1998

Deixa Ela Entrar - visionvox.com.br · para ele com simpatia. — Como ... O policial balançou a cabeça, aprovando. — Isso é bom. Ler ... — Porco, você está aí? E Micke

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Deixa ela entrar

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Deixa ela entrarJohn Ajvide Lindqvist

Tradução do suecoMarisol Santos Moreira

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Copyright © 2004 John Ajvide LindqvistCopyright da tradução © 2012 Editora Globo

S.A.

Publicado segundo acordo com Ordfront

Förlag (Estocolmo)e Leonhardt & Høier Literary Agency A/S

(Copenhague).

Todos os direitos reservados. Nenhuma partedesta obra pode ser apropriada e estocada em

sistema de banco de dados ou processo similar,em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, defotocópia, gravação etc., sem a permissão dos

detentores dos copyrights.

Título original: Låt den rätte komma in

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Texto fixado conforme as regras do AcordoOrtográfico da Língua Portuguesa (Decreto

Legislativo nº 54, de 1995).

Editor responsável Camila SaraivaAssistente editorial Lucas de Sena Lima

Tradução Marisol Santos MoreiraPreparação Silvia Massimini Felix

Revisão Erika Nakahata e Carmem T. S. CostaCapa, fotomontagem da capa e projeto gráfico

retina78Crédito da epígrafe da página 187 trecho de

Romeu e Julieta,tradução de Bárbara Heliodora. © Pepeeme

Traduções e Serviços Ltda, gentilmente cedidopelas Empresas Ediouro Publicações.Editor Digital, Erick Santos Cardoso

Produção para ebook, S2 Books

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1ª edição, 2012

Dados Internacionais de Catalogação naPublicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro,

SP, Brasil)

Lindqvist, John AjvideDeixa ela entrar / John Ajvide

Lindqvist; tradução do sueco de MarisolSantos Moreira. São Paulo: Globo, 2012.

2.615 kb; ePUBTítulo original: Låt den rätte komma

inISBN 978-85-250-5294-01. Ficção sueca I. Título.

12-07143 CDD-839.73

Índice para catálogo sistemático:1. Ficção : Literatura sueca 839.73

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Direitos de edição em língua portuguesa para oBrasil adquiridos por Editora Globo S.A.

Av. Jaguaré, 1.485 – 05346-902 – São Paulo –Brasil

www.globolivros.com.br

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Para Mia, minha Mia

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Sumário

CapaFolha de rostoCréditosDedicatória

Primeira ParteQuarta-feira, 21 deoutubro de 1981Quinta-feira, 22 de

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outubroSexta-feira, 23 deoutubroSábado, 24 deoutubro

Segunda ParteQuarta-feira, 28 deoutubroQuinta-feira, 29 deoutubroSexta-feira, 30 deoutubroSábado, 31 de

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outubro

Terceira ParteQuinta-Feira, 5 deNovembroSábado, 7 denovembroSábado, 7 denovembro (noite)Sábado, 7 denovembro(madrugada)

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Quarta ParteDomingo, 8 denovembroDomingo, 8 denovembro (noite)Domingo, 8 denovembro(noite/madrugada)Segunda-feira, 9 denovembro

Quinta ParteSegunda-feira, 9 denovembro

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Terça-feira, 10 denovembroQuarta-feira, 11 denovembroQuinta-feira, 12 denovembro

Epílogo

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O LUGAR

Blackeberg.Faz a gente pensar em trufas de

coco, talvez em drogas. No filmeEtt anständigt liv .[1] Talvez emestação de metrô, em subúrbio.Depois não há muito mais em quepensar. Existe gente que mora ali,assim como em outros lugares. Épor isso que Blackeberg foiconstruída; para as pessoas terem

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um canto para morar.Não é um lugar que foi crescendo

naturalmente, não mesmo. Aquitudo estava dividido em unidadesdesde o início. As pessoas tiveramde se mudar para o que já existia ali.Edifícios de cimento em tons terra,jogados no meio do verde.

Quando essa história acontece,faz trinta anos que Blackebergexiste como lugar. A gente poderiaimaginar um espírito pioneiro.Mayflower; uma terradesconhecida. O.k. Imaginar ascasas desabitadas esperando por

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seus moradores.E lá vêm eles!Marchando pela ponte de

Traneberg com o brilho do sol e ossonhos no olhar. O ano é 1952. Asmães carregam seus filhos nosbraços ou em carrinhos de bebê,levam-nos pela mão. Os pais nãotrazem enxadas nem pás, mas simeletrodomésticos e móveisfuncionais. Provavelmente cantamalguma coisa. “A Internacional”,talvez. Ou “Se vi gå upp tillJerusalem”,[2] dependendo dapreferência.

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A coisa é grande. É nova. Émoderna .

Mas, na verdade, não foi bemassim.

Eles chegaram de metrô. Ou decarro, camionetes de mudança. Umde cada vez. Entraram aos poucosnos apartamentos prontos etrouxeram coisas. Organizaram tudoem divisórias e prateleiras pré-fabricadas, deixaram os móveisalinhados no piso de linóleo.Compraram coisas novas parapreencher os espaços vazios.

Quando tudo estava pronto,

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levantaram os olhos econtemplaram a terra que lhes foiconcedida. Saíram dos prédios edescobriram que toda a terra jáestava aberta e revolvida. Era só sesujeitar ao que havia ali.

Havia um centro. Havia parquesenormes para as crianças. Haviaamplas áreas verdes bem ao lado.Havia muitas calçadas.

Um lugar bom. As pessoasdiziam isso umas às outras à mesada cozinha mais ou menos um mêsdepois da mudança.

— Viemos para um lugar bom.

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Só uma coisa estava faltando.Uma história. No colégio, ascrianças não podiam fazer nenhumtrabalho escolar sobre o passado deBlackeberg, já que tal passado nãoexistia. Não, minto. Havia a históriade um moinho. De um grandeindustrial do rapé. Construçõesantigas e estranhas lá embaixo nolago. Mas isso aconteceu muitotempo atrás e não tem nenhumarelação com o presente.

No lugar onde está agora o prédiode três andares, antes era só mato.

As pessoas estavam fora de

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alcance dos mistérios do passado;nem sequer tinham uma igreja. Umlugar com dez mil habitantes semuma igreja.

Isso diz algo sobre a modernidadee a racionalidade do lugar. Isso dizalgo sobre o quanto se estava livredos fantasmas e do terror dahistória.

Isso explica em parte o quanto seestava despreparado.

Ninguém viu quando eles se

mudaram.

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Quando a polícia finalmenteconseguiu localizar, em dezembro,o motorista que levou a mudança,ele não tinha muito o que contar.Em seus registros de 1981, lia-seapenas: “Dia 18 de outubro :Norrköping para Blackeberg(Estocolmo) ”. Lembrou que eramum homem e sua filha, uma graça demenina.

— Ah, espere… Eles nãotrouxeram quase nada. Um sofá,uma poltrona, uma cama. Serviçofácil, nesse sentido. E… bem, elesqueriam que a mudança fosse de

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madrugada. Eu disse que ficariamuito mais caro com o adicionalnoturno. Mas não teve problema.Era só a gente fazer de madrugada.Isso é o que importava. Aconteceualguma coisa?

O motorista da mudança ficousabendo do que se tratava, quem elelevara no caminhão. Arregalou osolhos e viu suas anotações.

— Caramba…Sua boca se contorceu numa

careta, como se ele tivesse ficadocom nojo da própria caligrafia.

Dia 18 de outubro: Norrköping

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para Blackeberg (Estocolmo) .Havia sido ele quem levara os

dois. O homem e a menina.Ele não ia contar pra ninguém.

Nunca.

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PRIMEIRA PARTE

Feliz daquele que temum amigo como esse

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Problemasde amorcausam

muita dor,rapazes!

Siw

Malmkvist,“Kärleksgrubbel”

I never

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wanted to kill, Iam not naturally

evilSuch things

I doJust to

make myselfmore attractive

to youHave Ifailed?

Morrissey,

“The last of

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the famousinternational

playboys”

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Quarta-feira, 21 de outubro de 1981

Quarta-feira, 21 de outubrode 1981

— E isso aqui, o que vocês achamque é?

Gunnar Holmberg, comissário dapolícia de Vällingby, segurava noalto um saquinho plástico contendoum pó branco.

Talvez heroína, mas ninguémarriscava dizer alguma coisa.Ninguém queria parecer suspeito deconhecer esse tipo de coisa.

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Especialmente se tivesse um irmãoou um amigo do irmão que mexessecom isso. Que injetasse heroína. Atémesmo as meninas estavam caladas.O policial sacudiu o saquinho.

— Será que é fermento em pó?Farinha?

Um burburinho dizendo que não.O policial não podia sair daliachando que a turma do 6º ano B eraum bando de idiotas. É verdade queera impossível afirmar o que haviano saquinho, mas a lição era sobredrogas, então dava para tirar certasconclusões. O policial se virou para

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a professora.— O que a senhora ensina na aula

de economia doméstica?A professora sorriu e encolheu os

ombros. A turma caiu na risada; opolicial era legal. Alguns dosmeninos tinham até tocado em seurevólver antes do início da aula.Não estava carregado, é verdade,mas ainda assim…

O peito de Oskar fervia. Sabia aresposta da pergunta. Doía-lhe nãofalar quando sabia . Queria que opolicial olhasse para ele. Olhasse elhe dissesse algo depois que ele

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desse a resposta correta. Era umaburrice fazer isso, Oskar sabia, masmesmo assim levantou a mão.

— Diga.— É heroína, não é?— É, sim. — O policial olhou

para ele com simpatia. — Comovocê adivinhou?

Todos se viraram em sua direção,curiosos com o que ele iria dizer.

— Bem, é que… eu leio muito, sóisso.

O policial balançou a cabeça,aprovando.

— Isso é bom. Ler. — Ele

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sacudiu o saquinho plástico. — Nãose tem muito tempo para leiturasquando se toma isso aqui. Quantoserá que custa um desses, o quevocês acham?

Oskar não precisava dizer maisnada. Recebera o olhar e a atençãoque queria. Até pôde dizer para opolicial que lia muito. Era mais doque tinha esperado.

Sonhou acordado. Com o policialque ia em sua direção depois da aulae estava interessado nele, sentava-seao seu lado. Então ele contaria tudo.E o policial entenderia. Faria um

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afago em seu cabelo e diria que eleera um menino bom; abraçariaOskar e diria…

— Dedo-duro de uma figa.Jonny Forsberg cutucou Oskar de

lado com o dedo. O irmão de Jonnyandava com uma turma que usavadrogas e Jonny sabia um monte depalavras que os outros garotos daturma aprendiam rapidamente.Jonny provavelmente sabia o valorexato daquele saquinho, mas nãodedurava. Não ficava de papo compolicial.

Era hora do intervalo e Oskar

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parou perto de onde os casacosestavam pendurados, indeciso.Jonny queria bater nele — qualseria o melhor jeito de escapar?Ficar no corredor ou ir para fora?Jonny e os outros saíram emdisparada para o pátio da escola.

Isso; o policial ficaria com aviatura no pátio e aqueles quetivessem interesse podiam olhá-lade perto. Jonny não ousaria ir paracima dele enquanto o policialestivesse ali.

Oskar desceu para a entrada daescola e olhou pela vidraça. Toda a

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turma estava, como ele tinhaprevisto, em volta da viatura. Oskartambém queria estar ali, mas nempensar. Alguém daria uma joelhadanele, outro puxaria sua cueca paracima, que ficaria enfiada bem nomeio da bunda, com polícia ou sempolícia.

Mas de qualquer forma ele teveuma prorrogação, nesse intervalodas aulas. Foi para o pátio da escolae deu a volta, indo discretamentepara os fundos do prédio, até obanheiro.

Lá dentro Oskar aguçou os

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ouvidos e tossiu, limpando agarganta. O som ecoou entre ossanitários. Rapidamente, tirou dacueca a Bola do Mijo, um pedaço deespuma do tamanho de umatangerina que ele cortara de umcolchão velho, com um furo paraenfiar o pênis. Cheirou a espuma.

É, ele já tinha se mijado umpouco. Oskar lavou a espumadebaixo da torneira e a torceu,tirando dela o máximo de água.

Incontinência. Era esse o nome.Havia lido sobre isso num folhetoinformativo que pegara escondido

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na farmácia. Era mais um problemade mulher velha.

E meu .Havia paliativos à venda, estava

escrito no folheto, mas ele nãousaria a mesada para passarvergonha na farmácia. E não ia dejeito nenhum contar isso para amãe; ela sentiria tanta pena dele queOskar ia ficar doente.

Ele tinha a Bola do Mijo e elafuncionava, contanto que a coisanão piorasse.

Passos lá fora, vozes. Com a bolaapertada na mão, Oskar deslizou

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para dentro de um sanitário e setrancou ali, ao mesmo tempo que aporta do banheiro se abriu. Elesubiu sem fazer barulho na tampado vaso e se encolheu, de forma queos pés não aparecessem casoalguém olhasse por debaixo daporta. Tentou não respirar.

— Pooorco?Jonny, é claro.— Porco, você está aí?E Micke. Os piores. Não, Tomas

era mais sacana, mas quase nuncaparticipava quando havia socos earranhões. Esperto demais para isso.

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Provavelmente estava puxando osaco do policial agora. Se a Bola doMijo fosse descoberta, seria Tomasquem realmente se aproveitariadisso para humilhá-lo durante umbom tempo. Jonny e Micke dariamum soco e pronto. De certa forma,ainda bem que…

— Porco? A gente sabe que vocêestá aqui.

Eles sentiram a porta. Sacudirama porta. Golpearam a porta. Oskarpassou os braços em volta dosjoelhos e trincou os dentes para nãogritar.

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Saiam daqui! Deixem-me em paz!Por que vocês não me deixam empaz?

Agora Jonny falou com voz develudo.

— Ô, porquinho, se você não sairdaí agora a gente vai ter que tepegar depois da escola. É isso quevocê quer?

O banheiro ficou em silêncio porum instante. Oskar respirou comcuidado.

Eles atacaram a porta com chutese socos. Foi um estrondo e o trincoenvergou para dentro. Ele devia

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abrir, ir até eles antes que ficassemzangados demais, mas nãoconseguia.

— Pooorco?Ele tinha levantado a mão,

afirmado que existia, que podiaalguma coisa. Isso era proibido.Para ele. Eles inventavam um montede desculpas para justificar por queOskar precisava ser torturado; eragordo demais, feio demais, nojentodemais. Mas o problema verdadeiroera o simples fato de ele existir, ecada lembrança da sua existênciaera um crime.

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Provavelmente eles só iriam“batizá-lo”. Enfiar a cabeça dele novaso e puxar a descarga.Independentemente do que fossemaprontar, sempre era um grandealívio quando tudo terminava. Maspor que Oskar não levantava otrinco, que se abriria de qualquerjeito, e deixava que eles sedivertissem?

Olhou para o trinco que se dobroue saiu do gancho produzindo umestalo, olhou para a porta que seescancarou batendo na parede dosanitário, para o sorriso triunfante

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na cara de Micke Siskov, e elesabia.

Porque o jogo não era assim.Ele não levantara o trinco e eles

não tinham pulado para dentro dosanitário em três segundos porqueas regras do jogo não eram assim.

O êxtase do caçador era deles, opavor da vítima era de Oskar. Umavez que ele fosse capturado, adiversão se acabava e a punição emsi era mais uma obrigação a sercumprida. Se Oskar desistisse cedodemais, havia o risco de elescolocarem toda a energia deles na

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punição, e não na caça. E isso seriapior.

A cabeça de Jonny Forsbergapareceu.

— Escute aqui, você precisa abrira tampa do vaso pra cagar. Agoragrite que nem um porco.

Oskar gritou que nem um porco.Fazia parte. Se ele gritasse comoum porco, às vezes eles podiamdeixar a punição de lado. Ele seesforçou mais que o normal, commedo de que durante a punição eleso obrigassem a abrir a mão e, comisso, descobrissem seu segredo

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nojento.Ele franziu o nariz imitando um

focinho de porco, grunhiu e gritou,grunhiu e gritou. Jonny e Mickeriam.

— Porra, porco. Mais.Oskar continuou. Apertou os

olhos e continuou. Cerrou tanto ospunhos que as unhas entraram naspalmas das mãos. Continuou.Grunhiu e berrou até sentir umgosto estranho na boca. Entãoparou. Abriu os olhos.

Eles tinham ido embora.Oskar continuou sentado,

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encolhido em cima da tampa dovaso, olhando para o chão. Umamancha vermelha no ladrilhoembaixo dele. Enquanto olhava,caiu no chão mais uma gota desangue do seu nariz. Ele arrancouum pedaço de papel higiênico dorolo e tapou o nariz.

Isso acontecia quando ele ficavacom medo. Seu nariz começava asangrar, assim, sem mais nemmenos. Isso ajudava em algumasocasiões quando eles iam lhe bater,pois desistiam ao ver que ele jáestava sangrando.

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Oskar Eriksson estava sentadotodo encolhido com um pedaço depapel numa das mãos e a Bola doMijo na outra. Sangrando e semijando, falando demais. Vazandopor todos os buracos do corpo. Nãodemoraria muito e tambémcomeçaria a se borrar nas calças.Porco.

Ele se levantou e saiu dobanheiro. Deixou a mancha desangue onde estava. Tomara quealguém veja a mancha, que fiquepensando nela. Que ache quealguém foi morto aqui, já que

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alguém tinha sido morto aqui. Pelacentésima vez.

Håkan Bengtsson — um homem

de quarenta e cinco anos com umcomeço de barriga protuberante, oscabelos rareando e domicíliodesconhecido para as autoridades —estava no metrô olhando lá fora pelajanela, estudando aquilo que seriaseu novo lar.

Um pouco feio, é verdade.Norrköping era uma cidade maisbonita. Mesmo assim, esses

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subúrbios da parte oeste não separeciam em nada com os subúrbiosde Estocolmo que ele vira na tv;Kista, Rinkeby e Hallonbergen. Esteaqui era diferente.

“próxima estação: råcksta.”Um pouco mais arredondado,

mais suave. Embora aqui houvesseum arranha-céu de verdade.

Ele esticou o pescoço para ver atéo andar mais alto do complexo desalas comerciais da empresaVattenfall. Não podia se lembrar deum edifício desse tipo emNorrköping. Mas também nunca

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estivera no centro da cidade.Era na próxima estação que ele

saltaria, não era? Olhou para o mapadas conexões do metrô colado nasportas. Isso. Era na próxima.

“cuidado com as portas. elasserão fechadas.”

Será que alguém estava olhandopara ele?

Não, havia bem poucas pessoasno vagão, todas concentradas emseus jornais. Amanhã trariamnotícias sobre ele.

Seus olhos pousaram num cartazde anúncio de roupa íntima. Uma

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mulher numa pose provocante decalcinha de renda e sutiã. Umabsurdo. Por toda parte peledesnuda. Como é que se permitiauma coisa dessas? O que isso faziacom a cabeça das pessoas, com oamor?

As mãos de Håkan tremiam e eleas repousou sobre as pernas. Estavaextremamente nervoso.

— Será que não existe mesmo umoutro jeito?

— Você acha que eu ia submetê-lo a isso se houvesse outro jeito?

—Não, mas …

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— Não existe nenhum outro jeito.Nenhum outro jeito. Restava

apenas fazer. E fazer direito. Eleconsultara o mapa no catálogotelefônico e escolhera uma áreaverde que provavelmente servia,depois arrumou a bolsa e partiu.

Arrancara o logotipo da Adidascom a faca que agora estava nabolsa entre seus pés. Isso foi umadas coisas que deram errado emNorrköping. Alguém se lembrou damarca da bolsa e depois a polícia aencontrou num contêiner ondeHåkan a jogara, não muito longe do

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apartamento deles.Hoje ele levaria a bolsa para casa.

Devia cortá-la, fazê-la empedacinhos, jogar tudo no vaso e dardescarga. Era assim que se fazia?

Como é que se costuma fazer?“parada final para todos os

passageiros.”O metrô vomitou sua carga e

Håkan seguiu os outros com a bolsana mão. Ela pesava, embora a únicacoisa ali dentro que tinha algumpeso fosse o cilindro de altapressão. Ele se esforçou para andarnormalmente, não como um homem

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a caminho da própria execução. Nãodevia chamar a atenção das pessoas.

Mas as pernas pareciam chumbo,queriam se fundir com a estação. Ese ele apenas ficasse ali? E seficasse imóvel, não movessenenhum músculo e não saísse dali?Esperasse que a madrugada viesse,que alguém o notasse, telefonassepara… alguém que iria buscá-lo.Que o levaria para outro lugar.

Continuou andando num ritmonormal. Perna direita, pernaesquerda. Não podia falhar. Coisasterríveis aconteceriam se ele

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falhasse. O pior que se podiaimaginar.

Lá em cima, nas catracas, olhouao redor. Seu senso de orientaçãoespacial era ruim. Para que ladoestava a área do bosque? É claro queele não podia perguntar a ninguém.Tinha que arriscar. Ande, acabelogo com isso. Perna direita, pernaesquerda.

Deve haver outro jeito .Mas ele não conseguia pensar em

nada. Havia certas condições, certoscritérios . Essa era a única maneirade obedecê-los.

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Håkan fizera isso duas vezes, enas duas não fizera direito. EmVäxjö foi menos grave, mas ruim osuficiente para que eles fossemobrigados a se mudar. Hoje ele fariatudo certinho, e seria muitoelogiado.

Carícias, talvez.Duas vezes. Ele já estava

condenado. Que importância tinhauma terceira vez? Nenhuma. Apunição da sociedadeprovavelmente seria a mesma.Prisão perpétua.

E a punição moral? Quantas

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voltas com a cauda, rei Minos?O caminho do parque mudava de

direção mais à frente, onde o bosquecomeçava. Deve ser o bosque queele tinha visto no mapa. O cilindrode alta pressão e a faca esbarravamum no outro. Tentou carregar abolsa sem sacudi-la.

Uma criança apareceu nocaminho, à sua frente. Uma meninade uns oito anos voltando da escola,com a mochila batendo no quadril.

Não! Nunca!Isso já era demais. Não com uma

criança tão pequena. Melhor com

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ele mesmo, até cair duro no chão. Amenina cantarolava alguma coisa.Ele apressou os passos para seaproximar dela, para poder ouvi-la.

Du lilla solsken som tittar inigenom fönstret i stugan min…[3]

As crianças ainda cantavam isso?

Talvez a menina tivesse umaprofessora antiga. Que bacana queessa canção ainda existia. Ele queriaficar mais perto para ouvir melhor,tão perto a ponto de sentir o cheiro

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do cabelo da menina.Diminuiu o passo. Não devia

aprontar nada. A menina saiu docaminho do parque e continuou poruma trilha no bosque.Provavelmente morava nos prédiosdo outro lado. Como é que os pais adeixavam andar assim, totalmentesozinha? Era muito pequena.

Ele parou, deixou a meninaganhar distância e desaparecer nobosque.

Continue andando , menina. Nãopare para brincar no bosque .

Ele esperou talvez por um

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minuto, ouviu um tentilhãocantando numa árvore ao lado.Depois foi atrás da menina.

Oskar voltava da escola para

casa, com a cabeça pesada. Sentia-se pior quando conseguia escapar docastigo deste jeito: imitando porcoou qualquer outra coisa. Pior do quese tivesse sido castigado. Ele sabiaque era assim, entretanto nãoconseguia aceitar o castigo quando ahora chegava. Era melhor serebaixar e fazer qualquer coisa.

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Zero de orgulho.Robin Hood e o Homem-Aranha

tinham orgulho. Se Sir John ouDoutor Octopus lhes pusessemnuma situação difícil, eles cuspiamna cara do perigo mesmo que nãohouvesse nenhuma chance deescapar.

Mas o que o Homem-Aranhasabia, afinal de contas? Já quemesmo assim ele sempre conseguiaescapar, apesar de ser impossível.Ele era um personagem de históriaem quadrinhos e precisavasobreviver para o próximo número.

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Tinha os poderes de aranha; Oskar,o grunhido de porco. Qualquer coisaservia para sobreviver.

Oskar precisava de consolo. Teveum dia de cão e agora teria acompensação. Apesar do risco deencontrar Jonny e Micke, foi para ocentro de Blackeberg, até osupermercado Sabis. Arrastou-sepela rampa em zigue-zague em vezde subir as escadas. Juntava forças.Precisava ficar calmo, não suar.

Tinha sido pego uma vez porpequenos furtos no Konsum, um anoatrás. O segurança quis ligar para a

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mãe de Oskar, mas ela estava notrabalho e o menino não sabia onúmero de lá, não sabia, de jeitonenhum. Durante uma semana,Oskar ficara agoniado a cada toquedo telefone, mas em vez disso veiouma carta, endereçada à sua mãe.

Uma idiotice. Até dava para ler“Polícia da Província deEstocolmo” no envelope, enaturalmente Oskar abriu a carta,leu sobre seus crimes, falsificou aassinatura da mãe e enviou acorrespondência de volta paraconfirmar que tinha lido. Talvez

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covarde, mas burro, não.Sobre ser covarde. Será que era

uma covardia o que ele estavafazendo agora? Encher os bolsos docasaco de chocolates Dajm, Japp,Coco e Bounty. Para finalizar, umsaco de balas entre a barriga e o cósdas calças. Foi ao caixa e pagou porum pirulito Dumle.

No caminho de casa, andou com acabeça erguida e passos leves. Elenão era o porco em quem todomundo queria bater, era o GrandeLadrão que desafiava os perigos esobrevivia. Podia enganar todos

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eles.Depois de cruzar a entrada do

pátio do prédio, Oskar estavaseguro. Nenhum dos seus inimigosmorava no pátio, um círculoirregular no interior do círculomaior da Ibsengatan. Uma fortalezaem dobro. Aqui ele se sentia emsegurança. Aqui nesse pátio nada deruim jamais lhe acontecera. Nogeral.

Aqui ele crescera e aqui tiveraamigos antes de entrar na escola.Foi só no quinto ano que Oskarcomeçou a ser excluído de verdade.

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Quando o quinto ano estavaacabando, foi nomeado o bobalhãoda turma e isso contagiou atémesmo colegas que não eram da suaturma, que telefonavam cada vezmenos chamando-o para brincar.

Também foi nessa época queOskar começou com o álbum derecortes. Aquele que estava em casae com o qual ele iria se deliciaragora.

Vruuum!Um zunido e alguma coisa bateu

em seus pés. Um carrinhovermelho- -escuro movido a

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controle remoto deu ré para longe,virou-se e subiu a ladeira emdireção à porta do prédio de Oskarem alta velocidade. Atrás das urzesà direita da entrada do pátio estavaTommy com uma antena compridadespontando da barriga; ele riu.

— Peguei você de surpresa, nãofoi?

— Ele anda bem rápido.— É. Quer comprar?— … quanto?— Trezentos.— Não dá. Não tenho.Tommy chamou Oskar com o

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indicador, deu meia-volta no carrona ladeira e fez o brinquedo descernuma velocidade de carro decorrida. O carrinho parouderrapando na frente dos seus pés, eTommy apanhou o brinquedo, deuuma batidinha nele e disse em vozbaixa: — Custa novecentos na loja.

— É.Tommy olhou para o carro, em

seguida olhou para Oskar de cima abaixo.

— Duzentos, vai? Olhe aí, estánovinho em folha.

— É, ele é bem bonito, mas…

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— Mas?— Não.Tommy balançou a cabeça

aceitando, pôs o carrinho no chão denovo e comandou o brinquedo parao meio dos arbustos de forma que asrodas grandes e cheias deprotuberâncias sacudiram. Deixou obrinquedo dar a volta no lugar ondese limpavam tapetes, ir para a rua edepois subir a ladeira.

— Posso provar?Tommy olhou para Oskar,

pensando se ele merecia ou não,depois entregou o controle remoto e

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apontou para o lábio superior domenino.

— Levou porrada? Você está comsangue. Aqui.

Oskar passou o indicador nolábio, uns pontinhos marronsficaram agarrados.

— Não, eu só…Era melhor não contar. Não

adiantava nada. Tommy era trêsanos mais velho. Durão. Sóaconselharia que ele revidasse eOskar diria “claro”, e o únicoresultado seria cair ainda mais noconceito de Tommy.

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Oskar comandou o carrinhodurante um tempo e depois ficouolhando enquanto Tommy dirigia.Desejou ter duzentos contos paraque pudessem fazer negócio . Fazeralgo juntos. Enfiou as mãos nosbolsos do casaco e sentiu os doces.

— Quer um Dajm?— Não, não gosto de Dajm.— E um Japp?Tommy tirou os olhos do controle

remoto e sorriu.— Você tem os dois?— Tenho.— Surrupiou?

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— … é.— O.k.Tommy abriu a mão e Oskar pôs

nela um Japp, que Tommy enfiou nobolso de trás do jeans.

— Obrigado. Tchau.— Tchau.Chegando em casa, Oskar

esparramou todos os doces na cama.Começaria com o chocolate Dajmpara então comer os pedaços duplose arremataria com um Bounty, ofavorito dele. Depois as balas, quelimpavam a boca.

Oskar arrumou os doces fazendo

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no chão uma fileira queacompanhava a cama, na ordem emque seriam comidos. Na geladeira,achou uma cola-cola pela metadecom um pedaço de papel-alumíniotapando o gargalo, obra da sua mãe.Perfeito. Ele gostava mais de coca-cola meio sem gás, especialmentecom doces.

Tirou o papel-alumínio edepositou a garrafa no chão ao ladodos doces, deitou-se de barriga parabaixo na cama e examinou a estantede livros. Uma coleção quasecompleta da série A hora do arrepio

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, completada aqui e ali comSuspense da hora do arrepio .

A maior parte da coleção eracomposta de duas sacolas de papelcom livros que Oskar comprara porduzentas coroas através de umanúncio no Gula Tidningen . Pegarao metrô para Midsommarkransen eseguira a descrição do caminho atéencontrar o apartamento. O homemque abriu a porta era gordo, de tezamarelada e silvava ao falar.Felizmente ele não convidou Oskarpara entrar, apenas levou as sacolascom os livros para o corredor,

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recebeu as duzentas coroas com umaceno de cabeça, disse “Divirta-se”e fechou a porta.

Então Oskar ficou preocupado.Fazia meses que ele procurava pelosnúmeros antigos dessa série nossebos de quadrinhos da Götgatan.Ao telefone, o homem dissera quese tratava justamente dos númerosantigos. Tudo foi fácil demais.

Assim que Oskar ficou fora davista do homem, pôs as sacolas nochão e examinou o conteúdo. Nãotinha sido enganado. Quarenta ecinco livros, do número 2 ao 46.

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Essas revistas não estavam mais àvenda. Só duzentos contos!

Não foi estranho ter ficado comum pouco de medo do homem. Oque ele tinha acabado de fazer eranada mais nada menos que roubar otesouro do duende.

Mesmo assim, elas não ganhavamdo seu álbum de recortes.

Do esconderijo debaixo da pilhade revistas em quadrinhos, depoisde ficar remexendo, ele tirou oálbum. O caderno em si era apenasum bloco grande de desenho que eletinha surrupiado da loja Åhlens em

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Vällingby; saíra calmamente da lojacom o bloco debaixo do braço,assim mesmo — quem disse que eleera covarde? —, mas o conteúdo…

Oskar abriu o Dajm, deu umagrande mordida, saboreando ocrocante que dava pontadas nosdentes, e abriu o álbum. O primeirorecorte era da revista HemmetsJournal : a história de uma assassinanos Estados Unidos dos anos 1940.Ela conseguira envenenar catorzevelhinhos com arsênico antes de serpresa, condenada e executada nacadeira elétrica. Ela pediu para ser

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executada com veneno, bastantelógico, mas o estado onde ela atuarautilizava a cadeira, e foi a cadeira oque se usou.

Este era um dos sonhos de Oskar:poder ver alguém sendo executadona cadeira elétrica. Ele havia lidoque o sangue começava a ferver,que o corpo se retorcia em ângulosimpossíveis. Imaginava tambémque os cabelos pegassem fogo, masnão tinha nenhuma confirmaçãodisso por escrito.

Mesmo assim , era o máximo .Ele continou folheando. O

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próximo recorte era do jornalAftonbladet e dizia respeito a umassassino sueco que desmembravaos corpos. Uma foto de passaporteruinzinha. Parecia uma pessoacomum. Mesmo assim, matara doismichês homossexuais na sauna dele,cortara os corpos com uma serraelétrica e enterrara tudo atrás dasauna. Oskar comeu o últimopedaço do Dajm e olhou de perto orosto do homem. Uma pessoacomum.

Podia ser eu daqui a vinte anos .

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Håkan encontrara um bom lugar

para ficar de guarda, de onde tinhauma clara visão da trilha no bosqueem ambas as direções. Mais nointerior do bosque, descobriu umabaixada escondida no terreno comuma árvore no meio e deixou abolsa com o equipamento ali. Ocilindro de alta pressão comhalotano estava pendurado numacorreia debaixo do seu sobretudo.

Agora era só esperar.

Jag ville också en gång bli stor

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och så förståndig som far ochmor[4]

Ele não ouvia ninguém cantar

essa canção desde a época de escola.Será que era Alice Tegnér? Vejamsó quantas canções bonitasdesapareceram, canções queninguém mais cantava. Tudo debelo que desaparecera.

Não se respeitava o belo. Coisacaracterística da sociedade de hoje.As obras dos grandes mestrespodiam no máximo ser usadas como

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referências irônicas ou para fazerparte de anúncios. Em A criação deAdão de Michelangelo, porexemplo, alguém pusera calçasjeans no lugar da centelha da vida.

O sentido da obra, da forma comoele via, eram esses dois corposmonumentais que terminavam emdois indicadores que quase , mas narealidade não se tocavam. Havia umespaço vazio de um milímetro entreeles. E nesse espaço vazio: a Vida.A enormidade escultural desseafresco e a riqueza de detalhes eramapenas uma moldura, uma obra

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secundária para acentuar ainda maiso vazio milimétrico no meio dela. Oponto vazio onde havia espaço paratudo.

E, no lugar dele, alguém puseracalças jeans.

Uma pessoa vinha pela trilha.Håkan se agachou, sentindo asbatidas do coração nos ouvidos.Não. Um homem velho com umcachorro. Erro em dobro. Por umlado, um cachorro que ele tinha queaquietar; por outro, a qualidaderuim.

Muito grito por pouca lã , disse

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ele que cortou o pelo do porco .Olhou o relógio. Dentro de duas

horas seria noite. Se não viessealguém que servisse dentro de umahora, ele tinha que pegar o primeiroque aparecesse. Precisava estar emcasa antes de escurecer.

O homem disse alguma coisa.Será que vira Håkan? Não, elefalava com o cachorro.

“Iiisso, como você estavaapertaaada , minha filha. Quando agente chegar em casa, vou te dar umpedaço de patê de fígado. Vaiganhar do papai uma bela fatia.”

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O cilindro com halotano seespremeu contra o peito de Håkanquando ele enterrou a cabeça nasmãos e suspirou. Pobres sereshumanos. Pobres seres humanossolitários num mundo sem beleza.

Håkan sentia frio. O ventoesfriara de tarde: ia apanhar a capade chuva da bolsa e vesti-la porcima da roupa para se proteger dovento. Não. Isso tiraria suaagilidade na hora em que precisavaser rápido. Além do mais, podialevantar suspeitas antecipadamente.

Passaram duas moças de uns

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vinte anos. Não. Não aguentavaduas. Conseguiu fisgar fragmentosda conversa.

— … que ela não vai tirá-loagora.

— … é um palhaço. Ele precisaentender que…

— … a culpa é dela, já que… nãocom anticoncepcional…

— Mas é que ele precisa…— … você pode imaginar… ele

como pai…Alguma colega que estava

grávida. Um garoto que não assumiaa responsabilidade. As coisas eram

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assim. O tempo todo. Todo mundosó pensava em si mesmo. Minhafelicidade, meu sucesso, era só oque se ouvia. Amor é depositarnossa vida aos pés de outra pessoa,e isso os indivíduos de hoje sãoincapazes de fazer.

O frio penetrava em suasarticulações, ele se atrapalharia sejalá de que jeito fizesse. Enfiou a mãono interior do casaco e apertou ogatilho do cilindro. Um chiado.Funcionava. Largou o gatilho.

Ficou mexendo com os braçospara a frente e para trás a fim de se

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aquecer. Tomara que chegue alguémagora. Sozinho. Consultou o relógio.Mais meia hora. Tomara que cheguealguém agora. Em nome da vida edo amor.

Mas eu quero no coração ser

criança semprePois às crianças o reino de Deus

pertence .

Já começara a anoitecer quando

Oskar acabou de folhear o álbuminteiro. Comera todos os doces.

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Como sempre, depois de tanto doce,ele se sentia empanturrado e com aconsciência pesada.

A mãe só chegava daqui a duashoras. Então iam jantar. DepoisOskar ia fazer o dever de inglês e dematemática. Em seguida ia ler umlivro ou ver televisão com a mãe.Nada de especial na tv hoje à noite.Depois iam beber chocolate quentee comer pão doce, conversar umpouco. E aí ele ia se deitar e terdificuldade de dormir de tãoangustiado que ficava com o diaseguinte.

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Se ele tivesse alguém para quemligar… Oskar podia , é claro, ligarpara Johan, esperar que ele nãoestivesse fazendo nada.

Johan era da sua classe e os doisse divertiam quando estavam juntos,mas, se houvesse uma alternativa,Oskar não era a escolha dele. EraJohan quem ligava para Oskarquando estava entediado, não ocontrário.

O apartamento estava emsilêncio. Não acontecia nada. Asparedes de cimento se fechavam aoseu redor. Ele estava sentado na

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cama com as mãos no colo, oestômago pesado de doces.

Como se fosse acontecer algumacoisa. Agora.

Oskar prendeu a respiração eaguçou os ouvidos. Um pavorpegajoso foi tomando conta dele demansinho. Alguma coisa seaproximava. Um gás incolor vazavadas paredes, ameaçava tomar aforma de algo, engoli-lo. Ele estavapetrificado, com a respiraçãosuspensa e os ouvidos aguçados.Esperando.

O momento passou. Oskar voltou

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a respirar de novo.Foi para a cozinha, bebeu um

copo d’água e apanhou a maior facaque havia na barra magnética.Testou o gume na unha do polegar,como o pai tinha ensinado. Cega.Passou a faca no amolador algumasvezes e testou de novo. Uma lascamicroscópica saiu da sua unha.

Agora sim .Oskar enrolou o jornal em volta

da faca fazendo uma bainhaprovisória, passou fita adesiva nelee pôs o embrulho entre o cós dascalças e o lado esquerdo do quadril.

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Apenas o cabo apontava para fora.Tentou andar. A lâmina estava nafrente da sua perna; ele virou a facapara baixo e a dispôs ao compridoda virilha. Desconfortável, masdava.

No corredor, vestiu o casaco.Lembrou-se em seguida de todos ospapéis de doces espalhados pelochão do quarto. Juntou os papéis,amassou e enfiou tudo no bolso docasaco, no caso de a mãe chegar emcasa antes dele. Podia deixar ospapéis embaixo de alguma pedra nobosque.

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Verificou mais uma vez para verse não havia deixado nenhumvestígio.

A brincadeira começara. Ele eraum serial killer temido. Cartorzepessoas já tinham sido mortas comsua faca afiada, isso sem deixar nemsequer uma pista. Nem mesmo umfio de cabelo, nenhum papel dedoce. Ele era temido pela polícia.

Agora ia para o bosque à procurada próxima vítima.

Estranhamente, ele já sabia seunome, que cara ela tinha. JonnyForsberg, com o cabelo longo e os

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olhos grandes e maus. Ele precisariaimplorar para ficar vivo, gritarcomo um porco, mas seria em vão.A faca dará a última palavra e ochão sorverá o sangue dele.

Oskar leu essas palavras numlivro e gostou delas.

“O chão sorverá o sangue dele.”Enquanto trancava a porta de casa

e saía do prédio com a mãoesquerda no cabo da faca, repetia afrase como se fosse um mantra.

O chão sorverá o sangue dele . Ochão sorverá o sangue dele .

A entrada que Oskar usara para

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chegar ao pátio estava na pontadireita do seu bloco, mas ele pegoua esquerda, passou por dois prédiose pela abertura onde os carrospodiam entrar. Saiu da parte internada fortaleza. Cruzou a Ibsengatan econtinuou descendo uma ladeira.Saiu da parte externa da fortaleza.Continuou em direção ao bosque.

O chão sorverá o sangue dele .Era a segunda vez neste dia que

Oskar se sentia quase feliz.

Faltavam apenas dez minutos

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para o prazo final estabelecido porHåkan, quando um garoto apareceusozinho na trilha. De uns treze,catorze anos, segundo o que elepodia ver. Perfeito. Pensou emcorrer agachado para a outra pontada trilha e ir ao encontro doescolhido.

Mas agora as pernas não queriammesmo sair do lugar. O meninoandava descontraído pela trilha enão havia muito tempo. A cadasegundo que passava, diminuía achance de que o desempenho fosseperfeito. Ainda assim, as pernas se

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negavam a se mexer. Ele ficouolhando paralisado enquanto oescolhido, o perfeito, seguia emfrente, em breve na altura dele, bemà sua frente. Em breve tarde demais.

Preciso . Preciso . Preciso .Se não fizesse, teria que se matar.

Não podia chegar em casa semnada. Era assim. Ou ele ou o garoto.Era só escolher.

Ele se pôs em movimento tardedemais. Agora vinha afoitotropeçando pelo caminho, bem nadireção do garoto, em vez de seaproximar calmamente do rapaz na

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trilha. Idiota. Só dá mancada. Agorao garoto ficaria desconfiado,vigilante.

— Olá! — exclamou para omenino. — Com licença!

O garoto parou. Pelo menos nãofugiu, ainda bem. Tinha que dizeralguma coisa, perguntar algo. Ele seaproximou do menino, que esperavareceoso na trilha.

— Perdão, mas… que horas são?O garoto olhou furtivamente para

o relógio de pulso de Håkan.— É que o meu parou.O corpo do garoto estava tenso

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quando ele consultou o relógio.Mais nada a fazer. Håkan enfiou amão dentro do sobretudo e pousou oindicador no gatilho do cilindroenquanto esperava pela resposta domenino.

Oskar desceu a ladeira perto da

gráfica e entrou na trilha do bosque.O nó no estômago desapareceu, foisubstituído por uma excitaçãoinebriante. No caminho para obosque, a fantasia tomou conta detudo ao redor e agora era realidade.

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Ele via o mundo através dosolhos de um assassino, pelo menosatravés dos olhos de um assassinoque a fantasia de um menino detreze anos era capaz de criar. Ummundo bonito. Um mundo ondeOskar tinha controle das coisas, queestremecia perante sua vontade.

Ele caminhava pela trilha dobosque procurando por JonnyForsberg.

O chão sorverá o sangue dele .Começou a escurecer e as árvores

o envolviam como se fossem umamultidão calada, vigiando os

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mínimos movimentos do assassino,temendo que uma delas fosse aeleita. Mas o assassino atravessou amultidão e deixou-a para trás; jáavistara sua vítima.

Jonny Forsberg estava numaelevação talvez a uns cinquentametros da trilha. Tinha as mãos nosquadris, o sorriso debochadoestampado na cara. Achava queseria como de costume. Que ia jogarOskar no chão, tapar o nariz dele eenfiar agulhas de pinheiros e musgoem sua boca, ou algo do tipo.

Mas ele se enganou. Não era

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Oskar quem vinha, era o Assassino,e a mão do Assassino apertavaagora o cabo da faca, preparando-se.

O Assassino se aproximou lenta ealtivamente de Jonny Forsberg,olhou-o nos olhos e disse: — Olá,Jonny.

— Olá, porquinho. Você tempermissão para ficar na rua a essahora?

