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Rosana Araujo Viveiros A DEIFICAÇÃO DO SER HUMANO À LUZ DO PENSAMENTO DE PAUL EVDOKIMOV: APORTE PARA UMA ANTROPOLOGIA CRISTÃ Dissertação de Mestrado em Teologia Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori Apoio CAPES BELO HORIZONTE FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia 2013

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  • Rosana Araujo Viveiros

    A DEIFICAO DO SER HUMANO LUZ DO PENSAMENTO DE PAUL EVDOKIMOV:

    APORTE PARA UMA ANTROPOLOGIA CRIST

    Dissertao de Mestrado em Teologia

    Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori

    Apoio CAPES

    BELO HORIZONTE

    FAJE - Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia

    2013

  • Rosana Araujo Viveiros

    A DEIFICAO DO SER HUMANO LUZ DO PENSAMENTO DE PAUL EVDOKIMOV:

    APORTE PARA UMA ANTROPOLOGIA CRIST

    Dissertao apresentada ao Departamento de Teologia da Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia, como requisio parcial obteno do ttulo de Mestre em Teologia. rea de concentrao: Teologia sistemtica Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori

    Apoio CAPES

    BELO HORIZONTE

    FAJE Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia

    2013

  • FICHA CATALOGRFICA Elaborada pela Biblioteca da Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia

    V857d

    Viveiros, Rosana Araujo A deificao do ser humano luz do pensamento de Paul Evdokimov: aporte para uma antropologia crist / Rosana Araujo Viveiros. - Belo Horizonte, 2013. 149 f. Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz de Mori Dissertao (Mestrado) Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia, Departamento de Teologia. 1. Ser humano (Teologia). 2. Humanizao. 3. Trindade. 4. Thesis. 4. Evdokimov, Paul. I. De Mori, Geraldo Luiz. II. Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia. Departamento de Teologia. III. Ttulo

    CDU 233

  • Aos que creem em Jesus Cristo, sobretudo os pobres, que se deixam guiar pelo Esprito para viver e acolher

    o amor do Pai. E, aos que ainda no creem em Jesus Cristo, mas que tambm so destinatrios da filantropia divina,

    a fim de que acolham a moo do Esprito em suas vidas.

  • Ao Deus uno e trino que nos cria, recria e deifica.

    Aos meus pais: Antnio e Luza pelo testemunho de amor e de f. Aos meus

    irmos, cunhados e sobrinhos pelo exemplo de fraternidade e determinao.

    madre Neuza Cota da Silva, Superiora Geral da Congregao das Irms

    Auxiliares de Nossa Senhora da Piedade e a todas as Irms pela confiana, apoio e incentivo

    para que este trabalho pudesse ser realizado e, sobretudo, pelo exemplo de cada irm no viver

    o auxlio e a piedade a servio dos mortos-vivos, os crucificados de nossa histria, espera da

    ressurreio.

    A meu orientador, o professor Dr. Geraldo Luiz De Mori, pelo incentivo e

    confiana.

    Aos professores que muito me ajudaram na busca do material bibliogrfico: Dr.

    Ndio Pertille, o padre ortodoxo Alexis Pea-Alfaro e o Dr. Manuel Hurtado. Esta

    colaborao foi imprescindvel para o bom andamento da pesquisa.

    Ao professor Paulo!Augusto da Silva pelas aulas de francs e apoio incondicional

    durante a realizao da pesquisa. Foi de fato uma experincia do sacramento do irmo. Ao

    professor Dlio Raslan pela colaborao generosa. E, ao professor Lus Henrique Eloy e Silva

    pelos dilogos elucidativos.

    A todos os professores, funcionrios e colegas da FAJE pela boa convivncia e

    partilha de conhecimentos. De modo especial, os funcionrios da biblioteca e as bibliotecrias

    Zita Mendes Rocha e Vanda Lcia Abreu Bettio.

    s pessoas que partilham comigo sua relao com Deus.

    A todas as pessoas que, de uma forma ou de outra, contriburam com a realizao

    desse trabalho.

    CAPES pelo financiamento de meus estudos.

  • No princpio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. [...] E o Verbo se fez carne e habitou entre ns (Jo 1,1.14a).

    A humanizao de Deus e a deificao do ser humano so eventos correlativos. [...] Decifra-se a verdade do

    ser humano, falando no apenas de Deus ou apenas do homem, mas do Deus-Homem.

    (Paul Evdokimov, Le Christ dans la pense russe).

  • RESUMO

    Este trabalho tem como escopo explicitar a doutrina da thesis como aporte para a humanizao do ser humano. No intuito de perscrutar tal temtica, escolhemos a tradio oriental, em sua verso russa, o telogo e filsofo, Paul Evdokimov, um dos maiores representantes da ortodoxia no sculo XX. A thesis est presente na Sagrada Escritura sob a noo de santidade, adoo filial, imagem de Deus, participao na vida divina, imitao, seguimento e conformao com Jesus Cristo. Por seu desenvolvimento doutrinal est tambm presente na patrstica, pelo fato de sua compreenso ser essencial f crist. O ser humano, colocado por ltimo na narrativa da criao, aparece como seu coroamento e com a vocao comunho da vida de Deus. Segue-se da que a vocao do ser humano, encontrada no seu ser criado imagem e semelhana de Deus, o chamado deificao. Nossa metodologia consiste numa pesquisa bibliogrfica das principais obras de Paul Evdokimov, seguida por uma hermenutica e uma organizao sistemtica a partir do objeto da pesquisa. Revisitando a teologia dos Padres, perpassando a teologia russa dos sculos XIX e XX, descobrimos que, para Evdokimov, o ser humano inicia seu processo de deificao por meio da incorporao ao Corpo de Cristo, pelos sacramentos da iniciao crist. Uma vez que se toma conscincia de que se tornou nova criatura, ele segue seu caminho de conformao a Cristo, que o faz viver como filho, no Filho, pelo Esprito, conforme desejo salvfico do Pai. Esta vida nova, na verdade, seu processo de humanizao, cujo ponto culminante a thesis, unio ntima com a Trindade, por meio das energias divinas.

    Palavras-chave: Thesis, Ser Humano, Humanizao, Trindade, Paul Evdokimov.

  • ABSTRACT

    The scope of this study is to clarify the doctrine of thesis as a contribution to the humanization of the human being. In order to examine this theme, we chose the Eastern tradition, in its Russian version, the theologian and philosopher, Paul Evdokimov, one of the greatest representatives of orthodoxy in the twentieth century. The thesis is present in Holy Scripture under the notion of holiness, filial adoption, image of God, participation in the divine life, imitation, following and configuration with Jesus Christ. Through its doctrinal development it is also present in the patristic tradition, because its understanding is essential to the Christian faith. The human being, placed last in the creation narrative, appears as its crowning achievement and with the vocation of communion in the life of God. It follows then that the vocation of the human being, found in his being created in the image and likeness of God, is the call to deification. Our methodology consists of a bibliographical research of the main works of Paul Evdokimov, followed by a hermeneutic and a systematic organization from the object of our investigation. Revisiting the theology of the Fathers, passing through the Russian theology of the 19th and 20th centuries, we find that, for Evdokimov, the human being begins its process of deification through the incorporation into the body of Christ, through the sacraments of Christian initiation. Once it becomes aware that it has turned into a new creature, it follows its path of configuration to Christ, which makes him live as a child, in the Son, through the Spirit, in accordance with the salvific desire of the Father. This new life, in truth, is his process of humanization, whose culmination is a thesis, the intimate union with the Trinity, through divine power.

    Keywords: Thesis, Human being, Humanization, Trinity, Paul Evdokimov.

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    ABREVIAES

    Ort LOrthodoxie MSM A mulher e a salvao do mundo ESTO O Esprito Santo na tradio ortodoxa CPR Le Christ dans la pense russe CDTO La connaissance de Dieu selon la tradition orientale. l'enseignement patristique liturgique et iconographique EVE Las edades de la vida espiritual: de los padres del desierto a nuestros dias SAD O silncio amoroso de Deus SA O sacramento do amor AI El arte del icono: teologia de la belleza NE La nouveaut de lEsprit: tudes de spiritualit VS La vie spirituelle dans la ville VOTM Une vision orthodoxe de la thologie morale: Dieu dans vie des hommes

    ETBD Paul Evdokimov: testemunho da Beleza de Deus

    PG Patrologia Grega

    PL Patrologia Latina

    DCrT Dicionrio crtico de teologia

    DPAC Dicionrio patrstico e de antiguidades crists

    SC Sources Chrtiennes

    DH Denzinger-Hnermann

  • SUMRIO

    INTRODUO ...................................................................................................................... 11

    CAPTULO 1 A DOUTRINA DA THESIS: APORTE PARA UMA ANTROPOLOGIA CRIST .... 17

    1 Fundamento e dimenses da teologia oriental ....................................................................... 20 1.1 Dimenso apoftica ............................................................................................................ 22 1.2 Dimenso cataftica ............................................................................................................ 24 2 Thesis : a doutrina da deificao nas tradies crists ......................................................... 25 2.1 Percurso histrico da doutrina da thesis ........................................................................... 26 2.1.1 A thesis do ser humano na Sagrada Escritura ................................................................ 26 2.1.2 Razes da thesis na filosofia grega ................................................................................. 28 2.1.3 As razes teolgicas da thesis na patrstica .................................................................... 29 2.1.4 O influxo da doutrina da thesis na teologia ortodoxa contempornea .......................... 37 3 A doutrina da thesis no pensamento de Paul Evdokimov ................................................... 38 3.1 A vida de Paul Evdokimov ................................................................................................. 38 3.2 A obra de Paul Evdokimov ................................................................................................. 42 3.3 A thesis no pensamento de Paul Evdokimov .................................................................... 44 4 guisa de concluso ............................................................................................................. 46 4.1 Pertinncia da doutrina da thesis para os dias atuais ........................................................ 46

    CAPTULO 2 JESUS CRISTO: LUGAR DA HUMANIZAO DE DEUS E DA DEIFICAO DO SER HUMANO ........................................................................... 49

    1 A perspectiva cristolgica na patrstica grega ....................................................................... 50 1.1 Os quatro primeiros Conclios ecumnicos ........................................................................ 54 1.1.1 Conclio de Niceia, 325: Jesus o Filho de Deus e Deus ............................................. 54 1.1.2 Conclio de Constantinopla I, 381: a humanidade de Jesus ............................................ 55 1.1.3 Conclio de feso, 431: Unio hiposttica ...................................................................... 56 1.1.4 Conclio de Calcednia, 451. Jesus Cristo: Uma Pessoa com duas naturezas ................ 58 2 A perspectiva cristolgica na teologia russa dos sculos XIX e XX ..................................... 59 2.1 Influncia da filosofia religiosa russa no pensamento de Paul Evdokimov ....................... 62 2.2 A cristologia no pensamento russo ..................................................................................... 66 3 A perspectiva cristolgica em Paul Evdokimov .................................................................... 68 3.1 O Verbo encarnado: lugar da comunho do divino com o humano ................................... 69 3.2 A doutrina do Deus-Homem: arqutipo da nova criatura ................................................... 71 3.2.1 O mistrio do ser pessoa .................................................................................................. 73 3.3 A deificao do ser humano na perspectiva de Paul Evdokimov ....................................... 74

  • !

