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Estilos da Clínica, 2003, Vol. VIII, n o 15, 94-111 94 Artigo DEFICIÊNCIAS: UM NOVO OLHAR. CONTRIBUIÇÕES A PARTIR DA PSICANÁLISE WINNICOTTIANA Maria L ucia de T oledo Moraes A miralian Doutora em Psicologia e docente da USP, coordena- dora do Laboratório Interunidades de Estudos sobre Deficiência (LIDE)-IP-USP. P odem-se observar nos últimos tempos mu- danças significativas na área de estudos sobre a defi- ciência, mudanças no sentido de uma maior valori- zação e conseqüente aprofundamento e enriqueci- mento sobre questões a ela relacionadas. A deficiência é hoje uma problemática que tem levado um número cada vez maior de psicólogos a se interessar por desenvolver e explorar esse cam- po, o que tem contribuído para importantes deba- tes, tanto em relação ao conceito de deficiência (Ami- ralian et al., 2000) como sobre outros aspectos rela- cionados ao desenvolvimento, aprendizagem e ou- tros atendimentos a essas pessoas. Diferentes ocor- rências têm mostrado que nas últimas décadas essa questão tem, cada vez mais, saído do âmbito do assistencialismo e entrado para a academia como uma área de importância para estudos e pesquisas. A deficiência é uma problemá- tica que tem levado cada vez mais psicólogos a se interessar pela área e contribuído para im- portantes debates em relação ao tema. Compreender o de- senvolvimento dessas pessoas a partir dos pressupostos win- nicottianos tem propiciado im- portantes modificações em seu atendimento. Trabalhos realiza- dos sob esse enfoque mostram elementos fundamentais a se- rem considerados: a) a com- preensão da constituição do ser humano como uma interação recíproca entre um organismo biológico e o ambiente que o sustenta, b) o entendimento da deficiência como uma condi- ção fundamental na constitui- ção dos indivíduos que a têm, e não um acessório a ser corri- gido, c) a percepção das vicissi- tudes a que estão expostas es- sas pessoas. Deficiência; desenvolvi- mento; psicanálise; pressu- postos winnicottianos DISABILITY: A NEW VISION. CONTRIBUTIONS OF THE WINNICOTTIAN PSYCHOA- NALYSIS Disability is a problematic issue and has induced many psycholo- gists to be involved in this area and has promoted important de- bates on this subject. Unders- tanding the development of these persons from the point of view of Winnicottian concepts has brou- ght out important modifications in their attendance. Works alre- ady made based on those con- cepts show fundamental aspects to be carefully considered: a) the understanding of the constituti- on of human being as a mutual interation between the biological organism and the environment that supports him, b) the un- derstanding of the disability as a basic condition, not a corrigible accessory, c) the understanding of the risk (dangers, or alterati- ons) to which these persons are exposed. Disability; development; psychoanalysis; Winnicotti- an concepts

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Estilos da Clínica, 2003, Vol. VIII, no 15, 94-11194

Artigo

D E F I C I Ê N C I A S :UM NOVO OLHAR.C O N T R I B U I Ç Õ E S

A PARTIR DAP S I C A N Á L I S E

W I N N I C OT T I A NA

Maria Lucia de Toledo Moraes Amiralian

Doutora em Psicologia e docente da USP, coordena-dora do Laboratório Interunidades de Estudos sobre

Deficiência (LIDE)-IP-USP.

Podem-se observar nos últimos tempos mu-danças significativas na área de estudos sobre a defi-ciência, mudanças no sentido de uma maior valori-zação e conseqüente aprofundamento e enriqueci-mento sobre questões a ela relacionadas.

A deficiência é hoje uma problemática que temlevado um número cada vez maior de psicólogos ase interessar por desenvolver e explorar esse cam-po, o que tem contribuído para importantes deba-tes, tanto em relação ao conceito de deficiência (Ami-ralian et al., 2000) como sobre outros aspectos rela-cionados ao desenvolvimento, aprendizagem e ou-tros atendimentos a essas pessoas. Diferentes ocor-rências têm mostrado que nas últimas décadas essaquestão tem, cada vez mais, saído do âmbito doassistencialismo e entrado para a academia comouma área de importância para estudos e pesquisas.