O Assassino tirou a faca. E deu oprimeiro golpe.

— Quinze para as cinco, mais ou

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menos.— Certo. Obrigado.O garoto não foi embora. Ficou

olhando para Håkan, que tentou darum passo. O garoto não se mexia,acompanhava Håkan com os olhos.Isso aqui não deu certo.Naturalmente o menino estavadesconfiado. Uma pessoa chegarafazendo um estardalhaço danado nobosque para saber as horas e agoraparecia um Napoleão com a mãoenfiada no sobretudo.

— O que você tem aí?O garoto apontou com a cabeça

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na direção do coração de Håkan.Sua cabeça estava vazia, ele nãosabia o que fazer. Tirou o cilindrode alta pressão do casaco e mostrou-o para o garoto.

— E o que é isso?— Halotano.— E por que você anda com isso

por aí?— Porque… — Ele passou os

dedos na máscara bucal revestida deespuma e tentou pensar em algopara dizer. Não sabia mentir. Erasua desgraça. — Bem, porque… fazparte do meu trabalho.

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— Que tipo de trabalho?O garoto tinha relaxado um

pouquinho. Uma bolsa de esporteparecida com a que Håkan deixarana baixada estava na mão do garoto.Com a mão que segurava o cilindro,ele apontou na direção da bolsa.

— Você vai para o treino?Quando o garoto virou os olhos

para a bolsa, Håkan aproveitou achance.

Seus braços voaram, a mão queestava livre segurou a cabeça dogaroto, a máscara do cilindro foipressionada em sua boca e o gatilho

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foi apertado até o nível máximo.Ouviu-se um chiado como o de umacobra grande e o garoto tentousoltar a cabeça, mas ela estava presanas mãos de Håkan como seestivesse num torno.

O garoto se jogou para trás eHåkan foi junto. O som sibilante dacobra abafou todos os outros ruídosquando os dois caíram na serragemda trilha. Desesperadamente, Håkanmanteve a cabeça do garotoapertada entre suas mãos para amáscara não sair do lugar enquantoeles rolavam pela trilha.

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Depois de respirar fundo algumasvezes, o corpo do garoto começou arelaxar. Håkan segurava a máscarano lugar e olhava ao redor.

Nenhuma testemunha .O chiado do cilindro encheu seu

cérebro como se fosse umaenxaqueca fortíssima. Travou ogatilho e soltou com cuidado a mãolivre, pegou a tira elástica e passou-a em volta da cabeça do garoto. Amáscara estava firme no lugar.

Levantou-se com os braçosdoloridos e olhou para a presa.

O garoto estava deitado com os

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braços afastados do corpo, amáscara cobria-lhe o nariz e a boca,o recipiente com halotano estava emcima do seu peito. Håkan olhou aoredor mais uma vez, apanhou abolsa do garoto e depositou-a emcima da barriga dele. Depoislevantou a carga toda nos braços ecarregou tudo para a baixada.

O garoto era mais pesado do queimaginava. Muitos músculos. Pesoinconsciente.

Respirava com dificuldade depoisdo esforço de carregar o garoto paraa baixada enquanto o chiado do

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cilindro penetrava em seus ouvidoscomo as serras de uma faca.Resfolegou mais alto de propósitopara não ter de ouvir o barulho.

Com os braços dormentes e osuor escorrendo-lhe pelas costas,chegou por fim à baixada. Alidepositou o garoto no ponto maisfundo do terreno. Em seguida sedeitou ao lado dele. Fechou o gáshalotano e tirou a máscara davítima. Tudo ficou em silêncio. Opeito do garoto subia e descia.Dentro de oito minutos, no máximo,o garoto acordaria. Mas isso não

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aconteceu.Håkan estava deitado ao lado do

rapaz, estudou seu rosto, acariciou-ocom o indicador. Depois foi paramais perto do menino, abraçou ocorpo molenga e puxou-o para bemjunto de si. Beijou-ocarinhosamente no rosto, sussurrou“perdão” no ouvido dele e selevantou.

As lágrimas queriam transbordarquando ele viu o corpo indefeso nochão. Håkan ainda podia parar.

Universos paralelos. Um consolopara a mente.

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Havia um universo paralelo ondeHåkan não fazia isso que estavaprestes a fazer. Um universo ondeele ia embora e deixava o meninoacordar, imaginando o que tinhaacontecido.

Mas não neste universo. Nesteuniverso ele ia agora até a bolsa e aabria. Não podia demorar.Rapidamente, vestiu a capa dechuva por cima da roupa e apanhouos utensílios. A faca, uma corda, umfunil grande e um garrafão deplástico de cinco litros.

Depositou tudo no chão ao lado

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do garoto e contemplou o corpojovem uma última vez. Depoisapanhou a corda e começou atrabalhar.

Oskar golpeou, golpeou e

golpeou. Depois do primeiro golpe,Jonny entendeu que essa não seriauma ocasião igual às outras. Com osangue jorrando de um corteprofundo na bochecha, ele tentouescapar, mas o Assassino foi maisrápido. Com algumas incisõesligeiras, rompeu os tendões da parte

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de trás dos joelhos da vítima eJonny caiu no chão, ficou secontorcendo no musgo e suplicandopor clemência.

Mas o Assassino não se deixoupersuadir. Jonny gritou que nem…um porco quando o Assassino sejogou em cima dele e o chão sorveuseu sangue.

Uma facada por aquilo nobanheiro hoje . Uma pela vez quevocê me enganou no pôquer de nósdos dedos . Seus lábios , eu cortofora por causa de tudo de ruim quevocê me falou .

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Jonny vazava por todos osburacos e não podia mais dizer oufazer nada de mal. Já estava mortohavia muito tempo. Oskar finalizoufurando-lhe o globo oculararregalado, tchuqui , tchuqui ,levantou-se e contemplou a obra.

Pedaços grandes da árvoretombada e carcomida, que tinhamsido o Jonny caído, haviam sesoltado e o tronco estava perfuradopelos golpes. Farpas espalhadas aopé da árvore saudável que tinha sidoo Jonny quando ele estava em pé.

A mão direita, a mão da faca,

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doía. Um corte pequeno quase emcima do pulso; a lâmina deve terescorregado na hora em que eledesferia os golpes. Não era umafaca boa para essa finalidade.Lambeu a mão e limpou a feridacom a língua. Era o sangue de Jonnyque ele bebia.

Limpou o resto do sangue nabainha de jornal, enfiou a faca ali epôs-se a caminho de casa.

O bosque, que alguns anos atrásparecia ameaçador, uma toca deinimigos, era agora o lar e o refúgiode Oskar. As árvores se afastaram

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em sinal de respeito quando elepassou por elas. Não sentia umpingo de medo, embora jácomeçasse a escurecer de verdade.Nenhuma angústia em relação aodia seguinte, ele podia trazer o quefosse. Dormiria bem hoje à noite.

Já de volta ao pátio do prédio,sentou-se por um instante no cantode uma caixa de areia para seacalmar antes de ir para casa.Amanhã arranjaria uma facamelhor, uma faca com punho ou,como era mesmo o nome daquilo…punho em cesto, assim não se

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cortaria de novo. Porque ele fariaisso mais vezes.

Era uma brincadeira boa.

Quinta-feira, 22 de outubro

A mãe tinha lágrimas nos olhosquando pegou a mão de Oskar namesa da cozinha e apertou-a comforça.

— Você está terminantementeproibido de se meter no bosque, estáme ouvindo?

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Um garoto da idade de Oskartinha sido morto em Vällingby nanoite anterior. Os jornais da tardehaviam noticiado e a mãe estavatotalmente fora de si quando chegouem casa.

— Podia ter sido… nem queropensar nisso.

— Mas foi em Vällingby.— E você acha que alguém que

ataca crianças não ia pegar o metrôe andar mais duas estações? Ou vira pé? Vir para Blackeberg e fazer amesma coisa mais uma vez? Vocêcostuma ficar no bosque?

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— Não.— Você não vai sair daqui do

pátio a partir de hoje, enquantoesse… Até a polícia pegar essehomem.

— Então eu não vou à escola?— Vai sim, você vai à escola.

Mas depois da escola você vemdireto para casa e não vai sair doprédio até eu chegar em casa.

— E depois?A tristeza nos olhos da mãe

misturou-se com a raiva.— Você quer ser assassinado,

quer ? Quer se meter no bosque e

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ser morto, e eu aqui aflita esperandoenquanto você está caído lá nobosque e é… esquartejadobestialmente por alguém…

As lágrimas transbordaram dosseus olhos. Oskar pôs a mão emcima da dela.

— Eu não vou para o bosque.Prometo.

A mãe acariciou o rosto dele.— Coração, você é tudo o que

tenho. Nada pode lhe acontecer.Caso contrário, eu também morro.

— Ahã. Como é que foi?— O quê?

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— Isso aí. O assassinato.— Sei lá. Ele foi assassinado por

algum maluco com uma faca. Estámorto. A vida dos pais estádestruída.

— Não está no jornal?— Não aguentei ler.Oskar apanhou o jornal Expressen

e o folheou. Quatro páginasdedicadas ao assassinato.

— Você não vai ler isso.— Não, só estou dando uma

olhada. Posso ficar com o jornal?— Você não deve ler sobre isso.

Não faz bem, junto com todas essas

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histórias de terror que você vivelendo.

— Eu só vou olhar a programaçãoda tv.

Oskar se levantou para ir para oquarto, com o jornal nas mãos. Amãe deu um abraço desajeitado nofilho e apertou seu rosto molhadono dele.

— Meu filho, você entendeminha preocupação, não entende?Se alguma coisa acontecer comvocê…

— Eu sei, mãe. Eu sei. Eu tomocuidado.

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Oskar retribuiu um pouco oabraço e depois se soltou comcuidado dos braços da mãe; foi parao quarto enquanto limpava do rostoas lágrimas dela.

Isso aqui era o máximo.Se ele entendeu bem, o garoto

tinha sido morto quase ao mesmotempo que ele estava brincando nobosque. Infelizmente não fora JonnyForsberg o assassinado, mas umgaroto desconhecido de Vällingby.

Havia um clima de enterro emVällingby na parte da tarde. Eletinha lido as manchetes dos jornais

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antes de ir para lá, e talvez fosseapenas fruto da sua imaginação,mas achou que as pessoas na praçafalavam mais baixo, andavam maisdevagar do que de costume.

Na loja de ferragens, Oskarsurrupiara uma faca de caçaextremamente bonita no valor detrezentos contos. Tinha umaexplicação caso fosse pego com amão na massa.

— Desculpe, tio. Mas é que euestou com muito medo do assassino.

Ele podia com certeza tambémforçar umas lágrimas, caso a coisa

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dependesse disso. Eles iam deixá-loir. Sem sombra de dúvida. MasOskar não foi pego e a faca estavaagora no esconderijo perto do álbumde recortes.

Ele precisava pensar.Será que sua brincadeira tinha de

algum modo provocado oassassinato? Oskar achava que não,mas a hipótese não podia sereliminada. Os livros que lia estavamcheios dessas coisas. Umpensamento num lugar causava umacontecimento em outro.

Telecinesia, vodu.

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Mas exatamente onde, quando eprincipalmente como aconteceu oassassinato? Caso fossem muitosgolpes desferidos num corpo caído,então Oskar precisava de fatoconsiderar a hipótese de quesimplesmente tinha um poderterrível nas mãos. Um poder que eletinha que aceitar e aprender acontrolar.

Ou será que é … a árvore que é… o intermediário?

A árvore carcomida que ele tinhaesfaqueado. Podia haver algumacoisa especial justamente com essa

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árvore, aquilo que fosse feito neladepois… se espalhava.

Detalhes.Oskar leu todas as reportagens

sobre o assassinato. O policial quefoi em sua escola falar sobre drogasaparecia na foto. Ele não podia fazernenhum comentário. Peritos doLaboratório Nacional de CiênciaForense foram chamados paracoletar os vestígios. Era necessárioaguardar. O retrato do garoto mortofoi tirado do anuário da escola.Oskar nunca tinha visto o meninoantes. Ele parecia um Jonny ou um

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Micke. Vai ver que havia um Oskarna escola de Vällingby que agoraestava livre.

O garoto estava a caminho dotreino de handebol na quadra deVällingby e nunca chegou lá. Otreino começava às cinco e meia. Omenino provavelmente saiu de casaperto das cinco horas. Mais oumenos nesse intervalo. Oskar sentiude repente uma tontura. Batiacertinho. E o garoto tinha sidoassassinado no bosque.

Será que é isso? Sou eu quem …Uma garota de dezesseis anos

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tinha encontrado o corpo por voltadas oito da noite e chamado apolícia de Vällingby. Ela estavaagora “muito chocada” e sobcuidados médicos. Nada sobre oestado do corpo. Mas o fato de agarota estar “muito chocada”significava que o corpo havia sidomutilado de alguma maneira. Docontrário, só escreveriam“chocada”.

O que a garota estava fazendo nobosque, se já estava escuro?Provavelmente algo semimportância. Tinha ido pegar pinha,

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qualquer coisa. Mas por que nãohavia nada no jornal sobre como omenino foi morto? A única coisaque havia era uma foto do local docrime. A faixa de isolamento comlistras brancas e vermelhas em voltade uma baixada sem graça nobosque, com uma árvore grande nomeio. No dia seguinte ou nopróximo haveria uma foto domesmo lugar, mas nesse caso comum monte de velas acesas e cartazescom “por quê?” e “saudades”. Oskarjá conhecia esse ritual; havia maisde um caso como este em seu

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álbum.Provavelmente tudo não passou

de uma coincidência. Mas e se .Oskar colou o ouvido na porta. A

mãe estava lavando louça. Ele sedeitou de barriga para baixo nacama e vasculhou até achar a facade caça. O cabo estava talhado deforma a moldar-se à mão e a facapesava com certeza três vezes maisque a faca de cozinha que ele tinhausado no dia anterior.

Oskar se levantou e foi para omeio do quarto com a faca na mão.Era bonita, dava poder à mão que a

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segurava.Tilintar de louça na cozinha. Ele

desferiu alguns golpes no ar. OAssassino. Quando tivesseaprendido a controlar sua força,Jonny, Micke e Tomas não iriamnunca mais atormentá-lo. Estavaprestes a dar mais uma investida,mas se deteve. Alguém podia vê-lodo pátio. Estava escuro lá fora e aluz do quarto, acesa. Olhou derelance para o pátio, mas viu apenaso próprio reflexo na vidraça dajanela.

O Assassino.

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Oskar guardou a faca de volta noesconderijo. Isso aqui era só umabrincadeira. Essas coisas nãoaconteciam no mundo real. Mas eleprecisava saber de detalhes. Precisasaber disso agora .

Tommy estava sentado na

poltrona folheando uma revistasobre motos, balançando a cabeça eresmungando. De vez em quandolevantava a revista para Lasse eRobban sentados no sofá e mostravauma foto especialmente

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interessante, com um comentáriosobre o volume do cilindro e avelocidade máxima. A lâmpada noteto refletia no papel lustroso,jogando reflexos pálidos nasparedes de cimento revestidas demadeira.

Ele deixou os outros dois naexpectativa.

A mãe de Tommy namorava comStaffan, que trabalhava na polícia deVällingby. Tommy não gostava deStaffan. Um tipo que vivia com odedo em riste, um puxa-saco. Ereligioso, ainda por cima. Mas,

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através da mãe, Tommy ficousabendo de umas coisas que Staffannão devia ter contado para a mãe eque ela não devia ter contado paraTommy, mas…

Ele ficou sabendo, por exemplo, aquantas andava a investigação doroubo na loja de aparelhos de somperto da praça Island. Roubo queele, Robban e Lasse tinhampraticado.

Nenhuma pista dos criminosos. Amãe dissera exatamente assim:“Nenhuma pista dos criminosos”.Palavras de Staffan. Eles nem

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sequer tinham a descrição do carro.Tommy e Robban tinham

dezesseis anos e estavam noprimeiro ano do ensino médio.Lasse tinha dezenove e algumproblema na cabeça; trabalhavaorganizando chapas metálicas na lmEricsson em Ulvsunda. Mas tinhacarteira de motorista. E um Saab 74branco cujo número da placa elestinham mudado com uma canetahidrográfica antes de arrombar aloja. Perda de tempo, já queninguém tinha visto o carro.

Armazenaram os objetos

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roubados no abrigo antiaéreo forade uso em frente ao depósito noporão que era o local do clube deles.Romperam a corrente da porta comuma chave micha e puseram umcadeado novo. Eles não sabiamdireito como venderiam aquilo tudo,o arrombamento em si é que tinhasido a sensação. Lasse vendeu umaparelho de fita cassete para umcolega de trabalho por duzentoscontos, mas isso era tudo.

Era mais seguro ficar na delescom as mercadorias por um tempo.Especialmente não deixar que Lasse

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fosse cuidar da venda, já que eletinha… o miolo um pouco mole ,como dizia a mãe. Mas o rouboacontecera havia duas semanas e,no momento, a polícia estavaocupada com outros casos.

Tommy folheou a revista e sorriupara si mesmo. É isso. Um monte deoutros casos para cuidar. Robbantamborilou com os dedos,produzindo estalos na coxa.

— Ande logo. Desembuche.Tommy segurou a revista no alto

para ele.— Kawasaki. Trezentos

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centímetros cúbicos. Injeção diretae…

— Pare com isso. Desembuche.— O quê… sobre o assassinato?— É!Tommy mordiscou o lábio; fingia

estar pensando.— Como é que foi mesmo…Lasse inclinou o corpo comprido

para a frente no sofá e se dobrouparecendo uma navalha.

— Ah! Fale logo!Tommy deixou o jornal de lado e

olhou bem na cara de Lasse.— Tem certeza de que você quer

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ouvir? É bem sinistro.— Ah!Lasse estufou o peito, mas

Tommy viu a aflição em seus olhos.Era só fazer cara feia, falar com vozesquisita ou se negar a acabar decontar para que ele ficasse commedo de verdade. Uma vez, Tommye Robban tinham se pintado dezumbis com a maquiagem da mãede Tommy, desatarraxado alâmpada do teto e esperado porLasse. Tudo acabou com Lasse seborrando nas calças e Robban com oolho roxo na mesma região onde se

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pintara com uma sombra azul-escura. Depois daquele dia elesagiam com mais cautela quandoassustavam Lasse.

Agora Lasse se remexia no sofá ecruzou os braços no peito paramostrar que estava preparado para oque desse e viesse.

— Bem… isso aqui não foi umassassinato comum, se a gente usaresse termo. Eles acharam o cara…pendurado numa árvore.

— Como assim? Pendurado? —perguntou Robban.

— É, pendurado. Mas não pelo

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pescoço. Pelos pés. Ou seja, eleestava pendurado de cabeça parabaixo. Na árvore.

— Mas como? É que não semorre disso.

Tommy ficou olhando por umbom tempo para Robban, como seele tivesse feito uma observaçãointeressante, e prosseguiu: — É. Éverdade. Mas é que a garganta docara estava cortada. E disso a gentemorre. A garganta toda. Cortada.Como um… melão. — Ele passou oindicador no pescoço para mostrarcomo a faca fizera.

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A mão de Lasse voou de repentepara a garganta, como para protegê-la. Sacudiu devagar a cabeça de umlado para o outro. — Mas por queele estava pendurado desse jeito?

— Bem, o que você acha?— Sei lá.Tommy beliscou o lábio inferior

e fez uma cara de quem pensava.— Agora vocês vão saber da

parte esquisita da história. Alguémcorta a garganta de uma pessoa paraque ela morra. Então escorrebastante sangue, não é mesmo? —Lasse e Robban balançaram a

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cabeça concordando. Tommydesfrutou por um instante daexpectativa deles antes de soltar abomba.

— Mas lá no chão… embaixo deonde o cara estava pendurado. Nãohavia quase sangue nenhum. Apenasumas gotas. E devem ter saídovários litros de sangue enquanto eleestava pendurado ali.

O porão ficou em silêncio. Lassee Robban olhavam fixamente para afrente com os olhos vazios, até queRobban se endireitou no sofá edisse: — Eu sei. Ele foi morto em

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outro lugar. E depois pendurado ali.— Ahã. Mas nesse caso por que o

assassino pendurou o garoto?Quando se mata alguém, a gentequer se livrar do corpo.

— Ele pode ser… doente dacabeça.

— Pode ser. Mas eu acho outracoisa. Vocês já viram nosmatadouros? Como fazem com osporcos? Antes de esquartejar obicho, tiram todo o seu sangue. Esabem como eles fazem isso?Penduram o porco de cabeça parabaixo. Num gancho. E cortam o

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pescoço dele.— Então você quer dizer…

assim, que o cara… que o assassinoia abater o garoto?

— Hããã? — Lasse olhouhesitante para Tommy e depois paraRobban e para Tommy de novo paraver se eles não estavam gozandocom sua cara. Não viu nada queindicasse isso e disse: — Elesfazem assim? Com os porcos?

— É, o que você achava?— Que era uma espécie de…

máquina.— E você acha que por acaso

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seria melhor?— Não, mas… eles ainda estão

vivos ? Quando… penduram osbichos?

— Sim. Estão vivos. Eesperneiam. E gritam.

Tommy imitou um porcogritando e Lasse se afundou no sofá,olhando para o colo. Robban selevantou, deu alguns passos para afrente e para trás e sentou-se no sofáde novo.

— Mas alguma coisa não bate. Seo assassino quisesse abater o garoto,então devia haver sangue.

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— Foi você quem disse que elequeria abater o garoto. Eu não achoque foi isso.

— O.k. E o que você acha?— Acho que ele estava era atrás

do sangue. Que foi por isso quematou o garoto. Para pegar sangue.Que carregou o sangue com ele.

Robban balançou a cabeçalentamente e cutucou com o dedo acasca de ferida deixada por umaespinha grande no canto da boca. —Mas para quê? Para beber o sangue,ou o quê?

— É. Por exemplo.

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Tommy e Robban ficaramabsortos imaginando o assassinato eo que acontecera depois dele.Passado um tempo, Lasse levantou acabeça e lançou um olharinterrogativo para eles. Tinhalágrimas nos olhos.

— Eles morrem rápido , osporcos?

Tommy olhou bem sério nosolhos dele.

— Não.

— Eu vou dar uma saída.

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— Não…— Só vou ficar no pátio.— Você não vai para lugar

nenhum fora do pátio?— Claro que não.— Eu chamo você quando…— Não. Eu venho. Estou com o

relógio. Não me chame.Oskar vestiu o casaco e o gorro.

Deteve-se com um dos pés quasedentro da bota. Foi em silêncio parao quarto, apanhou a faca e a enfioudentro do casaco. Amarrou ossapatos. A voz da mãe veio de novoda sala de estar.

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— Está frio lá fora.— Eu estou com o gorro.— Na cabeça?— Não. No pé.— Não brinque com isso. Você

sabe como são…— Até logo.— … seus ouvidos.Ele saiu e consultou o relógio.

Sete e quinze. Faltavam quarenta ecinco minutos para começar oprograma na tv. ProvavelmenteTommy estava lá embaixo no porão,mas Oskar não tinha coragem de iraté lá. Tommy era legal, mas os

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outros… Especialmente se tinhamcheirado cola, podiam ter umasideias esquisitas.

Então desceu para o parquinho nomeio do pátio. Duas árvores detronco grosso que às vezes eramusadas como trave de gol, um trepa-trepa com escorregador, uma caixade areia e um balanço com trêspneus de carro pendurados emcorrentes. Sentou-se num dos pneuse balançou devagar.

Oskar gostava daqui à noite. Aoseu redor, o quadrado grande decentenas de janelas com as luzes

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acesas e ele sentado ali no escuro.Em segurança e sozinho ao mesmotempo. Tirou a faca da bainha. Alâmina era tão reluzente que elepodia ver as janelas refletidas nela.A lua.

Uma lua ensanguentada …Oskar se levantou do balanço,

aproximou-se de fininho de umaárvore e falou com ela.

— O que é que você está olhando,idiota? Quer morrer, hein?

A árvore não respondeu e Oskarenfiou a faca nela, com cuidado.Não queria estragar o gume

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reluzente.— É isso que dá. Ficar me

encarando.Ele girou a faca, fazendo uma

lasquinha se soltar da árvore. Umpedaço de carne. Sussurrou: —Agora grite que nem um porco.

Ele se deteve. Achou que ouviraalguma coisa. Com a faca junto doquadril, olhou ao redor. Levantou afaca na altura dos olhos e aexaminou. A ponta estava tãoreluzente quanto antes. Fez dalâmina um espelho e a virou nadireção do trepa-trepa. Alguém

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estava ali. Alguém que não estavaali agora há pouco. Um contornodifuso no metal limpo. Oskarabaixou a faca e olhou diretamentepara o trepa-trepa. Isso mesmo. Masnão era o assassino de Vällingby.Era uma criança.

A luz foi suficiente para mostrarque era uma menina que ele nuncavira antes ali no pátio. Oskar deuum passo na direção do trepa-trepa.A menina não se mexeu. Apenascontinuou lá em cima olhando parao garoto.

Ele deu mais um passo e de

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repente ficou com medo. De quê?De si mesmo. Com a faca na mão,aproximou-se da menina paraenfiar-lhe a faca. É claro que nãoera isso. Mas parecia que era, porum instante. Como é que ela nãoficou com medo?

Ele parou, empurrou a faca devolta na bainha e a enfiou dentro docasaco.

— Oi.A menina não respondeu. Oskar

estava tão perto agora que podia verque o cabelo dela era escuro, o rostopequeno, os olhos grandes. Olhos

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bem abertos que olhavamcalmamente para ele. As mãosestavam pousadas no parapeito dotrepa-trepa.

— Eu disse oi.— Eu ouvi.— Então por que você não

responde?A menina deu de ombros. Sua voz

era tão clara quanto Oskar achouque seria. Parecia a voz de alguémda idade dele.

Ela tinha uma cara estranha. Ocabelo de tamanho médio, preto. Orosto redondo, nariz pequeno. Como

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uma dessas bonecas de papel daseção infantil da revista HemmetsJournal . Muito… bonita. Mas haviaalguma coisa de estranho. Ela nãoestava com gorro nem casaco.Apenas uma blusa rosa de panoleve, embora fizesse muito frio.

A menina apontou com a cabeçana direção da árvore que Oskargolpeara.

— O que você está fazendo?Oskar ficou vermelho, mas não

dava para ver no escuro, não émesmo?

— Treinando.

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— Para quê?— Se o assassino vier.— Que assassino?— O de Vällingby. O que matou

aquele garoto a facadas.A menina soltou um suspiro e

levantou os olhos para o céu. Depoisse inclinou para a frente.

— Você está com medo?— Não, mas um assassino, é

que… é que é bom a gente poder…se proteger. Você mora aqui?

— Moro.— Onde?— Ali. — A menina apontou para

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a portaria do prédio ao lado do deOskar. — Do seu lado…

— Como você sabe onde eumoro?

— Já vi você na janela.Um calor subiu às bochechas de

Oskar. Enquanto tentava pensar emalguma coisa para dizer, a meninapulou do trepa-trepa e aterrissou nafrente dele. Um salto de mais dedois metros.

Ela deve fazer ginástica olímpicaou algo desse tipo .

Ela era quase do mesmo tamanhodele, porém muito mais magra. A

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blusa rosa se apertava em volta docorpo delgado, que não apresentavao menor vestígio de peitos. Seusolhos eram negros, muito grandesno rostinho pálido. Ela levantouuma das mãos no ar à frente dele,como se quisesse deter algumacoisa que se aproximava. Seusdedos eram longos, finos comoramos de árvore.

— Eu não posso ser sua amiga.Só para você saber.

Oskar cruzou os braços no peito.Sentiu debaixo de uma das mãos ocontorno do cabo da faca no casaco.

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— Como assim?Um dos cantos da boca da menina

se levantou, como numa espécie desorriso.

— É preciso ter motivo ? Sóestou dizendo como as coisas são.Para você saber de uma vez.

— O.k., tudo bem.A menina se virou e se afastou de

Oskar, na direção do prédio. Quandoela já tinha dado alguns passos,Oskar perguntou: — E você achaque eu queria ser seu amigo? Você ébesta, é isso que você é.

A menina parou. Ficou imóvel

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por um instante. Em seguida deumeia-volta e foi até Oskar. Parou nafrente dele. Entrelaçou os dedos edeixou os braços ficarem caídos.

— O que foi que disse?Oskar cruzou ainda mais os

braços no peito, apertou na mão ocabo da faca e olhou para o chão.

— Você é besta… porque ficadizendo essas coisas.

— Verdade?— É.— Então desculpe. Mas é assim

que tem que ser.Eles estavam imóveis, a meio

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metro um do outro. Oskar continuouolhando para o chão. Um cheiroestranho exalava do corpo dela.

Fazia um ano que o cachorrodele, Bobby, tivera uma infecçãonas patas e eles tiveram quesacrificá-lo. No último dia, Oskarnão fora à escola para ficar em casavárias horas deitado ao lado docachorro doente, despedindo-sedele. Bobby tinha naquela ocasião omesmo cheiro da menina. Oskarfranziu o nariz.

— É você que está com essecheiro estranho?

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— Acho que sim.Oskar levantou os olhos do chão.

Arrependeu-se do que dissera. Elaparecia tão… frágil naquela blusade pano fino. Ele destrançou osbraços cruzados e fez um gesto nadireção dela. — Você não está comfrio?

— Não.— Por quê?A menina franziu as

sobrancelhas, contraiu o rosto e porum instante pareceu muitíssimomais velha do que era. Como umavelhinha a ponto de chorar.

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— Acho que eu esqueci como sefaz.

A menina se virou rapidamente efoi para a portaria do prédio. Oskarcontinuou onde estava, seguindo-acom os olhos. Quando ela chegou nafrente da porta pesada, Oskar achouque precisaria das duas mãos paraabri-la. Mas, pelo contrário, amenina pegou a maçaneta com umadas mãos e escancarou a porta demodo que ela bateu na trave demetal do chão, quicou de volta e sefechou atrás da garota.

Ele enfiou as mãos nos bolsos do

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casaco e ficou triste. Pensou emBobby. Na cara do cachorro deitadono caixão que o pai confeccionara.Na cruz que ele tinha feito na aulade marcenaria e que se quebrouquando eles a enfiaram no chãocongelado.

Ele devia fazer outra.

Sexta-feira, 23 de outubro

Håkan estava no metrô de novo, acaminho do centro da cidade. Dez

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notas de mil coroas enroladas epresas com um elástico estavam nobolso da calça. Com esse dinheiro,iria fazer uma coisa bonita. Salvariauma vida.

Dez mil coroas era muitodinheiro e, se a gente considerasseas campanhas da Save the Childrensobre como “Mil coroas podemalimentar uma família inteiradurante um ano” etc., então dez mildevia ser o bastante para salvar umavida aqui na Suécia, não é?

Mas a vida de quem? Onde?Não se podia dar o dinheiro na

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mão do primeiro viciado queaparecesse e esperar que… não. Edevia ser alguém jovem. Ele sabiaque era uma bobagem, mas o ideal éque fosse uma dessas criançaschorando como naqueles quadros.Uma criança que recebia o dinheirocom lágrimas nos olhos e… e oquê?

Saltou na estação Odenplan semsaber por que e desceu para aBiblioteca Municipal. Na época emque morava em Karlstad e eraprofessor de sueco do sétimo aonono ano, e ainda tinha uma casa

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para morar, a Biblioteca Municipalde Estocolmo era conhecida comoum… lugar bom.

Foi só quando viu a rotundagrande da biblioteca, famosa emfotos de livros e jornais, que soubeo motivo de ter saltado ali. Porqueera um bom lugar. Alguém de suasrelações, provavelmente Gert,contara como se fazia para comprarserviços sexuais ali.

Håkan nunca fizera isso. Comprarsexo.

Uma vez Gert, Torgny e Oveconseguiram um menino cuja mãe

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havia sido trazida do Vietnã por umconhecido de Ove. O menino deviater uns doze anos e sabia o que seesperava dele, recebera um bomdinheiro para isso. Mesmo assim,Håkan não conseguiu. Bebericou doBacardi com coca-cola e se delicioumuito com o corpo nu do garotoenquanto ele se retorcia na salaonde eles tinham se reunido…

Mas não foi além disso.Os outros tinham sido chupados

na devida ordem pelo menino, mas,quando chegou a vez de Håkan, elesentiu um aperto no estômago. A

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situação toda era asquerosa demais.A sala cheirava a excitação, bebidaalcoólica e germes. Uma gota doesperma de Ove reluzia na face domenino. Håkan afastou a cabeça dogaroto quando ele se inclinou sobresua região pélvica.

Os outros proferiram insultos,xingaram-no, fizeram ameaças. Eletinha sido testemunha, eraconivente. Zombaram dele porcausa dos seus escrúpulos, mas essenão foi o problema. É que tudoaquilo era muito feio. O únicocômodo do apartamento de Åke, as

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quatro poltronas descombinadasdispostas especialmente ali para aocasião, a música de conjuntosbregas tocando no aparelho de som.

Håkan pagou sua parte nadiversão e nunca mais viu os outros.Tinha suas revistas, suas fotos, seusfilmes. Já era o bastante.Provavelmente, ele tinhaescrúpulos, que apenas nessaocasião se manifestaram numaaversão intensa à situação.

Então por que estou indo para aBiblioteca Municipal?

Pegaria um livro emprestado. O

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incêndio de três anos atrás tinhadevorado toda a sua vida, entreoutras coisas seus livros. Isso. Ajoia da rainha de Almqvist, podiapegá-lo emprestado antes de fazer aboa ação.

A biblioteca estava calma naparte da manhã. Homens idosos eestudantes, na maioria. Eleencontrou rapidamente o livro queprocurava. Leu as primeiraspalavras:

Tintomara! Duas coisas sãobrancas

Inocência — Arsênico

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e depositou o compêndio de volta naprateleira. Uma sensação ruim.Lembrava sua vida antiga.

Ele tinha adorado esse livro, até outilizara na sala de aula. Ler suaspalavras introdutórias lhe despertoua saudade de uma poltrona deleitura. E poltronas de leituraestariam numa casa que era sua,uma casa cheia de livros, e ele teriaum trabalho de novo, teria e queria.Mas Håkan encontrara o amor eesse amor agora ditava as regras.Nada de poltrona.

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Ele esfregou as mãos uma naoutra como para apagar o livro queelas tinham segurado e entrou numsalão lateral.

Havia uma mesa comprida compessoas lendo. Palavras, palavras emais palavras. No fundo do salãoestava sentado um garoto de casacode couro se balançando na cadeiraenquanto folheava desinteressadoum livro de ilustrações. Håkan sedirigiu para lá e fingiu estudar aprateleira com livros de geografia,de vez em quando olhavafurtivamente para o menino. Por

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fim, o garoto levantou os olhos eencontrou os dele. Arqueou assobrancelhas como se perguntasse:Quer?

Não, é claro que ele não queria. Omenino tinha uns quinze anos, umrosto achatado de europeu do Leste,espinhas, olhos fundos e puxados.Håkan deu de ombros e saiu dosalão.

Lá fora, na entrada principal, omenino conseguiu alcançá-lo. Fezum gesto com o polegar eperguntou: —Fire?— Håkansacudiu a cabeça.

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— Don ’t smoke .— Okey .O menino apanhou um isqueiro

de plástico, acendeu um cigarro,olhou para ele através da fumaçacom os olhos apertados. —Whatyou like?

— No , I …— Young? You like young?Ele se afastou do menino e da

entrada principal, onde qualquerpessoa podia aparecer. Precisavapensar. Não acreditava que seria tãofácil assim. É que tinha sido só umaespécie de brincadeira, ver se era

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verdade o que Gert dissera.O menino foi atrás, ficou ao seu

lado perto do muro de pedra.— How? Eight, nine? Is difficult ,

but …— No !Será que ele tinha cara de ser tão

depravado assim? Besteira. NemOve nem Torgny não pareciam nemum pouco… diferentes. Homenscomuns com trabalhos comuns. SóGert, que vivia de uma herançadeixada pelo pai e podia se permitirqualquer coisa , começara, depoisdas muitas viagens para o exterior, a

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ter um aspecto bem nojento mesmo.Uma frouxidão ao redor da boca,uma película na frente dos olhos.

O menino se calou quando Håkanlevantou a voz e o examinou com osolhinhos que eram dois rasgos. Deumais uma pitada no cigarro, jogou-ono chão e pisou nele, abriu osbraços.

— What?— No , I just …O menino deu a metade de um

passo, aproximando-se de Håkan.— What?— I … maybe … twelve?

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— Twelve? You like twelve?— I … yes .— Boy .— Yes .— Okey . You wait . Number two .— Excuse me?— Number two . Toilet .— Oh . Yes .— Ten minutes .O menino abriu o zíper do casaco

de couro e desapareceu escadaabaixo.

Doze anos . Banheiro , númerodois . Dez minutos .

Isso era uma burrice muito, muito

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grande. E se viesse um policial?Eles deviam saber o que se passavaaqui, depois de tantos anos. Entãoele estava frito. Eles ligariam com otrabalho que executara dois diasatrás e seria o fim. Não podia fazerisso.

Vou ao banheiro dar uma olhada, só isso.

Os banheiros estavam vazios. Ummictório e três sanitários. O númerodois era provavelmente o do meio.Ele enfiou uma moeda de uma coroana fechadura, abriu a porta e entrou.Fechou o banheiro e sentou-se na

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privada.As portas do sanitário estavam

cheias de pichações. Não era o quese esperava de uma bibliotecamunicipal. Uma e outra citaçãoliterária:

harry me, marry me, bury me,bite memas a maioria se compunha dedesenhos obscenos e piadas:

melhor uma bola no canal do quebolotas frias na parte anal.

tudo é fantástico com o baixo-ventre RASPADO.

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Também havia uma quantidade

extraordinária de números detelefone para os quais era possívelligar caso tivessem desejosespeciais. Alguns deles tinhamassinatura e eram provavelmenteautênticos. Não apenas alguémgozando da cara de alguém.

Pronto. Agora ele já olhara.Agora devia se mandar dali. Nuncase sabe o que o garoto do casaco decouro podia inventar. Levantou-se,urinou no sanitário e sentou-se denovo. Por que mijara? Não estava

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propriamente apertado. Ele sabiapor que mijara.

Em caso de .A porta se abriu. Håkan prendeu a

respiração. Alguma coisa neleesperava que fosse um policial. Umpolicial grande e másculo que dariaum chute na porta e o espancariacom cassetete antes de prendê-lo.

Vozes cochichando, passossuaves, uma batida leve na porta.

— Sim?A batida de novo. Ele engoliu um

bolo espinhento de saliva e abriu.Do lado de fora havia um menino

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de onze, doze anos. Louro, rostocom formato de cebola. Lábiosfinos, olhos grandes e azuis e umaexpressão vazia na cara. Um casacoacolchoado vermelho um poucogrande demais. Bem atrás deleestava o garoto mais velho comcasaco de couro, que levantou oscinco dedos no ar.

— Five hundred . — Pronunciou“chundred ” em vez de “hundred ”.

Håkan assentiu, o menino maisvelho conduziu o mais novo comcuidado para dentro do banheiro efechou a porta. E quinhentos não era

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bem caro? Não que fizesse algumadiferença, mas…

Ele olhou para o menino quecomprara. Alugara. Será que ogaroto tomava algum tipo de droga?Provavelmente. Seu olhar estavaausente, sem foco. O menino estavaencostado na porta a meio metrodele. Era tão baixo que Håkan nãoprecisava levantar a cabeça paraolhá-lo nos olhos.

— Hello .O menino não respondeu, apenas

balançou a cabeça, apontou para obaixo-ventre de Håkan e fez um

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gesto com o dedo: Abra a braguilha. Ele obedeceu. O menino fez ummuxoxo, fez outro gesto com odedo: Tire o pênis daí .

Seu rosto ficou afogueado quandoobedeceu ao menino. Era dessejeito. Ele obedecia ao menino. Nãotinha vontade própria. Não era elequem fazia isso. O pênis curto deHåkan não estava nem um poucoereto, mal alcançava a tampa dovaso. Sentiu cócegas quando suaglande encostou a superfície fria.

Håkan apertou os olhos e tentoutransformar a fisionomia do menino

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de modo que ficasse mais parecidacom a do seu amado. Não funcionoumuito. Seu amado era bonito. Nãoera o caso desse menino que agorase ajoelhava e ia com a cabeça nadireção do seu baixo-ventre.

A boca .Alguma coisa estava errada com

a boca do menino. Håkan pôs a mãona testa do garoto antes que eleatingisse seu objetivo.

— Your mouth?O menino sacudiu a cabeça de um

lado para o outro e pressionou atesta na mão de Håkan para

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continuar o trabalho. Mas agora nãodava. Ele já ouvira falar nesse tipode coisa.

Abaixou o polegar na direção dolábio superior do menino e puxou-opara cima. O menino eradesdentado. Alguém o esmurrara outirara seus dentes para que elefizesse melhor o trabalho. O meninose levantou; um farfalhar do casacoacolchoado quando ele cruzou osbraços no peito. Håkan recolheu opênis, fechou a braguilha e ficouolhando para o chão.

Assim não . Assim nunca .

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Alguma coisa apareceu em seucampo de visão. A mão bem aberta.Cinco dedos. Quinhentos.

Ele apanhou um maço de cédulasdo bolso e entregou o dinheiro aomenino. O garoto tirou o elástico domaço, passou o indicador na pontadas dez notas, pôs o elástico devolta e segurou o maço no alto.

— Why?— Because … your mouth .

Maybe you can … get new teeth .O garoto sorriu de fato. Não um

sorriso radiante, mas o canto da suaboca se levantou um pouco. Talvez

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apenas estivesse rindo da burrice deHåkan. O garoto refletiu, emseguida tirou uma nota de mil domaço e a enfiou no bolso do lado defora do casaco. O maço de notas dolado de dentro. Håkan balançou acabeça.

O menino abriu a porta, hesitou.Depois se virou na direção de Håkane fez uma carícia em seu rosto.

— Sank you .Håkan pôs a mão em cima da

mão do menino, apertou-a no rostoe cerrou os olhos. Se pelo menosalguém pudesse.

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— Forgive me .— Yes .O menino retirou a mão. Seu

calor ainda estava no rosto deHåkan quando a porta se fechouatrás do garoto. Ele continuousentado no vaso, olhando paraalguma coisa que alguém escreverano batente da porta.

“não importa quem tu és. eu teamo.”

Logo abaixo uma outra pessoarabiscara: “quer pau?”

Fazia muito tempo que o calor seapagara do rosto dele quando Håkan

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foi para o metrô e comprou umjornal vespertino com as últimascoroas que tinha. Quatro páginasdedicadas ao assassinato. Entreoutras coisas, havia no jornal umafoto da baixada no bosque onde elefizera a coisa. O lugar estava cheiode velas acesas, flores. Olhou para afoto e não sentiu muita coisa.

Se vocês soubessem . Perdoem-me, mas se vocês soubessem .

A caminho de casa, Oskar parou

embaixo das duas janelas do

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apartamento da garota. A janelamais próxima estava apenas a doismetros da janela do quarto dele. Aspersianas estavam fechadas e asjanelas eram retângulos cinza-claroscom o fundo de cimento cinza-escuro. Parecia suspeito.Provavelmente eles eram uma…família estranha.

Viciados .Oskar olhou ao redor, entrou

depois no prédio e conferiu oquadro com o nome dos moradores.Cinco sobrenomes soletrados comcapricho, escritos em letras de

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plástico. Um lugar estava vazio. Onome que ocupara antes o lugar,hellberg, esteve ali por tanto tempoque era possível lê-lo pelo contornoescuro no fundo de veludo doquadro desbotado do sol. Mas nadade letras de plástico. Nem sequerum pedaço de papel.