    10

    3.3.1 O ser humano criado deiforme: Imagem e Semelhana de Deus .................................... 76 3.3.2 O mistrio da liberdade humana ...................................................................................... 81 4 guisa de concluso ............................................................................................................. 83

    CAPTULO 3 A VIDA NOVA: PROCESSO DE DEIFICAO DO SER HUMANO, NO ESPRITO SANTO ......................................................................................................... 87

    1 A vida nova, nova criatura em Cristo, no Esprito Santo ...................................................... 87 1.1 A vida eclesial: lugar da transformao do ser humano ..................................................... 88 1.1.1 Dimenso trinitria .......................................................................................................... 89 1.1.1.1 Dimenso cristolgica .................................................................................................. 90 1.1.1.2 Dimenso pneumatolgica ........................................................................................... 91 1.1.2 Dimenso mariolgica ..................................................................................................... 93 1.1.3 Dimenso csmica ........................................................................................................... 94 1.2 A vida da Igreja: presena de transfigurao no mundo .................................................... 95 1.3 A liturgia e o dinamismo da vida crist .............................................................................. 99 2 A vida sacramental: nossa participao na vida do Cristo, no Esprito Santo ..................... 101 2.1 Os sacramentos da iniciao crist ................................................................................... 103 2.1.1 O Batismo: vida nova, em Cristo, no Esprito Santo ..................................................... 103 2.1.2 A Uno crismal: sacramento do sacerdcio universal ................................................. 106 2.1.3 A Eucaristia: constituio do Corpo de Cristo .............................................................. 109 2.2 Os sacramentos de cura: Penitncia e Uno dos Enfermos ............................................ 111 2.3 Matrimnio: o sacramento do amor .................................................................................. 113 2.4 O sacramento da ordem .................................................................................................... 113 3 A vida espiritual: comunho com Cristo, no sacramento do irmo ................................. 114 3.1 A vida mstica: a unio ntima com Deus ......................................................................... 117 3.1.1 A orao e ascese ........................................................................................................... 119 3.1.2 O processo da kathrsis ................................................................................................. 122 3.1.3 A busca do nico necessrio .......................................................................................... 123 3.2 O ser humano: um ser litrgico desde a criao ............................................................... 126 3.3 A vocao universal ao monacato interiorizado ............................................................... 127 4 guisa de concluso ........................................................................................................... 129

    CONCLUSO ....................................................................................................................... 132

    BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 137

    BIBLIOGRAFIA GERAL ................................................................................................... 144

  • INTRODUO

    O escopo desta pesquisa consiste em explicitar o processo da deificao do ser

    humano luz do pensamento de Paul Evdokimov, processo que, na verdade, coincide com o

    de sua humanizao. No se trata de exaurir a temtica sobre a thesis, que tem uma

    fulgurante trajetria histrica. Nem tampouco se trata de fazer uma exposio completa da

    histria do humanismo ou de explicitar suas concepes antropolgicas. Trata-se de

    aproximarmo-nos do pensamento de um autor ortodoxo, Paul Evdokimov, no que concerne

    temtica da thesis, pois ele nos oferece uma reflexo teolgica enraizada na vida concreta.

    Muito j se falou sobre o ser humano. Intriga-nos o fato de ele ser dotado de

    muitas possibilidades: criativas e destrutivas; sonhador da paz, mas tambm construtor da

    guerra. O desenvolvimento tecnolgico e cientfico tem possibilitado grandes avanos na

    conquista de dias melhores. Porm, percebe-se que a pessoa, em meio a tanto

    desenvolvimento, sente-se vazia, embora locupletada de coisas. Outras buscam na tcnica a

    soluo para tudo, e enveredam-se no ceticismo. Cresce tambm, na relao interpessoal, a

    desconfiana de uns para com os outros. A experincia religiosa, muitas vezes da forma como

    vivida, no mais interage com a vida do crente na sociedade, aparecendo antes como um a

    mais, e por vezes descartvel, entre os itens de consumo.

    bem este nosso ponto de interrogao. Seria o homem um item a mais no

    contexto do cosmo ou possvel ainda consider-lo como co-criador, guardio da criao (Gn

    2,15)? Em que sentido possvel viver o que em ns foi insuflado no ato da criao (Gn 2,7)?

    Como fazer teologia frente aos desafios nos quais estamos imergidos? Em que consiste o fato

    de termos sido criados imagem e semelhana do Criador (Gn 1,26-27)?

    A escolha de Paul Evdokimov para esta pesquisa deve-se ao fato de que, em sua

    obra, teologia e espiritualidade so inseparveis. Seu pensamento herdeiro da filosofia

    religiosa russa e da sntese neo-patrstica, e aborda mltiplas reas da teologia crist, numa

    tentativa de dilogo com a sociedade moderna. Em sua reflexo, nem o cristomonismo nem o

    pneumatocentrismo predominam, mas h um equilbrio teolgico que apresenta a imerso das

    Trs Pessoas Divinas na histria da humanidade. Com este aporte, tentaremos ver que o

  • !

    12

    caminho para responder s questes que acabamos de colocar passa pela noo de deificao

    do ser humano que, como dissemos, coincide com sua humanizao. Ou seja, a marca

    original do ser humano, seu fundo ontolgico derradeiro, ser imago Dei, que condio de

    possibilidade da thesis. Com isso, no se pretende esquivar do drama da queda, mas

    compreend-lo como interrupo do que estava no projeto inicial da criao: a comunho do

    ser humano com Deus, sua participao na vida divina (2Pd 1,4).

    A perspectiva do pecado original, que marcou a tradio ocidental, deu origem a

    uma experincia jurdica da redeno, a uma teologia da culpa, do medo e da paralisia

    moralizante na experincia religiosa. como se, em lugar do Reino, que dirige a marcha da

    histria, falssemos do paraso perdido (MSM, p. 65). H outra perspectiva espiritual e

    teolgica que aborda esta questo: a do Oriente cristo, na qual a criao e a encarnao esto

    implicadas uma na outra. Parte-se da experincia da unio com Deus, plantada no corao

    humano pelo prprio Criador. Evdokimov mostra-nos que, nos escritos dos Padres, a

    destinao primeira que conduz o ser humano a viver sua vocao, entrar no processo de sua

    deificao. Portanto, a regra urea da patrstica: Deus torna-se homem para que o homem

    torne-se deus, determinante na antropologia de Evdokimov, que apresenta a deificao do

    ser humano como objetivo da economia salvfica. Para ele, a deificao consiste em adquirir,

    no a natureza divina, pois isto impossvel, mas a maneira divina de ser homem, isto , de

    ser pessoa em comunho com Deus o que, segundo os Padres, a participao na natureza

    divina (2Pd 1,4).

    O trabalho pretende contribuir com uma reflexo teolgica mais aberta, sensvel

    ao Mistrio revelado e acolhido na vida dos cristos, sem com isso deixar de ser interpelado

    pela racionalidade da tradio ocidental. Prope-se a ser uma ponte, na qual o ser humano seja

    re-colocado no plano original de sua existncia: criado imagem de Deus, ele tende

    semelhana divina, que a deificao, conforme afirma nosso autor.

    Ultimamente temos percebido a necessidade de uma orientao sobre a vida crist

    que nos conduza a viver nosso batismo de forma livre, madura e adulta. Se por um lado

    vemos cristos perdidos, sem saber em qual Igreja professar e viver sua f, por outro lado,

    assistimos ao crescimento de movimentos que se deliram em longas celebraes, cheias de

    adereos e canes, mas desconectadas do mistrio do Senhor e da vida do povo. Isso tem

    provocado a proliferao de movimentos, de ramificaes de algumas Igrejas e seitas,

    provocando a inrcia no viver a f. H tambm aqueles que simplesmente no creem mais.

  • !

    13

    A necessidade de abertura ao dilogo, do conhecimento das fontes de nossa f

    crist e, sobretudo, de no fazer uma teologia especulativa, mas uma teologia que diz respeito

    a um conhecimento-vida reforou a escolha do autor. Trata-se de conjugar simultaneamente

    teologia e espiritualidade, pois intriga-nos ver essa realidade nica, dividida.

    Paul Evdokimov algum que no aceita proselitismo, mas tenta viver sua f de

    forma coerente, aberto aos outros que creem diferente, porm, sem abrir mo do cerne de sua

    f. Ele consegue dialogar. O telogo russo d testemunho da presena transformadora do

    Esprito Santo no mundo e na vida das pessoas. luz da transfigurao do Senhor, ele

    conclama transfigurao humana e do cosmo. A transfigurao humana refere-se

    deificao do ser humano e, a do cosmo, sua transformao em Reino de Deus. Tudo

    possibilitado pelas energias divinas e realizado com o concurso da liberdade humana.

    Num dos discursos proferidos nas exquias de Evdokimov, o professor Nikos

    Nissiotis, secretrio geral do Conselho Ecumnico das Igrejas e diretor do Instituto

    Ecumnico de Bossey, ressaltou que nosso autor foi um dicono carismtico, cuja vida foi

    uma oferenda espiritual. E ainda, ele ressalta que Evdokimov encarna o adgio patrstico que

    se refere ao ser do telogo, afirmando que ele rezava teologizando e teologizava rezando1.

    Eis, portanto, a razo de nossa escolha deste autor. Algum que uniu sua vida ao que

    pronunciava.

    Diante da atual carncia de uma mstica que conjugue f e vida, a reflexo

    evdokimoviana nos oferece uma abordagem que merece ser considerada. Ela apresenta a

    complementaridade da misso do Filho e do Esprito, que nos permite um equilbrio no s no

    mbito eclesial, mas tambm em nossa relao pessoal com Deus e com os irmos. Nesse

    sentido, a definio calcedoniana sempre evocada ao longo da apresentao do pensamento

    de nosso autor. De fato, o relacionar-se dos homens com Deus, depende para ser e para se

    compreender, da realidade prpria Daquele que a f nos diz ser verdadeiro Deus e verdadeiro

    Homem, sem confuso, nem separao, sem mudana, nem diviso.

    Utilizaremos como mtodo a pesquisa bibliogrfica das principais obras do autor

    escolhido. Alm desta pesquisa faremos uma interpretao hermenutica, numa organizao

    sistemtica a partir do objeto de nosso estudo. Ressaltamos que no se trata de uma pesquisa

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!1 CLMENT, Olivier. Paul Evdokimov, tmoin de la beaut de Dieu. Contacts, Paris, t. 23, n. 73-74, 1971. p. 219. O nmero desta revista foi publicado em homenagem a nosso autor por ocasio de seu falecimento.

  • !

    14

    sobre a antropologia oriental, nem sobre a mstica oriental, pois a thesis, alm de ser o

    corao da antropologia oriental tambm o cerne de sua espiritualidade. Trata-se de uma

    aproximao e reflexo sobre a thesis do ser humano luz do pensamento de Paul

    Evdokimov, como aporte para o processo de humanizao do ser humano.