A deficiência é uma problemá-tica que tem levado cada vezmais psicólogos a se interessarpela área e contribuído para im-portantes debates em relaçãoao tema. Compreender o de-senvolvimento dessas pessoasa partir dos pressupostos win-nicottianos tem propiciado im-portantes modificações em seuatendimento. Trabalhos realiza-dos sob esse enfoque mostramelementos fundamentais a se-rem considerados: a) a com-preensão da constituição do serhumano como uma interaçãorecíproca entre um organismobiológico e o ambiente que osustenta, b) o entendimento dadeficiência como uma condi-ção fundamental na constitui-ção dos indivíduos que a têm,e não um acessório a ser corri-gido, c) a percepção das vicissi-tudes a que estão expostas es-sas pessoas.Deficiência; desenvolvi-mento; psicanálise; pressu-postos winnicottianos

DISABILITY: A NEW VISION.CONTRIBUTIONS OF THEWINNICOTTIAN PSYCHOA-NALYSISDisability is a problematic issueand has induced many psycholo-gists to be involved in this areaand has promoted important de-bates on this subject. Unders-tanding the development of thesepersons from the point of view ofWinnicottian concepts has brou-ght out important modificationsin their attendance. Works alre-ady made based on those con-cepts show fundamental aspectsto be carefully considered: a) theunderstanding of the constituti-on of human being as a mutualinteration between the biologicalorganism and the environmentthat supports him, b) the un-derstanding of the disability as abasic condition, not a corrigibleaccessory, c) the understandingof the risk (dangers, or alterati-ons) to which these persons areexposed.Disability; development;psychoanalysis; Winnicotti-an concepts

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O estudo “Informando sobre deficiências” (Amiralian, 2001),no qual foi feito um levantamento das pesquisas, dissertações outeses, dos programas de pós-graduação de faculdades das áreas dehumanas da Universidade de São Paulo, mostrou um grande nú-mero de trabalhos cujo interesse tem por foco diferentes situaçõessuscitadas pela condição de deficiência. São levantadas as mais di-versas questões sobre todos os tipos de deficiência.

As pesquisas realizadas no Instituto de Psicologia revelam, prin-cipalmente, preocupações relacionadas ao processo de desenvol-vimento e aprendizagem, bem como à busca de uma percepçãomais clara e objetiva das vicissitudes a que estão expostas pessoasque foram definidas como aquelas que apresentam:

“perda ou anormalidade de estrutura ou função psicológica,fisiológica ou anatômica... restrição (resultante com freqüência deuma deficiência) de uma habilidade para desempenhar uma ativi-dade considerada normal para o ser humano... uma desvantagem... resultante de uma deficiência ou de uma incapacidade que limita-ria ou impediria o desempenho dos papéis esperados para esteindivíduo na sociedade...” (Amiralian et al., 2000).

Há, também, interesse pelas diversas formas de intervençãoutilizadas, tanto aquelas oferecidas às próprias pessoas com defi-ciência, como as oferecidas a familiares ou à comunidade emgeral. Há questionamentos, análises e reflexões sobre os diferen-tes tipos de intervenção utilizados e sobre as contribuições aoatendimento às necessidades de pessoas com deficiência, possibi-litando-lhes ajustamento mais satisfatório e saudável à comunida-de.

São trabalhos na área da educação, da saúde, e sobre a inser-ção dessas pessoas no mercado de trabalho e na sociedade de ummodo geral. Observou-se que nos últimos tempos houve um au-mento de estudos relacionados às diferentes formas de interaçõessociais, em que se procura identificar aquelas que são propiciado-ras de uma verdadeira e real inclusão social.

Esse desenvolvimento científico da área, em nosso meio, foicomprovado no evento promovido em 2000 pelo LaboratórioInterunidades de Estudos sobre Deficiências (LIDE) do IP-USP, aI Jornada de Pesquisadores: Ética e Deficiência1, quando foramapresentados mais de 70 trabalhos de pesquisa nas áreas de educa-ção, reabilitação, clínica e cidadania, lazer e esportes, abordandodiferentes ângulos de atendimento sob os mais diversos referenci-ais teóricos.

O crescimento dessa área de estudos tem incentivado e esti-mulado os pesquisadores a estudos mais aprofundados sobre essaquestão e a busca da compreensão dos fenômenos relacionados a

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esse tema sob diferentes referenciais teóricos dentro da Psicologia.Entre esses, é importante salientar os trabalhos no referencial psica-nalítico. Nos últimos anos tem-se observado um constante cresci-mento de trabalhos nesse referencial, em Psicologia Escolar, doDesenvolvimento e do Trabalho, não estando estes mais restritos àPsicologia Clínica.

I - DEFICIÊNCIA E PSICANÁLISE

Um aspecto importante a ser considerado é o uso da psicaná-lise como referencial teórico para o estudo das deficiências.

No início dos trabalhos sobre o atendimento às pessoas comdeficiência, esse tema era assunto de interesse quase exclusivo domeio médico, que analisava as condições biológicas e estudava suaspossibilidades de recuperação, ou a reabilitação física de órgãos oufunções lesados. Os aspectos psicológicos das pessoas com defici-ência eram tratados por intermédio da psiquiatria, ou, então, napsicologia, pelas teorias maturacionais do desenvolvimento, cujofoco eram os atrasos causados pelas limitações físicas ou mentais eas técnicas que deveriam ser utilizadas para saná-las.

