

segundo Morbidelli, “o desenvolvimento do indivíduo, bem como da civilização

da qual faz parte, somente são possíveis a partir do controle das pressões impostas

ao homem” (2009). Para Freud, estamos sob a orientação de dois princípios

conflitantes: o princípio do prazer ou de vida e o princípio da realidade ou de

morte. De acordo ainda com Morbidelli (ibid.), na teoria de Freud, enquanto o

instinto de vida tem como fundamento interagir na civilização de forma a

aproximar os indivíduos, trabalhando em favor da vida comunitária, o instinto de

morte age de forma oposta, isto é, contra a civilização. Por encontrar-se alienado

no meio ao qual pertence diante das determinações de uma sociedade tirânica e

sem o vislumbre de um ambiente que permita a total liberdade, o ser humano não

encontra chances para a concretização da sua felicidade, entendida, conforme as

teorias freudianas, como a liberação das energias instintivas. Seguindo os

ensinamentos de Freud, é plausível dizer que nada superaria a felicidade em seu

âmago, contudo sofremos continuamente o desabor de compreender que a

plenitude não existe a não ser na busca, que nos recompensa com alguns

momentos de satisfação temporária, consequência de impulsos, sobretudo, sexuais.

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Nesse sentido, a nosso ver, a filosofia zambraniana atualiza a teoria de Freud de

que necessitamos o íntimo, a poesia, o divino na existência, posto que constituem a

utopia imprescindível da superação da vida. Como nos caracterizamos pela

procura de ser, paradoxalmente, entretanto, não desistimos da felicidade ou da

completude constantes impossíveis como objeto de nosso amor ou desejo, embora

seja precisamente essa busca que nos provoca a dor, a insatisfação, o fracasso e o

sentimento da tragédia do viver, pois quanto mais controlado instintivamente o

homem, mais agressivas são suas ações.

Essa maneira de ver a realidade e a alma pode ser perfeitamente

interpretada dentro do âmbito anti-racionalista da crítica moderna da qual María

Zambrano faz parte. Desse ponto de vista, podemos deduzir que a crise cultural

moderna ou a cultura moderna do estilaço ou da fragmentação do início afeta a

vida cotidiana em geral, incluindo a arte e a literatura, na medida em que o sujeito

construído pelo racionalismo moderno se distingue pela negação da experiência,

elemento fundamental para o desenvolvimento cultural e espiritual do indivíduo

enquanto pessoa que anseia evoluir a partir da sua própria criação. É fato que a

prosperidade do discurso ensaístico em tempos modernos justifica-se pela

reivindicação da realidade empírica do sujeito concreto através da linguagem

abstrata da filosofia. Defendemos que o malogro do homem moderno propicia que

o ensaio seja o discurso da modernidade e o filósofo seja um dos que pode intervir

no mundo como uma pessoa que almeja ser diferente e única.

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Se entendermos que o aparecimento do novo, do pensamento, de um desejo

de revolução surgem pelo motivo de que o antigo não conseguiu satisfazer as

necessidades do homem e, por isso, precisa ser renovado, podemos advertir

igualmente que o fracasso do projeto humano e a inacessibilidade a todo o

conhecimento desembocam na ruína, na morte-ressurreição do homem e do seu

mundo. Daí, como sentencia Zambrano, no capítulo sobre ‘Theorie de la

Révolution’de La Révolution Nécessaire, seja realmente justo afirmar que o

espírito revolucionário se origine do próprio pensamento racionalista, que já

profetizaria, subliminarmente, a sua natural derrota. Por meio da inteligência, o

homem conquista, defende-se, cresce, mas também erra e tenta de novo acertar e

encontrar as suas soluções ensaiando outros caminhos. Em função dessa luta

‘dioturna’, a inteligência racional, embora muito necessária e importante,

dificilmente poderá ser considerada onipotente, pois se funda em sua auto-

iminência de falência, que viabiliza, em contínuos movimentos circulares, a sua

própria revisão (re)criadora. María Zambrano profere que tal pensamento

anarquista colocado por Robert Aron y Arnaud Dandieu em La Révolution

Nécessaire frustra-se, na medida em que esses pensadores não conseguem levar a

cabo o que teorizam e seus conceitos, como a ontologia do homem e do

conhecimento, não são expostos ou formulados com clareza. Além disso, esses

teóricos padecem o infortúnio de viver as vicissitudes que conformam o próprio

destino malogrado de um tempo. Também, segundo a autora malaguenha, talvez

resida precisamente no fracasso dos intentos da obra, toda a sua simpatia e toda a

sua inspiração para reflexões: “Porque resultaba extraño en un pensamiento que

combate el racionalismo, su revolucionarismo esencial. Y ahora se ve claro; es

revolucionario porque no ha conseguido encontrar los pensamientos necesarios

para superar el racionalismo, como era su pretensión y su necesidad.”

(ZAMBRANO, 1934, p. 220) Na verdade, a noção de revolução nasceu do

pensamento racionalista, que tem a consciência de que a vida humana não pode

estar submetida exclusivamente a uma razão total ou pura. Revolução e

racionalismo possuem mais implicações do que de fato se pensaria em admitir.

Entre a contemplação da vida e a consecução do método de análise, os autores de

La Révolution Nécessaire acabam afirmando o que antes haviam rechaçado, pois

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é extremamente difícil conjugar o social e o político com o metafísico e o

espiritual. Na verdade, o lógos conceitual ou a razão, apesar de não exclusiva ou

hermeticamente única fonte de saber, aparece como um patrimônio cultural

herdado do nascimento da filosofia na Grécia. Na antiguidade clássica, as relações

entre o geral e o particular, o mundo e o indivíduo eram vislumbradas com intensa

harmonia, porém, hoje, a consciência racionalista tenta infrutiferamente dissociar o

que constitui a pluralidade humana e, por isso, muitas vezes, sofre a insuficiência

de suas próprias conceitualizações.

Nos escritos publicados na Revista de Occidente, María Zambrano, ao

lado da crítica literária de obras de autores pertinentes, sobretudo, ao campo da

filosofia, começa a produzir um discurso filosófico singular. Como dissemos

algumas páginas atrás, nessa revista, Zambrano publica “Por qué se escribe”

(Madri, t.XLIV, n.º 132, junho 1934, pp.318-328), seu primeiro ensaio, onde

principia dizendo que “escribir es defender la soledad en que se está”

(ZAMBRANO, M., 1934, p.318) como se a figura intelectual do escritor fosse a de

um exilado consentido, voluntário, que ambiciona o encontro com algo especial,

inédito que somente pode ser alcançado no desterro da escritura, diferentemente do

ato de falar, que se mostra muitas vezes imediato e espontâneo. O fato é que o uso

da palavra liberta provisoriamente de uma situação momentânea e urgente, sendo,

assim, uma reação comumente desencadeada por fatores externos que não

proviriam da verdadeira essência do sujeito.

Escribir viene a ser lo contrario de hablar; se habla por necesidad momentánea inmediata y al hablar nos hacemos prisioneros de lo que hemos pronunciado, mientras que en el escribir se halla liberación y perdurabilidad –sólo se encuentra liberación cuando arribamos a algo permanente–. Salvar a las palabras de su momentaneidad, de su ser transitorio, y conducirlas en nuestra reconciliación hacia lo perdurable, es el oficio del que escribe. (ibidem, p.321)

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A solidão manifesta-se como uma condição da escritura e da crítica acerca

da pulverização do sujeito e das instituições que configuram nossa cultura

ocidental. A ideia do esgotamento da palavra está presente no texto de María

Zambrano, com o conceito de que embora vençamos certos momentos de urgência

pelo uso verbal, logo em seguida a reincidência de fenômenos opressores

sucessivos acaba por subjugar nossa investida, transmutando vitória em derrota.

Ao contrário da confiança no projeto de coletividade, da ruptura dos costumes e da

independência da opinião pública da elite pensante e contestadora, na atualidade, o

intelectual assume o encargo de sua claudicação, como um ente que reconhece e

procura lidar com o sentimento da falta e da imperfeição. Em Intelectual

engajado: uma figura em extinção? (s/d), Marilena Chauí recorre a conceitos

interessantes da Crítica da razão indolente. Contra o desperdício da

experiência (2007), de Boaventura dos Santos, que defende haver-se fundado o

projeto histórico moderno sobre dois pilares: o da regulação e o da emancipação,

sendo que este último encontrou embasamento no que a autora denomina de três

lógicas da autonomia racional, a saber: a racionalidade expressiva das artes, a

racionalidade cognitiva e instrumental da ciência e da técnica e a racionalidade

prática da ética e do direito. Marilena Chauí diz que, assim, o projeto da

modernidade acreditava ser viável um desenvolvimento harmônico da regulação e

da emancipação e a racionalização completa da vida individual e coletiva. No

entanto, a característica abstrata de tais princípios conduziu a uma tendência de

maximização de cada um, que acabou por excluir um deles. O fato é que o projeto

da modernidade e o surgimento da economia capitalista garantiram o triunfo da

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regulação em detrimento do princípio de emancipação, que seria o lugar ocupado

pelo artista, pelo pensador, enfim, pelo intelectual2. Declara a autora:

Mantendo a terminologia de Boaventura dos Santos, podemos dizer que o pilar da emancipação ou a lógica da autonomia racional das artes, ciências, técnicas, ética e direito foi determinante para o surgimento da figura moderna do pensador e do artista não submetidos às instituições eclesiástica, estatal e acadêmico-universitária. A autonomia racional moderna das ações (artes, ética, direito e técnica) e do pensamento (ciências e filosofia) conferiu a seus sujeitos algo mais do que a independência: conferiu-lhes autoridade teórica e prática para criticar as instituições religiosas, políticas e acadêmicas, como fizeram os philosophes da Ilustração Francesa e, no século XIX, para criticar a economia, as relações sociais e os valores, como fizeram os socialistas utópicos, os anarquistas e os marxistas. O pilar da autonomia racional tornou possível o surgimento daqueles que, durante o caso Dreyfus, Zola convocou à cena pública com um novo nome: os intelectuais. (CHAUI, M., s/d, p.1)

2 A palavra ‘intelectual’ foi usada pela primeira vez na França, nos finais do século XIX, durante o caso Dreyfus, escândalo político que dividiu o país por muito tempo, para descrever aqueles que eram ‘Dreyfusards’: Émile Zola, Octave Mirbeau, Anatole France. O termo ‘intelectual’, como substantivo em francês, é atribuído a Georges Clemenceau em 1898, também um proeminente defensor de Dreyfus. A entrada e a difusão da nomenclatura ‘intelectual’ na língua castelhana ocorreram quase ao mesmo tempo em que na francesa graças à mobilização dos professores e escritores daquele país em torno da polêmica nacional em questão, com o objetivo de influenciar a opinião pública. Em 1897, descobriu-se que o comandante d’Esterhazy havia identificado um documento falso utilizado para condenar por alta traição o capitão Alfred Dreyfus, oficial de artilharia do exército francês, de religião judaica. Como Dreyfus era inocente, o Estado Maior, a partir de uma estratégia de manipulações, negou-se, a princípio, a revisar o processo e, em dezembro do mesmo ano, o parlamento francês exonera por votação a d’Esterhazy. Os oficiais de alta patente da França procuraram ocultar o erro judicial por meio de nacionalismos e xenofobias, que se difundiram pela Europa no final do século XIX. Diante dessas circunstâncias, o caso transferiu-se à opinião geral com a publicação, no dia 13 de janeiro de 1898, de J’accuse, de Émile Zola, no jornal L’Aurore, que, posteriormente, abriu espaço para dar voz a revisionistas e dreyfusistas. Depois do documento revolucionário de Zola, apareceu uma série de petições e declarações que foram batizadas de Manifestes de Intellectuels, onde se estreou o referido vocábulo de repercussão espantosa naquele período.

Na Espanha, a geração de 1898, como um grupo de intelectuais, assumiu a responsabilidade que a denominação com origem francesa implicava, expressando, com bastante veemência, o intuito de influenciar culturalmente o país. Podemos comprovar facilmente essa afirmação através da quantidade de reclamos, circulares e revistas em que observamos juntas as assinaturas de determinados autores, cujo propósito principal era modificar o sistema político e social espanhol.

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Em “Por qué se escribe”, María Zambrano entende, portanto, como uma

intelectual do século XX, que do fracasso do falar, nasce a ‘exigência do escrever’:

“Se escribe para reconquistar la derrota sufrida siempre que hemos hablado

largamente.” (ZAMBRANO, M., 1934, p. 319). De acordo com a autora

espanhola, a vitória somente será possível no mesmo lugar da derrota, ou seja, no

campo das palavras, pois estas gozarão de uma perspectiva, de uma função nova

dentro do campo da escritura. Assim como destrõem, as palavras também criam,

tendo a capacidade de preencher o vazio do tempo e mostrando-se como um

espaço de recolhimento defensor da integralidade do momentâneo vital. Walter

Ong considera a escrita como uma forma de tecnologia que causa um grande

impacto em relação à língua falada, podendo transformar imensamente o

pensamento do outro a partir da recriação da oralidade na palavra escrita, que

utiliza o escrever como garantia da preservação da cultura, diferentemente da fala,

que precisa de estratégias diversas para manter a informação, como provérbios,

histórias moralizantes e heróis superdimensionados, que funcionam como

condensadores de todo o saber de um povo. Em Oralidade e cultura escrita

(1998), Walter Ong pretende discutir as diferenças entre a oralidade e sua

expressão verbal em sociedades, onde a população não conhece a tecnologia da

alfabetização ou da escrita. Segundo o autor, essa transição da pura oralidade para

a escrita demonstrou transformações fundamentais no pensamento, que ampliou os

seus horizontes auditivos para a dimensão da visão, como um dom divino,

profético, ilimitado para resguardar o conhecimento e renová-lo a partir do ensino,

do leitor e do tempo.

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Por sua parte, María Zambrano, em “Por qué se escribe”, anuncia que se no

falar observamos um soltar de palavras, no ato de escrever, há um movimento de

retenção, que torna possível a apropriação e o domínio do sujeito sobre a

enunciação. A partir dessa noção, portanto, o homem buscaria a vitória por meio

de uma reconciliação com as tiranas palavras, enfim, com uma potencialidade

especial de comunicação: “Salvar a las palabras de su vanidad, de su vacuidad,

endureciéndolas, forjándolas perdurablemente, es tras de lo que corre, aun sin

saberlo, quien de veras escribe.” (ZAMBRANO, M., 1934, p.320) Essa é a sede de

vitória sobre as palavras, que nos escapam e nos escarnecem. A revelação do

segredo, do oculto, aquele que não se pode dizer falando talvez por ser verdadeiro

demais, da vida, do tempo é o que se precisa descobrir paulatinamente e comunicar

escrevendo, durante a gestação solitária da escritura, a qual favorece essa avidez

pela busca do conhecimento, da verdade, da iluminação, como em um ato de fé e

fidelidade. Este é o momento da comunicação em que o escritor sai da solidão e

compartilha o seu mistério com o leitor, que, como produtor igualmente de

significados, terá a missão de tentar desvendar o(s) seu(s) sentido(s). Aí se

manifesta a glória do escritor e posteriormente a do leitor, na medida em que se

tornando universal, o escrito deseja produzir um efeito no outro que ele mesmo

momentaneamente não é capaz de conhecer ou dominar. Objetiva fazer com que

alguém se inteire de alguma coisa que desconhecia para alumiá-lo, livrá-lo da

mentira e fazê-lo viver de outra forma. O conhecimento da verdade libera o

homem, livrando-o do silêncio em que se encontrava, pois geralmente a privação

do falar oculta algo que, na verdade, precisa ser dito: “Lo escrito es igualmente un

instrumento para este ansia incontenible de comunicar, de «publicar» el secreto

encontrado, y lo que tiene de belleza formal no puede restarle su primer sentido; el

de producir un efecto, el hacer que alguien se entere de algo.” (ibidem, p.323)

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É evidente que, em “Por qué se escribe”, María Zambrano denota a

importância da recepção do escrito e da relevância do leitor, na medida em que

coloca em questão o apelo que o autor faz ao seu interlocutor para com ele

compartilhar as suas ideias, as quais atribuem vida e sentido à obra escrita e

publicada, formando uma espécie de androginia divina, complementária do ser em

sua totalidade, quando diz que “un libro, mientras no se lee, es solamente ser en

potencia, tan en potencia como una bomba que no ha estallado.” (ibid.). A

comunhão do escritor com o seu público realiza-se no ato da escritura, quando

existe uma comunicação empreendida pelo escritor. É certo, entretanto, que ela

não se dá somente depois da obra publicada, pois o leitor existe antes da escritura

ou da leitura da própria obra. Pozuelo Yvancos profere que o autor é socialmente

compromissado com a sua obra e que na autobiografia isso adquire uma relevância

ímpar em relação ao leitor, na proporção em que este compreende que “el autor es

productor de textos, que su obra justifica su narración y quizá su vida.” (2006,

p.28) Parece-nos vital ressaltar que, como característica do ensaio e também do

processo autobiográfico que se vale da memória para recordar analogamente o

vivenciado, os escritos de María Zambrano apresentam-se dispersos na forma de

reflexões descontinuadas, que intencionam criar uma consciência emancipatória no

leitor incluído no seio de uma sociedade racionalista moderna. “Por qué se

escribe” e as publicações posteriores da autora espanhola obedecem a um

progressivo discorrer intelectual, mas, no interior dos textos, existe a

fragmentariedade própria do ensaio, que revela uma e outra vez a crise da escritura

instaurada pela crise do sujeito e das sociedades. Os avanços tecnológicos e

industriais propendem à aniquilação da harmonia social sustentada por uma base

de valores religiosos, éticos e estéticos para ceder lugar a uma sociedade

organizada em função da técnica em franco processo de desumanização, tal como

profetizavam pensadores como Ortega e Spengler. A destruição de valores

culturais, segundo Eduardo Subirats, acarreta o aumento das diferenças

econômicas e sociais da mesma maneira que se assiste efusivamente ao

crescimento tecnológico. Paradoxalmente, a racionalização da cultura acompanha

a sua concomitante irracionalização no que se refere ao político, ao psicológico, ao

social, ao ecológico.

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En cualesquiera de los aspectos institucionales bajo los que se contemple el progreso tecnológico de nuestro tiempo chocamos con uno y el mismo fenómeno cultural de desintegración: crisis de la idea de sujeto personal, liquidación de las concepciones históricas, ya sean filosóficas, ya religiosas, que sostienen nuestra idea de dignidad humana, de libertad, de integridad física, de moralidad o de gusto estético. A ello se añaden fenómenos sociales de desesperada desintegración, como la drogadicción y el terrorismo, según respondan a los conflictos urbanos o a los conflictos territoriales de nuestra civilización. Ambos extremos son mucho más ricos como símbolos de un movimiento civilizatorio centrífugo y de fragmentación de lo que su usual criminalización por parte de los Estados modernos permite ver. Pero, sobre todo, ponen de manifiesto la contraparte de las nuevas formas de racionalización tecnológica en la sociedad moderna. (SUBIRATS, E., 1991, p.132)

Em tempos críticos, também é tempo de crítica e a filosofia, como uma

experiência em busca do esclarecimento, possui a função de discutir a existência

humana e o mundo. A cultura moderna, constituída pelos interesses econômicos e

pela busca tecnológica, necessita de uma instância de enunciação contrária para o

exercício da argumentação e para a manutenção do princípio de esperança utópico,

que efetive a continuidade da história e da própria humanidade. Diante do

panorama obstaculizador, mas, ao mesmo tempo, estimulante para a criação ou

para a imaginação crítica, outros modelos de reflexão tornam-se sempre urgentes,

a fim de que consigam atender às exigências dos conflitos vivenciados na

modernidade, como, talvez, um dos melhores meios de libertação do ceticismo e

do desassossego que angustiam o homem.

Na Revista de Occidente, observamos que entre um ensaio e outro, María

Zambrano vai dando continuidade ao seu pensamento, como um grande livro

fragmentado em vários espaços, fazendo comprovar a amplitude e a atualidade de

suas ideias. A autora obedece à característica central da sociedade contemporânea

da ‘reafirmação da aparência’ ou da ‘performatização da experiência’, que visa

criar uma imagem pública através dos meios de comunicação modernos, entre os

quais, o texto escrito ou, hoje em dia, também o material virtual estão nitidamente

presentes. A ideia desse simulacro pretende criar, reforçar ou reconstruir a

experiência, o modo de apreender o mundo e fragilizar a autenticidade das relações

interpessoais. A edificação da figura do escritor baseia-se evidentemente na

consciência de sua própria capacidade auto-inventiva, a qual responde a uma

tendência retórica moderna da ilusão que reavalia fatos históricos, valores éticos e

estéticos, conforme a demanda intrínseca e mercadológica do momento. Na

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modernidade, o conceito de ‘fachada’ adotado por Eduardo Subirats adquire uma

importância social singular no que se refere à difusão da identidade, que, por sua

vez, acaba desempenhando uma função encobridora do real e, muitas vezes, com

ele estabelece uma relação simbiôntica.

Este carácter de fachada constituye, precisamente por ello, un rasgo predominante de la cultura moderna, al lado precisamente de su fundamental vacío: se trata, en definitiva, de una concepción escenográfica de la cultura como espectáculo mediáticamente generalizado, como representación total (cuya primera formulación fue la teoría de la obra de arte total; su segunda, la concepción nacional-socialista de la política como obra de arte; y su tercera, la cultura de los valores éticos-estéticos mediáticamente escenificados). (SUBIRATS, E., 1991, p.135)

É inegável que a construção da subjetividade, dentro dos tempos modernos,

é alimentada pela contundente influência dos instrumentos midiáticos e públicos,

fazendo com que a sociedade seja, ao mesmo tempo, idealizadora e consumidora

das próprias imagens e máscaras criadas. Desse ponto de vista, é necessário o

reconhecimento da importância dos meios de comunicação tão necessários e

amplamente utilizados ao longo da história, que legitimaram, sobretudo, a atuação

jornalística e projetaram, de maneira dinâmica e a um público numeroso, tantos

escritores dentro dos diversos campos do conhecimento, entre eles, María

Zambrano. A ensaísta, como uma intelectual moderna, concentra na sua própria

figura a mais alta contradição e, ao mesmo tempo em que critica a tecnologia dos

meios de comunicação de massas, precisa desse canal enunciativo para existir

socialmente na cultura da notoriedade, do espetáculo e da representação, onde

possa exercer o seu papel de crítica e de reflexão a favor de um saber da alma de

libertação primeiramente individual.

Mais uma vez, de acordo com uma perspectiva histórica, após a restauração

bourbônica (1874 a 1931) na Espanha, que termina o exíguo tempo da Primeira

República Espanhola, de 1873 a 1874, proclamou-se, em 1931, a Segunda

República Espanhola com a vitória dos republicanos nas eleições municipais. A

Segunda República criou a Constituição de 1931, também com vários atos

violentos e repressores, como incêndios e assaltos a colégios e conventos em uma

perseguição anticatólica, que igualmente se valia de uma significativa censura à

imprensa. María Zambrano, embora dentro desse contexto cerceador, posicionou-

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se totalmente a favor desse regime. Na realidade, como uma intelectual moderna

republicana, vislumbrava, nesse sistema político, uma possibilidade de que

homens e mulheres pudessem ter os mesmos direitos e oportunidades. Nesse

período, houve a adesão de vários escritores, como Antonio Machado, Menéndez

Pidal e Pérez de Ayala. A autora malaguenha apresentou uma ativa participação

política em comícios, deu conferências, teve entrevistas com o presidente Azaña e

até lutou pela assinatura de Ortega y Gasset em favor da república, porém não

conseguiu que o pensador defendesse o novo governo em uma emissora de rádio.

A pesar de que, no início, Ortega y Gasset também acreditou na causa republicana,

logo se desiludiu com o governo, criticando-o em artigos e recusando honras

oficiais, que muitos militantes tomaram como deserção. O filósofo espanhol foi

acusado de falangista e fascista, ao qual, um tempo mais tarde, replicou da

seguinte maneira:

Mientras en Madrid los comunistas y sus afines obligaban, bajo las más graves amenazas, a escritores y profesores, a firmar manifiestos, a hablar por la radio, etc., cómodamente sentados en sus despachos o en sus clubes, exentos de toda presión, algunos de los principales escritores ingleses firmaban otro manifiesto donde se garantizaba que esos comunistas y sus afines eran los defensores de la libertad. (ORTEGA Y GASSET, J., 1998, p.252)

Realmente, como já mencionamos, com a proclamação da Segunda

República, conseguiram-se muitas conquistas sobressalentes, como o voto

feminino, a igualdade de direitos entre homens e mulheres, a lei do divórcio e do

aborto e a escola mista. Entretanto, esses triunfos somente duraram alguns anos até

subir ao poder a ditadura de Franco em 1939, que arrebatou todos os direitos

conseguidos como o voto das mulheres, a conta bancária particular, o passaporte e

o mais grave de todos: o poder da fala. Com efeito, o governo franquista impingiu

uma série de privações aos espanhóis, que somente reconquistaram os seus direitos

depois de longos 40 anos. María Zambrano chegou a dizer que a República

adiantou-se muito ao seu tempo e, por isso, fracassou. Josep Pla (2006), por sua

vez, afirmou que o sonho republicano foi derrotado, porque caminhou rápido

demais, querendo tudo de uma vez só.

Assim sendo, compreendemos que a criação artística zambraniana na

Revista de Occidente, situada temporalmente nos princípios dos anos 30, e, em

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especial, no ensaio “Por qué se escribe”, responde às bases de sustentação que

queremos conferir à pesquisa, pois apresentam questões pertinentes como a crítica

do pensamento racionalista ocidental, a necessidade de uma análise e de uma

mudança da história por uma revolução republicana das ideias e a maneira como a

qual o sentimento da falta e a angústia do ser humano levam o intelectual a

escrever por um irresistível desejo de adicionar, na eternidade da escritura,

argumentos diferentes aos vigentes a problemáticas distintivas do homem

moderno, como o questionamento da subjetividade e sua representação artística em

um mundo da encenação da personalidade. É clara a percepção de que María

Zambrano, na Revista de Occidente, por meio de uma escritura literário-

filosófica, já demonstra inquietações éticas e políticas, visto que muito lhe

incomodavam as circunstâncias decadentes em que se contemplava a Espanha

daquela época.

4.2. Dimensão reflexiva e política em Hora de España

Com edições entre janeiro de 1937 e novembro de 1938, somando-se 23

números, Hora de España também representa muito no que diz respeito à

qualidade de seus textos e escritores, como um enlace importante entre a sua época

e a ruptura instaurada em 1939 com a assunção de Francisco Franco ao comando

do governo espanhol. Nesse sentido, dentro do papel político-sócio-intelectual das

revistas literárias, entre elas Hora de España, a escritura apareceu como uma

ferramenta fundamental, para que uma arte emergencial contra a opressão passasse

a ser o foco principal naquele tempo de guerra, cujo objetivo era, de alguma

maneira, assegurar a cultura em um ambiente de obscuridade, onde florescesse,

ainda com mais intensidade, a força de sua produção periódica nos anos

posteriores ao conflito. Do mesmo modo que a Revista de Occidente, Hora de

España dirigia-se a um público privilegiado cultural e intelectualmente, que

encontrou nesta uma continuidade do trabalho da publicação anterior, cujas

edições, como já explicamos, foram suspensas em 1936, sendo, entretanto,

retomadas certo tempo depois. Foi natural o fato de que os leitores fiéis da Revista

de Occidente se tornassem leitores assíduos de Hora de España, obedecendo a

uma ideologia, onde se preconizava que, apesar de homens de letras, o escritor

deveria ter a missão apartidária de discutir, junto com o leitor, a realidade

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vivenciada naquele momento, sem se enclausurar pessoal ou esteticamente,

colocando-se distante de suas circunstâncias. Em vista disso, podemos asseverar,

segundo Belén Hernández (2005, p.149), que a figura do leitor encarna um

indivíduo pertencente à uma coletividade, sendo um partícipe decisivo na

formação pública da consciência, na medida em que simboliza uma outra

modalidade discursiva de longo alcance com uma proeminente função social.

Decerto, o importante era, acima de tudo, operar em favor da cultura e do

povo, reagindo à uma hora de guerra obrigada ou imposta, que massacrava o

desenvolvimento de toda uma vida cultural em promissor crescimento. Desse

ponto de vista, Hora de España tornou possível o desenvolvimento de um intenso

ritmo de vida intelectual e de produção artística, apesar de todas as aflições do

conflito.

Es cierto que esta hora se viene reflejando en los diarios, proclamas, carteles y hojas volanderas que día por día flotan en las ciudades. Pero todas esas publicaciones que son en cierto modo artículos de primera necesidad, platos fuertes, se expresan en tonos agudos y gestos crispados. Y es forzoso que tras ellas vengan otras publicaciones de otro tono y otro gesto, publicaciones que, desbordando el área nacional, puedan ser entendidas por los camaradas o simpatizantes esparcidos por el mundo, gentes que no entienden por gritos como los familiares de casa, hispanófilos, en fin, que recibirán inmensa alegría al ver que España prosigue su vida intelectual o de creación artística en medio del conflicto gigantesco en que se debate. (Hora de España, 1937, n.º I, enero, pp.5, 6)

Hora de España estava com as páginas abertas às opiniões divergentes, ao

republicanismo, às ideologias esquerdistas, porém sem defesa restrita a qualquer

partido. Porém, sabemos que Hora de España apresentava, ao seu leitor, um ideal

político fortíssimo, que combatia metaforicamente na arte, pela análise do cânone

literário espanhol, a opressão do governo franquista e o projeto da modernidade

como um fracasso do homem na sua existência.

Lendo Propósito, que começa o primeiro número da revista Hora de

España, podemos entender o sentido do seu título e os seus objetivos precípuos:

“El título de nuestra revista lleva implícito su propósito. Estamos viviendo una

hora de España de trascendencia incalculable. Acaso su hora más importante. [...]

Quede, pues, en HORA DE ESPAÑA, y sea nuestro objetivo literario reflejar esta

hora precisa de revolución y guerra civil.” (ibidem) De fato, os anos seguintes

serão de muita dor e sofrimento, um estado de vida trágico para a Espanha e os

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espanhóis. Dentro da nossa pesquisa, a análise diacrônica da obra-vida de María

Zambrano durante os anos de 1937 e 1938 manifestam um tempo de conflito na

Espanha, onde a crise do país coincide dramaticamente com os problemas políticos

e sociais europeus, a Guerra Mundial e a desdita pessoal e familiar que abateu a

escritora com o falecimento do pai e da mãe, o que reforça a imbricação entre

história, modernidade, tragédia e vida na obra zambraniana. O ensaio, como uma

das maneiras de enunciação mais utilizadas dentro da revista, foi o modo com o

qual uma série de autores deixou patente o espaço de manifestação democrático e

polivalente tanto estilístico como ideológico da publicação.

Muitos autores da geração de 27, como Rafael Dieste, Antonio Barbudo,

Ramón Gaya escreveram para Hora de España e a fundaram com a ajuda do

Ministro da Propaganda da época, Carlos Esplá. Em meados de 1937, María

Zambrano, face ao seu retorno recente do Chile, uniu-se aos colaboradores da

revista. Em Hora de España, encontramos ensaios, poemas, narrações, obras de

teatro, comentários culturais e políticos. Na verdade, insistimos, a publicação

representa uma grande contribuição à vida cultural espanhola em plena guerra com

amplitude internacional. É mister destacar tanto o significado da revista para a

cultura e o homem espanhol, como também a função ou papel dos intelectuais

espanhóis que apoiaram a publicação naquele período de guerra e de revolução.

Apesar de uma forte tendência à politização, Hora de España não perde sua

notável virtude intelectual, que propiciou um maior conhecimento por parte do

público leitor de grandes nomes da geração de 27, bem como de outros autores.

Nesse rol, colocamos García Lorca, Rafael Alberti, Antonio Machado, Dámaso

Alonso e María Zambrano. Chama-nos a atenção o fato de que Hora de España e

todas as revistas, contêm, por vezes, um material de índole rara e preciosa que se

não fosse por sua ação, provavelmente, não chegaria ao público, pois não havia a

intenção de seus autores de que os seus escritos se transformassem em livros.

Vários textos proferem que as revistas surgem com um afã iconoclasta, que

pretende reconstruir conceitos anteriores nos mais diversos campos do saber

científico, social, político, cultural e literário. Daí a quantidade de movimentos,

manifestos, proclamas e propósitos que costumam compor esse tipo de publicação.

Quase todos os autores demonstram um início de produção literária em revistas,

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nas quais semeiam seus argumentos estéticos e ensaiam seus textos, seu estilo

retórico e a expressão de sua linguagem. Com María Zambrano, não foi diferente e

foi exatamente em virtude desse fato que escolhemos começar a estudar o ensaio

da autora a partir de algumas de suas publicações nesse meio de comunicação.

Podemos declarar, assim, que as revistas prenunciam a obra de um futuro escritor,

na medida em que revelam essas figuras em sua essência originária de produção

escrita e apoiarão o desenvolvimento das obras desses autores até que sejam

consolidadas, se for o caso, em livros. Por apresentarem os modos de pensar e as

crenças de jovens escritores em início de produção artística, a inquietação e as

ideias inovadoras que se contrapõem ao anterior ou ao então estabelecido estão

muito presentes. Sabemos que, em grande medida, os escritores conhecidos do

século XIX e do século XX publicaram uma parte relevante de seus escritos em

revistas ou periódicos literários fundados por eles mesmos ou por companheiros

das letras.

4.2.1. Revolução, modernidade e reencontro com o passado

Em Hora de España, reforçamos o acentuado caráter do seu projeto

político realizado pelos escritores na literatura, denotando um singular

vanguardismo da publicação. Nos números da revista em que publica Zambrano,

seu texto localiza-se ao lado de escritores como Antonio Machado, Montesinos,

Luis Cernuda, Serrano Plaja, Rosa Chacel, Vicente Aleixandre, Vicente Huidobro,

Emilio Prados, Octavio Paz, Altolaguirre, Miguel Hernández e Sánchez Barbudo,

muitos deles da geração de 27, que, no geral, pretendem resgatar um passado

tradicional da Espanha a fim de entender a situação atual em que se encontra o

país. Alem disso, vários discursos referentes à guerra, à revolução e toda uma

defesa da difusão da cultura são questões frequentes ao longo da revista.

Como María Zambrano constrói uma imagem de escritora e de intelectual

no âmbito literário de seu tempo, no texto “La reforma del entendimiento

español” (Valência-Barcelona, n.º IX, setembro 1937, pp. 13-28), se discutirá,

por meio da figura de Dom Quixote, a crise do pensamento ocidental e a

identidade no sangrento espaço da guerra civil daquele momento. A autora, a

partir de questionamentos diversos, reforça seus supostos básicos, que lhe

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garantem assumir uma singularidade de enunciação no discurso ensaístico.

Podemos afirmar que dito ensaio divide-se em dois momentos, na medida em

que, na primeira parte, a escritora discute o passado espanhol e os motivos que

levaram à decadência política da Espanha às portas da modernidade. Essa forma

de entender a própria história irá conduzir inevitavelmente María Zambrano a

estudar e polemizar as características mais profundas e específicas de toda uma

tradição cultural hispânica.

Dentro da vivência de um contexto trágico, a autora, a partir da leitura do

passado, tem o objetivo de compreender as causas da tragédia que afetava o povo

espanhol naquele momento da escritura do referido ensaio. Na segunda parte de

“La reforma del entendimiento español”, temos o romance de Don Quijote de la

Mancha e o personagem Dom Quixote como núcleo temático. “La reforma del

entendimiento español”, como outros ensaios da pensadora, interpreta a tradição

cultural do povo espanhol, o qual, pela palavra, procura erguer o seu futuro e

conquistar uma independência libertadora. Os escritos zambranianos centram-se

em uma luta pela conscientização de um silêncio sufocante em relação ao

passado, que precisa ser preenchido pela representação literária. A história,

conforme assevera Roger Chartier, é “[…] una escritura siempre construida a

partir de figuras retóricas y de estructuras narrativas que también son las de la

ficción” (CHARTIER, R., 2007, p.22), que, sem sombra de dúvida, requerem um

significativo esforço intelectual por descifrar os mistérios do acontecer pretérito.

Os fatos e a criação, portanto, não são antinômicos, visto que se interpenetram

constantemente tanto na fala como também na escrita. Entretanto, nesse plano da

constituição do ensaio nomeado por Arenas Cruz (1997, pp.33, 34) como

sintático-semântico, é preciso dizer que entre história e escritura, há uma

presença do paradoxo, que elabora o saber não como uma repetição do discurso,

mas como uma construção enunciativa, auxiliada fundamentalmente pelo

conhecimento do alheio. María Zambrano valoriza essa ideia quando em “La

reforma del entendimiento español” distingue as peculiaridades da cultura

espanhola em contraposição aos demais países europeus: “Difícilmente pueblo

alguno de nuestro rango humano ha vivido con tan pocas ideas, ha sido más

ateórico que el nuestro.” (ZAMBRANO, M., 1937, p.14) Para a ensaísta, essa

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característica supostamente ateórica do povo espanhol é questionável, pois a

Espanha não somente compartilhou, mas também assumiu um compromisso

político sério ao se aliar à luta européia contra a crise desencadeada pela ameaça

fascista. Embora a elite européia houvesse criticado duramente os valores da

tradição cultural espanhola, o povo espanhol solidarizou-se com o resto da

Europa, a fim de salvá-la de um destino nefasto de repressão. Segundo a autora:

“No parece ciertamente Europa merecer lo que por ella hace el pueblo español, y

ni Paris, ni Londres se merecen a Madrid; pero si no se lo merecen, lo necesitan.”

(ibidem, p.16) A identidade define-se por um enfrentamento com o outro, que,

por sua vez, propicia esses muitos sujeitos que inventamos para nós mesmos; daí

que a identidade é uma construção literária e, na verdade, somos a partir do

momento em que tomamos consciência. O ensaio sempre causa polêmica, pois

inclui o alheio e o outro na modernidade, sendo encarado a partir de uma

perspectiva histórica, que necessita de contornos épicos que valorizem o relato.

O fato de que a construção ensaística de María Zambrano se sustente por

um tipo particular de relação que possui com o passado leva-nos a acreditar que a

identidade no está definida propriamente pelos eventos históricos, mas pela

palavra que os dramatiza e os organiza no homem íntimo. Essa é a diferença entre

o passado e a sua representação, cuja memória cumpre o papel de promover a

continuidade de uma história que já não existe, a não ser pela capacidade de

organização psíquica e pela experiência de quem a viveu de uma maneira muito

sui generis. Além disso, é importante também recordar que, hoje em dia, todos os

envolvidos são outros, ou seja, pessoas completamente diferentes.

La lucha terrible que conmueve al pueblo español ha puesto de manifiesto todo nuestro pasado. Pasa nuestro pasado por nuestra cabeza como si lo soñásemos. Con ser ahora cada español protagonista de tragedia, diríase que, sin embargo, deliramos y es nuestro delirio el ayer que «siglo a siglo y gota a gota» sucede atravesando todas las conciencias. (ibid., p.13)

O sentimento de catástrofe é lugar comum na obra de María Zambrano, que

critica as derrotas de um estado republicano e o padecimento dos horrores da

guerra civil, que provocou uma paralisia intelectual com o exílio de diversos

autores espanhóis, entre eles, a própria ensaísta em 1939. Sabemos que a

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percepção do trágico moderno espanhol é o pilar essencial de sustentação dessa

época, sobre o qual se poderá desenhar uma imagem da Espanha. Nesse momento,

foi fundamental a formação de um grupo, que instaurou um cânone literário e

artístico com razões ideológicas, nacionalistas, estéticas muito definidas e firmes,

que tentou combater o fracasso do neoliberalismo. Esses intelectuais, muitos deles

exilados, considerar-se-ão um tipo de vanguarda política e social importante de

meditação e participação política no cenário espanhol, capaz de questionar a sua

própria cultura e tradições por meio de linhas de pensamento não conclusivas, que

caracterizam o discurso ensaístico. Na Espanha, a filosofia não está em sistemas

filosóficos, mas na arte. Muitos dos escritores daquela época eram amigos e as

tertúlias realizadas funcionavam como uma instituição para-literária, que tinha

grande valor histórico e artístico, cuja liderança determinava os ideais de todo o

grupo.

Aproveitando-nos dos estudos de Ulrich Grumbrecht (2001, p.9-12),

podemos dizer que a noção do trágico, na forma de um gênero dentro da literatura,

apresenta algumas afinidades com a cultura espanhola em períodos decisivos de

sua história. De fato, as grandes manifestações da cultura ocidental da tragédia

emergiram de uma situação política, cultural e religiosa específica, porquanto o

trágico abarca um sentido extremamente sintomatológico. Por isso, é necessário

analisar esse conceito na cultura ocidental moderna. A experiência do tempo como

trágica requer um estado de espírito em que os conflitos tenham um reflexo

atemorizador em sua vida imediata.

Em um tempo onde a razão queria instalar-se completamente na realidade

humana, se pôde vislumbrar que os acontecimentos históricos arrasaram o delírio

da modernidade e, ainda mais, constatou-se que a ineficiência da racionalidade

pura indicava o fracasso do próprio homem, o qual, acatando a uma diretriz agora

não mais simplesmente histórica, mas também filosófica tenta recuperar-se da

situação de perda pelo uso da palavra ficcional, que transcende a destruição e pode

construir outro porvir. Essa maneira que o sujeito encontra de contemplar o seu

próprio espírito conduz-lhe à surpresa de uma verdade, a uma descoberta de

conceitos tão somente subjetivos, pessoais, cujo valor, em primeira instância,

estará estreitamente relacionado com o indivíduo revelado, com o qual se pode

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começar a viver e a se expressar novamente de modo particular. É possível que a

busca da verdade parta de um estado romântico intelectual de solidão, no entanto,

desemboca em um encontro com uma comunidade, com os outros que se é e com

os quais dialoga e divide suas inquietações.

A constatação de que a vida precisa ser ilustrada por ideias ou conceitos

acalma as tensões da alma humana, livrando-a das trevas da irreflexão e elevando-

a a um nível de sagrado: “En la incertidumbre que es la vida, los conceptos son

límites en que encerramos las cosas, zonas de seguridad en la sorpresa continua de

los acontecimientos.” (ZAMBRANO, M., 1937, p.13) Conforme mencionamos

antes, segundo María Zambrano, ao contrário dos outros povos europeus, os

espanhóis estiveram ‘carentes de ideias’ e, por isso, fundaram padrões

extremamente rígidos para o entendimento do mundo. Como crítica à estupidez da

guerra civil espanhola, a autora indaga-se sobre como pode um povo com tantas

qualidades ficar privado, em sua vida quotidiana, do poder do discernimento

intelectual, que combate o negro sentimento da angústia. O saber não é um

privilégio de poucos que podem tê-lo, mas um movimento importante para que a

vida não se esgote inutilmente. María Zambrano discute os resultados que a forma

de pensar a sua própria cultura proporcionou à vida e ao povo espanhol. Entre as

principais consequências, está o carácter dogmático característico do pensamento

espanhol desde a Contra-reforma. Para o surgimento de ideias, a ensaísta coloca

como imperativo a associação entre vida e pensamento com o objetivo de construir

realidades mais transparentes e mais poeticamente racionais e humanas.