Ele subiu correndo os dois lancesde escada até a porta da garota. Omesmo ali. Nada. A plaqueta com onome da caixa de correios na portanão tinha letras. Como costumavaser quando um apartamento não erahabitado.

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Será que ela tinha mentido?Talvez não morasse ali. Mas entrarana portaria. Certo. Mas ela podia dequalquer jeito ter entrado ali. Seela…

A porta do prédio lá embaixo foiaberta.

Ele se afastou do apartamento edesceu rapidamente as escadas.Tomara que não seja ela. Então agarota poderia achar que ele dealgum modo… Mas não era ela.

A meio caminho do segundolance de escada, Oskar encontrouum homem que nunca vira antes.

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Um homem baixo, de ombrosbastante largos, um pouco careca,que estava com um sorriso tãogrande que não era normal.

O homem avistou Oskar, levantoua cabeça e acenou, a boca aindaesticada naquele sorriso de circo.

Lá embaixo, na entrada do prédio,Oskar parou e aguçou os ouvidos.Ouviu um barulho de chaves e umaporta sendo aberta. A porta dagarota. O homem era provavelmenteseu pai. É verdade que Oskar nuncavira um viciado tão velho, mas eletinha um aspecto muito esquisito.

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Não era de estranhar que elafosse doida .

Oskar desceu para o parquinho,sentou-se na borda da caixa de areiae ficou de olho na janela da meninapara ver se as persianas seriamlevantadas. Até mesmo a janela dobanheiro parecia estar coberta dolado de dentro; a vidraça fosca eramais escura que todas as janelas dosbanheiros dos outros apartamentos.

Do bolso do casaco, Oskarapanhou o cubo de Rubik.[5] Obrinquedo estalava e rangia quandoele o girava. Uma cópia. O original

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era muito mais macio, porém cincovezes mais caro e só era encontradona loja de brinquedos bem vigiadade Vällingby.

Duas faces estavam resolvidas, deuma cor, e na terceira faltava apenasum pedacinho de nada. Mas não erapossível empurrá-lo para lá semdestruir as duas faces já prontas.Oskar guardara uma página dojornal Expressen que descreviasistemas diferentes de deslocamentodas partes do cubo — foi assim queconseguiu resolver as duas faces,mas depois ficou muito mais difícil.

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Ele olhou para o cubo, tentouachar na cabeça a solução em vez desair virando. Não funcionou. Seucérebro não acompanhava. Apertouo cubo na testa, tentou penetrar emseu âmago. Nenhuma resposta. Pôso cubo no canto da caixa de areia ameio metro de distância e ficouolhando para ele.

Gire . Gire . Gire .Telecinesia era o nome disso.

Foram feitos experimentos nosEstados Unidos. Havia pessoas quepodiam fazer essas coisas. pes.Percepção extrassensorial. Oskar

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teria dado qualquer coisa para teruma habilidade dessas.

E talvez… talvez ele tivesse.O dia na escola não havia sido

muito ruim. Tomas Ahlstedt tentaraarrancar a cadeira do lugar quandoele se sentou no refeitório, masOskar percebeu a tempo. E isso foitudo. Ele iria para o bosque com afaca para encontrar aquela árvore.Fazer um experimento mais sério.Não ficar tão alterado como no diaanterior.

De um modo calmo e metódico,golpear a árvore com a faca,

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esfaqueá-la e ter o tempo todo orosto de Tomas Ahlstedt à suafrente. Mas… tinha aquilo com oassassino. O assassino de verdadeque estava em algum lugar.

Não. Ele tinha que esperar parafazer isso quando o assassino fossepego. Por outro lado, se fosse umassassino comum, o experimentoera então inútil. Oskar olhou para ocubo e imaginou um raioconectando seus olhos com o objeto.

Gire . Gire . Gire .Não aconteceu nada. Oskar enfiou

o cubo no bolso e se levantou,

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limpando um pouco de areia dascalças. Olhou para a janela damenina. As persianas ainda estavamfechadas.

Ele foi para casa trabalhar noálbum de recortes, cortar e colar osartigos sobre o assassinato emVällingby. Provavelmenteacabariam sendo muitos, com otempo. Especialmente seacontecesse mais uma vez. Oskaresperava um pouco que issoacontecesse. De preferência emBlackeberg.

De modo que a polícia fosse para

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a escola, de modo que osprofessores ficassem sérios epreocupados, de modo que ficasseaquele clima na escola. Ele gostavadisso.

— Nunca mais. Não importa o

que você diga.— Håkan…— Não. Não e ponto final.— Eu vou morrer.— Então morra.— Você quer isso?— Não. Não quero. Mas você

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mesmo… pode.— Eu estou fraco demais, ainda.— Você não está fraco.— Fraco demais para isso.— Bem, então eu não sei. Mas eu

não vou fazer de novo. É tão…repugnante, tão…

— Eu sei.— Não, você não sabe. Para você

é diferente, é…— O que você sabe sobre como é

para mim?— Nada. Mas você é pelo

menos…— Você acha que eu… gosto

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disso?— Não sei. Você gosta?— Não.— É, não. Bem, de qualquer

forma… eu não vou fazer isso denovo. Talvez você tenha tido outraspessoas que o ajudaram, queforam… melhores que eu.

— …— Você teve?— Tive.— Sei…— Håkan? Håkan…— Eu amo você.— O.k.

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— Você me ama? Mesmo queseja um pouco?

— Você faria mais uma vez se eudissesse que sim?

— Não.— Então ainda assim devo amar

você, é isso?— Você me ama só se eu ajudá-lo

a ficar vivo.— É. Não é isso que é o amor?— Se eu achasse que você me

amava mesmo que eu não fizesseisso…

— Então?— … então talvez eu fizesse.

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— Eu amo você.— Não acredito em você.— Håkan. Eu aguento mais

alguns dias, mas depois…— Então trate de me amar.

Sexta-feira à noite no restaurante

chinês. São quinze para as oito e aturma toda está reunida. ExcetoKarlsson, que está em casaassistindo ao Quebra-notas , e émelhor assim. Esse homem nãoserve para nada. Chega tarde quandotudo já acabou e fica se gabando das

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perguntas que sabia responder.À mesa para seis perto da porta

estão sentados agora Lacke,Morgan, Larry e Jocke. Lacke eJocke estão discutindo sobre queespécies de peixe vivem tanto emágua doce quanto em água salgada.Larry lê um jornal vespertino e aspernas de Morgan sobem e descemna cadeira, ele bate os pés ao ritmode outra música que não é aquela deelevador chinesa que saidiscretamente dos alto-falantesescondidos.

Na mesa diante deles há copos de

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cerveja mais ou menos cheios. Naparede acima do balcão do bar estãopendurados seus retratos.

O dono do restaurante se viuobrigado a fugir da China na épocada Revolução Cultural, por causadas caricaturas satíricas que faziados poderosos. Agora ele usava essetalento com os frequentadoresassíduos do local. Na parede estãopenduradas doze caricaturasafetuosas feitas com canetashidrográficas.

Um monte de homens. EVirginia. Os desenhos dos homens

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eram close-ups , em que asimperfeições de suas fisionomiasforam destacadas.

O rosto enrugado, quasedescarnado de Larry e as duasorelhas enormes apontando dacabeça fazem com que ele pareçaum elefante bonzinho, mas faminto.

As sobrancelhas grossas de Jocke,quase se juntando, foram acentuadase transformadas em roseiras ondeum passarinho — talvez umrouxinol — está pousado, cantando.

Devido ao seu estilo, Morgantomou emprestado no retrato

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características do Elvis mais velho.Costeletas e uma expressão nosolhos de “Hunka-hunka-lóóóve,baby”. A cabeça num corpo pequenoque segura uma guitarra e faz umapose de Elvis. Morgan gosta maisdessa caricatura do que admiteabertamente.

Lacke parece preocupado. Nessedesenho, os olhos foramaumentados e deu-se a eles umaexpressão exagerada de sofrimento.Um cigarro na boca e a fumaça sejunta, formando uma nuvem dechuva acima da cabeça dele.

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Virginia é a única que estáretratada de corpo inteiro. Comvestido longo, radiante como umaestrela com lantejoulas cintilantes,ela está com os braços abertos,rodeada por um bando de porcosque olha para ela sem entender. Apedido de Virginia, o dono do localfez mais uma caricatura,exatamente a mesma, que Virginiapôde levar para casa.

Depois há outros. Alguns que nãosão da turma. Alguns que pararamde vir. Alguns que morreram.

Certa noite, Charlie desmoronou

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na escada da entrada do seu prédioao ir do restaurante para casa.Fraturou o crânio no cimentosalpicado. Gurkan teve cirrosehepática e morreu de umsangramento na garganta. Semanasantes de morrer, uma noite elelevantou a blusa e mostrou uma teiavermelha de veias que lhe saíam doumbigo. “Essa tatuagem foi osolhos da cara”, disse ele; nãodemorou muito, morreu. Elestinham homenageado sua memóriadeixando o retrato dele em cima damesa, onde ficavam bebendo com o

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falecido a noite inteira.Karlsson não está retratado.Essa noite de sexta-feira será a

última em que eles estarão juntos.Amanhã um deles desaparecerá parasempre. Virará mais uma caricaturapendurada na parede apenas comolembrança. E nada será como antes.

Larry abaixou o jornal, pôs os

óculos de leitura em cima da mesa etomou um gole da cerveja. —Caramba… Como é que deve serdentro da cabeça de uma pessoa

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dessas?Ele mostrou o jornal, no qual

estava escrito “as crianças estãochocadas” acima de um retrato daescola Vällingby e de uma fotomenor de um homem de meia-idade. Morgan olhou de relance parao jornal e apontou.

— É o assassino?— Não. O diretor da escola.— Tem cara de assassino, é o que

eu acho. Cara típica de assassino.Jocke estendeu a mão na direção

do jornal.— Deixe-me ver…

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Larry passou-lhe o jornal e Jockesegurou-o a um metro da vista.Olhou para a foto.

— Acho que ele parece mais umpolítico do partido moderado.

Morgan balançou a cabeça,concordando.

— Mas é isso que estou dizendo.Jocke segurou o jornal para

Lacke, para que ele pudesse olhar oretrato.

— O que você acha?Lacke olhou um pouco relutante

para ele.— Bem, sei lá. Isso tudo me faz

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tão mal…Larry bafejou os óculos e limpou-

os na camisa.— Ele vai ser pego. Não se

escapa depois de uma coisa dessas.Morgan tamborilava na mesa

com os indicadores; esticou-se parapegar o jornal.

— Como o Arsenal se saiu?Larry e Morgan passaram a

conversar sobre a má fase pela qualo futebol inglês estava passando.Jocke e Lacke ficaram calados porum tempo, bebericando suascervejas e acendendo cigarros.

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Depois Jocke tocou naquele assuntodo bacalhau, como o peixedesapareceria do mar Báltico.Assim prosseguiu a noite.

Karlsson não apareceu, mas lápelas dez entrou um homem norestaurante que nenhum deles tinhavisto antes. A conversa a essa alturacomeçara a ficar mais intensa e sónotaram a cara nova quando osujeito se sentou sozinho a umamesa do lado oposto do restaurante.

Jocke se inclinou para a frente, nadireção de Larry.

— Quem é esse aí?

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Larry olhou discretamente esacudiu a cabeça.

— Não sei.A cara nova recebeu uma dose

grande de uísque e a entornourapidamente. Pediu mais uma.Morgan assoprou entre os lábios,produzindo um assobio.

— Ali não se perde tempo.O homem parecia não estar ciente

de que era observado. Estava apenasimóvel à mesa olhando para aspróprias mãos, tinha a cara de quemcarregava todas as misérias domundo numa mochila pendurada

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nos ombros. Bebeu rapidamente osegundo copo de uísque e pediumais um.

O garçom se debruçou sobre ele edisse alguma coisa. O homemenfiou a mão no bolso e mostroualgumas cédulas. O garçom fez umgesto com as mãos como se dissesseque a intenção dele não tinha sidoessa , mas é claro que tinha sidojustamente essa a intenção dele, efoi apanhar o pedido.

Não era de admirar que aaparência do homem fossequestionada. Suas roupas estavam

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amarrotadas e manchadas como seele tivesse dormido em algum lugaronde se dormia mal. A coroa decabelos ao redor da careca nãoestava aparada e pendia por cimadas orelhas, quase as cobrindo. Orosto era dominado por um narizbastante grande, bem vermelho eum queixo saliente. Entre eles, doislábios pequenos e carnudos que semexiam de vez em quando, como seo homem falasse sozinho. Seu rostoficou impassível na hora que ouísque foi depositado na mesa, à suafrente.

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A turma voltou à conversa deantes: se Ulf Adelsohn seria bempior do que Gösta Bohman tinhasido. Apenas Lacke olhava às vezesfurtivamente para o homemsozinho. Depois de um tempo, nahora que o homem já pedira maisum uísque, ele disse: — Será que agente não devia… convidá-lo parase sentar aqui?

Morgan olhou rapidamente sobreos ombros do homem que agora seafundara ainda mais na cadeira. —E por quê? A mulher deixou o cara,o gato morreu e a vida é uma droga.

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Disso eu já sei.— Pode ser que ele pague.— Então a coisa é diferente.

Então ele também pode ter câncer.— Morgan encolheu os ombros. —A mim, não incomoda.

Lacke olhou para Larry e Jocke.Eles fizeram gestos mínimos paradizer que estava tudo bem. Lacke selevantou e foi até o homem.

— Olá.O homem ergueu os olhos para

Lacke. Seu olhar estava bemembotado. O copo em cima damesa, quase vazio. Lacke se apoiou

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na cadeira do outro lado da mesa ese debruçou sobre o homem.

— A gente só queria perguntar sevocê quer… se sentar com a gente.

O homem sacudiu devagar acabeça e fez um movimentosonolento, de recusa com a mão.

— Não. Obrigado. Mas sente-se.Lacke puxou uma cadeira e

sentou-se. O homem bebeu orestante do copo e acenou para ogarçom.

— Quer alguma coisa? Euconvido.

— Nesse caso, o mesmo que

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você.Lacke não queria dizer a palavra

“uísque”, já que soava arrogantepedir a alguém para pagar coisas tãocaras, mas o homem apenasbalançou a cabeça e, quando ogarçom se aproximou, fez um sinalde V com os dedos e apontou paraLacke. Lacke se recostou na cadeira.Quando foi a última vez que elebebeu uísque no local? Três anos.No mínimo.

O homem não deu nenhum sinalde querer iniciar uma conversa,então Lacke limpou a garganta e

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disse: — Está um frio danado.— É.— A neve deve chegar logo.— Ahã.O uísque chegou à mesa e fez a

conversa ficar supérflua por uminstante. Aliás, Lacke recebeu umadose dupla e sentiu o olhar da turmaqueimando em sua nuca. Depois deuns golinhos, levantou o copo.

— Saúde. E obrigado.— Saúde.— Você mora por aqui?O homem olhava para o nada,

parecia refletir sobre a pergunta

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como se fosse algo em que elepróprio nunca pensara antes. Lackenão conseguiu saber se omovimento da cabeça dele foi umaresposta à pergunta ou parte dealgum diálogo interior.

Lacke tomou mais um gole eresolveu que, se o homem nãorespondesse à próxima pergunta,significava que ele queria ficar empaz, não queria bater papo comninguém. Então Lacke pegaria ocopo e iria se sentar com os outrosde novo. Fizera o que a educaçãomandava ao ser convidado por

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alguém. Esperava que o homem nãorespondesse.

— Sei. E o que você faz paramatar o tempo?

— Eu…O homem franziu as

sobrancelhas; o canto da sua boca searqueou de um modo espasmódico ese retorceu numa careta, voltandopara a posição inicial.

— … ajudo um pouco.— Certo. Com o quê?Uma espécie de insight passou

por detrás da membrana oculartransparente e os olhos do homem

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encontraram os de Lacke. Lackesentiu uma pontada no final dascostas como se uma formiga negra otivesse mordido acima do cóccix.

O homem massageou os olhos epescou umas notas de cem do bolsodas calças, depositou o dinheiro emcima da mesa e se levantou.

— Com licença, eu preciso…— O.k. Obrigado pelo uísque.Lacke levantou o copo para o

homem, mas ele já se aproximavados cabides; conseguiudesajeitadamente tirar o casaco deum gancho e saiu. Lacke continuou

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sentado de costas para a turma,olhando para o montinho decédulas. Cinco notas de cem. Umadose dupla de uísque custavasessenta, e foram cinco doses,talvez seis.

Lacke olhou de soslaio. O garçomestava ocupado recolhendo opagamento de um casal de idosos,os únicos que pediram comida.Enquanto Lacke se levantava,amassou rapidamente uma nota decem que virou uma bolinha em suamão, enfiou-a no bolso e voltoupara a mesa de sempre.

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No meio do caminho ele selembrou de uma coisa: voltou para amesa, derramou o que restava docopo do homem no dele e levou-oembora.

Uma noite de êxito.

— Mas é Quebra-notas hoje de

noite!— Tudo bem, eu venho.— Começa daqui a… meia hora.— Eu sei.— O que você vai fazer lá fora?— Só vou dar uma volta.

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— O.k., você não precisa ver oQuebra-notas . Posso assistir aoprograma sozinha. Já que você temque sair.

— Tudo bem, eu… eu já disseque venho depois.

— Certo. Então espero você paraesquentar os crepes.

— Não, você pode… eu venhodepois.

Oskar conseguiu sair. Quebra-notas era um dos momentos solenesdele e da mãe em frente à tv. A mãefizera crepe com recheio decamarão para comer vendo

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televisão. Ele sabia que a magoavaao sair de casa agora, em vez deficar ali esperando ansiosamentejunto com ela.

Mas ele estivera olhando lá forapela janela desde a hora queescureceu e, há pouco, viu a meninasair do prédio ao lado e ir para oparquinho. Oskar saiu da janela namesma hora. Ela que não pensasseque ele…

Então esperou cinco minutosantes de se vestir e sair. Foi semgorro.

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Não se via a menina no

parquinho, provavelmente elaestava toda encolhida no trepa-trepa, como na noite anterior. Aspersianas das janelas dela aindaestavam fechadas, mas a luz estavaacesa dentro do apartamento. Comexceção do banheiro, um quadradonegro.

Oskar sentou-se na beira da caixade areia e ficou esperando. Como seum bicho fosse sair da toca. Ele sóia ficar um pouco ali. Se a meninanão aparecesse, ia para casa de

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novo, como se nada tivesseacontecido.

Apanhou o cubo de Rubik e girousuas faces para se distrair. Tinha secansado daquele único pedacinho nocanto e misturou o cubo inteiro paracomeçar do início.

O cubo estalava ainda mais altono ar frio, soava como uma pequenamáquina. De soslaio, Oskar viu quea menina se levantou no trepa-trepa.Ele continuou virando para começarcom uma face nova de uma cor só.A menina não se mexia. Ele sentiuuma aflição leve na barriga, mas

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fingiu não ter notado sua presença.— Você aqui de novo?Oskar levantou a cabeça, fingindo

estar surpreso, esperou algunssegundos e disse em seguida: —Você aqui de novo ?

A menina não respondeu nada eOskar continuou girando o cubo.Seus dedos estavam duros. Eradifícil distinguir as cores no escuro,então ele só trabalhava com a partebranca, que era mais fácil deenxergar.

— Por que você está sentado aí?— Por que você está aí de pé?

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— Eu quero ficar em paz.— Eu também.— Vá para casa.— Vá para casa você. Eu moro

aqui há mais tempo que você.Bem feito para ela. A face branca

do cubo estava pronta e era difícilcontinuar. As outras cores eramapenas uma massa cinza-escura. Elecontinuou virando, aleatoriamente.

Quando olhou outra vez paracima, a menina estava em pé nocorrimão e pulou. Oskar sentiu umfrio na barriga quando o corpo delabateu no chão; se ele próprio tivesse

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tentado dar esse mesmo pulo, teriase machucado. Mas a meninaaterrissou suave como um gato e foiem sua direção. Oskar direcionou aatenção para o cubo. Ela parou à suafrente.

— O que é isso?Oskar olhou para a menina, para

o cubo, para a menina de novo.— Isso aqui?— É.— Você não sabe?— Não.— É um cubo de Rubik.— Como?

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Oskar pronunciou as sílabas comuma clareza exagerada.

— Cu-bo de Ru-bik.— E isso é o quê?Oskar deu de ombros.— Um brinquedo.— Um quebra-cabeça?— É.Oskar estendeu o cubo para a

menina.— Quer experimentar?Ela apanhou o cubo da mão dele,

girou-o e olhou todas as faces dobrinquedo. Oskar deu uma risada. Agarota parecia um macaco

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examinando uma fruta.— Você nunca viu um desse

antes?— Não. Como se faz?— Assim…Oskar pegou o cubo de volta e a

menina sentou-se ao seu lado. Elemostrou como funcionava obrinquedo e disse que o objetivo eradeixar todas as faces de uma cor só.Ela pegou o cubo e começou a girar.

— Você enxerga as cores?— Naturalmente.Ele olhava para a menina

enquanto ela trabalhava com o cubo.

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Vestia a mesma blusa rosa da noiteanterior e Oskar não conseguiaentender como ela não sentia frio.Ele próprio já estava ficando comfrio de estar parado, apesar docasaco.

Naturalmente .A menina falava de um jeito

esquisito, ainda por cima. Que nemum adulto. Será que ela era até maisvelha que ele, apesar de ser umpalito? O pescoço delgado e brancoapontava da gola alta da blusa, ia setransformando numa mandíbulabem marcada. Como um manequim

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de vitrine.Mas agora veio uma brisa na

direção de Oskar e ele engoliu emseco, respirando pela boca. Omanequim fedia .

Será que ela não tomava banho ?Mas o cheiro era pior que o de

suor curtido. Parecia mais o cheirode quando se tirava o curativo deuma ferida que infeccionara. E ocabelo dela…

Quando ele teve coragem de olharmais atentamente para a menina,absorta que ela estava com o cubo,viu que seu cabelo estava todo

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grudado e emaranhado, cheio detufos. Como se houvesse cola ou…lama nele.

Enquanto estudava a menina,respirou sem pensar pelo nariz euma ânsia de vômito lhe fezcócegas na garganta. Ele selevantou, foi para os balanços esentou-se ali. Não dava para ficarperto dela. A menina não parecia seimportar.

Depois de um tempo ele selevantou e foi até onde ela estava,ainda absorta com o cubo.

— Olhe, preciso ir para casa

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agora.— Ahã.— O cubo…A menina parou. Hesitou por um

instante e lhe entregou em seguida ocubo sem dizer nada. Oskar apanhouo brinquedo, olhou para ela e odevolveu.

— Pode pegar emprestado. Atéamanhã.

Ela não pegou o cubo.— Não.— Por que não?— Eu posso não vir para cá

amanhã.

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— Então depois de amanhã. Masaí você não pode mais ficar com ele.

Ela refletiu. Apanhou em seguidao cubo.

— Obrigada. Acho que venhoamanhã.

— Para cá?— É.— O.k. Tchau.— Tchau.Ao dar meia-volta e deixar a

menina, Oskar ouviu o estalo suavedo cubo de novo. Ela ia continuarsentada ali, com aquela blusa fina.Os pais dela deviam ser… gente

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diferente, que deixava a menina sairde casa desse jeito. Ela podia ficardoente…

— Onde você esteve?— Lá fora.— Você está bêbado.— Estou.— Nós tínhamos combinado que

você ia parar com isso.— Você que disse. O que é isso?— Um quebra-cabeça. Não é bom

você…— Onde você arrumou isso?

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— É emprestado. Håkan, vocêprecisa…

— Emprestado de quem?…— Håkan. Não faça isso.— Então me faça feliz.— O que você quer que eu faça?— Deixe-me tocar em você.— Certo, com uma condição.— Não. Não mesmo. Então deixe

para lá.— Amanhã. Você tem quê.— Não. Não mais uma vez. Como

assim “emprestado”? Você nuncapega nada emprestado. O que é isso

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?— Um quebra-cabeça.— Você não está cansado de

quebra-cabeças? Você se preocupamais com seus quebra-cabeças doque comigo. Quebra-cabeças.Padeça. Cabeça. Quem lheemprestou isso? quem deu isso avocê? Estou fazendo uma pergunta!

— Håkan, pare com isso.…— Estou tão infeliz.— Ajude-me. Mais uma vez.

Depois fico forte o bastante para mevirar sozinho.

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— Certo, mas é justamente isso.— Você não quer que eu me vire

sozinho.…— E o que você vai fazer

comigo? E depois?— Eu amo você.— Não ama nada.— Amo sim. De certa forma.— Não existe isso. Ou a gente

ama ou a gente não ama.— É desse jeito?— É.— Então eu não sei.

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Sábado, 24 de outubro

A mística do subúrbio é a falta demistério .

Johan Eriksson No sábado de manhãhavia três pilhas altas de folhetos deanúncio do lado de fora da porta de

Oskar. A mãe o ajudou a dobrar.Três folhetos diferentes em cada

lote, quatrocentos e oitenta lotes nototal. Cada lote distribuído rendia

catorze centavos em média. No piordos casos, podia ser apenas um

folheto que rendia sete centavos. Namelhor das hipóteses (e pior, já que

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era um tal de dobrar papel que nãotinha fim), chegavam até cinco

folhetos que rendiam vinte e cincocentavos.

Oskar já tinha um pouco deprática, pois os prédios faziam partedo seu distrito. Ali ele distribuíacento e cinquenta folhetos por hora.A ronda inteira levava mais oumenos quatro horas, com um puloem casa para reabastecer com orestante dos lotes. Se fosse umadessas ocasiões em que havia cincofolhetos em cada maço, eranecessário passar em casa duas

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vezes para recarregar.Os folhetos deviam estar

distribuídos no máximo até terça-feira à noite, mas ele costumavafazer tudo no sábado. Resolver logode uma vez.

Oskar estava sentado no chão dacozinha dobrando os folhetos, a mãeà mesa. Não era um trabalhoprazeroso, mas ele gostava do caosque criava na cozinha. A bagunçaque se transformava pouco a poucoem ordem, em duas, três, quatrosacolas de papel bem cheias comfolhas dobradas no capricho.

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A mãe pôs mais um lote defolhetos dobrados na sacola esacudiu a cabeça de um lado para ooutro.

— Bem, na verdade não estougostando nada disso.

— Do quê?— Você está proibido… se

alguém por acaso abrir a porta oualgo do tipo… você está proibido…

— O.k. E por que eu ia fazer umacoisa dessas?

— Há muita gente esquisita nestemundo.

— Certo.

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Essa conversa acontecia, de umaforma ou outra, praticamente todosábado. Na sexta-feira à noite a mãedecidira que ele não ia distribuirfolhetos no sábado, por causa doassassino. Mas Oskar prometera portudo de mais sagrado que faria umescândalo caso alguém se dirigisse aele, e a mãe acabou deixando.

Nunca aconteceu de alguémtentar convidar Oskar para entrar oualgo desse tipo. Uma vez um coroasaiu e gritou com o menino porqueele tinha “enfiado um monte debesteira na caixa do correio”, mas

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depois disso Oskar deixou de pôrfolhetos na caixa desse velho.

O coroa continuaria vivendo semsaber que podia fazer um corteespecial no cabelo com luzes porduzentas coroas no salão femininoessa semana.

Em torno de onze e meia, todosos folhetos estavam dobrados e elepartiu. Não adiantava jogar todos osfolhetos na lixeira do prédio ou algodo gênero; eles telefonavam econferiam, faziam testes aleatórios.Isso eles deixaram bem claroquando Oskar telefonou e se

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inscreveu para o trabalho, seismeses atrás. Vai ver que eles tinhamblefado, mas ele não queria arriscar.Além do mais, não tinha nadacontra o trabalho. Na verdade, nãodurante as duas primeiras horas.

Nesse intervalo ele fingia, porexemplo, que era um agente numamissão secreta e estava ali paraespalhar propaganda contra oinimigo que tinha invadido o país.Corria de uma portaria a outra,vigilante contra a presença desoldados do inimigo que podiammuito bem aparecer disfarçados de

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velhinhas boazinhas com cachorros.Ou também fingia que cada casa

era um animal faminto, um dragãocom seis bocas cujo único alimentoera carne de virgem, camuflada defolhetos de anúncio, que ele enfiavana boca do bicho. Os lábiosgritavam em suas mãos quando eleenfiava os papéis na bocarra domonstro.

Nas duas horas restantes — comohoje, no começo da segunda ronda— acontecia uma espécie de mudez.As pernas continuavam trotando eos braços executavam os

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movimentos de forma mecânica.Depositar a sacola no chão, seis

lotes debaixo do braço esquerdo,abrir a porta do prédio, a primeiraporta, abrir a caixa de correios coma mão esquerda, pegar um folhetocom a direita, enfiá-lo na caixa.Segunda porta… e assim por diante.

Quando Oskar finalmente chegouao seu próprio pátio, ao apartamentoda menina, parou do lado de fora daporta tentando ouvir alguma coisa.Um rádio tocando baixinho. Só isso.Enfiou os folhetos na caixa decorreios e esperou. Ninguém veio

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apanhar.Seguindo a ordem de costume,

terminou no próprio apartamento:enfiou um folheto na caixa decorreio, abriu a porta, apanhou osanúncios e jogou tudo na lata delixo.

Pronto por hoje. Sessenta e setecoroas mais rico.

A mãe fora para Vällingby fazerumas compras. Oskar tinha oapartamento todo só para ele. E nãosabia o que fazer.

Abriu as gavetas debaixo dabancada da pia e olhou dentro delas.

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Talheres, batedores de ovos etermômetros de forno. Numa outragaveta, canetas e papéis, uma sériede cartões com receitas de pratosdiversos que a mãe começou acolecionar, mas tinha parado com aassinatura, já que todas usavamingredientes muito caros.

Ele foi para a sala de estar e abriuos armários.

As coisas de crochê — ou seráque era tricô? — da mãe. Uma pastacom contas e recibos. O álbum defotos que ele já tinha olhado ummonte de vezes. Revistas antigas

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com palavras cruzadas ainda nãoresolvidas. Óculos de leitura numestojo. Caixa de costura. Umacaixinha de madeira com ospassaportes da mãe e de Oskar, asplaquinhas de identificação dos dois(ele pediu para carregar o crachá nopescoço, mas a mãe disse que só emcaso de guerra), uma fotografia eum anel.

Examinou as gavetas e osarmários como se estivesse àprocura de alguma coisa, mas nãosabia o quê. Um segredo. Algo quemudaria alguma coisa. De repente,

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bem lá no fundo dos armários, acharum pedaço de carne podre. Ou umbalão cheio de gás. Qualquer coisa.Algo desconhecido.

Apanhou a foto e a examinou.Era do seu batizado. A mãe com

ele nos braços, olhando diretamentepara a câmera. Ela era magranaquela época. Oskar envolto numabata com fitas longas e azuis. Aolado da mãe estava o pai, enfiadodesconfortavelmente num terno.Parecia não saber o que fazer comas mãos e as duas estavamestendidas ao lado do corpo, quase

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em posição de sentido. Olhava parao bebê nos braços da mãe. O soliluminava os três.

Oskar olhou a foto mais de perto,estudou a expressão no rosto do pai.Parecia orgulhoso. Orgulhoso emuito… pouco à vontade. Umhomem feliz por ter se tornado pai,mas que não sabia como secomportar. O que fazer. Parecia queera a primeira vez que ele via obebê, apesar de o batizado ter sidoseis meses depois do nascimento deOskar.

A mãe, no entanto, segurava

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Oskar de um jeito firme masrelaxado. Seu olhar, diretamentepara a câmera, não transpareciaorgulho, era mais de…desconfiança. Não chegue perto,dizia esse olhar. Que eu mordo seunariz.

O pai estava inclinado para afrente, como se quisesse chegarmais perto, sem ter coragem. A fotonão mostrava uma família.Mostrava um menino e sua mãe. Eao lado dos dois, um homem,provavelmente o pai. A julgar pelaexpressão no rosto deles.

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Mas Oskar amava o pai, e a mãetambém o amava. De certa forma.Apesar de… as coisas serem dessejeito. De terem ficado desse jeito.

Oskar apanhou o anel e leu ainscrição em seu interior: Erik22/4/1967.

Eles tinham se separado quandoOskar estava com dois anos.Nenhum deles encontrou outrapessoa. “É que ainda nãoaconteceu.” Os dois usavam amesma expressão.

Devolveu o anel no lugar, fechoua caixa de madeira e a enfiou no

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armário. Queria saber se a mãeolhou alguma vez para o anel, porque ela o guardara. De qualquerforma, o anel era de ouro. Devia terdez gramas. Valia mais ou menosquatrocentas coroas.

Oskar vestiu as roupas de frio denovo e saiu para o pátio. Estavaanoitecendo, embora fossem apenasquatro da tarde. Ir ao bosque, nempensar.

Tommy estava passando pelolado de fora da portaria. O garotoparou quando viu Oskar.

— Tudo certo?

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— Tudo.— O que você vai fazer?— Bem, eu distribuí os anúncios

e… não sei.— E isso rende alguma grana?— Mais ou menos. Setenta,

oitenta coroas. Por vez.Tommy balançou a cabeça.— Quer comprar um walkman?— Não sei. De que marca?— Um Sony Walkman.

Cinquenta contos.— Novo?— Sim. Na caixa. Com fones de

ouvido. Cinquentinha.

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— Estou sem dinheiro. Nomomento.

— Mas você ganhou setenta,oitenta com isso aí, você acabou dedizer.

— É, mas meu salário é mensal.Daqui a uma semana.

— O.k. Mas, se você ficar comele agora, então pode me pagardepois.

— Tudo bem…— O.k. Desça e me espere que

vou pegar o walkman.Tommy fez um movimento com a

cabeça na direção do parquinho e

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Oskar desceu e sentou-se numbanco. Levantou-se logo depois efoi para o trepa-trepa, conferiu.Nada da menina. Voltou rápido parao banco e sentou-se, como se tivessefeito algo proibido.

Depois de um tempo, Tommyapareceu e lhe entregou a caixa.

— Cinquentinha daqui a umasemana, certo?

— Ahã.— Que tipo de música você

ouve?— Kiss.— O que você tem deles?

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— Alive .— Você não tem Destroyer ?

Posso te emprestar se quiser. Paragravar.

— O.k., legal.Oskar tinha o vinil duplo Alive

do Kiss, fazia uns meses quecomprara, mas nunca ouvia o disco.Ficava mais olhando para as fotosdos shows. O grupo parecia serincrível, com aqueles rostospintados. Personagens vivos deterror. E de “Beth”, que Peter Crisscantava, ele até gostava, mas asoutras músicas eram… é que não

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havia nenhuma melodia. TalvezDestroyer fosse melhor.

Tommy se levantou para irembora. Oskar apertou a caixa.

— Tommy?— Fale.— Aquele cara. Que foi

assassinado. Você sabe… como elefoi assassinado?

— Sei. Foi pendurado numaárvore e cortaram o pescoço dele.

— Ele não foi… esfaqueado? Oassassino não o esfaqueou? Nocorpo?

— Não, só no pescoço. Tchiqui .

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— O.k.— Mais alguma coisa?— Não.— Tchau.— Tchau.Oskar continuou sentado no

banco por um tempo, pensando. Océu estava lilás-escuro, a primeiraestrela — ou será que era Vênus? —já se podia ver nitidamente. Ele selevantou e entrou para esconder owalkman antes de a mãe chegar emcasa.

À noite iria encontrar a garota ereceber o cubo de volta. As

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persianas ainda estavam fechadas.Será que ela realmente morava ali?O que eles faziam lá dentro, o diainteiro? Será que ela tinha amigos?

Provavelmente não.

— Hoje à noite…— O que foi que você fez?— Tomei banho.— Você não costuma fazer isso.— Håkan, hoje à noite você

precisa…— Não, eu já disse.— Por favor.

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— Não se trata disso… Peçaoutra coisa, qualquer outra coisa.Diga. Que eu faço. Tire de mim ,pelo amor de Deus. Aqui, olhe. Aquiestá uma faca. Ah, não quer. O.k.,nesse caso eu…

— Esqueça!— Por quê? Prefiro isso. Por que

você tomou banho? Você estácheirando a… sabonete.

— O que você quer que eu faça?— Eu não posso!— Tudo bem.— O que você vai fazer?— Vou dar um jeito.

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— E você precisa tomar banhopara isso?

— Håkan…— Eu te ajudo com qualquer

outra coisa. Com o que você quiser,eu…

— O.k., tudo bem.— Desculpe.— Certo.— Tome cuidado. Eu… tome

cuidado.

Kuala Lumpur , Phnom Penh ,

Mekong , Rangoon , Chungking …

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Oskar olhou a folhamimeografada que acabara depreencher, uma lição de casa dofinal de semana. Os nomes nãosignificavam nada para ele, eram sóum bolo de letras. Sentia uma certasatisfação em ficar consultando oatlas, ver que havia de fato cidadese rios justamente no lugar ondeestavam marcados no papel, mas…

Bem, tinha que decorar isso tudoe a mãe iria sabatiná-lo. Eleapontaria os pontinhos no papel ediria as palavras estrangeiras.Chungking, Phnom Penh. A mãe

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ficaria orgulhosa. E até que eradivertido com esses nomesestranhos de lugares distantes,mas…

Por quê?No quarto ano eles tinham

recebido folhas mimeografadas dageografia da Suécia. Ele decoroutudo daquela vez. Era bom nisso.Mas e agora?

Tentou puxar da memória o nomede um dos rios da Suécia.

Äskan, Väskan, Piskan …Era algo desse tipo. Ätran, pode

ser. Isso. Mas onde ficava?

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Nenhuma ideia. Chungking eRangoon teriam o mesmo destinodaqui a alguns anos.

Nada tem sentido .Esses lugares não existiam e

pronto. E se existissem… ele nuncairia para lá. Chungking? O que eleia fazer em Chungking? O lugar eraapenas uma superfície grande ebranca e uma bolinha.

Olhou as linhas retas onde seusgarranchos se equilibravam. Isso eraa escola. E nada mais. Isso aqui eraa escola. Mandavam-nos fazer ummonte de coisas e nós fazíamos.

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Esses lugares tinham sido criadospara os professores poderemdistribuir folhas de exercício. Nãosignificavam nada. Ele podiaescrever Tjippiflax, Bubbelibäng eSpitt nas linhas. Seria aceito domesmo jeito.

A única diferença seria que aprofessora ia dizer que estavaerrado . Que não se chamava assim.Ela apontaria para o mapa e diria:“Veja, o nome é Chungking e nãoTjippiflax”. Uma provainconsistente. Pois alguém tambéminventara o que estava no atlas.

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Ninguém disse que era verdade.Talvez a Terra fosse mesmo plana,mas isso era mantido em segredopor algum motivo.

Navios que caem no canto dela .Dragões .

Oskar se levantou da mesa. Afolha de exercício estava pronta,cheia de letras que a professoraaprovaria. E era só isso.

Já passara das sete horas, será quea menina tinha ido para o pátio? Eleaproximou o rosto da janela, asmãos em concha na cara para poderenxergar lá fora no escuro. E não é

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que tinha algo se mexendo láembaixo no parquinho?

Ele foi para o corredor. A mãeestava tricotando, ou talvez fossecrochê, na sala de estar.

— Vou dar uma saída.— Vai sair agora, de novo? Eu ia

sabatiná-lo.— É. A gente faz isso depois.— É sobre a Ásia, não é?— O quê?— O dever que você tinha. Não é

sobre a Ásia?— É, acho que sim. Chungking.— Onde fica isso? Na China?

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— Não sei.— Você não sabe? Mas…— Eu volto depois.— Está bem. Tome cuidado. Está

indo com o gorro?— Estou.Oskar enfiou o gorro no bolso do

casaco e saiu. Na metade docaminho para o parquinho, seusolhos tinham se acostumado com oescuro e ele viu que a menina estavasentada lá em cima no trepa-trepa.Ele se aproximou e ficou láembaixo, com as mãos nos bolsos.

Ela estava diferente hoje. Ainda

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com a blusa rosa — será que nãotinha outra? —, mas o cabelo nãoparecia tão embaraçado. Estava liso,preto, seguia o formato da cabeça.

— E aí?— Oi.— Oi.Nunca mais Oskar diria “e aí”

para alguém. Soava altamenteridículo. A menina se levantou.

— Suba para cá.— O.k.Oskar escalou o trepa-trepa e

ficou ao lado dela. Inspiroudiscretamente o ar pelo nariz. Ela

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não fedia mais.— Meu cheiro melhorou?O rosto de Oskar ficou todo

vermelho. A menina sorriu esegurava alguma coisa na direçãodele. O cubo.

— Obrigada pelo empréstimo.Oskar apanhou o cubo e olhou

para ele. Olhou de novo. Segurou-ona direção da luz até onde erapossível, virou e olhou para todas asfaces. O cubo estava solucionado.Todas as faces estavam de uma corsó.

— Você desmontou o cubo?

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— Como assim?— Bem… desmontou e… pôs as

partes no lugar certo.— É possível fazer isso?Oskar apalpou o cubo, como para

conferir se havia partes soltasdepois de terem sido desmontadas.Ele mesmo fez isso uma vez, tinhaficado encantado com o fato de sernecessário apenas poucas viradas nocubo para a gente se perder e serincapaz de fazer as faces ficarem deuma cor só de novo. É verdade queas partes não ficaram soltas depoisque ele desmontou o brinquedo, mas

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ela não podia ter solucionado ocubo, será?

— Você deve ter desmontado ocubo.

— Não.— Mas você disse que nunca

tinha visto um desses antes.— Não. Foi divertido. Obrigada.Oskar segurou o cubo em frente

aos olhos, como se o brinquedopudesse lhe contar como aquiloaconteceu. De alguma forma, eletinha praticamente certeza de que amenina não estava mentindo.

— Quanto tempo levou?

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— Várias horas. Agora eu achoque ia ser mais rápido.

— Inacreditável.— Não é tão difícil assim.A menina se virou para ele. Suas

pupilas estavam tão grandes quequase preenchiam o olho inteiro, aluz da portaria dos prédios serefletia na superfície negra e eracomo se houvesse uma cidadedistante dentro da sua cabeça.

A blusa, com a gola alta tapandoo pescoço, acentuava ainda maisseus traços delicados e ela pareciaum… personagem de história em

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quadrinhos. A pele, as linhas eramcomo uma faca de madeira que forapolida durante semanas com amelhor lixa que havia até a madeiraficar como seda.

Oskar tossiu limpando a garganta.— Quantos anos você tem?— O que você acha?— Catorze, quinze.— Eu pareço ter isso?— Parece. Bem, não, mas…— Eu tenho doze anos.— Doze!Nossa! Ela era provavelmente

mais nova do que Oskar, que faria

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treze dentro de um mês.— Em que mês você nasceu?— Não sei.— Você não sabe? Bem…

quando é seu aniversário?— Não costumo comemorar.— Mas sua mãe e seu pai têm que

saber!— Não. Minha mãe está morta.— Ah… Sei. Como ela morreu?— Não sei.— E seu pai… não sabe?— Não.— Então… nesse caso… você

não ganha presentes?

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A garota deu um passo para ficarmais perto de Oskar. O ar quente dasua respiração se espalhou no rostodele e as luzes da cidade dentro dosseus olhos se apagaram quando elaentrou na sombra do menino. Aspupilas, dois buracos do tamanho debolas de gude em sua cabeça.

Ela está triste . Muito , muitotriste .

— Não. Eu não ganho presentes.Nunca.

Oskar balançou a cabeçapetrificado. O mundo ao seu redornão existia mais. Apenas os dois

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buracos negros à distância de umarespiração. O hálito que saía daboca dos dois se misturava e subia,dissolvia-se.

— Você quer me dar umpresente?

— Quero.A voz dele não era nem sequer

um sussurro. Apenas uma exalação.O rosto da menina estava perto. Osolhos de Oskar não desgrudavam dasua face de faca de madeira.