    Descobrimos que esta temtica, a thesis do ser humano, verdadeiramente

    decisiva para este momento cultural (poderamos dizer multicultural), caracterizado pela

    secularizao. O escopo da reflexo ganhou ento o estatuto e o nimo de dar passos em

    direo ao estudo da thesis como aporte para a uma antropologia crist que permita ao

    cristo assumir sua f de forma livre e adulta, para acolher e testemunhar a presena do Reino

    de Deus nesta sociedade em que vivemos. Nossa sociedade profundamente marcada por

    grandes descobertas e avanos, mas igualmente carente do nico necessrio, muitas vezes

    ausente de suas reflexes e opes.

    Visamos, pois, mergulhar no tanto num discurso especulativo, mas numa

    contemplao ativa do mistrio divino e humano, sem confuso e sem separao. H uma

    correlao entre a humanizao de Deus e a deificao do ser humano. Segundo Evdokimov,

    Deus encarna-se no homem e o homem espiritualiza-se em Deus. encarnao,

    humanizao de Deus, responde a pneumatizao, a deificao do homem (Ort, p. 251). O

    conhecimento da pessoa de Jesus Cristo que nos permite entrar nesta dinmica da

    encarnao. Pois Ele, pela ao do Esprito, revela-nos o rosto humano do Pai e, ao mesmo

    tempo, revela-nos o rosto humano do prprio ser humano. O processo de deificao supe,

    pois, a incorporao vida de Jesus Cristo. A vida eclesial torna-se ento, o lugar da

    transformao humana que acolhe a vida nova, tornando-se nova criatura. um cristianismo

    vivido luz da ressurreio, inserido na histria, mas sabedor de sua realidade para alm da

    histria, ou seja, do seu destino ltimo. Assim pensado, o cristianismo requer a unio da graa

    e da liberdade. Elas so as duas asas nas quais o ser humano ala voo rumo thesis. O ser

    humano no est pronto. Ele tarefa. Evento. E aqui recordamos as palavras de Guimares

    Rosa: O Senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, isto: que as pessoas

    no esto sempre iguais, ainda no foram terminadas mas que elas vo sempre mudando.

    Afinam ou desafinam. Verdade maior. o que a vida me ensinou. Isso que me alegra,

    monto2. O processo da deificao justamente essa dinmica da vida, ora caminhamos na

    graa, ora no damos conta de acolh-la na liberdade, mas a oferta gratuita de Deus se !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!2 ROSA, Joo Guimares. Grande Serto: Veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 9.

  • !

    15

    mantm. A ao do Esprito que nos ajuda a viver cada dia mais nossa conformao vida

    de Jesus e assim, progredir em direo nossa vocao de ser filhos, no Filho, isto , ir sendo

    deificados.

    Somos conscientes de que o desenvolvimento desse nosso trabalho poder suscitar

    encantos e desencantos. Encantos, porque o ser humano traz em si o desejo do alto. Tu nos

    fizeste para ti e os nossos coraes inquietos s descansaro quando Te encontrarem

    (Agostinho, Confisses I, 1). Desencantos, porque, movidos pela efervescncia do novo,

    estamos imersos num universo em que a linguagem tem que ser agradvel aos ouvidos.

    Sabemos que o antigo necessita de interpretao e reinterpretao para atualizar sua

    mensagem libertadora. Mas muito mais que discutir termos aqui empregados, o anseio

    instigar, descobrir, pela via da contemplao, o corao da antropologia oriental, a thesis.

    Acreditamos que esta descoberta pode nos ajudar a compreender nossa prpria f e a viv-la

    de tal forma que sejamos capazes de acolher o diferente e dialogar com os que pensam e

    creem diferentemente de ns.

    No primeiro captulo apresentamos, brevemente, a doutrina da thesis: aporte

    para uma antropologia crist. Verificaremos que o termo thesis est presente desde a

    Sagrada Escritura, mas ganha desenvolvimento doutrinal ao longo do transcorrer histrico da

    teologia. No nos deteremos no perodo medieval, mas ressaltamos que nele tambm a thesis

    se faz presente. O salto se justifica pelo fato de que Evdokimov, ao elaborar seu pensamento,

    remonta Escritura, sntese neo-patrstica e contribuio da filosofia russa moderna, bem

    como teologia desenvolvida nos sculos XIX e XX, na Rssia. Feito o percurso histrico,

    apontamos a pertinncia do tema para a atualidade e contextualizamos nosso autor: sua vida e

    obra. Nesta ltima parte, ressaltamos, de forma sucinta, o que concerne deificao do ser

    humano no pensamento de Paul Evdokimov.

    Todo o pensamento de Evdokimov, no que concerne deificao, conflui na

    doutrina do Deus-Homem. Por isso, no segundo captulo, demonstraremos que Jesus Cristo

    o lugar da humanizao de Deus e da deificao do ser humano. No rosto humano de

    Jesus, Deus se manifesta a ns e, ao mesmo tempo, nos mostra o que somos para Ele: filhos

    no Filho, co-herdeiros da promessa (Ez 36,26).!Olhando para a vida de Jesus, o cristo pode

    verificar a finalidade da vida humana relacionada vida de Deus. Explicitaremos a cristologia

    de Evdokimov, que nos conduz a compreender os dois pilares sobre os quais ela se centrou.

    Um foi o desenvolvimento cristolgico dos primeiros sculos, que culminou nas definies

  • !

    16

    dogmticos dos quatro primeiros conclios ecumnicos. O outro pilar refere-se sntese neo-

    patrstica, entrelaada com a filosofia religiosa russa do sculo XIX e XX.

    E, finalmente, no terceiro captulo, apresentaremos a vida nova, que o processo

    da deificao do ser humano, o qual acontece pela ao do Esprito Santo e pela livre

    adeso esta nova vida oferecida por Cristo e em Cristo. Nesta perspectiva, a Igreja aparece

    como o lugar da transformao do cristo que, sacramentalmente, participa da vida de Jesus

    Cristo. O entrelaamento da vida eclesial e sacramental ajudar-nos- a perceber que a vida

    nova dom de Deus, mas tambm tarefa humana. Evdokimov identifica a vida mstica com a

    vida crist. Isto nos reporta a um dos maiores telogos catlicos do sc. XX, Karl Rahner, que

    afirmou que o cristo do futuro seria mstico, ou no seria cristo. A mstica uma questo

    de vida.

    O correr da vida embrulha tudo, a vida assim: esquenta e esfria, aperta e da

    afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente coragem3. com o impulso

    desta frase de Guimares Rosa, que a empreitada da escrita deste trabalho se arrisca a

    desenvolver-se, bem como, somos convidados a adentra-nos nela por meio de uma leitura

    contemplativa para acolher as intuies que fluem deste texto.

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!3 Ibid., p. 318.

  • CAPTULO 1

    A DOUTRINA DA THESIS:

    APORTE PARA UMA ANTROPOLOGIA CRIST

    Thesis, divinizao e deificao so vocbulos sinnimos e dizem respeito

    pneumatizao do ser humano, sua santificao, pela ao do Esprito Santo. Este processo

    constitui, segundo os Padres orientais, entre eles Irineu e Atansio, o fim ltimo da

    encarnao. Ao longo da tradio crist os termos foram usados de forma diversa, mas sua

    significao permanece a mesma: participao do ser humano na vida divina (2Pd 1,4).

    Quando apresentarmos nossa reflexo sobre essa doutrina luz do pensamento de Paul

    Evdokimov, autor de nossa pesquisa, daremos preferncia ao termo deificao, pelo fato de

    que, em suas obras, seja o termo empregado por ele.

    Na teologia crist oriental, o fim ltimo do ser humano a unio com Deus, a

    thesis, deificao. Este fim, conforme explicitam os Padres da Igreja, a transformao da

    criatura humana em Cristo, no Esprito Santo, em nova criatura. Este tema perpassou,

    conforme veremos logo a seguir, toda a histria do desenvolvimento teolgico cristo, seja no

    Oriente, locus de nossa reflexo, seja no Ocidente, no qual no nos deteremos devido ao

    recorte feito para efeitos de nossa pesquisa.

    Por que perscrutar uma tradio na qual no vivemos? Em que sentido o Oriente

    cristo contribui para uma vivncia de f adulta e madura? Para embrenharmos nesta busca

    somos convidados a fazer uma leitura hermenutica das obras do autor escolhido, com

    disposies para encontrarmo-nos num horizonte diferente do nosso, a teologia oriental. E, a

    partir desta aproximao, auferir algumas contribuies desta tradio que nos enriqueam em

    nossa prpria tradio e, que ao mesmo tempo, nos estimulem e orientem a viver a f crist,

    em seu dinamismo transformador da realidade em Reino de Deus, correspondendo ao

    processo de nossa deificao/humanizao.

    Segundo Volodemer Koubetch1, o interesse pela reflexo teolgica das Igrejas

    orientais, tanto a das unidas a Roma como a das ortodoxas, aumentou consideravelmente nas

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!1 Dom Volodemer Koubetch, osbm, bispo coadjutor da Eparquia de So Joo Batista dos Ucranianos Catlicos no Brasil, com sede em Curitiba. Membro da Provncia de So Jos, da Ordem de So

  • !

    18

    ltimas dcadas. Para ele, este interesse se d, seja por causa do Vaticano II e do esforo

    ecumnico feito no dilogo com os ortodoxos, seja em virtude das condies histricas, que

    libertaram as Igrejas orientais da opresso poltica e possibilitaram uma aproximao efetiva

    entre o Oriente e o Ocidente.

    Na Amrica Latina e no Brasil, o interesse pela teologia oriental de ordem vital

    para a Igreja e para o povo cristo, e no somente de ordem intelectual, para os acadmicos.

    H um grande nmero de fiis ortodoxos que vivem no Brasil. Se, por um lado, percebe-se

    que a teologia oriental, sua liturgia, espiritualidade, arte iconogrfica ainda so desconhecidas

    pelos fiis ocidentais, por outro, percebe-se a busca de conhecimento da fonte do cristianismo,

    o Oriente cristo. Telogos latino-americanos como Vctor Codina2 e Jos Comblin3, entre

    outros, mostram a riqueza teolgica desta tradio e a necessidade de conhec-la para que

    haja um enriquecimento mtuo.

    O Conclio Vaticano II dedicou tradio oriental um Decreto sobre as Igrejas

    orientais em comunho com Roma intitulado Orientalium Ecclesiarum (OE), alm de ter

    elogiado esta tradio no Decreto sobre o ecumenismo Unitatis Redintegratio (UR 14-18).