Posteriormente, como uma reação a essa visão, que trazia emseu bojo a crença em que a deficiência era uma condição inerenteao indivíduo, e apenas dele, surgiram os trabalhos baseados empressupostos comportamentais. Estes, por outro lado, considera-vam a importância do ambiente e das relações sociais, e estudavamas dificuldades das pessoas com deficiência como resposta a umcomportamento socialmente determinado.

Estudos que buscavam a compreensão das várias questõesrelacionadas à deficiência a partir de uma visão interacionista, pos-teriores a esses, foram os trabalhos que se desenvolveram sob oreferencial piagetiano e psicanalítico.

Na literatura são encontrados muitos estudos sobre os dife-rentes tipos de deficiência, desenvolvidos sob o referencial piageti-ano. B. Inhelder (1963) realizou o clássico estudo sobre o raciocíniodos deficientes mentais, e muitas outras pesquisas foram realizadassob este referencial a respeito do desenvolvimento cognitivo decrianças com vários tipos de deficiência. Sobre os cegos há váriostrabalhos sob esse referencial – os de D. W. Anderson (1981), de A.Hall (1981), de M. Gottesman (1976) e de R. M. Swallow (1976) –, que procuram compreender os diferentes estágios do desenvolvi-mento cognitivo e seus princípios básicos na ausência da visão2.

Na década de 60 surgiram trabalhos mais específicos no refe-

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rencial psicanalítico, que buscavamuma melhor compreensão do desen-volvimento psíquico de indivíduosque apresentavam diferentes tipos dedeficiência, ou que se preocupavamem apreender os procedimentos te-rapêuticos mais adequados a essa po-pulação. Há os trabalhos desenvolvi-dos na França por Maud Manonni(1964 e 1967) e Françoise Dolto(1971) com crianças deficientes men-tais e apresentando distúrbios globaisdo desenvolvimento. Na Inglaterrasão descritos os trabalhos do grupode Doroty Burlingham (1961 e 1965),sobre a observação do desenvolvi-mento de bebês cegos. Também Sel-ma Fraiberg (1971 e 1977) e seu gru-po, da Universidade de Ann Harbor,desenvolveram pesquisas sobre a in-fluência da ausência da visão no de-senvolvimento psíquico (Fraiberg &Freedman, 1964; Fraiberg & Adel-son, 1973). Sob esse referencial teó-rico também aqui no Brasil se inicia-ram estudos, pesquisas e atendimen-tos junto às pessoas com deficiência.

Refletindo sobre esse percurso nocampo de estudos sobre pessoas comdeficiência, observam-se mudançasque se operaram nos conceitos, e osprogressos ocorridos nos vários anosde pesquisa na abordagem deste tema.Os conhecimentos foram se modifi-cando tanto pelas informações adqui-ridas, pesquisas realizadas e experiên-cias vividas, como pelas próprias trans-formações que ocorreram nos costu-mes e valores sociais, e pela evoluçãotecnológica e das ciências destes últi-mos anos.

Analisando os diferentes referen-ciais teóricos usados na compreen-são desse grupo de pessoas, obser-

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va-se que a psicanálise pode ser con-siderada uma abordagem teórica queatende plenamente aos objetivos decompreensão do desenvolvimento,aprendizagem e ajustamento das pes-soas com deficiência, fornecendotambém, como subproduto, o enten-dimento dos efeitos e vicissitudes queessa condição pode causar ao indiví-duo em seu caminho na conquista damaturidade. Além da proposta deintervenções terapêuticas como umadecorrência natural desses conheci-mentos.

A psicanálise é um conjunto te-órico no qual encontra-se suporte parao entendimento dos seres humanos,até mesmo daqueles com algumadeficiência, seja orgânica ou funcio-nal, como homens totais e integra-dos. Seus postulados podem ser uti-lizados, também, em procedimentoseducacionais, de orientação e acon-selhamento. Hoje é bem aceito essereferencial não apenas como uma téc-nica de tratamento psicológico, mastambém como um corpo de conhe-cimentos teóricos a respeito da cons-tituição do ser humano, que pressu-põe uma postura atitudinal diante davida e de seus problemas.

A psicanálise é um referencialteórico que procura entender o serhumano na sua totalidade, chaman-do atenção tanto para seus aspectosfísicos como para seus afetos eemoções. Os conceitos elaboradospor Freud, Melanie Klein, AnnaFreud e outros psicanalistas podemser empregados para compreendere analisar o desenvolvimento e osprocedimentos clínicos e educacionaisutilizados nos atendimentos às pes-soas com deficiência, procurando-

se identificar aqueles que melhoratendem as necessidades dessas pes-soas.