Por isso ele não viu como osolhos dela mudaram, estreitaram-se,assumiram outra expressão. Como o

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lábio superior se arqueou,mostrando um par de caninospequenos e encardidos. Oskar viaapenas a bochecha da menina e,enquanto seus dentes seaproximavam do pescoço de Oskar,ele levantou a mão e acariciou-lhe aface.

A menina parou, ficou congeladapor um instante e recuou. Os olhosreassumiram o aspecto anterior, asluzes da cidade se acenderamnovamente.

— O que você fez?— Desculpe… eu…

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— O que você fez?— Eu…Oskar olhou para a mão que

segurava o cubo e a afrouxou emtorno do brinquedo. Apertou tanto ocubo que os cantos deixaram marcasescuras em sua mão. Segurou ocubo na direção da menina.

— Quer ficar com ele? Eu teempresto.

Ela abanou devagar a cabeça.— Não. É seu.— Qual… seu nome?— Eli.— Eu me chamo Oskar. Como é

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seu nome? Eli?— … é.A menina pareceu de repente

ficar inquieta. Os olhos se moviamde um lado para o outro como se elaestivesse procurando alguma coisana memória, algo que não conseguiaachar.

— Eu… preciso ir agora.Oskar balançou a cabeça. A

menina olhou bem em seus olhosdurante uns segundos e virou-se emseguida para ir embora. Foi até aborda do escorregador e hesitou umpouco. Sentou-se depois no

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brinquedo e deslizou nele, indo emdireção à portaria. Oskar apertou ocubo na mão.

— Você vem amanhã?A menina parou, respondeu

“Sim” em voz baixa sem se virar econtinuou andando. Oskaracampanhou-a com os olhos. Elaentrou no prédio, mas foi para aarcada que levava para fora dopátio. Desapareceu.

Oskar olhou para o cubo em suamão. Inacreditável.

Ele virou só um pouquinho umaseção, de forma que a uniformidade

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se dissolveu. Arrumou o cubo devolta na posição inicial. Queriamantê-lo desse jeito. Por um tempo.

Jocke Bengtsson ria-se sozinho

ao ir para casa, saindo do cinema.Um filme superengraçado,Sällskapsresan . Especialmenteaquela cena com os dois caras quecorriam de um lado para o outroprocurando a Bodega do Peppe. Eum deles que levava o amigo cheiode goró na cadeira de rodas e,quando passou pela alfândega,

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disse: “invalido ”. É, um barato.Talvez fosse uma boa ideia fazer

uma viagem dessas com um dosrapazes da turma. Mas quem elepodia levar numa viagem?

Karlsson era tão chato que osrelógios paravam, Jocke explodiriacom ele depois de dois dias. Morgandava medo quando bebia demais daconta, e com certeza ele faria isso sea bebida fosse muito barata. ComLarry daria, mas ele estava muitoacabado. No final ele ia ter querebocá-lo numa cadeira de rodasdaquele jeito. “Invalido .”

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Não, ia ser com Lacke mesmo.Podiam se divertir muito durante

uma semana lá na Espanha. Poroutro lado, Lacke era pobre que sóele, nunca teria dinheiro para isso.Filava cerveja e cigarros dos outrostoda noite. Tudo bem, da parte deJocke, mas ele não tinha grana paraLacke viajar para as Ilhas Canárias.

Restava apenas encarar os fatos:ninguém da turma do restaurantechinês era uma boa companhia deviagem.

Será que ele podia viajarsozinho?

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Podia, Stig-Helmer viajou.Apesar de ser totalmente tapado. Edepois ele encontrou Ole na viagem.Até teve um caso com uma garota.Algo a se pensar. Fazia oito anosque Maria terminara com Jocke elevara o cachorro, e desde então elenunca mais conheceu ninguém nosentido bíblico, nem sequer umavez.

Mas será que havia alguém que oqueria? Talvez. Em todo caso, elenão estava tão acabado que nemLarry. Mas a bebida deixou marcasno rosto e no corpo, embora ele

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tivesse certo controle sobre ela.Hoje, por exemplo, não bebeunenhuma gota, ainda que fossemquase nove horas. Em todo caso,agora ele ia para casa tomar umasgins-tônicas antes de descer para orestaurante.

Continuaria pensando nessa ideiada viagem. Acabaria como todas ascoisas que ele pensava em fazer eresolver nos últimos anos: dandoem nada. Mas a gente podia sonhar.

Foi pelo caminho do parque entrea Hollbergsgatan e a escola deBlackeberg. Estava bem escuro,

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devia ter uns trinta metros dedistância entre os postes de luz. E orestaurante do chinês estavailuminado, parecendo um farol àesquerda.

Será que ele ia entornar todashoje à noite? Ir direto para orestaurante e… não. Ficaria carodemais. Então os outros pensariamque ele tinha ganhado na loteria oualgo do gênero, achariam que eleera um baita de um mão de vaca quenão convidava ninguém. Melhor irpara casa e molhar o bico primeiro.

Passou embaixo da tinturaria; a

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chaminé com o olho vermelhosolitário, o retumbar abafado dassuas entranhas.

Uma noite, quando foi para casabem mamado, teve uma espécie dealucinação e viu a chaminé sesoltando do prédio, deslizandoladeira abaixo em sua direção,rosnando e chiando.

Tinha se encolhido todo nocaminho do parque com as mãos emcima da cabeça esperando pelobaque. Quando finalmente tirou osbraços da cabeça, a chaminé estavaali no lugar onde sempre esteve,

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estupenda e imóvel.A lâmpada mais próxima da

passagem subterrânea daBjörnsonsgatan estava quebrada e ocaminho era uma abóboda feita deescuridão. Se estivesse bêbadoagora, provavelmente subiria aescada ao lado da passagem econtinuaria lá em cima naBjörnsonsgatan, mesmo que fosseum caminho um pouco mais longo.Podia ter visões muito estranhas noescuro depois de ter bebido muito.Por isso sempre dormia com a luzacesa. Mas agora estava totalmente

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sóbrio.Bem que ele tinha vontade de

pegar as escadas mesmo assim. Asalucinações de bêbado começavama se infiltrar em sua percepção demundo mesmo quando estavasóbrio. Ficou imóvel no caminho doparque e resumiu a situação para simesmo: — Estou ficando paranoico.

Olhe , Jocke , a parada é aseguinte , entenda . Se você nãocriar coragem para andar aquelepedacinho ali da passagemsubterrânea , nunca irá para asIlhas Canárias .

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Como assim?É isso mesmo, porque você

sempre foge assim que aparecequalquer probleminha . A lei domenor esforço , em qualquersituação . Você acha que vaiconseguir ligar para uma agênciade viagens , tirar passaporte novo ,comprar coisas para a viagem , poracaso ter coragem de testar odesconhecido , se não consegueencarar aquele trechinho?

Até que faz sentido. Mas e aí? Seeu andar ali na passagemsubterrânea agora, então isso

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significa que vou para as IlhasCanárias, que isso vai mesmoacontecer?

Eu acho que você vai ligar ereservar a passagem amanhã .Tenerife , Jocke . Tenerife .

Ele se pôs a andar de novo,encheu a cabeça de imagens depraias ensolaradas e drinquesenfeitados com guardasóis. É claroque ele ia viajar. Não ia para orestaurante chinês hoje à noite, não.Ficaria em casa dando uma olhadanos anúncios. Oito anos. Pô, estavana hora de se reestruturar.

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Jocke acabara de pensar empalmeiras, se havia ou nãopalmeiras nas Ilhas Canárias, setinha visto alguma no filme, quandoouviu o barulho. Uma voz. Parou nomeio da passagem subterrânea eaguçou os ouvidos. Alguémgemendo junto da parede.

— Ajude-me…Seus olhos começaram a se

acostumar com a escuridão, mas elesó podia distinguir os contornos dasfolhas que tinham voado paradebaixo da passagem e se juntadoem montinhos. Parecia a voz de

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uma criança.— Olá! Alguém aí?— Ajude-me…Jocke olhou ao redor. Nenhuma

alma viva por perto. O farfalhar dealguma coisa no escuro, agora eletambém conseguiu distinguir ummovimento no meio das folhas.

— Ajude-me, por favor.Ele teve um impulso de sair logo

dali. É claro que era impossível.Uma criança machucada, talveztivesse sido atacada…

O assassino!O assassino de Vällingby viera

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para Blackeberg, mas dessa vez avítima sobreviveu.

Mas que merda!Jocke não queria se ver envolvido

nisso. Logo ele, que ia paraTenerife. Mas não tinha jeito. Deuuns passos na direção da voz. Asfolhas farfalhavam debaixo dos seuspés e agora ele podia ver o corpo.Deitado em posição fetal no meiodas folhas secas.

Merda , merda .— O que houve?— Me ajuda…Os olhos de Jocke tinham agora

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se adaptado à escuridão e ele podiaver a criança estendendo um braçobranco em sua direção. O corpoestava nu, provavelmente foiviolado. Não. Ao chegar bem perto,viu que a criança não estava nua,vestia apenas uma blusa rosa-clara.Quantos anos? Dez, doze. Vai verque havia sido espancado por alguns“coleguinhas”. Ou ela. Se fosse umamenina, essa última hipótese eramenos provável.

Ele se agachou perto da criança,segurou uma das suas mãos.

— O que aconteceu com você?

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— Me ajuda. Me levanta.— Você está ferido?— Estou.— O que aconteceu?— Me levanta…— Não é nada com a coluna, é?Jocke tratara de doentes na época

do serviço militar e sabia que nãodevia mexer em pessoas quetivessem tido lesões nas costas e nopescoço sem ajeitar a cabeça.

— Não é a coluna?— Não. Me levanta.Mas o que ele devia fazer? Se

levasse a criança para seu

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apartamento, a polícia podia pensarque…

Tinha que carregá-la ou carregá-lo para o restaurante e chamar umaambulância de lá. É. Faria isso. Ocorpo da criança era bem pequeno eleve, devia ser uma menina e,apesar de não estar em boa forma,provavelmente conseguiria carregá-la por essa distância.

— O.k. Eu te carrego para umlugar onde a gente possa telefonar,certo?

— Está bem… obrigada.Aquele “obrigada” fez seu

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coração ficar apertado. Como elepôde ter vacilado? Que espécie decanalha era ele? Bem, deixou o bomsenso falar mais alto, e agoraajudaria a menina. Enfiou comcuidado o braço esquerdo embaixoda dobra dos joelhos da garota epassou o outro braço por seupescoço.

— Pronto. Vou levantar.— Ahã.Ela quase não pesava. Foi

incrivelmente fácil levantá-la. Vintee cinco quilos, no máximo. Talvezestivesse subnutrida. Ambiente

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familiar ruim, falta de apetite.Talvez tivesse sido espancada pelopai adotivo ou algo do gênero.Revoltante.

A menina passou os braços emvolta do pescoço de Jocke eencostou a bochecha em seu ombro.Ele conseguiu.

— Está bom assim?— Está.Ele sorriu. Um calor percorreu

seu corpo. Ele era um sujeito bom,apesar de tudo. Já podia imaginar acara dos outros quando chegassecarregando a menina para dentro do

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restaurante. Primeiro iriam querersaber o que ele tinha aprontado, edepois comentários cada vez maispositivos: “Fez muito bem, Jocke”,e por aí vai.

Começou a se virar para ir até orestaurante, cheio de fantasias nacabeça sobre uma vida nova, opasso inicial que estava dando agorapara sair do fundo do poço, quandosentiu uma dor no pescoço. O que éisso? Era como se tivesse recebidouma picada de marimbondo, e suamão esquerda queria se levantar,tirar o inseto dali, tocar no pescoço.

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Mas Jocke não podia largar acriança.

Tentou estupidamente baixar acabeça para ver o que era, emboranão pudesse ver nesse ângulo. Alémdo mais, não conseguiu baixar acabeça, já que o maxilar da meninaestava pressionando seu pescoço. Apegada no pescoço ficou mais fortee a dor aumentou. Agora eleentendeu.

— Mas o que você está fazendo?No pescoço, ele sentia a

mandíbula da menina moendo paracima e para baixo enquanto a dor

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em sua garganta aumentava. Umfilete quente escorreu-lhe pelopeito.

— Porra, pare com isso!Ele largou a menina. Não foi nem

sequer um ato consciente, apenasum reflexo; preciso tirar essa coisada minha garganta .

Mas ela não caiu. Em vez disso,agarrou-se ainda mais ao pescoçodele — meu Deus, como aquelecorpinho era forte! — e seencavalou em volta dos quadris deJocke. Como quatro dedos de umamão segurando uma boneca, ela se

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agarrou nele enquanto a mandíbulanão parava de moer.

Jocke pegou a cabeça da menina etentou arrancá-la do seu pescoço,mas era como se tentasse despregarum cogumelo orelha-de-pau de umabétula apenas com as mãos. Elaestava grudada nele. O abraço damenina era tão forte que tirava o ardos pulmões de Jocke e não odeixava aspirar ar nenhum.

Ele cambaleou para trás, tentandorespirar.

A mandíbula da menina tinhaparado de moer, agora se ouvia

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apenas um ruído suave de algosendo sorvido. Nem por um instanteela afrouxou o abraço, pelocontrário, a pegada ficou mais firmequando a garota começou a sugar.Um estalar abafado e o peito deJocke se encheu de dor. Algumasdas suas costelas tinham sequebrado.

Ele não tinha ar nem para gritar.Socou sem força a cabeça damenina com os punhos cerradosenquanto cambaleava de lá para cáno meio das folhas secas. O mundogirava. As luzes distantes do parque

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dançavam como vagalumes nafrente dos seus olhos.

Ele perdeu o equilíbrio e caiu decostas. O último som que ouviu foio de folhas sendo amassadasembaixo da nuca. Um centésimo desegundo depois, sua cabeça bateunas pedras do pavimento e o mundodesapareceu.

Oskar estava deitado olhando

para o papel de parede.Ele e a mãe tinham assistido aos

Muppets, mas ele não prestou

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atenção na história. Miss Piggyficou zangada e Caco procurouGonzo. Um dos mal-humoradoscaíra da sacada. Por que ele caíra,Oskar não sabia. Estava com opensamento longe.

Depois ele e a mãe tinhamtomado chocolate quente e comidobolinhos. Oskar sabia que eleshaviam conversado, mas não selembrava do que tinham falado.Talvez alguma coisa sobre pintar deazul as cadeiras da cozinha.

Ele não tirava os olhos do papelde parede.

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A parede inteira onde sua camaestava encostada era revestida comum papel de parede de uma foto quemostrava uma clareira numafloresta. Troncos de árvores grossose folhas verdes. Ele costumava ficardeitado imaginando personagens nomeio das folhas mais próximas dasua cabeça. Havia dois personagensque ele sempre via de uma vez,assim que olhava. Precisava seesforçar para imaginar os outros.

Agora a parede ganhou umsignificado diferente. Do outro ladodela, do outro lado da floresta, havia

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agora… Eli. Oskar estava deitadocom a mão encostada na superfícieverde tentando imaginar o que haviado outro lado. Será que o quartodela era ali? Será que ela estavadeitada agora? Ele transformou aparede no rosto de Eli, alisou asfolhas verdes, a pele macia dagarota.

Vozes do outro lado.Ele parou de alisar o papel de

parede e aguçou os ouvidos. Umavoz aguda e uma grave. Eli e o pai.Pareciam estar brigando. Eleencostou o ouvido na parede para

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escutar melhor. Saco. Se pelomenos tivesse um copo. Não ousavase levantar para apanhar um, poiseles podiam parar de falar enquantoisso.

O que eles estão falando?Era o pai dela que parecia

contrariado, mal se ouvia a voz deEli. Oskar se esforçou para escutaras palavras. Ouviu apenas unspalavrões e “… muita maldade”,depois um baque como se alguémtivesse caído no chão. Será que elebatia nela? Será que ele tinha vistoOskar alisar seu rosto e… será que

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era isso?Agora era só Eli quem falava.

Oskar não conseguiu ouvir nenhumapalavra do que ela disse, apenas otom suave da sua voz queaumentava e diminuía de volume.Será que ela falaria desse jeito se opai tivesse lhe batido? Ele não podiabater na garota. Oskar iria matá-lose ele batesse nela.

Desejou poder atravessar aparede, como o Homem-Relâmpago, o super-herói.Desaparecer parede adentro,atravessar a floresta e ir para o

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outro lado, ver o que estavaacontecendo, se Eli precisava deajuda, de consolo, de qualquercoisa.

Agora o silêncio imperava dooutro lado. Apenas seu coraçãoruflava com batidas de sucção noouvido dele.

Oskar saiu da cama, foi até aescrivaninha e despejou nela umasborrachas que estavam dentro de umcopo de plástico. Levou-o para acama e encostou a boca do copo naparede, e o fundo no ouvido.

A única coisa que ouviu foi um

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som distante de coisas sendoremexidas, não parecia vir docômodo ali ao lado. O que elesestavam fazendo ? Prendeu arespiração. De repente umestampido alto.

Um tiro de revólver!Ele procurou um revólver e —

não, foi a porta da rua que bateucom força e fez as paredestremerem.

Oskar pulou da cama e foi até ajanela. Depois de alguns segundos,um homem saiu. O pai de Eli.Segurava uma mala na mão e

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andava com passos rápidos,irritados, em direção à saída dopátio; e desapareceu.

O que eu devo fazer? Ir atrásdele? Mas por quê?

Deitou-se de novo. Era só suaimaginação em funcionamento. Elie o pai tiveram uma briga, Oskar e amãe também brigavam de vez emquando. Às vezes a mãe até saíapara a rua desse jeito, se a brigativesse sido mais séria que decostume.

Mas não de madrugada.A mãe ameaçava de se mudar

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para longe de Oskar quando achavaque ele havia sido mau com ela.Oskar sabia que ela nunca faria issoe a mãe sabia que ele sabia. Talvezo pai de Eli tivesse levado umpouco mais longe a ameaça. Saiu decasa de madrugada, com mala etudo.

Oskar estava deitado na camacom as palmas das mãos e a testacoladas na parede.

Eli , Eli . Você está aí? Elemachucou você? Você está triste?Eli …

Batidas na porta de Oskar, que

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levou um susto. Num instante deloucura, achou que fosse o pai deEli que tivesse vindo para acertar ascontas com ele.

Mas era a mãe. Entrou no quartode Oskar na ponta dos pés.

— Oskar? Você está dormindo?— Ahã.— Eu só queria dizer… mas que

vizinhos novos são esses… Vocêouviu?

— Não.— Ouviu, sim, você deve ter

ouvido. Ele berrou e bateu a portaque nem um louco. Santo Deus. Às

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vezes a gente fica feliz por não ternenhum marido. Coitada dessamulher. Você já a viu?

— Não.— Eu também não a vi. Bem,

nem ele. As persianas ficamfechadas o dia inteiro.Provavelmente alcoólatras.

— Mãe.— Quê?— Eu quero dormir.— Certo, desculpe, coração. É

que eu fiquei tão… Boa noite.Durma com os anjos.

— Ahã.

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A mãe saiu do quarto e fechou aporta com cuidado. Alcoólatra? Erabem provável.

O pai de Oskar bebia muito devez em quando; era por isso que elee a mãe não estavam mais juntos. Opai também podia ter acessos defúria como esse quando ficavabêbado. É verdade que nunca bateuem ninguém, mas gritava até ficarrouco, batia as portas e quebrava ascoisas.

Alguma coisa em Oskar sealegrou com esse pensamento. Feio,mas foi desse jeito. Se o pai de Eli

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era um bêbado então eles tinhamuma coisa em comum, algo quepodiam compartilhar.

Oskar encostou de novo a testa eas mãos na parede.

Eli , Eli . Eu sei como você sesente . Vou ajudar você . Vou salvá-la .

Eli …

Os olhos de Håkan estavam

arregalados, olhavam cegos para aabóbada da passagem subterrânea.Ele tirou mais folhas mortas do

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lugar e a blusa rosa de pano fino queEli costumava vestir apareceu,jogada em cima do peito do homem.Håkan a apanhou, pensou em levá-laao nariz para cheirar, mas se deteveao sentir que a blusa estava suja.

Jogou a blusa de volta em cimado peito do homem, apanhou ocantil do bolso e tomou três golesgrandes. A cachaça lançou línguasde fogo em sua garganta, lambeu-lhe o estômago. As folhas estalaramdebaixo do seu traseiro quando elese sentou no chão frio de pedras eficou olhando para o morto.

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Alguma coisa estava errada coma cabeça.

Håkan vasculhou a bolsa e achouuma lanterna de bolso. Verificou senão vinha ninguém no caminho doparque, acendeu a lanterna eiluminou o homem. O rosto era deum branco amarelado pálido à luzda lanterna, a boca estavaentreaberta, como se fosse dizeralguma coisa.

Håkan engoliu em seco. Só depensar que esse homem chegoumais perto do seu amado do que elepróprio algum dia pudera chegar

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deixou-o com nojo. Sua mãoprocurou o cantil de novo, queriaqueimar a angústia súbita, mas sedeteve.

O pescoço.Ao redor do pescoço inteiro do

homem era como se houvesse umcordão vermelho, grosso. Håkan sedebruçou sobre ele e viu a feridaque Eli abrira para poder chegar aosangue…

Os lábios na pele .… mas isso não explicava o

cor… dão…Håkan desligou a lanterna,

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respirou fundo e se recostouinvoluntariamente no espaçoapertado, de forma que o teto decimento da ponte arranhou amancha de calvície no alto da suacabeça. Ele aguentou calado aardência dolorosa.

A pele do pescoço do homem serompeu porque… porque a cabeçatinha sido torcida. Uma voltainteira. O pescoço estava quebrado.

Håkan fechou os olhos, inspirou eexpirou devagar para se acalmar econtrolar o impulso de sair correndodali, para bem longe… disso. O teto

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da passagem subterrâneapressionava sua cabeça, embaixodele o chão de pedras. À esquerda eà direita um caminho para o parquede onde podiam vir pessoas quechamariam a polícia. E à suafrente…

É só uma pessoa morta.É. Mas… a cabeça.Håkan não gostava de pensar que

a cabeça estava solta. Ela cairia paratrás, talvez se soltasse se elelevantasse o corpo. Sentou-se todoencolhido e descansou a testa nosjoelhos. O amado dele fizera isso.

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Com as próprias mãos.Ele sentiu uma ânsia de vômito

na garganta ao imaginar o barulho.O estalo da cabeça ao ser virada.Não queria tocar naquele corpo denovo. Ficaria sentado ali. ComoBelaqua ao pé da montanha dopurgatório, esperando o diaamanhecer, esperando…

Umas pessoas vinham do metrô.Ele se deitou no meio das folhas,bem junto do morto, encostou atesta na pedra gelada.

Por quê? Por que isso… com acabeça?

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A contaminação. Não podiaatingir o sistema nervoso. O corpotinha que ser desligado. Foi só issoque ele ficou sabendo. Ele não haviaentendido. Agora entendeu.

Os passos ficaram mais rápidos,as vozes, mais fracas. Eles subirama escada. Håkan sentou-se de novo,olhou para as linhas do rosto morto,de boca aberta. Então esse corpoteria se levantado de novo, limpadoas folhas de cima dele se não tivessesido… desligado?

Um riso estridente saiu de dentrode Håkan, tremulou como um canto

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de pássaro embaixo da passagemsubterrânea. Ele bateu na boca comtanta força que doeu. A imagem. Docadáver se levantando do monte defolhas e tirando com movimentossonolentos folhas mortas de cima dajaqueta.

O que ele iria fazer com o corpo?Deviam ser uns oitenta quilos de

músculos, gordura, ossos queprecisavam ser removidos.Triturados. Feitos em pedaços.Enterrados. Queimados.

O crematório .Claro. Carregar o corpo para lá,

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arrombar o local e incinerá-lo àsescondidas. Ou apenas deixá-lo naentrada como se fosse uma criançaabandonada, esperar que a vontadedeles de incinerar fosse tão forteque desistiriam de chamar a polícia.

Não. Havia apenas umaalternativa. À direita, o caminho doparque ia bosque adentro, para ohospital. Para o lago.

Ele enfiou a blusa ensanguentadadentro da jaqueta do cadáver,pendurou a bolsa no ombro e passouas mãos embaixo das dobras dojoelho e das costas do cadáver.

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Levantou-se, cambaleou, ficou depé. Como previra, a cabeça docadáver caiu para trás num ânguloanormal e as mandíbulas sefecharam fazendo um clique.

Quanto ele precisava andar parachegar até a água? Talvez unstrezentos, quatrocentos metros. E sealguém aparecesse? Então ele nãopodia fazer nada. Então era o fim detudo. De certa forma, seria bom.

Mas ninguém apareceu e, lá

embaixo na beira d’água, Håkan foi

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se arrastando encharcado de suorpor cima do tronco de um dossalgueiros-chorões, que sedebruçava sobre o lago quaseparalelo à superfície da água. Eletinha amarrado duas pedras grandesda beira da praia ao redor dos pés domorto com pedaços de corda.

Com um pedaço maior, deu umalaçada em volta do peito do morto,arrastou o corpo para dentro d’águao mais longe que pôde e tirou-lhe acorda.

Ele continuou sentado por uminstante no tronco da árvore com os

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pés balançando bem acima do lago eolhou para o espelho negro láembaixo, encrespado de bolhas quesubiam cada vez menos.

Ele tinha feito.Apesar do frio, as gotas de suor

escorriam, fazendo seus olhosarderem. O corpo inteiro lhe doía doesforço muscular, mas ele tinhafeito . Bem embaixo dos seus pésestava o corpo morto oculto para omundo. Não existia. As bolhastinham parado de subir e não havianada… nada que indicasse que ocadáver estava ali embaixo.

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A água refletia a imagem dealgumas estrelas.

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SEGUNDA PARTE

Afronta

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… e elesforam para

lugares ondeartin nunca

estivera antes ,bem longe de

Tyska Botten ede lackeberg —

e ali era afronteira do

mundoconhecido .

HjalmarSöderberg,

A juventude

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de Martin BirckMas aquele

cujo coraçãouma ninfa da

floresta saqueia, nunca o terá de

volta . Por sonhos à luz

da lua a almadele anseia e

não pode amaruma esposa…

ViktorRydberg,

“A ninfa da

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floresta”

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No domingo os jornaispublicaram um relato detalhadosobre o assassinato em Vällingby.As manchetes diziam: “será que elefoi vítima de um assassinatoritual?”

Fotos do menino, da baixada nobosque. Da árvore.

O assassino de Vällingby não eramais, a essa altura, o assunto domomento. Na baixada no bosque, asflores tinham murchado e as velas,se apagado. A faixa vermelha ebranca da polícia fora removida, osvestígios tinham sido coletados.

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A reportagem de domingoreacendeu as discussões. E o epíteto“assassinato ritual” dava a entenderque aquilo estava predestinado aacontecer de novo, não dava? Poisum ritual é algo que se repete.

Todo mundo que passou algumavez por aquele caminho, ou apenasesteve perto dele, tinha algo a dizer.Como esse pedaço do bosque erasinistro. Ou como esse pedaço dobosque era calmo e bonito e que nãodava para imaginar uma coisadessas.

Todo mundo que conheceu o

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menino, ainda que fosse bemsuperficialmente, dizia que ele eraum bom rapaz e que o assassinodevia ser uma pessoa muito má.Usava-se com frequência oassassinato como um exemplo decaso em que a pena de morte podiaser legítima, embora em princípiose fosse contra esse tipo de punição.

Uma coisa estava faltando. Umretrato do assassino. A gente ficavaolhando para a baixada inexpressivano bosque, para o rosto sorridentedo menino. Não havendo um retratodaquele que fizera isso, era como se

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a coisa tivesse apenas… acontecido.Isso não era satisfatório.Na segunda-feira do dia 26 de

outubro, a polícia mandou anunciarno rádio e nos jornais matinais quefez a maior apreensão deentorpecentes de todos os tempos naSuécia. E prendeu cinco libaneses.

Libaneses.Em todo caso, isso era algo que

se podia entender. Cinco quilos deheroína. E cinco libaneses. Umquilo por libanês.

Além do mais, os libanesestinham se aproveitado do sistema

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sueco de seguridade social enquantocontrabandeavam as drogas. Éverdade que tampouco havia fotosdos libaneses, mas não eranecessário. E libaneses, a gente sabeque cara eles têm. Árabes. É.

Segundo algumas especulações, oassassino ritual também era umestrangeiro. Parecia provável. E nãohavia uma espécie de ritos desangue nesses países árabes? Islão.Despachava seus filhos com cruzesde plástico ou sabe-se lá o que eraaquilo que eles tinham penduradono pescoço. Para ser revolvedores

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de minas. A gente ouviu falar disso.Gente cruel. Irã, Iraque. Libaneses.

Mas na segunda-feira a políciapermitiu que publicassem umretrato falado do assassino, que tevetempo de sair nos jornaisvespertinos. Uma menina viu ohomem. Tudo foi feito com calma esem precipitação, a polícia foicuidadosa ao produzir o retrato.

Um sueco comum. Com umaspecto fantasmagórico. Olharvazio. Todos concordavam que acara de um assassino era desse jeito.Era fácil imaginar aquele rosto com

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jeito de máscara andando àsescondidas na baixada do bosquee…

Todos em Västerort que separeciam com o retrato faladotiveram de aturar olharesdemorados, examinadores. Eles iampara casa e se olhavam no espelho,mas não achavam nenhumasemelhança. De noite, na cama,ficavam pensando se deviam mudaro visual para o dia seguinte, ou seráque pareceria suspeito?

Eles não precisavam sepreocupar. As pessoas teriam outra

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coisa em que pensar. A Suéciaviraria um outro país. Uma naçãoafrontada . Era esta a palavra que seusava o tempo todo: afronta.

Enquanto aqueles que se parecemcom o retrato falado estão na camapensando em usar um penteadonovo, um submarino soviético estáencalhado no litoral de Karlskrona.Os motores da embarcação roncame ecoam pelo arquipélago ao tentarsair do fundo do mar. Ninguém vailá para examinar.

Ele será descoberto por acaso naquarta-feira de manhã.

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Quarta-feira, 28 de outubro

A escola fervilhava de boatos nahora do almoço. Um professorouviu no rádio na hora do intervalo,contou para sua turma e, na hora doalmoço, todos já estavam sabendo.

Os russos tinham chegado.O assunto principal das conversas

das crianças na última semana tinhasido o assassino de Vällingby.Várias haviam visto o assassino,

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alguém até chegou a dizer que foiatacado por ele.

Tinham visto o assassino em todotipo estranho que passava pelaescola. Quando um velho de roupassurradas pegou um atalho pelopátio, as crianças saíram correndoaos gritos e se esconderam noprédio da escola. Alguns dosmeninos mais valentões tinham searmado de tacos de hóquei e sepreparado para bater nele.Felizmente alguém reconheceu ohomem como um dos pés de cana láda praça. Deixaram-no ir.

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Mas agora eram os russos. Não sesabia muito sobre os russos. Era umalemão, um russo e Bellman. Eleseram os melhores no hóquei.Chamava-se União Soviética. Eles eos americanos eram os que tinhamviajado para o espaço. Osamericanos haviam construído umabomba de nêutron para se protegerdos russos.

Oskar discutia o assunto comJohan na hora do almoço.

— Será que os russos tambémtêm uma bomba de nêutron?

Johan encolheu os ombros. —

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Com certeza. Talvez eles tenhamuma naquele submarino.

— Mas não é preciso usar aviãopara soltar bombas?

— Não. Eles põem as bombas emfoguetes que voam para qualquerlugar.

Oskar olhou para o céu. — Dápara ter uma dessas numsubmarino?

— Claro. É possível ter essasbombas em qualquer lugar.

— As pessoas morrem e osprédios continuam de pé.

— Exatamente.

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— Eu queria saber o que acontececom os animais.

Johan refletiu por um instante.— Eles também devem morrer.

Pelo menos os grandes.Estavam sentados na beira da

caixa de areia, onde nenhumacriancinha brincava no momento.Johan apanhou uma pedra grande ejogou-a, fazendo a areia levantarpara todos os lados. — Pow! Todosestão mortos!

Oskar pegou uma pedra menor.— Não! Ali está um que

sobreviveu! Pxiuuu ! Míssel nas

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costas!Eles jogaram pedras e cascalho,

arrasaram todas as cidades da terra,até aparecer uma voz atrás deles.

— Mas o que vocês estãofazendo?

Eles se viraram. Jonny e Micke.Foi Jonny quem falou. Johan jogoua pedra que tinha na mão.

— Bem, a gente só…— Não perguntei a você. Porco?

O que vocês estão fazendo?— Jogando pedras.— E por quê?Johan se afastou um pouco,

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estava ocupado amarrando ossapatos.

— Por… nada.Jonny olhou para a caixa de areia

e bateu as mãos, o que deu um sustoem Oskar.

— Aqui é lugar de criançapequena brincar. Dá para entenderisso? Você está destruindo a caixade areia.

Micke abanou a cabeça,penalizado. — Elas podem cair e semachucar nas pedras.

— Agora você vai apanhar issoaí, porco.

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Johan ainda estava ocupado comos sapatos.

— Ouviu o que eu disse? Vocêvai apanhar isso aí .

Oskar não se mexeu, nãoconseguia decidir o que ia fazer. Éclaro que Jonny não dava a mínimapara a caixa de areia. Era apenas ode sempre. Levaria no mínimo dezminutos para tirar todas as pedrasque eles tinham jogado e Johan nãoajudaria. O sinal ia tocar a qualquerinstante.

Não .A palavra surgiu de Oskar como

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se fosse uma revelação. Comoalguém que pela primeira vez põena boca a palavra “deus”, e querrealmente dizer… Deus.

A imagem dele próprioapanhando as pedras depois de osoutros já terem entrado na escola, sóporque Jonny mandou, tinhapassado como um flash em suacabeça. Mas também mais umacoisa. Ao lado da caixa de areiahavia um trepa-trepa parecido comaquele do pátio de Oskar.

Oskar sacudiu a cabeça.— O que é isso agora?

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— Não.— Como não? Parece que você

não entendeu direito. Eu te dissepara apanhar as pedras e você vaifazer isso .

— não.O sinal tocou. Jonny ficou parado

encarando Oskar. — Agora vocêsabe o que vai acontecer, não sabe?Micke.

— Fale.— A gente pega o Porquinho na

saída.Micke acenou com a cabeça. —

Até mais, porco.

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Jonny e Micke entraram. Johan selevantou, acabara com os sapatos.

— Isso foi uma burrice semtamanho.

— Eu sei.— Pô, então por que você fez

isso?— Porque… — Oskar olhou de

relance para o trepa-trepa. —Porque sim.

— Idiota.— É.

Quando as aulas terminaram,

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Oskar continuou na escola. Pôs duasfolhas brancas em cima da carteira,apanhou a enciclopédia no fundo dasala e a folheou.

Mamute … Médici … mongol …Morfeu … Morse .

É. Era isso. Os pontos e traços docódigo morse ocuparam um quartoda página. Com letras grandes ebem legíveis, ele começou a copiaro código numa das folhas: A = . —B= — . . .

C = — . — .e assim por diante. Quando

acabou, fez a mesma coisa na outra

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folha. Não ficou satisfeito. Jogoufora as folhas e recomeçou,escreveu os sinais e as letras commais capricho.

É verdade que bastava apenasuma folha ficar bonita: aquela queficaria com Eli. Mas ele gostava datarefa, que além disso lhe dava ummotivo para permanecer na escolamais tempo.

Eli e Oskar se encontravam todanoite já fazia uma semana. Na noiteanterior ele experimentou bater naparede antes de sair de casa e Elirespondeu. Depois saíram ao

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mesmo tempo. Foi então que Oskarteve a ideia de desenvolver acomunicação através de algum tipode sistema e, uma vez que o códigomorse já existia…

Examinou as folhas prontas.Bonito. Eli ia gostar. Assim comoele, ela gostava de quebra-cabeças,de sistema. Ele dobrou as folhas,enfiou-as na mochila e descansou osbraços na carteira. O estômago lhedoía. Eram três e vinte no relógio dasala. Apanhou o livro da carteira, Aincendiária , e leu até as quatro.

Será que eles tinham esperado

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duas horas por ele?Se ele tivesse apanhado as pedras

como Jonny dissera, já estaria emcasa agora. Estaria tudo bem.Apanhar umas pedras não era a piorcoisa que tinham mandado Oskarfazer, e ele fez. Arrependeu-se.

E se eu fizer agora?A punição amanhã talvez fosse

mais branda se ele contasse queficou depois da hora na escola e…

Bem, era isso que ele ia fazer.Juntou suas coisas na sala e foi

para a caixa de areia. Só levou dezminutos para arrumar tudo. Quando

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ele fosse contar isso amanhã, Jonnyia dar uma risadinha, um tapinha nacabeça dele e dizer “ô, porquinhoaplicado” ou algo do gênero. Masera melhor assim, apesar de tudo.

Ele olhou de soslaio para o trepa-trepa, pôs a mochila ao lado dacaixa de areia e começou a apanharas pedras. As grandes primeiro.Londres, Paris. Enquanto tirava aspedras, imaginou que agora estavasalvando o mundo. Limpava omundo das terríveis bombas denêutron. Quando as pedras eramlevantadas, as pessoas vinham se

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arrastando das ruínas dos prédiosque nem formigas saindo doformigueiro. Mas as bombas denêutron não destruíam prédios,certo? Bem, é que também tinhamcaído algumas bombas atômicas.

Quando Oskar foi para a beira dacaixa de areia para descarregar umaparte das pedras, eles estavam ali.Ele não ouviu quando eles vieram,ocupado demais que estava com abrincadeira. Jonny, Micke. ETomas. Nas mãos, todos os trêscarregavam galhos compridos deaveleira. Chicotes. Jonny apontou

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com o chicote para uma pedra.— Ali tem uma.Oskar largou as pedras que tinha

nas mãos e apanhou a que Jonnyapontara. Jonny balançou a cabeça.— Muito bem. A gente estavaesperando por você, porco.Esperamos bastante.

— Depois Tomas veio e falou quevocê estava aqui — disse Micke.

Os olhos de Tomas estavaminexpressivos. Do primeiro aoterceiro ano, Oskar e Tomas tinhamsido amigos, brincaram muito nopátio do prédio de Tomas, mas

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depois do verão, entre o quarto e oquinto ano, Tomas mudou.Começou a falar de um jeitodiferente, mais adulto. Oskar sabiaque os professores consideravamTomas o mais inteligente dosmeninos da turma. Dava paraperceber pelo jeito que eles falavamcom Tomas. Ele tinha computador.Queria ser médico.

Oskar queria jogar a pedra queestava em sua mão bem na cara deTomas. Dentro da boca que se abriaagora para falar.

— Não vai correr? Comece logo a

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correr.A vara zuniu quando Jonny

estalou o chicote no ar. Oskarapertou ainda mais a pedra na mão.

Por que é que eu não corro?Ele já podia sentir as pernas

arderem do chicote pousando nelas.Era só ir para o caminho do parqueonde devia haver adultos que elesnão teriam coragem de bater nele.

Por que é que eu não corro?Porque de qualquer jeito ele não

tinha a menor chance. Iriam jogá-lono chão antes que conseguisse darcinco passos.

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— Me deixa em paz.Jonny virou a cabeça fingindo

que não ouvira.— O que você disse, porco?— Me deixa em paz.Jonny se virou para Micke.— Ele acha que a gente deve

deixar passar.Micke sacudiu a cabeça.— Mas logo agora que a gente

fez essas coisinhas bonitas… — Elebalançou a vara de um lado para ooutro.

— O que você acha, Tomas?Tomas olhou para Oskar como se

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ele fosse um rato, ainda vivo,esperneando na ratoeira.

— Acho que o porco precisa deumas palmadas.

Eles eram três. Tinham chicotes.Uma situação altamente injusta.Oskar podia jogar a pedra na cara deTomas. Ou jogá-la quando ele seaproximasse. Seria caso deconversar com o diretor da escolaetc. Mas todo mundo entenderia suareação. Três com chicotes.

Eu estava … desesperado .Oskar não estava nem um pouco

desesperado. Pelo contrário, sentia

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uma espécie de calma queperpassava o medo, agora queresolveu. Eles podiam chicoteá-lo,isso lhe daria um motivo para jogara pedra na cara nojenta de Tomas.

Jonny e Micke chegaram maisperto, então Jonny estalou a vara nacoxa de Oskar de forma que omenino se encolheu todo de dor.Micke foi para trás de Oskar esegurou-lhe os braços.

Não .Agora ele não podia jogar. Jonny

bateu com a vara em suas pernas,deu um giro igual ao Robin Hood no

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filme e bateu de novo.As pernas de Oskar queimavam

com as chicotadas. Ele se remexeunas mãos de Micke, mas nãoconseguiu se soltar. As lágrimas lhevieram aos olhos. Gritou. Jonny deuuma última chicotada forte queroçou na perna de Micke, fazendo-oberrar “Preste atenção, porra!”, massem soltar Oskar.

Uma lágrima desceu pelo rosto deOskar. Aquilo era injusto! Eleapanhou as pedras, ele se submeteu,por que tinham que machucá-lo dequalquer maneira?

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A pedra, que Oskar apertava namão o tempo todo, soltou-se e elecomeçou a chorar de verdade.

Com voz de quem sente pena,Jonny disse: — O porco estáchorando.

Jonny parecia satisfeito. Por ora,era o bastante. Fez um sinal paraMicke largá-lo. O corpo todo deOskar tremia do choro, da dor naspernas. Seus olhos estavam cheiosde lágrimas quando levantou o rostopara eles e ouviu a voz de Tomas.

— E eu?Micke agarrou-lhe os braços de

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novo e, através da névoa queencobria seus olhos, Oskar viuTomas ir para cima dele. O meninodisse, fungando: — Me deixa. Porfavor.

Tomas levantou a vara e estalou.Uma única vez. O rosto de Oskarexplodiu e seu corpo teve umespasmo tão forte, virando-se delado, que Micke perdeu ou largou osbraços do menino e disse: — Porra,Tomas. Isso aí foi…

Jonny parecia irritado.—Agora é você quem vai falar

com a mãe dele.

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Oskar não ouviu o que Tomasrespondeu. Se por acaso respondeualguma coisa.

As vozes dos três foramdesaparecendo; tinham deixadoOskar com o rosto na areia. Suabochecha esquerda queimava. Aareia estava fria, refrescava suaspernas que ardiam. Queria encostara bochecha na areia também, masachou que não devia.

Ficou deitado tanto tempo ali quecomeçou a sentir frio. Então sesentou e passou com cuidado a mãono rosto. Seus dedos ficaram com

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sangue.Ele foi para o banheiro externo e

se olhou no espelho. Sua bochechaestava inchada e coberta de sanguemeio coagulado. Tomas deve terbatido com o máximo de força.Oskar lavou o rosto e se olhou noespelho de novo. A ferida tinhaparado de sangrar, não era profunda.Mas riscava quase a bochecha toda.

A mãe . O que eu vou dizer para…

A verdade. Ele precisava deconsolo. Dentro de uma hora a mãechegaria em casa. Então Oskar

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contaria o que tinham feito com elee a mãe ficaria fora de si e iriaabraçá-lo até não poder mais e elese afundaria nos braços dela, em seuchoro, e os dois chorariam juntos.

Depois ela ligaria para a mãe deTomas.

Depois ela ligaria para a mãe deTomas, as duas brigariam, e depoisa mãe ia chorar pelo fato de a mãedo Tomas ser tão má, e depois…

A aula de carpintaria .Aconteceu um acidente na aula de

carpintaria. Não. Nesse caso elapoderia ligar para o professor de

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carpintaria.Oskar estudou a ferida no

espelho. Como é que se arranjavauma ferida dessas? Ele caiu dotrepa-trepa. Não era muitoconvincente, mas a mãeprovavelmente queria acreditarnisso. De qualquer jeito, ela sentiriapena do filho e o consolaria, massem aquela outra parte. O trepa-trepa.