[…] el pensamiento es función necesaria de la vida, se produce por una íntima necesidad que el hombre tiene de ver, siquiera sea en grado mínimo, con qué tiene que habérselas, por ser la vida algo que tenemos que hacernos y no regalo cumplido y acabado, por estar rodeada la misteriosa soledad de cada uno, de cosas y aconteceres que no sabe lo que son, y por haber destrucción, muerte y sinrazón, es necesario –y hoy más que nunca– el pensamiento. (ibidem, p.14)

A forma de conhecimento desenvolvida pelo espanhol durante séculos

distanciava-se da que fluía nos ambientes do saber clássico e filosófico dos outros

países da Europa. Dentro do contexto da modernidade, esta disparidade

concatenava perfeitamente com a conturbada situação social do país e a imagem de

êxito e prosperidade do sistema capitalista em plena expansão pelo mundo, que

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observava com menosprezo o atraso da vida espanhola, embora esta fizesse parte

da cultura do Ocidente. Frente à circunstância de isolamento cultural da Espanha

com relação à Europa e na aparente carência de conceitos e ideias para reencontrar

e compreender o passado de toda uma nação era imprescindível, para a escritora,

descobrir as origens da selvageria irracional que havia provocado uma bárbara

guerra civil. O crescimento da decadência política na Espanha, afirma María

Zambrano, provocou um afastamento dos valores culturais em ebulição no restante

do continente europeu. Nesse cenário de paralisia cultural, surge um forte sistema

dogmático espanhol, quase sagrado, sobre certos conceitos como a honra, a

religião, a unidade nacional, a monarquia, a mistificação do passado, a forma de

ser da Espanha e do espanhol. Ana Bundgard sustenta que

Desde el momento en que se inicia la decadencia del Estado español no habría existido en el país un pensamiento capaz de desarticular el dogmatismo de la Iglesia que en colaboración con una Monarquía absolutista y unitaria había desintegrado paulatinamente a la sociedad desde los tiempos de los Reyes Católicos hasta el siglo XX. (BUNDGARD, A., 2000, p.308)

Diante desse panorama, torna-se mais lógico pensar que a história

espanhola houvesse se diferenciado por um alto grau de misticismo em

contraposição à uma não oportunidade de se oferecer como um objeto de

conhecimento sistemático e filosófico puramente racional. Tais temas tornam-se

cruciais dentro da história do pensamento hispânico e acabam refletindo um

determinado sentimento niilista vigente, que exprimia um contraste entre a

verdadeira vontade dos espanhóis e a sua circunstância. Para María Zambrano,

essa situação de enfraquecimento político e evidentemente cultural era

extremamente preocupante e grave, na medida em que ocasionou uma forte

segregação entre as classes dominantes, segundo a autora, responsáveis por

congelar o pensamento e por fazer fracassar o estado espanhol e o povo, que, em

sua grande maioria, inconscientemente, acabou tanto realizando o ideário político

do governo, como também sofrendo as suas perversas consequências. Essa

mencionada falta de ideias dificultou ao povo espanhol examinar analiticamente a

sua própria história, o que também impediu que se refletisse suficientemente sobre

a colocação histórica e cultural da Espanha à margem da Europa.

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Mientras Europa creaba los grandes sistemas filosóficos desde Descartes a

Hegel, con sus consecuencias; mientras descubría los grandes principios del conocimiento científico de la naturaleza desde Galileo y Newton a la física de la Relatividad, el español, salvo originalísimas excepciones individuales, se nutría de otros incógnitos, misteriosos manantiales de saber que nada tenían que ver con esta magnificiencia teórica, como nada o apenas nada tenía que ver su mísera vida económica con el esplendor del moderno capitalismo. (ZAMBRANO, M., 1937, p.15)

Faltou a consciência de que o olhar pretérito é essencial para a

compreensão do seu próprio ser e para verificar em que momentos acertou ou se

equivocou. Para María Zambrano, refletir sobre o passado é condição

indispensável para a análise do presente e do futuro da Espanha; é fundamental

para entender a sua forma de construir o conhecimento. Há certa atitude serena ou

madura do sujeito quando, diante do trágico, mostra-se em relação ao destino ou

ao inevitável no que concerne à sua tragédia pessoal, histórica e cultural. A

tragédia ocidental floresceu no momento em que o equilíbrio de uma visão

objetiva racional do mundo chocou-se com uma cultura moderna, na qual

imperava uma cultura da subjetividade. Dentro da sociedade moderna, segundo

Gumbrecht (2001, pp.15, 16), há elementos ‘desparadoxificadores’, que amenizam

ou tentam resolver esses conflitos dentro do mercado capitalista e midiático das

relações financeiras e comerciais.

O único mal ainda irremediável e limitador da ação humana, sustenta

Grumbrecht (ibidem, p.16), é a morte, sobre isso já falava Miguel de Unamuno na

transição do século XIX para o século XX. A morte é o que nos causa pavor e dela

queremos fugir ou retardar a todo custo em um sentimento tragicofóbico inerente a

nosso estar no mundo, levando-se em consideração que somos tragicofílicos, na

medida em que somos também filhos da tragédia do pecado dentro da formação

ocidental da filosofia cristã. Nesse sentido, o sentimento do trágico inicia no nosso

nascimento, permeia nossa vida em diversos instantes e está mais do que presente

em nosso fim. A vida do homem segue o esquema do início, meio e fim trágico, o

qual apresenta relação com a ideia de fracasso, como um sentimento não de

destruição irrevogável, mas sim como uma oportunidade de reflexão filosófica, o

que se torna uma oportunidade também de subir ao palco e fazer de si, como os

ciclos de vida e de morte, também um espetáculo, do qual devemos tirar o melhor

proveito e prazer, já que sua situação é concreta e irremediável. Ao longo de toda a

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história, o fascínio e a repulsa pela morte, pela tragédia e pelo fracasso são

inegáveis. Muitas vezes, torcemos para que isso aconteça em um movimento

interior de catarse de nossos próprios medos. O pensamento sobre o fracasso é um

valor intelectual e filosófico para María Zambrano, como uma maneira de lidar

com o que a aterroriza e a faz sofrer como escritora e intelectual e como uma

mulher espanhola durante um período de guerra em seu país ao expor o seu

pensamento em relação às suas próprias tragédias e às suas próprias mortes, bem

como as de seu povo com uma intenção estética e ética responsável.

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5. DIÁLOGOS COM A TRADIÇÃO ESPANHOLA

El Ingenioso Don Quijote de la Mancha de Miguel de Cervantes, desde a

publicação de sua primeira parte em 1605, foi merecedor de uma série de estudos e

críticas literárias. María Zambrano, como uma autora clássica e erudita, também

criou textos sobre esse personagem espanhol. Em Hora de España, em 1937, a

ensaísta espanhola escreve “La reforma del entendimiento español”, que utiliza, na

sua segunda parte, a figura de dom Quixote para refletir, do mesmo modo, sobre a

sua história e seu povo. Segundo podemos perceber, esse é o primeiro ensaio em

que María Zambrano decide abordar a figura ficcional de dom Quixote ao lado da

importância e do sentido dessa obra de Miguel de Cervantes, como uma metonímia

simbólica do homem espanhol. Também em España, sueño y verdad, obra

publicada em 1965, a autora discute o personagem criado por Miguel de

Cervantes. Se dom Quixote foi e é um mito exaustivamente alvo de inúmeras

interpretações, por que motivo María Zambrano, da mesma maneira, o retoma e

escreve ensaios sobre o personagem cervantino? Que relação pretende estabelecer

entre a sua ensaística e a figura de dom Quixote? O que significa esse personagem

para uma escritora espanhola do século XX, que, como outros autores, lê esta obra

de Cervantes séculos após a sua primeira edição?

As reflexões que estabelece María Zambrano com o mito espanhol de dom

Quixote revelam a importância que este inestimável legado literário possui na

criação ensaística da escritora espanhola. Repensar a tradição é empreender um

compromisso com a vida histórica de um povo, que busca, em seus alicerces mais

vigorosos, reconstituir o sólido amparo de sua existência. Na abordagem filo-

poética zambraniana, Cervantes e outras personalidades da literatura espanhola,

como Galdós, Antonio Machado e Pablo Neruda integram, de modo diverso, mas

inter-relacionado, uma forma de interpretar e reagir a um tempo responsável e

vítima da violência, do conformismo, do sonho, do delírio e do fracasso. Ao ler e

interpretar Dom Quixote, María Zambrano consegue visitar autores importantes

da tradição literária espanhola como Ortega e Unamuno, que também realizam

suas leituras sobre esse personagem de vulto universal, mas que, para a nação

espanhola, adquire uma significação emblemática totalmente particular e especial.

Essa referência persistente aos autores centrais da literatura espanhola colabora,

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em María Zambrano, obviamente, com a construção de seu processo de

conhecimento, que vê, por exemplo, em dom Quixote, uma das faces do homem

espanhol, cujas angústias e sonhos espirituais configuram a sua (in)consciência

primordial. Juntamente ao estudo de uma série de autores espanhóis, surge como

tema paralelo a importância do romance como veículo de socialização de crenças

dentro do mundo ocidental e como um modo de descifrar o homem e a vida do

espanhol com todas as suas esperanças, acertos e desajustes. Definitivamente, ao

lado de Galdós, Cervantes aparece como um dos mais proeminentes romancistas

espanhóis.

5.1. Cervantes

Como observamos anteriormente, na primeira parte de “La reforma del

entendimiento español”, María Zambrano disserta sobre como as circunstâncias do

malogrado país se articulam com a falta da reconstrução de uma filosofia própria,

que expressasse as vicissitudes da história espanhola. A autora malaguenha utiliza,

de forma introdutória, esse pensamento com o intuito de apresentar o fracasso do

estado espanhol e da vida espanhola como temática central do seu ensaio que

sustentará a sua leitura da figura de dom Quixote e da importância do romance

como gênero literário para determinados momentos da história: “Ni la filosofia ni

el Estado están basados en el fracaso humano como lo está la novela. Por eso, tenía

que ser la novela para los españoles lo que la filosofia para Europa.”

(ZAMBRANO, M., 1937, p.20) O que realmente chama a atenção, reiteramos, é

como o fracasso do estado espanhol e da vida espanhola chocam-se contra uma

nova época de civilização que se contrói na Europa. Nesse texto, o fato da ensaísta

lançar mão de um símbolo nacional, como o de Cervantes e a figura de dom

Quixote, deixa-nos entrever, na sua escritura, contundentes reminescências de uma

consolidada cultura literária espanhola representada por autores como Unamuno e

Ortega y Gasset, que, como já declaramos, muito influenciaram o pensamento da

autora, no sentido de cultivar uma sensibilidade aguçada, no que diz respeito à

existência angustiada, combativa e consciente do homem no mundo.

Em “La reforma del entendimiento español”, as reflexões de María

Zambrano giram em torno do romance moderno como gênero artístico, de Miguel

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de Cervantes como escritor e de dom Quixote como um personagem de ficção que

encarna determinados perfis da própria realidade espanhola. Para a autora, a figura

de dom Quixote, como um ser ficcional romanesco, é perfeita para simbolizar o

povo espanhol e, nela, realmente, o povo espanhol deveria buscar apoio e

exemplo, já que, em 1937, data de publicação do ensaio, os espanhóis lutavam

bravamente na guerra civil. O objetivo de María Zambrano era demonstrar que em

virtude do absolutismo político e ideológico imperante na Espanha durante tantos

séculos, o romance, e não a filosofia, como no resto da Europa, foi o meio pelo

qual o país pôde desempenhar o seu pensamento crítico. Assim, a não realização

da reforma do entendimento espanhol através do questionamento do estado por

seus próprios membros ou por um pensador político ou, ainda, por filósofos não

ligados à criação literária fez com que houvesse um rompimento das premissas

orientadoras do governo e da vontade geral do povo, originando o período de

guerra civil. A carência da reforma do entendimento espanhol, ou seja, dos

pressupostos ideológicos pátrios, resultou na disseminação original do pensamento

do país no âmbito do romance e dom Quixote, exemplo magnífico de ser humano,

ocupou o restrito espaço ficcional. Para entender os avatares dramáticos

provocados pela guerra civil espanhola, María Zambrano acreditava que o

romance de Cervantes aparecia como uma herança cultural espanhola sem par, que

poderia explicar a questão não ‘reformada’ ou ‘vencida’ do fracasso espanhol,

como se fosse uma verdadeira teoria filosófica. A diferença é que o romance não

está preocupado em encontrar respostas ou soluções aos problemas como a

filosofia; somente vive o fracasso e o desnuda.

Para a autora, muitos romances espanhóis estão baseados na noção do

fracasso humano e, por isso, conseguem criar um verdadeiro sistema de ideias no

nível da prestigiosa moderna filosofia européia. Na verdade, enquanto a religião ou

a filosofía pretendem restaurar o homem e o cosmos mediante a fé, o romance

nada pretende restabelecer, pois vislumbra o mundo tal como é: como um fracasso

histórico dentro da verossimilhança literaria.

Supone la novela una riqueza humana mucho mayor que la Filosofía, porque supone que algo está ahí, que algo persiste en el fracaso; el novelista no construye ni añade nada a sus personajes, no reforma la vida, mientras el filósofo la reforma, creando sobre la vida espontánea, una vida según pensamientos, una vida creada,

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sistematizada. La novela acepta al hombre, tal y como es en su fracaso, mientras la Filosofía avanza sola, sin supuestos. (ibidem, p.21)

Por meio de uma reinterpretação da tradição cultural da Espanha, María

Zambrano descobre, em dom Quixote, uma forma ética para a convivência, ideal

importantíssimo para o povo espanhol submergido na mais profunda crise histórica

na guerra civil. Esse saber conviver eticamente abarca a consciência da caridade,

da fraternidade, do sentimento solidário e de confiança, que se identificam na

relação estabelecida entre dom Quixote e Sancho Pança. Se a autora defende que

dom Quixote traduz um modelo que deveria seguir o povo espanhol, ao mesmo

tempo, assegura que, como o personagem cervantino, o povo espanhol é

responsável por reerguer social e espiritualmente o seu próprio país. Esse

pensamento denota um raciocínio extremamente natural se levarmos em

consideração que María Zambrano é uma intelectual da República, que crê na

força, por que não dizer, mística do popular.

O quixotismo, na verdade, representa uma religião do povo espanhol e é

específico da cultura espanhola, porque inclui a aceitação e a confiança em crenças

que retratam o cenário da comédia trágica contemporânea, onde a dúvida e o não

dogmático estão presentes em formas de expressão literária, como o romance e o

ensaio com o intuito de transcender o senso comum e marcar uma identidade

tipicamente espanhola, na qual a luta quixotesca define-se por persistir na batalha

embora se saiba que irá perder.

Para María Zambrano, o pensamento espanhol, no lugar de estar presente

na Filosofia, encontra espaço na literatura, mais precisamente no romance desde a

obra cervantina até a galdosiana, sem mencionar a importante influencia da

picaresca. A queda do Estado republicano espanhol e o estancamento do

pensamento filosófico pela intolerância religiosa e humanista não tornaram

possível uma reforma do entendimento do homem e de suas instituições. Por essa

razão, dom Quixote não fala do seu tempo, mas explora a condição de existência

de outro tempo, da Idade Média e mostra em sua anacronia uma quebra da

sociedade espanhola. E é nesse universo ficcional-real do fracasso que Cervantes

desfila a imagen encantadora e idealista, mas esquálida, sonhadora, ridícula e

derrotada do personagem principal como uma metonímia do povo espanhol. Dom

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Quixote é a expressão máxima da figura do outro, pois é, com as características de

um herói às avessas, aquele que faz tudo pelo próximo para salvá-lo de uma

suposta perdição, quando quem está perdido no meio de um caos presente e em

solidão em seu mundo é ele mesmo. O personagem encarna o homem falho,

claudicante e sofredor, que se recupera constantemente do fracasso e enfrenta a

vida novamente com os seus dinamismos. Dom Quixote traduz também o espanhol

que está ainda a favor do humano, porque confia, sobretudo, no homem, embora

integre uma sociedade egoísta e cruel, aonde um se superpõe ao seu próximo

sucumbindo a sentimentos nada nobres e ‘guerreando’ por interesses obscuros:

La nobleza de Don Quijote presupone todo lo contrario; él lleva clara e inequívoca la noción del semejante en el centro de su espíritu; está solo en su empeño, pero esencialmente acompañado por lo mejor de cada hombre que vive en él. Es la nobleza esencial del hombre lo que Don Quijote cree y crea, la mutua confianza y reconocimiento. (ibid., p.23)

Talvez a dom Quixote, como também ao homem espanhol,

verdadeiramente, lhe houvesse feito falta organizar o labirinto de seus

consolidados dogmas, a fim de reformar também profundamente a sua forma de

pensar. Mas isto, como pensa María Zambrano, era um avanço intelectual que a

Espanha provavelmente não se teria permitido, ao contrario do que ocorria na

Europa. Por outro prisma, o fracasso não é totalmente negativo, pois com a perda

evolui o homem. Os desastrosos acontecimentos pelos quais passou o povo

espanhol serviram de preparação para o enfrentamento de outros momentos bons e

maus, benditos e infames. No âmbito literário, María Zambrano é um dos

escritores que verifica a situação trágica do homem dentro da modernidade por

meio da ação da palabra que lhe dá um testemunho de valor autêntico.

Nuestro fracaso al no hacer una reforma, la reforma de pensamiento y de Estado que necesitábamos, hizo replegarse a nuestro más claro entendimiento a la novela y a nuestro mejor modelo de hombre, quedarse en ente de ficción. De ahí deriva la situación de cárcel y angustia en que cada vez nos hemos ido encontrando los españoles, en un espacio que se empequeñecía por momentos y en el que enloquecían nuestros ímpetus. Los espacios del mundo, en vez de estarnos abiertos, se convertían en muros, altos muros contra los que rebotaba nuestro deseo, que se solidificaba en angustia. (ibid., p.24)

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Zambrano reflete toda a imagem espectral do homem moderno manifestada

desde a polêmica criação literária da geração de 98: a angústia e o fracasso do

sujeito que procura olhar-se a si mesmo, desgostoso dos novos caminhos

percorridos pelas contingências da sua atualidade, como um dom Quixote

resistente ao que não pode aceitar e fiel às suas crenças. Por outro lado, o

sentimento do fracasso suscita a vontade de ser algo mais além da própria

condição. Em fim, o homem trágico espanhol encontra-se diante de uma feroz

encruzilhada: o de seguir adiante com a sabedoria de que tem um inegável passado

e que necessitará conviver com os frutos de tal desastre a fim de refazer as suas

relações humanas e sociais ou simplesmente acabará como um personagem de

livro, como uma sedutora, mas, no final das contas, uma pura imagem de ficção.

De fato, se pensarmos, de outro ponto de vista sobre essa mesma questão,

poderemos deduzir que os seres da ficção e da realidade são os mesmos, na medida

em que são frutos da imaginação. Posso dizer que eu sou o que me imagino, o que

nos leva a perceber que tudo está no parâmetro de como nos percebemos a nós

mesmos. A verdade é a inexistência de verdades; tudo são constructos, ou seja,

formas de organizar os pensamentos. Se compreendermos que toda representação é

uma invenção, é uma operação totalmente intelectualizada, entenderemos também

que, então, uma verdade vale como outra.

Parece-nos que María Zambrano, em 1937, analisando os desabores que a

sociedade espanhola estava enfrentando com o sofrido exílio da inteligência e com

a cruenta revolução, era capaz de compreender que o mundo sempre podia superar

os seus próprios paradigmas, flutuando entre universos distintos de realidade e

ficção, sem que um âmbito pudesse prevalecer valorativamente sobre o outro.

Realismo e idealismo configuram tendências que movem a escritura e o homem

dentro da sua existência no tempo. Recorrer ao passado engloba tanto o desejo de

vislumbrar a realidade como também de contemplar o ideal. Ambos constituem o

presente e revelam ao homem quem ele é a partir do que ignora, teme e aspira. Em

virtude da carência de um sistema filosófico sistemático dentro da cultura

espanhola, o homem espanhol crê que, não por meio de uma razão tão somente

pura, mas, sobretudo, através de uma razão poética, na sua literatura, é possível

compreender de que maneira se estabelecem e se alteram as relações entre o

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indivíduo e a sociedade da qual faz parte. Os personagens cervantinos e

galdosianos conseguiram transcender a crítica rigorosamente literária para contar a

história de um povo. Em Dom Quixote, Cervantes cria um personagem ambíguo

tragicômico dentro de um mundo repleto de paradoxos e, da mesma forma,

tragicômico. Para a filosofia zambraniana, acreditamos que a figura de dom

Quixote é muito mais trágica do que cômica, já que, ironicamente, utiliza, na

maioria das vezes, a sua suficiência para fazer o que sente vontade e para defender

os seus valores, sendo capaz de abrir um ‘horizonte de liberalismo’ de múltiplas

perspectivas, cujos reflexos recaem principalmente no personagem de seu

escudeiro. Assim como Sancho, dom Quixote, é, inegavelmente, um grande ícone

do individualismo, que, por querer ser alguém diferente, sofre os revesses e os

fracassos das próprias escolhas. Se considerarmos que dom Quixote se confunde

com o seu próprio sonho e vive dentro de um romance o seu ideal, sem ser capaz

de se imaginar dentro do real ou, pelo menos, fora do mundo que criou para ele

mesmo, podemos afirmar que é no embate entre o ser que é e o ser que se atribui o

personagem de Cervantes onde reside a tragédia do homem moderno e também a

tragédia de toda uma vida, que, respeitando uma interpretação possível, pode ser a

espanhola. No podríamos dudar los españoles de que la figura de don Quijote de la

Mancha sea nuestro más claro mito, lo más cercano a la imagen sagrada. Lo tiene todo: fortuna literaria, forma plástica, de tan estilizado es casi un signo totémico, ha nacido en la Mancha, en esa tierra que, entre todas las que integran “la piel de toro”, presenta más el estigma de lo sagrado. (ZAMBRANO, M., 1994a, p.17)

A evasão de dom Quixote do real ou de uma das suas realidades é uma

maneira de criticar o exclusivismo do racionalismo e a perversidade da história. A

tragédia que o personagem dom Quixote representa é a de, dentro do real

cotidiano, racional e histórico, não possuir outras possibilidades de ser, embora o

sonho esteja sempre presente no plano da vivência diária na forma do herói, do

mito, do ilimitado, do triunfo, da superação do divino e de diversas transgressões

do que é convencional. Ao mesmo tempo em que o sonho liberta dom Quixote,

torna-o prisioneiro da solidão de um mundo que é somente seu, pois o personagem

e o seu sonho são um único, na medida em que a figura literária cervantina traduz

o homem que não consegue existir sem o dilema do seu projeto. Assim é o

espanhol diante da guerra, do drama de ser e da Espanha. Raquel Azún (1987,

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p.115) declara que esse estado de consciência de dom Quixote quanto às suas

utopias requeria o amparo de acreditar no encantamento do mundo, na sua ilusão.

No entanto, o desejo justificado de se proteger da frustração do não ser cobrava os

seus dividendos através da alienação e do rechazo social. Do ponto de vista de

María Zambrano, a atitude de Cervantes ao transformar a vida do personagem dom

Quixote em romance nos alerta sobre a tragédia que é a fidelidade ao sonho, que

pode nos trair e abandonar como a crença em um Deus, que não se conhece, mas

que se adora e confia dentro de uma poderosa suposição criativa. A relação

existente entre o personagem romanceado do livro e o homem moderno é patente,

deixando transparente a vulnerabilidade do seu trágico viver-ser-existir.

La figura de Don Quijote, portadora del ancestral sueño de la libertad encadenada, manifiesta el conflicto de ser hombre en la historia, contra ella, a través de ella y aún más allá de ella. Y aparece revelada por su autor en el momento en el que la historia de España cae sobre el hombre español, cansado ya de ella, en que por no reconocerse en ella, se va a retirar un momento después, estigmatizado, entrando en su derrota para limpiarse y purgar tanta victoria. Es signo y clave de que, sea cual fuere esta historia, no hemos tenido vocación de vencer. Pero esta historia no se acaba. (ibidem, p.42)

Segundo María Zambrano, a história não se acaba, pois a esperança nasce

de novo e o homem, refletido na figura de dom Quixote, sempre terá uma

Dulcinéia a quem salvar e proteger, sacrificando a própria vida. Exatamente nessa

perspectiva, o personagem de dom Quixote e o homem moderno conseguem ou

podem lograr a sua salvação. É precisamente nesse ângulo de visão que superam o

individualismo, que tanto os distingue. A vontade de manter a existência do outro

lhes propicia sair do refúgio egocêntrico para obrar de maneira altruística em favor

do próximo. De certo modo, essa atitude ajuda ao personagem cervantino a sair da

solidão do seu próprio trágico mundo romanesco. Embora em grande parte de suas

desventuras coincida com o fracasso, dom Quixote vence o isolamento e a

angústia, pois, para ele, verdadeiramente é quem deseja ser: este é, de fato, o seu

sonho, a sua esperança e a sua tragédia. Raquel Azún profere que “Alonso

Quijano, desamado y solitario, había sido expresión de la decadencia y de la ruina,

de una España real en la que los protagonistas, esos seres anónimos, sólo eran ya

su propia novelería.” (1987, p.116)

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Se pensarmos que o povo espanhol refugiou-se em um querer ser,

transmutando a sua própria história em romance, em literatura, podemos perceber

que, como dom Quixote, padeceu também o trágico sentimento de não ser capaz

de acreditar em nada que não fosse a sua própria ilusão à margem da realidade.

Tanto um como outro, cativo de seus sonhos, preferiu viver outra(s) história(s)

diferente(s) da(s) que a sociedade apresenta. Dom Quixote reflete, assim, o ser

espanhol, que sobrevive à sua contingência por meio da loucura. O seu egoísmo ou

individualismo não é senão um traço peculiar do romance moderno e da

modernidade, que visa exaltar o caráter subjetivo essencial do ser humano. Na

figura de dom Quixote, está representada a escritura do eu, a vida individual, que

se sobressai, apesar da cultura de massas, do senso comum na publicidade do ser e

do ter e da imposição da necessidade de se assemelhar ao que deseja ser a

coletividade. Para criticar o seu próprio tempo, dom Quixote optou pelo sonho,

pela evasão, pela loucura, pelo delírio salvador ou libertador da insatisfação

presente. Seguindo essa perspectiva, podemos perguntar também se, em dom

Quixote, vemos a crítica ao racionalismo ou ele pode ser contemplado sob outras

perspectivas? O delírio ou o sonho seriam uma forma racional não convencional

de entender o real? O personagem não expressaria a visão subjetiva da pessoa, do

indivíduo e, por isso, precisaria ser respeitado? Dentro de um mundo moderno,

onde nos chocamos contraditoriamente com a intolerância às diferenças, ao

fracasso, à perda e à derrota, dom Quixote não representaria a necessidade de

aceitar e tolerar o diferente? Ora, será que no nosso mundo não deveria existir

também espaço para a derrota ou o fracasso como uma forma de alcançar o

crescimento? O fracasso não constitui parte indissociável da vida? E se realmente

é assim, por que a modernidade ou o homem de todos os tempos têm tanta

dificuldade de assimilá-lo? Efetivamente, o que fazem María Zambrano e outros

autores, como Unamuno e Ortega y Gasset, é ler dom Quixote de uma perspectiva

bastante singular, entendendo o seu fracasso ou o seu sucesso de maneiras

distintas.

A tragédia moderna usufrui do conceito do fracasso e da derrota, o que a

caracteriza em tom peculiar, na medida em que a tragédia clássica constitui-se sob

pilares de superação e vitória diante das adversidades e sofrimentos quotianos.

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Dom Quixote surge, exatamente, como um ser de ficção, que espelha o real, na

proporção em que vivencia as suas experiências no enfrentamento a uma

contingência histórica não disponível à concretização dos seus anseios no plano da

realidade. Essa é a situação histórica do povo espanhol daquele momento.

Conforme assevera Ana Bundgard, “La «pura voluntad» del personaje cervantino

no encuentra objeto en el mundo que le rodea.” (BUNDGARD, A., 2000, p.310)

Desse modo, observamos que dom Quixote, como um ser que vai forjando a

própria personalidade de acordo com a contraditoriedade e com a violência

decepcionante da realidade vivida, delatava o fracasso das elites governantes

espanholas do século XVII em total discordância com o objeto da vontade do

povo. A única maneira que dom Quixote tinha para poder realizar a sua vontade de

viver uma vida em favor do bem e da justiça comum, totalmente diferente àquela

que se lhe apresentava, era deixar-se dominar pela loucura. O fracasso de dom

Quixote, como personagem de romance, e do povo espanhol, como seres

pertencentes ao real, reside na ideia de que todos os que queriam uma realidade

distinta daquela época, como María Zambrano, estavam em um patamar de

excepcionalidade ou transcendência, tendo em vista que não se conformavam com

o que a história lhes oferecia. Dom Quixote simboliza, por conseguinte, o homem

em sua perfeição plena, com retidão de princípios morais e nobreza espiritual, que,

deveria servir de exemplo para a construção de uma renovada convivência

humana, cujos sustentáculos se situariam na reformulação do estado que pudesse

harmonizar a verdadeira vocação do povo, com o objetivo de superar o fracasso do

personagem cervantino, que, para Ana Bundgard, representavam os espanhóis até

os fins do século XIX. A pesquisadora opina que:

En el marco de la que aquí llamamos teoría de la «convivencia», don Quijote como personaje de ficción y ente de novela se encuentra situado en el mismo plano de realidad del pueblo español. En la moral de fraternidad y solidaridad del ente de ficción cervantino halla Zambrano una alternativa «real» al resentimiento que había ido aislando y deshumanizando al hombre hasta hacerle perder la «medida de lo humano», la convivencia entre don Quijote y Sancho era ejemplo de un nuevo humanismo, por así decirlo. (ibidem, p.311)

O vocábulo ‘reforma’ quer dizer dar algum tipo de resposta ao tempo em

que se vive. Somente dessa forma, se poderá entender a identidade como uma

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relação de conscientização e criação com o passado que não é de nenhuma maneira

estática, entretanto, se movimenta e se reconstrói pela força da expressão humana

na arte e na vida. El problema de la identidad se encuentra entonces formulado, en un primer

momento, por la relación que se pueda mantener con el pasado: un pasado olvidado o una tradición no puestos al día, generadores de un sentimiento de desarraigo, de estar habitando un desierto ante la falta de perspectivas y horizontes, ahí donde todo ha callado o se mantiene petrificado. La solución al dilema consistirá entonces en salir del pasado-pesadilla para encontrar su verdad, haciendo posible que la tradición reencarne en el presente. Volver a vivir en la historia. (SÁNCHEZ BENÍTEZ, 2002, p. 95)

Para a autora, o gesto (contra)reformista mais sobressalente que houve na

Espanha foi a obra-ação de Inácio de Loyola pelo método e pelo racionalismo,

embora deixe pouco espaço a outros pensamentos ou ideias divergentes da

convicção religiosa que professou. A sua ‘mecânica da santidade’ é

impressionante, pois defende que a vontade humana, se for orientada de

determinado modo, é capaz de ser forjada e, assim, reformada em certo sentido, a

partir de uma relação de bem-estar com Deus, assegurada pela retidão de

pensamentos e obras, a qual será recompensada com a glória da vida eterna nos

céus. Como a libertação depende do sujeito, a isto se chama salvação por obra do

método e não pela graça divina, de acordo com María Zambrano.

De qualquer maneira, uma reforma que ajude ao homem espanhol a

compreender-se, apresentar as suas queixas e desejos e que favoreça a convivência

com os seus irmãos é imperativa. A imperfeição do método pode ser um mal

positivo, já que se baseia em discutir as debilidades humanas dentro de uma

realidade frequentemente muito diferente para cada um, o que lhe confere, por

outra parte, um significado e uma oportunidade plural de enunciação e recepção. A

autora reconhece haver um afastamento entre a vida, geralmente agitada, confusa e

sistemática, e a verdade, que, ao contrario, independe das doutrinas racionais. A

literatura levanta-se como uma ponte que consegue reunir novamente verdade e

vida, razão e sentimento, onde se vê florescer uma nova ética moderna, que gera

um horizonte de esperanças, no qual o núcleo fundamental é a pessoa, definida

pela consciência, que se identifica como algo sublime, sagrado, supremo. O que se

constrói na literatura somente pode ocorrer na realidade em um estado

democrático, o qual não se configura como uma profusão de homens ou massa

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global, mas que luta por um desejo maior de humanização da sociedade, onde o

homem possa manter-se como pessoa e possa viver pessoalmente, em toda a sua

idiossincrasia necessária.

“La reforma del entendimiento español” supõe que a vontade é o único

que fica de verdade ante todo tipo de circunstância que apareça de miséria,

destruição, governantes autoritários, políticos não comprometidos com a

população e artimanhas engenhosas para obter ganhos pessoais. O que é essa

vontade? Vontade de mudar, de reformar e construir uma nação nova e de justiça,

respeitando as aspirações do povo espanhol de que o homem confie outra vez em

si mesmo, admitindo a sua fragilidade também racional. A reforma necessitou ser

concretizada no sangue e, se em grande medida, acabou em morte, também criou

vida, vida em um mundo de gente que pensa, quer e realiza como María

Zambrano, vítima de todo o processo de guerra espanhol e uma cidadã espanhola

que, como muitos outros, quis reformar pela pujança da palavra escrita e lida o

pensamento do seu país e do seu povo, não se deixando sucumbir até a sua morte,

como o fascinante personagem romanesco dom Quixote, aos altos e baixos das

circunstâncias. Fracasso? O que é o fracasso? Um mal positivo que serve para

refletir e aprender, antecipação do futuro momento da vitória, o de se ganhar a

vida para si e para o outro. Ao escrever “La reforma del entendimiento español”,

María Zambrano opera um ensaio sobre si mesma e, disto, se compreende que o

sujeito não se basta e deseja alcançar algum tipo de auto-liberação do passado,

com a finalidade de se abrir ao novo e vislumbrar horizontes insuspeitos.

Mais tarde, nos demais textos em que Zambrano voltará a se debruçar

sobre a cultura espanhola e a figura de dom Quixote, como Pensamiento y poesía

en la vida española (1939) e España, sueño y verdad (1965), a autora

malaguenha, conforme a normalidade da evolução do seu pensamento, tratará de

maneira diversa essa temática, que deixará de ser a meditação política sobre o

fracasso do Estado e suas particularidades ideológicas para ceder lugar ao

revestimento poético na abordagem da tradição articulada à uma metafísica do

conhecimento da verdade. Contudo, existe uma assertiva comum inegável de que

tanto o romance de Miguel de Cervantes como a figura de dom Quixote servem

para dar cabida ao fluir do pensamento zambraniano, que, de maneira

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fragmentada, livre e assistemática, apóia o nascimento de uma metafísica

experimental que se sustenta na experiência autobiográfica de cunho confessional.

Dentro do plano da enunciação autoral proposto por Arenas Cruz, é

sugestivo observar, no texto de María Zambrano, que uma das características

fundamentais do ensaio não está no que o autor fale diretamente sobre os

acontecimentos da sua própria vida o tempo todo, mas se manifesta na exposição

pública das suas opiniões particulares, que é o que lhe vai conferir ao discurso um

matiz relativo com relação à experiencia e concederá ao gênero argumentativo um

lugar especial na atualidade moderna.Lo verdaderamente innovador no es [...] el hablar de uno mismo, sino el

subrayar que su juicio, sus experiencias son subjetivas, relativas a su ser concreto, por lo que sólo tienen valor en relación con él y, por tanto, no pretenden reglar a los otros. Desde este punto de vista, lo destacable no es tanto la dimensión ‘confesional’ o autobiográfica del ensayo, sino la relatividad de la perspectiva de una personalidad interesante, que tiñe todo el escrito de su mirada subjetiva. Este rasgo es el responsable de la originalidad y éxito del ensayo como vehículo de expresión en el mundo contemporáneo. (ARENAS CRUZ, M. E., 1997, pp.66, 67)

Com a percepção da envergadura da primeira pessoa do sujeito no

Renascimento, a prática discursiva do ‘eu’ adquiriu, ao longo do tempo, variadas

formas de expressão dentro da literatura e o ensaio foi um dos mais sobressalentes

veículos de comunicação, em função de suas qualidades reflexivas, solitárias, em

ocasiões, filosóficas, em que o sujeito transcende o seu próprio ser e o seu estar no

mundo pela crítica. O ensaio relaciona-se ao momento histórico vivido por ser um

tipo de relato que se atém ao provisório, mas, como mencionamos antes, usufrui de

uma liberdade temática e interpretativa, que responde ao fluxo peculiar da

consciência emocional. É de suma importância, na constituição teórica do ensaio, a

subjetividade da enunciação autoral, na qual o ‘eu’ apresenta-se a si mesmo como

assunto e motivador de argumento. Ligado a esse propósito, há uma tendência a

buscar explicações e a oferecer supostas respostas às indagações de um ‘tú’

moderno, leitor-interlocutor, que solicita incentivos intelectuais cada vez mais

convincentes.

Ao término de “La reforma del entendimiento español”, María Zambrano

compara o romance de Cervantes com algunas obras de Galdós, que abordará em

outro ensaio publicado no ano seguinte em Hora de España, “Misericordia”, o

qual analisaremos a seguir. A autora espanhola refere-se à figura de Fortunata, que

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aparece como um símbolo do espírito espanhol. Em Fortunata, adapta María

Zambrano ou realmente detecta nela algumas características do personagem de

Cervantes, explicando, inclusive que Fortunata consegue ultrapassar a Dom

Quixote por conta da superação do fracasso:

Fortunata, la espléndida hija de Madrid, ejemplo claro de una voluntad coherente, firme y fiel, a la que ningún desastre aparta de sí misma, sobre la que resbalan todos los fracasos sin producir una huella mayor que la de la lluvia en la roca. Insobornable, guarda una idea entre sí que es toda su vida. (ZAMBRANO, M., 1937, p.26)

Zambrano ainda profere que ambos os autores deparam-se com a natureza

espanhola nas classes mais populares.

Desde Cervantes a Galdós, la voluntad española se ha retraído a las capas populares, a la base misma virginal de nuestro pueblo, firme voluntad que ya no sueña con asuntos tan altos como los de Don Quijote, sino que confundida con el instinto es vocación maternal en la divina Fortunata [...] (Ibidem, p.27)

Essa ideia exemplifica a subjetividade com a qual Galdós caracteriza as

suas protagonistas femininas, cuja força para tomar o controle das suas próprias

vidas e criar o seu próprio sonho de futuro é marcante, podendo articular-se com as

peculiaridades da narrativa cervantina quanto à figura ímpar de Dom Quixote.

O que realmente vale registrar é que “La reforma del entendimiento

español” deixou-nos claro que as circunstâncias históricas e políticas dos anos da

guerra civil condicionaram os estudos de María Zambrano sobre Dom Quixote. A

escritora, recriando influências unamunianas e orteguianas, transcende, no nível

estético, as fronteiras entre ficção e realidade e entre história e romance ao

identificar o povo espanhol, que combatia corajosamente na guerra civil, com o

personagem de Cervantes. Na verdade, a visão do real era tão fantasmagórica e

chocante, que, de fato, não é nada difícil pensar que o real era ficção e que a ficção

podia ser real. Na ficção, podia ser encontrado o espaço de realização pessoal e

histórica impossível de se vivenciar dentro da dimensão factual, com um estado

fracassado e um povo relegado à degradação, perplexo diante de uma contingência

adversa.

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5.2. Galdós

Um dos autores que ganha relevo na obra ensaística zambraniana é Benito

Pérez Galdós (1843-1920). Romancista, dramaturgo e cronista espanhol, Galdós

consagra-se como um dos símbolos do romance realista do século XIX e um dos

escritores máximos da literatura espanhola. Em María Zambrano, podemos

detectar, em consideráveis momentos, remissões a Galdós e a algumas de suas

obras. Além de escrever sobre Galdós em Hora de España, María Zambrano leva

a cabo estudos sobre o escritor canário em La España de Galdós (1960) e em

España, sueño y verdad (1965). Em Hora de España, Zambrano dedica um

ensaio relativamente extenso a “Misericordia” (Valência-Barcelona, n.º XXI,

setembro 1938, pp. 29-52), obra de Galdós, publicada em 1897, que leva o leitor às

camadas sociais mais desprivilegiadas de Madri naquela época, a qual se opõe a

uma população abastada, que se vê diante de dificuldades econômicas. Galdós,

ícone da literatura clássica espanhola, também vai margear a análise do ser

espanhol em uma época de árduos enfrentamentos sociais e políticos para

sobreviver às contigências que lhe foram impostas pela conflitiva sociedade

finissecular, que tem, como peculiaridade inerente, o sentimento de decadência,

tragédia e fracasso desenvolvido por María Zambrano ao longo de suas obras.

Misericordia aparece como testemunho de uma frustração ideológica proveniente

do fracasso das intenções regeneracionistas da classe média em quem confiava o

autor.

En Misericordia me propuse a descender a las capas ínfimas de la sociedad matritense, describiendo y presentando los tipos más humildes, la suma pobreza, la mendicidad profesional, la vagancia viciosa, la miseria, dolorosa casi siempre, en algunos casos picaresca o criminal y merecedora de corrección. (Edición de Nelson, 1913, con Prefacio del propio Galdós, pp.5-9)

Entre os personagens de destaque, encontramos a criada Benina, que

encarna a exaltação do sentimento de caridade; é sobre ela que se baseia todo o

romance. Em Pensamiento y poesía en la vida española (1939), que reúne

conferências ditadas em La Casa de España no México, em 1939, também

observamos um pequeno capítulo sobre o romance galdosiano, além de referências

ao realismo como origem de uma forma de conhecimento. Mas por que também

revisitar Galdós? O que significa para María Zambrano a recuperação da obra de

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Galdós se a autora se inclui em um grupo de escritores que critica certa

onipotência da tradição e, apesar de considerá-la importante, deseja romper com

seus estigmas representacionais? Outro ponto de sustentação que servirá para

contrabalançar esse estudo está em uma relação à primeira vista completamente

antagônica e impossível, mas que ocorre entre a obra de Galdós e Luis Buñuel

(1900-1983), cineasta espanhol surrealista naturalizado mexicano considerado um

dos mais importantes e originais diretores da história do cinema. Buñuel levou

adiante dois projetos fílmicos baseados na obra de Galdós: Nazarín (1958) e

Tristana (1970). Uma pergunta que nos provoca interesse é qual a viabilidade de

um surrealista como Buñuel ler, com entusiasmo, a um escritor realista como

Galdós, que sofria o que podemos chamar do estigma da língua, na medida em que

por não escrever ou ser escrito em outros idiomas não conseguiu maior

visibilidade? Por que Buñuel, nesse caso, não preferiu filmar a autores também

surrealistas? O próprio Buñuel (2009, p.311) assevera que é a notoriedade de um

país que faz o nome dos grandes escritores. Refere-se à Galdós como um

romancista à altura de Dostoievski, mas, em contrapartida, indaga-se sobre quem

conhece Galdós fora da Espanha.