Paralelamente deve haver a pre-ocupação com a elaboração de no-vas formas de intervenção que ve-nham facilitar a conquista de umdesenvolvimento pleno pelas pesso-as com deficiência.

Embora, de acordo com minhapercepção, a psicanálise tivesse trazi-do muitas contribuições para essaárea, várias questões permaneciamainda sem uma solução que pudesseser considerada satisfatória. As pro-postas de Winnicott, sua visão dedesenvolvimento e constituição doser humano, que indicam, segundoLoparic (1996), um “novo paradig-ma” para a psicanálise, surgiramcomo a luz no fim do túnel, esclare-cendo as dúvidas levantadas, acalman-do as insatisfações sentidas e trazen-do a solução para inúmeros entravesque se percebiam nas discussões so-bre esse tema. Esses conceitos, quan-do aplicados à compreensão e inter-venção dessas pessoas, proporcio-nam, realmente, um novo olhar so-bre elas, considerando-as em relaçãoà deficiência.

Compreender o desenvolvimen-to das pessoas com deficiência a par-tir dos pressupostos winnicottianosimpõe mudanças atitudinais paracom esse grupo e importantes mo-dificações nas diferentes intervençõesutilizadas com essa população. Em-bora Winnicott não tenha se dedica-do especificamente à compreensãode crianças com deficiência, faz refe-rências, em sua descrição do desen-volvimento sadio, a alguns aspectosaplicáveis a crianças com deficiência

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mental e com deformidades físicas, como no caso de Iiro, o meni-no com sindactilismo3, descrito no livro Consultas terapêuticas (1984),e nas referências às diferentes situações que podem ocorrer no pro-cesso de desenvolvimento devido à condição de capacidade inte-lectual rebaixada, quando se refere à mente como “um caso especi-al de funcionamento do psique-soma” (1993, p. 410).

Entre os vários conceitos elaborados e propostos por Winni-cott, alguns considero básicos para o entendimento da deficiênciano processo de desenvolvimento do ser humano e outros são ex-tremamente esclarecedores sobre as formas de intervenção maisfavorecedoras do desenvolvimento sadio e ajustamento social ple-no dessas pessoas.

II - A DEFICIÊNCIA NA CONSTITUIÇÃO DO SERHUMANO

Winnicott sempre se preocupou em compreender o ser huma-no. Como ele se constitui, se desenvolve, e quais os fatores funda-mentais propiciadores de um crescimento e um desenvolvimentosadios. “Minha tarefa é o estudo da natureza humana ... A naturezahumana é quase tudo o que possuímos”, diz Winnicott (1990, p.21), já nos indicando que para ele a condição humana é a essênciado ser e seu maior bem, e à qual devemos dar toda a atenção e quemerece todo o nosso cuidado.

Muitos fatores afetam o ser humano: a herança de que é dota-do, a cultura em que nasceu, os valores aceitos pela comunidade e afamília a que pertence, o momento atual que estão vivendo seuspais, o número de irmãos, a posição na constelação familiar, a or-ganização e a estrutura de sua família, a peculiar constituição orgâ-nica, e inúmeras outras condições importantes na constituição decada um de nós. Mas, para ele, o fundamental é a interação comoutro ser humano capaz de suprir as necessidades daquele organis-mo em formação, ou seja, exercer a função materna. Todo o pro-cesso de desenvolvimento e as falhas e rupturas que porventuravenham a ocorrer deverão ser compreendidos e integrados dentrode um conjunto maior de relações que são determinadas pela natu-reza humana, e que se aplicam de igual maneira a todos os sereshumanos.

Winnicott nos diz:“fundamentalmente todos os indivíduos são semelhantes em

sua essência... existem certas características na natureza humana que

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se podem encontrar em todas as crianças e em todas as pessoas dequalquer idade, há considerações abrangentes a respeito do desen-volvimento da personalidade humana.... que são aplicáveis a todosos seres humanos, independentemente de sexo, raça, cor de pele,credo ou posição social” (Winnicott, 1994, p. 97).

Essa afirmativa pode parecer óbvia, mas, revendo a históriadas concepções sobre pessoas com deficiência (Amiralian, 1986;Mazzotta, 1996), pode-se dizer que algumas atitudes para com elasrevelam descrença em sua condição de igualdade em relação àspessoas consideradas “normais”, por exemplo, no uso do concei-to demonológico de deficiência ou doença mental. De forma se-melhante, as atitudes de eliminação, segregação, assistencialismo e,mesmo, as atuais concepções de modificação e transformação daspessoas com deficiência em seres que possam tornar-se o maissemelhantes possível aos “normais” baseiam-se, e parecem refleti-la, na constatação de que uma condição orgânica imperfeita leva àestranheza, à incompreensão e à negação dos princípios gerais deter-minados pela natureza humana para a compreensão do mundopsíquico e à exigência de normas próprias e específicas para oatendimento a essas pessoas.