    Este ltimo documento refere-se ao Oriente ortodoxo numa perspectiva ecumnica. Trata-se !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!Baslio, o Grande, mestre em Teologia Moral pela Pontifcia Faculdade Nossa Senhora da Assuno (So Paulo) e doutor em Teologia Sistemtica pela Pontifcia Universidade Catlica (Rio de Janeiro). Destacamos o ttulo de sua tese doutoral por se referir ao autor que pesquisamos: Esprito e salvao em Paul Evdokimov. Sobre o interesse pela teologia oriental que mencionamos acima, foi extrado de sua obra: Da criao parusia: Linhas mestras da teologia crist oriental. So Paulo: Paulinas, 2004. Este livro uma adaptao de sua tese de doutorado. 2 Codina sacerdote jesuta e telogo, nascido na Catalunha. Trabalha desde 1982 na Bolvia. Despertou seu interesse pela teologia oriental ao sentir falta de integrao entre teologia e espiritualidade. Durante o ano sabtico aproximou, por meio de estudo em Paris, da riqueza da tradio oriental e a partir da escreveu sobre suas impresses acerca da teologia oriental. Ele percebeu que h uma relao profunda entre a teologia oriental e a teologia da Amrica Latina. A partir da escreveu um artigo sobre esta relao, afirmando que ambas partem da vida e contm as dimenses litrgica e do Esprito. Depois escreveu outro artigo no qual se interroga sobre o que teria acontecido se a Amrica Latina tivesse sido evangelizada pelos autores, pelos telogos e pastores da Igreja oriental. Para ele, teria tido mais respeito pela cultura, pelas religies, pela terra e pela religiosidade popular. Disponvel em: . Acesso em: 08 jul. 2013. Encontramos tambm em suas obras uma reflexo de cunho oriental. Aqui ressaltamos as obras que nortearam nossa proposio sobre o interesse pela teologia oriental na Amrica Latina e no Brasil: Los caminos del oriente cristiano. Santander: Sal Terrae, 1997 e No extingais o Esprito (1Ts 5,19): iniciao pneumatologia. So Paulo: Paulinas, 2010. 3 Jos Comblin, telogo e sacerdote belga de vasta experincia, lecionou no Equador, Chile e Brasil. Sua obra vasta e polmica, com um forte carter proftico. Comblin estava convencido de que a f deveria ser refletida criticamente a partir da realidade dos pobres. Foi considerado um dos maiores expoentes da Teologia da Libertao vivendo no Brasil. Juntamente com outros telogos latino-americanos, Comblin dirigiu a coleo A orao dos pobres que se refere teologia oriental.

  • !

    19

    de respirar ou ativar em nossa inspirao, um dos pulmes esquecido da Igreja, o Oriente

    cristo4, visto que, ns ocidentais, diante da crise que nos assolapa, s vezes buscamos, fora,

    riquezas que se encontram dentro da tradio crist.

    Segundo Vctor Codina,

    ... muitas aspiraes da modernidade e da ps-modernidade podem encontrar na tradio crist oriental resposta plena s suas nsias de experincia espiritual, de integrao holstica e de perspectiva ecolgica. O Oriente nos oferece um caminho espiritual de excepcional riqueza [...] Olhar os caminhos da Igreja do Oriente voltar tradio genuna da Igreja catlica ou seja, sair ao encontro de uma tradio viva da Igreja de ontem e de hoje5.

    No entraremos nas discusses que concernem s divergncias dogmticas das

    duas tradies: oriental e ocidental. O intuito escutar, ecumenicamente, a voz do Oriente no

    que concerne ao processo de deificao do ser humano, sobretudo luz do pensamento de

    Paul Evdokimov, objeto de nossa pesquisa. Sobre o autor, falaremos mais adiante. Portanto,

    mais que explicitar um pensamento, somos convidados a contemplar, neste trabalho, a relao

    do Deus Uno e Trino que se revela e se autodoa ao ser humano, sua imagem e semelhana,

    chamado a participar da vida divina (2Pd 1,4). necessrio retirar os possveis empecilhos

    que nos impedem de ver e acolher a novidade (antiga) da teologia oriental, a fim de

    experimentar a beleza da f crist que da emerge.

    No livro do Gnesis encontramos a afirmao de que o ser humano foi criado

    imagem e semelhana de Deus (1,26-27). Em que consiste este mistrio da criao? Qual a

    constituio do ser humano? Qual o caminho para o ser humano viver o que nele foi insuflado

    no ato da criao (Gn 2,7)? Na concepo oriental, a antropologia e o destino histrico so !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!4 Aqui fazemos aluso expresso empregada por Joo Paulo II em sua encclica Slavorum Apostoli (1985), ao convidar os cristos a que respirassem com os dois pulmes da Igreja: o ocidental e o oriental. Dom Volodemer, em sua homilia de encerramento da XXXIII Semana Teolgica do Studium Theologicum, que tratou sobre Teologia Litrgica Oriental e Ocidental nas razes de uma s f nas duas tradies: a tradio oriental bizantino-ucraniana e a tradio ocidental dita latina, afirmou que essa expresso foi utilizada pela primeira vez pelo poeta e filsofo russo ortodoxo Vjacieslav Ivanov (1866-1949), o qual, desejando pertencer plenitude da Igreja, aderiu Igreja Catlica, em 1926, sem abandonar, todavia, as riquezas do Cristianismo Oriental (D. HUGO DA SILVA CAVALCANTE, OSB: Introduo ao estudo do Cdigo de Cnones das Igrejas Orientais. Loyola, So Paulo, 2009, p. 26). Homilia proferida na catedral So Joo Batista, em Curitiba, 15 de setembro de 2011. Disponvel em: . Na sesso homilias. Acesso em: 19 mar. 2013. 5 CODINA, Vctor. Los caminos del oriente cristiano: iniciacin a la teologa oriental. Santander: Sal Terrae, 1997, p. 8-9.

  • !

    20

    esclarecidos pelo estado paradisaco, porque o alfa j inclui o mega e o define

    profeticamente: sou o princpio e o fim (Ap 21,6)6. Procuraremos compreender que, na

    encarnao, Deus no mais somente Deus. Ele Deus-Homem. O homem tambm no

    mais somente homem, mas homem-deus, ser deificado (cf. Ort, p. 77; SA, p. 64). Portanto, no

    Oriente, a antropologia ontolgica. Ela ontologia da deificao (MSM, p. 86). thesis,

    processo de humanizao do ser humano, sua pneumatizao pelas energias divinas.

    Faz-se necessrio, antes de adentrarmos no desenvolvimento do percurso histrico

    da doutrina da thesis, elucidar em que consiste a teologia oriental. Ser feita uma breve

    exposio acerca do fundamento teolgico desta tradio.

    1 Fundamento e dimenses da teologia oriental

    A teologia oriental no se preocupa em elaborar snteses, mas utiliza, com

    liberdade, os elementos culturais de seu tempo para expressar os dados da f. um

    pensamento amplo, fluido e muito livre, portanto, difcil de ser sintetizado. A teologia oriental

    essencialmente mstica. Ela coloca como objetivo da vida crist a participao do ser

    humano na vida de Deus (2Pd 1,4), isto , a thesis. Supe contemplao dos mistrios

    divinos. Deus se revela e aguarda a resposta humana. H uma sinergia entre a ao de Deus e

    a ao do ser humano, que salvaguarda a liberdade e a diferena entre ambos, Criador e

    criatura.

    Percebe-se que h um modo de fazer teolgico prprio a cada tradio que incide

    diretamente na concepo espiritual de cada uma. Codina explicita claramente o modo de se

    fazer teologia no Oriente e sua incidncia na concepo espiritual, de forma que, ao mesmo

    tempo, ele oferece-nos a diferena do fazer teolgico do Ocidente e, consequentemente, a

    espiritualidade que emerge desta concepo teolgica. Tanto uma tradio, como a outra, num

    contato mtuo podem enriquecer-se.

    [...] A teologia no Ocidente separou-se da espiritualidade. A sntese bblica e patrstica centrada na Escritura se rompe. Por um lado, cresce uma teologia racional e especulativa e, por outro lado, surge uma espiritualidade individualista, moralizante, pouco teolgica, sem razes eclesiais e sem

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!6 MCPARTLAN, Paul. Santidade. In: LACOSTE, Jean-Yves (Dir.). Dicionrio crtico de teologia. So Paulo: Loyola; Paulinas, 2004. p. 1613.

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    21

    fundamento dogmtico. No Oriente, ao contrrio, manteve-se a unio entre teologia e espiritualidade, entre teologia e vida, entre teologia e mstica. No Oriente, a teologia doxologia (louvor), contemplao, liturgia, mstica, adorao, eucaristia, experincia espiritual...7

    Este modo oriental de fazer teologia no significa que o ser humano no reflita e

    no d razes de sua f, mas que ele o faz mediante a metanoia da inteligncia, que opera uma

    converso pela f, no batismo, isto , uma nova integrao de todo o ser. Evdokimov v neste

    itinerrio o vis para a iniciao do processo de deificao do ser humano, sua humanizao.

    Pois, uma vez nascida pela graa do batismo, a razo pode servir-se de filosofia, cincia, pois

    ela torna-se iluminada, transfigurada pela f8. No ser um mero humanismo, mas um

    humanismo conjugado com a cristologia e a pneumatologia crists: um humanismo cristo-

    pneumatolgico.

    A teologia oriental mstica e existencial. Mstica por ser uma experincia

    pneumtica e espiritual que o ser humano faz do mistrio cristo. Existencial por se tratar de

    uma teologia experimental, viva e vivificante. O ser humano inserido no evento Cristo.

    Participa deste evento. Sendo mstica, ela tambm mistaggica, enquanto conhecimento

    que inicia e conduz o ser humano ao mistrio trinitrio.

    Assim como na Bblia, o cristo oriental pensa com o corao9 e no

    simplesmente com seus recursos cerebrais. O sentido bblico de pensar com o corao revela

    o mais secreto do ser humano, onde se encontram a fidelidade, a abertura a Deus ou o

    endurecimento diante do amor divino. o homo cordis absconditus (1Pd 3,4), pois no

    corao que se encontra a profundeza do ser humano, sua incognoscibilidade. Ao Deus

    absconditus responde o homo absconditus, teologia apoftica corresponde a antropologia

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!7 CODINA, Vctor. Los caminos del oriente cristiano: iniciacin a la teologa oriental. Santander: Sal Terrae, 1997, p. 31. 8 Ibid., p. 33. 9 Evdokimov, ao falar da constituio do ser humano, reporta-se noo bblica do corao (leb (hebraico) e kardia (grego). O corao concebido como o centro que irradia e penetra o todo do ser humano, embora permanea escondido em sua misteriosa profundidade. Nesse sentido, Jeremias interroga: Quem pode conhecer o corao? e ele mesmo responde: Deus sonda os coraes e os rins (Jr 17,9-10). Ao citar Agostinho: para ti que tu nos criaste, Senhor, e s em ti que nosso corao encontra a paz (Confisses I, 1), nosso autor afirma que o corao tem uma intencionalidade original imantada como uma bssola de compasso (cf. Ort, p. 66-68; MSM, p. 49s; SA, p. 58; CDTO, 30). O dicionrio bblico fala do corao como o centro principal da atividade emocional. O ser humano o que o seu corao. Para o NT, o corao a sede das operaes divinas que transformam os cristos (Gl 4,6; Rm 5,5; 2Cor 1,22; Ef 3,17) (DB, p. 183s).

  • !

    22

    apoftica (Ort, p. 67). A teologia oriental suscita em ns mais inteligncia e menos

    intelectualidade. Uma inteligncia que passa pela metanoia evanglica, conforme j dissemos

    anteriormente.