Estava frio dentro das calças.Oskar abriu e olhou. Sua cuecaestava encharcada. Apanhou a Bolado Mijo e a enxaguou. Já ia

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enfiando a bola de volta na cuecamolhada, mas parou e se olhou noespelho.

Oskar . Esse aí é o … Oooskar .Pegou a bola lavada e pôs a

espuma no nariz. Igual a um narizde palhaço. A bola amarela e aferida vermelha na bochecha. Oskar.Arregalou os olhos, tentou fazercara de louco. É. Dava medo. Faloupara o palhaço no espelho.

— Agora acabou. Agora basta.Ouviu? Chega.

O palhaço não respondeu.— Não vou mais passar por isso.

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Nem mais uma vez, ouviu?A voz de Oskar ecoava no

banheiro vazio.— O que é que vou fazer? O que

é que eu vou fazer, o que você acha?Ele retorceu o rosto numa careta

de modo que a ferida repuxou,modificou a voz e a deixouarranhada e grave ao máximo. Opalhaço falou.

— … mate todos eles… matetodos eles… mate todos eles…

Oskar sentiu um calafrio. Issoaqui deu mesmo um pouco de medo.Parecia de fato a voz de outra

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pessoa e o rosto no espelho não erao dele. Tirou a Bola do Mijo donariz e enfiou a espuma na cueca.

A árvore .Não que ele acreditasse mesmo

naquilo, mas… daria umas facadasna árvore. Talvez. Talvez. Se ele seconcentrasse de verdade, então…

Talvez .Oskar pegou a mochila e se

apressou em ir para casa, com acabeça cheia de imagens deliciosas.

Tomas está sentado na frente docomputador quando sente aprimeira facada . Não entende de

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onde ela vem. Vai cambaleandopara a cozinha com o sanguejorrando da barriga: “Mãe, mãe,alguém está me atacando ”.

A mãe de Tomas estaria ali. Amãe de Tomas que sempre defendeuo filho seja lá o que ele fizesse. Elaestaria ali. Aterrorizada. Enquantoisso, as facadas continuavamfurando o corpo de Tomas.

Ele cai no chão da cozinha numapoça de sangue , “… mãe … mãe…”, enquanto a faca invisível cortasua barriga e as vísceras escorrempelo piso de linóleo .

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Não que funcionasse desse jeito.Mas ainda assim.

O apartamento fedia a mijo de

gato.Giselle estava deitada em seu

colo ronronando. Bibi e Beatricebrincavam emboladas no chão.Manfred, como sempre, estavasentado com o nariz encostado najanela enquanto Gustaf tentavachamar sua atenção empurrando-ode lado com a cabeça.

Måns, Tufs e Cleopatra estavam

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esparramados na poltrona; Tufscutucava com a pata alguns fiossoltos. Karl-Oskar tentou pular noparapeito da janela mas perdeu oalvo e caiu de costas no chão. Eracego de um olho.

Lurvis estava no corredor eesperava dar o bote na portinhola dacaixa de correio, pronto para pular edar um arranhão se chegasse algumfolheto de anúncio. Vendela estavadeitada no porta-chapéus olhandopara Lurvis; a pata dianteiradeformada estava pendurada nomeio das grades do porta-chapéus e

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estremecia de vez em quando.Alguns gatos estavam na cozinha

comendo ou esparramados por cimada mesa e das cadeiras. Cinco delesna cama no quarto. Outros tinhamseus lugares prediletos dentro deguarda-roupas ou armários que elesmesmos aprenderam a abrir.

Desde que Gösta não deixavamais os gatos passearem lá fora,devido à pressão dos vizinhos, nãoaparecia nenhum material genéticofresco. Quase todos que nasciameram filhotes mortos ou tinhamdeformações tão graves que

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morriam depois de alguns dias. Umpouco mais da metade dos vinte eoito gatos que moravam noapartamento de Gösta tinha algumtipo de malformação. Eram cegosou surdos, tinham dentes faltandoou deficiências motoras.

Gösta amava todos eles.Ele fez um carinho atrás da

orelha de Giselle.— Iiisso… minha criança… o

que a gente vai fazer? Você nãosabe? Não, nem eu. Mas precisamosfazer alguma coisa , não é mesmo?Não se pode fazer uma coisa dessas.

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Era Jocke . Eu o conhecia. E agoraele está morto. Mas ninguém sabedisso. Porque eles não viram o queeu vi. Você viu?

Gösta abaixou a cabeça esussurrou: — Era uma criança . Euvi quando ela apareceu lá embaixono caminho. Esperando por Jocke.Na passagem subterrânea. Eleentrou… e não saiu mais de lá.Depois, de manhã, sumiu. Mas estámorto. Eu sei .

O quê?Não, eu não posso procurar a

polícia. Eles vão fazer perguntas .

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Virá um monte de gente e eles vãoperguntar… por que eu não dissenada. E vão meter uma dessaslâmpadas na cara da gente.

Agora faz três dias. Ou quatro.Não sei. Que dia é hoje? Eles vãofazer perguntas. Eu não posso fazerisso.

Mas a gente precisa fazer algumacoisa.

O que a gente vai fazer?Giselle olhou para Gösta. Depois

começou a lamber a mão dele.

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Quando Oskar chegou em casa,vindo do bosque, a faca estava sujade lascas carcomidas. Lavou-a natorneira da cozinha, secou-a comuma toalha que depois enxaguoucom água fria, torceu e segurou atoalha em cima da bochecha.

A mãe chegaria logo. Eleprecisava sair um pouco de novo,ter um pouco mais de temposozinho — o choro ainda estavapreso em sua garganta, suas pernasardiam. Apanhou a chave noarmário da cozinha e escreveu umbilhete: Volto já . Oskar . Pôs

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depois a faca no lugar e desceupara o porão do prédio. Destrancoua porta pesada e entrou.

O cheiro do porão. Oskar gostavadele. Um cheiro familiar demadeira, de coisas velhas e lugarfechado. Um pouco de luz penetravada janela no nível do chão e naescuridão o porão sugeria segredos,tesouros escondidos.

À sua esquerda, havia um túnelcomprido que abrigava quatrodepósitos. Paredes e portas eram demadeira, as portas trancadas comcadeados grandes e pequenos. Uma

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das portas tinha correntesreforçadas; alguém que teve odepósito arrombado.

Na parede de madeira, bem nofundo do túnel, estava escrito “kiss”com caneta hidrográfica. Os dois“S” tinham o formato de dois “Z”ao contrário, separados.

O que era de interesse estava naparede oposta do corredor. A lixeirapara coisas de grande volume. AliOskar tinha encontrado umaluminária de globo terrestre quefuncionava e que estava agora emseu quarto, assim como alguns

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números antigos da revista Hulk .Entre outras coisas.

Mas hoje não havia quase nada.Ela devia ter sido esvaziada haviapouco. Uns jornais, algumas pastasonde estava escrito “Inglês” e“Sueco”. Pastas, Oskar já tinha osuficiente. Salvou um monte delasdo contêiner do lado de fora dagráfica um ano atrás.

Continuou pelo porão e foi para opróximo prédio do bloco, o prédiode Tommy. Foi até a próxima portado porão, destrancou-a e entrou.Esse porão tinha um cheiro

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diferente, um cheirinho de tinta deparede ou de solvente.

Aqui também ficava o abrigoantiaéreo do bloco. Ele só esteve ládentro uma vez, fazia três anos,nessa época uns garotos mais velhostinham um clube de boxe ali. Eletinha ido com Tommy numa tardepara dar uma olhada. Os meninos sesocavam com as luvas de boxeenfiadas nas mãos e Oskar ficoucom um pouco de medo. Gemidos esuor, os corpos concentrados,retesados, o som dos golpesabafados pelas paredes grossas de

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cimento. Depois alguém semachucou ou algo do gênero e aroda usada para retirar as trancas daporta de ferro tinha sido travadacom correntes e cadeados. Fim doboxe.

Oskar acendeu a luz e foi para oabrigo antiaéreo. Se os russosviessem, esse lugar seriadestrancado.

Se não tivessem perdido a chave .Oskar estava em frente à porta

sólida de ferro quando surgiu aquelepensamento. Que alguém… alguémestava trancado aqui dentro. Era

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essa a razão das correntes e doscadeados. Um monstro.

Aguçou os ouvidos. Sonsdistantes da rua, de pessoas fazendocoisas nos apartamentos ali emcima. Ele gostava mesmo do porão.Era como se estivesse num outromundo, ao mesmo tempo que agente sabia que o outro mundoexistia logo ali do lado de fora, aliem cima caso se precisasse dele.Mas aqui embaixo era silencioso eninguém aparecia e dizia coisas,fazia coisas com a gente. Nada quese fosse obrigado a fazer.

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Do lado oposto do abrigoantiaéreo ficava o Clube do Porão.Território proibido.

É verdade que não havia trancaali, mas isso não significava quequalquer pessoa pudesse entrar lá.Ele respirou fundo e abriu a porta.

Não havia muita coisa nodepósito. Um sofá gasto e umapoltrona igualmente gasta. Umtapete no chão. Uma cômoda com apintura descascada. Da lâmpada docorredor vinha uma fiação extra, umgato ligado à lâmpada nuapendurada num fio do teto. Ela

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estava apagada.Ele esteve ali algumas vezes

antes e sabia que para acender alâmpada era só girá-la. Mas nãotinha coragem. A luz que seinfiltrava pelas paredes de madeiraera suficiente. Seu coração batiamais rápido. Se eles o pegassem ali,iam…

O quê? Sei lá . É isso que davamedo . Não iam bater , mas …

Ficou de joelhos no tapete elevantou uma almofada do sofá.Debaixo dela havia uns tubos decola instantânea e um rolo de saco

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plástico, uma lata de gás de ignição.Debaixo da almofada na outra pontado sofá estavam as revistas demulher pelada. Alguns exemplaresde Lektyr e Fib Aktuellt puídos detanto manuseio.

Ele pegou um número de Lektyr efoi para perto da porta, onde haviamais luz. Ainda de joelhos, pôs arevista no chão diante dele e afolheou. Sua boca estava seca. Amulher na foto estava deitada numacadeira de praia apenas de sapatoalto. Apertava os peitos e faziabiquinho com a boca. As pernas

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arreganhadas e, no meio do matagalde cabelos entre as coxas, haviauma listra de carne rosada com umafenda no meio.

Como é que se entrava ali?Ele sabia as palavras das

conversas que ouviu, das pichaçõesque leu. Buceta. Buraco. Lábiosvaginais. Mas é que não havianenhum buraco. Só aquela fenda.Eles tiveram educação sexual naescola e ele sabia que havia um…túnel lá dentro da buceta. Mas quala direção dele? Para a frente, paracima ou… não dava para ver.

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Continuou folheando a revista. Orelato dos leitores. Uma piscinamunicipal. Um toalete no vestiáriofeminino. Os mamilos enrijecerampor baixo da roupa de banho . Opau pulsava como um martelo nasunga . Ela segurou-se num dosganchos de pendurar roupa e viroua bundinha para mim , gemendo:“Me pegue , me pegue agora ”.

Será que isso acontecia o tempotodo, por detrás de portas fechadas,em lugares onde não se via nada?

Ele começou uma outra história,sobre uma reunião de parentes que

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teve um desenrolar inesperado,quando ouviu a porta do porão seabrir. Fechou a revista, enfiou-a devolta embaixo da almofada do sofáe não soube o que fazer consigomesmo. Sentiu um nó na garganta,não ousava respirar. Passos nocorredor.

Ó Deus, leve-os para o outro lado. Leve-os para o outro lado .

Oskar abraçou desesperadamenteas rótulas do joelho e trincou osdentes, chegando a sentir dor namandíbula. A porta foi aberta. Láfora Tommy pestanejou.

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— Mas o que é isso?Oskar não queria dizer nada, mas

a mandíbula travou. Ele sóconseguiu ficar parado de joelhosno meio do tapete de luz que sedesenrolou da porta, inspirandoofegante pelo nariz.

— Mas o que você está fazendoaqui? O que é que você fez?

Quase sem mexer o maxilar,Oskar conseguiu dizer: — … nada.

Tommy deu um passo e entrou nodepósito; parecia uma torre acimade Oskar.

— Estou falando do seu rosto. O

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que você fez com ele?— Eu… nada.Tommy sacudiu a cabeça de um

lado para o outro, atarrachou alâmpada para a luz se acender efechou a porta. Oskar ficou de pé efoi para o meio do depósito com osbraços retesos caídos. Não sabia oque fazer. Deu um passo em direçãoà porta. Tommy se afundou napoltrona e fez um muxoxo,apontando para o sofá.

— Sente-se aí.Oskar sentou-se na almofada do

meio; aquela onde não havia nada

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embaixo. Tommy ficou calado uminstante, olhando para ele. Emseguida disse: — E então? Pode ircontando.

— O quê?— O que você fez com sua

bochecha.— … eu… eu só…— Alguém meteu porrada em

você, não foi? Não foi isso?— … foi…— E por quê?— Não sei.— Como assim? Eles metem

porrada em você, assim sem

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motivo?— É.Tommy balançou a cabeça e

apanhou uns fiapos soltos que saíamda poltrona. Apanhou uma caixinhade rapé e enfiou uma porçãoembaixo do lábio superior. Ofereceua caixinha para Oskar.

— Quer?Oskar sacudiu a cabeça. Tommy

guardou a caixa, ficou ajeitando orapé com a língua e se recostou napoltrona, trançando as mãos emcima da barriga.

— Certo. E o que você está

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fazendo aqui?— Bem, é que eu só ia…— Dar uma olhada na

mulherada? Certo? Você não cheiracola, não é? Venha cá.

Oskar se levantou e foi atéTommy.

— Chegue mais perto, solte umbafo.

Oskar fez o que ele mandou eTommy balançou a cabeçaaprovando, apontou para o sofá edisse para Oskar sentar-se de novo.

— Você não deve se meter comisso, está me ouvindo?

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— Eu não…— É, você não usou. Mas você

não deve se meter com isso, ouviu?Não é bom. Rapé é bom. Comece ausar rapé. — Ele fez uma pausa. —E então? Vai ficar sentado aíolhando para mim a noite toda,hein? — Ele fez um gesto nadireção da almofada ao lado deOskar. — Quer ler mais um pouco?

Oskar sacudiu a cabeça.— Está bem. Então vá para casa.

Os outros vão chegar logo e não vãoficar muito contentes de ver vocêaqui. Vá para casa agora.

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Oskar se levantou.— E… — Tommy olhou para ele,

sacudiu a cabeça, suspirou. — Não,não é nada. Vá para casa. Escute.Não venha mais para cá.

Oskar assentiu e abriu a porta.Parou na porta aberta.

— Desculpe.— Tudo bem. Só não venha mais

para cá. Aliás, e o dinheiro?— Amanhã.— Certo. Eu me lembrei.

Arranjei uma fita para você comDestroyer e Unmasked . Suba paraapanhá-la um dia desses.

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Oskar assentiu. Sentiu um nócrescer na garganta. Se ficasse alimais um pouco, começaria a chorar.Então sussurrou “Obrigado” e foiembora.

Tommy continuou sentado na

poltrona, sugando o rapé e olhandopara os bolos de poeira que seamontoavam debaixo do sofá.

Não tem jeito .Oskar ia levar pancada até o final

do nono ano. Era seu estilo. Tommyqueria fazer alguma coisa, mas, se a

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coisa já estava em andamento, eracaso perdido. Não havia nada afazer.

Ele desenterrou um isqueiro dobolso, enfiou-o na boca e deixou ogás sair. Quando começou a sentirfrio na cavidade bucal, tirou oisqueiro, acendeu-o e soltou umbafo.

Uma nuvenzinha de fogo surgiuna frente da sua cara. Não ficoumais feliz por isso. Tommy estavainquieto, ficou de pé e andou umpouco no tapete. Bolos de poeiravoaram.

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O que é que eu vou fazer?Mediu o tapete contando os

passos, imaginou que o tapete erauma prisão. Não dava para sair dali.Ali, onde se foi alojado, é onde sepodia ficar, blá-blá-blá. Blackeberg.Ele precisava se mandar dali, iaser… marinheiro ou algo desse tipo.Qualquer coisa.

Esfregar convés , ir para Cuba ,hei hou .

Uma vassoura que quase nuncaera usada estava encostada naparede. Apanhou-a e começou avarrer. A poeira subiu até seu nariz.

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Depois de ter varrido por um tempo,lembrou que não havia pá.Empurrou o bolo de sujeira paradebaixo do sofá.

É melhor um pouco de sujeira noscantos do que uma zona total.

Folheou a revista de mulherpelada. Pôs a revista de volta nolugar. Enrolou o cachecol nopescoço e puxou o pano até a cabeçaficar a ponto de explodir. Soltou.Levantou-se, andou um pouco notapete. Ficou de joelhos, rezou aDeus.

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Às cinco e meia apareceram

Robban e Lasse. Tommy estavanesse instante recostado na poltronae não parecia ter um pingo depreocupação. Lasse sugou os lábios,parecia nervoso. Robban deu umrisinho e um tapinha nas costas deLasse.

— Lasse precisa de mais umaparelho de fita cassete.

Tommy levantou as sobrancelhas.— Por quê?— Fale aí, Lasse.Lasse bufou, não tinha coragem

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de olhar Tommy nos olhos.— Bem… é que tem um cara no

trabalho…— Que quer comprar?— Ahã.Tommy deu de ombros, saiu da

poltrona e vasculhou no estofadopara apanhar a chave do abrigoantiaéreo. Robban pareciadesapontado, com certeza tinhaesperado uma bronca daquelas doTommy, mas ele nem ligou. Lassepodia berrar “mercadoria de roubo àvenda” nos alto-falantes do trabalhose tivesse vontade. Não tinha a

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menor importância.Tommy tirou Robban da sua

frente e foi para o corredor. Abriu ocadeado, tirou a corrente da roda daporta e jogou-a para Robban. Eladeslizou das mãos de Robban e fezbarulho ao cair no chão.

— O que é que há com você? Estáputo, é?

Tommy sacudiu a cabeça, girou aroda e empurrou a porta para cima.A lâmpada fluorescente do abrigoestava quebrada, mas a luz docorredor era suficiente para ver aspilhas de caixas encostadas na

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parede. Tommy levantou uma caixacom um aparelho de fita cassete eentregou-a para Lasse.

— Divirta-se.Lasse olhou indeciso para

Robban, pedindo ajuda parainterpretar a atitude de Tommy.Robban fez uma careta que podiasignificar qualquer coisa e se viroupara Tommy, que estava trancandoo local de novo.

— Staffan disse mais algumacoisa?

— Não. — Tommy fechou ocadeado e suspirou. — Vou jantar

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na casa dele amanhã. Vamos ver oque acontece.

— Jantar?— É, por quê?— Não, por nada. É que eu

achava que os tiras comiam…gasolina ou algo desse tipo.

Lasse soltou uma golfada de ar,contente com o fim do climapesado.

— Gasolina…

Oskar tinha mentido para a mãe.

E ela acreditou nele. Agora o

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menino estava deitado na cama,sentindo-se mal.

Oskar. Aquele cara no espelho.Quem é ele? Um monte de coisasacontecem com ele. Coisas ruins.Coisas boas. Coisas estranhas. Masquem é Oskar? Jonny olha para ele evê o porco que vai levar porrada. Amãe olha e vê Meu Coração e nadade mal pode lhe acontecer.

Eli olha para ele e vê … o quê?Oskar ficou de frente para a

parede, para Eli. Os doispersonagens surgiram da folhagem.A bochecha ainda estava dolorida e

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inchada, uma casca de feridacomeçou a se formar. O que ele iadizer para Eli, se ela aparecessehoje à noite?

Uma coisa tinha a ver com aoutra. O que Oskar ia lhe dizerdependia do que ele significava paraela. Eli era algo novo para omenino, e por isso ele tinha aoportunidade de ser uma outrapessoa, dizer outra coisa que não erao que dizia para os demais.

Como é que a gente faz , afinal decontas ? Para fazer alguém gostarda gente?

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O relógio em cima daescrivaninha marcava sete e quinze.Ele olhou dentro das folhagens,tentou achar figuras novas, tinhaachado um duendezinho de chapéupontiagudo e um gnomo de cabeçapara baixo quando bateram naparede.

Toc-toc-toc .Batidas leves. Ele bateu de volta.Toc-toc-toc .Esperou. Depois de uns segundos,

uma nova batida.Toc-toctoctoc-toc .Ele preencheu as duas que

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faltavam: toc-toc .Esperou. Mais nenhuma batida.Ele apanhou o pedaço de papel

com o código morse, vestiu ocasaco, disse tchau para a mãe edesceu para o parquinho. Só tinhadado alguns passos quando a portado prédio de Eli se abriu e ela saiu.Estava de tênis, jeans azul e umblusão de moletom preto ondeestava escrito “Star Wars” em letrasprateadas.

Primeiro Oskar achou que fosse oblusão dele; tinha um igualzinhoque usou na noite anterior, estava no

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cesto de roupa suja agora. Será queela foi comprar um igual só porqueele tinha um?

— E aí?Oskar abriu a boca para dizer o

“oi” que estava esperando para sairde lá de dentro, mas fechou a boca.Abriu-a de novo para dizer “e aí”,mudou de ideia e disse “oi” assimmesmo.

Uma ruga apareceu no meio dassobrancelhas de Eli.

— O que houve com suabochecha?

— Ah, é que eu… caí.

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Oskar continuou descendo para oparquinho e Eli foi atrás. Ele passoupelo trepa-trepa e sentou-se numbalanço. Eli se acomodou nobalanço ao lado. Balançaram para afrente e para trás em silênciodurante um tempo.

— Foi alguém que fez isso, nãofoi?

Oskar deu mais umas balançadas.— Foi.— Quem?— Uns… colegas.— Colegas ?— Uns caras da escola.

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Oskar empurrou o balanço maisalto e aproveitou o assunto.

— Qual é sua escola?— Oskar.— Que é?— Pare um pouco.Ele freou o balanço com os pés e

olhou para o chão à sua frente.— O.k., o que é?— Oskar…Eli estendeu a mão, pegou a de

Oskar e ele parou totalmente,olhando para a garota. Seu rosto eraquase que só uma silhueta com ajanela iluminada ao fundo, atrás

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dela. É claro que era fruto da suaimaginação, mas Oskar achou quesaía uma luz dos olhos de Eli. Dequalquer jeito, eles eram a únicacoisa que ele podia enxergarnitidamente do rosto da menina.

Com a outra mão, ela tocou aferida, e aquela coisa estranhaaconteceu. Uma outra pessoa,alguém muito mais velho, umapessoa mais vivida fazia força parasair da pele dela. Um arrepiopercorreu a espinha de Oskar, comose ele tivesse mordido um picolé.

— Oskar. Não os deixe fazer isso.

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Está me ouvindo? Não deixe.— … não.— Você tem que revidar. Você

nunca revidou, não é?— Não.— Então comece agora. Revide.

Com força.— Eles são três.— Então você tem que bater com

mais força. Use uma arma.— Tudo bem.— Pedras. Porretes. Bata mais

neles do que você na verdade temcoragem. Assim eles vão parar.

— E se eles revidarem?

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— Você tem uma faca.Oskar engoliu em seco. Nesse

instante, com a mão de Eli na dele,com o rosto dela em sua frente, tudoparecia óbvio. Mas e se elescomeçassem a fazer coisas pioresquando ele oferecesse resistência, seeles…

— O.k. Mas e se eles…— Nesse caso eu ajudo você.— Você? Mas você é…— Eu posso, Oskar. Isso … eu

posso fazer.Eli apertou a mão de Oskar. Ele

apertou de volta e balançou a

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cabeça. A mão de Eli apertou maisforte. Tão forte que doeu um pouco.

Como ela é forte .Eli largou a mão dele e Oskar

procurou a folha que fez na escola,alisou a dobra do papel e entregou aela, que franziu a sobrancelha.

— O que é isso?— Venha, vamos para a luz.— Não, eu posso enxergar. Mas o

que é isso?— O código morse.— Ah, o.k. É claro. Legal .Oskar deu um risinho. Ela disse

isso de um jeito tão… como é que

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se dizia? Artificial. Era como se apalavra não combinasse na boca deEli.

— Eu achei… que a gentepodia… se comunicar mais pelaparede.

Eli assentiu. Parecia que tentavaachar alguma coisa para dizer.Falou em seguida: — Legal isso.

— Maneiro?— É. Maneiro . Maneiro.— Você é um pouco maluquinha,

sabia?— É?— É. Mas não tem problema.

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— Então você precisa me mostrarcomo é que se faz. Para não sermaluco.

— Tudo bem. Quer ver umacoisa?

Eli concordou.Oskar fez o número especial dele.

Sentou-se no balanço onde esteveantes e deu impulso. A cada ida evinda que o balanço dava, cada vezque Oskar ia um pouco mais alto, opeito dele crescia: liberdade.

As janelas iluminadas dosapartamentos passavam por elecomo se fossem traços

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fosforescentes, coloridos, e elebalançava cada vez mais alto. Nãoera sempre que conseguia fazer onúmero especial, mas agora iaconseguir, porque estava leve quenem pluma e quase podia voar.

Quando o balanço tinha ido tãoalto a ponto de as correntescomeçarem a dar arrancões nocaminho de volta, ele retesou ocorpo inteiro. O balanço voltoumais uma vez e, no ponto mais altoda próxima ida para a frente, Oskarsoltou as correntes e atirou aspernas para cima, para a frente, com

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o máximo de força. Suas pernasfizeram um semicírculo no ar, elesaiu do balanço e aterrissou com osdois pés no chão, encolheu-se aomáximo para que o brinquedo nãobatesse em sua cabeça e, quando obalanço já tinha passado, ele selevantou e abriu os braços. Perfeito.

Eli aplaudiu e exclamou:“Bravo!”.

Oskar capturou o balanço emmovimento, ajeitou-o de volta naposição inicial e sentou-se. Maisuma vez, estava agradecido pelofato de a escuridão esconder um

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sorriso de triunfo que ele nãoconseguiu conter, embora a feridarepuxasse. Eli tinha parado deaplaudir, mas o sorriso ainda estavano rosto de Oskar.

As coisas seriam diferentesagora. É claro que não se podematar alguém dando facadas emárvores. Ele sabia muito bem disso.

Quinta-feira, 29 de outubro

Håkan estava sentado no chão do

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corredor estreito ouvindo o som dechapinhar vindo do banheiro. Seusjoelhos estavam dobrados de modoque o calcanhar tocava as nádegas eo queixo descansava nos joelhos. Ociúme era uma cobra gorda e brancaem seu peito. Ela se contorciadevagar, pura como a inocência e deuma obviedade infantil.

Dispensável. Ele era alguém…dispensável.

Na noite anterior ele se deitou nacama com a janela entreaberta.Ouviu quando Eli se despediudaquele tal de Oskar. A voz aguda

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dos dois, risos. Uma… leveza queHåkan nunca poderia ter. Delefaziam parte a seriedade pesada, asexigências, o desejo.

Håkan achara que seu amado eraigual. Olhou bem dentro dos olhosde Eli e viu a sabedoria e aindiferença de um ancião. Isso oassustou no começo; os olhos deSamuel Beckett no rosto de AudreyHepburn. Depois fez com que sesentisse protegido.

Era o melhor que se podiaimaginar. O corpo jovem e bonitoque conferia beleza à vida dele, ao

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mesmo tempo que aresponsabilidade lhe era tirada. Nãoera ele quem decidia. E nãoprecisava se sentir culpado porcausa do desejo que sentia; seuamor era mais velho que ele.Nenhuma criança. Como Håkanachou.

Mas, desde que começou issocom Oskar, alguma coisa aconteceu.Uma… regressão. Eli secomportava cada vez mais como acriança que sua aparência indicava;começou a andar balançando ocorpo, a usar expressões infantis,

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palavras. Queria brincar . Escondera chave. Certa noite eles tinhambrincado de esconder chaves. Elificou zangado quando Håkan nãomostrou o entusiasmo que abrincadeira exigia, depois tentoufazer cócegas nele para fazê-lo rir.Ele se deleitou com o toque.

Era atraente, é claro. Essa alegriatoda, essa… vida . Ao mesmo tempoera assustador, já que isso estavatão longe dele. Håkan estava commais tesão e mais medo do quequando eles tinham se encontrado.

Na noite anterior, seu amado se

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trancou no quarto e depois ficoubatendo durante meia hora naparede. Quando Håkan tevepermissão de entrar de novo noquarto, viu um pedaço de papel comsímbolos colado na cabeceira dacama. O código morse. Ao se deitarpara dormir, ele sentiu-se tentado abater uma mensagem para Oskar.Dizer algo sobre o que Elirealmente era . Em vez disso,copiou o código num pedaço depapel, assim poderia decodificar nofuturo o que eles conversariam.

Håkan curvou a cabeça e

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encostou a testa nos joelhos. Ochapinhar de lá de dentro dobanheiro terminou. Não dava paracontinuar desse jeito. Ele estava aponto de explodir. De desejo, deciúme.

A tranca do banheiro girou e aporta, abriu. Eli apareceu à suafrente, completamente nu. Limpo.

— Você ficou sentado aqui?— Fiquei. Você é lindo.— Obrigado.— Você não poderia se virar?— Por quê?— Porque… eu quero.

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— Mas eu não. Você pode sair docaminho?

— Pode ser que eu diga algumacoisa… se você se virar.

Eli olhou para Håkan, intrigado.Em seguida, deu meia-volta e ficoude costas para ele.

A saliva veio à boca de Håkan,ele engoliu. Ficou olhando. Umasensação física de que os olhosestavam comendo aquilo que haviadiante deles. A coisa mais bonita domundo. A um metro de distância.Infinitamente distante.

— Você está… com fome?

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Eli se virou de novo.— Estou.— Eu vou fazer. Mas eu quero

algo em troca.— Diga.— Uma noite. Eu quero uma

noite.— O.k.— Posso?— Pode.— Me deitar ao seu lado? Tocar

em você?— Tudo bem.— Posso…— Não. Só isso. Mas isso, sim.

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— Então eu vou fazer. Hoje ànoite.

Eli se agachou ao seu lado. Aspalmas das mãos de Håkanqueimavam. Queria acariciá-lo. Nãotinha permissão. Hoje à noite. Eliolhava fixamente para o teto edisse: — Obrigado. Mas e sealguém… esse retrato falado nojornal… existe gente que sabe quevocê mora aqui.

— Eu já pensei nisso.— E se alguém aparecer aqui

durante o dia… quando eu estoudescansando…

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— Eu já disse que pensei nisso.— Como assim?Håkan pegou Eli pela mão,

levantou-se e foi até a cozinha.Abriu o armário e apanhou um vidrode geleia com tampa de vidro. Umlíquido transparente enchia metadedo recipiente. Ele explicou o quetinha planejado. Eli sacudiuveementemente a cabeça.

— Você não pode.— Posso. Agora você entende o

quanto... eu me preocupo com você?

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Quando Håkan estava pronto parair, enfiou o vidro de geleia na bolsajunto com o restante doequipamento. Enquanto isso, Eli sevestiu e estava esperando nocorredor quando Håkan saiu;inclinou-se para a frente e deu umbeijo suave em seu rosto. Håkanpestanejou e ficou olhando um bomtempo para o rosto de Eli.

Estou perdido .Em seguida foi para sua lida.

Morgan devorava os quatro

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pratinhos de comida chinesa, um aum, mal se lembrava do arroz numatigela ao lado. Lacke se inclinoupara a frente e disse baixinho: —Morgan, posso ficar com o arroz?

— Claro, sirva-se. Quer algumtempero também?

— Não. Só um pouco de molhode soja.

Larry olhou por cima do canto dojornal Expressen , fez uma caretaquando Lacke apanhou a tigela dearroz, salpicou soja nele com umglug-glug-glug e começou a comercomo se nunca tivesse visto comida

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antes. Larry fez um gesto na direçãodos camarões fritos que formavamuma montanha no prato de Morgan.

— Você podia oferecer umpouco.

— Claro, claro. Desculpe. Aceitaum camarão?

— Não, aí o estômago nãoaguenta. Mas dê para o Lacke.

— Quer um camarãozinho,Lacke?

Lacke aceitou com um aceno decabeça e mostrou a tigela de arroz.Morgan jogou ali dois camarõescom um gesto grandioso. Ofereceu

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pouco. Lacke agradeceu e atacou oscamarões.

Morgan grunhiu alguma coisa esacudiu a cabeça. Lacke não eramais o mesmo desde que Jockedesaparecera. O dinheiro já eraapertado antes, mas agora ele bebiamuito mais e não restava nenhumcentavo para a comida. Era estranhoesse comportamento em relação aJocke, mas não era motivo paraficar tão depressivo. Fazia quatrodias que Jocke sumira, e quem sabiaonde ele estava? Ele podia terencontrado uma mulher e se

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mandado para o Taiti, feito qualquercoisa. Ele ia aparecer, mais cedo oumais tarde.

Larry largou o jornal, subiu osóculos para a testa, esfregou osolhos e disse: — Vocês sabem ondeexiste um abrigo antiaéreo?

Morgan deu uma risadinha: —Como assim? Está pensando emhibernar, hein?

— Não, mas no submarino. Nahipótese de haver uma invasãototal…

— Você pode vir para o nosso. Euestive lá embaixo dando uma olhada

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quando um cara do Departamentode Defesa-de-não-sei-o-quê foiinventariar alguns anos atrás.Máscaras de gás, latas de conservas,mesa de pingue-pongue, um arsenalde coisas. Está tudo lá.

— Mesa de pingue-pongue?— É claro. Sabe, quando os

russos aportarem, a gente vai dizer:“Alto lá, rapazes, deixem as armasde lado, isso aqui nós vamos decidirnuma partida de pingue-pongue”.Então os generais vão ficar batendobolinha um para o outro.

— E os russos jogam pingue-

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pongue?— Não. Esse é nosso trunfo.

Quem sabe a gente pega de voltatoda a região do Báltico.

Lacke se limpou ao redor da bocacom uma meticulosidade exageradae disse: — De qualquer jeito éestranho.

Morgan acendeu um John Silver.— O quê?

— Isso com Jocke. Ele sempredizia para onde ia. Vocês sabem. Sefosse para a irmã dele em Väddö,então, era um acontecimento.Começava a falar nisso já com uma

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semana de antecedência. Sobre oque ele ia levar, o que os dois iriamfazer.

Larry pousou a mão no ombro deLacke.

— Você fala dele no imperfeito.— Quê? É. Bem, é que eu acho

mesmo que aconteceu alguma coisacom ele. É o que eu acho.

Morgan tomou um baita gole decerveja e arrotou.

— Você acha que ele está morto.Lacke encolheu os ombros e

olhou pedindo ajuda para Larry, queestava estudando a estampa dos

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guardanapos. Morgan sacudiu acabeça.

— No way . A gente já saberia.Os tiras disseram isso quandoestiveram lá e abriram a porta doapartamento, que eles iriam ligarpara você se soubessem de algumacoisa. Não que eu confie em tiras,mas… a gente já estaria sabendo dealguma coisa.

— Ele devia ter telefonado.— Mas santo Deus! Vocês são

casados ou o quê? Não se preocupe.Ele vai aparecer logo. Com rosas echocolate e prometer que nuuuunca

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fará isso de novo.Lacke balançou a cabeça,

resignado, e bebericou da cervejaque ganhou de Larry com apromessa de que retribuiria quandoa situação melhorasse. Dois dias, nomáximo. Depois ele mesmo iacomeçar a procurar. Telefonar parahospitais, necrotérios e tudo o maisque estivesse ao seu alcance. Não seabandona o melhor amigo. Estandoele doente, morto ou qualquer outracoisa. Não se abandona.

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Eram sete e meia e Håkancomeçou a ficar aflito. Perambularasem rumo perto do Ginásio NyaElementar e da Quadra deVällingby, onde os jovens ficavam.Os treinos tinham começado e apiscina estava aberta de noite, entãonão faltavam vítimas potenciais. Oproblema é que a maioria andavaem grupos. Ele fisgara umcomentário de uma garota dizendo aoutras duas que sua mãe “aindaestava cheia de neura depois daquilocom o assassino”.

Certamente ele podia ter ido para

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mais longe, para uma área onde suaobra fosse menos atual, mas nessecaso havia o risco de o sangue ficarruim no caminho de casa. E já queele iria fazer isso de qualquer jeito,então queria dar o melhor para seuamado. E quanto mais fresco, maisperto da fonte, melhor. Disso eletinha sido informado.

Na noite anterior o frio chegou deverdade, o termômetro estavaabaixo de zero. Com isso, ele nãochamaria muita atenção secarregasse um gorro de esqui que sótivesse buracos para os olhos e para

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a boca.Mas não podia ficar andando

assim às escondidas por muito maistempo. No final alguém iriadesconfiar.

E se ele não conseguisseninguém? E se chegasse em casacom as mãos vazias? Seu amadonão morreria, tinha certeza disso.Uma diferença com relação àprimeira vez. Mas agora havia outrarecompensa, que era maravilhosa.Uma noite inteira. Uma noite inteiracom o corpo do amado bemjuntinho do dele. Seus membros

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delgados, macios, a barriga lisinhaque ele podia acariciar lentamente.Uma vela acesa no quarto com a luzbruxuleante em sua pele sedosa, poruma noite.

Ele esfregou o sexo que pulsava egritava de desejo.

Preciso ficar calmo , preciso …Håkan soube o que iria fazer.

Loucura, mas ele faria mesmoassim.

Iria para a piscina de Vällingby eprocuraria sua vítima ali. O localdevia estar vazio a essa hora e,agora que ele se decidira, sabia

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exatamente como ia fazer. Perigoso,é verdade. Mas totalmente factível.

Se desse errado, Håkan lançariamão do último recurso. Mas nãodaria errado. Ele via à sua frente aação em detalhes, agora queapertava o passo e se dirigia àentrada da piscina. Era como seestivesse bêbado. O pano na frentedo nariz da máscara de esquiar ficoumolhado do ar condensado que eleinspirava e expirava intensamente.

Isso seria algo que ele contaria aoamado hoje à noite, enquantoacariciava o traseiro firme e

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côncavo com a mão trêmula,gravando tudinho na memória paratodo o sempre.

Ele entrou na piscina municipal,sentindo o cheiro familiar e suavede cloro no nariz. Todas as horasque passou na piscina coberta. Comos outros, ou sozinho. Os corposjovens brilhando de suor ou da águaapenas a um metro dele, mas forado seu alcance. Apenas imagenscuidadas com carinho e consultadasquando ele estava na cama com opapel higiênico numa das mãos. Ocheiro de cloro o fez sentir-se

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seguro, em casa. Ele foi até o caixa.— Uma entrada, por favor.A mulher do caixa tirou os olhos

de uma revista. Ficou um poucoassustada. Ele fez um gesto para orosto, para a máscara.

— Frio.Ela balançou a cabeça, incerta.

Será que ele devia tirar a máscara?Não. Sabia o que fazer para ela nãoficar desconfiada.

— Armário?— Não, uma cabine, por favor.Ela lhe entregou uma chave e

Håkan pagou. Enquanto saía da

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bilheteria, tirou a máscara de esqui.Agora ela vira que ele tinha tirado ogorro, mas não observara seu rosto.Ele era brilhante. A passos rápidos,foi para o vestiário, olhando para ochão caso viesse alguém em suadireção.

— Bem-vindos. Entrem no meu

refúgio.Tommy passou por Staffan no

corredor, atrás dele uns estalos: amãe e Staffan se beijando. Staffandisse em voz baixa: “Você…?”.

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— Não. Eu pensei…— Hmm. Vamos precisar…Estalos de novo. Tommy olhou ao

redor. Nunca esteve na casa de umtira antes e estava, contra a vontade,um pouco curioso. Queria sabercomo era a vida de um cara desses.

Porém, já no corredor doapartamento percebeu que Staffannão podia ser uma figurarepresentativa da corporação comoum todo. Ele imaginou… bem, maisou menos como nos romancespoliciais. Um pouco pobre e frio.Um lugar para dormir quando não

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se estava na rua caçando bandido.Gente como eu , nesse caso .Não. O apartamento de Staffan

era… cheio de fru-fru. O corredorparecia ter sido decorado poralguém que comprava tudo dessescatálogos que a gente recebia emcasa pelo correio.

Aqui estava pendurado umquadro de veludo com um pôr dosol, ali havia um chalé alpino comuma velhinha em cima de umavareta que saía da porta. Aqui umpaninho de renda em cima da mesade telefone; ao lado do telefone,

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uma figura em gesso de umcachorro e uma criança. Na base daescultura ele leu o texto: você nãosabe falar?

Staffan levantou a figura.— Gostou disso? Muda de cor

conforme o tempo.Tommy balançou a cabeça. Ou

Staffan pegou o apartamento da mãeidosa emprestado, só para essavisita, ou então era doente mesmoda cabeça. Staffan repôs comcuidado a estatueta no lugar.

— Eu coleciono essas coisas,sabe. Coisas que mostram como vai

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ser o tempo. Isso aqui, por exemplo.Ele cutucou a velhinha que

olhava para fora do chalé alpino, elagirou entrando no chalé e, em vezdela, saiu um homenzinho para fora.

— Quando a velhinha está dolado de fora, é sinal de que o tempovai ficar ruim, e quando o velho estáfora…

— Fica pior ainda.Staffan deu uma risada, um pouco

artificial aos ouvidos de Tommy.— Essa coisa não funciona muito

bem.Tommy olhou de relance para a

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mãe e quase ficou com medo do queviu. Ela estava de casaco, com asmãos firmemente trançadas uma naoutra e um sorriso que podia fazerum cavalo dar marcha a ré. Mortade medo. Tommy resolveu fazer umesforço.

— Como um barômetro, não é?— Isso, exato. Foi com isso que

eu comecei. Barômetros. Estoufalando da minha coleção.

Tommy apontou para uma cruzpequena de madeira com um Jesusde prata pendurada na parede.

— Isso aqui também é um

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barômetro?Staffan olhou para Tommy e para

a cruz, para Tommy de novo. Ficousério de repente.

— Não, não é. É Cristo.— O da Bíblia.— É. Isso mesmo.Tommy enfiou as mãos no bolso

e foi para a sala de estar. Issomesmo, ali estavam os barômetros.Mais ou menos vinte deles demodelos diferentes pendurados naparede, um ao lado do outro, atrásde um sofá de couro cinza com umamesa de tampo de vidro na frente.

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Os barômetros não estavam lámuito afinados um com o outro.Muitos mostradores apontavam paramedidas diferentes, parecia maisuma dessas paredes com relógiosmostrando as horas de várias partesdo mundo. Tommy bateu no vidrode um deles e o mostrador se mexeuum pouco. Não sabia o que issosignificava, mas, por alguma razão,as pessoas sempre davam umabatidinha em barômetros.

Num armário com portas devidros no canto da sala havia ummonte de troféus pequenos. Quatro

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troféus grandes estavamenfileirados em cima de um pianoperto do armário. Na parede acimado piano estava pendurado umquadro grande da Virgem Mariacom o menino Jesus nos braços. Elaamamentava o menino com aqueleolhar ausente que parecia dizer: “Oque eu fiz para merecer isso?”.

Staffan deu uma tossidinha aoaparecer na sala.

— Então, Tommy. Você temalguma pergunta?

Tommy não era tão burro assimpara não entender o que devia

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perguntar.— Que taças são essas?Staffan apontou para as taças em

cima do piano.— Essas aqui?Não , seu retardado de uma figa .

As taças que estão na sede do clubelá embaixo no campo de futebol, éóbvio .