A concepção winnicottiana da constituição do ser humanonos ajuda a integrar as especificidades causadas por diferentescondições orgânicas dentro dos mesmos princípios norteadoresdo desenvolvimento geral e a compreender as vicissitudes causa-das pela condição de deficiência como rupturas no processo deamadurecimento devido a falhas ambientais, o que permite refle-tir sobre procedimentos que possam vir a minorar ou sanar asdificuldades vivenciadas por esse grupo de pessoas.

Para Winnicott, o ser humano constitui-se na interação com oambiente, em sua origem há um organismo com o potencial her-dado e força vital para um contínuo vir-a-ser:

“O que existe é um conjunto anatômico e fisiológico, e a istose acrescenta um potencial para o desenvolvimento de uma perso-nalidade humana. Há uma tendência geral ao crescimento físico eao desenvolvimento da parte psíquica da parceria psicossomática”(Winnicott, 1990, p. 79).

Por essa proposta, a discussão sobre se é a condição orgânicada deficiência que vai determinar o comportamento ou se esse édeterminado pelo ambiente torna-se inócua. As bipolarizações sa-lientadas pela eterna discussão entre as noções inatistas ou ambien-talistas sempre foram uma questão sem solução. Porque se, de umlado, não se pode aceitar que uma criança, por ter nascido cega, irádesenvolver determinados comportamentos, também não se podeaceitar que seus comportamentos sejam simples reflexos de atitudes

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socialmente impostas. Entretanto, aaceitação desses conceitos extremistas,do estritamente biológico ao estrita-mente sociológico, parece ainda pro-liferar, tanto nos ambientes educacio-nais como nos terapêuticos e na co-munidade em geral.

Derivando desse conceito, temosa célebre questão de saber se as dife-renças entre pessoas com deficiência eaquelas sem qualquer imperfeição fí-sica ou mental são quantitativas ouqualitativas. Muitos defendem a dife-rença apenas quantitativa, como seisso fosse garantia da consideraçãode ser a deficiência uma condiçãoacessória ao ser humano, e não cons-tituinte, e de respeito à condição desseser humano, igual à de todos os ou-tros. Entendem que a crença em umadiferença qualitativa iria salientar acondição de diversidade e levar àconstatação de diferenças inconciliá-veis.

Essa é uma questão básica paraa compreensão das pessoas com de-ficiência e a conseqüente atitude paracom elas. Creio que, a partir dos con-ceitos winnicottianos, é possível a in-tegração desses dois aspectos: com-preender a diversidade e ao mesmotempo aceitá-la como condição ine-rente à natureza humana.

Partindo dos conceitos winnicot-tianos, pode-se afirmar que a dife-rença entre as pessoas com deficiên-cia e aquelas sem problemas orgâni-cos é qualitativa, e não apenas quan-titativa (Telford & Sawrey, 1976). Adeficiência é uma condição estrutu-rante da pessoa, pois é a partir deseu conjunto orgânico e fisiológicoque ela vai constituir-se e tornar-seum indivíduo único e indissolúvel.

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“A base da psique é o soma, e,em termos de evolução, o soma foio primeiro a chegar. A psique come-ça como uma elaboração imaginati-va das funções somáticas, tendocomo seu dever mais importante ainterligação das experiências passadas,das potencialidades e a consciência domomento presente e das expectati-vas para o futuro. É desta forma queo self passa a existir. A psique não tem,obviamente, existência alguma a dis-tância do cerebro e do funcionamen-to cerebral” (Winnicott, 1990, p. 37).

Se pensarmos o psiquismocomo a elaboração imaginativa dasexperiências vividas, o ser com de-ficiências físicas, por exemplo, ocego congênito, terá experiênciassomáticas peculiares, ou seja, en-trará em contato com o ambiente ex-terno a partir de seu conjunto sen-sorial, e seu psiquismo terá comobase essas vivências. “E esse todoé enriquecido pela elaboração ima-ginativa de cada função, e pelocrescimento da psique juntamentecom o do corpo; e também a es-pecialização da capacidade intelec-tual, que depende da qualidade dosatributos cerebrais...” (Winnicott,1990, p. 26). De forma semelhan-te e talvez com mais razão, aque-les que têm alguma alteração no te-cido ou no funcionamento cerebraldesde o nascimento terão seu psi-quismo construído a partir dessacondição somática.