    Evdokimov, ao reportar-se aos telogos e padres do Conclio Vaticano II, afirma

    que a teologia, ultimamente, perdeu o sentido do mistrio e, tornou-se, de certa forma, uma

    especulao abstrata sobre Deus, deixando de ser pensamento vivo em Deus (SAD, p. 18).!

    Por isso, observa-se uma conduta crist confortvel, assentada de maneira tranquila sobre a

    cruz, com pouca ressonncia sobre a sociedade contempornea. necessrio o

    ultrapassamento da razo para atingir, pela inteligncia do corao, a unio com Deus, onde

    dogma e vida estejam coimplicados.

    Todo pensamento ortodoxo culmina e ultrapassa-se na antinomia apoftica,

    aquela do Inacessvel e do Crucificado. E, todo pensamento cristo convidado a entrar nesta

    dinmica das duas dimenses da teologia oriental: apoftica e cataftica. Elas possibilitam a

    reflexo-contemplao de Deus para no cair numa mera especulao abstrata sobre Deus e,

    consequentemente, sobre o ser humano.

    1.1 Dimenso apoftica

    O mtodo teolgico dos Padres parte do axioma de Deus sabemos somente que

    ele - o/(ti e)sti/n e no aquilo que ele - ti/ e)stin (Ort, p. 53).

    Voltada para Deus, a teologia oriental apresenta-se em primeiro lugar como uma teognose apoftica, negao de toda definio humana. [...] Pois a essncia de Deus est acima de todo nome, de toda palavra. [...] E mesmo quando dizemos infinito e no gerado, por essa forma negativa mesmo, ns confessamos e tocamos na apfase. [...] A teologia cataftica s se aplica a seus atributos revelados, s manifestaes de Deus no mundo (Ort, p. 53-54; SAD, p. 43).

    A teologia apoftica ou negativa consiste na negao de toda definio sobre

    Deus. Ela considera inadequada toda tentativa de descrever o mistrio absoluto de Deus, que

    supera todas as categorias. Em sentido absoluto, Deus incomparvel. Ele totalmente

    incognoscvel em sua essncia. Segundo Evdokimov,

  • !

    23

    a super-essncia divina radicalmente transcendente ao homem e obriga a uma afirmao antinmica, mas jamais contraditria, da completa inacessibilidade de Deus em si e de suas manifestaes imanentes no mundo. Deus sai na frente em suas energias e est totalmente presente nelas. [...] A energia nunca uma parte de Deus, ela Deus em sua revelao sem que ele perca nada da no-sada radical de sua essncia (Ort, p. 26).

    Os conceitos, afirma Gregrio de Nissa, criam dolos, a Deus s se capta pelo

    silncio e admirao (PG 44, 1028d)10. Por isso, a Ortodoxia no tem necessidade de formular

    conceitos a respeito de Deus, ao contrrio, segundo Evdokimov, ela tem necessidade de no

    formular (cf. CPR, p. 35). Em sua dimenso apoftica, a teologia a negao de toda

    definio humana. Definir limitar (ESTO, p. 22). Gregrio Nazianzeno nos ajuda a

    compreender a dinmica desta dimenso teolgica, que se expressa em forma de orao e

    dirige-se ao Indizvel:

    Tu, o mais alm de tudo. Que outra coisa pode ser dita de ti? Que hino poderia dirigir-te a palavra? No tem palavra que possa expressar-te. Onde te fixar a inteligncia? Tu ests alm de toda inteligncia. S tu s inefvel, porque tudo o que se diz saiu de ti. Todos os seres, os que falam e os mudos, te proclamam. S tu s incognoscvel, porque tudo o que pensa saiu de ti. O desejo universal, o gemido de todo o universo, tende para ti. Tudo o que existe te adora e todo ser que pensa teu universo faz subir at ti um hino de silncio. Tudo o que permanece, permanece em ti. Por ti subsiste o movimento de tudo. Tu s o fim de todos os seres. Tu s todo ser e no s nenhum. Tu no s um dos seres, nem s seu conjunto. Tu tens todos os membros. Como te nomearia eu a Ti, o nico que no tem nome, o mais alm de tudo? No isso tudo o que pode ser dito de ti? (PG 37, 507).

    Para Codina, o que faz com que a teologia seja apoftica no a onipotncia de

    Deus, nem sua imensidade, mas seu amor que, segundo Nicolas Cabasilas (1320-1371)11, o

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!10 Evdokimov quem nos oferece a referncia Patrologia Grega cf. Ort, p. 54. 11 Segundo Evdokimov, Nicolas Cabasilas foi um dos maiores liturgistas do sc XIV (SA, p. 132). Telogo leigo, humanista e homem de alta cultura escreveu um tratado sobre os sacramentos intitulado La vie en Christ (A vida em Cristo). Discpulo de Gregrio Palamas, recebe dele o princpio de uma participao real na vida divina utilizando-a para construir uma vigorosa espiritualidade para os leigos (CDTO, p. 72). O realismo litrgico da participao do divino acessvel a todos conduz os fieis cristificao (CPR, p. 28). A vida de todo homem em Jesus se identifica com a vida de Jesus no homem, com a morada trina e a pneumatizao do ser humano pelas energias divinas. O misticismo litrgico, acessvel a todos, encerra-se assim, com a vida de cada um no nvel da f histrica e pneumatfora da existncia e conduz incorporao muito concreta dos fieis em Cristo, sua cristificao: a fim de que o Cristo seja formado em vs (Gl 4,19) (Ort, p. 28). Segue-se da que o escopo escatolgico da eucaristia o Reino de Deus dentro de ns (CDTO, p. 72).

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    24

    louco amor de Deus manifestado no escndalo da cruz12. Por isso, a via que nos conduz a

    Deus a via do amor, da contemplao. A transcendncia divina ensina-nos que no podemos

    jamais ir a Deus a no ser a partir dele mesmo, estando nele (cf. Ort, p. 50). Deus o

    eternamente procurado. Ele permanece escondido em sua prpria epifania (SAD, p. 44).

    1.2 Dimenso cataftica

    A dimenso cataftica, tambm conhecida como positiva ou simblica, refere-se

    aos atributos e manifestaes reveladas de Deus no mundo (cf. ESTO, p. 22). Esta dimenso

    nos possibilita um conhecimento imperfeito de Deus. um modo de ascender a Deus por

    meio de sua teofania na criao, na histria e, sobretudo, em Cristo13.

    Vale ressaltar com Evdokimov a importncia das duas dimenses:

    Pela via negativa, os Pais da Igreja ensinam que Deus incomparvel em sentido absoluto; nenhum nome o exprime adequadamente [...] A teologia positiva clssica no depreciada, mas colocada diante de seus prprios limites. Ela se aplica apenas aos atributos revelados, manifestaes de Deus no mundo. Ela os traduz de modo inteligvel, mas essas tradues permanecem expresses cifradas, simblicas, pois a realidade de Deus absolutamente original, transcendente e irredutvel a qualquer sistema de pensamento. Em torno do abismo abissal de Deus, a espada flamejante dos querubins havia traado um crculo instransponvel de silncio (SAD, p. 25).

    Por isso, afirma Paul Evdokimov, a teologia apoftica realiza um ultrapassar,

    mas que nunca se desliga da sua base, a teologia positiva da Revelao bblica. Quanto mais

    alta construda a vertical celeste, tanto mais ela se encontra enraizada na horizontal terrestre,

    da histria (ESTO, p. 23). Pois no se trata de conhecer qualquer coisa sobre Deus, mas de

    ter Deus em si (cf. Ort, p. 50). Da podemos dizer, com Evgrio Pntico (345-399), no que

    consiste o fazer teolgico: Se tu s telogo, tu oras verdadeiramente e se tu oras, tu s

    telogo (Trait de loraison, 60)14.

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!12 CODINA, Los caminos del oriente cristiano, 1997, p. 35. 13 Ibid., p. 37. 14 Encontramos uma afirmao de Evdokimov sobre quem teria formulado a partir desta frase de Evgrio um adgio dos Padres. Ele diz que foi Santo Tikhon de Zadonsk que formulou o adgio: Telogo aquele que sabe rezar. Pois Zadonsk aspirava a uma teologia viva, conhecida como um conhecimento experimental de Deus. Este santo foi, conforme ainda afirma Evdokimov, o primeiro a

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    25

    Segundo nosso autor, ningum verdadeiro telogo se sua f no tem o carter

    vivido da unio pessoal com Deus (CPR, p. 36). Assim, ele conjuga as duas dimenses,

    apoftica e cataftica, que geram a unidade do possvel conhecimento de Deus. Esse

    conhecimento inicia o telogo na ardente aproximao de Deus e de seus mistrios. Supe a

    vida de intimidade e comunho que gera a unio com o Senhor.

    2 Thesis: a doutrina da deificao nas tradies crists

    A tradio oriental conservou ao longo dos sculos a coerncia e a firmeza de suas

    bases doutrinais. Ela bebe nas fontes da Revelao crist e na tradio dos Padres,

    conservando o sabor dos grandes msticos da Igreja primitiva, mantendo assim, o exerccio

    teolgico com a experincia espiritual vinculados estreitamente. No que concerne thesis,

    encontramos um fundamento persistente que corrobora na reflexo sobre o ser humano e seu

    papel no mundo como imagem e semelhana do Criador (Gn 1,26-27).

    O tema da deificao no uma novidade teolgica. Ele perpassa todo o percurso

    teolgico, desde os primrdios da vida crist. Embora seu vocbulo no seja bblico, sua

    sistematizao recorre Sagrada Escritura e linguagem do tempo em que sua reflexo foi-se

    construindo. No nos deteremos no desenvolvimento histrico concernente a este tema, mas

    faremos um breve esboo de como ele se fez e se faz presente na teologia tanto oriental como

    ocidental. Desta ltima, apenas elucidaremos alguns autores que desenvolveram uma reflexo

    acerca da deificao.

    Segundo o telogo espanhol Pedro Urbano Lpez de Meneses15, com a palavra

    thesis encontramo-nos situados no corao da antropologia oriental. O ser humano,

    conforme nos ensinam os Padres, adquire seu pleno sentido na vocao a ser filho de Deus,

    em Cristo. Ele foi criado com este fim e s o alcanar pela graa que o Esprito de Deus.

    o processo da configurao a Cristo que, pela vida no Esprito, nos remete ao Pai. Trata-se de

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!pregar a dignidade do laicato como monaquismo interiorizado (cf. CPR, p. 49). O tema do monaquismo interiorizado ser desenvolvido no captulo 3, item 3.3. 15 Pedro Urbano Lpez de Meneses, no intuito de corroborar a perspectiva ecumnica, publicou uma obra sobre a doutrina da graa: Theosis, la doctrina de la divinizacin en las tradiciones cristianas: fundamentos para una teologa ecumnica de la gracia. Este trabalho foi fruto de sua tese doutoral, na Faculdade de Teologia da Universidade de Navarra. Pamplona: EUNSA, 2001.

  • !

    26

    uma vida divinizada segundo a ordem interna das pessoas divinas, porque o ser humano no

    vive para si, seno s em Deus e para Deus16.