Para completar o estudo dessa parte, que se centra na figura de Galdós na

obra de María Zambrano e que se sustenta no interesse que suscita esse autor

realista em outros artistas como Buñuel, abordaremos, no próximo capítulo, o

poema “Díptico español” de Luis Cernuda, que, da mesma forma, fala sobre

Galdós. A escolha de Buñuel e Cernuda como reforço e justificativa de que María

Zambrano decide escrever sobre Galdós por considerá-lo importante no espaço

literário espanhol pareceu-nos relevante, pois Zambrano, Buñuel e Cernuda, entre

outros artistas, coincidem no fato de que vivenciaram a situação de espanhóis

exilados no México promovida pelas dificuldades de permanência pacífica e livre

em seu próprio país. Buñuel confessa que:

Tornei-me inclusive cidadão mexicano a partir de 1949. Muitos espanhóis no fim da guerra civil escolheram o México como terra de exílio, entre os quais alguns de meus melhores amigos. Esses espanhóis pertenciam a todas as classes sociais. Havia entre eles operários, mas também escritores e cientistas, que se adaptaram a seu novo país sem muita dificuldade. (BUÑUEL, L., 2009, p.279)

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María Zambrano, ao longo de sua trajetória artística, empenhou-se em

escrever uma série de críticas literárias, remetendo-se a autores tanto espanhóis,

como também estrangeiros, assim como já pudemos observar anteriormente com

alguns trabalhos publicados na Revista de Occidente e em Hora de España que

falavam sobre Hoffmann, Descartes, Cervantes e o próprio Galdós. Dessa forma, é

imprescindível novamente afirmar que a literatura espanhola possui uma presença

contínua dentro da obra zambraniana, funcionando como um rico caudal de

conhecimento que visa atender às necessidades filosóficas e às inquietações mais

íntimas da ensaísta malaguenha. Por meio dessas reflexões, Zambrano procurou

um modo singular de contemplar o homem espanhol como um exemplo das

vicissitudes experimentadas pelo homem moderno de violência, inconformada

resignação, ilusão, sonho e fracasso.

O foco nas figuras centrais da literatura espanhola como Cervantes e

Galdós, tomando como fonte de conhecimento tanto o romance como a poesia

pretende lucubrar sobre as características idiossincráticas de uma cultura particular

e, principalmente, sobre a condição humana. Depois de se aceitar a morte dos

deuses, a literatura assumiu, com ainda mais profundidade, a incumbência de

revelar os ganhos e as derrotas do homem, juntamente às suas esperanças de

salvação não em um além da vida, contudo dentro das contingências de sua própria

existência. O diagnóstico e o desenvolvimento de formas de conhecimento que

possam redimir o ser humano de suas faltas no âmbito do viver físico e terreno é

uma peculiaridade essencial dos tempos modernos. Em Galdós, por exemplo, a

referência à “señá Benina” responde ao propósito de construir uma consciência a

partir da noção de caridade manifestada pela personagem. Como Cervantes e

Galdós escrevem romances e alguns dos seus personagens são analisados por

María Zambrano, poderíamos continuar a nos perguntar então que importância

apresenta o romance dentro do mundo ocidental? Que contribuição oferece para a

compreensão dos fundamentos da vida espanhola e do seu povo? Por que os

personagens escolhidos como matéria literária de reflexão possuem como traço

primordial o desacerto, o sofrimento, a solidão, a frustração? Em função disso,

reconhecemos a alterabilidade de um mundo que se reconstrói sob os escombros

da negação dos deuses, que traziam conforto e segurança aos seres humanos. A fé,

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o idealismo e a racionalidade passam a ser crenças extremamente questionadas e

sobrevivem a diversas críticas e meditações. O regresso ao passado é vital para

compreender a história e conhecer o presente. Na cultura espanhola, a literatura

cumpre esse papel revelador, que expressa uma maneira diferente de ver o mundo:

“la interpretación de nuestra literatura es indispensable. Al no tener pensamiento

filosófico sistemático, el pensar español se ha vertido dispersamente, en la novela,

en la literatura, en la poesía.” (ZAMBRANO, M., 1971, p.293) Como explanamos

antes, diferentemente dos demais países europeus, a cultura espanhola, não

inserida de fato na modernidade, foi desvendando-se distante de qualquer norma

ou sistema dogmático, optando verter seus pensamentos por meio do que María

Zambrano preferirá chamar de “formas sacramentales” (ZAMBRANO, M., 1939,

p.34), ou seja, por meio do romance e da poesia: “Novela y poesía funcionan sin

duda como formas de conocimiento en las que se encuentra el pensamiento

disuelto, disperso, por las que corre el saber sobre los temas esenciales y últimos

sin revestirse de autoridad alguna, sin dogmatizarse, tan libre que puede parecer

extraviado.” (ZAMBRANO, M., 1971, p.272) Em Pensamiento y poesía en la

vida española, lemos também que:

Hemos señalado que la razón, el pensamiento en España, ha funcionado de

bien diferente manera y que por ello España puede ser el tesoro virginal dejado atrás en la crisis del racionalismo europeo. España no ha gozado con plenitud de ese poderío, de ese horizonte. Se nos ha echado en cara muchas veces nuestra pobretería filosófica y así es, si por filosofía se entiende, los grandes sistemas. Mas de nuestra pobretería saldrá nuestra riqueza. (ZAMBRANO, M., 1939, p.26)

A carência de grandes sistemas filosóficos à semelhança dos demais países

europeus e a decadência da vida espanhola na era moderna diferenciaram a forma

de pensar e a cultura da Espanha, embora o país, na visão de María Zambrano

(1939, pp.27, 28), contraditoriamente à margem da modernidade, tenha preparado

o terreno para a sua chegada na Europa com a criação do primeiro Estado

Moderno, com os Reis Católicos, e a expansão do mundo com a descoberta da

América. Além disso, a autora adverte que, em outras épocas, existiram realmente

outros modos de pensamento filosófico não relacionados a sistemas. A filosofia

espanhola distancia-se de qualquer forma abstrata e concentra-se na lírica, na

mística e no romance, enfim, na literatura. Essa ideia da assistematicidade do

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pensamento espanhol e sua presença na literatura é uma noção já desenvolvida

anteriormente por Miguel de Unamuno em Del sentimiento trágico de la vida

(1912).

Pues abrigo cada vez más la convicción de que nuestra filosofía, la filosofía española, está líquida y difusa en nuestra literatura, en nuestra vida, en nuestra acción, en nuestra mística, sobre todo, y no en sistemas filosóficos. Es concreta. ¿Y es que acaso no hay en Goethe, verbigracia, tanta o más filosofía que en Hegel? Las coplas de Jorge Manrique, el Romancero, el Quijote, La vida es sueño, la Subida al Monte Carmelo, implican una intuición del mundo y un concepto de la vida [...]. (UNAMUNO, M., 2008, p.265)

Em Pensamiento y poesía en la vida española, María Zambrano (1939,

pp.31, 32) esclarece que a resistência do pensamento espanhol ao sistema deve-se

a uma não intervenção da violência como nos demais países europeus. A ensaísta

confessa que a filosofia constitui-se de dois elementos primordiais, que precisam

agir juntos: a admiração e a violência. A admiração explica-se como uma

contemplação estática das aparências das coisas, em que o sujeito permanece

conectado a essa realidade que lhe fascina e domina, sendo que daí não nasce o

pensamento. Para que a pergunta surja e se inicie o pensamento, é necessária a

violência, que se constitui precisamente na coragem do ato de indagar, de se

atrever a descobrir a verdadeira natureza das aparências: “a levantar y rasgar los

velos en que aparecen encubiertas las cosas.” (ibidem, p.32) A partir da última

ação do questionamento é que desponta a filosofia, fruto da violência do abandono

da contemplação estática para, por meio da vontade, ou seja, do querer poder

subjugar o real ao sujeito, alcançar outro plano diferente do real com o objetivo de

desvendar o verdadeiro ser das coisas. Nesse sentido, Gómez Blesa afirma que “la

verdad, por tanto, no se ofrece gratuitamente a aquel que la busca; no es

revelación, sino desvelamiento, el triunfo conquistado por el hombre a través de

una dolorosa y continuada tarea reflexiva” (GÓMEZ BLESA, M., 2008, p.118),

embora oculte a soberba e a vaidade do pensador, desejoso de uma supremacia de

posse da totalidade do que é real. Assim, María Zambrano defende que o

pensamento espanhol carece desta violência que funda a reflexão filosófica.

Entretanto, questionamos que se o pensamento espanhol não empreende o

movimento da violência, somente a admiração, como ele poderia ser nomeado,

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então, de pensamento? Essa pergunta não é claramente satisfeita pela autora, o que

nos leva a crer que o pensamento espanhol provém de uma origem diversa, que se

caracteriza pela não unidade, sendo livre, disperso.

España no produce sistemas filosóficos; entre nuestras maravillosas catedrales, ninguna de conceptos; entre tanto formidable castillo de nuestra Castilla, ninguno de pensamientos. No es genio arquitectónico lo que nos falta, no es poder de construcción, de congregar materiales y someterlos a la violencia de un orden. En el terreno del poder también supimos y pudimos–bien que ello entrañe nuestra más grande tragedia–levantar un estado, que es orden y violencia. Solamente en el terreno del pensamiento, la violencia y el orden no fueron aplicados; solamente en el saber renunciamos o no tuvimos nunca este ímpetu de construir grandes conjuntos sometidos a unidad. Podríamos decir que en cuanto al pensamiento fuimos anárquicos, si por anárquico se entiende simplemente lo que la palabra manifiesta: sin poder, sin sometimiento. (ZAMBRANO, M., 1939, p.31)

A falta de um sistema ou método de pensamento europeu tradicional

sinaliza uma maneira diferente do povo espanhol de entender a vida. O romance

realista espanhol, ou melhor, o realismo espanhol consegue esse sentido filosófico

de uma singular forma de pensar, de viver e de se elucidar espanhola longe de

teorias e definições, mas que abarca as mais variadas formas de arte: a literatura, a

pintura, a escultura, nas quais o homem deseja entrar em contato consigo mesmo:

“el realismo, nuestro realismo insobornable, piedra de toque de toda autenticidad

española, no se condensa en ninguna fórmula, no es una teoría.” (ZAMBRANO,

M., 1971, p.277) Na verdade, ele surge a partir de uma concepção genuinamente

vital, que constrói uma peculiar visão de mundo espanhola, que abrange a

totalidade da sua cultura contraposta à uma crítica zambraniana da razão prática do

idealismo filosófico europeu. [...] podemos sacar la raíz profunda de este realismo y verlo así como un

modo de conocimiento, desligado de la voluntad, desligado de toda violencia más o menos precursora del apetito de poder. Esto hace que veamos al realismo español como algo ante todo que no es idealismo, y que no lo es por proceder de otros íntimos orígenes. Idealismo y practicismo no se oponen como miradas superficiales han creído, sino el idealismo es el primer supuesto de la razón práctica. El idealismo en Europa lejos de ser paralizador de la acción, la ha hecho posible en su más alta escala, le ha dado perspectivas ilimitadas, horizonte. (ZAMBRANO, M., 1939, p.42)

Para Zambrano, por ser o realismo ““lo otro” que lo llamado teoría, como

lo diferente e irreductible a sistema” (ibidem, p.43), não podemos significá-lo de

uma manera rígida ou sistemática a fim de não sacrificar a independência de sua

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própria natureza, que mostra a identidade de uma cosmogonia espanhola.

Precisamos levar em consideração que María Zambrano realiza uma interpretação

do realismo diferente da acepção original, que define o termo como nascido na

França e na Inglaterra durante o século XIX, cujo propósito era se referir a uma

corrente literária que atribuía à novela o papel de copiar a realidade tal como se

apresentava. Gómez Blesa (2008, p.122) assevera que mais do que se remeter de

forma precisa à segunda metade do século XIX e ao romance, na Espanha, o

realismo adquiriu uma maior visibilidade, na medida em que passou a caracterizar

o verdadeiro sentido da cultura hispânica, ou seja, a tradição cultural espanhola em

todas as suas manifestações, nas quais se espelham os princípios norteadores tanto

da arte em geral, como também no âmbito concreto do pensamento espanhol. Em

outras palavras, o realismo converteu-se em uma maneira peculiar de vislumbrar a

vida do povo hispânico, o seu estar no mundo e como encara a realidade que

vivencia. Essa crença no realismo como uma forma de ver a vida e o mundo

perseverou, no contexto espanhol, durante muito tempo e condensou as suas

diversas fases culturais, simbolizando, sem dúvida alguma, o espírito de toda a

existência de um povo. O realismo:

Cruza por toda nuestra literatura, hasta por allí donde menos se le creyera entrometido: por la mística y por la lírica. Imprime su huella en nuestra pintura, y da su ritmo a las canciones y lo que es todavía más importante, marca con su ritmo el hablar, el callar de nuestro pueblo en su maravillosa cultura analfabeta, moldea nuestros pueblos, y marca con una huella tan fuerte como difícil de descifrar, todos los resortes íntimos del movimiento y la quietud española. (ZAMBRANO, M., 1939, pp.43, 44)

O espanhol, portanto, como um realista, sente-se extremamente ligado à

realidade e o faz de um modo prazeroso. Nem o conjunto da mística espanhola

afasta-se desse pressuposto de fincar suas raízes no mundo concreto. Como o

conhecimento ofertado pelo realismo não se complica por parâmetros filosóficos,

acadêmicos ou técnicos, sua expressão é simples e acessível a todo homem

espanhol comum por meio de uma forma de conhecimento que é a razão poética

defendida por María Zambrano. É importante compreender que, segundo María

Zambrano, o poeta não é somente aquele que escreve poesia, porém é todo artista

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que, de alguma maneira, trata com o real e, a partir desse contato, estabelece um

modo de conceber a existência. Gómez Blesa adverte que:

La figura del poeta sería la de aquel hombre que, enamorado de la vida, vive apegado a la multiplicidad cambiante de lo real, sin pretender reducirla en nada. Su disposición interior frente a la realidad sería de una absoluta apertura, dejando que lo exterior le invada hasta hacerse morada de todo cuanto habita a su alrededor. (GÓMEZ BLESA, M., 2008, p.126)

Para a cultura espanhola, o tempo aparece como um requisito primordial da

existência, peculiaridade que a distingue de uma prevalência abstrata com relação

à dimensão do tempo característica do pensamento racionalista europeu. A fim de

comprovar essa afirmação, podemos tomar exemplos literários enfáticos como

dom Juan Tenório, o pícaro e as angústias do pensamento unamuniano com

relação a esse correr da vida que vai desembocar na morte, na falência física e

concreta de ‘carne y hueso’. Essa forma particular de pensar resultou, de acordo

com María Zambrano (1939, pp.149, 150), no sentimento da melancolia, uma das

especificidades categóricas mais marcantes da vivência espiritual espanhola. A

melancolia surge em virtude do tempo que se foi e não regressará nunca mais, por

esse tempo perdido e irrecuperável. Isso é muito bem explicado por Gómez Blesa,

quando diz que:

Como buen enamorado de la multiplicidad cambiante de lo real, el español siente nostalgia de todo aquello que el paso del tiempo devora y, por ello, desea la resurrección en la eternidad de todos esos instantes perdidos. De ahí ese sentimiento de pérdida y de derrota ante la vida que encontramos, a veces, en algunos de nuestros literatos por no poder apresar eternamente ese momento fugaz de felicidad y de belleza. (GÓMEZ BLESA, M., 2008, p.128)

María Zambrano defende que é um traço idiossincrático espanhol estar

seduzido por desejos impossíveis que o transcorrer do tempo não pode

proporcionar, mas que, contraditoriamente, muito se luta por essas metas a fim de

salvá-las da pulverização temporal.

O estudo de algumas obras de Galdós justifica o pensamento zambraniano

de identificar a cultura espanhola com o realismo, o que também a afasta de Ortega

y Gasset, pois o autor madrilenho coloca-se contrário a caracterizar a tradição

espanhola com os pressupostos realistas. Dámaso Alonso (1933, pp.77-102), em

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uma conferência no Ateneo de Sevilha, em 1927, que tinha como título “Escila y

Caribdis de la literatura española”, da mesma maneira que Ortega y Gasset,

criticou o caráter reducionista com referência à cultura literária espanhola ao se

destacar uma atenção exclusiva às obras realistas em detrimento de outras

produções literárias de inclinação diversa. O que Dámaso Alonso queria expor é

que, dentro da literatura espanhola, havia também um relevante pendor idealista e

espiritualista. Devido ao fato de que Ortega y Gasset e Dámaso Alonso opõem-se à

etiqueta ‘realista’ que alguns autores defendem para caracterizar a tradição cultural

espanhola, podemos deduzir que, nesse aspecto, María Zambrano distancia-se de

Ortega y Gasset por pensar precisamente de forma contrária ao acreditar no cunho

realista da tradição cultural e literária espanhola, no que apresenta mais afinidades

com a geração de 98 do que com o seu grande mestre Ortega y Gasset e com a

própria geração de 27, da qual alguns supõem ser a ensaísta integrante.

Certamente, o sentir realista das coisas, ou, pelo menos, a sua ilusão, aparência ou

impressão serve para manifestar os sofrimentos advindos de um endeusamento do

sujeito moderno. Em Filosofia y poesía (1993, p.86), Zambrano anuncia que, na

época moderna, impera o desejo de ‘querer ser’ do homem proveniente de sua

vontade e ação. Gómez Blesa confirma esse pensamento ao complementar que a

liberdade constitui o objetivo central desse processo iniciado pelo homem desde o

começo da era moderna percorrendo as filosofias existencialistas mais recentes.

El endiosamiento que ha protagonizado el sujeto a lo largo de la

Modernidad, autoimponiéndose como creador de todo lo real y pretendiendo ocupar el lugar destinado anteriormente a Dios, es la causa de este sentimiento nihilista que angustia al sujeto. Esta voluntad de ser o «voluntad de poder», entendida como la pretensión de llevar a término aquello que anhelamos ser, constituye el verdadero rasgo distintivo del hombre moderno. (GÓMEZ BLESA, M., 2008, p.135)

Em Filosofia y poesía (1993, p.77), María Zambrano escreve sobre o que

nomeia como «Metafísica de la Creación», que orienta os principais conceitos da

modernidade desde as contribuições de Kant com a Razão Prática, seguido por

Fichte e Schelling até chegar a Hegel. De acordo com a autora, a “metafísica da

criação” do sujeito independente e não submetido a qualquer outra lei senão à sua

própria originou o contexto niilista, refém da confiança arrogante nas fronteiras

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ilimitadas da razão e que, assim, não conseguiu colocar parâmetros divisórios para

o exercício dessa liberdade.

Relembramos que Zambrano estuda alguns desses filósofos e escreve sobre

eles em seus primeiros ensaios na Revista de Occidente. No ensaio intitulado

“Ante la “Introducción a la Teoría de la Ciencia”, de Fichte” (Madri, t. XLVI, nº

137, novembro 1934, pp.216-224), filósofo alemão nascido em 1762, Zambrano

disserta sobre filosofia. A ensaísta explica que também Fitche, tomando uma frase

de Kant originada de uma sabedoria socrática, afirma que não se ensina filosofia,

porém se ensina a filosofar. Revela a consciência da necessidade do homem em

pensar filosoficamente para alcançar a totalidade do ser. Afinal, ser e pensar são

conceitos fundamentais do exercício filosófico. O eu pensante cartesiano,

diferentemente do ser substancial da filosofia tradicional, está ao lado de uma série

de representações, o que faz acreditar que o eu, dentro da filosofia moderna,

descobre-se ‘coisificado’. Essa ideia é criticada por Fitche, que esclarece que o eu

não é coisa, visto que senão o conceito de coisa para ele não teria a mínima

importância, porque não seria um traço distintivo em relação a si próprio.

Nessa desambiguação da concepção do ser para si mesmo, residirá a

oposição do eu de Fitche em comparação ao eu cartesiano, pois, conforme análise

do escritor alemão, o eu antecede a coisa, embora sempre exista relação ou contato

cognoscitivo através do pensamento entre eu e coisa, ou melhor, objeto, ou melhor

ainda, entre mim e realidade, por meio da qual posso acontecer em uma existência

vital. Por esse motivo, declara Zambrano, é que o pensamento de Fitche apóia-se

na afirmação kantiana de que o ““yo pienso” debe acompañar a todas mis

representaciones” (ZAMBRANO, M., 1934, p.221) das coisas. Porém não é

somente isso: o eu não só acompanha a todas as minhas representações das coisas,

mas confere-lhe realidade, ser, fazendo-as deixar a condição de coisas para se

tornarem alvos, objetos de reflexão, do pensamento, que as eleva a um caráter de

unidade, de matéria ou de um pensar filosófico. María Zambrano ratifica que

Fitche parte da consciência de uma filosofia idealista, em que o cristianismo

propiciou uma mudança de cosmovisão no homem: se antes vivia dentro da

natureza, agora vive fora dela, afastando-se de uma essência divina, posto que

percebeu que a natureza não estabelecia com ele uma relação ontológica, era

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simplesmente o lugar de sua perdição, de sua queda. Se antes suas angústias ou

aflições estavam dirigidas às coisas, à realidade experimentada, agora suas

preocupações lançam-se ao vazio da niilidade, que requer o eu como uma pessoa

moral livre, canal aberto de pensamento, cuja destreza racional aparece como uma

maneira de enfrentar a si mesmo e a um mundo moderno igualmente desafiante,

que dificilmente viveriam sem a razão e é justamente por isso que ela sobrevive ao

tempo e é através da razão que a pessoa existe.

Segundo Zambrano, tal conceito do ser caracteriza o conceito de verdade

para Fitche como convicção, vontade, pensamento e a respectiva adesão total desse

sujeito a esse pensamento, vontade ou convicção. E é aí que está a filosofia

idealista heróica de Fitche. Para a autora espanhola, “el hombre es el sujeto de un

conocimiento fundamentador” (ZAMBRANO, M., 1993, p.77), que inclui a ele

mesmo. A partir dessa consciência, o homem requer a conquista da liberdade por

não depender de qualquer outro ser. Na modernidade, diferentemente de outras

épocas, constatamos que a autonomia da pessoa articula-se com a entronização

solitária do sujeito, que se considera o criador de seu próprio ser, negando a

intervenção divina. María Zambrano afirma-o com estas palavras: “El hombre

quería ser. Ser creador y libre. Y seguidamente: ser único. Son los pasos, sin duda

decisivos de la historia moderna, de eso que propiamente se llama Europa. Y su

angustia y su tragedia.” (ibidem, p.78) Na verdade, quanto maior a liberdade e

independência da consciência humana, maiores são os riscos de endeusamento e

tirania do sujeito, que ocasionam fatalmente a angústia da descrença, em virtude da

perda do homem de sua base de sustentação religiosa original, destruída por seu

próprio orgulho e vaidade, que se convertem em um de seus mais ferozes algozes:

“La libertad absoluta, con la ilusión de disponer enteramente de sí, de crearse a sí

misma, acaba borrándolo todo.” (ibid., p.96) Um pouco antes, sentencia a ensaísta

que “la Metafísica europea es hija de la desconfianza, del recelo y en lugar de

mirar hacia las cosas, en torno de preguntar por el ser de las cosas, se vuelve sobre

sí en un movimiento distanciador que es la duda.” (ibid., p.87)

Nietzsche, em Sobre verdad y mentira en sentido extramoral (1990),

declara que o medo e a insegurança motivam tanto a ciência como a filosofia, as

quais funcionam como formas de pensamento extremamente necessárias à vida, na

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medida em que procuram conferir maior confiança e segurança ao homem, pois,

como profere a autora espanhola, a angústia resolve-se com a ação, que é, na

realidade, a sua consequência: “La angustia es el principio de la voluntad.”

(ZAMBRANO, M., 1993, p.88) Por sua vez, Kierkegaard já também havia

anunciado que “la nada engendra la angustia” (KIERKEGAARD, S., 2007, p.90) e

esta é “el vértigo de la libertad.” (ibidem, p.94) Conforme escreve Gómez Blesa

(2008, p.143), todas essas conceituações nos conduzem ao maior dilema da

existência humana, já que apesar de nos angustiar a liberdade, não podemos viver

sem ela, apesar de nos afligir a realização como espíritos livres e com a

consciência de sermos sujeitos independentes de qualquer outro ser, não podemos

fugir à responsabilidade de nos realizar precisamente como espíritos com

discernimento. De fato, como sustém Heidegger, nos mantemos com a realidade

do vazio. Para o autor, ex-sistir expressa a ideia de estar vivendo dentro do nada.

(HEIDEGGER, M., 2002, p.47)

Toda essa discussão anterior sobre o realismo e seus temas transversais

teve o intuito de aclimatar o estudo do texto zambraniano sobre Misericordia,

romance realista galdosiano e uma das mais importantes obras da literatura

espanhola, onde a ensaísta malaguenha praticamente inicia suas reflexões sobre o

pensamento de seu autor. Publicada em 1897, período contiguo a geração de 1898,

Misericordia espelha o ser de Espanha, a sua história, em uma época de

dificuldades na vida desse país. Por meio do personagem Benigna, o autor

reconstrói o cotidiano das classes madrilenhas mais humildes do fim do século

XIX, com o objetivo de criticar a sociedade, cuja classe média, a aristocracia e a

Igreja seriam os responsáveis pelo atraso cultural do país frente à Europa.

Na época de Hora de España, é claro que María Zambrano se dá conta de

que a República estava perdendo a guerra. A referência a Cervantes e a Galdós

intenciona mergulhar nessa intrahistória espanhola, portadora de uma essência

primordial ou permanente, que subsidia a ensaísta para dissertar sobre o

sofrimento do povo espanhol.

A autora afirma que, em seu romance realista, Galdós oferece, por meio

dos seus personagens, a vida doméstica do espanhol comum em sua história e vida

real como sujeito verídico de sua contingência com características reacionárias e

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conservadoras, que o fazem se reservar à existência familiar caseira, procurando

manter a memória nacional espanhola que a guerra dissipou.

Porque así como en el instante más vacío de la vida de una persona está la huella de todo su ayer, con todos sus instantes, y esta presencia constituye la unidad de la vida, de toda vida personal, asimismo en los personajes de Galdós, en el mundo de sus complejas relaciones, está la huella viva, prolija y multiforme, de nuestro multiforme pasado. El protoplasma hispánico impreso de mil huellas, mas también hirviendo de nuevos gérmenes, es el sujeto único, en sus innumerables caras, de la novela galdosiana. El tiempo real y concreto en que lo histórico y lo innominado se traban reflejándose mutuamente, el tiempo con ritmo imperceptible en que transcurre lo doméstico agitado todavía por lo histórico, es el tiempo real de la vida de un pueblo que lo sea en verdad, es el tiempo de la novela de Galdós. (ZAMBRANO, M., 1938, p.31)

Por outra parte, em Pensamiento y poesía en la vida española, María

Zambrano escreve o seguinte sobre o mundo que nos mostra Galdós:

El mundo que con tanta realidad nos presenta es el mundo de la tradición, de la queda. En él aparece a través del delirio y el disparate [o que de Galdós justamente não agradava a Miguel de Unamuno], para nuestro consuelo, la única continuidad de la vida española, la unidad verdadera de España, y aparece en toda su obra dispersa, inagotable, pero de modo más concentrado y significativo en dos gigantescas figuras de mujer que encarnan las dos fuerzas cohesivas y creadoras a las que nada ha podido abatir: la fecundidad y la misericordia. (ZAMBRANO, M., 1939, pp.167, 168)

As protagonistas galdosianas Fortunata e Benigna traduzem fortemente

essa continuidade da tradição espanhola: “dos gigantescas figuras de mujer que

encarnan las dos fuerzas cohesivas y creadoras a las que nada ha podido abatir: la

fecundidad y la misericordia.” (ibidem) É interessante o fato de que Zambrano ao

se aprofundar na história espanhola decimônica extremamente machista em

Pensamiento y poesía en la vida española coloque a figura feminina como

sustentáculo da própria família, tão importante e hegemônica nesse período, no

centro dos acontecimentos daquela época.

María Zambrano, vivendo já em Cuba e em Porto Rico e também entrando

em contato com os poetas ligados à revista Orígenes, realizou um discurso, em

1942, chamado Mujeres de Galdós, que foi publicado no mesmo ano em forma de

artigo, onde a ensaísta ressalta a importância da figura feminina na construção do

seu pensamento. Galdós es el primer escritor español que introduce valientemente a las

mujeres en su mundo. Las mujeres, múltiples y diversas, las mujeres reales y

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distintas, ‘ontológicamente’ iguales al varón. Y esa es la novedad, esa la deslumbrante conquista. Existe como el hombre, tiene el mismo género de realidad; es lo decisivo. Es lo primero que teníamos que ver. (ZAMBRANO, M., 1994, p.130 –texto reeditado–)

Galdós, assim, dispõe grande ou quase toda a ação romanesca em mulheres

como Fortunata y Benigna. Em uma resenha que escreveu María Zambrano

referente à obra Grandeza y servidumbre de la mujer de Gustavo Pittaluga, com

quem tinha uma relação pouco amistosa, a autora atesta que com os adventos do

positivismo e da revolução industrial, a mulher galgou uma posição no plano da

realidade paralela ao do homem. É inegável que a conquista da liberdade supõe um

enfrentamento com o real. Segundo Zambrano (1989, pp.38, 39), o que faz Nina é

viver a vida; a personagem somente consegue ser ao viver a vida. Nesse sentido,

alcança a realidade almejada, criando a própria existência, sem precisar fantasiá-la

ou inventá-la novelescamente, se bem que podemos pensar também que toda

realidade é uma invenção, mas decerto podemos crer que, no caso de Nina, a

realidade do romance aproxima-se da realidade histórica, do homem em sua

circunstância: “Galdós nos presenta la confusión, la avidez, la proliferación de la

vida y su apetencia de corporeidad. A esto se le ha llamado ‘realismo’, como a casi

todo lo que en España alcanza cierta visibilidad. (ibidem, pp.53, 54) Roberta

Johnson (2005, p.120) pronuncia que a vivência chocante da realidade pelo viés

feminino transformou-se em uma experiência singular transformadora e

libertadora comparada com o fato também transformador e libertador para María

Zambrano do choque da realidade do fracasso da República e o posterior exílio da

ensaísta.

Luis Buñuel, de origen burguesa, cuja família tinha certas posses, pensava

constantemente no que ele mesmo denominava de a idade média, referindo-se ao

século XX e às suas dificuldades, misérias e injustiças. Essas circunstâncias foram

recriadas em muitos de seus filmes como Nazarín e Tristana, os quais se

basearam nas obras de mesmo título de Galdós. Embora Buñuel tenha vivenciado

uma rígida formação religiosa, a sua meta artística, como participante do

movimento surrealista, sempre foi lutar pela mudança do pensamento da sociedade

de sua época, fundamentada na religião, na família e em uma ordem pré-

estabelecida, cuja moral e os comportamentos sociais distinguem-se pelo

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convencionalismo. Ser contra o senso comum por meio da burla, da ironia, do

escândalo e da perplexidade é o que marca a personalidade e a trajetória artística

de Luis Buñuel. O seu livro de memórias, Meu último suspiro (2009), conta

diversas etapas de sua vida em que podemos observar a índole naturalmente

discordante ‘buñuelesca’. Desse livro de memórias, produziu-se um documentário

chamado El útlimo guión, dirigido por Javier Espada y Gaizka Urresti e

protagonizada pelo amigo Jean-Claude Carrière e por Juan Luis Buñuel, seu filho.

Nessas duas obras, podemos acompanhar os lugares pelos quais passou e viveu

Buñuel: Calanda, Zaragoza, Madri, Toledo, Paris, Nova York, Los Angeles e

México, onde mais filmou.

Nazarín, de 1958, é um filme mexicano dirigido por Buñuel e ganhou a

Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1959. Como já sinalizamos

anteriormente, está baseada no romance homônimo de Galdós. A trama conta a

história de um sacerdote puritano, o padre Nazario, que se mostra como Jesus

encarnado e que pratica o exercício religioso no México, nos primeiros anos do

século XX durante o governo ditatorial de Porfírio Díaz. A identificação do

personagem com o que os Evangélios atestam o que foi Jesus é notória. Sua

descrição é de um homem livre, responsável, misericordioso e próximo ao povo.

Os seus fiéis são os pobres que vivem pelas cercanias. No entanto, quando tenta

proteger uma prostituta que provocou um incêndio, precisa fugir, pois começa a

ser perseguido pela justiça. Foragido, Nazario questiona a sua própria fé em função

dos acontecimentos que padece. No seu filme, um dos preferidos realizados no

México, relata Buñuel que:

Mantive o essencial do personagem Nazarín tal como está desenvolvido no

romance de Galdós, mas adaptando a nossa época as ideias formuladas cem anos antes, ou quase isso. No fim do livro, Nazarín sonha que celebra uma missa. Substituí esse sonho pelo sonho da esmola. Além disso, ao longo de toda a história, acrescentei novos elementos, a greve por exemplo e, durante a epidemia da peste, a cena com o moribundo – inspirada no Diálogo entre um padre e um moribundo, de Sade –, quando a mulher exige seu amante e nega a Deus. (BUÑUEL, L., 2009, p.302)

Em 1970, Buñuel, retornou a Espanha para filmar Tristana, protagonizada

por Catherine Denueve. Também é um filme baseado em um romance homônimo

de Galdós. A história gira em torno do personagem de Tristana. Quando morrem

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os seus pais, a menina fica aos cuidados de dom Lope, uma espécie de dom Juan

em decadência, que não consegue se convencer de que os seus tempos de sedução

já acabaram. Tristana apaixona-se por Horacio, um pintor, pelo qual é

correspondida em seus sentimentos. Entretanto, Horacio viaja por um tempo e se

afasta da relação. Nesse período, Tristana é acometida por uma doença e termina

perdendo uma perna. Quando Horacio retorna, perde o interesse por Tristana, a

qual passa a ser amada por dom Lope. Como nas obras de Galdós, evidentemente,

não devemos esquecer de que os nomes dos filmes produzidos por Buñuel também

revelam muito.

Em Tristana, dom Lope, representação da figura masculina de dom Juan,

sentia-se livre e não respeitava nenhuma mulher ao passo que Tristana encontrava-

se presa e sem liberdade. Entretanto, no desfecho da obra, dom Lope é quem está

preso, enquanto Tristana está livre, pois lhe toma o desejo pela independência, a

ânsia de ser apoiada no sentimento do amor: “Se dio a querer ser alguien, y a

querer hacer algo por ello. Mas lo importante era ser, y cuando el ser se aparece de

este modo a alguien, adquiere enseguida calificación, ser es ser independiente.”

(PÉREZ GALDÓS, B., 1969, p.158) Nesse momento da sua vida, quando se

encontra com Horacio consegue descobrir-se no outro e finalmente ser livre: “El

ver del amor es el ver de la revelación.” (ibidem, p.160); “quería liberarse a sí

misma.” (ibid., p.166) María Zambrano, nesse mesmo plano exegético, concebeu o

sentimento estóico como uma peculiaridade de toda crise histórica, pois se o

homem, coloquemos no caso específico das mulheres galdosianas, compreende

que está só e desamparado, repara que, ao lado de uma adversidade heroicamente

combatida, porém não revolucionada, encontra uma força interior e uma riqueza

espiritual notáveis.

No se concibe el estoicismo naciendo como algo primario, como el primer empuje de una cultura. No será jamás una aurora, sino un ocaso; si bien un ocaso que no llega a ser decadencia, porque significa eso justamente: un acopio de entereza para no caer. Un esfuerzo máximo para seguir en pie hasta el último momento. (ZAMBRANO, M., 1939, pp.110, 111)

Em Pensamiento y poesía en la vida española (1939, p.135), María

Zambrano analisa que existe, na Espanha, um obsesivo pensamento cerceador

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acerca da morte em parte ocasionado provavelmente pelo seu estoicismo,

relacionado a um pensamento cristão formador da alma espanhola.

Em Galdós, os seus personagens simbolizam a vida do homem espanhol na

sua história. O personagem Nina é um exemplo disso. Nela, podemos observar a

solidão, o encarceramento, a incerteza que clamam pela liberdade. Galdós escreve

uma visão do seu tempo e, para isso, vale-se do personagem de “señá Benina”,

Nina, que se singulariza e se salva na função de protagonista de Misericordia. Por

meio desse personagem, María Zambrano procurará contemplar sentimentos de

esperança de reconciliação do homem com a vida e consigo mesmo diante de um

infernal ambiente espanhol de decadência que Galdós tem a sensibilidade de

surpreender e estetizar. No ensaio Misericordia, Gómez Blesa (2008, p.113)

assegura que María Zambrano procura a forma de vida do povo espanhol anônimo,

que, de alguma maneira, forja o seu desenvolvimento histórico. É o que a autora

chama em Pensamiento y poesía en la vida española de história essencial

(ZAMBRANO, M., 1939, p. 29), fundamental da Espanha, que se encontra à parte

da história oficial compartilhada.

O personagem consegue viver ou sobreviver acima das ilusões e tragédias

alheias, as quais supera pelo sacrifício, pela verdade, pela inocência e pela

esperança que transcende a resignação ou o conformismo. Galdós caracterizava-se

fortemente pelo poder de observação, fundamental ao romancista, enfim, ao

escritor. Não podemos esquecer que em Misericordia, como em outros romances,

Galdós impregna a linguagem de termos populares e até vulgares, chegando a

descrever os seus personagens de maneira ridícula e infantil. O seu humor é

bastante irônico e tem a influência cervantina, na medida em que Galdós foi um

leitor atento do Quixote. Inclusive, fala-se sobre o quixotismo de Nina, o seu

otimismo e a sua resignação diante dos desígnios de Deus, em um simbolismo

religioso presente no romance. García Lorenzo (1991, p.46) sublinha que a mísera

vida de Nina pode ser observada como uma via crucis e que o paralelo entre Nina e

Cristo tem sido alvo de muitos estudos críticos. Gustavo Correa escreve que:

El trayecto recorrido es una ascensión continua, cuya meta final es la

imitación de Jesucristo. El camino de la mendicidad es, para Benina, camino de santificación y la conduce a un angelismo que sobrenaturaliza su persona y la hace superior a todos los demás seres de la tierra. (CORREA, G., 1962, p.207)

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Bleznick e E. Ruiz, por outro lado, deixam claro suas ressalvas em relação

a este paralelo entre Benigna e Cristo, dizendo que há

[...] una diferencia tan básica que cualquier esfuerzo por establecer una semejanza formal entre ambos personajes queda nulificado: Cristo dio su misericordia, muriendo, para garantizar la felicidad eterna al hombre cristiano a través de la muerte; Benina da su misericordia, viviendo, para garantizar la felicidad temporal a todos los humanos a pesar de la muerte. (BLEZNICK, D. W. e E. RUIZ, M., 1970-71, p.488)

García Lorenzo (1991, p.47) defende evidentemente que não há o propósito

de se fazer um paralelismo total entre a vida de Cristo e a vida de Benigna, pois a

redenção do personagem de Galdós é humana e assim deve ser entendida. Em

várias obras literárias, vemos muitas criações que se aproximam dos valores

cristãos, como o amor ao próximo, o desejo de justiça, a prática da caridade,

sacrifícios e dores em favor do bem comum.

É interessante observar que essas obras de Galdós chamam a atenção de

Buñuel por questionarem princípios sociais, como a moral, a religião, os costumes,

os preconceitos, colocando em questão a validade de todo tipo de determinismo ou

ordem. Por isso, lhe desperta tanto interesse o personagem de dom Lope: “Embora

esse romance, epistolar, não seja dos melhores de Galdós, eu me sentia atraído há

tempos pelo personagem don Lope.” (BUÑUEL, L., 2009, p.341)

O trabalho, um dos principais valores da sociedade burguesa, é

severamente atacado pelos surrealistas que o tacharam de uma grande mentira ao

exultar que o serviço assalariado era ofensivo. Na filmagem de Tristana por

Buñuel, vemos essa crítica, quando dom Lope fala ao mudo:

Pobres trabalhadores. Cornos e, como se não bastasse, espancados! O

trabalho é uma maldição, Saturno. Abaixo ao trabalho que temos que fazer para ganhar a vida! Esse trabalho não nos honra, como dizem, serve apenas para encher a pança dos porcos que nos exploram. Em contrapartida, o trabalho que fazemos por prazer, por vocação, enobrece o homem. Todos deveriam trabalhar assim. Olhe para mim: eu não trabalho. Podem me prender, não trabalho. E veja, vivo, vivo mal, mas vivo sem trabalhar. (ibidem, p.175)

Na verdade, Buñuel recria o julgamento galdosiano, que se sustenta em

uma crítica ao vício da ociosidade de dom Lope. Segundo Buñuel (ibid.), os

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surrealistas foram os primeiros a notar que o valor do trabalho começava a entrar

em decadência com questionamentos sobre se realmente o homem deveria

trabalhar e com a observação de comunidades ociosas.

Cabe destacar como interesse para Buñuel o fato de que, em Misericordia,

se identificam tanto o plano da realidade como também o plano da fantasia. O

nível da realidade existe em toda a obra e é dentro desse meio que se movimentam

os personagens. Por outro lado, os personagens também se valem de outro tipo de

realidade que provém do sonho, da imaginação ou da fantasia. Na visão de Joaquín

Casalduero, podemos comprovar essa ideia.