— Sim.Staffan apontou para uma figura

de prata de uns vinte centímetrosnuma base de pedra que estava nomeio das taças do piano. Tommytinha achado que era uma escultura,

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mas ela também era um prêmio. Afigura estava em pé de pernasabertas com os braços estendidossegurando um revólver, fazendopontaria.

— Tiro ao alvo. Esse foi oprimeiro lugar no campeonatoregional, aquele é o terceiro prêmionacional no calibre 45, em pé… eassim por diante.

A mãe de Tommy entrou na salae ficou ao lado do filho.

— Staffan está entre os cincomelhores atiradores da Suécia.

— E isso tem alguma utilidade

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para você?— Como assim?— Isso de você poder atirar nas

pessoas.Staffan passou o indicador na

base de uma das taças e examinou odedo.

— O sentido do trabalho dapolícia é não precisar atirar naspessoas.

— Você já fez isso alguma vez?— Não.— Mas bem que você gostaria,

não é?Staffan inspirou fundo,

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demonstrando cansaço, e expeliu oar num suspiro longo.

— Eu vou… dar uma olhada nacomida.

A gasolina . Ver se estáqueimando .

Ele foi para a cozinha. A mãe deTommy pegou o filho pelo cotoveloe sussurrou: — Por que você temque dizer essas coisas?

— Eu só queria saber.— Ele é uma boa pessoa,

Tommy.— É. Deve ser mesmo. Com taças

de tiro ao alvo e Virgem Maria. Dá

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para ser melhor que isso?

Håkan não cruzou com ninguém

quando atravessou o local. Comoimaginou, não havia muita gente aessa hora. No vestiário havia doishomens da sua idade se vestindo.Obesos, corpos disformes. Órgãossexuais diminutos debaixo debarrigas pelancudas. A feiura empessoa.

Ele encontrou a cabine, entrou etrancou a porta atrás de si. Ospreparativos estavam prontos. Pôs a

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máscara de novo, para garantir.Destravou o cilindro com halotano,pendurou o roupão num gancho.Abriu a bolsa e arrumou osinstrumentos. Faca, corda, funil,garrafão de plástico. Esqueceu acapa de chuva. Merda. Ia ter quetirar a roupa. O risco de respingarna roupa era grande, mas em vezdisso ele podia esconder as manchasdebaixo da roupa, quando tivesseacabado. Isso. E aqui era umapiscina. Não era estranho estar semroupa aqui.

Testou a capacidade de carga do

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outro gancho segurando-o comambas as mãos e tirando os pés dochão. O gancho aguentava. Podiafacilmente carregar um corpo quefosse uns trinta quilos mais leve queo dele. A altura era um problema. Acabeça não ia ficar pendurada acimado chão. Tinha de amarrar osjoelhos e pendurá-los no gancho,havia espaço suficiente entre ogancho e a borda de cima da cabinepara os pés não ficarem aparecendo.Isso levantaria suspeitas.

Os dois homens pareciam estarindo embora. Håkan ouviu suas

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vozes.— E o trabalho?— O de sempre. Nenhuma

abertura para um Malmbergare.— Já ouviu esta: a questão não é

“Onde está o óleo?”, mas “O óleoestá com Finns?”.[6]

— É, sujeito esperto esse.— Escorregadio.Håkan deu um risinho; sua cabeça

explodia, estava pirando. Estavaexcitado demais, respirava fortedemais. Seu corpo era feito deborboletas que queriam esvoaçar emdireções diferentes.

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Calma . Calma . Calma .Respirou fundo até ficar tonto e

se despiu em seguida. Dobrou asroupas e as guardou na mala. Osdois homens saíram do vestiário. Olocal ficou em silêncio. Ele testouficar de pé no banco e espiar lá fora.Funcionava, seus olhosultrapassavam um pouco o canto dacabine. Entraram três rapazes entretreze e catorze anos. Um deles bateucom uma toalha enrolada no traseirodo outro.

— Pô, para com isso!Ele dobrou o pescoço. Lá

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embaixo, sentiu a ereçãopressionando o canto da cabinecomo se fosse no meio de nádegasduras, bem abertas.

Calma . Calma .Espiou por cima da cabine de

novo. Dois dos meninos tinhamtirado os calções de banho e seinclinavam para dentro do armáriopara pegar as roupas. Seu baixo-ventre se apertou num únicoespasmo forte e o esperma jorrou nocanto da cabine, caindo no bancoonde ele estava em pé.

Agora . Calma .

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Certo. Agora ele se sentia melhor.Mas isso com o esperma não erabom. Vestígios.

Apanhou as meias da bolsa elimpou o máximo que pôde o cantoda cabine e o banco. Guardou asmeias na bolsa e pôs a máscaraenquanto ouvia a conversa dosmeninos.

— … novo Atari. Enduro. Vocêvai lá para casa jogar um pouco?

— Não dá, eu tenho que fazerumas coisas…

— E você?— O.k. Você tem dois joysticks?

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— Não, mas…— Posso buscar o meu primeiro?

Então nós dois podemos jogar.— O.k. Até mais, Matte.— Tchau.Dois dos rapazes pareciam estar

indo embora. A situação eraperfeita. Um ficaria, sem os outrosesperando por ele. Håkan ousouespiar por cima da cabine de novo.Dois deles estavam prontos, saindo.O último estava calçando as meias.Ele se abaixou, lembrou que estavade máscara. Que sorte que eles nãotinham visto.

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Apanhou o cilindro de halotano eo segurou com os dedos naalavanca. Será que devia continuarde máscara? Se o rapaz escapasse?Se alguém entrasse no vestiário. Se…

Merda. Tinha sido um erro ficarsem roupa. Se ele precisasse fugirrápido. Não havia tempo parapensar. Ouviu o menino trancar oarmário e começar a ir para asaída. Dentro de cinco segundos elepassaria pela porta da cabine.Tarde demais para ponderações.

No vão entre o canto da porta e a

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parede, ele viu um vulto passando.Bloqueou todos os pensamentos,destrancou a porta, escancarou-a elançou-se para fora da cabine.

Mattias se virou e viu um corpogrande e branco com uma máscarade esquiar na cabeça correndo emsua direção. Apenas umpensamento, uma única palavra tevetempo de passar rápido por suaconsciência antes de o corpo dorapaz recuar instintivamente.

A morte .Ele fugia da Morte que queria

levá-lo. Numa das mãos, a Morte

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segurava algo preto. Essa coisapreta voou para seu rosto, e eleencheu o pulmão de ar para gritar.

Mas, antes de o grito conseguirsair, a coisa preta estava em cimadele, cobrindo a boca e o nariz dorapaz. A mão da Morte segurou suanuca e pressionou seu rosto na coisapreta e macia. O grito que saiu foisó um gemido abafado e, enquantoberrava seu grito mutilado, ouviuum chiado como o de uma máquinade fazer fumaça.

O rapaz tentou gritar de novo,mas, quando inspirou, aconteceu

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alguma coisa com seu corpo. Umadormência foi se espalhando emtodos os seus membros e o próximogrito foi só um apito. Ele aspirou denovo o ar e as pernas se dobraram,véus multicoloridos esvoaçavam nafrente dos seus olhos.

Ele não queria gritar mais. Nãotinha forças. Os véus cobriam agoratodo o seu campo de visão. Ele nãotinha mais corpo. As coresdançavam.

Caiu para trás num arco-íris.

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Oskar segurava o papel com ocódigo morse numa das mãos e coma outra batia as letras na parede.Batida com o nó dos dedos paraponto, batida com a palma da mãopara linha, como eles tinhamcombinado.

Nó dos dedos. Pausa. Nó dosdedos, palma da mão, nó dos dedos,nó dos dedos. Pausa. Nó dos dedos,nó dos dedos. (E.L.I.) V.O.U.S.A.I.R.

Depois de alguns segundos veio aresposta.

E.U. T.A.M.B.É.M.

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Eles se encontraram na frente doprédio dela. Foi só passar um dia e agarota já estava… mudada. Mais oumenos um mês atrás uma mulherjudia esteve na escola, falou sobre oextermínio, mostrou slides. Eliparecia um pouco com as pessoasdos slides agora.

A iluminação forte da portariafazia sombras no rosto dela, comose os ossos estivessem saindo da suapele, como se ela tivesse ficadomais fina. E…

— O que você fez com o cabelo?Oskar achou que o efeito da luz

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fizera o cabelo dela ficar assim,mas, quando chegou mais perto, viuque no meio do cabelo preto haviaalgumas mechas brancas evolumosas. Como em gente velha.Eli alisou o cabelo e sorriu para ele.

— Vai sumir. O que a gente vaifazer?

Oskar remexeu numas moedas deuma coroa que tilintaram no bolso.

— Quiosque?— O quê?— Para o quiosque.— Ahã. O último a chegar é um

arenque podre.

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Uma imagem passou em flashpela cabeça de Oskar.

Crianças em preto e branco .Em seguida Eli começou a correr

e Oskar foi atrás. Embora parecesseestar bem doente, ela era muitomais rápida que ele, o corpo ágilvoava por sobre as pedras nocaminho, atravessou a rua dandoapenas alguns passos. Oskar corria omáximo que podia, distraído comaquela imagem.

Crianças em preto e branco?Claro. Ele desceu a ladeira

correndo e passou pela fábrica de

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doces quando entendeu do que setratava. Aqueles filmes antigos quepassavam na tv aos domingos.Anderssonskans Kalle e outros dogênero. “O último a chegar é umarenque podre.” Era isso quediziam nesses filmes.

Eli esperava por ele lá embaixono caminho, a vinte metros doquiosque. Oskar correu até ela etentou não respirar de formaofegante. Nunca esteve com amenina no quiosque antes. Será queele ia contar aquilo? Ia.

— Eli, você sabe que todos

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chamam isso aqui de “Quiosque dosNamorados”?

— Por quê?— Porque… bem, eu ouvi, numa

reunião de pais… foi um deles quefalou… bem, não foi para mim,mas… eu ouvi isso. Ele disse que odono do quiosque, que ele…

Agora estava arrependido. Erauma bobagem. Tinha vergonha. Elibateu com as mãos.

— O quê?— Bem, que o dono do

quiosque… que ele recebe mulhereslá dentro. Bem, você sabe, que ele…

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quando o quiosque está fechado…— É verdade ? — Eli olhou para

o quiosque. — Como é que eles têmespaço ?

— Nojento, não é?— É.Oskar desceu para o quiosque. Eli

deu uns passos rápidos para juntodele e sussurrou: — Eles devem sermagros !

Os dois riram. Foram para a luzdo quiosque. Eli revirou os olhosexageradamente para o dono doquiosque que estava ali dentrovendo tv num aparelho pequeno.

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— É ele ? — Oskar balançou acabeça confirmando. — Mas eleparece um macaco .

Oskar fez uma concha com asmãos no ouvido de Eli e sussurrou:— Fugiu do zoológico Skansen fazcinco anos. Ainda estão procurandopor ele.

Eli soltou um risinho e fez umaconcha com as mãos no ouvido deOskar. Seu hálito quente roçou nacabeça dele.

— Que nada. Eles o trancaramaqui dentro, em vez disso !

Os dois levantaram os olhos para

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o dono do quiosque e começaram adar gargalhadas, imaginavam ohomem carrancudo como ummacaco na jaula, cercado de doces.Com o barulho dos risos, o dono doquiosque se virou para eles e franziuas sobrancelhas enormes, ficandoainda mais parecido com um gorila.Oskar e Eli riam tanto que quasecaíram no chão, taparam a boca coma mão e tentaram fazer uma caraséria.

O dono do quiosque se encostouna abertura.

— Vocês querem alguma coisa?

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Eli fez rapidamente cara de séria,tirou a mão da frente da boca, foiaté a abertura do quiosque e disse:— Uma banana, por favor.

Oskar bufou e apertou ainda maisa mão na boca. Eli se virou, pôs oindicador na frente dos lábios e fez“xiii” com uma seriedade fingida. Odono do quiosque ainda estava ali.

— Eu não tenho bananas.Eli fingiu que não entendeu.— Nada de bananas ?— Não. Algo mais?Oskar estava com cãibras no

maxilar de tanto abafar o riso. Foi

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cambaleando para longe doquiosque, deu uma corridinha para acaixa dos correios, encostou-se nelae riu, ria tanto que se chacoalhavatodo. Eli foi até ele e sacudiu acabeça de um lado para o outro.

— Nada de bananas.Oskar falou ofegante: — Ele

deve… ter comido… todas.Oskar tentou se recompor,

apertou os lábios, apanhou as quatromoedas de uma coroa e foi para oquiosque.

— Balas diversas.O dono do quiosque lançou um

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olhar fulminante para Oskar,começou a apanhar as balas dosrecipientes de plástico na vitrinecom uma pinça e enfiou os docesnum saco de papel. Oskar olhou desoslaio para ver se Eli estavaouvindo e disse: — Não esqueça asbananas.

O dono do quiosque parou deapanhar as balas.

— Eu não tenho nenhumabanana.

Oskar apontou para um dosrecipientes.

— Estou falando das balas de

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banana.Oskar escutou os risinhos de Eli e

fez a mesma coisa que ela; pôs odedo na frente da boca e fez “xiii”.O dono do quiosque bufou, enfiouumas balas de banana no saco eentregou os doces a Oskar.

Eles voltaram para o pátio. Antesde Oskar sequer pegar uma balapara si mesmo, estendeu o saco debalas para Eli. Ela sacudiu a cabeça.

— Não, obrigada.— Você não come doces?— Alergia.— Nenhum doce?

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— Não.— Mas que chato!— É. Não. Eu não sei que gosto

eles têm.— Você nunca provou ?— Não.— Como é que você sabe que…— Porque eu sei e pronto.Era assim às vezes. Eles

conversavam sobre alguma coisa.Oskar perguntava sobre algo e oassunto terminava com um “porquesim e pronto”, “porque eu sei epronto”. Nenhuma explicação maisdetalhada. Essas coisas um pouco

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esquisitas que costumavamacontecer quando estava com Eli.

Foi chato ele não poder oferecer.Era isso que planejara. Oferecer ummonte. O quanto ela quisesse. Eentão Eli não comia doces. Oskarenfiou uma bala de banana na bocae olhou furtivamente para ela.

Ela parecia doente mesmo. Eaquelas mechas brancas no cabelo…Numa história que Oskar tinha lido,o cabelo de um personagem ficoutodo branco depois de ele ter levadoum grande susto com alguma coisa.Mas Eli não tinha levado um susto,

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tinha?Eli olhou para os lados, abraçou o

próprio corpo e pareceu ser muitopequena . Oskar sentiu vontade depassar o braço em volta dela, masnão teve coragem.

Na entrada do pátio, Eli parou eolhou para sua janela lá em cima.Estava apagada. Ficou parada comos braços em volta do corpo,olhando para o chão.

— Oskar…E ele fez. O corpo todo dela pedia

por isso e de algum lugar ele tirou acoragem para fazê-lo. Deu um

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abraço nela. Por um instanteterrível, achou que tivesse cometidoum erro, o corpo dela estava rígido,tenso. Estava a ponto de soltá-laquando ela relaxou em seu abraço.O nó se desfez e ela levantou comcuidado os braços, passou-os emvolta das costas de Oskar e apertou-se trêmula nele.

Ela encostou a cabeça no ombrodele e os dois ficaram assim. Ohálito dela em seu pescoço. Eles seabraçavam em silêncio. Oskarfechou os olhos e soube: isso era amaior coisa que havia. A luz da

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lâmpada na entrada do pátiopenetrava um pouco em suaspálpebras cerradas, derramava umapelícula de vermelho na frente dosseus olhos. A maior coisa que havia.

Eli aproximou a cabeça dopescoço dele. O calor do hálito delaaumentou. Os músculos do seucorpo que tinham relaxado ficaramtensos de novo. Seus lábios roçaramo pescoço de Oskar e um arrepiopercorreu o corpo do menino.

De repente ela se contraiu einterrompeu o abraço, dando umpasso para trás. Oskar deixou os

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braços caírem. Eli sacudia a cabeçacomo se quisesse se libertar de umsonho ruim, virou-se e foi para oprédio. Oskar continuou no mesmolugar. Quando a menina abriu aporta, ele exclamou: — Eli? — Elase virou. — Onde está seu pai?

— Ele ia… trazer comida.Ela não tem o que comer . É isso .— Você pode comer lá em casa.Eli largou a porta e foi para junto

dele. Oskar começou rapidamente aplanejar como explicaria tudo para am ã e . Não queria que a mãeconhecesse Eli. Tampouco o

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contrário. Ele podia fazer unssanduíches e levar a comida parafora. É, seria melhor.

Eli se postou na frente de Oskar eolhou bem seriamente nos olhosdele.

— Oskar. Você gosta de mim?— Sim. Muitíssimo.— Se eu não fosse uma menina…

você gostaria de mim do mesmojeito?

— Como assim?— Só isso. Você gostaria de mim

mesmo se eu não fosse umamenina?

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— Sim… acho que sim.— Tem certeza?— Tenho. Por que você está

perguntando isso?Alguém puxou uma janela

emperrada, que se abriu em seguida.Atrás da cabeça de Eli, Oskar pôdever a mãe pondo a cabeça para forada janela do quarto dele.

— Ooooskar!Eli se retirou rapidamente, foi

para junto da parede. Oskar cerrouos punhos e subiu correndo aladeira, ficou embaixo da janela.Como um pirralho.

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— Que é?!— Ah! Você está aí . Eu achei…— O que é?— Bem, começa agora.— Eu sei .A mãe estava prestes a dizer mais

alguma coisa, mas fechou a boca eolhou para ele ali embaixo dajanela, ainda com os punhos bemfechados, o corpo inteiro tenso.

— O que você está fazendo?— Eu… eu já vou.— Bem, é que…Os olhos de Oskar ficaram

úmidos de raiva e ele gritou entre

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dentes: —Entre em casa! Feche ajanela. Entre !

A mãe ficou olhando para ele pormais um instante. Depois algumacoisa tomou conta do seu rosto e elabateu a janela com força, saindodali. Oskar quis… não chamar amãe de volta, mas… fazertransmissão de pensamento.Explicar calmamente a situação.Que ela não podia fazer as coisasdesse jeito, que ele tinha…

Ele desceu correndo a ladeira.— Eli?Ela não estava ali. E não tinha

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entrado no prédio, ele teria visto.Devia ter ido pegar o metrô para ir àcasa daquela tia no centro da cidadeonde ela costumava ficar depois daescola. Devia ser isso.

Oskar foi para o canto escuroonde ela se escondeu quando a mãechamou por ele. Virou-se e ficou derosto colado na parede. Ficou assimpor um tempo. Depois entrou noprédio.

Håkan arrastou o menino para

dentro da cabine e trancou a porta.

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O garoto não soltou um pio. A únicacoisa que podia levantar suspeitasagora era o chiado da garrafa de gás.Ele precisava trabalhar rápido.

Seria muito mais simples sepudesse atacar diretamente com afaca, mas não. O sangue precisavavir de um corpo com vida. Mais umdos detalhes que foi explicado a ele.Sangue de morto não servia paranada, era simplesmente nocivo.

Isso. O menino estava vivo. Opeito subia e baixava, sorvendo ogás anestesiante.

Ele amarrou a corda bem forte

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em volta das pernas do menino, umpouco acima dos joelhos, passou asduas pontas da corda em volta dogancho e começou a puxar. Aspernas do rapaz foram içadas dochão.

Uma porta se abriu, vozes.Ele segurava a corda com uma

das mãos e fechou o gás com aoutra. Tirou a máscara da boca dorapaz. A anestesia duraria algunsminutos, ele tinha que continuartrabalhando com ou sem gente láfora, o mais silenciosamentepossível.

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Alguns homens lá fora. Dois, três,quatro? Conversavam sobre aSuécia e a Dinamarca. Umcampeonato internacional.Handebol. Enquanto falavam,Håkan içou o corpo do menino. Ogancho começou a ranger, a pressãodo peso vinha de um ângulodiferente daquele que havia sido odele quando se pendurou no gancho.Será que eles tinham ouvido algumacoisa? Ele ficou parado, quase nãorespirava. Segurava o corpo, cujacabeça acabou de ser levantada dochão, na mesma posição.

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Não. Apenas uma pausa naconversa. Eles continuaram.

Continuem falando , continuemfalando .

— A falta de Sjögren foitotalmente…

— O que não se tem nos braços, épreciso ter na cabeça.

— Mas ele consegue fazer pontosmesmo assim.

— Aquela bola de efeito, não dápara entender como ele consegue…

A cabeça do menino estavapendurada a alguns centímetros dochão. Agora…

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Onde é que ele ia amarrar aspontas da corda? O vão entre astábuas do banco era estreito demaispara deixar passar a corda. E ele nãopodia trabalhar bem apenas comuma das mãos enquanto segurava acorda com a outra. Não ia aguentar.Ficou parado segurando firmementeas pontas da corda, suando. Amáscara estava quente, devia tirá-la.

Depois . Quando tiver acabado .O outro gancho. Só precisava

armar uma laçada primeiro. O suorescorreu penetrando em seus olhosquando ele desceu o corpo do

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menino para deixar a corda maisfolgada e deu uma laçada. Içou omenino de novo e tentou passar olaço em volta do gancho. Curtodemais. Desceu o menino. Oshomens pararam de falar.

Saiam daqui! Saiam!No silêncio, Håkan armou uma

nova laçada lá na ponta da corda eesperou. Eles recomeçaram a falar.Boliche. O sucesso da equipefeminina sueca em Nova York.Strike , spare e suor faziam os olhosarderem.

Quente . Por que está tão quente?

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Ele conseguiu passar o laço nogancho e respirou aliviado. Será queeles não podiam ir embora ?

O corpo do menino estavapendurado na posição certa e era sópôr a mão na massa rápido, antesque ele acordasse. E será que elesnão iam embora? Mas falavamsobre as lembranças do boliche,como se jogava antigamente ealguém que ficou com o polegarpreso na bola e precisou ir aohospital para tirá-lo.

Não dava para esperar. Ele enfiouo funil no garrafão de plástico e o

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aproximou do pescoço do rapaz.Apanhou a faca. Quando se viroupara tirar o sangue do menino, aconversa lá fora parou de novo. E osolhos do menino estavam abertos.Arregalados. Suas pupilas semovimentavam, ali onde estavamde cabeça para baixo, procurandoum ponto onde se fixar, umacompreensão. Elas pararam emHåkan, ali de pé, nu, com a faca namão. Durante um breve instante, umolhou bem nos olhos do outro.

Em seguida o menino abriu aboca e berrou.

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Håkan recuou, acabou batendo naparede da cabine, produzindo umbaque molhado. As costas suadasresvalaram na parede e ele quaseperdeu o equilíbrio. O menino nãoparava de gritar. O som semultiplicou no vestiário, fez eco nasparedes, ficou mais alto a ponto deensurdecer Håkan. Sua mão apertouo cabo da faca com mais força e aúnica coisa em que ele conseguiapensar era que precisava acabar como grito do garoto. Cortar-lhe acabeça para que ele parasse degritar. Agachou-se em frente ao

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menino.Socos na porta.— Ei! Abra!Håkan largou a faca. O tilintar da

lâmina ao cair no chão quase não foiouvido em meio aos socos e aoberro interminável do menino. Aporta balançava nos alicerces comas batidas do lado de fora.

— Abra! Vou arrombar!Fim. Agora era o fim. Agora

restava apenas uma coisa. O barulhoem volta dele desapareceu, o campode visão encolheu e se transformounum túnel na hora em que Håkan

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virou a cabeça na direção da bolsa.Através do túnel ele viu sua mãosendo enfiada na bolsa para apanharo vidro de geleia.

Caiu pesadamente de bunda como vidro de geleia na mão edesatarraxou a tampa. Esperou.

Quando eles abrissem a porta.Antes de tirarem sua máscara. Orosto.

Em meio aos gritos e aos socosna porta, ele pensou no amado. Notempo que tiveram juntos. Evocou aimagem do amado na forma de anjo.Um menino-anjo que agora descia

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do céu, abria suas asas, vinha parabuscá-lo. Carregá-lo consigo. Paraum lugar onde sempre estariamjuntos. Sempre.

A porta foi escancarada e bateuna parede. O menino continuavagritando. Do lado de fora havia trêshomens, mais ou menos vestidos.Ficaram olhando sem entender acena diante deles.

Håkan balançou lentamente acabeça, e aceitou.

Em seguida, gritou: — Eli! Eli!E derramou o ácido clorídrico

concentrado no rosto.

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Regozijai-vos! Regozijai-vos!Regozijai-vos no Senhor e Deus!Regozijai-vos! Regozijai-vos!E louvai seu rei e Deus!Staffan acompanhava a mãe de

Tommy ao piano. Os dois seentreolhavam de tempos emtempos, sorriam e irradiavamfelicidade. Tommy estava sentadono sofá de couro, sofrendo. Acharaum buraquinho lá embaixo num dosbraços do sofá e, enquanto Staffan esua mãe cantavam, ele trabalhavapara aumentar o buraco. O indicador

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cutucava lá dentro do estofado eTommy se perguntou se Staffan e amãe tinham transado alguma veznesse sofá. Debaixo dos barômetros.

O jantar fora razoável, umaespécie de frango marinado comarroz. Depois, Staffan tinhamostrado a Tommy o cofre ondeestavam guardados seus revólveres.O cofre estava debaixo da cama noquarto e Tommy se perguntou amesma coisa aqui. Será que elestinham transado nessa cama? Seráque a mãe pensava no pai quandoStaffan a acariciava? Será que os

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revólveres debaixo do colchãodavam tesão nele? E nela?

Staffan executou o acorde final edeixou a música ir morrendo.Tommy tirou o dedo do buracoagora bem grande no sofá. A mãeacenou com a cabeça para Staffan,pegou a mão do namorado e sentou-se na banqueta do piano ao seu lado.Do ângulo onde Tommy se sentou, aVirgem Maria estava penduradaexatamente acima da cabeça deles,como se fosse um efeito quetivessem calculado, ensaiado comantecedência.

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A mãe olhou para Staffan, sorriue se virou para Tommy.

— Tommy. Queremos te contaruma coisa.

— Vocês vão se casar?A mãe hesitou. Se eles tinham

ensaiado antes, com cenografia etudo, então, pelo visto, essa fala nãoestava incluída.

— Sim. O que você acha?Tommy encolheu os ombros.— O.k. Casem então.— Estávamos pensando… no

verão, talvez.A mãe olhou para o filho como se

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perguntasse se ele por acaso tinhauma sugestão melhor.

— Sim. Claro.Tommy enfiou o indicador no

buraco de novo e deixou o dedoficar ali. Staffan se inclinou para afrente.

— Eu sei que não posso…substituir seu pai. De nenhumaforma. Mas espero que você e eupossamos… nos conhecer e… quepossamos ser amigos.

— E onde é que vocês vão morar?A mãe pareceu triste de repente.— Nós , Tommy. Isso também se

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refere a você. Não sabemos. Maspensamos em talvez comprar umacasa com jardim em Ängby. Se der.

— Ängby.— É. O que você acha?Tommy olhou para o tampo de

vidro da mesa onde havia o reflexomeio transparente da mãe e deStaffan; pareciam fantasmas. Tirouo dedo com cuidado do buraco,acabou arrancando um pedaço daespuma.

— Caro.— Como caro?— Uma casa com jardim em

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Ängby. É caro. É muito dinheiro.Vocês têm muito dinheiro?

Staffan estava a ponto deresponder quando o telefone tocou.Ele fez um carinho no rosto da mãede Tommy e foi atender nocorredor. A mãe sentou-se no sofáao lado do filho e perguntou: —Você não gostou da ideia?

— Adorei.Do corredor, ouvia-se a voz de

Staffan. Ele parecia exaltado.— Mas… claro, eu vou

imediatamente. Será que… não,nesse caso eu vou direto para lá.

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Certo. Até mais.Staffan foi para a sala de estar de

novo.— O assassino está na quadra de

Vällingby. Estão sem gente lá nadelegacia, então eu preciso…

Ele foi para o quarto e Tommypôde ouvir o cofre ser aberto efechado. Staffan trocou de roupa ládentro e, depois de um tempo, saiutrajando o uniforme completo depolicial. Seu olhar parecia umpouco lunático. Beijou de leve amãe de Tommy na boca e deu umabatidinha no joelho de Tommy.

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— Preciso ir imediatamente. Nãosei quando volto. A gente conversamais tarde.

Ele se apressou e a mãe deTommy foi atrás.

Tommy ouviu alguma coisa sobre“tenha cuidado” e “eu te amo” e“você pode ficar”. Enquanto isso,foi até o piano e, sem saber por quê,estendeu o braço para apanhar aescultura do atirador. Ela era pesadaem sua mão, no mínimo dois quilos.Enquanto a mãe e Staffan sedespediam —Eles bem que gostamdisso . O homem que vai guerrear .

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A mulher saudosa —, Tommy foipara a sacada. O ar frio da noiteentrou em seus pulmões e eleconseguiu respirar pela primeiravez depois de horas.

Ele se debruçou no parapeito dasacada, viu que havia moitas bemdensas lá embaixo. Segurou aescultura fora do parapeito e largou.Ela caiu no mato, produzindo umfarfalhar.

A mãe veio para a sacada e ficouao lado dele. Depois de algunssegundos, a porta do prédio se abriue Staffan saiu, meio que correndo,

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para o estacionamento. A mãeacenou, mas Staffan não olhou paracima. Quando ele tinha acabado depassar embaixo da sacada, Tommydeu um risinho.

— O que é? — perguntou a mãe.— Nada.É que um rapazinho de revólver

está no meio da moita fazendo mirano Staffan. Só isso.

Tommy sentia-se bem, apesar detudo.

O esquadrão recebeu reforço com

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Karlsson, o único da turma quetinha um “trabalho de verdade”,como ele mesmo costumava dizer.Larry era aposentado por invalidez,Morgan trabalhava de vez emquando num ferro-velho de carros, eLacke, não se sabia direito do queele vivia. Às vezes tinha um poucode grana, e só.

Karlsson tinha um emprego fixonuma loja de brinquedos emVällingby. Antigamente a loja lhepertencera, mas ele foi obrigado avendê-la por causa de “dificuldadesfinanceiras”. O novo proprietário o

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empregara, porque, como Karlssondisse, era impossível negar que,“depois de trinta anos no ramo, agente tem uma certa experiência”.

Morgan se recostou na cadeira,escarranchou-se e cruzou as mãosatrás da cabeça. Ficou olhando paraKarlsson. Lacke e Larry seentreolharam. Ia começar.

— Então, Karlsson. Algo de novono ramo dos brinquedos? Inventounovas maneiras de tirar a mesadadas crianças?

Karlsson bufou.— Você não sabe do que está

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falando. Se existe alguém que éenganado, esse alguém sou eu. Vocênão pode imaginar a extensão dosfurtos. As crianças…

— O.k., tudo bem. É só compraruma bugiganga da Coreia por duascoroas e vender o troço por cem,assim vocês recuperam o prejuízo.

— Nós não vendemos esse tipode coisa.

— Não, é claro. O que foi aquiloque eu vi na vitrine um dia desses?Os Smurfs. O que é isso?Brinquedos de qualidade defabricação artesanal de Bengtsfors,

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hein?— Eu acho isso bem estranho

vindo de uma pessoa que vendecarros que só andam se a gentepuser um cavalo na frente deles.

E continuou desse jeito. Larry eLacke ouviam, riam às vezes,vinham com algum comentário. SeVirginia estivesse aqui, a crista dosgalos teria se levantado mais umpouco e Morgan não teria desistidoantes de Karlsson ficar puto deverdade.

Mas Virginia não estava aqui. Etampouco Jocke. O clima certo não

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queria se instalar e por isso adiscussão já estava começando amorrer quando a porta da frente seabriu devagar, lá pelas oito e meia.

Larry levantou os olhos e viu umapessoa que ele nunca imaginou quepisaria ali: Gösta. A bomba defedor, como Morgan dizia. Larryconversou com Gösta num bancoperto do prédio algumas vezes, masele nunca tinha aparecido aquiantes.

Gösta parecia perturbado.Movimentava-se como se fossefeito de pedaços mal colados que

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podiam cair se ele se mexessedemais. Com os olhos apertados e ocorpo dando tremidinhas. Ou estavade cara cheia ou estava doente.

Larry acenou. — Gösta! Senteaqui.

Morgan virou a cabeça, examinouGösta e disse: — E mais essa.

Gösta foi até a mesa deles comose atravessasse um campo minado.Larry arrastou a cadeira ao seu ladoe fez um gesto convidando o outro.

— Bem-vindo ao clube.Gösta não parecia ouvi-lo, mas

foi se arrastando até a cadeira.

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Vestia um terno surrado com coletee gravata-borboleta, o cabelopenteado com água. E fedia. Mijo,mijo e mijo. Mesmo quando estavaao ar livre, seu fedor era percebido,mas suportável. No local aquecido,ele exalava um cheiro de urinaazeda e velha, o que obrigava atodos a respirar pela boca paraaguentar.

Todos da turma, inclusiveMorgan, se esforçavam para que orosto não transparecesse o que onariz sentia. O garçom foi até amesa deles, parou quando sentiu o

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cheiro de Gösta e disse: —Querem… fazer o pedido?

Gösta sacudiu a cabeça sem olharpara o garçom, que franziu assobrancelhas. Larry fez um gesto:Não se preocupe , a gente tem tudosob controle . O garçom se afastou eLarry pousou a mão no ombro deGösta.

— A que devemos a honra?Gösta pigarreou, de olhos

voltados para o chão, e disse: —Jocke.

— O que há com ele?— Ele está morto.

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Larry ouviu como Lacke respiroufundo atrás dele. Manteve a mão noombro de Gösta, encorajando-o.Sentiu que era necessário.

— Como você sabe disso?— Eu vi. Quando aconteceu.

Quando ele foi morto.— E quando foi isso?— No sábado. De noite.Larry retirou a mão. — No

sábado ? Mas… você já falou com apolícia?

Gösta sacudiu a cabeça.— Não tenho coragem. E eu…

não vi. Mas eu sei.

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Lacke cobriu o rosto com as mãose sussurrou: “Eu sabia, eu sabia”.

Gösta contou. Sobre a criança quehavia atirado uma pedra nailuminação próxima da passagemsubterrânea, entrado ali e esperado.Sobre Jocke que entrou na passagemmas não saiu de lá. A marca levedeixada, o contorno de um corponas folhas caídas na manhãseguinte.

Quando ele acabou, já fazia umtempo que o garçom andava fazendogestos irritados para Larry,apontando ora para Gösta, ora para a

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porta. Larry pôs a mão no braço deGösta.

— O que você me diz de a gentesair para dar uma olhada?

Gösta balançou a cabeçaconcordando e se levantou da mesa.Morgan engoliu o que restava dacerveja e deu um risinho paraKarlsson, que pegou o jornal eenfiou no bolso do sobretudo comosempre fazia, o mão de vaca de umafiga.

Apenas Lacke continuou sentadocutucando uns palitos de dentequebrados que estavam à sua frente

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na mesa. Larry se inclinou para ele.— Você não vem?— Eu sabia. Eu senti isso.— O.k. Então você não vem?— Vou. Estou indo. Vão vocês na

frente.Quando eles saíram no ar frio da

noite, Gösta ficou mais calmo.Começou a andar a passos tãorápidos que Larry teve de lhe pedirpara diminuir o ritmo, seu coraçãonão aguentava. Karlsson e Morganiam lado a lado atrás deles; Morganesperava que Karlsson fosse dizeruma besteira para poder dar uma

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bronca nele. Isso seria bom. Mas atéKarlsson parecia absorto nospróprios pensamentos.

A lâmpada quebrada tinha sidotrocada e havia luz suficiente napassagem subterrânea. Eles estavamreunidos ouvindo Gösta enquantoeste contava a história e apontavapara o monte de folhas, batendo ospés no chão para aquecê-los.Circulação ruim. Fazia eco naabóbada da passagem como se fosseum exército em marcha. QuandoGösta terminou, Karlsson disse: —Mas não há nenhuma prova .

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Esse era o tipo de comentáriopelo qual Morgan estava esperando.

— Mas que diabos, você ouviu oque ele disse . Você acha que eleestá mentindo ?

— Não — respondeu Karlsson,como se estivesse falando com umacriança —, mas o que eu estoudizendo é que talvez a polícia nãoesteja tão disposta quanto nós aacreditar na história dele quandonão há nada que apoie essa história.

— Mas ele é testemunha .— Você acha que é o suficiente?Larry passou a mão nos montes

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de folhas.— A questão é onde ele está. Se

por acaso a coisa aconteceu dessejeito.

Lacke veio andando pelo caminhodo parque, foi para junto de Gösta eapontou para o chão.

— Ali?Gösta confirmou balançando a

cabeça. Lacke enfiou as mãos nosbolsos e ficou olhando por um bomtempo os desenhos assimétricos dasfolhas, como se fossem um quebra-cabeça gigantesco que ele tinha deresolver. Os músculos do seu

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maxilar se contraíam, relaxavam,contraíam-se de novo.

— E então? O que vocês medizem?

Larry deu uns passos na direçãodele.

— Sinto muito, Lacke.Lacke recusou o gesto sacudindo

a mão, não deixou Larry seaproximar.

— O que vocês me dizem?Vamos pegar ou não o safado quefez isso?

Os outros olharam para todos oslados possíveis exceto para Lacke.

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Larry esteve a ponto de dizeralguma coisa sobre como isso seriadifícil, provavelmente impossível,mas acabou não dizendo. Por fim,Morgan deu uma tossidinha,aproximou-se de Lacke e passou obraço em volta do ombro dele.

— A gente vai pegá-lo, Lacke. Agente vai.

Tommy olhou para fora

debruçado no parapeito e achou tervisto o brilho da prata lá embaixo.Parecia uma dessas coisas que os

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escoteiros mirins costumavamtrazer para casa das competições.

— Em que você está pensando?— perguntou sua mãe.

— No Pato Donald.— Você não gosta muito de

Staffan, não é?— Dá para levar.— Dá mesmo?Tommy olhou para o centro. Viu

o “V” grande e vermelho em neonque se enroscava devagar em cimade tudo. Vällingby. Victory.

— Ele já te mostrou osrevólveres?

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— Por que essa pergunta?— Só queria saber. Ele mostrou?— Não estou entendendo o que

você quer dizer.— Não é tão difícil assim. Por

acaso ele abriu o cofre, tirou osrevólveres de lá de dentro e temostrou?

— Mostrou. Por quê?— Quando ele fez isso?A mãe limpou alguma coisa da

blusa e esfregou os braços.— Estou com um pouco de frio.— Você pensa no papai?— Sim, penso. O tempo todo.

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— O tempo todo?A mãe suspirou e abaixou a

cabeça para poder olhar bem dentrodos olhos dele.

— Aonde você quer chegar?— Aonde você quer chegar?A mão de Tommy descansava no

parapeito, a mãe pousou a dela emcima da mão do filho. — Você vaicomigo amanhã visitar seu pai?

— Amanhã?— É. É Dia de Finados.— É depois de amanhã. Sim, eu

vou.— Tommy…

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Tirou delicadamente as mãos dofilho do parapeito e o virou defrente para ela. Deu-lhe um abraço.Ele ficou parado, contraído por uminstante. Em seguida se soltou eentrou no apartamento.

Enquanto Tommy vestia asroupas de frio, entendeu queprecisava tirar a mãe da sacada sefosse apanhar a escultura. Ele achamou e ela veio rápido, sedentade palavras.

— Só uma coisa… dê lembrançasa Staffan.

O rosto dela se iluminou.

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— Está bem. Você não vai ficar?— Não, eu… é que aquilo pode

levar a noite inteira.— É. Estou um pouco

preocupada.— Não fique. Ele sabe atirar.

Tchau.— Tchau…A porta bateu.— … coração.

As engrenagens do Volvo

soltaram um estampido abafadoquando Staffan subiu com o carro

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pelo meio-fio em alta velocidade.Os dentes dele bateram um no outrocausando um zumbido na cabeça,que o deixou cego por um instante equase o fez atropelar um velhinhoque estava indo se juntar aoscuriosos amontoados ao redor daviatura na entrada da piscina.

O aspirante Larsson estava nocarro falando no rádio. Devia estarpedindo reforço ou umaambulância. Staffan estacionouatrás da viatura para deixar ocaminho livre caso um eventualreforço aparecesse, saiu do veículo

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e trancou-o. Ele sempre trancava ocarro, mesmo que se ausentasse sópor um minuto. Não porque sepreocupava com a possibilidade deo carro ser roubado, mas para nãoperder o hábito, assim ele nunca seesqueceria de trancar o carro dotrabalho .

Ele foi para a entrada principal efez um esforço para irradiarautoridade, já que haviaespectadores; sabia que tinha umaaparência que inspirava confiançana maioria das pessoas. Muitos dosque estavam olhando provavelmente

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pensavam: “Ah, ali vem o cara quevai dar jeito nisso tudo”.

Do lado de dentro, perto da portada entrada, havia quatro homens decalção de banho com toalhas emvolta dos ombros. Staffan passoupor eles e foi na direção dosvestiários, mas um dos homensexclamou: “Alô, com licença”, e seaproximou dele na ponta dos pés,mesmo descalços.

— Com licença, mas… nossasroupas.

— O que há com elas?— Quando a gente pode apanhar?

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— As roupas de vocês?— É, elas estão no vestiário e é

proibido entrar lá.Staffan abriu a boca para fazer

um comentário azedo, algo sobre asroupas deles não serem o primeiroitem na lista de prioridades, masuma mulher de camiseta branca seaproximou dos homens naqueleinstante com uma pilha de roupõesnos braços. Staffan fez um gestopara a mulher e prosseguiu para ovestiário.

No caminho, cruzou com maisuma mulher de camiseta branca que

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conduzia um menino entre doze etreze anos para a entrada. O rosto dogaroto tinha a cor vermelho-sanguee contrastava com o roupão brancoque o envolvia; seus olhos estavamvazios. A mulher olhou bem paraStaffan com um olhar que pareciaquase acusador.

— A mãe dele vem apanhá-lo.Staffan balançou a cabeça. Será

que o menino era… a vítima? Elequeria ter perguntado exatamenteisso, mas, na pressa, não conseguiupensar num modo adequado deformular a pergunta. Teve de partir

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do princípio de que Holmberganotara o nome dele e os outrosdados e julgara ser melhor deixar amãe do menino assumir o comando,levá-lo à ambulância, conversarcom o psicólogo, terapia.

Protegei suas criancinhas .Staffan atravessou o corredor e

subiu a escada correndo, enquantorepetia dentro de si uma oração deagradecimento pela misericórdia epedia forças para a provação queviria.

Será que o assassino ainda estavamesmo dentro do prédio?

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Do lado de fora do vestiário,abaixo de uma tabuleta com a únicapalavra “cavalheiros”, como era deesperar, havia três senhores falandocom o oficial Holmberg. Apenas umdeles estava todo vestido. Um dostrês estava sem calças, o outro tinhao tronco nu.

— Ainda bem que você chegoutão rápido — disse Holmberg.

— Ele ainda está aqui?Holmberg apontou para a porta

do vestiário.— Lá dentro.Staffan fez um gesto na direção

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dos três homens.— São eles…?Antes que Holmberg tivesse

tempo de dizer alguma coisa, ohomem sem calças deu meio passoà frente e disse, com uma ponta deorgulho: — Somos as testemunhas.

Staffan balançou a cabeça elançou um olhar interrogativo paraHolmberg.

— Eles não deviam…— Sim, mas esperei você chegar.

Pelo visto ele não é violento. —Holmberg se virou para os trêshomens e disse num tom amigável:

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— Entraremos em contato. Omelhor que vocês fazem agora é irpara casa. Ah, mais uma coisa. Eusei que não é muito fácil, mastentem não discutir isso entre vocês.

O homem sem calças deu umsorriso de lado, em sinal decompreensão.

— Você quer dizer que alguémpode ouvir.