    O que queremos dizer quando falamos de deificao do cristo pela graa de

    Deus? Na resposta a esta questo encontramos a parte mais importante da doutrina da thesis,

    bem como o ponto de partida para desenvolver qualquer reflexo teolgica sobre o ser

    humano. A partir do Evangelho encontramos diversas formas de matizar a vida em Cristo. O

    sentido das palavras matizado de forma diversa em cada tradio: oriental, ocidental,

    protestante etc., porm, o sentido de deificao permanece o mesmo. Vejamos, brevemente,

    como se iniciou esta doutrina, como ela se desenvolveu ao longo da histria, bem como sua

    pertinncia para os nossos dias17.

    2.1 Percurso histrico da doutrina da thesis

    Faremos uma breve apresentao do percurso histrico da doutrina da thesis para

    averiguar que no se trata de uma novidade, mas que esta doutrina se fez presente desde a

    concepo bblica do ser humano (2.1.1). As razes da doutrina da thesis perpassam a

    filosofia grega (2.1.2), bem como o desenvolvimento teolgico da patrstica (2.1.3). A partir

    deste arrazoado, verificaremos o influxo da doutrina da thesis na teologia ortodoxa

    contempornea (2.1.4).

    2.1.1 A thesis do ser humano na Sagrada Escritura

    No encontramos o termo thesis na linguagem da Sagrada Escritura, pois esta se

    preocupa em preservar o absoluto da transcendncia divina. Porm, encontramos temas que

    conotam este termo. No incio da Bblia, segundo seu cnone definido, deparamos com a

    afirmao de que tudo foi criado conforme sua espcie, plantaes, rpteis, seres vivos, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!16 LPEZ DE MENESES, Pedro Urbano. Theosis, la doctrina de la divinizacin en las tradiciones cristianas: fundamentos para una teologa ecumnica de la gracia. Pamplona: EUNSA, 2001, p. 16. 17 Seguiremos como base principal para o desenvolvimento desta parte histrica: DALMAIS, Irne-H. Divinisation. In: VILLER, Marcel (Ed.). Dictionnaire de spiritualit: asctique et mystique, doctrine et histoire. v. 3. Paris: Beauchesne, 1957. p. 1370-1460; LARCHET, Jean-Claude. La divinisation de lhomme selon Saint Maxime Le Confesseur. Paris: Cerf, 1996. E, alm da parte histrica recorreremos obra de LPEZ DE MENESES, mencionada na nota 18 deste captulo.

  • !

    27

    contudo, do ser humano se diz que ele foi criado imagem e semelhana do Criador (cf. Gn

    1,11.21.24.26-27). Em sua criao, o ser humano, permanecendo criatura, colocado numa

    relao diferente com o Criador. Conforme afirma o Apstolo Paulo, somos da raa de Deus,

    pois nele que vivemos, nos movemos e existimos (At 17,28-29). E o salmista afirma: vs

    sois deuses (Sl 81,6), ento somos chamados a participar de sua natureza divina (2Pd 1,4).

    Outros temas expressam ainda a realidade da thesis tais como a adoo filial (Dt

    14,1; Sl 81,6; Rm 8,14-17; Gl 3,26; 4,4-7) e a imitao de Deus e do Filho, Jesus Cristo (Mt

    5,44-48). Ns nascemos de Deus, afirma Joo em sua primeira carta, para sermos filhos de

    Deus e de fato o somos (cf. 1Jo 3,1). Percebemos, nestes termos, o comeo de um novo modo

    de existncia j na vida presente, mas que encontrar sua perfeita manifestao na viso de

    Deus (1Cor 13,12; 1Jo 3,2) e na participao em sua incorruptvel imortalidade (cf. 1Cor

    15,52-53). Ser salvo ser santificado para participar na vida de Deus (cf. 2 Pd 1,4). A

    santidade pertence somente a Deus, mas Ele chama seu povo a ser santo como Ele o (Lv

    19,1). Jesus, que o santo de Deus (Mc 1,24), o santo servo de Deus (At 4,27), dirige sua

    orao ao Pai que santo (Jo 17,11)18. E isto implica em sermos transformados (2Cor 3,18)

    pela renovao de nossa mente, o nous (cf. Rm 12,2; Ef 4,23;), para nos conformarmos a

    Cristo (cf. Rm 8,29; 1Cor 2,16; Fl 2,15; Sl 139,17) em seu seguimento, pelo Esprito.

    O ser humano ento admitido numa ntima comunho com Deus, atravs de

    Cristo e pelo poder do Esprito Santo. O ponto mximo desta unio a identificao com o

    Cristo (cf. Gl 2,20). Cada um desses temas ter, no pensamento cristo, seu desenvolvimento

    prprio e eles sero o fundamento da doutrina que mais tarde se chamar thesis19. Este termo

    traduz o carter nico da promessa e da oferta divinas feitas ao ser humano.

    Embora o termo thesis no aparea como linguagem bblica, ele encontra,

    conforme vimos, um slido fundamento na Sagrada Escritura20.

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!18 MCPARTLAN, Paul. Santidade. In: Dicionrio crtico de teologia. So Paulo: Loyola; Paulinas, 2004. p. 1609. 19 DALMAIS, Irne-H. Divinisation. In: VILLER, Marcel (Ed.). Dictionnaire de spiritualit: asctique et mystique, doctrine et histoire. v. 3. Paris: Beauchesne, 1957. p. 1376. 20 LARCHET, Jean-Claude. La divinisation de lhomme selon Saint Maxime Le Confesseur. Paris: Cerf, 1996. p. 21.

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    28

    2.1.2 Razes da thesis na filosofia grega

    No pensamento religioso dos gregos percebe-se que a poesia, a filosofia, a religio

    dos mistrios exprimem, cada uma a sua maneira, uma crena profunda de que o ser humano

    da raa dos deuses, filho dos deuses.

    Segundo Lpez de Meneses,

    O ser humano um ser que tem que se completar progressivamente. A filosofia helenstica no contempla o homem nessa evoluo, como um ser autnomo, portador em si mesmo da meta a que aspira. O fim do ser humano, para a tradio grega, necessariamente divino porque nele encerra-se certo elemento celeste que chama a uma definitiva integrao com o divino. A meta ltima est fora do ser humano, est em Deus21.

    Segue-se da que a antropologia, em seu ncleo, na filosofia grega, teocntrica.

    Portanto, entender o telos do ser humano como uma progressiva assimilao em Deus, como

    deificao, j a marca das tradies filosficas helensticas, que entram em relao com o

    pensamento dos Padres: platonismo mdio, estoicismo, neoplatonismo.

    Plato considera que o filsofo alcana, pela contemplao, a semelhana divina,

    que consiste em participar, ontologicamente, das propriedades divinas. Enquanto que, para os

    estoicos, a semelhana com Deus tem valor tico e significa alcanar a tranquilidade de

    nimo, a ausncia de paixo. Para os neoplatnicos, a semelhana com Deus tem valor

    ontolgico at o extremo de que assimilar-se ao divino quer dizer divinizar-se realmente, ou

    seja, retornar divindade de onde brota o ser e alcanar a unio com ela22.

    A deificao, na concepo filosfica, um ideal de vida. Ela vista como um

    esforo natural do prprio ser humano, sem nenhuma mediao ao divina no ser humano,

    que o capacite a isso. Ao passo que, como veremos, na doutrina crist a deificao graa

    concedida por Deus, pela mediao do Verbo e do Esprito. No suprime a liberdade humana,

    ao contrrio, pelas energias divinas e na resposta humana que se d o processo de deificao

    do ser humano. Vejamos a seguir as razes teolgicas da thesis do ser humano.

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!21 LPEZ DE MENESES, Theosis, 2001, p. 34. 22 Ibid., p. 35.

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    29

    2.1.3 As razes teolgicas da thesis na patrstica

    A herana filosfica da thesis reformulada pelos Padres, graas ao novo

    horizonte da experincia neotestamentria. O tema da divinizao do ser humano ocupa um

    lugar essencial na teologia dos Padres gregos e, ao mesmo tempo, esclarece a concepo da

    humanidade prpria ao Oriente cristo.

    Nos Padres Apostlicos (sc. I-II) no aparece o termo thesis, mas sua noo se

    faz presente. Para eles, a doutrina da graa caracteriza-se pela centralidade do Esprito. A

    thesis do ser humano no forma parte fundamental de sua doutrina da graa. Eles insistem,

    sobretudo, na incorruptibilidade e na imortalidade como efeitos da salvao23. Na patrstica

    oriental posterior, o tema da thesis do ser humano consolida-se como centro da doutrina da

    graa. Ela desempenha um papel importante na antropologia e na cristologia, assim como

    tambm na doutrina trinitria, e servir de eixo ao redor do qual se justificar a divindade do

    Filho e do Esprito.

    Incio de Antioquia (35-110) utiliza expresses mais caractersticas thesis ao

    escrever a seus correspondentes dizendo-lhes que eles so portadores de Deus, portadores

    do Cristo, participantes de Deus (SC 10, p. 66). Encontra-se em Incio a mstica da unio

    imediata com o Cristo, e por Ele, com Deus, o Pai e o Esprito Santo. Portanto, no se trata de

    uma simples unio moral, por imitao. Em muitos textos do bispo de Antioquia,

    encontramos o eco da palavra de Paulo quando ele afirma que j no sou eu que vivo,

    Cristo quem vive em mim (Gl 2,20)24.

    Em Justino (100-165), a thesis expressa em diversos temas tais como: a

    imitao de Deus, a participao nas qualidades divinas e a filiao (PG 6, 341a). Ao

    comentar o Sl 81, Justino ressalta que o ser humano, tornado semelhante a Deus, por isso

    impassvel e imortal com Ele, portanto julgado digno de ser chamado filho de Deus (PG 6,

    765b)25.

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!23 LARCHET, La divinisation de lhomme, 1996, p. 24. 24 Ibid., p. 24. 25 Larchet quem nos ofereceu estas duas referncias PG que se encontram neste pargrafo. In: LARCHET, La divinisation de lhomme, 1996, p. 25.

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    30

    Incio de Antioquia insistir mais sobre a criao do ser humano imagem de

    Deus. Segue a linha de Justino e no hesita em usar o vocbulo thesis e, para isso, ele retoma

    a palavra do Apstolo Paulo para dizer que somos da raa de Deus (At 17, 28-29).

    Para Irineu de Lyon (130-202), a thesis a progressiva participao na

    incorruptibilidade divina, fruto da recapitulao aberta pelo Verbo encarnado, pois quem

    Filho de Deus se faz filho do homem para que o homem receba a adoo e torne-se filho de

    Deus (Adv. Haer. V, 8,1). Ele no cessa de repetir que o ser humano foi criado imagem e

    semelhana de Deus, ou melhor, do Verbo encarnado, por isso, chama a ateno ao

    crescimento espiritual a que o ser humano impelido a adquirir. Neste sentido, citando o Sl

    81,6 Irineu explica que ns no fomos feitos deuses desde o comeo, mas primeiro homens e

    somente em seguida deuses (SC 100, p. 960-961).