En Misericordia nos vemos trasladados sin cesar de la zona de la realidad a

la de la imaginación o al contrario. Si la descripción del autor nos coloca en una habitación o en una calle, o entre unas mujeres o unos hombres, captando la luz, los colores, los contornos en toda su expresiva objetividad, en seguida un personaje nos aleja de ese mundo real y nos transporta a un mundo soñado; si a menudo el diálogo de los personajes se refiere exclusivamente a la realidad, con frecuencia nos introduce en un puro mundo de fantasía. (CASALDUERO, J., 1942, p.221)

Embora a miséria e a constante necessidade sejam uma realidade, Benigna

e Doña Paca, personagens galdosianos completamentes opostos, têm ilusões que

conseguem fazê-las esquecer a fome por alguns instantes e sonhar com um mundo

de justiça e felicidade: “A memória é perpetuamente invadida pela imaginação e o

devaneio, e, como existe uma tentação de crer na realidade do imaginário,

acabamos por transformar nossa mentira numa verdade.” (BUÑUEL, L., 2009,

p.15) Em outro momento, declara Buñuel que:

Esse amor descomedido pelo sonho, pelo prazer de sonhar, totalmente

despojado de qualquer tentativa de explicação, foi uma das inclinações profundas que me aproximaram do surrealismo [...] introduzi sonhos nos meus filmes, tentando evitar o aspecto racional e explicativo que eles costumam ter. (ibidem, p.135)

Cremos que o que pode ter provocado também um alto interesse de Buñuel

em relação à Galdós é que entre os meios intelectuais espanhóis daquela época

havia uma série de resistências e críticas ao trabalho literário do escritor canário,

empreendidas sobretudo pela geração de 98 pela forma vulgar-popular com a qual

se expressava. A geração de 98, dentro do aspecto literário, repudiava o realismo,

que, segundo Francisco Ayala (1987, pp.357, 358), representava a teoria estética

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correspondente às convicções positivistas formadoras da mentalidade burguesa. O

refinamento aristocrático que contrastava com as realidades cotidianas desvia a

atenção desses escritores em relação a uma situação social detestável, o que,

segundo Francisco Ayala também os aproxima do romantismo. Outra via crítica do

realismo é estabelecer uma cruel caricatura da sociedade. Ao contrário de seu

predecessor, o romantismo e do seu sucessor, os modernistas de 98, que se

encontravam contra a sociedade e procuravam afastar-se ao máximo dela, o

realismo disserta sobre o homem dentro de seu ambiente social. Dessa forma,

afirma Francisco Ayala (ibidem, p.359), o romance polemizou e orientou a

consciência do leitor tanto na compreensão da realidade como também na vida

prática, que aparece como uma consequência da crise da idade moderna, que, a

partir do renascimento e da reforma, terminariam destruindo a autoridade da Igreja

e levando a uma laicização da vida social, transformando a religião em um

exercício individual e privado. Luis Buñuel defende essa mesma posição:

Como todos os membros do grupo, eu me sentia atraído por certa ideia de

revolução. Os surrealistas, que não se consideravam terroristas ou ativistas armados, lutavam contra uma sociedade que eles detestavam utilizando o escândalo como arma principal. Contra as desigualdades sociais, a exploração do homem pelo homem, o poder emburrecedor da religião, o militarismo grosseiro e colonialista, o escândalo pareceu durante muito tempo o revelador todo-poderoso, capaz de trazer à tona as molas secretas e odiosas do sistema que era preciso derrubar. Alguns não demoraram a se desviar dessa linha de ação para passar à política propriamente dita e, sobretudo, ao único movimento que parecia então digno de ser chamado revolucionário, o movimento comunista. Daí as discussões, as cisões, as polêmicas incessantes. Entretanto, a verdadeira finalidade do surrealismo não era criar um novo movimento literário, ou pictórico, ou ainda filosófico, mas fazer a sociedade explodir, mudar a vida. (BUÑUEL, L., 2009, pp.155, 156)

É interessante o comentário de Francisco Ayala (1987, p.360), quando

defende que esse processo foi de esquema semelhante ao empreendido por

Descartes, sobre o qual escreve María Zambrano na Revista de Occidente, onde o

filósofo com o Discurso del método transforma uma maneira de pensar, alertando

que o conhecimento se constrói a partir da subjetividade. Desse modo, não

podemos dizer que o realismo e um Galdós realista tenham a sua obra

minimalizada à uma objetividade que defende o cânone do gênero. Pelo contrário,

Galdós utiliza, nas suas obras, elementos subjetivos, inovadores, simbólicos e

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transcendentes, que nos inviabiliza diferenciar a realidade do sonho ou da

invenção. Reforçamos essa ideia com uma citação de Francisco Ayala:

Si en el concepto de un realista tan caracterizado como Galdós la realidad no se reduce a aquella objetividad que nos garantizan los datos controlados de la experiencia sensible, o sea, «la realidad de la naturaleza» (o, con tautología, la realidad de las cosas), sino que acepta también la realidad del alma, la invención, la fantasía, la máscara grotesca, etc.; en suma, la totalidad de la experiencia humana sin excluir, ni mucho menos, la de los sueños, sobre la cual vendría luego el surréalisme a apoyarse, tendremos que llegar a la conclusión de que nos falta base firme para distinguir entre la realidad y lo que no lo sea, y, por tanto, para marcar los contornos de un supuesto arte realista. (ibidem, p.390)

As diferenças de perspectivas que oferece Galdós em suas obras

intencionam enriquecer a chamada ilusão da realidade criada sob a égide de sua

particular idiossincrasia que deseja, pela imaginação e pela ambiguidade, abordar e

compreender os diversos problemas de seu tempo. Se tomarmos em consideração

que a objetividade constitui, por assim dizer, uma transcendência dos objetos, é

aceitável pensar também que configura uma visão pessoal do que é objeto, imagem

ou figura da observação e que intenciona ser compreendido pelo homem. Assim

sendo, a objetividade não é uma lógica unívoca, porém está formada por uma

‘logicidade’ diversa. María Zambrano (1939, p. 22) sustenta que há muito tempo o

homem decidiu ser um enigma indescifrável para si mesmo: “esto si es lo propio

de lo español, de la vida española y del hombre que la vive: el imposible, el

imposible como único posible horizonte.” (ibidem, p.65)

Francisco Ayala comenta sobre o interesse de Buñuel, um surrealista, cujos

princípios se apóiam no subconsciente e nos sonhos, com relação às obras

realistas de Galdós, levando-se em conta, como já dissemos antes, a filmagem de

Nazarín y Tristana.

Así, este mismo año (1970), la película de Buñuel basada en Tristana me ha llevado hacia la novela, y esta lectura reciente ha despertado en mí impresiones y suscitado reflexiones que no me habían ocurrido antes. (Dicho sea entre paréntesis: puesto que comencé aludiendo al contraste entre las teorías vanguardistas de mi juventud y el espíritu «garbancero» que se atribuía a don Benito, ¿no es de veras curiosa la devoción –pudiera decirse, incluso, la obsesión– del superrealista Buñuel, el autor de Le chien andalou y L´age d´or, con el realista mundo galdosiano? (AYALA, F., 1987, p.403)

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Na verdade, pensamos que Galdós tem a peculiaridade de ser um realista

com uma personalidade extremamente crítica inserido em um contexto que

questiona o realismo. Desse ponto de vista, Galdós apresentaria um realismo

surrealista, com personagens fantasiosos e alucinantes? Pensando sobre a questão,

é possível defender que o realismo de Galdós possui inegavelmente um tipo de

delírio, que denota uma imaginação fantasiosa. Ayala analisa alguns elementos

importantes de Tristana que confirmam essa assertiva.

Tristana, título de la obra, es ya, para empezar, el nombre que a la heroína impuso la fantasia de su madre, dama «con ciertas puntas y ribetes de literata de buena ley», que «detestaba las modernas tendencias realistas»: «Su niña debía el nombre de Tristana a la pasión por aquel arte caballeresco y noble, que creó una sociedad ideal para servir constantemente de norma y ejemplo a nuestras realidades groseras y vulgares.» Es, pues, la muchacha, al menos en cuanto a su nombre (pero en alguna medida también su carácter corresponde al significado de éste) una creación del delirio quijotesco de su progenitora, quien a través de sus preferencias literarias se identifica con una sociedad ideal que debiera superponerse a las realidades del presente, y quiere simbolizarla en la criatura de sus entrañas. Esta, Tristana, aparece así como proyección de una mente enferma, extraviada por aquellos libros que volvieron loco a Alonso Quijano. (ibidem, p.404)

Como Buñuel e Ayala, María Zambrano também participa desse resgate da

tradição filosófica espanhola pelo romance e pelos personagens femininos,

escrevendo “Tristana”, um artigo publicado em 1970 em La Pièce, França, que,

porém, se manteve inédito até ser conhecido muito tempo depois. Nesse artigo,

Zambrano defende o estilo de Galdós rebatendo as críticas de Miguel Unamuno e

dos demais autores do princípio do século XX, que criticavam o ‘garbancismo’ do

escritor canário: Tristana “está escrita, más que con cuidado, con esmero.”

(ZAMBRANO, M., 1989b, p.148)

María Zambrano, como algum tempo antes Azorín, interessa-se pelo

realismo decimônico, sobretudo, galdosiano no sentido de que apresenta uma

realidade superior, transcendente ou espiritual à realidade social indignante que lhe

inspira, contribuindo à formação de uma importante consciência nacional

espanhola com suas virtudes e vícios, valendo-se de personagens femininos que

intencionam servir de suporte para investigar a natureza humana, a natureza do ser.

Entendemos que tanto o romance como a poesia, ou seja, a literatura serviu

para María Zambrano como fonte inspiradora para a construção do seu

pensamento filosófico baseado na razão poética. A novelística do realismo

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decimônico é alvo de diversas análises da ensaísta, sobretudo, no que se refere à

produção galdosiana. O interessante de observar em María Zambrano é o fato de a

escritora destacar, nas obras de Galdós, os personagens femininos, ou melhor, a

subjetividade feminina. Esse resgaste de uma tradição romanesca e filosófica

tradicional por parte de María Zambrano permite-lhe elaborar um conceito

filosófico particular, que, segundo Roberta Johnson (2005, p.106), reúne dados que

se relacionam com os personagens femininos do Quixote e com os romances de

Galdós, entre eles, Fortunata y Jacinta, Misericordia e Tristana. Esses

personagens femininos oferecem o suporte necessário, para que Zambrano consiga

refletir sobre assuntos que constituem a base primordial do seu pensamento.

Luis Buñuel, ao filmar obras de Galdós, demonstra a importância de se

debruçar sobre uma memória espanhola que torna possível a compreensão da

forma de ser do espanhol:

Precisamos começar a perder a memória, ainda que gradativamente, para nos dar conta de que é essa memória que constitui nossa vida. Uma vida sem memória não seria vida, assim como uma inteligência sem possibilidade de expressão não seria inteligência. Nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nossa ação, nosso sentimento. Sem ela, não somos nada. (BUÑUEL, L., 2009, p.14)

José Luis Mora (2004, p.1) afirma que o apelo ao romance ou à poesia

ocorre em momentos em que o pensamento se encontra mais intenso, maduro e

compromissado. As fases de maior densidade produtiva devem-se precisamente às

experiências biográficas. Se não podemos categorizar que a criação artística de um

escritor depende de suas circunstâncias vitais, também não é possível descartar a

inexistência de qualquer tipo de hibridismo entre vida e obra. Em geral, os ensaios

de María Zambrano proclamam seus ideais de liberdade, de preocupação com o

tempo, de conscientização política e social que aproximam um ser humano do

outro e lhes dão a possibilidade de fazer verdades e sonhos constituírem presença

na história. Segundo Roberta Johnson (2005, p.108), essa busca pela liberdade

aparece, em muitos momentos, na obra zambraniana, nos personagens femininos

do romance realista galdosiano. Em contrapartida, María Luisa Maillard sustenta

que isso se justifica no sentido de que o romance denota um moderno apreço pela

individualidade e pela independência espiritual do homem: Zambrano elege o

romance “por ser un género contemporáneo, nacido de la afirmación de la

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individualidad renacentista y el que responde de forma emblemática a un mundo

despojado de la servidumbre de los dioses y reducido al horizonte de lo humano

(1997, p.111). O romance, apesar de ser um gênero mais moderno, admite uma

leitura do passado. Como escreve José Luis Mora, tanto Zambrano como Galdós

foram sensíveis ao fato de que o romance permite uma revisão crítica do passado,

pois é

el género que sin renuncia a la referencia histórica [...] nos permite una relectura del pasado, es decir, sacar una lección moral donde había fracaso en el campo de la acción política. Consigue, pues, la novela, principalmente, que no perdamos de vista la unidad establecida sobre otros parámetros y nos obliga, además, a creer en que la salvación es posible. (MORA, J. L., 2004, pp.127, 128)

Roberta Johnson (2005, p.109) defende realmente que María Zambrano se

identificava com as mulheres que selecionava para analisar em seus ensaios com a

finalidade de poder desenvolver uma singular filosofia da liberdade humana.

A reação que despertava Galdós em outros escritores era fortíssima, pois

possuía uma personalidade marcante e uma grande popularidade favorecida por

uma riqueza de experiências notável. Uma das intenções galdosianas era mostrar a

realidade social espanhola, que, naquele momento, tornou-se medíocre em função

da difícil situação da história do país. O sentido humano e piedoso das suas obras

mescladas com certa ironia plasma-se nos destinos malogrados, modestos, porém

alegres do povo espanhol. É dentro desse panorama social espanhol adverso que

Galdós constitui o seu espírito artístico por meio do romance como um

instrumento literário moderno capaz de espelhar a sociedade na qual se vive. Com

as palavras que seguem de Francisco Ayala, podemos comprovar essa afirmação.

Pues lo cierto es que la literatura, y de un modo particular la novela desempeña en la edad moderna (esto es, a partir del Renacimiento y la Reforma) una función social muy eminente. Tras la crisis de la Cristiandad y a raíz de la ruptura de la unidad de la Iglesia, el escritor ha venido a asumir en el mundo occidental aquella autoridad espiritual que el clero había ejercido durante la Edad Media. A él compete desde entonces la tarea de ofrecer una visión del mundo, de proponer las normas de juicio y de conducta que orienten a las gentes en la vida cotidiana. Y esto es lo que hace Galdós a lo largo de toda su obra novelística. (AYALA, F., 1987, pp.353, 354)

Zambrano deseja atestar, em Misericordia, que, através dos romances de

Galdós e de seus personagens femininos, podemos vislumbrar os acontecimentos

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mais importantes da história espanhola e em que medida esses sucessos foram

imperativos para o pensamento do povo espanhol, na medida em que se traduz o

tempo real da vida da nação.

Y de este remolino ensangrentado que es la vida española del siglo XIX, lo que Galdós nos da en toda su integridad es la vida misma, la sangre misma. La vida del español anónimo, de obscuro nombre genérico, que va pegada a un pueblo, a una comarca, a un trozo de tierra, en fin, con sus viñedos y garbanzales, con sus trigales y roquedas, o a una ciudad plantada en el desierto, rodeada de vertederos y escombrera, de tétricas estaciones de ferrocarril como Madrid. Vidas que lo son, tanto como de un ser humano, de un pedazo de suelo, un trozo de vida española; es decir, de linajes y tradiciones, de vida anónima con sus infinitas raíces en el ayer: tejido tramado con todos los elementos de nuestro ser de españoles. (ZAMBRANO, M., 1938, pp.29, 30)

Na verdade, a ensaísta acredita que o passado pervive no presente, embora

não se tenha verdadeira consciência desse processo, ainda que a memória seja

intermitente e vaga para uma Espanha que praticamente não se reconhece em seu

próprio passado e isso é um traço trágico desenvolvido no ensaio zambraniano. No

romance de Galdós, afirma a autora, surge essa Espanha enferma, pobre e louca,

mesquinha e disparatada, de prodígio e de absurdo, como estava vivendo a

Espanha daquele tempo de guerra civil. É a questão da visão do realismo tão

importante para os espanhóis, não somente como gênero artístico, mas na

interpretação da sua existência como povo.

Mas no nos basta, pues la sospecha que tenemos, la única que de

comprobarse encajaría en la función que el tal realismo ha venido desempeñando en nuestra cultura, es la que induce a creer que el realismo español lleva aneja una forma de conocimiento, precisamente aquel de que se han nutrido toda nuestra cultura y saber populares, la cultura analfabeta del pueblo y las más altas, las más misteriosas obras de nuestra literatura. (ibidem, p.33)

Definido pela autora como um gênero de saber, para entender o realismo,

teríamos que remontar às origens do conhecimento na Grécia. Seria importante

identificar as raízes da atual crise do saber filosófico ou racional que serve de seiva

espiritual ao homem e ao pensamento em toda a sua plenitude. Essa semente do

saber grego já aparece plantada na revista Hora de España e será desenvolvida,

com mais profundidade, em textos posteriores da ensaísta, como os que

trabalharemos: Filosofía y poesía e El hombre y lo divino.

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Zambrano afirma que a obra de Galdós é humilde, dispersa e

misericordiosa ao colocar à luz para o leitor as questões mais decisivas da história

de seu país. Destaca a tradição literária espanhola nos romances galdosianos sobre

Madri, Fortunata y Jacinta e Misericordia, onde encarnam a realidade de um

povo em que se produzem fecundidade e misericórdia como uma imensa força

vital que sustenta toda uma história e toda uma tradição condensadas em um país

chamado Espanha. Nota-se que a escritora estabelece relações frequentes entre o

passado e o presente, mostrando certa nostalgia e lamentando-se da situação atual.

Zambrano diz que, em Misericordia, se pode adentrar a alma do espanhol em suas

várias divisões sociais, com os seus amores e riquezas e com todos os seus erros,

culpas e esperanças.

En esta corriente viva que llamamos tradición se asientan las raíces de nuestra cultura verdadera, o sea de aquellas nociones actuantes que rigen nuestros más secretos y continuos movimientos, que aprisionan nuestra mente, que inspiran en los instantes decisivos de nuestra existencia sin resolución, porque de ella nos viene la fuerza capaz de vivir y morir, la fuerza capaz de hacernos creer que pervivimos cuando ha sonado la hora de la aniquilación, porque ella nos empuja con la infinita fuerza de cada uno de nuestros linajes y nos inspira con la embriagadora promesa de nuestra continua resurrección en la temporalidad, más acá de todo juicio final. (ibid., p.37)

María Zambrano sempre refletiu sobre a inteligência e a revolução e por

que esta se fez de modo tão sangrento. Uma das respostas está no fato de que é

preciso dar-se conta da alterabilidade do mundo. De tempos em tempos, as

doutrinas racionais, corerentes, lógicas e fixas que orientam o mundo se

flexibilizam pelos questionamentos de seus princípios.

O presente é visto pela autora sempre com uma ideia sangrenta, de

amargura. Zambrano diz que desde o começo do século XIX, ou seja, desde os

inícios da criação artística de Galdós até a ‘tragédia atual’, a suposta, mas

inverdadeira unidade do povo e também do Estado espanhol representada por

Cisneros (município espanhol da província de Palência, onde existiu um campo de

deportados, em que estiveram presos militares e civis que se rebelaron contra a II

República no golpe de estado empreendido pelo general José Sanjurjo, em 1932)

sofreu grandes abalos. Zambrano acredita que qualquer romance de Galdós

apresenta uma Espanha em carne viva, em trágica dualidade. A autora defende que

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parece que a crise da unidade espanhola é originária de um problema da formação

do Estado desde Felipe II, apesar de que, explica Zambrano, não encontramos essa

tese na obra galdosiana. A escritora divulga que a obra de Galdós sugere que essa

dualidade trágica tenha surgido por uma precária assimilação do passado, em

virtude de uma impossibilidade de vivência desse tempo, pois, em Misericordia,

desponta a abundância de elementos raciais, religiosos e culturais diversos, que

premiam ou segregam o povo espanhol. Essa diversidade constitutiva do espanhol

foi motivada pelas próprias peculiaridades da península hispânica, que a definem

como um eixo intermediário entre Oriente e Ocidente, sem contar com as

especificidades culturais e étnicas que provêm do Noroeste e do Sul, que

caracterizam as lutas internas do espanhol, com relação ao seu passado. Assim,

assevera Zambrano, é que a revolução desejada pela Espanha, por parte dos

espanhóis, tenha sido uma revolução com relação ao passado, no sentido de uma

reabsorção ou incorporação do passado a uma existência efetiva dentro de uma

corrente tradicional popular. Muitos espanhóis sentiram a tragédia da unidade

espanhola como a sua própria tragédia.

Zambrano anuncia que o mundo de Misericordia enfrenta-se a uma luta

entre a prodigalidade e o medo ante a vida. Na obra de Galdós, encontramos a

decadência, a ruína e a locura na forma de uma alienação ou desprendimento do

tempo, que lhe salva de um presente insatisfatório; é como uma suspensão pessoal

e voluntária do tempo de alguém que não deseja viver a realidade, o que, segundo

a autora, constitui a própria Espanha, quando atravessa caminhos que não são os

almejados e muito menos aceitos, como o que a autora e os espanhóis vivenciavam

naquele momento. Por meio da leitura de uma tradição, María Zambrano consegue

ler toda uma história da nação espanhola e criticar o seu próprio tempo. Em

Pensamiento y poesía en la vida española, Zambrano destaca a importância do

‘peso do passado’:

En época alguna del mundo, el hombre ha tenido tanto pasado gravitando sobre sí; en época alguna ha sentido tanto el fardo de esto que se llama ayer, tradición. Comparada con cualquier otra época vemos la nuestra en este crítico instante en que es preciso volver la vista atrás, si se quiere seguir adelante. Y en la vida el seguir adelante es la única forma de sostenerse. El saber acerca del pasado no es ya una curiosidad lujosa, ni un deporte que pueda permitirse inteligencias en vacaciones, sino una extremada, urgentísima necesidad. (ZAMBRANO, M., 1939, p.23)

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A autora (ibidem) explica que o século XX, o seu tempo é, no entanto, uma

época de revoluções que desejam romper com o passado, mas também adverte que,

ao mesmo tempo, a revolução reclama explicações ao ontem, o que sugere a não

possibilidade de uma ruptura radical com o passado, uma vez que o movimento da

mudança exige uma relação com o que passou e com o que se quer romper e

repensar. Esse retorno à própria tradição espanhola foi empreendido por muitos

autores espanhóis ou durante a guerra civil ou no início do exílio como foi o caso

de Ferrater Mora, Américo Castro, José Gaos, Menéndez Pidal e María Zambrano

por conta da delicada situação pela qual passava a Espanha nesse período. Na

verdade, um ideal revolucionário republicano havia fracassado e era urgente que se

voltasse a reconsiderar o futuro espanhol e compreender os motivos de tantas

perdas e a própria guerra. Dessa maneira, é que, segundo María Zambrano,

podemos nos reconciliar com o passado a fim de que seja possível libertar-se de

sua sombra e poder seguir em frente, vivendo com esperança a história. É a

tradição que precisa ser resgatada no momento presente e verdadeiramente

assimilada e superada no seu fracasso e na sua tragédia.

Em Misericordia, mais uma vez, María Zambrano coloca o exemplo de

dom Quixote como símbolo de uma ‘inibição espanhola’, que alterou a aparência

da realidade, para que a vida pudesse continuar seduzindo-o na prática de sua

justiça, de sua misericórdia e de seu respeito. A autora analisa momentos da obra e

seus personagens, relacionando-os com fatos do seu respectivo tempo. Dom

Quixote sempre se negou a aceitar as contingências, o seu espaço e o seu tempo

por meio de seus delírios da imaginação, pela nostalgia de um passado ido, de um

culto a um pretérito já vazio, que se transformaram para ele em um simulacro de

uma vida ideal, que continha certa razão de ser alimentada, pois, como diz

Zambrano, “Y un grano de verdad basta a veces para sostener una vida.”

(ZAMBRANO, M., 1938, p.43) Segundo a autora, algumas características dos

personagens galdosianos remetem-se a dom Quixote, que lutou sem medo contra o

avanço pernicioso da cultura de massa por meio da leitura apaixonada dos

romances de cavalaria.

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A autora, em Misericordia, fala sobre Benigma como uma figura atraente

dentro da obra de Galdós por ser extremamente apegada à realidade e de quem

praticamente nada se sabe, mas que sobrevive às suas próprias dores e aparece

como uma solução esperançosa, em relação a um entorno adverso, como a própria

escritora. O personagem representa uma cultura popular pura e sábia. Entre a fome

e a esperança e, às vezes, o pão de cada dia, o personagem consegue vencer a vida

e a morte. Todo puede suceder, porque nadie sabe nada, porque la realidad rebasa

siempre lo que sabemos de ella; porque ni las cosas ni nuestro saber acerca de ellas está acabado y concluso, y porque la verdad no es algo que esté ahí, sino al revés: nuestros sueños, nuestras esperanzas pueden crearla. «Hay verdades que han sido primero mentiras».

Verdad y mentira, dependen también de la esperanza, porque dependen de la creación, porque la realidad que hay es solamente parte pequeñísima de la inmensa, inagotable realidad, que Dios puede hacer salir de su mano. Porque lo que ahora hay era nada antes de ser pecado, y de la nada de hoy pueden salir nuevos seres. El mundo pende por completo de la voluntad creadora de Dios, mas también de nuestra esperanza, de nuestros anhelos. Y esto es la misericordia, que nosotros con nuestros sueños, con nuestro querer, lleguemos a participar de la creación, podamos también crear. (ibidem, p.48)

Francisco Ayala (1987, p.388) sustém que a transcendência simbólica dos

personagens é um vigoroso fator distintivo nos romances galdosianos. Diversas

vezes, surpreendemos que a vida singular dos personagens e a história da Espanha

confundem-se. Essa identificação realiza-se, por exemplo, através dos nomes de

seus personagens, que, bem ou mal, funcionam como um anúncio de seu caráter e

revelam uma representação dos acontecimentos de seu país. Roberta Johnson

escreve que, como em La reforma del entendimiento español, em Misericordia,

a quintaessência da forma de ser espanhola e a busca pela liberdade concentram-se

na figura de Benigna:

[...] la pureza popular [...] la tradición verdadera que hace renacer el pasado, encarnarse en el hoy, convertirse en el mañana [...] Libre como un pájaro, se sobrepone a todo [...] Crea la libertad [...] El tiempo real y concreto en que lo histórico y lo innominado se traban reflejándose mutuamente, el tiempo con ritmo imperceptible en que transcurre lo doméstico agitado todavía por lo histórico, es el tiempo real de la vida de un pueblo que lo sea en verdad, es el tiempo de la novela de Galdós. (JOHNSON, R., 2005, p.114)

O tempo galdosiano se relaciona tanto ao passado como ao presente da

mesma forma que a intrahistória abarca também o futuro, onde é viável a

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liberdade. É necessário que o homem tenha esperanças, que possam transformar a

realidade. Concordamos com Roberta Johnson (ibidem, p.122) quando alerta que a

interpretação de Zambrano dos romances galdosianos simboliza a sua própria

história como uma mulher do século XX, com uma série de restrições impostas

pela sociedade, cujo poder era predominantemente masculino, mas que obtém

êxito como escritora em seu próprio tempo ao sonhar a sua própria história e

granjear a liberdade de existir por si mesma. As dificuldades tornam possível o

pensamento revelador, que consegue unir sabiamente as virtudes da audácia e da

humildade.

Em Misericordia, María Zambrano refere-se ao casal cristão e musulmano

Benigma e Mordejai, pertencentes a religiões distintas e decisivas para a formação

do povo espanhol e que, na história, demonstram que diferentes crenças podem

conviver em paz, compreendendo-se e respeitando-se. O mouro Mordejai

consegue transformar a trágica realidade de Benigma de fome, amarguras,

angústias e tristezas na visão de uma vida melhor. Nina, com a capacidade de

absorver todo o positivo que a cerca, aceita os sonhos do mouro como obras de

Deus, descartando todo o mais que possa lhe causar dano. A personagem encarna a

própria figura da misericórdia redentora, que o povo espanhol necessita para

superar suas dificuldades e viver a sua vida mesmo em meio à guerra civil

espanhola.

O enlace entre os escritos zambranianos da guerra, onde vemos a

abordagem da obra realista galdosiana e a publicação, em 1939, no exílio

mexicano iniciado no mesmo ano, de Pensamiento y poesía en la vida española,

uma recopilação de conferências no próprio México, notabiliza a continuidade de

uma preocupação com o realismo espanhol definido como

[...] un estilo de ver la vida y en consecuencia de vivirla, una manera de estar plantado en la existencia. [...] El realismo, nuestro realismo insobornable, piedra de toque de toda autenticidad española, no se condensa en ninguna fórmula, no es una teoría. Al revés; lo hemos visto surgir como “lo otro” que lo llamado teoría, como lo diferente e irreductible a sistema. [...] No hay fórmula, no hay sistema que compendie el realismo, nuestro arisco e indómito realismo [...] (ZAMBRANO, M., 1939, pp.42, 43)

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As diferenças de perspectivas que oferece Galdós em suas obras

intencionam precisamente “un estilo de ver la vida y en consecuencia de vivirla–

una manera de estar plantado en la existencia –no es una teoría– irreductible a

sistema [...] una forma de tratar con las cosas, de estar ante el mundo” (ibidem,

pp.42, 43, 48), onde a consciência da iminência constante do fracasso que a vida

nos coloca como ponto central é muito presente: “ Porque toda vida humana es en

su fondo una vida que se encuentra ante el fracaso, sin que el reconocer esto lleve

por el momento ninguna calificación de pesimismo, pues quizá sea la previa

condición para no llegar a él.” (ibid., p.13) Em Pensamiento y poesía en la vida

española, Zambrano começa a desenvolver uma filosofia menos centrada nos

problemas e questões nacionais, além de menos intrahistórica para ceder lugar à

análise da pessoa, da matéria em uma associação entre ser humano (mulher),

mundo físico e romance, na medida em que falar sobre a vida é, igualmente, falar

sobre problemas.

Como já explanamos, dentro do realismo espanhol, podemos notar a

melancolia como um sentimento fundamental que norteia o pensamento do homem

e como uma forma única de sentir a vida. Nos romances galdosianos e em outros

romances espanhóis, que vislumbravam o futuro, percebemos que a tríade

melancolia-resignação-esperança conforma os sustentáculos de uma cultura

particular fundada em uma noção de gênero do fracasso, que, por sua vez, viabiliza

um novo nascimento. Zambrano escreve que:

Es la cultura que anuncia la España del fracaso, la más noble o quizá la única enteramente noble. Tenía forzosamente que fracasar porque ha ido más allá de su época, más allá de los tiempos y hay un ritmo inexorable de la historia que condena al fracaso a todo aquello que se le adelanta. Fracaso en razón de su misma nobleza, en razón de su insobornable integridad se ha perdido. Fracaso también porque en el fracaso aparece la máxima medida del hombre, su plenitud en su desnudez, lo que el hombre tiene tan desprendido de todo mecanismo, de toda fatalidad que nada puede quitárselo. Lo que en el fracaso queda es algo que ya nada ni nadie puede arrebatar.

Y este género de fracaso es la garantía justamente de un renacer más amplio y completo. (ibid., p.79)

A melancolia sugere a ausência, a falta, o que se foi ou o que nunca se

possuiu, o que faz surgir a esperança como um sentimento dignificante e salvador.

Essa característica niilista espanhola define o seu sentimento do trágico da

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existência e também a sua capacidade sublime de superação, pois a falta preenche

um espaço importante de ambição pelo o que não se desfruta. Ao longo dos

séculos XVII e XVIII, após o sabor de grandes conquistas, a Espanha padeceu uma

série de infortúnios que a fizeram se debilitar até chegar ao século XIX como um

problema para si mesma, como uma Espanha da tragédia, como uma Espanha do

romanesco, segundo María Zambrano.

Así comienza nuestro siglo XIX; es el siglo de lo novelesco, y no por el motivo de que la novela sea el mejor de los géneros literarios en él cultivado, sino porque la vida española es novelesca siendo doméstica; porque toda España vive en novela. Novela que es tragedia, porque no es la novela del individuo ni tampoco de la sociedad, sino de la sangre, la novela de la vida familiar, de los lazos de consanguinidad, que son siempre trágicos cuando en ellos se introduce, encerrándose, la pasión, cuando son ellos el único ámbito, el único campo para que la pasión galope, cuando son absorbentes y totalitarios. (ibid., pp.161, 162)

Os romances realistas de Galdós demonstram essa assertiva e nos faz ver o

que acontecia por trás dos costumes do homem espanhol do século XIX,

comprovando a importância que María Zambrano atribui a uma releitura crítica do

passado a fim de verificar os equívocos cometidos. O presente é sempre

incompleto e fragmentário, podendo somente ser íntegro com a observação de um

imediato pretérito. De acordo com Zambrano, esse mundo romanesco da vida

trágica espanhola é capturado com maestria por Galdós, que examina o espaço em

crise da tradição por meio de Fortunata, “la divina moza madrileña [...] es la fuerza

inmensa, inagotable de la fecundidad [...] Es la vocación irrefrenable de la

maternidad [...] (ZAMBRANO, M., 1939, p. 168) e Benigna, que “encarna [...] eso

tan maravilloso como la misma fuente de la vida que es la misericordia [...] es la

esperanza, la última, la que jamás se pierde.” (ibidem, p. 169). Os sentimentos de

misericórdia e fecundidade funcionam como redentores dessa Espanha da tragédia.

O realismo, pois, configura-se como uma tradição cultural espanhola

importantíssima. Dentro dessa tradição cultural espanhola que apresenta o realismo

como sua base fundamental, María Zambrano identifica o conhecimento poético

como uma maneira de integrar o homem ao mundo com a intenção de resgatá-lo da

atomização ou da cisão da qual é vítima na contemporaneidade.

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6. UMA FALA COM A CONTEMPORANEIDADE: Cernuda

A fim de completar uma tríade a respeito da discussão sobre o pensamento

galdosiano empetrado por María Zambrano, pareceu-nos interessante mencionar o

poeta e crítico literário espanhol Luis Cernuda (Sevilla – 1902 / México – 1963),

integrante da Geração de 27, pois possui um poema intitulado “Díptico español”

que trata da nação espanhola, de suas tradições e mitos, entre eles, Benito Pérez

Galdós. Como grande parte dos escritores literários, Cernuda lê as obras clássicas

espanholas, francesas e inglesas e, como María Zambrano, publica seus primeiros

trabalhos na Revista de Occidente, em 1925. Mais tarde, em 1937, também

começa a colaborar com a revista Hora de España. O poeta e crítico T. S. Eliot

lhe desperta interesse especial. Cernuda valoriza a tradição literária universal e a

conjuga à originalidade de sua poesia, que se relaciona à sua experiência de vida.

Como assevera T.S. Eliot:

Os poetas têm outros interesses além da poesia – caso contrário, a sua poesia seria bastante vazia; eles são poetas porque o seu interesse dominante foi converter a sua experiência e o seu pensamento (experimentar e pensar é possuir interesses fora da literatura) – converter a sua experiência e o seu pensamento em poesia. (Eliot, T. S., 1997, p.143)

Podemos observar outros pontos de contato importantes entre María

Zambrano e Luis Cernuda, como o longo exílio republicano vivenciado por ambos,

onde o México foi um dos países que os recebeu com hospitalidade. María

Zambrano e Luis Cernuda conheceram-se.

“Díptico español” constitui o poemário de Desolación de la Quimera, que

Cernuda começou a redigir em 1956 e conseguiu publicá-lo em 1962. Entre os

onze livros de poemas que publicou, Desolación de la Quimera aparece como o

último livro de Cernuda. Segundo estudos de Octavio Paz, a poesia cernudiana

caracteriza-se pela meditação e estabelece quatro fases de produção:

aprendizagem, juventude, maturidade e início da velhice. Desolación de la

Quimera compõe a última etapa do poeta, que privilegia a austeridade e o

conceito na enunciação. Como uma maneira de entender o mundo, o título da obra

remete-se a uma expressão encontrada em um dos versos de Quatro quartetos de

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T. S. Eliot. É o vigésimo primeiro verso da quinta parte do poema Burn Norton:

“The loud lament of the disconsolate chimera”. (ELIOT, T. S., 2004, p.89)

Segundo entendimento comum, os dípticos são formados por pinturas com

motivos religiosos sobre madeira geralmente organizada por tábuas retangulares

que, por meio de dobradiças, integram-se e simbolizam momentos de um cenário

em tempos distintos que se refletem e comunicam. A pintura, que serve como

imagem ou cenário, pode ser fechada ou aberta sobre um altar. Por isso, ao

pensarmos na transposição dessa técnica de pintura para o texto poético, e, mais

especificamente, para o poema “Díptico español” de Luis Cernuda, inferimos o

conceito de uma Espanha dividida situada em dois momentos de clímax compostos

por “I ES LÁSTIMA QUE FUERA MI TIERRA e II BIEN QUE ESTÁ QUE

FUERA TU TIERRA, primeira e segunda parte do poema, que envolvem

diferentes perspectivas, individual, coletiva e uma hibridez de ambas no momento

presente da enunciação. Como “Díptico español” apresenta um ponto de vista

histórico, Fornerón (2010, pp.116, 117) explica que todo juízo histórico é

precisamente ‘narrado’ através de uma perspectiva triangular, interpretada como

três histórias constituintes de nossa personalidade: uma pessoal, outra coletiva e

outra ainda pessoal e coletiva dentro da sua contemporaneidade. Isso credencia não

somente a maneira dupla, mas a forma tripla ou até múltipla de leitura do texto. Se

a primeira parte dirige-nos a uma compreensão de um diatribe da nação espanhola

presente, a segunda parte enfoca um hino de louvor a um passado de glória. Em

outras palavras, pelo ‘discurso díptico’, por uma parte, vituperam-se as ações

viciosas que desafiam a concretização, na existência concreta, de uma felicidade

onírica possível e, por outra, exaltam-se os atos nobres de um passado que não

deve ser esquecido.

É fato comum compreender que a obra cernudiana oscila antiteticamente

entre o mundo da realidade e o mundo do desejo, dado que o próprio poeta, a partir

de 1936, denomina assim o conjunto de sua produção. Essa oposição nasce, de um

lado, das vicissitudes marginais de sua própria vida, mas, de outro, é o resultado de

uma forte influência de escritores românticos e simbolistas, que se debatiam entre

a vontade com relação à liberdade individual e as imposições morais de uma

sociedade burguesa, o que irá representar um tema bastante recorrente na poética

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do século XX, sendo possível detectar-se essa peculiaridade em outros autores

espanhóis de sua geração, como Antonio Machado, García Lorca, Rafael Alberti e

a própria María Zambrano. Os motivos que levam Cernuda a antagonizar realidade

e desejo são variados e repetem-se ao longo da sua obra. Vamos mencionar

previamente algumas das razões mais importantes, que servirão de suporte à

análise do poema “Díptico español”. Agruparemos tais fatores em cinco grandes

esferas de interpretação, cuja primeira se refere ao sentimento de solidão e de uma

existência à margem provocada pela sensação da diferença. A segunda inclui o

anseio de descubrir um mundo que respeite a individualidade do homem, com

todas as suas particularidades. Para alcançar esse objetivo, por vezes, o poeta

recorre ao passado, à infância em uma busca pelo paraíso perdido. A terceira

requer o encontro com uma beleza de perfeição, não contaminada pela realidade

ou materialidade. A quarta aborda um dos maiores temas da poesia de Luis

Cernuda: o amor, discutido de distintas maneiras. O amor pode ser aquele não

vivido, mas sentido, canalizado em uma experiência literária. Pode ser aquele

vivenciado, porém frustrado, ferido pela insatisfação, pelo sofrimento, pela

incompreensão e pelo fracasso. Pode ser aquele momento de felicidade breve.

Pode ser aquele juvenil, de desejo e esperança eterna, em que o tempo e o seu

transcorrer detêm-se na jovialidade, que permite a pujança de espírito para

combater o mundo que reprime. Aqui, também encontramos o tema da nostalgia

da infância, cuja inocência, a felicidade e a percepção de ser eterno se harmonizam

com o universo e a natureza, que assinala a quinta esfera de interpretação da obra

do poeta sevilhano. O entendimento dessa esfera não se diferencia muito do que já

discutimos anteriormente. A natureza, entendida como desejo, isto é, um estado

edênico, onde o homem vive em harmonia com o cosmos, funciona de contraponto

ao mundo burguês real e caótico, que o poeta critica duramente, assim como o

fazem outros escritores da Geração de 27. Sendo fiéis aos pilares que sustentam

essa pesquisa, isso realmente leva-nos a pensar que a arte ficcional perpassa de

uma forma analógica e irônica a realidade para assim constatar a existência factual

trágica do homem.

Como pudemos ver, a poética de Luis Cernuda caracteriza-se por uma forte

presença intertextual, que colabora com a criação de uma escritura muito particular

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e original. Citamos a concepção de leitura e apropriação de Manuel Ulacia, com

respeito à interferência da tradição clássica na obra cernudiana.

Desde el primer libro de Cernuda la reminiscencia, que yo prefiero llamar presencia, es una constante en la escritura. Esta presencia es precisamente la labor crítica del poeta que incide en su creación [...] si utilizo el término ‹intertextualidad› en vez del ya tradicional ‹influencia›, es porque este último término propiamente dicho implica una actitud pasiva por parte del escritor, en tanto que ‹intertextualidad› implica la actitud opuesta. Es decir, al leer la obra de otro autor, la transforma, la hace suya. O en otras palabras, se podría decir, que Cernuda ‹cernudiza› sus lecturas. [...] Cernuda metafóricamente ‹canibaliza› la tradición poética europea en sus diferentes expresiones desde el romanticismo hasta dos diferentes movimientos de vanguardia. (ULACIA, M., 1986, pp.11, 12)

É evidente que o caráter intertextual não é um privilégio da obra de Luis

Cernuda, mas é também de outros tantos escritores, entre eles, María Zambrano.

Entretanto, é importante afirmar o óbvio devido à sua relevância na abordagem do

poema “Díptico español”, que possui ‘reminiscências’ da obra galdosiana. Para tal,

também é necessário vislumbrar o exílio de Luis Cernuda para melhor

compreender a sua escritura, tendo em vista que a sua extensa permanência fora da

Espanha favoreceu a produção da parte mais significativa da sua obra. Como a sua

poesia contém muito da sua (auto)biografia, a grande quantidade de exílios –

Fornerón chama-no de poliexilado (2010, p.80)– da sua vida, familiar, amoroso,

político, social, artístico propiciou o caráter de toda a sua produção literária. O

exílio é uma forma de resistência e de existência consciente, que demonstra quão

impossível é a vida na terra pátria. A desilusão do homem com a realidade

circundante expressa que o futuro é sempre um anseio utópico que tem por fim o

malogro. O exílio pretende denunciar que é preciso haver uma aceitação das

diferenças individuais; os exilados desejam pontuar a sua existência no mundo por

meio da vontade particular e da inteligência que rompe as fronteiras da própria

nação. O exílio, assim, testemunha os acontecimentos do homem e da sua época e

promove discursos relativizadores fundamentais ao crescimento intelectual do ser

humano com respeito à sua realidade.