— Não, mas vocês podem acabarachando que viram coisas que naverdade não viram, apenas porqueoutra pessoa viu.

— Eu não. Eu vi o que eu vi e foi

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uma coisa horrível…— Acreditem em mim. Isso

acontece com muita gente. E agoravocês vão nos desculpar. Obrigadopela colaboração.

Os homens se dirigiram para ocorredor, resmungando. Holmbergera bom nisso. Conversar com aspessoas. Mas era isso o que ele maisfazia. Percorria as escolas e falavasobre drogas e o trabalho da polícia.Não era muito comum que eleestivesse nas ruas trabalhando comesse tipo de coisa atualmente.

Um estampido metálico, como se

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algo feito de chapa de metal tivessecaído, veio lá de dentro do vestiário.Staffan levou um susto, prestouatenção.

— Não é violento?— Gravemente ferido, pelo visto.

Derramou uma espécie de ácido norosto.

— Por quê?O rosto de Holmberg ficou vazio

e ele se virou para a porta.— Então a gente precisa entrar

para perguntar.— Está armado?— Provavelmente não.

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Holmberg apontou para o nichoda janela. Em cima da prateleira demármore havia uma faca grande decozinha com punho de madeira.

— Eu não tinha saco plástico.Além do mais, aquele que estavasem calças já havia mexido nela porum bom tempo antes de eu chegar.A gente vê isso depois.

— A gente vai deixar a faca aqui?— Você tem uma sugestão

melhor?Staffan sacudiu a cabeça e agora

no silêncio ele pôde distinguir duascoisas. Um sopro fraco e sem ritmo

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que vinha do vestiário. O vento nocano de uma chaminé. Uma flautaquebrada. Isso, e um cheiro. Algoque ele primeiro achou que faziaparte do cheiro de cloro quedominava todo o local. Mas isso eraoutra coisa. Um cheiro penetrante eforte que fazia cócegas nas narinas.Staffan franziu o nariz.

— Vamos…?Holmberg acenou com a cabeça,

mas continuou onde estava. Casadoe com filhos. Claro. Staffan tirou aarma do coldre e pôs a outra mão namaçaneta da porta. Era a terceira

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vez em doze anos de carreira queele entrava num lugar de revólverem punho. Não sabia se fazia acoisa certa, mas ninguém iacensurá-lo por isso. Um assassinode crianças. Fechado num cômodo,talvez desesperado, mesmo queferido.

Ele fez um sinal para Holmberg eabriu a porta.

O fedor veio ao seu encontro.Penetrava no nariz, fazendo seus

olhos lacrimejarem. Ele tossiu.Apanhou um lenço do bolso e tapoua boca e o nariz. Algumas vezes

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ajudou bombeiros em incêndios decasas, era parecido com isso. Masaqui não havia fumaça, apenas umanévoa suave que pairava ao redor dolocal.

Santo Deus , o que é isso?O som monótono, cortado, ainda

era ouvido do outro lado da fileirade armários diante deles. Staffan fezum sinal para Holmberg dar a voltana fileira de armários pelo outrolado, assim eles chegariam dos doislados: Staffan foi para a ponta dosarmários e espiou do canto com orevólver abaixado.

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Viu um cesto de lixo virado nochão e ao lado dele um corpo caído,nu.

Holmberg apareceu do outro ladoe fez sinal para Staffan ir comcalma, parecia não haver nenhumperigo imediato. Staffan sentiu umapontada de irritação por Holmbergter tentado assumir o comando dasituação agora que ela não pareciamais ser perigosa. Ele respirou pelolenço, tirou o pano da boca e disseem voz alta: — Olá. Aqui é apolícia. Está me ouvindo?

O homem não deu nenhum sinal

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de que ouvia, apenas continuouproduzindo o som monótono derosto virado para o chão. Staffandeu uns passos à frente.

— Mostre as mãos para eu ver.O homem não se mexeu. Mas,

agora que Staffan estava mais perto,ele pôde ver que o corpo todo secontraía. Aquilo com as mãos foidesnecessário. Um dos braçosestava em cima do cesto de lixo, ooutro, caído no chão. As palmas dasmãos estavam inchadas e cortadas.

O ácido … como é a cara dele …Staffan tapou a boca com o lenço

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de novo e se aproximou do homemenquanto enfiava o revólver nocoldre, confiando que Holmberg lhedesse cobertura caso acontecessealguma coisa.

O corpo se contraía em espasmose produziam-se estalos suavesquando a pele nua se desgrudava doladrilho e se colava nele novamente.A mão que estava no chão pulavacomo um peixe numa superfícierochosa. E o tempo todo o som daboca, virada para o chão: — …eeiiiieeeiii…

Staffan fez sinal para Holmberg

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se manter um pouco distante e seagachou ao lado do corpo: — Vocêpode me ouvir?

O homem se calou. De repente, ocorpo inteiro deu uma viradaespasmódica e rolou.

O rosto.Staffan recuou, perdeu o

equilíbrio e aterrissou no cóccix.Trincou os dentes para não gritarquando um leque de dor se abriu naregião lombar. Apertou os olhos.Abriu-os novamente.

Ele não tem rosto .Staffan tinha visto um viciado

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que, em estado alucinatório, socou orosto repetidas vezes numa parede.Ele tinha visto um homem quesoldou um tanque de gasolina semesvaziá-lo primeiro. O tanqueexplodiu em seu rosto.

Mas nada se parecia com aquelecaso.

O nariz tinha sido totalmentecorroído, onde estavam as narinashavia agora apenas dois buracosdentro do crânio. A boca se fundiu,os lábios estavam selados excetopor uma fresta num dos cantos. Umdos olhos escorreu sobre aquilo que

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tinha sido a bochecha, mas ooutro… o outro estava arregalado.

Staffan olhou bem dentro desseolho, a única coisa que se podiareconhecer como humana no meiodaquela massa disforme. O olhoestava avermelhado e, ao tentarpiscar, foi apenas a metade de umadobra de pele que desceu trêmulapor cima dele e subiu depois denovo.

No lugar em que devia estar orestante do rosto, havia apenaspedaços de cartilagem e ossos queapontavam para fora em meio a

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pedaços irregulares de carne e tirasde pano preto. Os músculoslustrosos e descarnados contraíam-se e relaxavam, saltitavam como seno lugar da cabeça houvesse umbolo de enguias mortasrecentemente e em pedacinhos.

O rosto inteiro, aquilo que haviasido rosto, tinha uma vida própria.

Uma ânsia de vômito subiu pelagarganta de Staffan e ele teriaprovavelmente vomitado se seucorpo não estivesse tão ocupado embombear dor para a região lombar.Lentamente, ele puxou a perna para

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baixo e ficou de pé, apoiando-se noarmário. O olho avermelhadoolhava o tempo todo para ele.

— Que coisa horrível…Holmberg estava de braços

pendidos olhando para o corpodeformado no chão. Não foi só orosto. O ácido também escorreupara a parte superior do corpo. Apele que cobria a clavícula num doslados sumiu e uma parte do ossoapontava para fora, tinha um brilhobranco parecendo um pedaço de giznum guisado de carne.

Holmberg sacudiu a cabeça,

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levantou e abaixou a mão pelametade, para cima e para baixo,para cima e para baixo. Tossiu.

— Que coisa horrível…

Eram onze horas e Oskar estava

na cama. Batia discretamente asletras na parede.

E… L… I…E… L… I…Nenhuma resposta.

Sexta-feira, 30 de outubro

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Os meninos do 6º ano B estavamenfileirados na passagem ao pé daescola esperando que o professorÁvila desse o sinal verde. Todosseguravam sacolas de ginástica oubolsas, pois ai daquele queesquecesse as roupas de ginástica ouque não tivesse motivos sólidospara deixar de ir à aula de educaçãofísica.

Eles estavam a uma distância deum metro um do outro, como oprofessor ordenou no primeiro diado quarto ano, quando assumiu aresponsabilidade pela aula dos

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meninos.— Fila rreta! Un metro de

distância.O professor Ávila tinha sido

piloto do Exército na guerra. Emalgumas ocasiões divertiu osgarotos com histórias das batalhasno ar e dos pousos de emergêncianas plantações de trigo. Eraimpressionante. Ele era respeitado.

Uma turma considerada briguentae bagunceira formavaobedientemente uma fila com ummetro de distância um do outro,apesar de o professor nem sequer

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estar ao alcance da vista dos alunos.Se a fila não estivesse do jeito que oprofessor queria, ele deixava ascrianças esperando por mais dezminutos ou cancelava um jogo devoleibol para dar preferência aflexões de braço e abdominais.

Oskar tinha, assim como osoutros, bastante medo do professor.Com o cabelo grisalho bem rente eo nariz adunco, o físico ainda emboa forma e punhos de ferro, oprofessor não era exatamente amelhor pessoa para amar e entenderum menino frágil, um pouco acima

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do peso e perseguido pelos colegas.Mas havia ordem nas aulas dele.Nem Jonny, Micke ou Tomasousavam fazer alguma coisaenquanto o professor estivesse porperto.

Agora Johan saiu da fila e olhoupara a escola lá em cima. Emseguida fez uma saudação hitleristae disse: — Fila rreta! Hodjeexercício de combate a incêndio!Con cuerda!

Alguns soltaram um riso nervoso.O professor tinha uma predileçãopor exercícios de combate a

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incêndio. Uma vez por períodoescolar, os alunos tinham quetreinar sair pela janela usando umacorda enquanto o professor marcavao tempo de todo o procedimentocom um cronômetro. Se os alunosconseguissem bater o recordeanterior, então podiam brincar dedança das cadeiras na próxima aula.Se fizessem por merecer.

Johan voltou rapidamente para afila. Ainda bem, pois apenas unssegundos mais tarde o professorsaiu da entrada principal da escola apassos rápidos e foi para o salão de

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ginástica. Ele olhava para a frente,não lançou sequer um olhar para ogrupo. Quando estava na metade docaminho, fez um gesto de vem! coma mão sem parar de caminhar, semvirar a cabeça.

A fila se pôs em marcha enquantoos garotos tentavam manter adistância de um metro um do outro.Tomas, que andava atrás de Oskar,pisou no calcanhar deste, o que fezo sapato de Oskar sair do pé nocalcanhar. Mas ele continuouandando.

Desde aquele episódio com as

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varas dois dias antes, eles tinhamdeixado Oskar em paz. Não quetivessem pedido desculpa ou algodo gênero, mas a ferida no rostodele estava ali e eles devem terachado que era o bastante. Porenquanto.

Eli .Oskar dobrou os dedos do pé para

o sapato não se soltar e continuoumarchando para o salão de educaçãofísica. Onde estava Eli? Oskarespiou pela janela na noite anteriorpara ver se o pai da garota tinhachegado em casa. Em vez disso,

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viu-a sair por volta das dez horas.Depois foi a hora do chocolatequente e dos bolinhos com a mãe etalvez ele tivesse perdido omomento em que ela voltou paracasa. Mas a menina não respondeuàs batidas dele.

A turma entrou estabanada novestiário, a fila foi desfeita. Oprofessor Ávila estava esperandopor eles de braços cruzados.

— Certo. Hoje é ginástica. Comtrave, plinto e corda de pular.

Gemidos queixosos. O professorbalançou a cabeça.

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— Se vocês fizerem bem,trabajarem bien, na próxima vezjugaremos queimado. Mas hoje:ginástica. Vamos andando!

Não havia espaço paraquestionamento. Tinham que se darpor satisfeitos com aquilo daqueimada e a turma trocava rápidode roupa. Como de costume, Oskartratou de ficar de costas para osoutros na hora em que tirou ascalças. A Bola do Mijo dava umaaparência esquisita à cueca.

Lá em cima no salão, os outrosestavam ajeitando os plintos no

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lugar e descendo as traves. Johan eOskar ajudavam carregando oscolchões. Quando tudo estavapronto, o professou soprou o apito.Havia cinco estações, de forma queele dividiu a turma em cinco gruposde dois cada.

Oskar e Staffe fizeram umadupla, o que era bom, pois Staffeera o único na turma pior que Oskarem educação física. Ele era muitoforte, mas desajeitado. Mais gordoque Oskar. Mesmo assim, ninguémimplicava com ele. Havia algumacoisa na atitude de Staffe que dizia

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que, se alguém mexesse com ele,esse alguém ia se dar mal.

O professor apitou e elescomeçaram.

Flexões de braço em cima datrave. Queixo acima da trave, parabaixo de novo, para cima de novo.Oskar conseguiu fazer duas. Staffe,cinco, depois parou. Sinal do apito.Abdominais. Staffe apenas ficoudeitado no colchão olhando para oteto. Oskar fez abdominais dementira até o próximo sinal. Pularcorda. Nisso, Oskar era bom. Eletamborilava no chão enquanto

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Staffe se enrolava todo na corda.Depois flexões de braço comuns.Staffe conseguia fazer sem parar.Por fim, o plinto, o maldito plinto.

Nessa hora, era bom estar comStaffe. Oskar tinha olhadosorrateiramente para Micke, Jonny eOlof; como eles atravessavam oplinto voando via trampolim. Staffedeu impulso, saltou, aterrissoupesado no trampolim, que rangeu, eainda assim não conseguiu subir noplinto. Staffe se virou para voltar. Oprofessor se aproximou.

— Suba no plinto!

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— Não dá.— Você precisa deslissarse.— O quê?— Deslissarse. Deslizar . Vamos

lá!Staffe segurou o plinto, levantou

o corpo com os braços e deslizoupara o outro lado parecendo umbicho-preguiça. O professor acenouvenha e Oskar saltou.

Em algum momento, enquanto iapara o plinto, ele resolveu.

Ia tentar .O professor lhe disse uma vez

para não ter medo do plinto, que

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tudo dependia disso. Normalmenteele não dava o salto inicial direito,com medo de perder o equilíbrio oude bater no aparelho. Mas agora eleiria dar tudo de si, fingir queconseguia. O professor olhava,Oskar correu a toda a velocidadepara o trampolim.

Ele mal pensou no salto inicial,concentrou-se totalmente ematravessar o plinto. Pela primeiravez, projetou os pés para cima daprancha com toda força, semaplacar o impulso, e o corpo vooupor si mesmo, as mãos se esticaram

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para fincar-se na prancha econtinuar transportando o corpo.Oskar atravessou o plinto com umavelocidade tão grande que perdeu oequilíbrio e caiu de bruços aoaterrissar do outro lado. Mas eletinha atravessado!

Ele se virou e olhou para oprofessor, que na verdade nãosorriu, mas balançou a cabeça demodo encorajador.

— Muito bem, Oskar. É só termais equilíbrio.

O professor apitou e elespuderam recuperar o fôlego durante

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um minuto antes de dar mais umavolta no circuito. Dessa vez Oskarconseguiu atravessar o plinto emanter o equilíbrio ao aterrissar.

O professor apitou encerrando aaula e desceu para sua sala enquantoos alunos arrumavam os apetrechos.Oskar abriu as rodas do plinto,transportou-o para onde ficavam osequipamentos e lhe deu um tapinhacomo se fosse um bom cavalo quefinalmente se deixara domar. Pôs oplinto no lugar e foi para ovestiário. Tinha uma coisa parafalar com o professor.

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A meio caminho da porta ele foidetido. Um laço feito da corda depular passou por sua cabeça e parouem volta da barriga. Alguém oprendia com a corda. Por trás, Oskarouviu a voz de Jonny: “Upa, porco”.

Ele se virou de forma que o laçoda corda deslizou pela barriga eparou em suas costas. Jonny estavaà sua frente segurando os pegadoresda corda. Balançava as pontas paracima e para baixo, estalava com alíngua.

— Upa, upa.Oskar agarrou a corda com as

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mãos e puxou os pegadores,tentando escapar do laço de Jonny.A corda pendia no chão atrás dogaroto. Jonny apontou para a corda:— Agora você tem que pegar.

Oskar segurou a corda no meiocom uma das mãos, tirou-a do corpoe rodopiou-a por cima da cabeça, demodo que os pegadores bateram umno outro. Exclamou “Pegue!” elargou. A corda voou e Jonny cobriuinstintivamente o rosto com asmãos para se proteger. A cordapassou por cima da cabeça de Jonnye foi parar no espaldar atrás dele,

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fazendo uma barulheira.Oskar saiu do salão de ginástica e

desceu correndo as escadas. Ocoração ruflava em seus ouvidos.Começou . Ele descia três degrausde uma vez, aterrissou com os doispés ao mesmo tempo no patamar,atravessou o vestiário e entrou nasala do professor.

O professor estava sentado comroupa de ginástica falando aotelefone numa língua estrangeira,provavelmente espanhol. A únicapalavra que Oskar conseguiuentender foi “perro”, que ele sabia

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significar “cachorro”. O professorfez sinal para que ele se sentasse naoutra cadeira. Continuou falando,mais “perro”; enquanto isso, Oskarouviu Jonny entrar no vestiário ecomeçar a falar em voz alta.

O vestiário já estava vazioquando o professor terminou defalar sobre o seu cachorro. Virou-separa Oskar.

— Então, Oskar. Pode falar.— Bem, eu queria saber… sobre

aquele treino às quintas.— Sim?— Dá para participar dele?

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— Você está falando damusculação na piscina?

— É, disso mesmo. Eu posso meinscrever ou…

— Você não precisa se inscrever.É só aparecer. Quinta às sete. Vocêquer vir?

— Sim… quero.— Isso é bom. Você treina.

Depois você pode fazer a trave…umas cinquenta vezes.

O professor mostrou a flexão natrave com os braços no ar. Oskarsacudiu a cabeça.

— Não. Mas… eu apareço lá.

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— Então até quinta. Ótimo.Oskar balançou a cabeça. Estava

a ponto de ir, mas disse em seguida:— Como está o cachorro?

— O cachorro?— É, eu o ouvi dizer “perro”. Não

significa cachorro?O professor refletiu por um

instante.— Ah… Não é “perro”. Pero .

Significa “mas”. Como em “masnão eu”. Em espanhol fica pero noyo . Entendeu? Você também vaicomeçar a estudar espanhol?

Oskar sorriu e sacudiu a cabeça.

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Disse que a musculação já erasuficiente.

O vestiário estava vazio a não serpelas roupas de Oskar. Ele tirou ascalças de ginástica e parou. Suascalças tinham sumido. É claro.Como é que ele não tinha pensadonisso? Procurou no vestiário, nobanheiro. Nada de calças.

O frio mordia as pernas de Oskar

quando ele foi para casa apenas decalção de ginástica. Começou anevar durante a aula de educação

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física. Os flocos de neve caíam e sederretiam em suas pernas nuas.Dentro do pátio de casa, Oskarparou embaixo da janela de Eli. Aspersianas fechadas. Nenhummovimento. Flocos grandes de nevealisavam seu rosto virado paracima. Oskar pegou alguns com alíngua. Tinham um gosto bom.

— Olhe para Ragnar.Holmberg apontou para a praça

de Vällingby onde a neve que caíadeixava uma camada translúcida

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sobre os paralelepípedos, quefaziam um círculo. Um dos pés decana do lugar estava sentadocompletamente imóvel num banco,envolto num casaco grande,enquanto a neve o transformavanum boneco de neve malfeito.Holmberg fez um muxoxo.

— A gente precisa dar umaolhada, se ele continuar imóvel.Como você está?

— Mais ou menos.Staffan pusera um travesseiro

extra em sua cadeira para aliviar ador na região lombar. Ele preferia

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ficar em pé ou, melhor ainda, ficardeitado na cama, mas o relatóriosobre os acontecimentos da noiteanterior devia chegar à divisão dehomicídios antes do final desemana.

Holmberg olhou para o bloco deanotações e bateu nele com acaneta.

— Aqueles três que estavamdentro do vestiário. Eles disseramque o assassino, antes de derramar oácido clorídrico no rosto, tinhagritado “Eli, Eli!”, e eu me perguntose…

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O coração deu um salto no peitode Staffan e ele se debruçou para afrente na escrivaninha.

— Ele disse isso?— Sim? Você sabe o que isso…— Sei.Staffan se recostou pesadamente

na cadeira e a dor atirou uma flechaque lhe subiu até o couro cabeludo.Segurou o canto da escrivaninha,endireitou-se e passou as mãos norosto. Holmberg olhou para ele.

— Que droga… Você já foi aomédico?

— Não, é só… vai passar. Eli,

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Eli.— É um nome?Staffan balançou a cabeça

lentamente. — É… significa…Deus.

— Ah, o.k. Ele clamou por Deus.Você acha que Ele ouviu?

— Como?— Deus. Você acha que Ele

ouviu? Considerando-se ascircunstâncias, parece um pouco…improvável. Mas você que éespecialista nisso. Diga.

— São as últimas palavras queCristo disse na cruz. Senhor,

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Senhor, por que me abandonaste?Eli , Eli , lema sabachtani?

Holmberg piscou e olhou para asanotações.

— É, isso mesmo.— Segundo o evangelho de

Mateus e Marcos.Holmberg balançou a cabeça e

sugou a caneta.— Você acha que a gente inclui

isso no relatório?

Ao chegar da escola, Oskar vestiu

calças limpas e desceu até o

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Quiosque dos Namorados paracomprar jornal. Circulava o boatode que o assassino estava preso e elequeria saber de tudo. Cortar o artigoe guardar.

Alguma coisa estava estranhaquando ele desceu para o quiosque,alguma coisa diferente, à exceçãoda neve.

No caminho de volta para casa, jácom o jornal, ele entendeu o queera. Não estava em estado de alerta.Ele apenas tinha ido. Descera ocaminho todo para o quiosque semficar de olho naqueles que poderiam

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machucá-lo.Oskar começou a correr. Correu o

caminho todo para casa segurando ojornal enquanto os flocos de nevelambiam seu rosto. Trancou a portado apartamento. Foi para a cama,deitou-se de bruços e bateu naparede. Sem resposta. Ele queriafalar com Eli, contar.

Abriu o jornal. A quadra deVällingby. Viaturas. Ambulância.Tentativa de assassinato. O tipo daslesões do homem dificultava suaidentificação. Fotos de Danderyd,onde o homem estava internado.

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Menção do assassinato anterior.Nada de comentários.

Depois sobre o submarino,submarino, mais submarino.Reforço na tropa de prontidão.

A campainha tocou.Oskar pulou da cama e foi

correndo para o corredor.Eli , Eli , Eli .Quando estava com a mão no

trinco, estacou. E se fossem Jonny eos outros? Não, eles nunca iriamaparecer em sua casa assim, semmais nem menos. Ele abriu. Do ladode fora estava Johan.

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— Oi.— É… Oi.— Você está a fim de fazer

alguma coisa?— Estou… o quê?— Sei lá. Qualquer coisa.— Tudo bem.Oskar calçou os sapatos e vestiu o

casaco enquanto Johan ficouesperando nas escadas.

— Jonny ficou fulo da vida. Comaquilo na ginástica.

— Ele pegou minhas calças, nãofoi?

— Foi. Eu sei onde elas estão.

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— Onde?— Ali atrás. Perto da piscina.

Vou mostrar.Oskar pensou, mas não disse, que

nesse caso Johan bem que podia tertrazido com ele as calças, já quepassou por lá. Mas sua boa vontadenão chegava a tanto. Oskar assentiue disse: “Tudo bem”.

Eles foram para a piscina buscaras calças que estavam penduradasnuma moita. Depois deram umavolta nas redondezas. Fizeram bolasde neve e acertaram bem no meio daárvore. Num contêiner, acharam um

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cabo de eletricidade em bom estadopara cortar e aproveitar os pedaçospara fazer flechas de estilingue.Falaram sobre o assassino, osubmarino, sobre Jonny, Micke eTomas, que Johan achava serem unsidiotas.

— Doentes da cabeça.— Mas com você eles não

costumam fazer nada.— É. Mas mesmo assim.Os dois foram para a barraquinha

de cachorro-quente perto do metrô ecada um comprou dois luffare .Uma coroa cada; pão de cachorro-

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quente, uma salsicha grelhadaapenas com mostarda, ketchup,molho para hambúrguer e cebolacrua dentro. Estava escurecendo.Johan conversava com a menina dabarraquinha e Oskar olhava para osmetrôs que iam e vinham, pensandonos fios elétricos que corriam acimados trilhos.

Com as bocas impregnadas dogosto de cebola, desceram para aescola, onde o caminho deles seseparava. Oskar disse: — Você achaque tem gente que se suicida sejogando naqueles fios acima do

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trilho?— Sei lá. Acho que sim. Meu

irmão conhece um cara que desceu emijou na parte elétrica do trilho.

— O que aconteceu?— Morreu. A corrente subiu do

mijo para o corpo dele.— Mas como? Ele queria morrer?— Não. Estava bêbado. Que nojo.

Imagine só…Johan fez a mímica fingindo que

tirava o pinto para fora e fazia xixi,seu corpo todo começou a sacudir.Oskar riu.

Separaram-se perto da escola;

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acenaram um para o outro. Oskarfoi para casa com as calças querecolheu amarradas na cinturaassobiando a trilha sonora de Dallas. Já tinha parado de nevar, mas umlençol branco cobria tudo. Asjanelas grandes de vidro fosco dapequena piscina municipal estavamiluminadas. É para lá que ele iria naquinta-feira à noite. Começar afazer ginástica. Ficar mais forte.

Sexta-feira à noite no restaurante

chinês. O relógio redondo com

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borda de aço na parede, o qualparece estar no lugar errado emmeio a luminárias de papel-arroz edragões dourados, mostra cinco paraas nove. A turma está sentadabebendo sua cerveja, perdendo-senas paisagens dos descansos deprato. Lá fora a neve continuacaindo.

Virginia mexe um pouco em suabebida e suga o palitinho do drinquecom um desenho pequeno de JohnnyWalker na ponta.

Quem foi Johnny Walker? Paraonde ele caminhava com tanta

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determinação?Ela bate o palitinho no copo e

Morgan levanta os olhos.— Vai fazer discurso?— Alguém tem que fazer.Eles tinham lhe contado. Tudo o

que Gösta disse sobre Jocke, apassagem subterrânea, a criança.Depois ficaram em silêncio.Virginia fazia os cubos de gelotilintarem no copo, observava oreflexo da meia-luz do teto noscubos semiderretidos.

— Só não entendo uma coisa. Seaconteceu do jeito que Gösta

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contou, onde é que ele está? Jocke, éclaro.

O rosto de Karlsson se iluminou,como se essa fosse a oportunidadeque ele estava esperando.

— É justamente isso que eu tenteidizer. Onde está o cadáver? Se épara ser…

Morgan levantou um dedo dealerta na direção de Karlsson.

— Não chame Jocke de“cadáver”.

— E como eu devo chamá-lo? Ofalecido ?

— Você não deve chamar Jocke

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de nada antes de a gente saber o queaconteceu.

— Mas é justamente isso o queestou dizendo. Enquanto a gente nãotem nenhum c… enquanto eles nãotiverem achado… Jocke, a gentenão pode…

— Eles quem?— O que você acha? A divisão de

helicópteros em Berga? A polícia, éclaro.

Larry esfregou o olho,produzindo um clique discreto.

— Isso aí é problemático.Enquanto não acharem Jocke, eles

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não têm interesse e, se não háinteresse, não vão procurar por ele.

Virginia sacudiu a cabeça. —Vocês precisam procurar a polícia econtar tudo o que sabem.

— Ah, o.k. E o que você acha quea gente deve dizer? — Morgan deuum risinho sarcástico. — Olhem só,deixem para lá toda essa históriacom esse assassino de criança, como submarino, todo esse rolo, porquenós somos três pés de cana de bemcom a vida e um dos nossoscompanheiros de copo sumiu, e umcara da nossa turma contou que

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numa noite dessas, quando estavabem bêbado, viu… e então?

— Mas e Gösta? Mas se foi elequem viu o que aconteceu, foi elequem…

— Ah, sim. Não me diga. Mas eleé muito perturbado. É só aparecerum uniforme na frente dele queGösta desmorona e fica pronto parase internar no Beckis. Não temestrutura para isso. Interrogatório eum monte de coisa. — Morgan deude ombros. — Não tem jeito.

— Então vocês vão deixar tudodo jeito que está?

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— Vamos. E o que a gente podefazer?

Lacke, que a essa altura já beberatoda a cerveja enquanto elesconversavam, disse algo baixodemais para poder ser ouvido.Virginia se encostou nele e pousou acabeça em seu ombro.

— O que você disse?Lacke não tirava os olhos da

paisagem de nanquim envolta emnévoas do descanso do copo. Elesussurrou: — Você disse. Que agente ia pegá-lo.

Morgan deu um soco na mesa que

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fez pular o copo de cerveja, eestendeu a mão à frente como sefosse uma garra.

— E a gente vai . Mas a gentetem que ter uma pista primeiro.

Lacke balançou a cabeçaparecendo um sonâmbulo ecomeçou a se levantar.

— Só preciso…Suas pernas dobraram, ele caiu de

boca por cima da mesa e foi umabarulheira de copos caindo que feztodos os oito clientes que comiamse virar para olhar. Virginia segurouos ombros de Lacke e o sentou na

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cadeira novamente. Seus olhosestavam bem distantes.

— Desculpe, eu…O garçom foi rapidamente até a

mesa deles, esfregando as mãos noavental de um modo frenético.Abaixou-se para Lacke e Virginia esussurrou furioso: “Isso aqui é umrestaurante , não uma pocilga”.

Virginia deu o sorriso maisbonito que tinha enquanto ajudavaLacke a se levantar.

— Ande, Lacke. Vamos lá paracasa.

Lançando um olhar incriminador

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para o resto da turma, o garçom deurapidamente a volta e segurouLacke do lado oposto de Virginia,para mostrar aos clientes que estavatão interessado quanto eles emretirar o elemento perturbador dapaz da refeição.

Virginia ajudou Lacke a vestir osobretudo pesado, de uma elegânciaantiquada — uma herança do pai,que morreu anos atrás —, erebocou-o para a porta.

Atrás dela, assobios insinuantesvindos de Morgan e de Karlsson.Com o braço de Lacke em volta do

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seu ombro, Virginia se virou paraeles e mostrou a língua. Em seguidaabriu a porta e saiu.

A neve caía em flocos grandes elentos, criando um espaço feito defrio e de silêncio para os dois. Asbochechas de Virginia ficaramafogueadas quando ela levou Lackepara o caminho do parque. Eramelhor assim.

— Olá. Eu ia me encontrar com

meu pai, mas ele não apareceu e…será que posso entrar para usar o

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telefone?— Claro.— Posso entrar?— O telefone está ali.A mulher apontou para dentro do

corredor; em cima de uma mesinhahavia um telefone cinza. Elicontinuou do lado de fora, ainda nãotinha sido convidado. Bem ao ladoda porta havia um porco-espinho deferro fundido com espinhos depiaçava. Eli limpou os sapatos nelepara disfarçar sua incapacidade deentrar.

— Tem certeza de que não tem

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nenhum problema?— Não, imagine. Entre , entre .A mulher fez um gesto cansado.

Eli foi convidado. A dona da casaparecia ter perdido o interesse e foipara a sala de estar, de onde Elipôde ouvir o zumbido estático deum aparelho de tv. Uma faixa deseda longa e dourada serpenteavapresa no cabelo grisalho da mulher;parecia uma cobra domada em suascostas.

Eli entrou no corredor, tirou ossapatos e o casaco, levantou o fone.Discou um número qualquer, fingiu

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falar com alguém e repôs o fone nogancho.

Inspirou. Ranço de fritura,produto de limpeza, terra, graxa desapato, maçãs de inverno, panoúmido, eletricidade, poeira, suor,cola de papel de parede e… urina degato.

Isso mesmo. Um gato preto dacor de fuligem estava na porta dacozinha arreganhando os dentes.Com as orelhas esticadas para trás,o pelo eriçado, as costas arqueadas.Em volta do pescoço, ele tinha umcordão com um cilindro pequeno de

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metal, provavelmente onde se podiaenfiar um papelzinho com nome eendereço.

Eli deu um passo na direção dogato e mostrou os dentes para oanimal, que chiou. O corpocontraído preparado para pular.Mais um passo.

O gato bateu em retirada esaltitou para trás enquantocontinuava a chiar. Não tirava osolhos de Eli. O ódio que enrijeceuseu corpo fez estremecer o cilindrode metal. Eles mediram forças. Elifoi devagar para a frente, obrigando

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o gato a recuar até o bicho acabardentro da cozinha. Eli fechou aporta.

O gato continuou mostrando osdentes e miando com raiva do outrolado. Eli foi para a sala de estar.

A mulher estava sentada numsofá de couro tão brilhoso querefletia a luz da tv. Tinha as costaseretas e os olhos cravados na tela,que tremeluzia azul. Um laçoamarelo amarrado no cabelo de umlado. Do outro lado, um laço que sedesmanchara numa tira amarela. Namesinha de centro diante dela havia

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uma tigela com biscoitos e umabandeja com três tipos diferentes dequeijos. Uma garrafa de vinhofechada e dois copos.

A mulher não pareceu ter notadoa presença de Eli, de tãoconcentrada que estava no queacontecia na tela. Um programasobre animais. Pinguins no polo sul.

“O macho carrega o ovo em cimados pés para que não entre emcontato com o gelo .”

Uma caravana de pinguins semovia balouçante sobre um desertode gelo. Eli sentou-se no sofá, junto

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da mulher. A dona da casa estavaimóvel, como se a tv fosse umprofessor severo lhe dando umsermão.

“Quando a fêmea regressa depoisde três meses , a reserva de gordurado macho está praticamenteconsumida .”

Dois pinguins esfregavam osbicos um no outro,cumprimentando-se.

— Você vai receber visita?A mulher levou um susto e olhou

alguns segundos, sem compreenderbem, nos olhos de Eli. O laço

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amarelo acentuava seu rostoenvelhecido. Ela sacudiu a cabeça,lacônica.

— Não, sirva-se.Eli não se mexeu. A imagem da

tv mudou para uma vistapanorâmica no sul da Geórgia, commúsica. Na cozinha, o miado dogato se transformou numa espéciede… súplica. O cheiro na sala eraquímico. A mulher suava exalandoum cheiro de hospital.

— Alguém vem? Para cá?De novo, a mulher levou um

susto como se tivesse sido acordada,

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e se virou para Eli. Dessa vez, noentanto, parecia irritada; uma ruganítida no meio das sobrancelhas.

— Não. Não vem ninguém. Podecomer, se quiser. — Ela apontoucom um dedo rijo para os queijos,um a um: — Camembert,gorgonzola, roquefort. Coma.Coma.

A mulher lançou um olharexortativo para Eli, que apanhou umbiscoito, enfiou-o na boca emastigou devagar. A dona da casabalançou a cabeça e voltounovamente os olhos para a tela. Eli

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cuspiu a massa gosmenta dobiscoito na palma da mão e jogoutudo no chão, atrás do braço do sofá.

— Quando é que você vaiembora? — perguntou a mulher.

— Logo.— Pode ficar o tempo que quiser.

Não me incomodo.Eli chegou mais perto dela, como

se fosse para enxergar melhor a tv,até que os braços se roçaram.Alguma coisa aconteceu com amulher. Ela estremeceu e relaxou,afundando-se como umaembalagem de café cheia de ar que

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furou. Ao olhar de novo para Eli,tinha um olhar suave e sonhador.

— Quem é você?Os olhos de Eli estavam apenas a

alguns centímetros dos dela. A bocada mulher exalou um cheiro dehospital.

— Não sei.A mulher balançou a cabeça,

esticou-se para pegar o controleremoto em cima da mesa e tirou osom da tv.

“No verão o sul da Geórgiafloresce com uma beleza árida …”

Agora se ouvia claramente a

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súplica do gato, mas a mulher nãopareceu se importar com isso. Elaapontou para o colo de Eli. —Posso…?

— Pode, sim.Eli sentou-se um pouco mais

afastado da mulher, que dobrou aspernas em cima do sofá e pousou acabeça no colo do visitante. Elialisou devagar os cabelos dela.Ficaram assim por um tempo.Dorsos reluzentes de baleiassurgiram na superfície do mar,espirraram um chafariz de água edesapareceram.

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— Conte-me alguma coisa —pediu a mulher.

— Que coisa?— Alguma coisa bonita.Eli ajeitou uma mecha do cabelo

da mulher atrás da sua orelha. Elarespirava tranquilamente e seucorpo estava totalmente relaxado.Eli falou baixinho.

“Era uma vez… muito tempoatrás. Um lavrador pobre e suaesposa. O casal tinha três filhos. Ummenino e uma menina que tinhamidade suficiente para trabalhar comos adultos. E um menininho, de

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apenas onze anos. Todo mundo quevia esse menino dizia que era acriança mais bonita que jáencontrara.

“O pai era um servo da gleba etinha que cumprir muitas corveiasnas terras do senhor feudal. Porisso, com frequência a mãe e ascrianças é que cuidavam da casa edo jardim. O menino mais novo nãoservia para muita coisa.

“Um dia, o senhor feudalanunciou uma competição em quetodas as famílias das suaspropriedades eram obrigadas a

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participar. Todas que tinham ummenino entre oito e doze anos deidade. Não foram prometidosnenhuma recompensa nem prêmios.Ainda assim, aquilo foi chamado decompetição.

“No dia da competição, a mãelevou o filho mais novo para ocastelo do senhor feudal. Eles nãoeram os únicos. Outras sete criançasacompanhadas de um ou de ambosos pais já se encontravam reunidasno jardim do castelo. E vieram maistrês. Famílias pobres, crianças comas melhores roupas que tinham.

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“Esperaram o dia inteiro nojardim do castelo. Quando estavaanoitecendo, veio um homem dedentro do castelo e disse que ‘elespodiam entrar’.”

Eli ouviu a respiração da mulher,profunda e lenta. Ela dormia. Seuhálito quente no joelho de Eli. Logoabaixo da orelha da mulher, Elipôde ver o pulso batendo sob a peleflácida e enrugada.

O gato se calara.Na tv, apareciam agora os

créditos do programa sobre animais.Eli pressionou o indicador na

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jugular dela, sentindo o tique-taquedo coração de pássaro na ponta dodedo.

Eli se encostou no sofá e moveucom cuidado a cabeça da mulherpara a frente, de modo que elaficasse em cima dos seus joelhos. Ocheiro forte de queijo roquefortenfraquecia todos os outros. Elipegou um cobertor das costas dosofá, estendeu-se para a frente ecobriu os queijos.

Um assobio fraco; a respiração damulher. Eli se debruçou sobre ela,estava com o nariz bem perto da

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jugular da mulher. Sabonete, suor,cheiro de pele velha… aquele cheirode hospital… e mais alguma coisa,que era o próprio cheiro da mulher.E ali embaixo, perpassando tudoisso: o sangue.

A mulher gemeu na hora em queo nariz de Eli roçou seu pescoço,começou a virar a cabeça, mas Elipassou um dos braços em volta dopeito e dos braços da mulher e asegurou com firmeza. Com o outrobraço, Eli segurou-lhe a cabeça.Abriu a boca ao máximo, desceu-ano pescoço da mulher até a língua

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tocar a jugular e mordeu. Trincou omaxilar.

A mulher estremeceu como setivesse recebido um choque. Seucorpo se abriu todo e os péssocaram o braço do sofá com umaforça tal que o corpo da mulher foiarremessado, e Eli ficou sentadocom as costas dela no colo.

Golfadas de sangue jorravam daartéria aberta e borrifavam o sofá decouro marrom. A mulher gritava eagitava as mãos; arrancou ocobertor da mesa. Um cheiro dequeijo azul entrou pelas narinas de

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Eli quando ele se jogou de corpointeiro em cima da mulher e colou aboca em seu pescoço, sorvendogoles profundos. O grito da mulherera ensurdecedor e Eli teve de soltarum dos braços para poder tapar comuma das mãos a boca da mulher.

O grito foi abafado, mas a mãolivre da mulher se debatia por cimada mesinha de centro, acaboupegando o controle remoto e bateucom ele na cabeça de Eli. O plásticoespatifou-se, ao mesmo tempo que osom da tv foi ligado de novo.

A música de abertura do seriado

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Dallas invadiu a sala e Eli afastou acabeça do pescoço da mulher.

O sangue tinha gosto de remédio.Morfina.

A mulher olhou para Eli comolhos arregalados. Agora ele sentiumais um gosto. Um gosto podre quese fundiu com o cheiro de queijocom fungo.

Câncer. A mulher tinha câncer.Seu estômago se revirou de nojo

e Eli se viu obrigado a largar amulher e sentar-se no sofá para nãovomitar.

A câmera sobrevoava Southfork

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enquanto a música se acelerava. Amulher não gritava mais, apenasficou deitada de costas, imóvel,enquanto o sangue jorrava em jatoscada vez mais fracos, os filetesescorriam por detrás das almofadasdo sofá. Os olhos dela estavamúmidos, ausentes, quando elaprocurou os de Eli e disse: — Porfavor… por favor…

Eli conteve o impulso de vomitare se debruçou sobre a mulher.

— Como?— Por favor…— Tudo bem. O que você quer eu

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faça?— … por… favor… por favor…Depois de um tempo, os olhos da

mulher mudaram: ficarampetrificados. Não enxergavam maisnada. Eli fechou suas pálpebras. Osolhos se abriram de novo. Eliapanhou o cobertor do chão, cobriuo rosto da mulher e sentou-se decostas eretas no sofá.

O sangue servia como alimentoapesar do sabor ruim, mas amorfina…

Na tela da tv, um arranha-céuespelhado. Um homem de terno e

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chapéu de caubói saiu de um carro,ia para o arranha-céu. Eli tentou selevantar do sofá. Não dava. Oarranha-céu começou a tombar, a seretorcer. Os espelhos refletiam asnuvens que deslizavamvagarosamente no céu, assumindoformas de animais e de plantas.

Eli deu uma risada quando umhomem de chapéu de caubói sentou-se atrás de uma escrivaninha ecomeçou a falar em inglês. Elientendeu o que ele disse, mas nãofazia sentido. Olhou ao redor. A salainteira tinha começado a se inclinar

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e era estranho que a tv não saísse dolugar. A fala do caubói ecoava nacabeça. Eli olhou ao redor à procurado controle remoto, mas haviapedaços dele espalhados pela mesae pelo chão.

Preciso fazer o caubói calar aboca .

Eli deslizou para o chão, foi dequatro para a frente da tv com amorfina em disparada pelo corpo,ria das figuras que se dissolviamvirando apenas cores e mais cores.Não aguentou. Desmoronou eacabou deitado de barriga em frente

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à tv com a explosão de cores nosolhos.

Algumas crianças ainda andavam

de trenó na ladeira entre aBjörnsonsgatan e o gramadopequeno perto do caminho doparque. A ladeira da morte erachamada assim por algum motivo.Três vultos desciam ao mesmotempo em alta velocidade e saiu umpalavrão em voz alta na hora emque um deles recebeu uma cortadade outro trenó e foi parar no bosque.

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Risos dos outros que continuaramladeira abaixo, voaram numcalombo do terreno e aterrissaramcom baques abafados.

Lacke parou e olhou para o chão.Virginia tentou puxá-lo com jeito.

— Vamos lá, Lacke.— Está difícil demais.— Olhe só, eu não aguento te

carregar.Um bufo que provavelmente era

um riso se tranformou numa tosse.Lacke soltou os ombros dela, ficouem pé de braços caídos e virou acabeça na direção da ladeira.

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— Pô, ali as crianças andam detrenó de plástico e ali… — Ele fezum gesto vago na direção dapassagem subterrânea no final domorro que incluía a ladeira — … aliJocke foi assassinado…

— Pare de pensar nisso agora.— Como é que eu posso parar?

Vai ver que foi uma dessas criançasque fez isso.

— Não acredito.Ela pegou o braço dele para

passá-lo em volta do seu pescoço denovo, mas Lacke afastou-o. — Não,eu posso andar.