    Segundo Irineu, a razo da encarnao para que o ser humano, misturando-se ao

    Verbo recebesse assim a adoo filial, tornando-se filho de Deus (SC 211, p. 374-375). Desta

    forma, o Verbo recapitula em si a humanidade inteira unindo-a divindade e restituindo-lhe a

    semelhana com Deus. Ele sublinha o papel do Esprito Santo na realizao da divinizao do

    ser humano, embora esta esteja centralizada no mistrio da encarnao. pelo Esprito que o

    ser humano recebe a semelhana com Deus. A viso de Irineu constitui j uma doutrina da

    thesis e marcar profundamente o pensamento de muitos Padres dos sculos seguintes26.

    Clemente de Alexandria (150-215) segue nesta linha dando um sentido da

    autntica gnose crist: O Verbo de Deus se fez homem, a fim de que tu, ainda que sejas um

    homem, entendas como um homem pode tornar-se Deus (SC 2, 104). destas concepes

    que Atansio (293-373) tirar a pedra angular de sua defesa em favor da divindade do Filho e

    do Esprito, bem como se formular o adgio que ficar consagrado nos Padres a respeito da

    thesis do ser humano: O Verbo se fez homem para que o homem se tornasse deus (PG

    25,192 b)27.

    Em Clemente de Alexandria, a thesis encontra-se concebida como o termo de

    uma pedagogia exercida por meio dos sacramentos: Batizados ns somos iluminados,

    iluminados ns somos adotados como filhos; adotados ns somos feitos perfeitos; tornados

    perfeitos, ns recebemos a imortalidade. Eu disse: vs todos sois deuses e filhos do

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!26 LARCHET, La divinisation de lhomme, 1996, p. 28. 27 Mcpartlan quem nos ofereceu esta referncia, cf. DCrT, 2004, p. 1611. A mesma referncia encontra-se na obra de Evdokimov: Ort, p. 78.

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    31

    Altssimo (SC 70, p. 158). uma gnose, no como no platonismo, pois no o resultado do

    esforo humano; mas crist, pois a graa que vem de Deus, pelo seu Filho que realiza este

    conhecimento pela unio com Deus. Ela fonte de vida, pois no conhecer o Pai a morte,

    ao passo que conhec-lo a vida eterna28.

    Para Orgenes (185-254), a thesis do ser humano funda-se na encarnao, pois

    ela operada pelo Verbo, no somente a ttulo de iluminador das inteligncias, mas porque

    em sua Encarnao

    a natureza divina e a natureza humana comearam a se unir estreitamente, a fim de que, por sua comunho com aquele que mais divino, a natureza humana torne-se divina, no somente em Jesus, mas tambm em todos aqueles que, com a f, abraaram a vida que Jesus ensinou e que conduz amizade e comunho com Deus (Contra Celsum 3,28; SC 136, p. 68).

    V-se a a importncia do cumprimento dos mandamentos e da vida virtuosa

    como etapa da thesis humana que se cumpre no mais alto grau da vida espiritual, a

    contemplao. Portanto, a deificao do ser humano resulta de uma participao (metokh) na

    divindade de Deus, que um dom do Verbo (PG 13, 217a). Deus permanece Deus e o ser

    humano, partcipe de sua natureza, sem fuso, nem confuso, pois este no se identifica com

    Deus, mas, por Cristo, se une a Ele29. Orgenes escreve que o nous deificado

    (qeopoiei=tai) na medida em que contempla (PG 14, 817c), culminando assim, na viso de

    Deus.

    Neste sentido, tanto para Orgenes como para Clemente, a contemplao

    deificante da gnose crist consiste na unio do ser humano com Deus. Por isso, esta gnose no

    pura especulao, conforme j lembramos, pois para estes Padres conhecer se misturar e se

    unir. Esta leitura dos Padres da Igreja v a doutrina da thesis como uma renovao da

    imagem de Deus no ser humano e, ao mesmo tempo, uma restaurao do conhecimento de

    Deus na humanidade do Verbo, perfeita imagem do Pai, pelo qual o ser humano foi criado (cf.

    Cl 1,15-16).

    Atansio integra o aporte de Irineu, Clemente e Orgenes para desenvolver a

    doutrina da thesis: O Verbo se encarnou, sarx egeneto, para que o homem se faa receptor

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!28 DALMAIS, Divinisation, 1957, p. 1378. 29 LARCHET, La divinisation de lhomme, 1996, p. 31. Ressaltamos que as duas referncias PG que se encontram neste pargrafo foram extradas desta obra, p. 30.

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    32

    idneo da divindade, dektikon theou (PG 26, 273)30. Para ele, o Verbo, imagem perfeita do

    Pai, pelo qual Deus criara o ser humano, agora recria a humanidade restaurando nela a

    imagem autntica. S a verdadeira Imagem pode refazer a imagem que se aniquilou em ns31.

    Atansio afirmar que, de fato, o Verbo era verdadeiro Deus e, ao assumir a carne, ele

    tambm verdadeiro Homem, por isso, desta perfeita unio, possvel a deificao do ser

    humano, pois o Verbo assumiu a humanidade em sua totalidade. Da se segue que suas

    formulaes evoquem a pericorese, que at ento no havia aparecido. Atansio estabelece

    um paralelo entre a consubstancialidade dos homens e aquela das pessoas da Trindade32.

    O papel do Esprito Santo tambm evocado na deificao do ser humano na

    concepo de Atansio. Ele deduz do princpio trinitrio que a nossa participao em Deus

    participao no Verbo, pelo Esprito. Por esta razo, o Esprito Santo deve ser tambm Deus.

    Portanto, em Atansio a thesis do ser humano apresentada como um argumento em favor

    da divindade do Filho e do Esprito Santo33.

    Baslio de Cesareia (329-379) segue a esteira do pensamento de Atansio e reala

    o papel deificante do Esprito Santo, reforando o aspecto intelectualista da thesis. Concebe

    o ser humano, reportando a Gregrio Nazianzeno (330-390), como criatura de Deus chamada

    a ser um deus34. Baslio se mostra reservado no uso do vocbulo, no escriturstico, da

    thesis, enquanto que, Gregrio Nazianzeno o usa com predileo. Para ambos, o papel do

    Esprito Santo na divinizao do ser humano determinante.

    Para Gregrio Nazianzeno, considerado pelos Padres, o Telogo, a thesis,

    assegurada pela encarnao redentora do Verbo, estabelece uma segunda comunho mais

    magnfica que a primeira (PG 38, 322a)35, pois ns nascemos para a thesis (SC 309, p.

    292). Porm, para cumpri-la, o ser humano deve primeiro praticar as virtudes. A

    correspondncia entre a encarnao e a divinizao expressa pelo Nazianzeno de forma

    radical, pois ele diz: ento homem por causa de ti, que tu te tornas deus por causa dEle

    (SC 358, p. 306). Como Baslio e Atansio, Gregrio toma a thesis do ser humano como

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!30 Lpez de Meneses quem nos ofereceu esta referncia em sua obra Theosis, 2001, p. 46. 31 SANTO ATANSIO. Contra os pagos; A encarnao do Verbo; Apologia ao imperador Constncio; Apologia de sua fuga; Vida e conduta de S. Anto. 2. ed. So Paulo: Paulus, 2010, p. 143. 32 LARCHET, La divinisation de lhomme, 1996, p. 33. 33 Ibid., p. 3. 34 Ibid., p. 39. 35 Dalmais quem nos ofereceu esta referncia, cf. DAMAIS, Divinisation, 1957, p. 1382.

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    33

    argumento em favor da divindade do Esprito Santo, visto que a deificao realizada pela

    ao do Esprito Santo36.

    Gregrio de Nissa (330-394) prefere o termo imagem, para falar da vocao do

    ser humano, ao termo thesis, para no cair no pantesmo inerente ao neoplatonismo. Ns

    no somos emanao de Deus. Por isso, Gregrio de Nissa marca bem a diferena entre

    Criador e criatura. Deus, o Criador, imutvel (atreptos) e o ser humano, criatura, est em

    contnua mudana (treptos). Somos distintos dEle (en t hypokeimn), na origem e no

    modo de ser, embora, participemos, pela graa, da vida divina, pois somos imagem de

    Deus37.

    Segundo Gregrio de Nissa, pela prtica progressiva das virtudes que a unio do

    batizado cresce at atingir o cume da contemplao, onde no xtase, ele alcana, pelo

    Esprito, um conhecimento inefvel de Deus (SC 1, p. 202-214). E, na viso de Deus que o

    ser humano se torna participante da natureza divina. Para ele, a carne deificada do Cristo,

    sua humanidade, que deifica cada hypstasis humana. Por isso, o niceno ressaltar o papel dos

    sacramentos no processo de deificao do ser humano, sobretudo o da Eucaristia.

    O sacramento da Eucaristia central em Joo Crisstomo (347-407), que o

    desenvolve segundo o tema da filiao adotiva. Cirilo de Alexandria (378-444) assimila a

    contribuio dos Capadcios e a integra em uma teologia mais ampla da thesis no

    desenvolvimento da teologia sacramentria assinalada em Gregrio de Nissa e em Joo

    Crisstomo. Cirilo acentua o valor da eucaristia no processo da thesis progressiva do cristo.

    Neste sentido, a carne do Cristo, deificada pela sua unio com o Verbo, torna-se, por sua vez,

    instrumento da thesis para a nossa carne. Cirilo apresenta a divinizao como finalidade da

    encarnao: o Verbo se fez o que ns somos a fim de nos tornar participantes do que Ele

    (SC 97, p. 328).

    Em Cirilo, conforme ressalta o telogo e filsofo Jean-Claude Larchet38, o tema

    da filiao largamente desenvolvido: unindo-se natureza humana, o Verbo a introduz no

    parentesco divino. Irmos do Cristo, ns somos associados a seus privilgios. Esta associao

    supe uma unio ao Cristo pela f e pelos sacramentos. Pelo batismo, no qual recebemos o !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!36 Ibid., p. 42. 37 GRGOIRE DE NYSSA. La cration de lhomme. Trad. Jean Laplace. Paris: Cerf, 1943. (Sources Chrtiennes, 6) p. 44. 38 LARCHET, La divinisation de lhomme, 1996, p. 47s.

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    34

    dom do Esprito Santo e nos tornamos templos de Deus, inicia-se nosso processo de

    deificao.

    Cirilo desenvolve ainda o tema da inhabitao do Verbo, pelo Esprito em ns,

    associado ao tema da adoo filial. Para ele, nossa divinizao pode realizar-se j nesta vida,

    mas ela atingir sua perfeio aps a ressurreio. Portanto, pode-se dizer que com Cirilo de

    Alexandria, a teologia da thesis atinge seu pleno desenvolvimento.

    No incio do sc. VI percebe-se que Pseudo Dionsio substitui a palavra thesis

    por theopoisis. Sua doutrina segue o essencial das linhas tradicionais, mas num estilo que

    entrelaa os aspectos especificamente cristos. A thesis integra-se no esquema neoplatnico

    do retorno a Deus. Ela identifica-se com a assimilao em Deus, operada pela contemplao.

    Com ele inaugurada uma mstica da deificao.