A disposição estrutural de “Díptico español” como a de outros poemas

encontrados em Desolación de la Quimera caracteriza-se por ser de grande

extensão –está dividido em duas partes– e por tratar, de certa maneira, de temas

como a morte, a solidão, a memória, a história, a guerra e a infância, que se

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duplicam em determinadas imagens, vozes e personalidades míticas do passado,

que o poeta precisa reconstruir para sobreviver a uma contingência presente

insatisfatória e procurar explicar a história do povo espanhol por meio de sua

ascendência ocidental literária e cultural.

Na primeira parte do poema “Díptico español” de Cernuda, podemos

observar uma Espanha da qual o poeta não se orgulha e critica severamente,

pontuando o seu desgosto de ser espanhol e de haver nascido dentro das fronteiras

de um país que não respeita as diferenças individuais e os direitos alheios. I

ES LÁSTIMA QUE FUERA MI TIERRA

Cuando allá dicen unos Que mis versos nacieronDe la separación y la nostalgiaPor la que fue mi tierra,¿Sólo la más remota oyen entre mis voces?Hablan en el poeta voces varias:Escuchemos su coro concertado, Adonde la creída dominanteEs tan sólo una voz entre las otras.

Na verdade, a capacidade de se voltar ao passado com admiração e veia

crítica que demonstram Cernuda por meio de um eu poético, Galdós no romance e

María Zambrano no ensaio assinala uma forma de não sucumbir à truculência e à

necedade de uma Espanha moderna contaminada por seus próprios sonhos de

poder e submissão do outro, que, em muito, correspondem a um pensamento

racionalista totalitário e a um sentir do homem trágico no mundo, colocado, por si

mesmo, em segundo plano frente à força de um ‘desenvolvimento’ econômico e

tecnológico. A atitude ética de reconstituir e preservar o passado aparece como

uma resistência à uma não ruptura com a tradição no presente, podendo assim

garantir uma via de saída e de esperança às gerações vindouras.

Lo que el espíritu del hombre Ganó para el espíritu del hombreA través de los siglos,Es patrimonio nuestro y herenciaDe los hombres futuros.

Esses primeiros versos do poema já contribuem para que possamos

entender melhor o sentido do título do livro. Se compreendermos que ‘quimera’

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significa ‘fantasia’, ‘sonho’ ou ‘utopia’, ‘desolación de la quimera’ corresponde,

portanto, a um desejo frustrado. A quimera, a nosso ver, para Cernuda, possuía um

sentido amplificado da aspiração mítica impossível de uma grandeza do ser

humano e da sua civilização, já que tal magnanimidade não se encontra em um

tempo presente, mas em um tempo ido inalcançável. Assimilando-se a seres

irracionais, o homem, padecendo o seu próprio fracasso, intolerância e

desentendimento, aniquila a quimera da existência idealizada e reforça a

imortalidade do mito utópico da felicidade, como se o verdadeiro viver fosse

somente viável na ilusão.

Al tolerar que nos lo nieguen Y secuestren, el hombre entonces baja,¿Y cuánto?, en esa escala duraQue desde el animal llega hasta el hombre.

Nos próximos versos, o poeta repete uma série de vezes o vocábulo

‘muerto’, conferindo-nos novamente por essa ideia e por outras similares a

imagem de destruição e ruína. A referência a um mundo ‘nadificado’, sem

expressão, sem voz, sem esperança patentiza o espírito desolado do poeta, que

insiste no fato de que tomar uma atitude é uma ação totalmente vã e impraticável,

pois tudo ‘nasce e morre morto’. Así ocurre en su tierra, la tierra de los muertos, Adonde ahora todo nace muerto,Vive muerto y muere muerto,Pertinaz pesadilla: procesión ponderosaCon restaurados restos y reliquias, A la que dan escolta hábitos y uniformes, En medio del silencio: todos mudos, Desolados del desorden endémicoQue el temor, sin domarlo, así doblega.

García Montero escreveu um ensaio com o sugestivo título de Los dueños

del vacío, onde exprime que, na visão do solitário poeta, a não aceitação do outro

não deveria equivaler à natureza e aos valores fundamentais do ser humano. A

dificuldade do existir humano está no conflito trágico oscilante entre o ser

individual e o ser dialogante dentro do mundo. A expressão linguística, assim,

cumpre a missão de canalizar o fluxo de uma consciência, que erige a identidade

do homem e lhe permite ser em relação ao próximo.

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Distancia, rechazo, extrañeza, ante unas maneras de vida que no se

corresponden con “el oficio de ser hombre” aprendido duramente por el poeta. La ética sustituye así a la biología a la hora de sugerir unas señas de identidad, es decir, se aleja de las expresiones originales para acercarse a la conciencia, entendida como un oficio de palabras, que se aprende en soledad y por el camino de las dificultades. La única seña de identidad humana será la conciencia, que es individualidad y diálogo, oficio y comunidad. La lengua pasa a convertirse en el vínculo estricto que reconoce el poeta, porque es la única heredad que permite el entendimiento y la discrepancia. (GARCÍA MONTERO, L., 2006, p.229)

O eu lírico afirma que o que fazemos hoje se reflete nas gerações

posteriores e marca a nossa história. Critica os equívocos cometidos em sua terra

espanhola e compara o viver ali com a barbárie e a pungente festa de toros.

La vida siempre obtieneRevancha contra quienes la negaron:La historia de mi tierra fue actuadaPor enemigos enconados de la vida.El daño no es de ayer, ni tampoco de ahora, Sino de siempre. Por eso es hoyLa existencia española, llegada al paroxismo, Estúpida y cruel como su fiesta de los toros.

O povo e a inteligência vilipendiados pela repressão e o encarceramento

não possuem felicidade e não são livres para pensar e exercer os seus direitos de

escolha. A única escapatória para os que resistem é o exílio, que reivindica a sua

possibilidade de ser para si mesmo e para o mundo, usando a voz, a linguagem, a

arte como ferramenta de luta e protesto.

Un pueblo sin razón, adoctrinado desde antiguoEn creer que la razón de soberbia adoleceY ante el cual se grita impune:Muera la inteligencia, predestinado estabaA acabar adorando las cadenasY que ese culto obsceno le trajeseAdonde hoy le vemos: en cadenas,Sin alegría, libertad ni pensamiento.

A língua é um veículo de expressão que oferece possibilidades diversas e

acaba rompendo o pensamento totalitário. No movimento linguístico, o homem

pode obrar a favor de si mesmo e defender a sua natureza independente. O poema

escrito pelo poeta assume a responsabilidade de conscientizar o leitor, que é o

povo e que é o homem naturalmente em seu sentido amplificado, cuja finalidade é

fazer que a morte da inteligência e da livre opinião seja duramente negada e

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combatida. Esse resistir bravamente é, sem dúvida, uma atitude difícil e, portanto,

heróica, mas que alerta sobre a importância da aceitação da individualidade e do

coletivo dentro de suas prerrogativas fundamentais de existência digna dentro do

seu mundo real: “un poeta, dicen, es un soñador. Quizá... En todo caso no es

soñador quien persigue un sueño, sino quien persigue la realidad.” (CERNUDA,

L., 1975b, p.117) O eu lírico reconhece, com pesar e tristeza, a sua nacionalidade e

língua espanhola e isso não é tão fácil de mudar como pode parecer para alguns,

pois faz parte de nosso ser mais íntimo, de nosso espírito, de tudo que vivemos

geralmente nos primeiros anos de nossa vida.

Si yo soy español, lo soyA la manera de aquellos que no puedenSer otra cosa: y entre todas las cargasQue, al nacer yo, el destino pusieraSobre mí, ha sido ésa la más dura.No he cambiado de tierra, Porque no es posible a quien su lengua une,Hasta la muerte, al menester de poesía.

Tanto Cernuda, como Galdós e Zambrano buscavam uma realidade mais

justa, igualitária e decente às necessidades do homem moderno, que pudessem se

equilibrar com sua evolução técnica e o pensamento racionalista. Tanto em

“Díptico español” como no conjunto da obra poética de Cernuda, constatamos que

o desejo é um sentimento frequentemente frustrado pelas adversidades

contingenciais, porém, é justamente em virtude dessa sensação de fracasso e perda

que o que se deseja incorpora uma força expressiva poética tão avassaladora. A

língua aparece como o meio que pode gerar comportamentos transformadores que

diminuam as distâncias entre realidade e desejo, entre passado e presente, que,

decerto, constrõem o futuro.

La poesía habla en nosotrosLa misma lengua con que hablaron antes,Y mucho antes de nacer nosotros,Las gentes en que hallara raíz nuestra existencia;No es el poeta sólo el que ahí habla,Sino las bocas mudas de los suyosA quienes él da voz y les libera.

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É essencial chamar a atenção para o fato de que também em Luis Cernuda

a escritura desenha uma pintura trágica de decadência e fracasso tanto individual,

como também coletivo e cultural de um país. O procedimento discursivo que

pretende recuperar o passado por meio de uma relevante tradição literária denota a

frustração da vivência do presente. Sem dúvida, escrever pressupõe percorrer

tempos e mundos distintos. O exílio torna-se uma experiência fulcral de

reconhecimento do lugar do outro, que nos faz identificar o nosso próprio lugar.

¿Puede cambiarse eso? Poeta algunoSu tradición escoge, ni su tierra, Ni tampoco su lengua; él las sirve,Fielmente si es posible.Mas la fidelidad más altaEs para su conciencia; y yo a ésa sirvoPues, sirviéndola, así a la poesíaAl mismo tiempo sirvo.

Os próximos versos parecem-nos demasiado contundentes e continuam

demonstrando um poeta extremamente decepcionado com a sua origem, com o

tema da Espanha, apesar de se sentir irremediavelmente unido ao seu país por

fatores linguísticos e culturais. O sentimento crítico de repulsa em relação a

Espanha caracteriza o que o poeta idealiza e deseja e o que vê, com desengano, na

realidade. A visão negativa que o eu lírico possui da Espanha denuncia o seu

esforço de romper os vínculos que o conectam ao seu país, com o qual não se

identifica, e a vontade de permanecer no exílio.

Soy español sin ganasQue vive como puede bien lejos de su tierraSin pesar ni nostalgia. He aprendido El oficio de hombre duramente,Por eso en él puse mi fe. Tanto que prefieroNo volver a una tierra cuya fe, si una tiene, dejó de ser la mía,Cuyas maneras rara vez me fueron propias,Cuyo recuerdo tan hostil se me ha vueltoY de la cual ausencia y tiempo me extrañaron.

O exílio do poeta, como María Zambrano, iniciou-se com a guerra civil

espanhola. O êxodo da terra natal propiciou tanto em um como em outro um

processo mais apurado de idealização da pátria nos primeiros anos sustentada por

uma nostalgia do país e sonhos de revolução que pudessem modificar e melhorar a

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história da nação. No entanto, esses anseios foram deteriorando-se e cederam

espaço à desilusão. Al principio de la guerra, mi convicción antigua de que las injusticias

sociales que había conocido en España pedían reparación, y de que ésta estaba próxima, me hizo ver en el conflicto no tanto sus errores, que aún no conocía, como las esperanzas que parecía traer para el futuro. Desnudas frente a frente vi, de una parte, la sempiterna, la inmortal reacción española, viviendo siempre entre ignorancia, superstición e intolerancia, en una edad media suya propia; y de otra, [...] las fuerzas de una España joven cuya oportunidad parecía llegada. [...] La marcha de los sucesos me hizo ver poco a poco que no había allí posibilidad de vida para aquella España con que me había engañado. (CERNUDA, L., 1991, p.400)

O poeta, através da linguagem, ressoa a voz que precisa falar aos que, com

boa vontade e entendimento, possam ouví-lo e concordem com o direito individual

de ser livre física e intelectualmente, de ir e vir da forma que lhes aprouver, de

fazer da vida o que compreenderem que seja melhor. Essa é, de fato, a grande

herança pela qual é mister lutar e preservar.

No hablo para quienes una burla del destinoCompatriotas míos hiciera, sino que hablo a solas(Quien habla a solas espera hablar a Dios un día)O para aquellos pocos que me escuchenCon bien dispuesto entendimiento.Aquellos que como yo respetenEl albedrío libre humanoDisponiendo la vida que hoy es nuestra,Diciendo el pensamiento al que alimenta nuestra vida.

¿Qué herencia sino ésa recibimos?¿Qué herencia sino ésa dejaremos?

Nesses últimos versos, encerra-se a primeira parte de “Díptico español”. É

pertinente manifestar que, na primeira parte desse poema, encontramos o uso da

primeira pessoa do singular em diversos momentos com a intenção de revelar um

pouco da experiência do poeta em um sinal de texto autobiográfico. A

identificação estabelecida entre o que divulga o poema e a utilização do pronome

de primeira pessoa demonstra uma afinidade entre assunto ‘ficcional’ com

características da realidade vivenciada e poeta: “Soy español sin ganas / Que vive

como puede lejos de su tierra” (versos 67, 68). Em outros momentos da primeira

parte do poema, a primeira pessoa do singular transforma-se em plural, quando o

tema particular torna-se um assunto que envolve a todos de maneira geral:

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“Escuchemos su coro concertado (verso 7) / La poesía habla en nosotros (verso 52)

/ Y mucho antes de nacer nosotros, / Las gentes en que hallara raíz nuestra

existencia (versos 54, 55). Vale a pena notar ainda que, ao longo dessa primeira

parte, aparecem algumas interrogações retóricas, pelas quais podemos interpretar

afirmações de caráter negativo: “¿Solo la más remota oyen entre mis voces? (verso

5). Evidente que não, existem outros escritores ou pessoas na mesma situação de

exílio por decepção com relação a Espanha. “¿Puede cambiarse eso?” (verso 59).

Claro que não, ninguém pode mudar a sua origem, a sua tradição, a sua terra, a sua

língua. Em outros momentos, lemos o emprego da conjunção adversativa ‘sino’,

que corrige uma negação anterior. A negação e a posterior ratificação são um

fenômeno interessante de polifonia, pois, nesse tipo de construção, temos a

possibilidade de perceber mais de um enunciador: “No es el poeta solo el que ahí

habla, / sino las bocas mudas de los suyos / A quienes él da voz y les libera.”

(versos 56-58) O leitor, como também um enunciador, pode pensar que somente o

poeta tem o dom da palavra, mas quem interpretar dessa maneira está enganado, há

outras vozes enunciativas. Outro exemplo é quando o poeta afirma que não se

dirige aos seus compatriotas também exilados ou desiludidos como ele, mas que,

além de se conscientizar a si mesmo, ‘deseja’ abrir as mentes de todos daqueles

que querem escutar outros pontos de vista e pensar por si mesmos: “No hablo para

quienes una burla del destino / Compatriotas míos hiciera, sino que hablo a solas /

(Quien habla a solas espera hablar a Dios un día) / o para aquellos pocos que me

escuchen / Con bien dispuesto entendimiento.” (versos 76-80). Essas

características estruturais também estarão presentes em alguns momentos da

segunda parte de “Díptico español”. Na primeira parte do poema, o eu lírico

contesta um tipo de discurso comum baseado em um exacerbado patriotismo

espanhol, em contraste com outra voz que se contrapõe a essa enunciação. Esses

enunciadores contrastam visões distintas da Espanha. O poema encerra a sua

primeira parte questionando a herança recebida e a que se vai deixar como legado

no futuro. Na realidade, o espanhol precisa ter a consciência de que possui uma

tradição muito mais nobre do que o presente inóspito que vivencia. “¿Qué herencia

sino ésa recibimos? / ¿Qué herencia sino ésa dejaremos?” (versos 85, 86) Se de

uma parte, o poeta lírico identifica uma Espanha adversa, ignorante e que adora as

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amarras, de outra parte, o poeta descobre uma Espanha melhor, idealizada, calcada

primordialmente em uma ‘herança’ cultural que inegavelmente determinou o

pensamento subjetivo do povo espanhol, cujo exemplo, nesse poema de Cernuda, é

a contribuição literária de Galdós. Octavio Paz assevera que a poesia cernudiana

prima pelo aparecimento de outras vozes ou perspectivas que se combatem no

sentido de opor o que anseia o poeta e o que o mundo real é capaz de realizar e

oferecer. O poder imaginário da literatura transmuta o desejo em realidade e a

realidade em uma circunstância irreal. Em outras palavras, no nível da arte, as

contingências históricas que compõem a existência factual modificam-se.

Con cierta pereza se tiende a considerar los poemas de Cernuda meras variaciones de un viejo lugar común: la realidad acaba por destruir al deseo y nuestra vida es una continua oscilación entre privación y saciedad. A mí me parece que, además, dice otra cosa, más cierta y terrible: si el deseo es real, la realidad es irreal; el deseo vuelve real lo imaginario, irreal la realidad. (PAZ, O., 1977, p.153)

A segunda parte de “Díptico español” intitula-se BIEN ESTÁ QUE

FUERA TU TIERRA, onde detectamos diálogos com Galdós, que se encontra em

um tempo mítico, afastado do poeta por um longo período cronológico recuperado

para o presente pelo eu lírico, com o propósito de voltar a participar do mundo

presente e salvá-lo.Su amigo, ¿desde cuándo lo fuiste?¿Tenías once, diez años al descubrir sus libros?Niño era cuando un díaEn el estante de los libros paternosHallaste aquéllos. Abriste unoY las estampas tu atención fijaron;Las páginas a leer comenzaste Curioso de la historia así ilustrada.

O mito da tradição literária espanhola representada por Galdós instaura um

momento sagrado da história, do homem e da cultura, que, quando se narra, volta a

acontecer, a se produzir e colabora com um melhor entendimento do homem em

relação ao seu passado. O eu lírico anuncia que a realidade histórica que vivencia o

homem naquele instante, com respeito a qual sente estranheza e quer se

desenraizar, se difere dessa Espanha de Galdós da mesma maneira que o mundo

contingente se choca com o mundo interior do poeta, como Galdós, também

construtor de ficção, de sonhos, desejos e também de realidades de beleza e

harmonia. O poeta anseia ultrapassar o portal mágico do tempo e saborear uma

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realidade pretérita mais favorável, mais criativa, mais vigorosa representada pela

literatura galdosiana e os inesquecíveis personagens de suas obras que igualmente

descreveram e escreveram a nação espanhola, os quais fizeram parte da infância do

poeta e de tantos outros homens.Y cruzaste el umbral de un mundo mágico,La otra realidad que está tras ésta:Gabriel, Inés, Amaranta,Soledad, Salvador, Genara,Con tantos personajes creados para siemprePor su genio generoso y poderoso,Que otra España componen,Entraron en tu vidaPara no salir de ella ya sino contigo.

Ao se utilizar o recurso mítico idealizado, o poeta confere grandeza e

beleza ao que se conta da tradição literária espanhola, colocando-a como um

exemplo a ser seguido pelas novas gerações, o que igualmente faz María

Zambrano. Ao conjugar o agora com o antigo, o passado com o presente, o eu

lírico faz da experiência particular cultural espanhola um paradigma universal,

como, de fato, é uma característica sine qua non do mito. A apropriação, a

reconstrução e a revelação do mito ao mundo em diferentes épocas legitimam o

discurso. Na forma de uma manifestação particular da linguagem, dentro da

literatura, podemos atentar para a construção de uma enunciação polifônica, onde

várias vozes integram o relato e propiciam uma multiplicidade de pontos de vista e

ideologias, sem monologizar a informação única e exclusivamente na figura do

autor.

Más vivos que las otras criaturasJunto a ti tan pálidas pasando,Tu amor primero lo despertaron ellos;Héroes amados en un mundo heroico,La red de tu vivir entretejieron con la suya,Aún más con la de aquellos tus hermanos,Miss Fly, Santorcaz, Tilín, Lord Gray,Que, insatisfechos siempre, contemplabasExistir en la busca de un imposible sueño vivo.

Dentro do poema, a crítica social que o processo cernudiano de inversão da

realidade presente pelo resgate do passado efetua afeta os sistemas de valores

dominantes na época –aos quais o mesmo autor é contrário– para expor que a sua

própria visão ideológica, a sua própria realidade, que aspira a ser como os antigos

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heróis galdosianos, em suas loucuras e em seus períodos de lucidez, com outros

paradigmas de quimeras desoladas, é verdade, mas sempre com fé em um povir

mais venturoso.

El destino del niño ésos lo provocaronHasta que deseó ser como ellos, Vivir igual que ellosY, como a Salvador, que le movieraIdéntica razón, idéntica locura,El seguir turbulento, devoto a sus propósitos,En su tierra y afuera de su tierra,Tantas quimeras desoladasCon fe que a decepción nunca cedía.

Octavio Paz também sustenta que a poesia cernudiana contém uma série de

críticas aos valores culturais espanhóis e que a contestação pressupõe, assim,

inovação ou criação, na medida em que, por meio de outros pontos de vista, destrói

o que a sociedade considera como crença indiscutível: “La poesía de Cernuda es

una crítica de nuestros valores y creencias; en ella destrucción y creación son

inseparables, pues aquello que afirma implica la disolución de lo que la sociedad

tiene por justo, sagrado o inmutable.” (PAZ, O., 1977, p.139) A reiteração de um

paraíso perdido da Espanha da infância identifica o sujeito com o objeto tratado,

condenando-se o presente à uma progressiva destruição, onde o fracasso é o que se

pode esperar do futuro.

Y tras el mundo de los EpisodiosLuego el de las Novelas conociste:Rosalía, Eloísa, FortunataMauricia, Federico, Viera,Martín Muriel, Moreno Isla,Tantos que habrían de revelarteEl escondido drama de un vivir cotidiano:La plácida existencia real y, bajo ella, El humano tormento, la paradoja de estar vivo.

Como já sinalizamos, a obra de Luis Cernuda possui uma trajetória vital

rumo ao fracasso e que a busca de um paraíso perdido infantil, inocente, sonhador

ao longo de toda a sua vida atua como uma constatação inegável da frustração e da

morte. Os livros de Galdós permitiram que a desolação da quimera do poeta fosse

compensada com a reconstituição de uma Espanha ideal sedimentada pelos

ensinamentos dos escritores nacionais. O que move o eu lírico é o desejo de

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encontrar aquilo que deseja, sonha e aprecia dentro de um aspecto ético social

humano e artístico, que consegue renovar a sua existência e as suas quimeras.

Los bien amados libros, releyéndolosCuántas veces, de niño, mozo y hombre,Cada vez más en su secreto te adentrabasY los hallabas renovadosComo tu vida iba renovándose;Con ojos nuevos los veías,Como ibas viendo el mundo.Qué pocos libros puedenNuevo alimento darnosA cada estación nueva en nuestra vida.

Cabe comentar o uso de elementos deícticos no transcorrer do poema. Se

na primeira parte, vemos o emprego do pronome de primeira pessoa do singular

como núcleo do pensamento subjetivo do poeta envolto por signos trágicos e

desolados, na segunda parte, identificamos a presença complementar necessária de

um tu que expressa os desejos do poeta em relação a uma realidade com mais amor

e esperança. A primeira pessoa coloca as suas expectativas nesse tu ido

desaparecido e inalcançável, que clama ser revivido e buscado.

En tu tierra y afuera de tu tierraSiempre traían fielmenteEl encanto de España, en ellos no perdido,Aunque tu tierra misma no lo hallaras.El nombre allí leído de un lugar, de una calle(Portillo de Gilimón o Sal si Puedes),Provocaba en ti la nostalgiaDe la patria imposible, que no es de este mundo.

O poeta rememora, com nostalgia, os nomes de lugares conhecidos ou não

da terra espanhola colocados como paisagens da matéria romanesca galdosiana que

suscitavam um profundo sentimento contemplativo de beleza e reforçam que o

antigo é mais prazeroso e digno de se vislumbrar do que o presente agônico

expressado pelo poeta na primeira parte. O desdobramento do poeta em um eu e

em um tu propaga a ideia de que o sujeito possui mais de uma face, servindo tanto

para projetar, na escritura, uma experiência, sem dúvida alguma, autobiográfica,

como também para se comunicar com o leitor, a fim de reivindicar a sua

participação na construção poética.

El nombre de ciudad, de barrio o de pueblo,Por todo el español espacio soleado(Puerta de Tierra, Plaza de Santa Cruz, los Arapiles,

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Cádiz, Toledo, Aranjuez, Gerona),Dicho por él, siempre traía,Conocido por ti el lugar o desconocido,Una doble visión: imaginada y contemplada,Ambas hermosas, ambas entrañables.

Embora o eu, o tu e o nós sejam pronomes sujeitos gramaticalmente

distintos, todos eles são membros de um conjunto de sensações e vivências do

poeta que muitos compartilham ou compartilharam de alguma maneira. A verdade

é que o poeta pode ser um espanhol sem vontade, pode abdicar e não sentir falta da

sua própria pátria, contudo não lhe é possível abrir mão de uma herança cultural

tão preciosa, visceral e arrebatadora como a literatura e os seus grandes escritores

tradicionais, como Cervantes e Galdós. Esse é o legado magnânimo pleno de

coragem, heroísmo e luta que o poeta deseja e não a idade média dentro da

modernidade que o seu país, naquele tempo, descortinava.

Hoy, cuando a tu tierra ya no necesitas,Aún en estos libros te es querida y necesaria, Más real y entresoñada que la otra:No ésa, mas aquélla es hoy tu tierra,La que Galdós a conocer te diese,Como él tolerante de lealtad contraria,Según la tradición generosa de Cervantes,Heroica viviendo, heroica luchandoPor el futuro que era el suyo,No el siniestro pasado donde a la otra han vuelto.

A realidade é o que aspira não somente o poeta, mas também todos nós

leitores espanhóis ou não. O poeta deixa claro que renega essa Espanha injusta,

triste e lamentável do presente, que, para ele, não é a real, pois não exprime a

verdade do seu país, tampouco de sua gente. A Espanha autêntica, pulsante e

admirável é a ficcionalizada pela tradição cultural galdosiana e o deleite dessa

lembrança é capaz de salvar o seu povo da estupidez e da violência.

Lo real para ti no es esa España obscena y deprimenteEn la que regentea hoy la canalla,Sino esta España viva y siempre nobleQue Galdós en sus libros ha creado.De aquélla nos consuela y cura ésta.

Em “Díptico español”, a referência a Galdós procura em um tempo perdido

do passado a origem cultural que define o modo de pensar espanhol, atacado

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brutalmente pela intolerância da guerra. Além disso, assume um caráter

extremamente importante dentro da Geração de 27, visto que o romancista não era

o escritor preferido dos autores vanguardistas daquele tempo. Isso demonstra que,

de fato, Cernuda foi um exilado em muitos ângulos da sua vida e tanto a

compreensão e o triunfo pessoal sobre esse exílio causou uma gigantesca sensação

de fracasso e destruição, com respeito a uma Espanha ideal revolucionária, em um

primeiro momento, perfeitamente viável na tentativa de instauração de um poder

republicano legítimo.

Com efeito, não somente María Zambrano, mas também Cernuda e Luis

Buñuel realizam uma leitura da tradição espanhola por meio da figura de Benito

Pérez Galdós. Essa ideia levou-nos a refletir sobre como um grupo de escritores

com características modernas e vanguardistas de ruptura de paradigmas

convencionais pôde interessar-se por um autor que exemplifica toda uma literatura

representacional que se desejava, na modernidade, criticar ou reformular. Nosso

estudo constatou que, na verdade, Galdós foi um autor que questionava o próprio

conceito do realismo por meio de seus romances ficcionais, que contavam com

contribuições de elementos fantásticos e até surrealistas, que nos permitem

vivenciar um mundo de delírio e de alucinação imaginativa diferente ou

complementar do ambiente considerado comumente real. A fim de exemplificar

esse pensamento, María Zambrano analisou, na revista Hora de España, o

romance galdosiano Misericordia e Luis Buñuel filmou as obras Nazarín e

Tristana, ambas também de Galdós. O poema de Cernuda, “Díptico español”,

como acabamos de ver, manifesta uma verdadeira ode ao escritor canário,

atribuindo-lhe toda sorte de privilégios e elogios, que se opõem a uma trágica e

aflitiva situação espanhola presente. No lugar de uma Espanha desprezível do

momento em que se escreve o poema, “En la que regentea hoy la canalla” (verso

168), evoca-se uma Espanha galdosiana, “viva y siempre noble” (verso 169). Por

se acreditar que essa circunstância é transitória, revive-se uma Espanha mítica para

redimir um presente abominável.

Todos esses fatos fizeram-nos dissertar sobre a importância do realismo

para a literatura espanhola e que, deveras, tradicionalmente, interpretamos o

movimento realista de uma maneira parcial, incompleta e pouco elucidativa. É

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insuficiente, portanto, como apregoa o Miniaurélio virtual, conceber o realismo,

nas artes plásticas e na literatura, como “um enfoque objetivo da realidade em sua

concretude ou no seu conteúdo, que reage aos excessos da imaginação e da

emoção”. Dentro dessa perspectiva, na mesma referência teórica, tampouco é

aceitável a explicação filosófica de que o realismo é “uma doutrina que afirma que

o mundo objetivo tem existência real e que é independente do pensamento”.

Afinal, pelas leituras empreendidas e pelos autores citados, o realismo foi e é um

estilo de época que, em Galdós, põe em juízo o próprio racionalismo exacerbado,

decifrando os seus limites e equívocos. Se pensarmos que o realismo tem como

base fundamental o recurso descritivo, torna-se fácil deduzir que ele não é tão

realista como se pensa, na medida em que a descrição supõe seleção, preferências,

cortes e exclusões, o que declara abertamente a visão pessoal e imaginativa de

quem descreve. Quem descreve, descreve a seu modo, por conseguinte, fantasia,

delira, inventa. O que fazem artistas tão diversos como Galdós, Cernuda, Buñuel e

Zambrano é ler a realidade de uma perspectiva totalmente própria legitimada pela

ação do pacto de leitura. A sua escritura apresenta uma índole exorcista, que

ambiciona purificar o ar contaminado do presente pela natureza saudável do

passado, como se realmente quisessem combater um veneno com o seu antídoto. A

mensagem não somente estético-literária, mas também humana desses escritores

preza por uma leitura amplificada e inteligente do pensamento espanhol, que se

sustenta em uma visão hipostásica, que tem a capacidade de revelar e ser mais

autêntica do que a realidade nos oferece. As suas obras evidenciam um movimento

pendular muito semelhante que oscila entre monólogo, diálogo, história, biografia

e autobiografia alicerçado na releitura de uma série de mitos, talvez pelo profundo

anseio de se tornar, pelo exemplo seguido, um deles, na medida em que, como

uma peculiaridade humana, a vaidade também os enaltece e condena. Por outro

lado, a revisão de relevantes autores do passado para a literatura e a cultura

espanhola estimula a perpetuação dessa memória heróica atualizada pela sã

reflexão individual. Assim, muitos dos aspectos que afastam cronologicamente

esses artistas, também os aproximam pelo motivo de que todos experimentaram a

marginalidade, o inconformismo, o exílio, as guerras, o México, além de

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realizarem críticas literárias de outros escritores espanhóis e estrangeiros, sendo

uma de suas leituras fundamentais a obra de Cervantes.

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7. A EXPERIÊNCIA INTELECTO-EMOCIONAL DO EXÍLIO

Em meio ao fim decadente do século XIX, a emoção da ruína de um

estado espanhol livre atingiu os seus máximos patamares, a partir da conjugação

de vários fatores históricos. A Primeira República, totalmente malograda, existiu

somente durante o ano de 1873 e empossou quatro presidentes, enquanto o

segundo intento republicano de 1931 desfrutou de uma existência efêmera. Em

consonância com esses acontecimentos, o aparecimento dos ideais anarquistas em

resposta contestadora aos claros signos de corrupção e instabilidade política, a

perda de Cuba em 1898 e as ditaduras de Primo de Rivera e Francisco Franco

representaram uma sucessão de inesquecíveis desilusões dentro de uma realidade

concreta espanhola, as quais sustentaram, em María Zambrano, o alinhamento

desse verdadeiro momento de derrota ou ‘fiasco’ nacional com uma visão

metafísica e dubitativa da contingência humana em uma modernidade

contrariamente confiante na evolução científica, no bem-estar e na felicidade.

María Zambrano crê que, no século XIX, a decadência do pensamento

espanhol deveu-se à uma resistência em se aceitar um discurso idealista

extremamente em voga em outros países da Europa. Segundo a autora, o realismo

espanhol destacou-se por estabelecer profundas relações com a realidade, o que o

fez reconstruir todo um saber popular: “Las raíces con el saber popular no han sido

cortadas en España; en ninguna otra parte del mundo, en ninguna otra cultura la

conexión íntima entre el más alto saber y el saber popular, ha sido más estrecha y

sobre todo más coherente.” (ZAMBRANO, M., 1939, p.51) Na verdade, conforme

já explanamos, enquanto a filosofia cultivada na Europa aparta-se do mundo real e

cede lugar ao sonho idealista, o pensar espanhol, que sempre se notabilizou por ser

realista, refugiou-se em formas de expressão assistemáticas e mais distantes dos

cânones tradicionais, nas quais o pensamento flui sem as travas do rigor acadêmico.

María Zambrano continua escrevendo que:

Al no tener pensamiento filosófico sistemático, el pensar español se ha vertido dispersamente, ametódicamente en la novela, en la literatura, en la poesía. Y los sucesos de nuestra historia, lo que real y verdaderamente ha pasado entre nosotros, lo que a todos los españoles nos ha pasado en comunidad de destino, aparece como en ninguna parte en la voz de la poesía. Poesía es revelación siempre, descubrimiento; y

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sucede en nuestra cultura española que resulta muy difícil, casi imposible, manifestar las cosas que más nos importan, de modo directo y a las claras. Es siempre sin abstracción, es siempre sin fundamentación, sin principios, como nuestra más honda verdad se revela. No por la pura razón, sino por la razón poética. (ibidem, pp.70,71)

Assim, para compreender o pensamento espanhol, é necessário entender a

sua literatura. No mesmo ano em que María Zambrano publica Pensamiento y

poesía en la vida española, surge Filosofía y poesía, ensaio escrito durante o

exílio da autora no México, em 1939, e reeditado posteriormente em 1971 e 1987,

com o propósito de discutir a conciliação, principalmente no âmbito dos

acontecimentos culturais espanhóis, do pensamento e da poesia, interligados às

questões ou necessidades irrenunciáveis da metafísica, dos valores éticos e da

mística que envolvem o ser do homem ocidental desde Sócrates e Platão. Com a

apresentação de cinco ensaios, essa obra reúne as conferências sobre pensamento

e poesia que proferiu María Zambrano na Universidade de Michoacán, no

México. Embora, em nossa pesquisa, não tenhamos a intenção de discutir

especificamente essas relações, segundo Ana Bundgard (2000, p.229), em

Filosofía y poesía, existe um diálogo crítico com as conferências pronunciadas

por Ortega y Gasset em Madri no ano de 1929 e reunidas também em um livro

chamado ¿Qué es filosofia?

7.1. O desamparo do homem

No texto que abre o livro, que a autora considera servir como um prólogo,

ela vai relatando a sua saída difícil da Espanha em 1936, no qual representa o

desamparo trágico do homem exilado. Ela conta essa passagem da sua vida, a

nosso ver, para nos mostrar que assim como ela nascia para uma nova vida no

exílio, Filosofía y poesía também nascia, afirma a autora, em um momento em

que tudo era adversidade e impossibilidade, ainda mais quando, alguns meses

depois, María Zambrano e seu marido, ao regressarem a Espanha, viram

derrotadas as causas republicanas pelas quais lutaram com a implantação da

ditadura franquista. Isso lhe inspira refletir, por meio da literatura, sobre o fato de

que o pensamento e a poesia afrontam-se continuamente ao longo da cultura

espanhola e constituem duas partes misteriosas e insuficientes do homem, que são

o seu caráter filosófico e poético. Não é possível encontrar inteiramente o homem

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na filosofia, tampouco na poesia, ele somente pode ser descoberto na conjugação

dessas que seriam suas duas metades em busca de uma união original. Zambrano

diz exatamente isso:

[...] es que hoy poesía y pensamiento se nos aparecen como dos formas insuficientes; y se nos antojan dos mitades del hombre: el filósofo y el poeta. No se encuentra el hombre entero en la filosofía; no se encuentra la totalidad de lo humano en la poesía. En la poesía encontramos directamente al hombre concreto, individual. En la filosofía al hombre en su historia universal, en su querer ser. La poesía es encuentro, don, hallazgo por gracia. La filosofía busca, requerimiento guiado por un método. (ZAMBRANO, M., 1987e, p.13)

Parece-nos interessante a análise de Eduardo Subirats no sentido de que,

ao mencionar a obra de Miguel de Unamuno, uma das grandes influências de

María Zambrano, o autor chama a atenção para o fato de que Unamuno critica a

insubstancialidade, a carência de identidade e de profundidade no histórico

pertencente ao pensamento cartesiano juntamente à era iluminista dos

conhecimentos modernos. Em vista disso, continua Subirats, a obra unamuniana

busca o fazer poético como uma reação a um mito construído na modernidade que

é o da ausência ou da superficialidade no tratamento das coisas e do espírito. Um

pouco mais tarde, Ortega y Gasset recuperará a mesma problemática questionada

por Unamuno, que engendrará uma falta com referência a um passado de

substância, identitário e com densidade histórica e poética. María Zambrano

segue, em outro tempo, o mesmo percurso de seus ídolos escritores.

Y la poesía pura fue a establecer desde el lado opuesto del romanticismo pero con más profundidad, con más derecho, diríamos, el que la poesía lo es todo. Todo, entendamos, en relación con la metafísica; todo, en cuanto al conocimiento, todo en cuanto a la realización esencial del hombre. El poeta se basta con hacer poesía, para existir; es la forma más pura de realización de la esencia humana. (ibidem, p.84)

María Zambrano, em Filosofía y poesía, vai contrapor a razão filosófica a

uma necessidade poética urgente dentro dos tempos modernos. Como Unamuno e

Ortega, a ensaísta defenderá a necessidade de superar os excessos do ideário

racionalista, visto que, com ele, estão afetados os intensos valores religiosos, éticos

e mitológicos da cultura tradicional espanhola. A atitude poética atenderá a esse

propósito em María Zambrano que se aliará a um pensamento racional de teor

filosófico, cujo objetivo será não perder de vista uma série de importantes fatores

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subjetivos e religiosos fundamentais para a formação moral, histórica e espiritual da

pessoa, que é o que Unamuno, Ortega e, em seu tempo, Zambrano insistem em

reivindicar o seu devido lugar, o seu lugar de direito na sociedade moderna. Por

isso, é que esses autores, seguindo um parâmetro de análise filosófico-poético,

discutem os possíveis motivos da ruptura entre toda uma tradição histórica,

sobretudo, espanhola e o advento da modernidade. Conforme afirma Eduardo

Subirats, essa é a grande temática que distingue a cultura do século XX e

contemporânea. A proposta orteguiana de unir razão e vida, como também a de

María Zambrano em sintetizar razão e poesia pretende reconstruir o espaço religioso

no complexo contexto cultural do homem moderno. Tentativa filosófica de extrema

dificuldade, como é o lugar da filosofia nos tempos mais recentes de avassalador

progresso científico-tecnológico, porém, como o intelectual se caracteriza por certa

heroicidade trágica, ele luta mesmo de cara à falência contra um cenário que se lhe

apresenta totalmente adverso. Pois bem, isso nos faz recordar uma das máximas

unamunianas que diz que o importante é lutar, mesmo sem esperança de

vencimento. Essa é a função ética, social e histórica da filosofia e da poesia. Juan

Fernando Ortega Muñoz (1994) profere que ao mesmo tempo em que na poesia

vemos surgir naturalmente o homem concreto ou, como diria Unamuno, de carne e

osso no uso da palavra, na filosofia, a razão dispõe organizadamente a realidade

dentro de uma estrutura, para que a mesma possa ser entendida de maneira mais

lógica e racional. Zambrano coloca que desde Platão, existe esse enfrentamento

entre filosofia e poesia, que resultava em uma vitória da filosofia e uma condenação

da poesia. Desses dois pólos, ainda nasce um terceiro efeito que seria o da

revelação. Em Filosofía y poesía, a autora aborda o livro VII de A República, onde

Platão apresenta o mito da caverna e assenta que a filosofia, neste simulacro,

origina-se da violência, que, ao lado da admiração, constitui uma dualidade

originária de toda a filosofia para Zambrano.

Y ahora ya, sí, admiración y violencia juntas como fuerzas contrarias que no se destruyen, nos explican ese primer momento filosófico en el que encontramos ya una dualidad y, tal vez, el conflicto originario de la filosofía: el ser primeramente pasmo extático ante las cosas y el violentarse en seguida para liberarse de ellas. Diríase que el pensamiento no toma la cosa que ante sí tiene más que como pretexto y que su primitivo pasmo se ve en seguida negado y quién sabe si traicionado, por esta prisa de lanzarse a otras regiones, que le hacen romper su naciente éxtasis. La filosofía es un éxtasis fracasado por un desgarramiento. (ibid., p.16)

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Como lemos, a filosofia, pensa María Zambrano, é um êxtase fracassado

por esse ‘desgarramento’ da admiração inicial provocado pela posterior brutalida-

de da inflexível razão, é como a dor de um nascimento para o novo, basta saber

para o que se está nascendo e por que, aí está o espírito de revelação que a filoso-

fia e a poesia, tensionadas pela força violenta unificante e segregadora, que busca

o descobrimento de uma verdade, suscitam. Todo o interesse de María Zambrano

está em, a partir de uma forma de expressão original, cultivar, na meditação filo-

sófica, reflexões sobre a realidade do homem que a ciência moderna condenou tra-

gicamente à solidão. O caminho a ser percorrido é aquele que o sujeito busca o

que não se possui, mas que precisamos como uma necessidade irrenunciável. O

homem é um ente inacabado e inconcluso, cuja situação de imperfectibilidade des-

de os primeiros tempos faz com que a poesia encontre uma vasta e rica temática,

provocadora de fascínios e eternas dúvidas. De fato, o lavor poético é impensável

sem a oscilação da presença e da ausência de uma subjetividade que vai organi-

zando-se, perdendo-se e reencontrando-se nos labirintos de uma linguagem simbó-

lica, que anseia ceder voz ao(s) outro(s), como requisito sine qua non para a des-

coberta de si própria.