Ao déficit físico ou funcional,somam-se as vivências advindas dasinterações permeadas pela condiçãode deficiência e de seu significado noambiente que o circunda, o que nospermite afirmar, com mais convic-

ção, que a deficiência é uma condi-ção constituinte e estruturante do serhumano que a tem, e, portanto, temdiferenças qualitativas em relaçãoàqueles com condições orgânicas di-ferentes. Isto não quer dizer que es-tejamos entendendo-o como “cons-tituindo categorias ou classes separa-das e, em muitos aspectos, distintasde pessoas” (Telford & Sawrey,1976, p. 24)4, mas sim que a deficiên-cia é parte de sua natureza, e assimele deve ser aceito.

Essa é uma das razões por quesempre rejeitei o termo “pessoa por-tadora de deficiência”. Creio que osindivíduos com deficiência não po-dem ser considerados como alguémque carrega uma deficiência como sefosse um fardo, eles são, simplesmen-te, pessoas que têm uma deficiência,uma condição orgânica diferente, quepara eles é o que é, e, portanto, o nor-mal. E desta maneira eles querem edesejam ser aceitos e amados. “Talcomo começa, assim tem de ser acei-to, e assim tem de ser amado. É umaquestão de ser amado sem sanções”(Winnicott, 1993, p. 205).

Esse conceito, derivado da pro-posta teórica de Winnicott, nos dizque o desenvolvimento saudável éaquele que possibilita ao indivíduocrescer e amadurecer de acordo comsuas condições herdadas e congêni-tas. A função do ambiente é ofereceras condições necessárias de interaçãoque permitirão que “surja um emer-gente, indivíduo que procura fazervaler seus direitos, tornando-se capazde existir...” (Winnicott, 1990, p. 26).Considera sadios aqueles “que estão(por definição) mais próximos de seraquilo que permitiria o equipamento

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com que vieram ao mundo” (p. 37).Essa compreensão da deficiên-

cia impõe uma atitude e uma decor-rente proposta de intervenção. Umdos princípios básicos no atendimen-to às pessoas com deficiência impli-ca a aceitação de suas condições pe-culiares, que não devem ser analisa-das com conotações valorativas. Di-zendo de outra forma, não são maisreais e verdadeiras as imagens men-tais, construídas pelos videntes, dosobjetos percebidos visualmente doque aquelas organizadas pelos cegos,usando a percepção tátil-cinestésicae auditiva. São apenas diferentes.

III - AS VICISSITUDESCAUSADAS PELADEFICIÊNCIA NODESENVOLVIMENTO

Essas formulações não signifi-cam que acreditemos ser o caminhodessas pessoas, em seu processo deintegração e amadurecimento, algofácil, ou que suas interações com omundo não sejam permeadas de pro-blemas e dificuldades. Pelo contra-rio, temos certeza de que seu percur-so em direção à conquista do desen-volvimento pleno é muito mais ár-duo, complexo e cheio de percalços.

Nessa linha de pensamento, umacondição orgânica prejudicada nãoconstitui, de forma direta, uma per-turbação psíquica, mas é um dos ele-mentos com que o indivíduo tem dese haver em sua interação com oambiente. Para se considerar que oindivíduo com deficiência tenha uma

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perturbação psíquica deve-se levar em conta tanto as condiçõesintrínsecas a seu modo peculiar de ser e, portanto, de perceber eelaborar a experiência, como as reações ambientais a sua condição.É de fundamental importância a condição de deficiência nas rela-ções interpessoais, seja pelas implicações práticas que determina,seja pelo significado que imprime em todos nós.

Dois fatores são essenciais para a constituição e desenvolvi-mento do ser humano: a tendência inata do indivíduo para a inte-gração e amadurecimento e a existência de um ambiente facilita-dor. Deste princípio pode-se inferir uma constante: qualquer queseja o potencial herdado, ele só se realizará pelos cuidados de umoutro ser humano, preferencialmente a mãe. E, pode-se acrescen-tar, um desenvolvimento saudável significa a realização plena de simesmo, de suas possibilidades.

Vemos assim a importância das relações mãe-bebê com defi-ciência. Essas têm sido exaustivamente estudadas e analisadas, emuito se tem discutido com o intuito de ajudar as mães nesse im-portante momento, mas creio que a proposta winnicottiana, queprivilegia essa interação como a base sobre a qual se assentam aconstituição e o desenvolvimento do ser humano, mostra comoela deve ser compreendida e possibilita a indicação de formas eprocedimentos de intervenção necessários ao desenvolvimento plenoe satisfatório do bebê que tenha uma deficiência orgânica, desdeseu início. Por outro lado, as relações interpessoais posteriores de-vem ser cuidadosamente analisadas por todos os que convivem,atendem e tratam de pessoas com deficiência.

A - AS RELAÇÕES MÃE-BEBÊ

A relação mãe-bebê, sendo a base sobre a qual se constitui oser humano, é o elemento fundamental para se compreender asdificuldades a que estão expostos os indivíduos com deficiência.