    Dionsio faz a distino entre a essncia divina e os poderes (dynameis), j

    delineada pelos Capadcios, e que depois ser de grande importncia em Gregrio Palamas.

    esta distino que permite afirmar ao mesmo tempo a possibilidade da deificao do ser

    humano e da absoluta transcendncia de Deus39. pelos sacramentos, pelo batismo e,

    sobretudo, pela eucaristia que o Cristo nos deifica. Portanto, mais que participao na carne

    deificada do Senhor, Dionsio ressalta seu carter de comunho.

    Mximo, o Confessor, (580-662) recolhendo a herana de Clemente e de

    Orgenes, direta e tambm por intermdio de Evgrio, faz a sntese definitiva da thesis.

    familiar dos Capadcios como tambm de Dionsio. A teologia da thesis, tema central do

    Confessor, ganha fora com o esforo de reflexo e de preciso que ele faz em defesa do

    dogma de Calcednia. Na ordem da criao, a deificao , para ele, o nico fim que pode

    satisfazer a natureza, pois a natureza espiritual foi criada para ela. Por isso, a pedra angular

    transcendente e a explicao ltima da criao a encarnao.

    Na controvrsia monotelita40, Mximo explicita, em sentido ortodoxo, tanto a

    frmula ciriliana da nica natureza do Verbo encarnado como o teandrismo de Dionsio.

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!39 Ibid., p. 56. 40 Os monotelitas, aps a definio de Calcednia, confessam que em Jesus Cristo h uma nica vontade e refutam as duas aes naturais temendo dividir o nico sujeito e de outorgar certa autonomia ao humano (CRP, p. 24). Segundo Evdokimov, So Mximo, o Confessor, (580-662) precisa que a vontade um dos elementos constitutivos da natureza humana, sua fonte no a Hypstasis, mas a natureza e por isso que h unio das duas vontades em Cristo (CPR, p.25). O Conclio de Constantinopla III, 681, condenou os monotelitas afirmando que: Duas vontades naturais, no contrrias (que Deus o afaste), como afirmam os mpios hereges, mas sua vontade humana

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    35

    A Encarnao, de acordo com Mximo e os Bizantinos, no somente o meio de salvao,

    mas a condio do cumprimento ltimo da criao (CRP, p. 25). A Encarnao e a thesis

    so as duas faces de um mesmo mistrio do qual Mximo tira duas concluses ascticas:

    Pode-se dizer, com efeito, que Deus e o homem se servem mutuamente de modelo e que Deus se humaniza para o homem em seu amor de homem, na medida mesma em que o homem, fortificado pela caridade, transpe-se para Deus como deus41.

    Dois sculos mais tarde, Gregrio Palamas (1296-1359) far da thesis o

    argumento decisivo de sua sntese teolgico-mstica, quando busca o desenvolvimento de sua

    doutrina das energias divinas42. A ortodoxia ensina-nos que a essncia de Deus permanece

    transcendente, mas que suas energias so participveis e justamente pelas energias divinas

    que nos tornamos, pela graa, o que Deus pela natureza (2Pd 1,4). Distingue-se a essncia

    de Deus de sua energia, salvaguardando, assim, tanto a transcendncia quanto a imanncia

    divinas: A essncia de Deus permanece inacessvel, mas sua energia vem a ns. A energia,

    que o prprio Deus, penetra em toda sua criao e ns a experimentamos. Este Deus que

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!seguindo a vontade divina e onipotente, no lhe resistindo, nem se lhe opondo, mas antes sujeita a ela. [...] Desci do cu no para fazer minha prpria vontade, mas a vontade do Pai que me enviou (Jo 6,38), designando como prpria a vontade da carne, visto que a carne se tornou sua prpria carne. Disponvel em: . Na sesso biblioteca, documentos da Igreja. Acesso em: 09 jul. 2013. 41 DALMAIS, Divinisation, 1957, p. 1388. 42 Gregrio Palamas, mesmo suscitando suspeitas em seus contemporneos e at aos dias atuais, no deixa de ser um grande telogo. Sua doutrina das energias divinas foi canonizada como ortodoxa nos Conclios de Constantinopla, de 1341 e 1351, da Igreja ortodoxa. Palamas, profundamente enraizado na tradio dos Padres, explicita que a essncia de Deus inacessvel, mas que suas energias so participveis. Palamas afirma: A natureza divina deve ser considerada ao mesmo tempo imparticipvel e em certo sentido, participvel. Participamos da natureza de Deus e, contudo, ela permanece totalmente inacessvel. necessrio que afirmemos as duas coisas ao mesmo tempo e que guardemos sua antinomia como um critrio de piedade (PG 150, 932 d). Esta a base do processo de deificao. No que concerne a esta distino da essncia divina e de suas energias, encontramos uma reflexo que achamos pertinente aqui mencionar. Desde Atansio ns encontramos uma clara distino entre a essncia de Deus e sua dynameis. Segundo Atansio, Deus est em tudo por seu amor, mas antes de tudo por sua prpria natureza (De Decretis II). A mesma concepo foi cuidadosamente elaborada pelos Capadcios. A essncia de Deus absolutamente inacessvel para o ser humano, diz Baslio (Adv. Eunomium 1,14). Ns conhecemos Deus somente em suas aes e por suas aes. Conhecemos Deus por suas energias, ou seja, pelo que ele mesmo nos revela em suas atividades, mas, conforme a doutrina dos Padres, ns no professamos ser possvel aproximar-nos de sua essncia. A essncia divina permanece inacessvel, no entanto, suas energias descem at ns. Disponvel em: . Acesso em 15 maio 2011.

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    36

    age, no apenas um Deus de energia, mas um Deus pessoal. Quando o ser humano participa

    da divina energia, ele no dominado por um poder indefinido e inominado, mas posto face

    a face com outra pessoa que o prprio Deus. Nosso Deus um Deus encarnado. Deus veio

    ao ser humano no apenas por sua energia, mas tambm em pessoa. A Segunda Pessoa da

    Trindade, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, foi feito homem: E o Verbo se fez carne, e

    habitou entre ns (Joo 1,14). A unio com Deus significa unio com as energias divinas,

    no com a essncia divina. !

    Neste sentido, Palamas esclarece a diferena entre essncia e energias divinas.

    Esta diferena, na medida em que estabelece a intangibilidade da essncia divina, fundamenta

    a teologia negativa ou apoftica. A ousia incomunicvel, imparticipvel, est alm do

    criado. As energias, embora sejam incriadas, so comunicveis e participveis, garantindo a

    possibilidade de um verdadeiro conhecimento de Deus. A teologia de Palamas centrada no

    debate com os humanistas de sua poca, em defesa da thesis. A inteno principal dele

    explicar como acontece a participao do ser humano na vida divina, e qual estatuto

    ontolgico possui a real transformao do cristo, pela graa, bem como as consequncias

    teolgicas que se derivam da deificao do ser humano.

    A antropologia de Palamas marcada pelo carter dinmico das relaes entre o

    ser humano e Deus. O ser humano foi criado imagem da Imagem divina, que Cristo, e

    completar sua vocao original quando for plenamente semelhante a Ele. Esta relao de

    imagem Imagem determina a tenso entre criao e deificao da existncia humana.

    Como os Padres, Palamas entende a thesis em estreita relao com o mistrio da Encarnao

    do Verbo, mantendo em todas as explicaes uma adequada valorizao da dimenso

    pneumatolgica43. Palamas resume a Tradio e erige a thesis em ideal religioso da

    Ortodoxia (cf. CPR, p. 32).

    A teologia latina insistiu menos que a teologia grega sobre a thesis do ser

    humano, embora, segundo Gustave Bardy44, o tema encontra-se com nuanas diferentes, em

    autores desta tradio, tais como: Tertuliano, no qual encontramos a tese familiar de que a

    Encarnao do Verbo a condio da thesis do ser humano. Cipriano, Hilrio de Poitiers,

    Agostinho, So Leo, o Grande, tambm abordaram o tema, ainda que de maneira difusa ou

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!43 LPEZ DE MENESES. Theosis, 2001, p. 58. 44 BARDY, Gustave. Divinisation. In VILLER, Marcel (Ed.). Dictionnaire de spiritualit: asctique et mystique, doctrine et histoire. v. 3. Paris: Beauchesne, 1957. p. 1389ss.

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    tpica. Na Idade Mdia aparece a reflexo a respeito desta temtica nos autores monsticos do

    sc. XII, como Jean de Fcamp, Santo Anselmo de Canturia, So Bernardo de Claraval e

    tambm em alguns telogos e msticos do sc. XIII tais como Alexandre de Halls, Eckhart.

    Encontramos tambm a reflexo sobre a thesis em telogos msticos do sc. XIV Tauler

    (1300-1361), Suso (1295-1366) e Ruysbroeck (1293-1381). No sc. XVI aparecem aplicaes

    do tema em Benot de Canfield (1562-1611) e no sc. XVII em Louis Laneau (1637-1696).

    2.1.4 O influxo da doutrina da thesis na teologia ortodoxa contempornea

    Para a teologia ortodoxa contempornea, e aqui nos baseamos em alguns de seus

    autores tais como John Meyendorff, Panayiotis Nellas, Olivier Clment45, entre outros, a

    doutrina da thesis desenvolvida pelos Padres constitui a pedra angular da reflexo crist

    sobre o ser humano.

    Qual o sentido do discurso sobre a thesis no horizonte secularizado

    contemporneo? Seria incongruente? Segundo Lpez de Meneses,

    Diante do desafio da secularizao, a resposta mais geral da teologia catlica tem sido uma conscincia teolgica mais profunda da vocao divina do homem deificao. A moderna crtica sobre a religio obrigou a dar uma resposta mais exata sobre o sentido de Deus no horizonte do homem, a explicar mais a fundo o destino do homem unio com o Criador. [...] A divinizao autntica, entendida em um correto sentido cristo, o humanismo mais verdadeiro, como a mais alta realizao da vocao humana, tanto em sua dimenso individual como coletiva46.

    Portanto, a deificao do ser humano a sua mais acabada humanizao. Por isso,

    diante da crtica da religio, a antropologia catlica, segundo afirma Danilou, no prefcio da

    obra de Lot-Borodine, orienta sua ateno em direo s fontes patrsticas47. Lpez de

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!45 CLMENT, Olivier. Sobre el hombre. Madrid: Encuentro, 1983. 46 LPEZ DE MENESES, Theosis, 2001, p. 378s. 47 LOT-BORODINE, Myrrha. La dification de lhomme: selon la doctrine des Pres grecs. Paris: Cerf, 1970. p. 9-18.

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    Meneses, recorrendo a autores ortodoxos e latinos48, afirma que a thesis a verdadeira e

    suprema humanizao do homem49.

    Esta nossa temtica. Para aprofund-la, entre os diversos telogos ortodoxos

    modernos que tratam desta questo, recorreremos a Paul Evdokimov. Sua profundidade

    mstica e teolgica e seu sensus ecclesiae nos remetero tradio patrstica e reflexo

    religiosa filosfica da Rssia, fornecendo-nos uma reflexo sobre a thesis do ser humano no

    desenvolvimento de sua antropologia.

    3 A doutrina da thesis no pensamento d