7.2. A poesia como uma forma de pensar o trágico

Acreditamos que a problemática discutida por María Zambrano em

Filosofía y poesía serve para simular o sentido geral do trágico em sua vida, como

a saída da Espanha através do exílio que funcionaria como um acontecimento real,

mas também como uma metáfora desse ser que se busca por não saber ao certo

quem é ou que elementos o constituem e que tenta aplacar a angústia de se sentir

um ser perdido no mundo. Isso evidentemente está representado, como dissemos,

dentro de um plano filosófico, mas também dentro de uma realidade concreta, o

que nos parece extremamente interessante dentro da nossa análise. Como agentes

fomentadores desse sentir, é indispensável a referência, que tanto andamos

debatendo, à modernidade, à sensação de melancolia, à derrota de um desejo épico

pelo triunfo de uma república social e libertadora. De maneira muito perspicaz,

Zambrano reflete, por meio de filósofos mestres como Platão e Sócrates, a

condição trágica do homem na modernidade ao declarar que, desde tempos muito

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remotos, o pensamento, muitas vezes como uma força violenta defensora de uma

verdade, sempre travou rigorosas batalhas com a poesia, com a afirmação das

necessidades preeminentes do sujeito. Na verdade, Platão, por meio de uma série

de metáforas filosóficas, traduzia poeticamente a crise e os questionamentos

intrínsecos da alma humana, que atravessam os tempos. É verdade também que

enquanto a filosofia mostra um caráter de fracasso diante da perplexidade com

respeito a uma realidade imediata, a poesia caracteriza-se como uma forma de

esperança que confere ao sujeito uma autonomia da pessoa. De qualquer maneira,

pensamos que a escritura, como um ato exclusivo do sujeito, é sempre um sinal de

esperança, pois o desejo por mudança é o que motiva o ato de escrever. Sem

esperanças, não se escreveria, não se discutiria, não se lutaria.

De no tener vuelo el poeta, no habría poesía, no habría palabra. Toda palabra requiere un alejamiento de la realidad a la que se refiere; toda palabra es también, una liberación de quien la dice. Quien habla aunque sea de las apariencias, no es del todo esclavo; quien habla, aunque sea de la más abigarrada multiplicidad, ya ha alcanzado alguna suerte de unidad, pues que embebido en el puro pasmo, prendido a lo que cambia y fluye, no acertaría a decir nada, aunque este decir sea un cantar. (ibid., p.21)

Como revelação, a poesia, por certo afastamento da realidade concreta,

desfruta da experiência de ‘desembaçar’ o enigma do mundo, compreendendo que

cada civilização detém uma visão particular do seu próprio tempo. Os

pressupostos definidores do sujeito lírico, como uma entidade fragmentária,

incompleta, cindida apresentam suas raízes na observação funesta de uma história,

cujo sentido se quer dotar por meio do pensar poético. A poesia é, assim, “essa

busca de um agora e de um aqui”, haja vista que a técnica não bastasse usurpar do

homem uma imagem de mundo, não foi capaz de lhe fornecer outra visão

substituta, que apoiasse as suas convicções. Um regresso às antigas mitologias

tampouco seria uma solução plausível a esse problema, em virtude de uma

perspectiva intelectual moderna, difusora de outros valores concordantes com as

novas particularidades de uma atual vivência histórica. O poeta, dessa maneira,

descobriu-se cercado pela imensa solidão de um desterrado tanto no presente

como também no futuro, ocasionada pela dúvida e pela ausência dos nexos que

conectavam o homem a um passado e também a um porvir. A frustração da

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civilização referente à inexistência de pelo menos um espectro de futuro, no qual

antes se acreditava firmemente, decantou os sonhos relativos às promessas da

modernidade no tocante à imortalidade da história. O que restou foi a

instantaneidade de um presente fugidio que se distingue pelo movimento e pela

passagem, o qual, face à sua efemeridade, não permite ao homem uma

identificação e um reconhecimento pleno de si. Ao poeta e ao homem, falta-lhes

unidade e, para Zambrano, a unidade que pensa conseguir o poeta na poesia é

sempre incompleta, na medida em que há sempre o desejo de saber, como muito

bem decretou Aristóteles e, nesse sentido, a poesia e a filosofia, como

representantes do ato de escrever, são um tempero especial que diferenciam a

compreensão do mundo, que intencionam rejeitar todos esses valores impostos

pela cultura da modernidade, que valorizam o forte, o grandioso, o vencedor,

quando, na verdade, vivemos situações em que predominam valores ou

sentimentos extremamente contrários a esses.

A pesar de que en algunos mortales afortunados, poesía y pensamiento hayan podido darse al mismo tiempo y paralelamente, a pesar de que en otros más afortunados todavía, poesía y pensamiento hayan podido trabarse en una sola forma expresiva, la verdad es que poesía y pensamiento se enfrentan con toda gravedad a lo largo de nuestra cultura. Cada una de ellas quiere para sí el alma donde anida. Y su doble tirón puede ser la causa de algunas vocaciones malogradas y de mucha angustia sin término anegada en esterilidad. (ibid., p.13)

A obra de María Zambrano procura reconciliar a filosofia e a poesia como

duas formas de pensar e dizer-escrever o mundo. Parece-nos claro que María

Zambrano contempla a realidade de uma maneira filosófico-poética ou através de

uma razão poética, que se torna um método outro para apreender a realidade e

tentar amenizar harmonicamente um conflito íntimo entre um sentir, um querer ser

poeta e um precisar ser filósofa: “[...] Zambrano pretende hacer filosofía desde la

perspectiva y posición discursiva del «poeta», una filosofía nueva, cuyo logos

habría de traspasar los límites de lo racional.” (BUNDGARD, A., 2000, p.217) A

ensaísta espanhola nunca ocultou as suas reservas quanto à filosofia clássica no

que respeita ao lógos da razão e ao pensamento sistemático para expor conceitos,

no geral, ontológicos dentro da escritura moderna. Desse modo, María Zambrano

insiste muito na crítica da filosofia da modernidade e, a partir dela, realiza uma

análise que contesta a filosofia como um todo. Para a autora, era necessária uma

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filosofia diferente, mais poética, em contraste com a própria história e tradição do

pensamento ocidental, para que fosse possível criar um tipo de laço adâmico entre

o ato filosófico e o ato poético. Nesse discurso, há uma influência romântica que

apregoa uma característica divina ao poeta e um poder redentor à poesia no intuito

de exceder uma modernidade racionalista por meio do que a autora chama, como

já vimos, de uma metafísica da criação. Nesse sentido, existe uma valorização do

indivíduo e o seu poder de criação na arte, que, consequentemente, passa para a

história como uma manifestação humana. O homem diviniza-se na medida em que

é capaz de criar na arte e na história, na medida em que pode construir a realidade.

Se pudermos assimilar que o homem, mediante o ato de criar, consegue

(re)incorporar o divino em seu interior, poderemos também depreender que essa

heterogeneidade primigênia do seu ser lhe possibilita a transcendência, o que

peculiariza o pensamento zambraniano como o de um idealismo em busca do

sublime à semelhança do de São Agostinho e de Platão.

Vale notar que, em Filosofía y poesía, María Zambrano não diferencia ou

conceitualiza rigidamente pensamento, filosofia, poesia ou conhecimento. Nos

textos, tais termos aparecem de forma alternada, sem claras distinções. De acordo

com a ensaísta, a filosofia é “un éxtasis fracasado por un desgarramiento”

(ZAMBRANO, M., 1987e, p.16), como um método de conhecimento que visa

alcançar uma verdade transcendente ao próprio sujeito e esperançosa, que lhe

conduza ao (re)encontro com o divino em um voltar-se cristão para a

interioridade: “Zambrano niega, apenas sin matizar o diferenciar, que un

conocimiento sistemático y abstracto como en su opinión era la filosofía, pueda

nunca captar y aprehender lo radical de la vida, el claroscuro y la zona de

penumbra de lo irracional humano.” (BUNDGARD, A., 2000, p.233) Na

realidade, seguindo concepções unamunianas, María Zambrano vê a filosofia

como uma maneira de pensar nascida do fracasso e a ele também destinada por se

tratar de uma reflexão abstrata e ideal que sacrifica e arruína a vida. Em virtude

desse conceito, a autora vislumbra o pensamento filosófico como uma modalidade

de discurso que se notabiliza pelo saber incontestável da experiência. A poesia e o

poeta estão envolvidos por um misticismo de uma vivência subjetiva, que se

expressa por meio de uma escritura ficcional narrativa de representação. A

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oposição entre filosofia e poesia está no fato de que existe uma espécie de traição

originária de um fracasso. Explicando melhor essa questão, para María Zambrano,

a filosofia nasce de uma traição do pensamento distanciado da admiração e dela

‘desgarrado’ pela violência do conhecimento. Vale a pena repetir a citação:

Diríase que el pensamiento no toma la cosa que ante sí tiene más que como pretexto y que su primitivo pasmo se ve enseguida negado y quién sabe si traicionado, por esta prisa de lanzarse a otras regiones, que le hacen romper su naciente éxtasis. La filosofía es un éxtasis fracasado por un desgarramiento. ¿Qué fuerza es esa que la desgarra? ¿Por qué la violencia, la prisa, el ímpetu del desprendimiento? (ZAMBRANO, M., 1987e, p.16)

Insistimos em que Filosofía y poesía aborda, de maneira reiterativa, a

violência da filosofia e a crítica do valor sistemático e abstrato dessa forma de

pensamento, que simboliza, na concepção zambraniana, o ‘poder’, a ‘soberba’, o

‘saber ambicioso’ e o ‘império da razão’. A poesia, em meio a essa crença,

aparece como a vivacidade única do espírito, a partir de uma ampla sucessão de

dicotomias de efeito enunciativo apresentada pela escritora espanhola.

Frente a la «soberbia de la filosofía» se alza en el discurso zambraniano el principio receptor, pasivo y apasionado de la poesía, «gracia y verdad», mas no «verdad excluyente», sino «generosa presencia», «heterogeneidad», «multiplicidad desdeñada», «esperanza», «poder dulce e inquieto que calma y no basta», «posesión de un todo recibido», «mundo abierto», «fidelidad de las cosas», «admiración ante la vida», «don, hallazgo por gracia». (BUNDGARD, A., 2000, p.234)

Desse modo, conforme assevera Zambrano, conhecimento e poesia,

sobretudo na modernidade, tornaram-se saberes rivais. A única forma de

congraçá-los novamente será por meio da mediação de um lógos redentor

concebido pela escritora como método da razão poética, que, embora não

totalmente elaborado no ano de 1939, já estava em processo de formação. Esse

princípio de inteligibilidade define-se por um caráter essencialmente místico e

religioso, visto que a ‘verdade’ alcançada por este método é concedida por uma

‘graça’. Por causa de sua inefabilidade, essa ‘verdade’ revelada pela razão poética

à autora não pode ser compreendida totalmente pelo pensamento.

La verdad se reconoce ya como parcial y la misma razón descubridora del ser, reconoce la diferencia injusta entre lo que es, y lo que hay. Al hacerlo así, se acerca al terreno de la poesía. Y la poesía al sufrir el martirio de la lucidez, se aproxima a

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la razón. Mas no pensemos todavía en que se verifique su reintegración, tantas veces soñada por quienes no pueden decidirse entre una y otro. Quien está tocado de la poesía, no puede decidirse y quien se decidió por la filosofía no puede volver atrás. Sólo el tiempo, la historia, cuando al fin, haga que se sitúe la razón, agotado el tema del ser y de la creación, más allá. Allí donde, desde hace largos tiempos, espera la verdad revelada e indescifrable, la verdad donde, realmente, la «caridad está hechizada». Caridad y comunión que no han trascendido al pensamiento, porque nadie ha podido todavía pensar este «logos lleno de gracia y verdad». (ZAMBRANO, M., 1987e, p.116)

María Zambrano afasta-se do conhecimento filosófico clássico e da

metafísica moderna para, posteriormente, vaticinar a ideia de conciliação entre

filosofia e poesia em um lógos que assimile uma verdade descoberta e

indescifrável aos olhos puramente racionais, que se aloja em um terreno além do

ser, da criação ou da lógica tradicional. Como esse lógos ultrapassa a razão,

ninguém realmente ainda pôde pensá-lo.

Cabe perceber, nas interpretações que María Zambrano realiza sobre a

Divina Comédia, as relações fluidas que antes vigoravam entre religião, poesia e

filosofia: a obra de Dante “realiza ese momento feliz, tal vez no repetido, de unión

sin vagas y nebulosas identificaciones, entre poesía, religión y filosofía.” (ibidem,

p.75) Segundo a escritora, a filosofia e a religião encarnavam a esperança de ser

para o homem e a poesia, por sua vez, tratava de materializar miticamente esse

sentimento salvífico. Parece-nos que a razão poética tem o intuito de restaurar a

identificação venturosa entre filosofia, religião e poesia, conforme o elo

apresentado na Divina Comédia e na própria poesia mística.

Otro momento de unidad profunda entre las tres cosas se verifica, según se nos ha aparecido, por el camino de la mística. Pero esto es preciso al menos dejarlo ahora señalado, comporta un problema aparte: la cuestión un tanto grave, de que toda poesía sea en último término, mística o la mística sea en su raíz poesía; una forma de religión poética o religión de la poesía. (ibid.)

Na visão de María Zambrano, na época da modernidade, o homem

reempreende, por meio de uma ‘metafísica da criação’, a abertura de outros

horizontes de esperança, que consistem em atrair para o nosso mundo o que, em

tempos passados, aceitava-se como uma bênção do além-túmulo: “La nueva

esperanza no se encierra dentro del asceticismo; lo quiere todo, sin tener que

renunciar por el pronto a nada.” (ibid., p.76) Se antes somente a deidade tinha o

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poder de se autodeterminar, nos novos tempos, o homem possui a faculdade de se

conceber a si próprio como um ente livre, autônomo e fecundo.

Éste era, al parecer, el programa del pensamiento; programa francamente religioso. La razón caminaba por el cauce de una desmedida ambición religiosa. El hombre quería ser. Ser creador y libre. Y seguidamente: ser único. Son los pasos decisivos sin duda de la historia moderna, de eso que propiamente se llama Europa. Y su angustia y su tragedia. (ibid., pp.77, 78)

Sem lugar a dúvidas, María Zambrano destaca a realidade da pessoa como

um assunto de foro íntimo e reconhece que todo ser é heterogêneo em relação ao

mundo que povoa, posto que em vez de se pensar a partir das coisas ou dos

objetos, se reflete a partir do sujeito.

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8. A CONFISSÃO AUTOBIOGRÁFICA NO ENSAIO

La confesión no consiste en revivir ni en rehacer; consiste en manifestar lo que nunca se deshizo en el pasado, lo que nunca dejó de vivir por ser consustancial con la vida del que confiesa.

Rosa Chacel: La confesión. (1980, p.19)

A relação profícua que podemos vislumbrar entre o ensaio como uma

forma de manifestação estética autobiográfica e confessional justifica a nossa

intenção de abordagem da obra zambraniana nesse capítulo, que denotará uma

continuidade das reflexões empreendidas na Dissertação de Mestrado, por nós

realizada, sobre A construção do sujeito no discurso autobiográfico de Miguel

de Unamuno3, a qual defendemos no ano de 1998. Estamos interessados em

alguns conceitos expostos por María Zambrano no ensaio La confesión: género

literario y método, publicado em 1943, na revista Luminar, no México.

Georges Gusdorf (1991, p.12) assegura que o autor de uma autobiografia

atribui a si mesmo a tarefa de contar a sua própria história, procurando conciliar os

elementos dispersos de sua vida pessoal e agrupando-os em um esquema de

conjunto. O autobiógrafo pretende refazer certos caminhos da sua existência a

partir da criação de um tipo de filme, conduzido por um roteiro pré-determinado

que, sem dúvida alguma, altera os acontecimentos já pela seleção que realiza das

peripécias da sua vida no relato que deseja registrar por escrito. No esteio de uma

verdade pessoal relativa, onde devemos contar com fatores psicológicos, como

recordações e esquecimentos voluntários ou inconscientes, nos deparamos com

uma inevitável representação volátil de si mesmo, já que cada indivíduo possui a

3 O capítulo da Dissertação de Mestrado que, nessa tese, estamos reconstruindo intitula-se “Diario íntimo e a autobiografia”. No trabalho para o mestrado em que analisamos a obra unamuniana Diario íntimo, composta por cinco cadernos recopilados, com uma primeira publicação póstuma em 1970, vislumbramos a forma do diário, utilizada pelo autor, também como outro recurso autobiográfico, no qual a ficcionalidade é o principal ingrediente. Embora se considere o diário uma forma mais natural, espontânea e próxima temporalmente do sujeito que o escreve, também o diário chama a atenção pela insinceridade tal qual a autobiografia. Igualmente, desenvolvemos a tese do diário como confissão, distinguindo diário e autobiografia, apesar de que, reforçamos, tenhamos chegado à conclusão de que o diário pode ser utilizado literariamente para escrever autobiografias. Além disso, abordamos, outrossim, como Unamuno disserta sobre a criação da imagem do escritor perante o público leitor, valendo-se da intertextualidade realizada pela abundância de citações bíblicas contida na obra.

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sua própria história e a sua própria fé em seus princípios e valores íntimos, que

também se transmutam ao longo do tempo por novas experiências e, em

consequência, pelas mudanças de perspectivas. Na autobiografia, o caráter seletivo

da memória filtra, modifica e concede graus de relevância diferentes às lembranças.

Wander Melo Miranda (1992, p.34) sustém que a escritura autobiográfica permite

que o retrocesso vivencial possa reorganizar o caos e a acumulação de experiências

pela reflexão crítica, cuja meta é, a partir de uma nova ordenação do passado,

atribuir-lhe um (outro) sentido. A autobiografia, como um instrumento de confissão

do que se foi e do que se fez, é utilizada para o conhecimento de si e do mundo que,

por diversos fatores, influiu nas ações e decisões do sujeito. A autobiografia

confessional exige que o homem esteja situado a certa distância de si mesmo, a fim

de que possa restaurar-se em sua unidade e em sua identidade através do tempo. A

confissão autobiográfica cobiça uma maneira de realização narcísica, que concede

um status especial ao autor dentro da instituição literária, definindo-se como um

discurso que reinventa a própria existência daquele que se confessa, na medida em

que relata somente o que lhe parece importante e digno de revelação ao outro. A

autobiografia e a confissão definem-se pela abrangência seletiva de toda uma

importante existência, posto que o homem, ao escrevê-las, tem a consciência de que

o seu empreendimento merece ser realizado. Antes de abordar integralmente a vida

de um ser humano, é mais interessante eternizar e transformar segmentos dela tidos

como relevantes pelo autor.

8.1. A escritura como simulacro

A crise histórica e de valores que vivencia María Zambrano em sua época

dirige-se ao plano artístico filosoficamente por meio do ensaio, que viabiliza

falarmos sobre uma reversibilidade das correspondências entre a confissão

autobiográfica e a ficção, onde podemos detectar a presença de elementos

autobiográficos nos textos literários zambranianos, que creditam a necessária

confiança na realização do pacto entre autora, obra e leitor. A confissão e a

autobiografia discutem esse problema da identificação entre o modelo e a sua

representação literária, entre, por exemplo, o sujeito empírico María Zambrano e

a escritora, a ensaísta, a intelectual María Zambrano, contemplada em suas obras.

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O movimento de revisão da experiência do escritor transcorre através de um eu

sempre suscetível de ser interpretado, carente de um parâmetro único, com o qual

possa determinar a sua suposta verdadeira autenticidade; em definitivo, o texto

autobiográfico-confessional não pode permancer incólume em referência a tal

desconstrução.

María Zambrano anuncia que a confissão tem como origem o mesmo

tempo real da vida, partindo da confusão e do imediato temporal. A confissão

destina-se à procura de outro tempo distinto do factualmente vivido. Zambrano

ainda explica que aquele que escreve uma confissão está, na verdade, em busca

de um tempo não fantasioso ou imaginário, porém quer descobrir um tempo real

como o seu por não se conformar com o tempo virtual do artista.

La Confesión es el lenguaje de alguien que no ha borrado su condición de sujeto; es el lenguaje del sujeto en cuanto tal. No son sus sentimientos, ni sus anhelos siquiera, ni aun sus esperanzas; son sencillamente sus conatos de ser. Es un acto en el que el sujeto se revela a sí mismo, por horror de su ser a medias y en confusión. [...]

La confesión parte del tiempo que se tiene y, mientras dura, habla desde él y, sin embargo, va en busca de otro. La confesión parece ser una acción que se ejecuta no ya en el tiempo, sino con el tiempo; es una acción sobre el tiempo, mas no virtualmente, sino en la realidad. (ZAMBRANO, M., 1995, pp.29, 30)

A confissão anseia encontrar uma relação entre a vida e a verdade. É

certamente por essa razão que o confessor procura não anular a sua condição de

sujeito dentro de uma realidade concreta, embora, por se originar de um ato

desesperado, a confissão sempre começa com uma fuga de si mesmo. Essa saída

de si motiva a aflição em referência ao que se é e a esperança de que o que ainda

não se conhece apareça. A aflição extrema deve ser compreendida como uma

queixa, antes que a contemplemos como uma confissão, na qual há uma fuga de si

e a expressão de alguma culpa, de um eu que não se aceita. Explica Zambrano

que, primeiramente, há uma queixa e não uma confissão, porque o desespero e a

esperança são imediatos. Através do desespero, não se pode descobrir a

interioridade como na confissão, pois a dor sentida é provocada por problemas

externos, que estimulam a perguntar e a pedir razões. A confissão, como um

processo autobiográfico, é o resultado da revisão organizadora de uma

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experiência, enquanto a queixa do desespero demonstra tão somente a

insatisfação e o medo.

A confissão, na maioria dos casos, pretende chegar ao veridito de que

vários sucessos poderiam ter sido diferentes se as atitudes também tivessem sido

outras. Na realidade, o sujeito que vivenciou uma existência real assume os

desabores da sua vida. A realização de desejos e planos não vingou, visto que

dependia de suas escolhas. Na confissão, o sujeito sente-se responsável por

fracassar ao passo que, no desespero, o indivíduo sente-se anulado e

completamente dependente do divino, não confiando em seu ser. No desespero, o

sujeito não pode descobrir a sua interioridade, pois a sua existência desagua-se na

dor, no conflito e na injustiça. A ação do indivíduo, nesse estado, é queixar-se e

implorar salvação à divindade.

É necessário salientar, contudo, que a confissão acaba vencendo o

desespero e a queixa. De uma forma ou de outra, o desespero e a queixa

convertem-se em um ato confessional, que põe de manifesto a tragicidade da

existência humana. Além disso, como já discutimos, a confissão é uma saída de si

mesmo em fuga por não aceitar o sujeito a sua própria condição de ser e a vida tal

qual se configura diante dos seus olhos. María Zambrano (ibidem, p.37) assegura

que a confissão expressa o caráter fragmentário de toda a vida, na qual o homem

sente-se como um pedaço incompleto, um esboço de nada, uma partícula de si

mesmo. Nos ensaios zambranianos, atendendo às prerrogativas da modernidade e

do sujeito em crise, observamos que a vida não está contemplada de forma

harmônica e perfeita, mas sim como um dom incompleto e carente de unidade.

Essa constatação do caráter fragmentário de toda a vida evidentemente interfere

na compreensão que tem de si o próprio homem. É em virtude de uma existência

que não se transcende na eternidade que o ser humano se descobre infeliz e

dilacerado dentro de sua contingência histórica. A prolongação da escritura

ensaística em direção à autobiografia e a confissão denunciam que a criação real-

ficcional trágica perpassa e se perpetua nas obras de María Zambrano. Em seus

escritos, encontramos irrefutavelmente a expressão de um sentimento de falta e de

preocupação com o homem e com a vida estampados na arte.

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María Zambrano estima que o desespero de si mesmo e a fuga de si na

esperança de se encontrar são os traços que definem a confissão. As palavras

‘desespero’ e ‘esperança’ são vitais, quando nos referimos à confissão, porque

como explica María Zambrano:

Desesperación por sentirse obscuro e incompleto y afán de encontrar la unidad. Esperanza de encontrar esa unidad que hace salir de sí buscando algo que lo recoja, algo donde reconocerse, donde encontrarse. Por eso la Confesión supone una esperanza: la de algo más allá de la vida individual, algo así como la creencia, en unos clara, en otros confusa, de que la verdad está más allá de la vida. (ibid., pp.37, 38)

A teórica novamente ensina-nos que a confissão somente nasce com a

esperança de uma revelação interior e pessoal. Por essa razão, apresenta a

condição da vida humana tão imersa em contradições e paradoxos. María

Zambrano patentiza que a figura de autora que constrói e reafirma em seus

ensaios demonstra que a vida carece de unidade, embora a necessite

fervorosamente. A ensaísta espanhola, em suas obras, ao mesmo tempo em que

reflete o esfacelamento do eu em uma existência real-ficcional e a crise de valores

do mundo moderno ocidental, anseia, através da repetição da característica

agônica e trágica do sujeito, adquirir a desejada unidade de que se ressente a vida.

O desdobramento e a atomização da personalidade e do tempo cronológico

pretendem evidenciar a possibilidade da busca de alguma outra dimensão

desprovida da angústia e do sofrimento do momento presente. É interessantíssima

a ideia suscitada por María Zambrano (ibid., p.38) de que a confissão é uma

espécie de realidade virtual compensatória e que a vida se expressa com vistas a

conquistar a transformação. Para a autora, a confissão não é senão um método, a

fim de que a vida se livre de seus paradoxos e consiga coincidir consigo mesma

na procura de um dificílimo equilíbrio.

A confissão, como gênero literário, não obteve sucesso em todos os

tempos. A confissão é própria e exclusiva de nossa cultura ocidental e aparece,

dentro desse espaço, em momentos determinantes, decisivos, em que parece estar

em dissolução a cultura e o homem sente-se sem apoio e solitário. São esses

momentos de crise em que o homem concreto tira a capa protetora do seu

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desenvolvimento material que propiciam a confissão, espelho inconteste da

revelação do seu fracasso, tema esse que estamos discutindo ao longo dessa tese.

Dentro do núcleo temático da pesquisa, é relevante ainda advertir que

María Zambrano articula a confissão, como gênero literário, com o fracasso de

nossa sociedade ocidental e da cultura aí implicada. A escritora assinala que

quando a cultura encontra-se amadurecida e não se percebe em crise, o que quase

sempre é muito pouco provável, as problemáticas da existência humana

permanecem latentes. Atentemos para a seguinte citação, em que a teórica refere-

se aos diversos tipos de confissões, por exemplo, a de São Agostinho e a de Job,

outros intertextos dos seus ensaios, como também uma forma de interpretar,

através da arte, os mais profundos desejos humanos.

Y así estas Confesiones manifestarán los géneros de fracaso que nuestra cultura ha soportado y algo tal vez más importante: los distintos anhelos, los profundos anhelos encubiertos por el arte, objetivados por la Filosofía, desteñidos en las épocas de indecisión y ocultos en la plenitud de los tiempos maduros. Pues cuando el hombre vive en una cultura madura, cuando ha hallado al fin una objetividad bajo la que habitar, la existencia humana en su desnudez se oculta. (ibid., p.39)

A fim de reforçar os nossos suportes teóricos, é importante referir-nos à

relação entre cultura e crise social na visão nietzscheana de Roland Barthes

(1986, pp.88-91), mais precisamente sob a interpenetração dos conceitos de cultu-

ra e tragédia. Barthes defende, com grande acerto e com base em Nietzsche, que

as épocas de questionamentos, ardentes são épocas trágicas, de reflexão cultural.

A tragédia não seria senão um esforço caloroso de se despojar o sofrimento hu-

mano causado por uma cultura em discussão. O sentimento trágico da vida deve a

sua razão de existir e proliferar em determinados momentos da vida humana à tra-

gédia, que afeta todos os âmbitos da existência, caracterizando-se como um espí-

rito de época, em que se desnudam todos os conflitos sufocados por uma cultura

aparentemente aceita pelo homem. Os receios manifestados na obra de arte são o

resultado de uma crise cultural vivenciada em um momento histórico especial.

Retomando a ideia de que a obra ensaística de María Zambrano é uma re-

ação ao racionalismo e ao tecnicismo exagerados da modernidade, que capitaliza

o sentimento do divino para combater a mecanização do homem, voltamos a afir-

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mar que a própria arte mostra-se, para a autora, como uma religião pessoal e uma

ferramenta para exercitar a fé na concretização dos anseios humanos. Temos ciên-

cia de que o sentimento de espiritualidade está muito vivo em toda a obra de Ma-

ría Zambrano, especialmente, em seus textos mais maduros, cujo ápice é repre-

sentado por El hombre y lo divino, que estudaremos mais tarde.

O que podemos dizer é que, na verdade, a insatisfação estimularia, no

nível humano, o sentimento trágico, no nível social, a crise da cultura e, no nível

literário, a confissão autobiográfica ou o desabafo, usando como instrumento o

gênero moderno por excelência: o ensaio. A confissão surge de um sentimento de

vazio e de inimizade com relação à realidade. Todos os que escreveram o relato

de sua vida em tom de confissão partem de um momento, em que viviam de

costas para o real, distantes dele, embora o ato da escritura ou de escrever declare

abertamente a importância dos fatos pretéritos na trajetória existencial do

confessor.

Levando-se em consideração as influências filosóficas de Miguel de

Unamuno, para a ensaísta espanhola, todo o projeto humano, que seja levado a

cabo sem a presença do divino, estará destinado às ruínas, posto que o culto

exclusivo e egoísta ao eu termina por se identificar com o nada e, assim, torna-se

sinônimo de niilismo, onde se delata a inegável relação do nada com o espírito

crítico da modernidade. Chegar a essa conclusão é de extrema relevância para

compreender a identificação da obra ensaística zambraniana com o religioso ou o

divino. A autora necessita da utopia da esperança religiosa ou divina para se

escrever e ressaltar ao leitor a condição trágica humana constituída pelo desgosto

e pelo sofrimento. Esse alicerce extramundo e extrahumano é fundamental para a

criação de uma existência zambraniana ficcional notabilizada a partir de uma

existência subjetiva heróico-trágica particular.

8.2. A confissão e o leitor

María Zambrano sustenta que a confissão opera a função primordial de

fazer com que o leitor revise a sua consciência tal como o empreende o confessor.

[...] la confesión, al ser leída, obliga al lector a verificarla, le obliga a leer dentro de sí mismo, cosa que el lector curioso no quiere por nada, pues él iba para

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mirar por una puerta entreabierta, para sorprender secretos ajenos, por una falta de precaución, y se encuentra con algo que le lleva a mirar su propia conciencia. La confesión literariamente tiene muy pocas exigencias, pero sí tiene ésta de la que no sabríamos encontrar su receta y es: ser ejecutiva, llevarnos a hacer de la misma acción que ha hecho el que se confiesa: ponernos como a él a la luz. (ibid., p.45)

María Zambrano assinala que o fundamental na confissão não é ser visto,

porém deixar-se ver com o objetivo de que nos sintamos unificados, identificados

pelo mesmo olhar, pois todos os que fazem uma confissão expressam igual intuito

de recobrar um paraíso perdido. María Zambrano, em seus ensaios, tem o intuito

de problematizar certas questões de seu tempo e conquistar uma harmonia

existencial impossível no presente. A confissão, como gênero literário presente

nos ensaios da autora, é mais um reflexo das preocupações da escritora enquanto

intelectual, visto que o seu papel na sociedade ultrapassa os limites da realidade,

refluindo para o espaço de suas produções literárias, que se constituem a partir da

articulação entre crítica e criação; a experiência humana inevitavelmente

contamina a experiência literária, pois é muito enriquecedor que a experiência de

um indivíduo, neste caso o autor, seja aproveitada pela experiência do outro, pela

experiência de outros escritores literários e personagens emblemáticos que

marcaram indelevelmente a tradição cultural do Ocidente e universal. É, dessa

maneira, que a escritora adquire uma determinada identidade e fama dentro da

história de seu tempo, é dessa forma que se revela e se destaca perante os demais.

Na representação autobiográfica, o fazer do texto é concomitante a um

(des)fazer do sujeito que o cria, instaurando assim, uma trajetória dupla de auto-

reflexão artística. A autobiografia confessional procura a coerência e a unidade,

entretanto, esse objetivo é muito difícil de alcançar, na medida em que, desde o

início, o autor contempla-se desdobrado entre sujeito e objeto do seu discurso; é

duplamente personagem enquanto escritor e matéria da escritura. Escrever é

indiscutivelmente obliterar o passado por meio de uma memória voluntariamente

falha ou não. Esse conhecimento lacunar, fragmentário e incompleto,

proporcionado pela memória é que articula escrita e leitura e é intermediando

uma e outra que surge a imaginação. A confissão autobiográfica concentra-se na

rememoração de fatos passados.

Escrever, segundo Roland Barthes e Rafael Argullol (1990), supõe uma

renúncia de si mesmo levada a cabo pelo próprio autor. Essa desapropriação do

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sujeito com a finalidade de construir um outro supedita a autobiografia

confessional. Como Argullol e Barthes, também Paul De Man (1991, p.6) divulga

que a negação da propriedade do eu, na medida em que exprime que o

desdobramento do sujeito em eu narrador e em eu narrado, além da multiplicação

do eu narrado observada no seu contar e até recontar, denota que o texto

confessional autobiográfico é um artefato teórico e que o artifício da literatura,

distante de reproduzir ou criar uma vida, antes de qualquer coisa, efetua a sua

desapropriação. Michael Sprinker (1991) dedica-se ao estudo do texto para

defender o pensamento de que, na autobiografia, de maneira similar ao processo

confessional, o sujeito, muito longe de controlar o texto, encontra-se constituído

por um discurso que nunca domina, produzido por uma inconsciência

inapreensível, constantemente em mudança. Paul De Man, inclusive, chega a

admitir que talvez devéssemos pensar que o projeto autobiográfico produz e

determina a vida.

Em suas últimas obras, Paul De Man procura inserir-se profundamente na

estrutura retórica dos textos autobiográficos para demonstrar de que maneira a

estrutura da mimesis engendra a ilusão de referencialidade na autobiografia.

Sendo assim, a autobiografia não se destaca por nos fazer conhecer um sujeito,

que realiza a empresa de contar a sua vida por escrito, mas oferece-nos outro tipo

de conhecimento, que é o de que, através de uma estrutura artística bastante

especial, dois ou mais sujeitos se olham reciprocamente, reconstituindo-se e

repensando-se igualmente. A necessidade que revela a autobiografia de uma

dupla construção do eu reflete curiosamente, segundo Ángel G. Loureiro (1991),

a mesma estrutura tropológica da de todo conhecimento, a qual conta

evidentemente com o conhecimento do próprio sujeito. A denominação ‘tropo’

para Paul De Man e a de ‘pacto autobiográfico’ de Philippe Lejeune (1991)

consistem justamente em compreender a autobiografia como essa linguagem

figurada, alegórica, ilusória em que o eu narrado cambiante preenche e determina

o eu incompleto que se desnuda em confissão e vice-versa. Esse refluxo de

estrutura tropológica verificado no processo da escritura autobiográfica e no cerne

de toda a captação de conhecimento também se observa na leitura. Dessa

maneira, podemos inferir com Paul De Man que a autobiografia apresenta-se

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como uma forma de textualidade, que possui a estrutura reflexa, ou seja,

recíproca de influência do conhecimento e da leitura, a qual afeta o autor, o leitor

e a própria escritura.

Paul De Man ensina-nos que o tropo principal na autobiografia é a

prosopopéia, que consiste em colocar o escritor palavras ou discursos na boca de

pessoas verdadeiras ou fingidas; na verdade, a prosopopéia dá rosto e voz aos

vivos, aos ausentes e aos mortos, conferindo-lhes o status de criação literária, em

última instância, de personagens. Completando o pensamento de Paul De Man,

Ángel G. Loureiro sustenta que apesar de os dois sujeitos presentes na

autobiografia determinarem-se reflexivamente por meio desse tropo, a figura que

reside no centro dessa determinação desfigura-os simultaneamente, visto que a

linguagem dos tropos é sempre despojadora. Essa linguagem alienante

caracterizadora da escritura autobiográfica torna possível ao escritor construir

deliberadamente um sujeito ficcional que encubra o seu próprio eu, desfigurando-

o perante o leitor em virtude do vigor e da presença literária que adquire o

personagem do eu autor dentro da obra de arte.

Dessa maneira, portanto, é instigante observar como o ensaio zambraniano

tendo reflexos autobiográficos e confessionais, coloca o sujeito como um

palimpsesto, no qual a exatidão e a veracidade do passado, do presente e do futuro

são completamente duvidosas e ambíguas. Esse fato reitera a opinião de Paul De

Man sobre a autobiografia como desfiguração, conforme podemos ler na citação

seguinte: En cuanto entendemos que la función retórica de la prosopopeya consiste en

dar voz o rostro por medio del lenguaje comprendemos también que de lo que estamos privados no es de vida sino de la forma y el sentido de un mundo que sólo nos es accesible a través de la vía despojadora del entendimiento. La muerte es un nombre que damos a un apuro lingüístico y la restauración de la vida mortal por medio de la autobiografía (la prosopopeya del nombre y de la voz) desposee y desfigura en la misma medida en que restaura. La autobiografía vela una desfiguración de la mente por ella misma causada. (DE MAN, P.,1991, p.6)

Ángel G. Loureiro adverte que a linguagem despojadora e a natureza

tropológica da linguagem autobiográfica afastam-se, em grande medida, das

teorias de Starobinski (1970), que defende a verdade auto-referencial do estilo

como descobridor e não como encobridor da interioridade do escritor

autobiográfico. Para um teórico como Starobinski, a autobiografia apresenta-se

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como um contrato assinado com a verdade do sujeito descrito na obra de arte, no

sentido de que esta nos conduziria à revelação do interior do autobiógrafo-

confessor. Paul De Man, por sua parte, insistimos, propugna a autobiografia como

a desfiguração prosopopéica da verdade do escritor no tocante ao rosto e à voz. A

personalidade desfigurada ou restaurada, segundo Paul De Man, pode desdobrar-

se incessantemente na escrita de outras personalidades diversas ou semelhantes,

pois, embora muito presente, já não se encontra, em primeiro plano, a marca

pessoal que as identifica e individualiza.

Derrida (1982), em L’oreille de l’autre, por meio do estudo de Ecce

Homo (1888), obra autobiográfica de Nietzsche, esclarece que não é possível

distinguir radicalmente vida e obra, contudo também não podemos pretender

explicar uma pela outra como teoriza Starobinski. Necessitamos refletir sobre o

autobiográfico a partir de uma premissa que pressuponha paradoxalmente a

união, a separação e o refluxo simultâneos entre vida e obra. Quando tomamos

em consideração essa concomitante miscelânea e separação entre a essencialidade

de uma obra e a vida empírica de um autor, sobrevêm-nos novos horizontes na

interpretação do sentido do ensaio, da autobiografia e da confissão. A identidade

do escritor recebe novas configurações, as quais dependem de uma revisão da

criação autobiográfica no referente ao nome do personagem ficcional, autor

inspirador do texto, e à assinatura do nome do escritor. Derrida esclarece, ainda,

que o texto autobiográfico não é assinado por um autor que se compromete com

uma identidade comum histórica em relação ao personagem sobre o qual escreve,

mas que a estrutura da assinatura faz com que quem firme, na realidade, seja o

destinatário do texto autobiográfico. A assinatura, em outras palavras, não se

concretiza no momento da escritura, porém no momento em que o outro lê ou

escuta o escritor. Em definitivo, o destinatário da autobiografia escreve no lugar

do autobiografado. A ‘orelha do outro’ assina pelo escritor e, enfim, constitui o

seu eu autobiográfico. Na proporção em que temos conhecimento de que o eu

passa sempre pelo outro, torna-se claro que o empreendimento autobiográfico,

paradoxalmente longe de ser auto-suficiente, percebe-se comprometido com o

aval e a legitimação realizados pelo leitor do nome e da assinatura do escritor.

Conforme faz-nos compreender Derrida, essa passagem da assinatura e a escritura

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do eu através da orelha do outro converte, na verdade, o autobiográfico em

heteroautobiográfico.

Junto à modernidade, a época contemporânea despontou também

impiedosamente com avanços materiais e preços altos a pagar, como se o

tormento dos antigos povos em relação à premonição trágica do futuro estivesse

sendo atualizado em um momento presente. Como já abordamos, María

Zambrano, com o propósito de compreender e se liberar da perseguição trágica do

seu tempo em crise, resolve ensaiar a sua vida, o seu país, o seu povo e a sua

filosofia, que simbolizam e representam as suas atribulações.

É vital não deixar no esquecimento que a modernidade criou, por meios

dos adiantamentos científicos, uma imagem arquetípica de herói e, ao fazê-lo, ob-

teve enorme atenção e adeptos. María Zambrano, por sua vez, ao revisitar o pas-

sado, demonstra que, na literatura, possuímos exemplares heróicos mais fortes,

justos e humanos do que a ideia de herói promovida pela indústria, pela mecani-

zação e pelo capital moderno, notabilizado pela pujança econômica e pelo interes-

se exclusivamente individual.

As relações que se identificam entre María Zambrano e a autobiografia

são facilmente percebidas em suas obras ensaísticas, cujo principal tema é abor-

dar as possibilidades de uma filosofia da existência em contraposição a uma épo-

ca racionalista e positivista. A autobiografia, como uma forma de confissão, apa-

rece como um método de mediação, a fim de decifrar os enigmas da vida. O en-

saio a serviço do romance, da poesia, da autobiografia e da confissão demonstra

que as manifestações literárias são formas complementares e transformadoras do

conhecimento do homem e de suas contingências. Dada essa importância que Ma-

ría Zambrano concede à autobiografia como expressão confessional, é que a auto-

ra publica, em 1943 (reedições em 1988 e 1995 e também em 1989 na obra Notas

de un método), La confesión: género literario y método, que trata da necessi-

dade do homem de viajar para dentro de um saber da alma, quando a cultura pas-

sa por momentos de questionamento e reforma e o ser humano, mergulhando nas

profundezas infernais de si, busca uma saída por se sentir órfão de sustentação es-

piritual. De acordo com María Zambrano, a confissão, manifesta pela palavra ge-

ralmente em 1ª pessoa, pode salvar o homem da grande distância surgida na civi-

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lização ocidental entre vida e pensamento: “El género literario que en nuestros ti-

empos se ha atrevido a llenar el hueco, el abismo ya terrible abierto por la ene-

mistad entre razón y vida.” (ZAMBRANO, M., 1995, p.13) O interesse da autora

espanhola por esse gênero literário abre os nossos horizontes para o posterior es-

tudo de El hombre y lo divino, pois, ao procurar descobrir as principais caracte-

rísticas da confissão voltando às suas origens, a resitua como elemento subsidiá-

rio de análise para compreender um mundo dominado pela crença racional positi-

vista. Essa conduta propicia, ainda, acompanhar a evolução do homem ocidental,

segundo as concepções filosóficas modernas vigentes naquele período.