Para Winnicott, no inicio há a unidade mãe-bebê, a partir daqual vai emergindo o indivíduo apoiado pela mãe ambiente noexercício da função materna. Após a identificação primária com amãe, que possibilita que o bebê seja, instaurando o si-mesmo, estepassa a cumprir as tarefas básicas do desenvolvimento: “A integra-ção, a personalização e depois destas a apreciação do tempo e doespaço e de outras propriedades da realidade, em suma, a realiza-ção” (Winnicott, 1993, p. 274). Essas, todavia, só podem ocorrerpari passu às funções maternas de “holding”, “handling”5 e apresenta-ção de objetos, condições indispensáveis para que o bebê possa

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sentir-se um todo, habitar um corpoe relacionar-se com o ambiente ex-terno.

Para o exercício adequado des-sa função, a mãe precisa ser “sufici-entemente boa”, na medida certa paraatender, no tempo e da maneira ade-quada, as necessidades daquele bebê.Diz Winnicott:

“Existe o meio ambiente quenão é suficientemente bom e que dis-torce o desenvolvimento do bebê, damesma forma que pode haver ummeio ambiente suficientemente bom,aquele que permite ao bebê alcançar,em cada estádio, as satisfações, ansie-dades e conflitos inatos apropriados”(Winnicott, 1993, p. 491).

A maternagem compreende noinício o desenvolvimento de um es-tado por ele denominado “preocu-pação materna primária” (Winnicott,1993, p. 491), um estado de sensibili-dade aumentada, no qual a mãe vol-ta-se inteiramente para seu bebê, umadoecer do qual se recuperará pro-gressivamente quando o desenvolvi-mento do filho a for dispensando.Para viver esse momento, todavia, amãe necessita ter um desenvolvimen-to sadio e um ambiente protetor quea sustente.

Muitas são as dificuldades damãe de um bebê com deficiênciacongênita no exercício dessa função,entre elas é importante assinalar opossível estado depressivo que mui-to freqüentemente se instala nas mães,e suas conseqüências.

A descoberta de uma deficiên-cia no filho, com todas as perdas queenvolve, é uma situação propiciado-ra ao desenvolvimento de um esta-do depressivo na mãe, que a levará

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ao afastamento de seu bebê, impe-dindo-a de alcançar o estado de pre-ocupação materna primária, necessá-rio a uma boa acolhida deste. E nes-se momento inicial, quando o bebênecessita que lhe seja fornecida umatotal adaptação a suas necessidades,ele, muitas vezes, é posto em um lu-gar de estranheza e desconhecimen-to, com a mãe sofrendo suas própri-as dores, que a tornam incapacitadapara assumir seu papel.

Nas diferentes funções da mãepodem ser detectadas inúmeras di-ficuldades, algumas facilmente ob-serváveis, outras sendo apenas si-nais sutis. Verifica-se, entretanto,muitas vezes o desencontro com obebê não reconhecido e as dificul-dades para a compreensão dos si-nais que expressam as necessidadesdaquele bebê.

Há a dificuldade de aproxima-ção do bebê deficiente, o medo desegurá-lo, de machucá-lo, a ausênciadas brincadeiras, das trocas de olha-res e de palavras acariciantes. O ba-nho deixa de ser prazeroso, para serum momento da confirmação daperda do bebê imaginado; não há asbrincadeiras com seus pés e mãos,impedindo-os de sentir e experimen-tar as diferentes partes de seu corpoe muitas vezes de entender seus limi-tes.

Na apresentação de objetos,condição básica para o estabelecimen-to das relações objetais, e, como dizWinnicott, momento do eterno dile-ma do ser humano em relacionar seumundo interno e o mundo compar-tilhado, vemos a dificuldade da mãeem encontrar a maneira certa deapresentar o mundo a seu bebê cego,

surdo, com deficiências neurológicasou mentais. Ela não sabe o que é sercego, surdo ou ter paralisia cerebral,ela não sabe como esses bebês per-cebem o mundo e os objetos. Pro-vavelmente, nunca teve experiênciasanteriores com crianças tendo essaslimitações.

Vemos, portanto, facilmente, asvicissitudes a que estão expostas es-sas crianças em seu processo de de-senvolvimento. Muitos outros aspec-tos poderiam ser apontados, masacreditamos que esses se salientam notrabalho com crianças tendo defici-ência.

B - AS RELAÇÕESINTERPESSOAIS

Para além da condição básica daconstituição do “si mesmo”, muitasdificuldades são vividas pelas pes-soas com deficiências em diferentesmomentos de suas vidas.

Pela criança, nos contatos com afamília, vizinhos, amigos e, principalmen-te, colegas e professores na escola.

Pelo adolescente, em seu confli-to entre crescer ou permanecer cri-ança, que se expressa pela busca daindependência, pelo desabrochar dasexualidade genital plena, pela difícildefinição do papel profissional queescolherá, além das experiências dasexualidade e escolha de parceiros.