No ensaio intitulado “Hacia un saber sobre el alma” (ano XII, nº

CXXXVIII, dezembro 1934) publicado novamente, em 1950, em uma obra com o

mesmo título, Zambrano propõe que se aceite a história dentro de uma visão

poética, na qual o sujeito literário testemunha, à sua maneira, as experiências que

tem com o mundo tomando uma postura, que leva em consideração o confessional

estimulado pela expressão única dos sentimentos anímicos pessoais. Nesse texto,

a escritora espanhola expõe suas ideias sobre a razão poética, ‘razón de amor

reintegradora de la rica sustancia del mundo’, onde poesia e povo possuem laços

íntimos. Em seu ensaio, María Zambrano recupera a tão conhecida frase de Pascal

tantas vezes repetida até os dias de hoje: “hay razones del corazón que la razón no

conoce” (ZAMBRANO, M., 1934, p.264) para deixar claro que é necessário um

saber da alma, que permita a descoberta e a revelação de uma maneira de

organizar o interior do sujeito. Excetuando-se as críticas que se possam

estabelecer a respeito, o homem vem buscando esse ‘conhecimento da verdade’

ou esse ‘conhecimento verdadeiro’ ao longo do tempo a partir das diversas formas

de manifestação que criou e que lhe possibilitaram ver mais longe do que

imaginava. Entre essas manifestações, está evidentemente a literatura. A ensaísta

ainda menciona vários outros intelectuais como Max Scheler, Espinosa e

Nietzsche que abordam o ser humano em uma esfera não somente da lógica do

pensamento, mas também da alogicidade do emocional, na qual reside

historicamente, desde os princípios do cristianismo, a salvação da alma pelo amor

ao próximo e a si mesmo. Empreender esforços para conseguir esclarecer a

verdade, encarando o pensamento como fragmento de outros pensamentos é o

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passo fundamental para que esta verdade se revele diante de seu interlocutor e

faça com que o homem se descortine frente à sua vida. Esse é um dos propósitos

pilares da Filosofia, a qual apregoa que ao tentar revelar, o homem acaba

revelando-se a si mesmo em suas lucubrações. Zambrano cita Platão e diz que “es

la Filosofia, [...] camino de vida” (ibidem, p.262), pois na busca da verdade

comum e particular o ser humano sente-se reconfortado para lidar com a angústia

do correr do tempo que vive e com o seu próprio esgotamento na passagem de

tudo, no esvair da vida. Em lugar do sofrimento da paulatina anulação, o homem

regozija-se no prazer da caminhada do mesmo modo que o rio não é igual sem o

seu leito. Tal atitude simboliza renovação e novas oportunidades de fazer

diferente o percurso pessoal no tempo cósmico ilimitado da existência para vencer

os desafios ou obstáculos que vão aparecendo. A filosofia surge, assim, como esse

caminho de vida que ordena o entorno e admite deslocar-se a inusitados rumos,

consentindo, dessa maneira, à razão novas possibilidades. Ante a necessidade de

revisar a condição de ser do homem, María Zambrano anuncia que:

La cultura moderna fue arrojando de sí al ser total del hombre, cuidándose sólo de su pensamiento. […] En realidad, quedaba el alma como un residuo. Por una parte, la Razón del hombre alumbraba la naturaleza; por otra, la razón fundaba el carácter transcendente del hombre, su ser y su libertad. Pero entre la naturaleza y el yo del idealismo, quedaba ese trozo del cosmos en el hombre que se ha llamado alma. (ibid., pp.265, 266)

A pensadora espanhola comenta, em seu texto, sobre a existência de um

duplo saber do homem, que aparece como revelação de sua essência dual e

conflitiva: o da razão que ele pensa dominar e o do poético, do cosmo e da

natureza, que compõem um universo do não dominado. É interessante a análise de

María Zambrano acerca do século XIX, onde lhe desperta a curiosidade o

paradoxo do avanço ou do domínio do homem sobre a natureza e da vivência

romântica consciente do homem em relação à atração irresistível pela natureza.

La naturaleza para el romántico es inmensa, inabarcable, infinita, y la ve en sus máximos momentos de furia esplendorosa: en la tempestad, en el rayo, en «montaña abrupta», en «el mar insondable», en «los abismos sin fin», en «las profundas simas de la tierra y el cielo». (ibid., p.266)

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A ensaísta espanhola explica que ao mesmo tempo em que o homem

romântico do século XIX submete as forças da natureza pelo pensamento

racional, disserta poeticamente sobre essa natureza com terror e espanto ou

admiração divina, onde ele vislumbrava refletida a sua alma, a sua verdadeira

essência, repleta de tempestades, abismos e simas, dificilmente visível na esfera

racional e por ela, nesse momento, abandonada por completo. A natureza como a

poesia eram o lugar onde o homem buscava a sua alma ou onde a alma do homem

se buscava a si mesma. Na verdade, na arte romântica conjugaram-se natureza e

alma. O homem não está constituído simplesmente de razão, tampouco de alma; a

vida oscila entre paixões e pensamentos, intermediados por silêncios que esperam

outras respostas. Na medida em que ninguém ousa afirmar um saber radical, o

conhecimento proveniente das paixões era interpretado como confissão ou

confidência. O enlace entre a natureza e a alma traduz um saber originário que

buscava o autoconhecimento presente, conforme assevera Zambrano, nos ritos

órficos e no culto a Dionísio. Entretanto, o processo opera-se de modo distinto do

processo levado a cabo pelo romantismo no século XIX. Ao passo que o

romântico humaniza a natureza e nela empreende a busca pelo plástico e pela

figura, no culto a Dionísio, a alma procura na natureza o que ela tem de musical,

em uma reconciliação cósmica da alma com a vida, a fim de enfrentar suas

incomodidades internas.

Porque toda soledad ha sido sentida en un principio como un pecado, como algo de lo que se siente remordimientos. Cada distancia que el hombre conquista con respecto al resto del universo, le crea una soledad que al principio le da terror y remordimientos. Y de la soledad recién conquistada, retrocede a abrazarse con lo que acaba de dejar. (ibid., p.273)

Diferentemente da história moderna, nas culturas originárias como a

helênica a normalidade estava na harmonia entre alma e cosmos, como uma forma

de escapar às dores da solidão e da dúvida sobre si mesmo, para que se pudesse

seguir adiante a partir das descobertas de si, em uma antecipação da famosa frase

‘conhece-te a ti mesmo’ socrática. De fato, no decorrer de toda a história, a alma

vem buscando-se a si mesma por meio da natureza tanto nas religiões gregas,

como também na arte romântica, como uma maneira de tentar organizar a

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realidade a partir da ação de perguntar do homem, que tem a intenção de se livrar

do desconhecimento, que surpreende em si mesmo. Somente assim, o homem

pode ter uma consciência mais clara do que é e do que não é, revelação

importante para o seu autodescobrimento em uma dimensão concreta ou real. É

fato que a razão pós-cartesiana mostra a importância de abordar o humano no que

possui de intransferível, irracional, situacional e subjetivo. Para María José Clavo

Sebastián,

El hombre comienza a ordenar su mundo cuando puede inventar dioses, es decir, a conferir algún tipo de entidad a aquello por lo que se siente mirado y perseguido. De modo que cuando en el universo del ser humano aparecen los dioses con figura y nombre aparecen también, las cosas y los seres. Este discernimiento es anterior y preparatorio al discernimiento lógico en el que se da ya una clasificación de los seres. En todo caso, desaparece el caos y el homre conquista alguna orientación en su vida, termina el sentimiento de persecución y, por consiguiente, el continuo temor porque ahora ya tiene localizado quién le ve y ello le permite entrar en contacto con él. La función de los dioses es la de hacer posible el trato con la realidad. (CLAVO SEBASTIÁN, M. J., 1992, p.132)

Na verdade, a existência do sagrado autoriza a existência heterogênea da

‘realidade real ou concreta’, que efetua uma ruptura emocional do homem em

relação ao saber, direcionando-o ao desenvolvimento da consciência e ao contato

com os seus próprios limites nos momentos de sua integração ao universo, pois a

vida humana engendra a presença divina da alteridade, do outro, do desigual, do

não idêntico. Para María José Clavo Sebastián, a vontade de indagar surge do

estranhamento do homem consigo mesmo e, segundo a autora, essa é a garantia

de sustentabilidade de toda a filosofia, que busca trilhar os caminhos da revelação

da consciência, a qual revoluciona o interior do homem, causando-lhe rupturas de

paradigmas e reformulações do pensamento.

Ao longo de “Hacia un saber sobre el alma”, María Zambrano explora a

questão do eu e da sua alma, como uma extensão dos temas Deus e a Natureza, o

Homem e a Razão. Na visão antropológica zambraniana, vivemos em um sistema

planetário, no qual Deus, Natureza e Homem formam um drama, no qual, em

certos momentos da história, uma dessas órbitas pode eclipsar a outra e vice-

versa. O desafio está em descobrir, nos momentos distantes da existência comum

do abandono e da solidão, que função ou que papel possui a alma do homem

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dentro do cíclico drama da vida, o qual ora se desvela ora se torna misterioso.

Esse homem vislumbrado como o Dasein heideggeriano ou como realidade

cindida proveniente de um estado de consciência caracteriza-se pelo conflito entre

o pensar e o sentir, entre a individualidade e o ser humano em totalidade, entre o

conhecimento pessoal e a vida, onde, de fato, o homem define-se em atos de

tensão com relação ao seu próprio futuro no que tange a suas infinitas

possibilidades. Assim, María Zambrano vai colocando em prática o método

filosófico da pergunta sem respostas precisas, que visam despertar alguma

revelação no leitor-aprendiz-criador também do texto.

A prática literária e a filosófica, cujas delimitações são nebulosas, se

conciliam na tentativa de uma compreensão do mundo em toda sua complexidade

oscilando entre a explicação elucidativa ou perquiritória ocasionada pela

percepção da ausência ou da falta e a beleza plástica e o gozo estético, que

buscam completar o ser pela aquisição do conhecimento. Essa crença suscita certa

fé na literatura como uma prática espiritual que reatualiza as esperanças de uma

coletividade geracional e as reescreve historicamente em um processo filosófico

de autocriação do ‘eu-já (yo-ya)’ em toda sua diversidade, como descoberta de

uma individualidade perdida e, por conseguinte, da consciência da solidão do

homem, exigida pelas necessidades contemporâneas em ordenar a realidade

destruída continuamente pelo desmascaramento dos mitos do racionalismo e da

revolução tecnológica-industrial.

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As muitas correspondências que escreve María Zambrano a tantos

conhecidos, amigos e escritores robustecem a contribuição da autora malaguenha

ao gênero intimista da confissão autobiográfica, que se baseia na ideia de que o

homem e a vida passam por incessantes mutações na ordem do tempo, sendo esse

conceito justificado a partir do estudo que empreende a ensaísta de uma extensa

tradição cultural e a partir da evolução de seu próprio pensamento, conforme

estamos tentando fazer ver nessa pesquisa. A sua vida somente pode ser

compreendida sob a perspectiva da multiplicidade dos tempos que constitui a

nossa história. Não podemos possuir um entendimento mais global de nosso

tempo se não formos capazes de compará-lo e diferenciá-lo de outras épocas.

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A autobiografia, em seu sentido confessional, responde muito bem a esse

preceito indispensável de autoconhecimento, que inclui, portanto, o sujeito, o

outro e os diversos tempos vivenciados. As alusões confessionais e

autobiográficas são muitas nos escritos filosóficos de María Zambrano, sobretudo,

como já proferimos, em sua considerável produção epistolar e também na sua

produção bastante diversa de prólogos. Em grande parte dos seus textos,

encontramos movimentos semelhantes de não somente demonstrar suas

preocupações ou meditações filosóficas, mas também de ambientar os seus

escritos segundo a sua experiência pessoal, pois, evidentemente, sem ela, a sua

produção filosófico-literária não seria possível. J. L. L. Aranguren assegura que

prefere “la genuina María Zambrano, la resituada, aquella para quien su obra

entera es confesión y autobiografía.” (1983, p.107) É notória a assertiva de que,

nas escrituras do eu, as reflexões sobre o próprio sujeito foram constantes no

âmbito filosófico da civilização ocidental. Já no estudo das Confissões de São

Agostinho, escritas entre os anos 397-398, José Luis Aranguren (1984, p.21) crê

que além de configurar uma obra que enceta verdadeiramente o gênero

autobiográfico, as confissões agostinianas antecipam as problemáticas modernas

no seio de seus questionamentos filosóficos. Embora haja muitas controvérsias no

sentido de se aceitar a modernidade da confissão como gênero literário, autores

como Philippe Lejeune (1975, p.14) e Georges May (1979, p.25) sustentam que a

modernidade da confissão localiza-se no conceito de progresso do homem

ocidental, que reformularia as suas concepções de existência em relação ao

mundo antigo a partir sobretudo do século XVIII. Esses teóricos declaram que a

formação do homem europeu amparou-se fundamentalmente no rompimento

epistemológico com relação ao homem antigo conectado a uma forte tradição

cristã. A passagem a uma consciência mais individualista surgiu, desse modo, do

paulatino desarraigo do sentimento divino começado no Renascimento e, em

seguida, mais contundentemente no período romântico. Na realidade, a superação

do poder eclesiástico das sociedades ocidentais em favor de uma existência mais

voltada para o laicismo estimulou, em conformidade a um pensamento

racionalista e secularizado, uma escritura do eu. María Zambrano endossa esse

preceito de que a tradição cristã funcionou como um meio peremptório na

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formação do homem ocidental, bem como os seus estágios de evolução ao longo

da modernidade. O homem moderno otimizou os ensinamentos do cristianismo

para construir outros horizontes de realização pessoal e, carente de sustentação

espiritual, ocasionou a crise racionalista européia. A impossibilidade humana de

conceber um eu completo guarnecido pelo racional e pela interioridade incentivou

o homem a buscar a salvação pela transcendência. Do ponto de vista da ensaísta

espanhola, as Confissões de São Agostinho determinam os pressupostos do

gênero e servem de base para examinar as autobiografias mais modernas como as

de Rousseau e ainda outras que deixam patente a crise do homem moderno

transposta à escrita do eu. A obra agostiniana deseja encontrar o âmago do ser

humano, porque se consolida na teoria de que somente na descoberta de si

mesmo, o homem poderá dialogar com a verdade. Por isso, é lógico entender que

a confissão sofreu mudanças no decorrer do tempo. Nas palavras de María Luisa

Maillard, esses pensamentos tornam-se ainda mais claros.

El hombre no es un ser formado enteramente desde el principio, nos dice Zambrano, sino que va revelándose en la historia, lo que no quiere decir que los nuevos sentimientos destruyan a los antiguos, sino que todos llegan a convivir en un momento dado, aunque según el predominio de la mentalidad dominante en cada época, algunos de ellos puedan sufrir eclipses de larga duración. No hay ruptura entre el hombre antiguo y el moderno, sino una solución de continuidad creadora. (MAILLARD, M. L., 1997, p.166)

A confissão seria, por conseguinte, a manifestação de um gênero literário

capaz de traduzir as crises da nossa cultura ocidental e de que maneira o homem e

o mundo conseguiram transformar-se diante das instabilidades vivenciadas.

Sabemos que há inúmeros pontos de vista e discordâncias, todos eles válidos no

campo de sua própria escritura e elucidação, no que se refere às problemáticas

conceituais, envolvendo as tentativas de classificação sistemática da confissão e

da autobiografia como gênero(s) literário(s), mas o que nos interessa, de fato,

nesse trabalho é ver que todas essas discussões encontram uma suspensão

temporária da adversidade teórica no sentido de que se confluem no conceito de

que tanto a confissão como a autobiografia encarnam uma contingência real do

homem moderno, cujos valores, nos últimos decênios, oscilaram entre a suspeita

da existência de um eu que dirige a vida, criticado bravamente por diversos

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campos do conhecimento como a psicanálise e a semiótica, e a progressiva

literaturização da vida, tema basilar que rege todos esses estudos.

La autobiografía sería ficción en cuanto intento de reproducir un yo, pues su labor es crearlo o inventarlo, pero es realidad en el sentido de una lectura intencionalmente realista del lector, lo que quiere decir no plantearse en absoluto el vínculo del texto con la realidad, sino analizar cómo los lectores se sirven de los textos para hacer intencionalmente enunciados sobre su propia realidad. (ibidem, p.178)

María Zambrano estima que o desespero de si mesmo e a fuga de si na

esperança de se encontrar são os traços que definem a confissão. As palavras

‘desespero’ e ‘esperança’ são vitais, quando nos referimos à confissão, porque

como esclarece a ensaísta:

Desesperación por sentirse obscuro e incompleto y afán de encontrar la unidad. Esperanza de encontrar esa unidad que hace salir de sí buscando algo que lo recoja, algo donde reconocerse, donde encontrarse. Por eso la Confesión supone una esperanza: la de algo más allá de la vida individual, algo así como la creencia, en unos clara, en otros confusa, de que la verdad está más allá de la vida. (ZAMBRANO, M., 1995, pp.37, 38)

A teórica novamente ensina-nos que a confissão somente verifica-se com a

esperança de uma revelação interior e pessoal. Por essa razão, apresenta a

condição da vida humana tão imersa em contradições e paradoxos.

A autobiografia apresenta realmente uma relação muito forte com a

confissão; não deixa de funcionar como uma confissão, pois tanto uma como

outra partem de uma necessidade de rever uma trajetória de vida, de rever certos

valores, de rever a história. María Zambrano escreve que a confissão emerge em

momentos decisivos, nos quais a cultura parece estar em julgamento e o homem

encontra-se desprotegido e sozinho. A confissão como a autobiografia aparece em

momentos de crise pessoal, ocasionada, principalmente, por transformações

históricas, onde o homem concreto constata o seu fracasso.

La confesión surge de ciertas situaciones. Porque hay situaciones en que la vida ha llegado al extemo de confusión y de dispersión. Cosa que puede suceder por obra de circunstancias individuales, pero más todavía, históricas. Precisamente cuando el hombre ha sido demasiado humillado, cuando se ha cerrado en el rencor, cuando sólo siente sobre sí “el peso de la existencia”, necesita entonces que su propia vida se le revele. Y para logralo, ejecuta el doble movimiento propio de la

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confesión: el de la huida de sí, y el de buscar algo que le sostenga y aclare. (ibidem, p.32)

Não cabe dúvida de que a confissão é uma forma especial de relato

autobiográfico e que María Zambrano acredita na sua função cognoscitiva. De

acordo com a autora, a confissão tem como premissa básica a formação de um eu

no processo de construção do texto, tendo em vista que o receptor, ao ler o escrito

e ser capaz também de vivenciá-lo de maneira solidária e complementar, executa

o mesmo movimento que o confessor. O gênero confessional é uma forma de

conhecimento do homem e, sendo assim, cumpre a função de abrir horizontes ao

pensamento filosófico. O conceito zambraniano de que a confissão surge da

necessidade de expressão da vida por meio do sujeito reage aos infortúnios das

circunstâncias que a originam. Com isso, torna-se clara a ideia de que a confissão

não existe sem o âmbito histórico e cultural que a incentiva. Esse contexto

estimulante terá como característica indispensável o fracasso e a dissolução, para

que seja empreendido o projeto de recriação da história e da herança cultural com

o intuito de encontrar novas perspectivas. Os ensaios que vinhemos estudando até

o momento na Revista de Occidente, na revista Hora de España, em Filosofia y

poesía e, ainda, os que estão por vir em El hombre y lo divino, desfrutam desse

mesmo leitmotiv que guia de maneira basilar os princípios norteadores e os

pilares de sustentação da nossa pesquisa. Para María Zambrano, o espírito trágico

aparece justamente nessas ocasiões de turbulência, indignação e silêncio, que, no

mundo antigo, marcou a sua presença na taciturnidade dos deuses e, com isso,

propiciou o surgimento da filosofia dentro do território cultural ocidental e da

noção de individualidade, com a intenção primordial de expressar o espaço

interior. Se a confissão é também encarada como uma forma textual

autobiográfica que coloca o sujeito como prioridade, está confirmada a assertiva

de que representa uma manifestação do humano que tem como finalidade o

objetivo de que o indivíduo conheça a si mesmo. Contemplada a questão de outro

ponto de vista, María Luisa Maillard (1997, p.183) defende que a necessidade que

motiva a confissão se relaciona com a indigência ontológica do homem. Segundo

a crítica (ibidem), esse modo de ver engendra certos parâmetros com a filosofia de

Ortega y Gasset que compreende a existência humana como um processo

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individual e histórico, posto que o homem não nasce pronto, mas vai construindo-

se e enfrentando-se ao que denomina os três horrores da existência: o nascimento,

a morte e a injustiça, assimilada como a imprevisibilidade do destino, seja ele

cordial ou inóspito. Entendemos que o discurso ensaístico de María Zambrano

assume essa responsabilidade moral, ética, filosófica, humana, política e histórica

de desafiar a loucura cativante do existir, pois, na destruição, sempre resta alguma

coisa e é com essas ruínas íntimas e circunstanciais que reconstruímos e nos

refazemos. María Luisa Maillard opina que

La Confesión, más que ninguna otra manifestación literaria, afronta este doble proceso del vivir y lo hace de forma modélica al producirse en los momentos de crisis de una civilización, cuando el hombre se enfrenta a su indigencia desnuda, porque tambalea el suelo de creencias en el que se afianzaba y aún no han aparecido otros valores en los que pueda apoyarse. (ibid., p.184)

É conveniente retomar aproximadamente a questão já abordada de como

um cineasta surrealista como Luis Buñuel se interessa pela obra galdosiana para

comentar que María Zambrano julga que este movimento artístico é um dos que

mais se acerca a uma confissão dentro do mundo contemporâneo, pois não abjura

a busca da identidade mais íntima do homem, afronta constantemente as normas

estabelecidas que norteiam um mundo regido pelo racionalismo e acredita que o

ato de conhecer exige um movimento de transformação. Essas ideias de

revelação, da vida como morte e renascimento sucessivo e de um tempo múltiplo

distinto do da consciência tangenciam plenamente o pensamento desenvolvido

por María Zambrano em seus ensaios. O grande esforço intelectual e espiritual

que o homem leva a cabo para reconstruir a sua vida na obra de arte, lançando

mão da memória, explica a sua necessidade de se vislumbrar mais profundamente.

A confissão é uma forma de escritura autobiográfica, onde se empreende a

criação de um eu. Essa intencionalidade lhe concede um caráter prévio ao ato de

escrever, pois o sujeito começa a ser construído antes da redação do texto e o seu

término inexiste. A solidão, um dos maiores dramas do mundo atual, impede o

homem de ver o outro e também lhe dificulta ser visto. A imprescindível reflexão

que realiza sobre a sua vida, a seu ver, confusa, quer buscar uma saída com a

atitude de se colocar ao olhar alheio, já que percebe que sozinho não há

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metamorfose de si mesmo, tampouco do outro e menos ainda das circunstâncias.

Na confissão, o relato da experiência de uma vida une passado e presente para

criar um projeto compromissado eticamente com o futuro. Retomamos o que em

“A modo de autobiografia” declara Zambrano:

Yo no soy nadie, yo no soy ninguno y cómo si no soy ninguno puedo tener una autobiografía; mas se me ha descubierto y desde niña, que en este yo se deposita también eso que se llama la responsabilidad moral. Y yo a esa responsabilidad moral tampoco puedo renunciar y tampoco he podido renunciar a una especie de sentir radical, de que aquello que he hecho ha nacido dentro de mí y no puedo rechazarlo. Así que cuando lo mido [mi yo], siento que es mío, que podría ir más allá, pero que este más acá a donde he ido a parar, ahí soy yo, ahí no tengo más remedio que aceptar responsabilidad, porque es el punto de la moral y es un punto también de revelación. (ZAMBRANO, M., 1987b, p.70)

Sendo o eu efetivamente uma narração, quem escreve uma confissão

aspira a uma revelação vital, pois ambiciona responder ao questionamento maior

de quem é de fato, oferecendo-se ao olhar do outro. Como observamos nos

capítulos anteriores, sobretudo no referente a dom Quixote, existe uma

característica importante comum ao de um confessor que é a necessidade de que

se aceite e se reconheça inicialmente o fracasso do eu e da vida que origina esse

sujeito para poder seguir em busca de algum outro argumento que consiga atribuir

sentido à existência. Admitir o fracasso é imprescindível para tentar escapar do

desespero e da confusão; é o caminho pessoal a trilhar para cada vez mais deixar

de ser um homem ‘a medias’. Tomando em consideração esse conhecimento de

vislumbrar o fracasso como um passo essencial para o crescimento, María

Zambrano opera, ao longo da publicação de suas obras, uma evolução

epistemológica fundamental do seu pensamento, que incialmente orbita

filosoficamente o compromisso social e político fraguado pela guerra civil e pelo

regime ditatorial para depois alcançar a preocupação pela salvaguarda da

individualidade do sujeito contemporâneo frente ao monopólio do fascínio

racionalista positivista massificante da modernidade até culminar em uma vontade

visceral de transcedência pelo retorno às crenças clássicas de uma relação

simbiôntica primária inquebrantável entre o homem e o divino na busca de um

tempo totalmente idiossincrático.

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9. A TRANSCENDÊNCIA

É interessante discernir sobre a ideia de que, no desenvolvimento da

maneira de pensar ocidental, ao passo que o homem determinou a morte de Deus

também condenou a si mesmo à aniquilação trágica de ser. Dessa maneira e

valendo-se de uma sabedoria necessária para lidar com o fracasso do morrer, é

clara a hipótese de que o homem caracteriza-se pela indigência e sua missão é

lutar para deixar de ser inopioso. Esse anseio, contudo, realiza-se pela senda da

esperança que visa a transcendência individual, ou seja, o vencimento das próprias

limitações. Em função disso, María Zambrano considera o homem como “el ser

que padece su propia trascendencia, que trasciende su sueño inicial,”

(ZAMBRANO, M., 1971, p.27) assim como existir será “resistir, ser frente a,

enfrentarse.” (ZAMBRANO, M., 1993, p.23), pois, no passado, o homem sempre

existiu oferecendo resistência aos seus deuses. Para a ensaísta, o homem possui

um grande desejo de suficiência e assunção, de reconstruir esse “arraigo en sus

entrañas”. Como o seu pensamento filosófico parte da crença de que o homem

renunciou à sua ilimitação e passou a contemplar-se como uma realidade

psicológica e orgânica, uma de suas mais graves preocupações é reaver a alma

originária desse homem a fim de que ele mesmo possa voltar a se reconhecer

diante do cosmos. Nesse sentido, podemos comprovar como as concepções

existenciais zambranianas afastam-se do historicismo e da razão vital de Ortega y

Gasset, sustentando-se, como já afirmamos, na noção de falta e em seu afã de

saciá-la pela transcendência da consciência e do tempo cronológico. Tal conceito

nos torna possível explicar que, para a autora, há uma diferença entre o eu e a

pessoa que configuram uma espécie de dois lados antagônicos do sujeito, que se

veem obrigados à convivência. Enquanto o eu representa o desconhecido futuro

almejado, a pessoa refere-se a um estado primordial pretérito de liberdade e

criação intermediado por uma multiplicidade temporal, que contém a ambiguidade

do psíquico e o querer intencional da consciência. Assim,

No es el tradicional Sujeto racional el Sujeto de Zambrano, sino un Sujeto capaz de negarse a sí mismo -a su conciencia- en la consecución de un ser que no se le da al nacer y que lleva aparejado una apertura del tiempo sucesivo, aunque sin

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por ello hacer dejación de su responsabilidad en el mundo. (MAILLARD, M. L., 1997, p.188)

El hombre y lo divino, seguindo o conceito de uma presença do trágico na

obra zambraniana, aprofunda-se nas questões relacionadas ao sentimento do

sagrado e do divino. A obra teve a sua primeira publicação no ano de 1955. Na

segunda edição, em 1973, incorporaram-se mais dois capítulos, que versam sobre

os templos e sobre a morte na Grécia Antiga, além de um capítulo intitulado “El

libro de Job y el pájaro”. Como a autora parte de um contexto cultural de crise, a

sua escritura desenvolve-se evidentemente mediante uma filosofia da crise. Esta

filosofia da crise aborda a cisão entre a razão científica e histórica e os elementos

subjetivos do sujeito, em que estão inseridos os valores culturais religiosos e

éticos de toda uma civilização ocidental. Para conseguir a sua meta, Zambrano

recorrerá a Grécia e ao racionalismo cartesiano, como símbolos incontestes do

pensamento filosófico ocidental, onde observamos uma ruptura violenta entre o

sagrado e a lógica, que somente uma visão interior do sujeito é capaz de

reconstituir a sua unidade transcendental. Dentro de uma perspectiva do lógos

filosófico, a separação do que María Zambrano definiu como as duas metades do

homem, a filosofia e a poesia, resultou tanto de um como de outro lado em uma

trágica condição moderna. Da mesma maneira que o sujeito, dentro da reflexão

poética, se sente simplificado a um não ser, ao nada e ao vazio existencial no

tempo, no racionalismo, o indivíduo também reclama a incompletude do ser e,

apesar da modernidade elaborar várias formas para evitar a angústia e o tédio, o

homem se surpreende com o sentimento de falta e com a solidão à sua volta. Aí,

temos, mais uma vez, a assertiva zambraniana da crítica situação histórica do

homem moderno e do racionalismo pós-cartesiano. Afirma a autora:

Y así la situación del hombre moderno, post-cartesiano y más aún post-hegeliano, se nos hace ya un poco más clara: creyente en la razón como único medio de relacionarse con la realidad –razón discursiva o intuición intelectual– se ve en la vida real rodeado de cualidades, de semiseres –la cualidad es un semiser ya que no puede estar suelta– irreductibles a razones; se ve acechado por cosas que no lo son y que aparecen inconexas; en suma, por ese mundo de lo monstruoso que el arte lograba de algún modo apresar. (ZAMBRANO, M., 1993, p.196)

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Com esses dizeres, María Zambrano atesta que a falta de ser e o

sentimento de niilidade caracterizam a condição histórica do homem moderno.

Segundo Eduardo Subirats, entretanto, essa conclusão zambraniana não tem um

sentido ontológico, mas sim, um cunho crítico negativo, pois o nada encobre uma

vida pautada pela dominação de um lógos que submete o homem a uma renúncia,

a uma atitude sacrificial em favor de uma cultura moderna, que apartou o ser

humano do divino ou, como na Grécia antiga, dos deuses.

9.1. O binômio originário homem-sagrado

Na introdução de El hombre y lo divino, podemos ler: “Hace muy poco

tiempo que el hombre cuenta su historia, examina su presente y proyecta su futuro

sin contar con los dioses, con Dios, con alguna forma de manifestación de lo

divino.” (ibidem, p.13) A máscara do lógos que o homem moderno usaria seria

uma forma de renúncia ao próprio ser, uma auto-aniquilação que visa alcançar um

projeto de transcendência do ser dentro da dimensão histórica. Assim, o eu,

reduzido dentro de uma perspectiva racionalista, vê na história moderna do

progresso a possibilidade de sua própria projeção condicionada a transformações

políticas, sociais e econômicas. A autora detecta que Hegel descobriu que a

história é um mal necessário, é uma necessidade para o desenvolvimento do

espírito humano, que, ali, se revela, se nega e amadurece. A própria realidade

moderna proveria desse espírito humano criador, que, mal ou bem, consciente ou

inconscientemente, aceitou pagar tributos como consequência do seu pensar

existindo. Assim como a filosofia cristã transferiu o encargo da realização do

sujeito para um mais além da vida terrena com um aceitar do sofrimento imposto

por Deus, o homem moderno, de certa maneira, plagiou esse processo,

dissimulando as idiossincrasias naturais do sujeito na forma de um ator à mercê

dos fatos históricos, responsáveis por nossa futura felicidade. No entanto,

diferentemente do cristianismo, na terra, a história seria, como diz Zambrano em

El hombre y lo divino, a grande depositária de todo o sentido da vida. Essa

atitude, todavia, configura-se como a manifestação mais taxativa da tragédia

humana, pois o homem não é capaz de viver sem o divino, entendido este como

uma realidade superior. Até pudemos nos tornar meio que independentes do

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divino, mas também acabamos tomando-o como um tipo de herança substituta

para a história. Como para María Zambrano a única coisa que não abandona o

homem é o tempo e, como o tempo é movimento e, com ele, o ser humano

também se move, é necessário respeitar essa rotação e fazer alguma coisa, criar

uma verdade, mesmo que seja através da escritura.

A superação da falta espiritual do indivíduo estaria em um processo de

divinização da história, que, já para Hegel, ocupava o lugar do divino. De fato, a

história seria o tempo em si, no qual sempre poderemos nos apoiar e conseguir

transformá-lo em uma realidade palpável, mensurável que logramos, vez por

outra, compreender e dominar por esquemas racionais. O homem passou a ser não

ele mesmo, mas uma criatura ou uma criação inventada pelo lógos do progresso;

fomos reduzidos a certas fronteiras ou a certos horizontes; sofremos a violência do

entendimento racional do que antes sempre foi incompreensível. O indivíduo só é

alguma coisa, porque está dentro da história e a história é simplesmente tudo.

Enquanto o ser humano é neutralizado, a história ocupa o lugar do reino dos céus,

diviniza-se, enfim, torna-se absoluta e desconhece os limites antes apregoados

pelos gregos e cristãos.

La vida europea no admitía límites y se creía –el propio Hegel más que nadie– haber llegado a la madurez de los tiempos, al momento en que todos los enigmas han sido descifrados y el camino aparece libre; sólo falta recorrerlo y, por ello, la acción necesaria –la única– será mostrarlo y descubrirlo. La filosofía volvía a ser arquitectura. Y para los no creyentes en la filosofía, el camino estaría señalado por la ciencia con un simple gesto indicador. Era el camino del progreso indefinido, ya que el hombre había vencido definitivamente los viejos obstáculos. Y estos “viejos obstáculos” no eran otros, no podían ser otros, que los levantados por la creencia en la divinidad. El hombre se había emancipado. (ibid., pp.15, 16)

De acordo com Eduardo Subirats, a história como Ser absoluto marca uma

época final da consciência contemporânea, que se observa chegar ao limite

máximo do pensamento lógico de toda a nossa civilização ocidental. Esse seria o

discurso último do lógos da razão, que reduz a existência humana a um patamar

racional, alienado e negativo, a favor de uma realização do ser na história através

de um futuro virtual. Vejamos: a situação grega e cristã da felicidade no plano

espiritual ou além da realidade concreta não mudou, somente criou outros ídolos.

A nossa consciência moderna é trágica, porque sabemos que acreditar que a

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história é a esperança da realização do ser é indefinidamente utópico e frustrante,

na medida em que a própria história se define pela insaciabilidade do

conhecimento e do sujeito. Cada vez mais, queremos ser melhores, ter produtos

mais eficientes, uma vida mais feliz, que se contrapõem à decepção destrutiva de

nossos sonhos de que sempre falta algo mais, pois nos enfrentamos

constantemente com a situação do incompleto, do infeliz, assim como vivia o

homem há milênios atrás. Se antes desfrutávamos de um sentimento de realização

ou satisfação pela crença no divino, na modernidade, vivemos a era da

negatividade da existência concebida como uma eterna promessa de realização do

ser, que não se concretiza no ser absoluto ou divino da história. O homem

moderno como o homem religioso voltou para dentro de si com uma diferença:

enquanto o homem religioso volta para dentro de si como um conforto e uma

segurança na salvação da alma e na conquista da plenitude, o homem moderno

volta para dentro de si e não encontra nada a não ser o desespero do vazio e a falta

de crenças em que se sustentar, percebendo que ele, como a história, não eram e

não podiam ser divinos. Assim como o homem grego e cristão queria a salvação

concedida pelos deuses ou por Deus, o homem moderno pretendeu salvar-se no

histórico e, acreditando na divindade da história, sacrificou os seus elementos

espirituais e éticos mais originários. O seu sacrifício, contudo, mostrou-lhe, na

meditação sobre o seu caminho histórico e racional, a sua limitação humana em

não poder ser Deus, o que lhe conduz a experimentar um sentimento dual de

fascínio e fracasso com relação à história, que o leva à uma busca incessante,

recriadora e destruidora de sua própria essência.

Era la revelación del hombre. Y al verificarse esta revelación del hombre en el horizonte de la divinidad, el hombre que había absorbido lo divino se creía –aun no queriéndolo– divino. Se deificaba. Mas, al deificarse, perdía de vista su condición de individuo. No era cada uno, ese “cada uno” que el cristianismo había revelado como sede de la verdad, sino el hombre en su historia, y aún más que el hombre, lo humano. Y así, vino a surgir esta divinidad extraña, humana y divina a la vez: la historia divina, mas hecha, al fin, por el hombre con sus acciones y padecimientos. La interioridad se había transferido a la historia y el hombre individuo se había hecho exterior a sí mismo. Su mismidad ahora transferida a esa semideidad: la historia. Deidad entera como depositaria del espíritu absoluto, deidad a medias porque, como los dioses paganos, estaba creada, configurada por el hombre. (ibid., p.17)

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9.2. O homem moderno e suas relações com o divino

Em María Zambrano, as relações entre o homem e o divino na

modernidade assemelham-se à conexão vivenciada no mundo antigo,

distinguindo-se somente no estabelecimento dos binônimos de ligação. Se no

mundo antigo, temos o binômio homem-Deus, no mundo moderno, encontramos o

binômino homem-história. De acordo com Eduardo Subirats, a história, ao

alcançar o seu máximo grau como Ser absoluto, aponta tragicamente o fim da

idade histórica ou o término da historicidade. Na modernidade, ironicamente,

levamos a efeito o projeto autodestrutivo da supremacia técnico-científica, que

nos atirou a um futuro abismático, decadente e niilista com respeito à ambição do

homem de ser mais do que objeto, instrumento ou matéria. No vivimos en la prehistoria de un mundo mejor, sino que somos los

testimonios de la post-historia, portadores del estigma de una edad final. Por eso somos “seguir siendo todavía”, un «Gerade-noch sein», un ser suspendido, enfrentado a su no-ser, a su desaparición, a la nada; el hombre post-histórico es el que contempla la historia, el futuro, como reino de la decadencia, o más aún, como proyecto de autoanihilación. (SUBIRATS, E., 1987, p.97)

Definitivamente, María Zambrano leva-nos a pensar que, na verdade, o

homem nunca abandonou de todo o sentimento do divino, mas, com a

modernidade, criou outra religião sem Deus, não transcendente à figura do

homem. Criou, na realidade, a religião do humano, que ocupou o espaço vazio de

Deus, onde o nascimento do divino executa-se a partir da própria pessoa concreta.

Essas ideias provêm de toda uma filosofia trágica nietszcheana com a criação do

super-homem, a fim de preencher as lacunas de um outro mundo, de uma

sobrevida ou vida divina, da qual o homem pensava haver se libertado. A outra

vida ou a vida divina da qual o homem afirmava haver se emancipado foi refeita

na esfera do futuro e da história. O divino, de qualquer maneira, continua sendo a

porta do segmento metafísico irredutível do ser humano. A nossa realidade existe

em função da criação e, originalmente, toda criação é divina. Ocorre que, na

modernidade, aparece a consciência da criação. O que Zambrano deixa claro

também em El hombre y lo divino é que apesar da modernidade estabelecer o

trágico propósito de elevar o lógos racional em detrimento da anulação da figura

humana, esta continuou existindo e resistindo frente à sua própria tentativa de

esmagamento, assim como sempre foi também capaz de existir diante dos deuses

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gregos e do Deus cristão, na medida em que lutou constantemente para escrever

uma memória repleta de confissões, de sentimentos contraditórios e de esperanças,

que a transportam a uma liberdade de pensamento e à aquisição de uma

consciência autônoma.

Como pudemos notar, o tema da religião é nuclear nas obras

zambranianas. Desde uma tradição clássica da antiguidade grega, o elemento

deífico integra uma senda vital do homem nos distintos âmbitos. Já escrevemos

que, em 1973, no prólogo à segunda edição de El hombre y lo divino, María

Zambrano (1993, p.9) comentou que o título dessa obra poderia ser o binômio

representante da totalidade da sua criação literária. No entanto, é evidente que El

hombre y lo divino adota um tom diferente ao abordar as peculiaridades

linguísticas e discursivas da enunciação zambraniana. Nesse texto, culmina um

gradual deslocamento das questões centrais desenvolvidas por María Zambrano ao

longo de sua obra ensaística. Se no início de sua criação artística, os seus

primeiros ensaios presentes na Revista de Occidente e em Hora de España

expressam uma intensa inquietação no que se refere a assuntos políticos e são

republicanamente apaixonados, a partir, sobretudo, de Filosofía y poesía,

percebemos que a preocupação com a política desvia-se a uma esfera secundária

não menos importante, porém, cede um espaço de destaque a reflexões de caráter

eminentemente filosófico, poético e metafísico. Enquanto a sua construção

enunciativa nas revistas é revestida por uma série de leituras da tradição filosófica

ocidental e saberes orientais, que reconhecem a importância cultural da literatura

espanhola para desvendar o ser espanhol e o ser da Espanha, em Filosofía y

poesía, em La confesión: género literario y método e em El hombre y lo

divino, vamos observando giros significativos da sua palavra que se impregna de

um maior subjetivismo autocriador da pessoa, independente, amorosa e livre,

aliado a uma irrefutável tendência místico-poética, sequiosa por conseguir uma

completude intrínseca impossível dentro de uma existência puramente racional.

Todas as obras de María Zambrano não ocultam as influências que

inspiraram as suas reflexões e a construção da sua maneira particular de pensar.

Entre essas relevantes fontes de conhecimento que contribuíram para a escritura

dos seus ensaios estão Hegel, Scheller, Bergson, Heidegger e, segundo

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comentamos anteriormente, Ortega y Gasset. O nome de Hegel, inclusive, pode

ser lido nas páginas iniciais e o conjunto de perguntas “¿qué es lo histórico?, ¿qué

es lo que a través de la historia se hace y se deshace, se despierta y se aduerme,

aparece para desaparecer? e ¿es algo siempre otro o algo siempre lo mismo bajo

todo acontecimiento?” (ibidem, p.14) norteiam o desenvolvimento de El hombre

y lo divino. Profundamente adentrada nas esferas de uma filosofia racio-poética,

El hombre y lo divino, ao procurar respostas e revelações, coloca-nos diante de

problemáticas altamente modernas como a metafísica da identidade e do plural, do

que é único e múltiplo, do que é idiossincrático ou o ultrapassa, denunciando uma

alteridade. Para María Zambrano, o sagrado apresenta conexões muito estreitas

com a realidade. Na qualidade de uma instância metafísica última ou maior, o

sagrado favorece o ceticismo filosófico e o sentimento religioso. Segundo

palavras de Nieves Herrero, “lo sagrado se define por absoluta heterogeneidad y

discontinuidad respecto de lo humano, es «lo otro» por antonomasia, la alteridad

máxima.” (HERRERO, N., 1987, I) Em razão de que o sagrado se relaciona com a

noção de origem, somos levados a pensamentos de confusão, caos, trevas,

diversidade e abismo. No homem interior, a correlação metafórica do sagrado

refere-se às ‘entranhas’, ao ‘inconsciente’, em que María Zambrano escreve

aparecer “el sentir de la nada, la nada que no puede ser idea pues es lo que devora,

lo otro que amenaza a lo que el hombre tiene de ser, pura palpitación.” De acordo

com Nieves Herrero (ibidem), a construção da consciência, do pensamento, do

indivíduo estabelece parâmetros íntimos com o sagrado, na medida em que o ser

humano está constantemente sendo constituído por esse princípio da alteridade.

Segundo Nieves Herrero (ibid.), este é o ‘fundamento antropológico da sua

filosofia’, cuja inspiração está na razão vital de Ortega y Gasset.

Os ensaios zambranianos evidenciam a existência de um homem

incompleto, que necessita criar a sua vida e o seu lugar no mundo. Essa busca da

identidade dificilmente é alcançada, pois o homem está mediatizado pelo outro

sob a couraça de inúmeras formas ou máscaras. Configurar a Deus, dar forma ao

sagrado e convertê-lo em divino é uma missão do ser humano para María

Zambrano, em que a essência do objeto se articula ou se submete a uma intenção

do sujeito. No entanto, o sagrado notabiliza-se como o elemento mais primordial

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se comparado a todas às figuras divinas. María Zambrano defende a essencial

transcendência e heterogeneidade do sagrado por ser uma realidade sempre

diversa que não se esgota na divindade ou a somente um dos seus símbolos. O

divino caracteriza-se pelo instantâneo e pela descontinuidade. Embora o sagrado

passe por sombras dentro da história, reaparece mesmo diante de todas as

resistências ao seu poder e à sua importância. Por meio do lógos da palavra e do

ser, é possível conseguir uma pretendida unidade na identidade. Conforme

assinala Nieves Herrero (ibid., II), o Ocidente particulariza-se pela tentativa de

incorporar o sagrado à história, a fim de divinizá-la pela negação do outro, que

acaba se identificando com a realidade, com o ser e com o pensar dentro do

âmbito de uma consciência racional. Em virtude desse processo para historiar o

sagrado, Nietzsche também proclama a morte de deus com a finalidade de imputar

uma sentença de morte à modernidade e seus projetos de emancipação da vida e

do homem. Na verdade, a transformação do sagrado em divino e, seguidamente,

em história resulta em uma destruição da esfera espiritual humana, posto que,

assim, a própria modernidade diviniza-se no intento de resgate do sagrado, desse

outro, da confusão ou do caos primeiro e da vida não sujeita à metamorfose que a

ideia de um deus da razão havia subjugado.

É interessante o asserto de Nieves Herrero (ibid.) de que é justamente

dentro desse ambiente que se manifestam as filosofias da alteridade, como o

marxismo, o freudismo e as filosofias de vida existencialistas em geral como um

modo de derribar a razão consciente. Como uma fenomenologia do espírito, a

ideia do divino instiga indubitavelmente uma noção do sagrado, o qual pode fazer

brilhar a luz, talvez santa e maldita, do conhecimento primordial, que, por sua vez,

figura o pressuposto fundamental da busca filosófica. O afã de desvelar a essência

sagrada traduz-se de diferentes modos e sob aspectos também diversos, como nos

deuses, no tempo e na história. Se antes o homem encontrava-se envolvido em um

universo sagrado incógnito, o despertar da consciência favoreceu ao indivíduo

assumir a história como um meio de construir a pessoa. Assim, o homem começou

a reorganizar a realidade e recebeu o desafio de responder as perguntas que, nos

momentos de instabilidade, os deuses já não ofereciam a solução mais

convincente e esperada. Essa autopercepção histórica é descrita por Zambrano

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como a passagem de uma atitude poética a uma atitude filosófica, já que a poesia

aparece como uma possibilidade de resposta enquanto que a filosofia caracteriza-

se pela pergunta. A polêmica provém do caos, de um vazio, de uma desesperança,

no momento em que a sabedoria consagrada já não ocasiona a satisfação da

dúvida. A inquietação filosófica tem o propósito de reestruturar o mundo e o

próprio homem. Tal ofício meditativo, incentivado pela análise crítica do discurso,

brinda, na opinião de Ruth Wodak e Michael Meyer (2003, pp.19, 20), o fundo

histórico indispensável à imagem de conjunto que antecipa o surgimento do

ensaio e da própria filosofia.

Em El hombre y lo divino, María Zambrano tem o objetivo de se afastar

de um negativismo moderno essencial com relação ao homem e à vida, a fim de se

voltar, esperançosamente, a um deus criador proveniente originalmente de uma

cultura grega clássica, que se renova na tradição judaico-cristã e se peculiariza

pela propagação do amor, da compaixão, da solidariedade e, sobretudo, do amor.

Na proporção em que esse Deus amoroso encarna a figura do sagrado, da

alteridade, notamos a abertura de um frutífero caminho em direção ao desejo de

transcendência plena do ser humano por meio da qual o homem pode encontrar-se

com uma perspectiva de infinito que sustente a construção da sua identidade na

‘intersubjetividade’ e o faça vencer a solidão moderna em que seu ser cindido e

niilista habita. Nessa obra, detectamos, em María Zambrano, uma atitude otimista

primordial, cujo sentimento afirmativo desconhece o racionalismo e defende a

criação da consciência: “[...] en los momentos de soledad, de esa soledad total que

adviene tras la experiencia del desengaño de las cosas y de su vacío, se hace sentir

la realidad –o su ausencia– como proveniente de un foco primario, viviente, sólo

él puede restituir la confianza y la vida.” (ZAMBRANO, M., 1993, p.301) Como

o amor dispõe de um lugar privilegiado na filosofia zambraniana, as

consequências do seu poder na vida do homem abarcam a necessidade da

existência ou a presença originária do divino, que se dá através de um deus de

criação sem o qual ou sem esse outro seria inviável chegar a ser em uma

identidade peremptoriamente dialógica e especular. Da mesma maneira que o

amor precisa ser nutrido ou construído por uma série de relações entre os homens

e com o mundo, a realidade, por esta ação, também é modificada por essa

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aspiração única humana de criação e de crescimento, que facilita igualmente, por

sua vez, fundar a identidade. De acordo com a filosofia de María Zambrano, essa

edificação antropológica da identidade baseia-se na nostalgia e na esperança como

dois sentimentos fundamentais característicos da alma humana, que sugerem a

possibilidade de liberdade, porém, outrossim, reivindicam a noção de

responsabilidade que implica o ato consciente de ser e existir. A nostalgia refere-

se ao passado paraíso perdido e a esperança alberga o conjunto de utopias que, ao

transformar a realidade, modificam, do mesmo modo, o sujeito e as suas

circunstâncias. El hombre y lo divino possui realmente como temática discursiva

principal o amor em que se articula o divino com o humano e o humano com o

divino com foco nevrálgico situado originalmente no conceito do sagrado como

contingência ambígua inerente, que reflete a realidade e o próprio homem

constituído, na sua essência, de contrapostos como destruição e criação, negação e

afirmação, abertura e hermetismo. Isoladamente, esses elementos são ineficazes e

remetem à pulverização da personalidade tão característica e vivenciada pelo

Ocidente. Somente na aceitação do real como um espaço de criação divino e

ambíguo, assim como pudemos discutir na herança de dom Quixote à cultura

espanhola e universal, é que existe a possibilidade de realização mais plena do

homem. Esse objetivo superior é o que persegue María Zambrano pela palavra

transformadora dentro do auge de sua obra representada, nesse trabalho, por El

hombre y lo divino.

O homem, portanto, não é simplesmente um ser histórico, incluído dentro

de um tempo que transcorre de maneira sucessiva com relação aos

acontecimentos; é, antes de tudo, um predestinado ao divino na transcendência,

cuja finalidade é alcançar ir mais além de si mesmo, em um constante estado de

trânsito rumo à continuidade da existência. A crença de que o homem é o

simulacro de um ser em condição de divinização na transcendência significa que

não terminou de se construir e, por conseguinte, irá prosseguir nessa missão de

autocriação a medida que existe. Se a ação de nascer sugere emergir de um sonho

divino, o ato de viver será, pouco a pouco, repensar outros sonhos pela força de

consecutivos despertares. A elaboração do indivíduo se sustenta na estrutura do

tempo circunstancial, no qual estão englobadas as conjunturas da subjetividade ou

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da mesma atemporalidade psíquica. Com base no pensamento de que o sujeito não

está propriamente sob, mas sobre o tempo sucessivo, María Zambrano argumenta

que essa atemporalidade divina tornou viável uma revelação particular ou,

segundo a escritora, a ‘criação da pessoa’. Esses momentos de lucidez, obtidos

pela elevação transcendente do tempo da consciência, estabelece vínculos com o

divino, com a história, com a fenomenologia dos sonhos e com a razão poética,

que aparece, reforçamos, como um método discursivo filosófico da crise da

cultura moderna.

A razão poética, estilo utilizado por María Zambrano, revela-se como um

elemento fundamental para o resgate de uma consciência nos tempos modernos do

sentido capital que teve o divino na história da civilização. A constatação ou a

esperança do divino ao mesmo tempo em que causou ao homem terror e a

sensação de pequenez, o conduziu a vencer as suas próprias limitações e a crescer

com a busca de mais sabedoria e liberdade. Ao despertar da consciência, o homem

gera maneiras diferentes de visibilidade, que instituem uma ação ética por

excelência diante de sua contingência vivencial. Esse discernimento adquire

relevo em um momento em que a severa confiança no racionalismo fragiliza o

espírito humano e lhe oculta outras dimensões vitais. O pensador é, como profere

Silvio de Lima (1944, pp.17, 18), um inquisidor de verdades, que se atreve a ser

alguém que se expressa com um tom pessoal e não somente como um eco, o que

constitui, sem dúvida, uma revolução de si mesmo e de tudo o que lhe rodeia.

A situação histórica do homem na cultura moderna, afirma Eduardo

Subirats, “es la falta de ser, la nada”, instaurada por um efeito redutor puramente

racionalista (SUBIRATS, E., 1987, pp.95, 96). O eu, carente de dimensões

íntimas, realiza uma projeção da sua interioridade à história, ato que transpõe a

sua ‘mismidad’ ao exterior do sujeito. O conceito de semideidade com referência

à história compreende que a vida e a consciência humana estão lançadas ao futuro

(ZAMBRANO, 1993, p.21), onde o homem tem a incumbência de dotar de

sentido a sua existência. A luta que enfrenta o indivíduo, de acordo com Leonardo

Cammarano, não alcança as coisas, mas aos problemas que surgem, quando as

meditamos: “El hombre se hace independiente de los dioses; y se crea su propia

soledad. La vida, otro tiempo colmada de dioses, tiende a hacerse nuevamente

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vacía. Se intenta colmar este vacío emergente con el “proyecto de ser hombres””.

(CAMMARANO, L., 1987, p.102)

O fato de o homem haver se liberado dos deuses colocou-o, em

contrapartida, diante de um deus desconhecido, que se manifesta ciclicamente,

proveniente de uma situação primeira.

Desde los dioses primeros hasta el ser filosófico, ya ex-puesto, ya im-puesto, transcendente, inmenso o inmanente lo divino ha peregrinado a través de las ondulaciones de la historia revistiendo formas diversas, y alternando sus furtivas apariciones con períodos de total oscuridad. En aquellos momentos, desde una luz que se pretendía absoluta, el hombre creía apoderarse de la oscuridad, acotándola en sus nombres, dándole fomas que quería definitivas. La caída de los ídolos sume siempre en una terrible angustia, la misma que impele a dar sentido, y promulga una nueva curva de la historia, un nuevo título de soberanía, nuevas leyes de vasallaje. (MAILLARD, C., 1987, p.124)

Em meio às novidades da época moderna, o divino assenta as suas raízes e

se atualiza no futuro. A razão poética zambraniana desponta como uma veia

questionadora em um ambiente regido pelo cientificismo, pois,

incontestavelmente, a modernidade laica não corresponde a uma especificidade

cultural e literária espanhola.

A razão poética, como discurso filosófico, procura recuperar uma

perspectiva pessoal interior, que esquadrinha uma luz auroral, inusitada e

surpreendente, como um claro no bosque, que representa o alvorecer da

conscientização. Dita visão poética amalgama razão e coração, a fim de que o

sujeito esteja presente na vida com toda a plenitude possível.

As reflexões filosóficas empreendidas pela escritora espanhola por meio

da razão poética estimulam a identificação de traços metafísicos na natureza,

defendem a ideia de uma realidade divina na alma e apregoam uma atitude ética,

que trata de perseguir o autoconhecimento humano. É transparente a intenção de

lograr, a partir da comunhão da filosofia com a literatura, a evolução interior e

experiencial do sujeito, que se contempla, em certas ocasiões, desestabilizado em

meio às suas circunstâncias, das quais é inegavelmente testemunha. Como uma

história de diversos testemunhos, a filosofia ocidental cumpre o papel da

indagação e da celebração da dúvida herdada dos gregos e María Zambrano não se

distanciará desse legado.

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O sentimento do divino esteve assiduamente, de uma forma ou de outra,

incorporado à modernidade vivida na Espanha e irá apresentar fortes imbricações

com o ensaio, atividade à qual se ocupou tão densamente María Zambrano, com a

intenção de refletir sobre assuntos filosóficos, artísticos e históricos. A

fenomenologia do divino encontra uma possível definição em Chantal Maillard

(1987, p.124) como uma persistente e confusa busca do ser, que pretende vencer a

cisão do paraíso perdido e recompletar-se em uma (re)união sagrada, que

pertencia ao homem antes da queda adâmica e, portanto, anterior à consciência de

si.

A religião, inegavelmente, não foi indiferente a esses desassossegos

relacionados a uma dimensão constantemente ausente da alma humana, originária

de uma sensação de incerteza, cujos parâmetros se mostram inerentes às

circunstâncias do homem moderno. Deus, em amplo sentido, segundo Miguel de

Unamuno, não é uma necessidade racional, porém uma condição urgente e

imprescindível do ser humano. O sentimento do divino pode eclipsar-se ou mover-

se a outras ideias em alguns momentos, contudo, é indissociável da vida, visto

que, como uma das bases primordiais da existência, simboliza, conforme

preconiza Georges Bataille (1980, p.16), o trâmite da descontinuidade em direção

à continuidade, da vida rumo à morte, em um rito que anseia uma elevação ao

sublime.

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10. CONCLUSÕES

Por meio de uma perspectiva diacrônica, que intencionou dar conta de

uma trajetória de pensamento, analisamos alguns dos ensaios de María Zambrano,

articulando o referido gênero ensaístico com o ideário da modernidade e o

sentimento do trágico renascido e reatualizado em virtude de uma nova visão de

mundo. Na pesquisa, esse alinhamento de bases teóricas – ensaio, modernidade e

trágico – tornou possível comprovar que o pensamento filo-poético de María

Zambrano relaciona-se à uma releitura crítica da história e da tradição literária

espanhola no século XX. Ao longo do trabalho, pudemos observar que os ensaios

filosóficos zambranianos foram adquirindo novos contornos, passando de

preocupações filosóficas associadas a um compromisso político com a República

espanhola, verificadas no estudo dos textos que realizamos na Revista de

Occidente e em Hora de España, a meditações filosóficas, poéticas e metafísicas

em torno do homem e do seu estar no mundo. Essas transformações na sua forma

de pensar ocorreram, sobretudo, em função dos muitos anos de exílio vivenciados

pela escritora, nos quais teve a oportunidade de criar obras de relevo como

Filosofía y poesía, La confesión: género literario y método e El hombre y lo

divino. A ideia do trágico nos ensaios de María Zambrano, além de responder a

uma condição do homem dentro do contexto da modernidade, refere-se

igualmente a uma experiência desastrosa ou mesmo trágica da autora no seu

tempo. Os diversos sucessos funestos que abalaram a Espanha nas primeiras

décadas do século XX fizeram com que a ensaísta se sentisse tanto perdida DO

mundo moderno em que vivia, como também perdida NO mundo, isto é, distante

do seu país de origem, tendo em vista a sua partida voluntária da Espanha e a sua

passagem por várias cidades da Europa e da América. Para essas reflexões

teóricas sobre o discurso ensaístico, a problemática da modernidade e o

sentimento do trágico moderno, escrevemos o segundo e o terceiro capítulo dessa

tese, a recordar: “O ensaio como uma escritura do século XX” e “Um conceito

diferente do trágico”, respectivamente. No quarto capítulo, “María Zambrano na

República e na guerra civil”, pareceu-nos conveniente fazer um resumo do

conflito espanhol mais traumático antes do segundo enfrentamento mundial e seus

antecedentes históricos, a fim de ilustrar as circunstâncias temporais que

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envolviam a autora malaguenha e a sua escritura, influenciando-as

profundamente. Dentro desse quarto capítulo, ainda, dissertamos sobre a

importância das revistas literárias espanholas do início do século XX, cuja índole

vanguardista favoreceu a distintos escritores, inclusive, a María Zambrano,

desenvolver um pensamento artístico inovador.

Na Revista de Occidente, estudamos o ensaio “Por qué se escribe” (1934)

com o intuito de apresentar o primeiro texto filosófico zambraniano, que localiza

a autora antes de 1936. Através desse ensaio, deduzimos que a solidão é um

requisito indispensável do artista, para que possa refletir e dar vazão à

irrenunciável vontade/necessidade de escrever e, assim, comunicar os seus

pensamentos, as suas emoções e os seus desejos, enfim, revelar ao outro o milagre

do seu segredo de ser e de existir. A fim de preparar o leitor para a análise de “Por

qué se escribe”, nos remetemos a dois outros ensaios anteriores escritos por María

Zambrano também na Revista de Occidente: “Hoffmann: «Descartes»” (1933) e

“Robert Aron y Arnaud Dandieu. «La Révolution Nécessaire»” (1934), pois

julgamos que esses ensaios delineavam relevantes conceitos relacionados ao

pensamento estético zambraniano, antecipando a construção de “Por qué se

escribe”.

No quinto capítulo, “Diálogos com a tradição espanhola”, discutimos a

escritura de ensaios para a revista Hora de España, que exprimem um ponto de

vista filosófico-crítico sobre a história e se sustentam na herança cultural literária

da pátria da ensaísta. Selecionamos os ensaios “La reforma del entendimiento

español” (1937) e “Misericordia” (1938), onde María Zambrano tratará, por meio

de dom Quixote, a obra de Miguel de Cervantes e, através das personagens

Fortunata e Benigna, a obra de Benito Pérez Galdós. Averiguamos também a

relação existente entre Benito Pérez Galdós e Luis Buñuel, figuras com

concepções artísticas aparentemente tão diferentes, mas, ao mesmo tempo, com

várias linhas convergentes, visto que o cineasta espanhol produziu Nazarín

(1958) e Tristana (1970), filmes baseados em duas obras importantes do escritor

canário com o mesmo nome. Buñuel interessava-se pelas obras galdosianas por

considerá-las a expressão de um realismo capaz de questionar a própria ordem do

real.

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Para essa pesquisa, surgiu-nos a ideia de pensar um sexto capítulo com a

denominação de “Uma fala com a contemporaneidade” para fazer referência ao

poema “Díptico español” do poeta sevilhano Luis Cernuda, que compõe a obra

Desolación de la Quimera, publicada em 1962. Essa análise serviu como outra

perspectiva sobre a figura de Galdós, que além da Espanha, de suas tradições e

crenças, aparece, no texto, como um exemplo de um passado glorioso espanhol.

O sétimo capítulo, “A experiência intelecto-emocional do exílio”, abordou

Filosofía y poesía (1939), obra lançada durante o desterro voluntário da ensaísta

iniciado precisamente nessa data. Apesar da distância em sua estada por diversos

países da América e da Europa, como México, Porto Rico, Cuba, Roma e Suíça,

María Zambrano sempre revelou interesse e preocupação pela Espanha e seu

povo, jamais abandonando as suas meditações que, nessa obra, metaforizam tais

angústias, por meio de lucubrações sobre a ética, a mística, a metafísica e a poesia

na história ocidental da filosofia, polemizada esta, em suas origens, por Sócrates,

Platão, Kierkegaard e outros pensadores originários. Daí o fato de havermos

defendido com María Zambrano que o pensamento, a filosofia e a poesia

necessitam unir-se por estabelecerem diálogos que constituem paradoxalmente a

realidade em toda a sua riqueza, amplitude, abstração e concreção, posto que

complementam, de maneira holística, o estar agônico do homem no mundo e em

si mesmo.

No oitavo capítulo, de nome “A confissão autobiográfica no ensaio”, por

meio da obra La confesión: género literario y método (1943), tivemos o

objetivo de verificar como María Zambrano articula o ensaio e a autobiografia

confessional para representar a crise entre a existência e o racionalismo da

modernidade. Nesse capítulo, reiteramos que as relações entre a vida e a criação

literária de María Zambrano são muito claras e como a sua história foi construída

a partir de conflitos e crises, La confesión: género literario y método aparece

focada no conhecimento espiritual e no saber da alma, alicerçados,

principalmente, nas confissões de São Agostinho e de Job, com a intenção de

procurar compreender o sentimento angustiante de estar perdido tanto no mundo,

como também do mundo. O estudo dessa obra pareceu-nos relevante no sentido

de que anuncia o encaminhamento filo-poético do pensamento zambraniano em

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direção ao desejo de transcendência, tema do nono capítulo do nosso trabalho.

Assim, como última etapa do corpus dessa pesquisa, nos dedicamos ao estudo de

um dos livros mais insignes de María Zambrano, El hombre y lo divino (1955).

Essa obra, conforme o título, trata do binômio original homem-divino brutalmente

separado pelas diversas contingências do tempo e da existência. María Zambrano

conduziu as nossas reflexões no sentido de que, na vida humana, é uma

necessidade pensar sobre a presença do divino, visto que a percepção de

elementos anteriores ao homem ou o seu mistério invade o imaginário coletivo

desde tempos muito distantes.

María Zambrano faz parte de uma geração de escritores que vivenciou

momentos importantes da vida espanhola. A autora assistiu ao governo totalitário

de Primo de Rivera, participou dos sonhos por concretização da República,

presenciou os anos da Guerra Civil Espanhola e viu subir ao poder o governo

franquista. Assim, nos anos 20 e 30 do século passado, a história espanhola passou

por uma série de avatares que marcou um sentimento de tragicidade correspondente

a uma situação moderna que María Zambrano recriou em suas obras. O nosso

propósito foi estudar o conjunto da obra ensaística da autora malaguenha por etapas

de nenhuma maneira rígidas, pois foram condicionadas por diversos fatos

contundentes da história da Espanha, que edificaram o percurso progressivo de um

pensamento. Como uma escritora comprometida com o seu tempo, María Zambrano

colocou o sentimento do trágico em suas obras, tomando diferentes prismas de

contemplação: a filosofia, a decepção política com o fracasso republicano, a

escritura poética no exílio e a busca por reconstruir uma transcendência perdida

com o rompimento da antiga concepção do divino.

Esse sentimento trágico característico da modernidade manifestou-se em

escritores espanhóis predecessores estudados pela autora como Miguel de

Cervantes e Benito Pérez Galdós. Concluímos também que esse sentimento do

trágico configurou-se como uma característica peculiar da literatura espanhola no

século XX. Por isso, nos valemos de uma perspectiva diacrônica dos ensaios de

María Zambrano que pudesse comprovar essa assertiva. Ainda dentro do conceito

do trágico, gostaríamos de observar que María Zambrano, como Miguel de

Unamuno, acabou construindo uma figura de herói trágico, que luta sem

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esmorecer diante dos revesses da existência. Sabemos que, sobretudo, a partir do

século XIX, o mito do intelectual tornou-se uma figura assaz importante dentro da

literatura ocidental e imprimiu uma responsabilidade do escritor com a sua época,

que outorgou as características de um herói épico invencível no âmbito da ficção

e, por que não dizer, da vida.

O ensaio, como gênero, serviu a María Zambrano como um instrumento

literário reagente a uma situação totalitária que contrasta, mas, ao mesmo tempo,

combina com sucessos curiosamente acontecidos na modernidade, como os

governos ditatoriais, a violência, as guerras e segregações de todo tipo, social,

política, étnica. Em um momento em que deveria predominar uma consciente

ilustração, a modernidade tornou-se alvo de ataque de suas próprias propagandas

alienantes e passou a questionar e contradizer os seus próprios supostos de

fundação. Na contramão da objetividade desejada pelo pensamento moderno,

María Zambrano ambicionou construir uma imagem subjetiva e extremamente

singular de escritora ao utilizar o ensaio como um recurso que prima pelo realce

da figura do sujeito cindido e quase sem fé que transparece, a todo o momento, a

certeza de uma flexibilidade do conhecimento. Isso pode explicar certo tom

trágico de melancolia, derrota e fracasso que assistimos na leitura da sua obra,

principalmente se tivermos em conta que, como o ser humano, todas as questões

que o rodeiam quase sempre se diferenciarão pelo inacabamento e pela decepção

diante da busca de uma completude ou de uma felicidade plena impossíveis ainda

mais nos dias conturbados de hoje, onde nada é certo ou errado o suficiente e a

presença do outro no mundo, na forma de um escritor, crítico ou intelectual,

funciona como a contracara de todo e qualquer conceito antes defendido. Essa

atitude é própria da dialética ou da ‘multilética’ do discurso empreendido por um

sujeito em crise e Zambrano, na sua obra, perseverou no pressuposto de que a

modernidade, mais que nunca, precisava admitir e aceitar seus aspectos falíveis,

atendendo ao exercício saudável da renovação perene do dizer-escrever. O desafio

da autora esteve justamente em compatibilizar eu histórico, eu ficcional, texto

filosófico-literário e o mundo circundante que habitava relacionados a um vasto e

erudito conhecimento da Cultura do seu tempo.

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Grande parte dos ensaístas literários pertencentes ao século XX

estabeleceu íntimas relações entre quatro características fundamentais para a

lapidação do seu texto, a saber: confessar-se publicamente, persuadir, informar e

criar arte. O tom pessoal, conversacional, persuasivo e estético do ensaio

viabilizou radiografar culturas dos mais diversos países e regiões. O discurso

ensaístico apresenta-se como uma literatura possuidora de uma funcionalidade

sócio-histórica definida mais pelo conteúdo do que por uma forma artística

precisa. Seguindo essa perspectiva, esse conteúdo evidentemente implica o

compromisso com uma interpretação de alguma realidade em especial. Como

qualquer contexto, o contexto espanhol apresenta um quadro bastante peculiar, no

qual o ensaio aparece como um campo de investigação amplo e multifacetado,

que pode abordá-lo a partir de conceitos, temáticas e modos variados.

Se a literatura representa uma forma de pensar o mundo a partir da

indagação contestadora, que a circunscreve dentro de um panorama de crise da

modernidade, onde se manifestam a melancolia e o fracasso trágico em torno do

sujeito, das suas circunstâncias, da transcendência e da palavra, a qual tangencia

incansavelmente a descoberta e gravita ao redor do conhecimento, o ensaio e a

filosofia irão assumir esse discurso da constatação de uma impotência e de uma

insatisfação em relação à uma situação histórica de sucesso e de ruína que se quer

observar e problematizar. O progresso e a ciência brindaram ao homem uma

paradoxal condição desde a perspectiva do seu presente: ao mesmo tempo em que

a potência criadora da revolução industrial obsequiou um sem número de avanços

tecnológicos, não foi capaz de solucionar os mais íntimos conflitos humanos da

existência. As conquistas materiais não tornaram o homem pleno, tampouco lhe

trouxeram o sentimento de felicidade dentro da sua própria existência. A

prosperidade ocorreu em certos setores da sociedade, porém não afetou o ser

humano em sua essência espiritual original. O grande impasse da humanidade

encontra-se no anseio de responder as suas aflições mais primordiais. Esses

dilemas aterrorizam a existência, em virtude do fato de que o homem não evoluiu

mental e moralmente o bastante para realmente compreender as raízes do seu mal

estar na civilização. O conhecimento na modernidade cresce a uma velocidade tão

espantosa que temos a impressão de que somos cada vez mais ignorantes, mais

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insuficientes, mais pouco desenvolvidos. Entretanto, a simples identificação de

suas angústias não ajudará a que o homem se salve; é ainda indispensável que

consiga reunir forças e coragem para fazer o que precisa, a fim de se sentir mais

venturoso e não repetir os mesmos equívocos. Tais reflexões filosóficas frutificam

no discurso ensaístico, o qual se peculiariza pela dúvida, pela polêmica e pelo

espírito crítico, onde o eu do autor procura conhecer-se a si mesmo por meio de

um método intelectual estético de auto-experimentação e auto-exercício, que

almeja divulgar e persuadir o outro com a sua opinião pessoal, com um ponto de

vista subjetivo.

Em María Zambrano, questões como a decadência da cultura moderna

ocidental, calcada simultaneamente no fascínio e na decepção trágica, exercidos

pelos logros científicos, e a ausência de valores individuais e espirituais na

civilização mostraram-se extremamente presentes por meio de uma proveitosa

conjugação entre o ensaio, a filosofia e a poesia. O papel do escritor, sem dúvida

alguma, adquire uma significação ímpar e comprometida dentro do discurso

ensaístico, na função de um intelectual que intenciona contemplar criticamente a

sua sociedade.

A relação do homem com o ‘divino’, como um meio de fazer resplandecer

as luzes de uma verdade pessoal possível, é, de fato, uma constante no ensaio

literário de María Zambrano, além de figurar uma idiossincrasia da própria cultura

espanhola. A busca filosófica por uma espiritualidade primordial, presente na

escritura zambraniana, atende a um descontentamento, com respeito a um

momento histórico, onde o trágico sentimento da falta, apesar das conquistas

materiais e científicas, manifesta o anseio de desvelar uma essência sagrada

humana, que se traduz de múltiplas maneiras, sob aspectos que podemos

denominar como o ‘divino’, o ‘tempo’ ou a ‘História’. A ensaísta, ao procurar

decifrar a própria face, a própria personalidade através da ação escritural,

reconhece que o gênero ensaístico, por sua liberdade investigativa, temática e

estética, revela-se como um caminho favorável para, a partir da experiência

individual, explorar, assim, as particulares situações da condição humana. O

ensaio, ao propiciar um questionamento e uma reflexão sobre temas filosóficos,

existenciais, religiosos, artísticos e históricos, descobre, nas mazelas da

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modernidade, um rico pretexto para instituir identificações. É sabido que a

religião não foi indiferente à dúvida, a qual é inerente ao homem moderno e a

tudo o que o cerca. A crença na religião não é uma necessidade racional, mas sim

um requisito em alto grau urgente e imprescindível do homem, da alma humana,

pois é inseparável da vida comum; é a base da existência e representa uma

tradição como um canal de passagem da vida para a morte, em um ato de elevação

ao sublime. O ensaio, enfim, como um vetor para a construção de uma

subjetividade moderna em crise, favorece a discussão das vantagens e dos

infortúnios impostos pela revolução industrial na modernidade, que vêm

acometendo o homem nos dois últimos séculos, por meio de um apelo a uma

instância religiosa que o salve, pelo menos esteticamente, de seu destino último e

inexorável.

Ao desempenhar um papel de leitora de obras e autores espanhóis, entre

outros, María Zambrano transformou a sua própria leitura em literatura, por meio

da escritura de ensaios. Com todas as teorias sobre a construção do texto, a veia

ensaística é grandemente utilizada pelos pensadores na modernidade. Entre

autores renomados dentro da literatura espanhola, podemos citar Miguel de

Unamuno, Américo Castro, Francisco Ayala e o próprio Ortega y Gasset, os quais

provaram que a literatura e a filosofia se associam de maneira fecunda no ensaio.

María Zambrano, alinhando-se à essa via capital de expressão em constante

atualização, que também influenciou o ideário espanhol, não se distanciou dessa

tendência ensaística da modernidade. A autora, por meio do discurso ensaístico,

argumentou sobre temas extremamente prósperos dentro da literatura espanhola,

como a subjetividade trágica moderna e a sua construção artística, conectados a

um intento de compreensão do homem espanhol e de suas características mais

profundas. É sobressalente, outrossim, a abordagem zambraniana da noção do

divino, da experiência religiosa perpassando a prática estética e da crença de que

o homem não é explicável, tampouco inteligível excluído de sua contingência

histórica, bem como a observância de uma vocação espanhola, sobretudo após o

século XVIII e a crise do sistema, de desenvolver o ensaio filosófico-literário.

A obra ensaística de María Zambrano almejou promover, dentro de uma

sociedade moderna decadente em seus valores individuais e espirituais, um

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encontro com a conscientização ao propor a dúvida e o questionamento, traços

distintivos cruciais para a construção do discurso que a autora levou a cabo.

Enquanto o desconhecimento faz com que ‘Deus’ ou o ‘destino’ conduzam a

existência, o despertar da consciência mostra ao homem o dever de assumir a

responsabilidade sobre si mesmo como sujeito de sua própria história. O falar do

ensaísta, com o motivo de estar dotado de uma inflexão pessoal, apresenta a

imagem de um sujeito artístico único e tremendamente cambiante, o que lhe

garante registrar uma marca de escritor inconteste no mundo, que ultrapasse as

fronteiras do tempo, repercutindo, assim, no viver alheio ao legar ao outro a sua

herança. Essa relatividade com referência a uma personalidade diferenciada e com

atributos muito particulares é que permeia uma apreciação subjetiva à escritura

ensaística, conferindo-lhe um caráter inédito e original, o qual lhe imprime um

posicionamento relevante como um modo de enunciação no mundo

contemporâneo.

O problema fundamental que preocupou María Zambrano trata-se de

humanizar a história, fazendo com que a razão se converta em um veículo

adequado para o conhecimento de uma realidade preeminente que para o homem

é ele mesmo. Como contemplador de sua imagem, o homem gera os seus

problemas e surpreende-se com a sua confusão e com a sua diversidade interior,

destinando-se a uma autognose e a ser o seu próprio objeto de estudo. Embora o

homem, como matéria-prima de si mesmo, não consiga escapar de um

entrelaçamento com o tema da vida e, portanto, com o tema do mundo e da

história, a visão desse contexto é, indubitavelmente, uma construção estética do

ensaísta. No que toca ao ensaio zambraniano, o homem, para libertar-se do pavor

aniquilatório existencial, deslocou, na modernidade, suas esperanças a um ‘deus

desconhecido’ chamado ‘futuro’, ambicionando responder ao racionalmente

incompreensível e reconciliar-se, esteticamente desde uma perspectiva filosófica e

trágica, com o irreconciliável, com o divino.

Como profunda pensadora da existência, María Zambrano, dentro do rol

dos grandes ensaístas espanhóis, contribuiu significativamente para a ideia de que,

no homem, o apetite de se ‘decifrar’ e de se ‘sacralizar’ parece ser um fenômeno

natural e progressivo dentro da história, já que realmente existe uma irresistível

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inclinação humana em incorporar o divino à vida. Frente ao incognoscível futuro,

a autora chegou à conclusão de que o desígnio do homem, na atualidade, é o

‘projeto de projetar’ a própria individualidade metafísica, como uma forma de

vencer o tempo e imprimir uma singularidade à sua existência histórica.

María Zambrano, ao se referir a nomes e obras cruciais da literatura

espanhola, por meio do recurso da citação direta ou implícita, conseguiu uma

credibilidade para os seus argumentos pela palavra pretérita alheia. O passado,

como tudo o que o constitui, inclusive a literatura, pode ser lido de maneira

diversa de acordo com o tempo, mas sempre um ou outro dirá que, em uma

interpretação ou outra, haverá certo efeito de realidade. A verdade não existe sem

a mentira, se entendermos que a aprovação de uma tese refuta imediatamente as

demais, cujas esferas são também aceitáveis e socializam uma verossimilhança

histórica e ficcional provável. Com a permissão de duas citações importantes nas

conclusões, fora o desejo, em geral, de estandarização, a cultura, conforme

salienta Clifford Geertz (GEERTZ, 1988, p.89), compõe modos de linguagem

transcendente de utilização compartilhada, provistos de significados variados

manifestados por simbologias ou concepções tradicionais vindas de muito antes

por onde o homem se comunica, reforça e constrói o saber. A leitura zambraniana,

que se transformou em escritura ensaística, funcionou como um canal de

comunicação histórico, crítico, cultural e filosófico entre o que aconteceu, o que

acontece e o que acontecerá. Naquela época, a inexistência efetiva de uma

reforma do pensamento e do Estado teve como sequela o fato de que o

entendimento da sociedade espanhola tenha encontrado abrigo no romance e que

o modelo de homem perfeito tenha se assentado na ficção quixotesca. O romance

espanhol, segundo estas noções, foi fundamental para registrar e salvaguardar a

própria história da Espanha. O romance, julga Roberto Sánchez Benítez (2002,

p.98), surge como um ato revolucionário que quer apressar o passado e tornou

possível a María Zambrano esquadrinhar as razões e as ‘desrazões’ do seu tempo.

Dentro dos caudalosos estudos literários sobre autores espanhóis, a obra

ensaística de María Zambrano carece de um olhar crítico que conjugue a sua cria-

ção artística com os alicerces da construção de uma subjetividade trágica na mo-

dernidade e com o desenvolvimento de um pensamento filosófico peculiar, que a

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coloque em um patamar de originalidade e distinção reflexiva. As publicações le-

vadas a termo até o presente momento tratam os pilares dessa Pesquisa isolada-

mente. Existem excelentes trabalhos monográficos sobre a escritora espanhola,

que refletem sobre a relação entre filosofia e poesia, sobre o ‘sagrado’ e o

‘divino’, sobre a fenomenologia do sonho vinculado à criação, sobre a literatura

como conhecimento e revelação. A relevância do ensaio zambraniano, contudo,

como uma representação significativa na modernidade de determinadas linhas

mestras que integram e atualizam uma tradição nacional do pensamento literário e

da cultura espanhola ainda não foi suficientemente vislumbrada pela crítica. Por

meio de seus ensaios, María Zambrano apreciou, de maneira indagadora e dubita-

tiva, pelo recurso da contestação, as nuances da realidade espanhola desde um

ponto de vista histórico e cultural, o qual permitiu delinear certas ideias primordi-

ais referentes a uma mentalidade desse povo peninsular, com respeito a uma com-

preensão do existir trágico do homem moderno como sujeito, juntamente a uma

observação filosófica de todos os fatores que, pertinentemente, colaboraram com

o êxito desse entendimento.

A criação ensaística da autora espanhola instaura reflexões sobre história,

filosofia, subjetividade e literatura, lançando um olhar crítico às obras de um

número notável de autores. Zambrano conseguiu vislumbrar as produções

artísticas de diversos escritores como uma representação de uma série de mitos

espanhóis. María Zambrano abordou com aguçado olhar crítico a literatura

espanhola, buscando salientar alguns de seus temas ícones e evidenciou o desejo

do homem não somente espanhol, mas também europeu pela criação de uma

subjetividade, que leve em consideração a razão e o coração, o homem e o divino.

Por meio da articulação entre o céu e o inferno anímico torna-se possível alcançar

a transcendência existencial, meta inconteste do homem frente às limitações de

sua contingência histórica.

Nas obras da escritora, pois, a razão vital indubitavelmente está submetida

à razão poética, a qual se apresenta como método de escritura e de reflexão a

partir dos pressupostos orteguianos da crítica do racionalismo, do entendimento

do pensar da civilização como uma realidade que se impõe e do perspectivismo. A

razão vital de Ortega y Gasset quis superar tal descompasso ao unir o

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racionalismo e o vitalismo. A partir da evidência de que o homem não podia

considerar-se independente de suas circunstâncias e de que a vida concretamente

é uma realidade única e radical na sua tragicidade, o homem possui a missão de

dotar de sentido a sua existência. A razão, por conseguinte, não pode fundar suas

bases em um constructo abstrato, porém deve apregoar um modo de ser do

homem na sua vida, na sua história, em que o fenômeno estético da imaginação

possa sobrepor-se a essa pirâmide e também encontrar um terreno fértil para o seu

desenvolvimento. A razão poética foi uma maneira de pôr em prática a razão vital

em um discurso aberto, inquieto e primordial em um mundo regido por uma

racionalidade científica, que escamoteia outras dimensões da existência sob falsas

assertivas.

María Zambrano conduziu-nos a contemplar o sujeito, a partir de uma

trajetória histórica de sua construção, com seus questionamentos e reformulações

conceituais. Urge a importância e a necessidade de se estudar a formação da

subjetividade moderna em base às suas determinações históricas.

Indissociavelmente ao tema do sujeito na modernidade, deparamo-nos com a

problematização da verdade. De modo diferente de outros autores, em María

Zambrano, as incertezas não são retóricas, mas revelam questões verdadeiramente

modernas, cujas respostas absolutas ou seguras inexistem. Na escritora espanhola,

não observamos o simulacro da dúvida, porém a genuína angústia do

desconhecimento.

O ensaio filosófico zambraniano é uma tentativa do homem no sentido de

se relacionar com a ‘verdade’, entendida como coerência, adequação, descoberta,

veracidade ou confiança. Quando se considera a ‘verdade’ como algo já

conhecido no passado ou alcançado no presente, a tarefa que incumbe ao filósofo

é a de comunicar essa pretensa certeza revelada. María Zambrano empenhou-se

em uma constante luta para saciar as dúvidas existenciais e para descobrir

‘verdades’ através de suas obras ao refletir sobre a vida por meio de uma visão

poética, a qual nos conduz às suas ideias sobre a alteridade em nossa própria

época. A ficção e a literatura provêm da vida, do homem e é por esse motivo que

nos identificamos com a arte de maneira geral. O exercício ensaístico e filosófico

zambraniano aparece como um extraordinário esforço humano indispensável em

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articulação com uma revelação íntima e divina, que aspira a fazer com que o

indivíduo reconheça em si mesmo a magnitude da existência e os mistérios da

alma que a envolvem, compreendendo, em definitiva, que é irremediavelmente

fruto importantíssimo de suas contradições, de sua inescapável tragicidade, de

suas inseguranças, de sua cultura e da sedução e influência criadora que a história

mais do que nunca provoca na produção literária moderna.

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La palabra es por encima de todo el

lugar donde el hombre busca la transparencia de

su vida.

MAILLARD, M. L., 1997, p.196

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