E pelos adultos, em sua luta pelaconquista de um lugar na sociedadee no mercado de trabalho.

Dos inúmeros aspectos que po-dem ser assinalados, alguns se sali-entam, observados nas inúmeras for-

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mas de relações interpessoais quan-do essas incluem pessoas com defi-ciências e sem deficiências.

A observação dessas relaçõessustentada pelos conceitos de Winni-cott, seja em situações cotidianas deinterações pessoais, seja naquelas pro-postas pelos especialistas, com obje-tivo terapêutico, para esse grupo, nosindica a existência de alguns compor-tamentos interpessoais que, ao invésde favorecer, são prejudiciais ao de-senvolvimento e ajustamento dessaspessoas. São os comportamentos in-trusivos e de introjeção extrativa de-senvolvidos por Winnicott (1990) eBollas (1992)6, encontrados em dife-rentes situações nas relações interpes-soais com as pessoas tendo deficiên-cia.

A relação intrusiva é descrita porWinnicott como uma das múltiplasfalhas abrangidas pelo termo “defi-ciências ambientais”. É uma falha quese manifesta pela imposição de ou-trem ao gesto próprio do indivíduo.

É freqüente observar nas intera-ções com pessoas tendo deficiênciaa crença em que a maneira certa dese compreender e fazer alguma coisaé aquela aprendida pela maioria daspessoas que não têm qualquer defici-ência, seja orgânica ou funcional.Desta forma persiste a crença emque, para aqueles que têm uma for-ma diferente de compreender a rea-lidade externa, o melhor é tentar ad-quirir, mesmo que seja de uma for-ma não criativa e não elaborada apartir de sua própria experiência, osconceitos impostos por aqueles con-siderados normais.

Nas intervenções dirigidas àspessoas com deficiência pode-se ob-

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servar a imposição de valores e padrõesconsiderados “normais”, que devem serapreendidos por elas, que se constituírama partir de uma condição orgânica dife-rente.

A introjeção extrativa, descrita porBollas (1992) como um procedimento in-tersubjetivo, na qual alguém rouba deoutro a possibilidade de enriquecimentode sua vida psíquica pela interferência noprocesso de elaboração dos mecanismospsíquicos, é também muitas vezes obser-vada em situações vividas por pessoascom deficiência, quando nos interpomose resolvemos em lugar delas alguma di-ficuldade por considerá-las incapazes derealizar aquela solução, e não porque seutempo e forma de realização fossem di-ferentes. São também observados com-portamentos que se referem à descrençaem que as pessoas tendo deficiência pos-sam desenvolver seu próprio processopsíquico e enriquecer sua vida interna comsuas próprias experiências vividas e mes-mo sofridas.

Para finalizar, gostaria de esclarecerque esses são alguns pontos que conside-rei básicos para transmitir a maneira pelaqual a proposta winnicottiana de desen-volvimento pode ser utilizada na compre-ensão das pessoas com deficiência. Mui-tos outros aspectos podem e devem serexplorados, estudados e analisados. Acre-dito que, levando em conta esses concei-tos, a intervenção no trabalho com pesso-as tendo deficiência se modificará, assimcomo a postura em relação a elas e a acei-tação plena de sua maneira peculiar de ser,em um mundo capaz não só de aceitar asdiferenças, mas de valorizá-las.

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NOTAS

1 O Boletim de Psicologia lançou um númeroespecial sobre essa Jornada, o nº 115 (Vol.LI), de jul./dez. de 2001.

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2 No livro Compreendendo o cego (Amiralian, 1997b) há uma descrição e análisedesses trabalhos.

3 Sindactilismo, problema sofrido por aquele que tem os dedos grudados, oschamados “pés de pato”.4 C. W. Telford, C. e J. M. Sawrey, no clássico O indivíduo excepcional, propõem umcontraponto entre as concepções qualitativas e quantitativas a respeito das dife-renças apresentadas pelos indivíduos com deficiência, em comparação aos nor-mais. Salientam as vantagens dessas últimas. Consideram que a aceitação dediferenças qualitativas implica considerá-los como espécies à parte de seres hu-manos.5 “Holding” e “handling” são termos usados por Winnicott para descrever o “segu-rar” e o “manipular” do bebê pela mãe. Esses termos são usados em inglês porquesua tradução não expressa com propriedade o significado dado pelo autor.6 Esses conceitos foram mais bem desenvolvidos no texto “O psicólogo e a pessoacom deficiência” do livro Deficiência: Alternativas de intervenção, uma publicaçãodo Laboratório Interunidades de Estudos sobre Deficiência (LIDE) do IP-USP.

Aceito em janeiro/2003.Recebido em setembro/2002.