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Lacke percorreu a duras penas ocaminho do parque. A neve estalavasob seus pés. Virginia ficou paradaolhando para Lacke. Lá estava ele, ohomem que ela amava e com quemnão podia viver.

Ela tinha tentado.Durante um período, oito anos

atrás, quando a filha de Virginia semudara, Lacke tinha ido morar comela. Virginia trabalhava naquelaépoca, assim como agora, nosupermercado ica no Arvid MörnesVäg, em cima do Chinaparken.Morava sozinha num apartamento

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de quarto e sala no Arvid Mörnes, aapenas três minutos do trabalho.

Nos quatro meses em que os doismoraram juntos, Virginia nuncaconseguiu entender direito com oque Lacke trabalhava na verdade.Ele entendia um pouco deeletricidade, até montou um dimmerna luminária da sala. Entendia umpouco de culinária; surpreendeuVirginia algumas vezes comjantares fantásticos preparados compeixe. Mas qual era o trabalho dele?

Ele ficava no apartamento,passeava, conversava com as

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pessoas, lia um monte de livros erevistas. E era só isso. ParaVirginia, que trabalhava desde queterminou a escola, esse era umestilo de vida absurdo. Ela tinhaperguntado: — Olhe, Lacke, eu nãoestou querendo… mas com o quevocê trabalha , afinal de contas? Deonde você tira seu dinheiro?

— Eu não tenho dinheiro.— Algum dinheiro você tem, sim.— Isso aqui é a Suécia. Ponha

uma cadeira na calçada. Sente-senela e fique esperando. Se vocêesperar o bastante, então acaba

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vindo alguém que te dá dinheiro. Ouque cuida de você de algumamaneira.

— Você também acha que eu souassim?

— Virginia. Quando você disser:“Lacke, vá embora daqui”, então euvou embora daqui.

Levou um mês para que eladissesse isso. Na ocasião, ele enfiouas roupas numa bolsa e os livros emoutra. E foi. Depois ela ficou semvê-lo durante seis meses. Foi nesseperíodo que começou a beber mais,sozinha.

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Quando reviu Lacke, ele estavamudado. Mais triste. Duranteaqueles seis meses ele tinha moradocom o pai, que definhou doente decâncer numa casa em algum cantode Småland. Quando o pai morreu,Lacke e sua irmã herdaram a casa,venderam a propriedade e dividiramentre si o dinheiro. A parte de Lacketinha sido suficiente para comprarum apartamento de condomíniobaixo em Blackeberg e ele voltoupara ficar.

Nos anos seguintes, eles se viamcada vez mais no restaurante chinês,

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que Virginia começou a frequentarnoite sim, noite não. Às vezes elesiam juntos para casa, faziam amortranquilamente e, cumprindo umacordo tácito, Lacke desapareciaantes de Virginia chegar em casa dotrabalho no outro dia. Orelacionamento deles com casasseparadas era baseado no princípioda livre e espontânea vontade — àsvezes se passavam dois, três mesessem que os dois dividissem amesma cama, e esse arranjo, dojeito que estava agora, era excelentepara ambos.

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Eles passaram pelo ica, queexibia cartazes com anúncios decarne moída barata e “Coma, beba eseja feliz”. Lacke parou e esperoupor Virginia. Quando ela oalcançou, ele lhe ofereceu um dosbraços. Virginia aceitou. Lackeacenou com a cabeça na direção domercado.

— E o trabalho?— O mesmo de sempre —

Virginia parou e apontou. — Esseaí, fui eu que fiz.

Um cartaz onde estava escritomolho de tomate. três latas: 5

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coroas.— Bonito.— Você acha?— Acho. A gente fica com uma

baita vontade de comer molho detomate.

Ela lhe deu um cutucão de lado,com cuidado. Sentiu a costela deleem seu cotovelo. — Você ainda selembra do gosto de comida?

— Você não precisa…— Não, mas vou fazer mesmo

assim.

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— Eeeeli… Eeeeliii…A voz da tv era familiar. Eli

tentou sair da frente do aparelho,mas o corpo não lhe obedecia.Apenas as mãos deslizaram bemrápido pelo chão, procurandoalguma coisa em que se apoiar.Achou um fio. Segurou-o com forçacomo se ele fosse uma corda salva-vidas para sair do túnel em cujofinal havia a tv que falava com Eli.

— Eli… onde você está?Sua cabeça estava pesada demais

para ser erguida do chão; a únicacoisa que Eli conseguiu fazer foi

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levantar os olhos para a tela e éclaro que era… Ele.

Em cima dos ombros do casacode seda estavam caídas as mechasda peruca loura de cabelo humanoque faziam o rosto feminino parecermenor ainda do que já era. Os lábiosfinos estavam apertados, esticadosnum sorriso de batom, brilhantescomo um corte à faca no rostopálido de pó de arroz.

Eli conseguiu levantar um poucoa cabeça e viu Seu rosto todo. Olhosazuis, grandes de um modo infantile, acima dos olhos… rajadas de ar

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saíam do pulmão de Eli, sua cabeçacaiu frouxamente no chão, fazendoestalar o osso nasal. Que engraçado.Na cabeça, Ele tinha um chapéu decaubói.

— Eeeliii…Outras vozes. Vozes de criança.

Eli levantou a cabeça de novo,tremendo como um recém-nascido.Pingos do sangue doente escorreramdo seu nariz, desceram para a boca.O homem abrira os braços numgesto acolhedor, o forro vermelhodo seu sobretudo ficou à mostra. Oforro tremulava, pululava, era feito

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de lábios. Centenas de lábios decrianças que se retorciam emcaretas, contavam sussurrando suahistória, a história de Eli.

— Eli… venha para casa…Eli soluçou e fechou os olhos.

Pousou a mão fria no pescoço. Nãoaconteceu nada. Abriu os olhos denovo. A imagem tinha mudado. Elamostrava agora uma fileiracomprida de crianças em paísespobres caminhando numa paisagemde neve, elas iam com um andar depato para um castelo de gelo lá nohorizonte.

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Isso não está acontecendo .Eli cuspiu o sangue da boca, na

direção da tv. Manchas vermelhassalpicaram a neve branca,escorreram pelo castelo de gelo.

Isso não existe .Eli deu um puxão na corda salva-

vidas, tentou sair do túnel. Fez-seum clique quando a tomada foiarrancada do interruptor e a tv seapagou. Tiras viscosas de salivamisturadas com sangue escorriampela tela escura, pingavam no chão.Eli deixou a cabeça descansando emcima das mãos, desapareceu num

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redemoinho vermelho-escuro.

Virginia fez um guisado rápido

de carne, cebola e molho de tomateenquanto Lacke tomava banho. Umbanho demorado. Quando a comidaficou pronta, ela foi procurá-lo nobanheiro. Lacke estava sentado nabanheira de cabeça caída, o bocal dochuveiro de mão encostado de leveem seu pescoço. As vértebras eramuma fileira de bolas de pingue-pongue sob sua pele.

— Lacke? A comida está pronta.

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— Ótimo. Faz muito tempo queestou aqui?

— Não muito. Mas eles acabaramde ligar da Companhia de Água edisseram que o lençol freático estáacabando.

— O quê?— Venha. — Ela tirou o próprio

roupão do gancho e lhe entregou.Ele se levantou usando ambas asmãos para se apoiar na borda dabanheira. Virginia levou um sustoao ver seu corpo macilento. Lackenotou e disse: — E ele saiu dobanho, parecendo um deus, bonito

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de se contemplar.Depois eles comeram e

compartilharam uma garrafa devinho. Lacke não comeu muito, maspelo menos comeu. Beberam maisuma garrafa na sala e depois forampara a cama. Ficaram deitados porum tempo um ao lado do outro,olhando-se nos olhos.

— Eu não tomo mais pílula.— Sei. A gente não precisa…— Mas eu não preciso mais

delas. Minha menstruação acabou.Lacke balançou a cabeça.

Refletiu. Acariciou o rosto dela.

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— Você está triste?Virginia sorriu.— Você deve ser o único homem

que eu conheço que teria a ideia defazer uma pergunta dessas. Estou,um pouco… É como se… bem,aquilo que me faz mulher. Como seaquilo não existisse mais.

— Ahã. Para mim está de bomtamanho, em todo caso.

— Verdade?— É.— Então venha.E ele foi.

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Gunnar Holmberg arrastava os

pés na neve para não deixarnenhuma marca de sapato que fossedificultar o trabalho dos peritos.Ficou olhando para as marcas queconduziam para longe da casa. A luzda fogueira deixava a neve com umbrilho amarelo avermelhado e ocalor era intenso o suficiente paraformar gotas de suor em seu courocabeludo.

Holmberg já recebera muitasfarpas devido à sua crença, talvezingênua, na bondade essencial dos

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jovens. Era essa bondade que eletentava fomentar através das suasandanças entusiásticas pelasescolas, através das muitas e longasconversas com jovens que tinhamido para o mau caminho, e era essacrença que fazia Holmberg se sentirtão mal com o que via diante dospés.

As marcas na neve eram desapatos pequenos. Não eram nemsequer do que se podia chamar deum “jovem”, não, eram marcas desapato de criança. Pegadaspequenas, graciosas, com uma

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passada bem grande. Alguém tinhacorrido. E rápido.

De soslaio, ele viu o aspiranteLarsson se aproximando.

— Arraste os pés, cacete!— Ah, desculpe.Larsson caminhava lentamente na

neve, e parou junto de Holmberg. Oaspirante tinha olhos grandes,salientes, com uma expressãoconstante de surpresa, olhos queagora se voltavam para as marcas naneve.

— Caramba…— Eu mesmo não poderia ter me

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expressado melhor. É uma criança.— É… mas são… — Larsson

seguiu as pegadas com os olhos —passadas do tamanho de três passos.

— É, a distância é bem longaentre as pisadas.

— Mais do que longa, ela é…absurda. É muito longa.

— Como assim?— Sou corredor. Eu não

conseguiria correr desse jeito. Maisdo que… dois passos de uma vez. Eé assim no trajeto todo.

Staffan veio correndo do meiodas casas, atravessou com

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dificuldade o grupo de curiosos quese reuniu em volta do terreno e foipara o grupo do centro que estavaagora mesmo supervisionandoalguns enfermeiros quetransportavam um cadáver demulher, coberto por um pano azul,para dentro de uma ambulância.

— E aí? — perguntou Holmberg.— Bem… eu andei pelo…

Bällstavägen e depois… não deumais para… seguir as pegadas… oscarros… precisamos usar… oscachorros.

Holmberg assentiu; estava

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prestando atenção numa conversabem ao lado dele. Um vizinho quetinha sido testemunha de uma partedo episódio relatava suasimpressões para um detetive dapolícia.

— Primeiro achei que fossemfogos de artifício ou algo do gênero.Depois vi as mãos… vi que erammãos se agitando. E ela se jogou poraqui… pela janela… ela saiu…

— Então a janela estava aberta?— Sim, estava. E ela saiu pela

janela… e foi então que a casapegou fogo. Eu vi naquela hora. Que

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a casa estava pegando fogo atrásdela… e ela saiu… meu Deus…Estava em chamas, ela todinha. Eentão foi caminhando para longe dacasa…

— Desculpe. Caminhando? Elanão correu?

— Não. Foi justamente isso quefoi tão… ela foi caminhando.Agitando as mãos assim como sefosse… sei lá. E então ela parou.Entende? Ela parou . Com o corpoem chamas, o corpo todo. Parouassim. E olhou em volta . Como se…na maior calma. E então começou a

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andar de novo. E nesse instante foicomo se… tivesse acabado,entende? Nada de pânico oupiripaque, ela… bem, caramba…ela não gritou . Nem sequer um pio.Apenas… desmoronou sem maisnem menos. Ficou de joelhos. Eentão… bum. Caiu na neve. E entãofoi como se… sei lá… a coisa todafoi tão estranha. Nesse instante eufiquei… nesse instante corri paradentro de casa para pegar umcobertor, dois cobertores e saíagachado e… apaguei o fogo.Caramba… quando ela estava ali

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deitada foi… bem… foi…caramba…

O homem cobriu o rosto com asmãos sujas de fuligem, chorava desoluçar. O detetive pousou a mão noombro dele.

— Nós podemos tomar umdepoimento mais formal da suaparte amanhã. Mas então você nãoviu ninguém mais sair da casa?

O homem sacudiu a cabeça e odetetive fez uma anotação no bloco.

— Como eu disse, entro emcontato amanhã. Quer que eu peça aum enfermeiro para lhe dar um

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calmante, algo para você dormir,antes de eles irem?

O homem limpou as lágrimas dosolhos. As mãos deixaram riscos defuligem em sua face.

— Não. É… eu tenho, se for ocaso.

Gunnar Holmberg voltou os olhospara a casa queimada. Os esforçosdo corpo de bombeiros tinham dadoresultados e mal se viam as chamas.Apenas uma nuvem enorme defumaça subindo em direção ao céunoturno.

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Enquanto Virginia abria os braços

para Lacke, enquanto os peritoscriminais tiravam o molde daspegadas na neve, Oskar estava najanela olhando lá fora. A neveestendeu um cobertor por cima dosarbustos embaixo da janela,formando uma rampa branca tãodensa e tão compacta que erapossível escorregar nela.

Eli não aparecera hoje.Oskar tinha esperado em pé,

caminhado, andado de lá para cá,sentado no balanço, sentido frio lá

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embaixo no parquinho entre sete emeia e nove horas. E nada de Eli.Por volta das nove, ele tinha visto amãe olhando na janela e entrou,cheio de maus pressentimentos.Dallas , chocolate quente, bolinhose a mãe intrigada e quase que elerevelara, mas não foi dessa vez.

Agora já passava de meia-noite eele estava na janela com um buracono estômago. Oskar abriu um poucoa janela e aspirou o ar frio da noite.Será que era mesmo só por causadela que ele decidiu lutar? Será quenão era por ele mesmo?

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Era.Mas por causa dela .Infelizmente. Era assim. Se

fossem para cima dele na segunda-feira, Oskar não teria forças, energianem vontade de lutar. Sabia disso.Não iria àquele treino na quinta.Não havia motivo.

Oskar deixou a janela entreabertacom a vaga esperança de que Elifosse voltar de madrugada. Chamarpor ele. Se ela podia sair demadrugada, então podia voltar demadrugada.

Oskar tirou a roupa e foi se

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deitar. Deu umas batidas na parede.Nenhuma resposta. Puxou ocobertor, cobriu a cabeça e ficou dejoelhos na cama. Trançou as mãos,pressionou a testa nelas e sussurrou:— Meu bom Deus, eu imploro.Traga Eli de volta. Eu dou o que oSenhor quiser. Todas as minhasrevistas, todos os meus livros, todasas minhas coisas. O que o Senhorquiser. Mas traga Eli de volta. Paramim. Eu imploro, Deus.

Oskar continuou assim, encolhidodebaixo do cobertor, até ficar tãoquente que começou a suar. Depois

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pôs a cabeça para fora do cobertor ea descansou no travesseiro. Ficouem posição fetal. Fechou os olhos.Imagens de Eli, de Jonny e Micke,de Tomas. Mãe. Pai. Por um bomtempo ficou deitado, evocandoimagens que gostaria de ter, depoiselas começaram a ter vida própriaenquanto ele ia caindo no sono.

Eli e Oskar sentados num balanço

que balançava cada vez mais alto.Cada vez mais alto até que obalanço se soltava das correntes e

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voava em direção ao céu. Elesseguravam firmemente nas bordasdo balanço, o joelho de umencostado no joelho do outro, e Elisussurrou: — Oskar. Oskar…

Ele abriu os olhos. A lumináriade globo terrestre estava apagada ea luz da lua deixava tudo com a corazul. Gene Simmons olhava para eleda parede em frente à cama,esticava sua língua grande. Ele seencolheu todo na cama, cerrou osolhos. Então ouviu o sussurro denovo.

— Oskar…

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Vinha da janela. Ele abriu osolhos e olhou para lá. Do outro ladoda janela, viu o contorno de umacabecinha. Oskar arrancou ocobertor de cima dele mas, antes deconseguir sair da cama, Elisussurrou: — Espere. Continuedeitado. Posso entrar?

Oskar sussurrou: — Pode…— Diga que eu posso entrar.— Você pode entrar.— Feche os olhos.Oskar apertou os olhos. A janela

foi levantada e um ar frio entrou noquarto. A janela foi fechada com

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cuidado. Ele ouviu a respiração deEli e sussurrou: — Posso olhar?

— Espere.O sofá-cama no outro cômodo

rangeu. A mãe se levantou. Oskarainda estava de olhos fechadosquando levantaram o edredom e umcorpo frio e nu foi para trás dele,puxou o edredom para cobrir os doise se aconchegou nas costas dele.

A porta do quarto foi aberta.— Oskar?— Hmm.— É você quem está falando?— Não.

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A mãe continuou em pé na porta,de ouvido aguçado. Eli não se mexiaatrás dele, pressionava a testa naomoplata de Oskar. Seu hálitodescia quente pela espinha dogaroto.

A mãe sacudiu a cabeça.— Devem ser aqueles vizinhos.

— Ela ficou tentando ouvir algumacoisa por mais um tempo e disse emseguida: — Durma bem, coração. —E fechou a porta.

Oskar ficou sozinho com Eli.Atrás das costas dele, Oskar ouviuum sussurro.

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— Aqueles vizinhos?— Shhh.O sofá-cama rangeu na hora em

que a mãe foi se deitar de novo. Eleolhou para a janela. Estava fechada.

A mão fria subiu pela cintura delee foi para o peito, em cima docoração de Oskar. O menino pôs asmãos em cima da mão dela e aaqueceu. A outra mão da garota seremexeu debaixo da axila dele,subiu para seu peito e ficou no meiodas mãos de Oskar. Eli virou acabeça e encostou a bochecha nascostas dele.

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Um cheiro novo tinha penetradono quarto. Um cheirinho dabicicleta motorizada do pai recém-abastecida. De gasolina. Oskarcurvou a cabeça e cheirou as mãosda garota. É. Era das mãos dela quevinha o cheiro.

Durante muito tempo, elesficaram assim. Quando Oskar ouviua respiração pesada da mãe nocômodo ao lado, quando o bolo demãos estava bem aquecido e elecomeçou a ficar suado no peito,sussurrou: — Por onde você andou?

— Em busca de comida.

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Os lábios de Eli faziam cócegasnos ombros de Oskar. Ela tirou asmãos das mãos dele e se virou nacama. O garoto ficou na mesmaposição por um instante olhando nosolhos de Gene Simmons. Depois sedeitou de barriga para baixo. Atrásda cabeça dela, ele imaginou comoas figurinhas do papel de paredeespiavam curiosas a menina. Osolhos dela estavam bem abertos,preto-azulados à luz da lua. Ummonte de bolinhas apareceu nosbraços arrepiados de Oskar.

— E seu pai?

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— Sumiu.— Sumiu ? — Oskar levantou a

voz sem querer.— Shhh. Não tem importância.— Mas… como assim… ele…— Não tem. Importância.Oskar assentiu para o sinal de que

não devia fazer mais perguntas e Elipôs as mãos embaixo da cabeça,olhou para o teto.

— Eu me senti sozinha. Entãovim para cá. Você se incomoda?

— Não. Mas… você está semroupa.

— Desculpe. Você tem nojo?

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— Não. Mas você não está comfrio?

— Não.As mechas brancas em seu cabelo

tinham desaparecido. É, ela tinhaum aspecto mais saudável do que nanoite anterior, quando eles haviamse encontrado. Suas bochechasestavam mais redondas, apareceramas covinhas quando Oskarperguntou de brincadeira: — Vocênão passou no Quiosque dosNamorados desse jeito, não é?

Eli riu, fez depois uma cara muitoséria e disse com uma voz

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fantasmagórica: — Passei. E sabe oque aconteceu? Ele pôs a cabeçapara fora e disse: “Veeenha…veeenha… eu tenho doooces e…banaaanas…”.

Oskar afundou o rosto notravesseiro. Eli se virou para ele esussurrou em seu ouvido: —Veeenha… baaalas… puuuuxa-puuuuxa.

Oskar exclamou: “Não, não!”, ese afundou no travesseiro. Elescontinuaram assim por um tempo.Depois Eli olhou para os livros naestante e Oskar falou

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resumidamente sobre seu favorito:A névoa , de James Herbert. Ascostas de Eli eram de um brancoreluzente, pareciam uma folhagrande de papel no escuro ali ondeela estava de barriga para baixoexaminando a estante.

Ele pôs a mão tão perto da pelede Eli que pôde sentir o calor queemanava da garota. Em seguidadobrou um pouco os dedos, pousou-os em cima das costas dela esussurrou: — Bulleribulleribode.Quantos chifres estão… levantados?

— Hmm. Oito.

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— Você disse oito e eram oitomesmo, bulleribulleribode.

Depois Eli fez nele, mas Oskarnão era tão bom quanto ela emsentir os dedos. No entanto, sempreganhava na brincadeira “pedra,tesoura ou papel”. Sete a três. Maisuma rodada. Dessa vez ele ganhoude nove a um. Eli ficou um poucoirritada.

— Você sabe o que eu vouescolher?

— Sei.— Mas como?— Eu sei e pronto. É sempre

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assim. Aparece uma imagem naminha cabeça.

— Mais uma vez. Agora eu nãovou pensar. Só fazer.

— Tente.Eles brincaram de novo. Oskar

ganhou de oito a dois. Eli fingiuficar zangada e se virou para aparede.

— Não brinco mais com você.Você está roubando.

Oskar olhou para as costasbrancas da menina. Será que eletinha coragem? Tinha; agora que elaestava olhando para ele, dava.

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— Eli, quer ficar comigo?Ela se virou e puxou o cobertor

até o queixo.— O que significa isso?Oskar fixou os olhos nas

lombadas dos livros à sua frente eencolheu os ombros.

— … se você quer ficar comigo.— Como assim “ficar com

você”?A voz dela tinha um tom

desconfiado, duro. Oskar seapressou em dizer: — Vai ver quevocê já tem um namorado na escola.

— Não, mas… Oskar, eu não

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posso… Não sou uma menina.Oskar bufou. — Como assim?

Então você é um garoto ?— Não, não.— E o que você é?— Nada.— Como assim “nada”?— Eu não sou nada. Nem criança.

Nem velho. Nem menino. Nemmenina. Nada.

Oskar passou o indicador nalombada de Os ratos , apertou osolhos e sacudiu a cabeça. — Vocêquer ficar comigo ou não?

— Oskar, eu gostaria, mas… será

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que não dá para ficarmos juntosassim do jeito que a gente está?

— … dá.— Você ficou triste? A gente

pode dar um beijinho, se vocêquiser.

— Não!— Você não quer?— Não, não quero.Eli franziu as sobrancelhas.— A gente faz alguma coisa

especial com a pessoa que fica coma gente?

— Não.— Então tudo fica… do jeito de

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sempre?— É.O rosto de Eli se iluminou, ela

cruzou as mãos em cima da barrigae olhou para Oskar.

— Então você pode ficar comigo.A gente fica.

— Posso?— Pode.— Então está bem.Com uma alegria serena na

barriga, Oskar continuou estudandoa lombada dos livros. Eli ficoudeitada sem se mexer. Depois de umtempo, ela disse: — É só isso?

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— Só.— Não dá para a gente ficar

deitado do mesmo jeito que antes?Oskar se virou na cama e ficou de

costas para ela. Eli passou os braçosem volta dele e Oskar segurou-lheas mãos. Permaneceram assim atéque Oskar começou a ficar comsono. Sua vista ficou embaçada, eradifícil manter as pálpebras abertas.Antes de cair no sono, ele disse: —Eli?

— Hein?— Foi bom você ter vindo.— O.k.

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— Por que… você está comcheiro de gasolina?

As mãos de Eli pressionaramainda mais as mãos dele, em cimado seu coração. Mãos queapertavam. O quarto ficou maior aoredor de Oskar, as paredes e o tetoficaram macios, o chão desapareceue, ao sentir a cama toda pairando noar, ele entendeu que estavadormindo.

Sábado, 31 de outubro

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Cada velado céu já se

apagou E o dia,triunfante, seprepara Para

pisar nos cumesdas montanhas.

Ou vou e vivo,ou fico aqui e

morro.William

Shakespeare,Romeu e Julieta, Ato iii, Cena v

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Cinza. Tudo era de um cinza

felpudo. O olhar não queria se fixarem nada, era como se ele estivessedeitado dentro de uma nuvem dechuva. Deitado? Sim, ele estavadeitado. A pressão nas costas, notraseiro, nos calcanhares. Algumacoisa chiava à sua esquerda. O gás.O gás estava ligado. Não. Agoraestava desligado. Ligado de novo.Alguma coisa acontecia com o peitodele ao compasso do chiado. Ficavacheio e vazio ao compasso dobarulho.

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Será que ainda estava na piscinamunicipal? O gás estava acoplado aele ? Nesse caso, como é que estavaacordado? Será que estavaacordado?

Håkan tentou piscar. Nãoaconteceu nada. Quase nada.Alguma coisa foi repuxada na frentede um dos olhos, escureceu-lheainda mais a vista. O outro olho nãoexistia. Tentou abrir a boca. A bocanão existia. Evocou a imagem daboca que tinha, da forma como elaaparecia nos espelhos, na mentedele, tentou… mas a boca não

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existia. Nada que respondesse aoseu comando. Era como tentartransferir a consciência a uma pedrapara fazê-la se mover. Nenhumcontato.

Uma sensação de calor intenso norosto todo. Uma flecha de terroracertou-lhe o estômago. A cabeçaestava envolta em alguma coisamorna, que endurecia. Estearina.Um aparelho cuidava da suarespiração, já que o rosto estavacoberto de estearina.

O pensamento se esticou àprocura da mão direita. É. Aqui está

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ela. Ele abriu a mão, fechou-a,sentiu a ponta dos dedos na palmada mão. Tato. Suspirou aliviado;imaginou um suspiro de alívio, poiso peito se movia ao compasso damáquina, não segundo sua vontade.

Levantou a mão, lentamente. Apele repuxava no peito, no ombro. Amão entrou em seu campo de visão,um bolo felpudo. Levou a mão aorosto, parou. Um pip discreto à suadireita. Virou devagar a cabeça paraaquele lado e sentiu algo duroesfolando embaixo do queixo. Pôs amão na coisa.

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Uma cápsula de metal. Presa emsua garganta. Da cápsula saía umtubo. Seguiu o tubo até onde dava,até uma parte metálica e acaneladaonde o tubo acabava. Entendeu tudo.Era isso que devia ser puxado se elequisesse morrer. Tinham-lheprovidenciado isso. Descansou osdedos na base do tubo.

Eli . A piscina municipal . Omenino . O ácido .

A lembrança acabava com a horaem que Håkan destampou o vidro degeleia. Deve ter derramado o ácidonele. Conforme o plano. O único

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erro de cálculo era que ele aindaestava vivo. Tinha visto fotos.Mulheres que receberam o ácido norosto, jogado por homensciumentos. Não queria tocar o rosto,muito menos vê-lo.

A mão segurou mais forte o tubo.Ele não cedia. Estava parafusado.Experimentou girar a parte de metale, como previu, ela girou.Continuou a desparafusar. Procuroua outra mão, sentiu apenas uma bolade fisgadas de dor no lugar em que amão devia estar. Na ponta dos dedosda mão com vida, ele sentia agora

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uma pressão suave, tremulante. O arcomeçou a sair da base do tubo, ochiado mudou, ficou mais baixo.

A luz cinza ao seu redor semisturou com um vermelho pisca-pisca. Ele tentou fechar o únicoolho. Pensou em Sócrates e nocálice de veneno. Por ter seduzido ajuventude de Atenas. Não seesqueça de sacrificar mais um galoa… como era mesmo o nome dele?Arquimandros? Não…

Um som de vácuo quando a portafoi aberta e um vulto branco seaproximou. Sentiu dedos que

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abriam à força seus dedos,arrancavam-nos da base do tubo.Uma voz de mulher.

— Mas o que você está fazendo?Esculápio . Sacrifiquem um galo

a Esculápio .— Solte!Um galo . Para Esculápio . O

deus da cura .Um chiado na hora em que seus

dedos se soltaram e o tubo foiparafusado de novo no lugar.

— Vamos ter que pôr alguémpara vigiá-lo.

Sacrifiquem um galo a ele e não

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se esqueçam disso .

Quando Oskar acordou, Eli já

tinha ido. Ficou deitado com a caravirada para a parede, o ar friobatendo em suas costas. Levantou-se apoiado no cotovelo e olhou aoredor no quarto. A janela estavaentreaberta. Ela deve ter saído porali.

Nua .Ele rolou de lá para cá na cama,

pressionou o rosto no lugar onde elatinha dormido, fungou. Nada.

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Passou o nariz de cima a baixo nolençol, tentou encontrar um sinalpor menor que fosse da presençadela, mas nada. Nem sequer aquelecheiro de gasolina.

Será mesmo que tinhaacontecido? Oskar se deitou debarriga para baixo, sentiu.

Tinha .Lá estavam eles. Os dedos em

suas costas. A lembrança dos dedosda garota em cima das costas dele.Bulleribode. A mãe brincava dissocom Oskar quando ele era pequeno.Mas isso foi agora. Há pouco. Os

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pelos em seus braços e no pescoçoficaram arrepiados.

Oskar saiu da cama e começou ase vestir. Depois de ter enfiado ascalças, foi para a janela. Não estavanevando. Quatro graus abaixo dezero. Bom. Se a neve já tivessecomeçado a derreter seria umalamaceira daquelas quando ele fossedeixar as sacolas com os anúnciosdo lado de fora dos prédios.Imaginou sair por uma janela nu auma temperatura de quatro grausnegativos, descer no meio dosarbustos cobertos de neve, descer

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no…Não .Ele se inclinou para a frente e

piscou.A neve em cima dos arbustos

estava intocada.Na noite anterior ele estivera

olhando para aquela rampa feita deneve que descia para o caminho. Elaestava agora exatamente do mesmojeito que antes. Oskar abriu mais ajanela e pôs a cabeça para fora. Osarbustos se estendiam até a paredeali embaixo da janela, a camada deneve também. A neve estava inteira.

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Oskar olhou à direita, para aparede áspera do prédio. A trêsmetros dali estava a janela dela.

Um vento frio alisou o peito nude Oskar. Deve ter nevado demadrugada, depois que ela foiembora. Era a única explicação.Aliás… agora que estava pensandonisso: como ela tinha subido até ajanela? Será que subiu nos arbustos?

Mas nesse caso a camada de nevenão poderia estar desse jeito, certo?Não estava nevando na hora em queele foi se deitar. O corpo e oscabelos de Eli não estavam úmidos

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quando ela chegou, ou seja, nãoestava nevando naquela hora.Quando é que ela foi embora?

Da hora em que ela chegou atéagora deve ter nevado o suficientepara cobrir todos as marcas de …

Oskar fechou a janela e continuouse vestindo. Não dava para entender.Começou de novo a achar que tudoaquilo tinha sido um sonho. Emseguida, viu o bilhete. Dobradodebaixo do relógio na escrivaninha.Apanhou o papel e o abriu.

então, janela, que o dia entre noquarto e a vida fuja.

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Um coração, e depois: até hoje ànoite. eli.

Oskar leu o bilhete cinco vezes.Depois pensou nela, aqui naescrivaninha escrevendo o bilhete.A cara de Gene Simmons estava naparede a meio metro dele, com alíngua de fora.

Ele se inclinou sobre aescrivaninha e tirou o pôster daparede, amassou-o e o jogou nalixeira.

Em seguida, leu o bilhetinho maistrês vezes, dobrou o papel e o enfiouno bolso. Continuou a se vestir.

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Hoje podiam ser cinco folhas emcada lote de anúncio, se fosse ocaso. Ele ia tirar de letra.

A sala cheirava a cigarro,

partículas de poeira dançavam nosraios de sol que penetravam pelovão das persianas. Lacke acabou deacordar, estava deitado de costas nacama, tossindo. Os grãos de poeirarodopiavam dançando diante dosseus olhos. Tosse de cigarro. Ele sevirou na cama, apanhou o isqueiro eo pacote de cigarros no criado-

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mudo, perto de um cinzeiro cheio.Pegou um cigarro — Camel light,

Virginia começou a cuidar da saúdeagora que a idade chegava — ,acendeu, deitou-se de costas denovo com um dos braços embaixoda cabeça, ficou fumando epensando.

Já fazia algumas horas queVirginia tinha ido trabalhar,provavelmente bem cansada.Ficaram acordados por um bomtempo depois que se amaram,conversando e fumando. Já erampor volta das duas quando Virginia

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apagou o último cigarro e disse queera hora de dormir. Lacke tinha selevantado na ponta dos pés, bebidoo restante do vinho e fumado maisalguns cigarros antes de ir se deitar.Talvez mais porque ele gostassedisso, de se aconchegar num corpoquente que dormia.

Era uma pena que ele nãoconseguisse ter alguém o tempotodo em sua cola. Se fosse para teralguém, esse alguém teria sidoVirginia. Além do mais… caramba,ele ouviu da boca de terceiros comoela estava agora. Eram fases. Fases

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em que ela se embebedava de cairnos bares do centro da cidade elevava qualquer um para casa. Elanão queria falar sobre isso, masenvelheceu mais que o necessárionos últimos anos.

E se ele e Virginia fossem… o.k.,fossem o quê? Vender tudo,comprar uma casa no campo,plantar batatas. É, mas não dariacerto. Depois de um mês, nãoaguentariam mais olhar um para acara do outro e, além de tudo, a mãee o trabalho dela estavam aqui e eletinha… bem… os selos.

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Ninguém sabia disso, nemmesmo sua irmã, e a consciênciadele ficava bem pesada por causadisso.

A coleção de selos do pai, quenão foi incluída na herança, acaboumostrando valer uma pequenafortuna. Ele vendia a coleção,alguns selos de cada vez, quandoprecisava de dinheiro vivo.

Nesse momento o mercado estavaem crise e não restavam muitosselos. Em breve ele seria obrigado avendê-los mesmo assim. Talvezaqueles especiais, o número um da

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Noruega, e pagar para o pessoaltoda a cerveja que ganhou delesultimamente. Devia fazer isso.

Duas casas no campo . Uma pertoda outra . Uma casa dessas nãocustava quase nada . E uma para amãe da Virginia . Três casas . E afilha dela , Lena . Quatro . Claro .Aproveite o embalo e compre logoum povoado inteiro .

Virginia só ficava feliz quandoestava com Lacke, ela mesmadissera isso. Lacke não sabia seainda era capaz de ser feliz, masVirginia era a única pessoa com

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quem ele realmente gostava deficar. E por que eles não poderiamficar juntos, de algum jeito?

Lacke pôs o cinzeiro em cima dabarriga, limpou as cinzas do cigarroe deu uma pitada.

A única pessoa com quem elegostava de ficar hoje em dia .Depois que Jocke… sumiu. Jockeera bom. O único que ele chamavade amigo daqueles com quem sedava. Era uma merda isso de ocorpo de Jocke estar desaparecido.Não era natural. A gente espera umenterro. Espera um cadáver que

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possa olhar e constatar: é, meuamigo, aí está você. E você estámorto agora.

Lágrimas transbordaram dosolhos de Lacke.

As pessoas tinham uma porradade amigos, usavam essa palavratoda hora. Ele teve um , um único, ejustamente esse amigo foi tiradodele por algum moleque vadio semcoração. Por que é que esse molequetinha matado Jocke?

Lá no fundo, sabia que Gösta nãotinha mentido nem inventado tudoaquilo, e Jocke estava desaparecido,

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mas tudo era tão absurdo. O únicomotivo plausível era alguma coisacom drogas. Jocke devia ter seenvolvido com drogas e enganado apessoa errada. Mas por que ele nãodisse nada?

Antes de deixar o apartamento,Lacke esvaziou o cinzeiro edepositou a garrafa vazia embaixodo armário da cozinha. Precisouvirá-la de cabeça para baixo para terlugar no meio das outras.

É, pô … Duas casas no campo .Umas batatas no jardim . Terra nosjoelhos e o canto da cotovia na

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primavera . E assim por diante .Algum dia .

Ele vestiu o casaco e saiu. Aopassar pelo supermercado ica, jogouum beijo para Virginia, que estavasentada no caixa. Ela sorriu e lhemostrou a língua.

No caminho de casa para aIbsengatan, ele encontrou ummenino que vinha arrastando duassacolas grandes de papel. Alguémque morava no conjunto, mas Lackenão sabia o nome dele. Acenou coma cabeça para o menino.

— Isso aí parece pesado.

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— Dá para carregar.Lacke seguiu com os olhos o

menino, que continuou carregandoas sacolas na direção dos prédios. Ogaroto parecia muito contentemesmo assim. É assim que a gentedeveria ser. Aceitar nosso fardo ecarregá-lo, com alegria.

É assim que a gente deveria ser .Lá dentro do pátio ele esperava

cruzar com o cara que lhe ofereceraos uísques no restaurante. O sujeitocostumava fazer sua caminhada aessa hora. Andava em círculos nopátio de vez em quando. Mas já

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fazia uns dias que ele não aparecia.Lacke espiou a janela coberta doapartamento lá em cima onde eleachava que o homem morava.

Deve estar lá dentro enchendo acara, é lógico . Eu podia subir ebater na porta dele .

Fica para outro dia.

Quando estava anoitecendo,

Tommy e a mãe foram para ocemitério. A sepultura do pai estavabem perto da canaleta para o lagoRåcksta, então eles pegaram o

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caminho que ia por dentro dobosque. A mãe andou calada atéchegarem ao Kanaanvägen, eTommy achou que era porque elaestava triste mas, quando elesentraram na trilhazinha que ia pelamargem do lago, a mãe pigarreou edisse: — Tommy…?

— Fale.— Staffan disse que sumiu um

objeto. Na casa dele. Depois que agente se encontrou lá.

— O.k.— Você sabe de alguma coisa?Tommy encheu de neve uma das

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mãos em forma de concha, fez umabola e jogou numa árvore. Acertouem cheio.

— Sei. Está lá embaixo da sacadadele.

— Esse objeto é bem importantepara Staffan, já que…

— Eu já disse que está nas moitasembaixo da sacada dele.

— Como é que foi parar lá?A canaleta coberta de neve ao

redor do cemitério estava na frentedeles. Uma luz de um vermelhosuave iluminava de baixo para cimao topo dos pinheiros. A lanterna

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para sepultura que a mãe seguravatilintava. Tommy perguntou: —Você trouxe fogo?

— Fogo? Sim, trouxe. Tenho umisqueiro. Como ele foi parar…

— Deixei cair.Do lado de dentro do portão do

cemitério, Tommy ficou paradoolhando para o mapa; seçõesdiferentes marcadas com letras. Opai estava na seção D.

Na verdade isso era totalmenteabsurdo, isso tudo. O fato de a gentefazer assim. Incinerar as pessoas,guardar as cinzas, enterrar tudo e

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depois chamar o lugar de “sepultura104, seção D”.

Em breve faria três anos. Tommytinha uma vaga lembrança doenterro, se é que se podia chamaraquilo de enterro. Aquilo com ocaixão e um monte de gentechorando e cantandoalternadamente.

Ele lembrava que calçava sapatosgrandes demais, eram os sapatos dopai, que ficaram dançando em seuspés quando voltou para casa. Queteve medo do caixão, ficou olhandopara ele durante o enterro todo, com

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a certeza de que o pai ia se levantare ficar vivo de novo, mas…mudado.

Durante duas semanas depois doenterro, viveu com um medoconstante de zumbis.

Especialmente quando anoitecia,Tommy achava que via nas sombrasaquele ser mirrado do leito dehospital, que não era mais seu pai,vindo em sua direção com os braçosabertos, do jeito que aparece nosfilmes.

O pavor terminou depois que aurna foi sepultada. Estiveram

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presentes só ele e a mãe, um zeladordo cemitério e um padre. O zeladorcarregou a urna à frente e caminhoucom passos solenes enquanto opadre consolava a mãe. Aquilo tudoera tão ridículo. Aquela caixinha demadeira com tampa que um cara demacacão azul carregava à frente; ofato de que isso tivesse algumacoisa a ver com o pai dele. Eracomo se fosse uma grande farsa.

Mas o pavor desapareceu e arelação de Tommy com a sepulturado pai mudou com o tempo. Agoraacontecia de ele vir para cá sozinho,

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ficava sentado um instante junto dalápide e passava os dedos nas letrasentalhadas que formavam o nomedo pai. Era por causa disso que elevinha. Com a caixa lá embaixo daterra ele não se importava, mas como nome .

O ser humano desfigurado noleito de hospital, as cinzas na caixa,nada disso era o pai, mas o nomeera a pessoa que ele lembrava e, porisso, ficava às vezes passando odedo nas cavidades na pedra queformavam martin samuelsson.

— Ah, que bonito! — disse a

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mãe.Tommy olhou para o cemitério.Havia velas e lanternas acesas por

toda parte; uma cidade vista do altode um avião. Apenas alguns vultosescuros se mexiam entre as lápides.A mãe foi na direção do túmulo dopai com a lanterna balançando namão. Tommy olhou suas costasdelgadas e ficou triste de repente.Não por ele mesmo ou por causa damãe, não; por tudo. Por todas aspessoas que estavam andando aquiem meio às chamas bruxuleantes naneve. Apenas vultos que estavam

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junto de pedras, que olhavam parapedras, tocavam em pedras. Umacoisa tão… idiota.

Morte é morte. E pronto.Ainda assim, Tommy foi para

perto da mãe e se agachou junto aotúmulo do pai enquanto ela acendiaa vela na lanterna. Não queria tocarnas letras com a mãe ali do lado.

Ficaram assim por um tempo,olhando a chama fraca que fazia asnuanças do mármore se arrastarem ese mexerem. Tommy não sentianada exceto um certo embaraço. Porse dispor a fazer parte dessa

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encenação. Não passou muito tempoe ele se levantou e começou a irpara casa.

A mãe foi atrás. Um pouco rápidodemais, achou ele. Ela tinha quechorar até os olhos caírem, ficar alia noite inteira. Ela alcançou Tommye enfiou com cuidado o braçoembaixo do dele. Tommy deixou. Osdois caminharam lado a ladoolhando para o lago Råcksta quecomeçava a ficar congelado. Se ofrio continuasse, daria para andarde patins no lago daqui a algunsdias.

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Um pensamento martelava nacabeça de Tommy o tempo inteiro,parecendo um acorde de violão.

Morte é morte . Morte é morte .Morte é morte .

A mãe teve um calafrio, foi paramais perto do filho.

— É horrível.— Você acha?— É, Staffan contou uma coisa

horrível.Staffan. Será que nem agora ela

podia parar de falar…— Sei.— Você ouviu falar naquela casa

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que pegou fogo em Ängby? Amulher que…

— Ouvi.— Staffan contou que fizeram

uma autópsia nela. É tão horrível.Precisarem fazer isso.

— É. É mesmo.Um pato andava na camada frágil

de gelo para o buraco que se formouperto dos dejetos numa das bordasdo lago. Os peixinhos que erampescados do lago no verão tinhamcheiro de esgoto.

— Que tipo de esgoto é esse? —perguntou Tommy. — É do

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crematório?— Sei lá. Você não quer saber?

Acha que vai dar medo?— Não, pode falar.E então ela contou, enquanto

voltavam para casa por dentro dobosque. Depois de um tempo,Tommy ficou interessado ecomeçou a fazer perguntas que amãe não podia responder: ela sósabia o que Staffan tinha dito. Bem,Tommy fez tantas perguntas, ficoutão interessado, que sua mãe searrependeu de ter contado a história.

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Mais tarde à noite, Tommy estava

sentado numa caixa dentro doabrigo antiaéreo, virando de umlado para outro a pequena esculturade um atirador. Depositou a peçaem cima das três caixas de papelãocom aparelhos de fita cassete, comoum troféu. O arremate da obra.

Surrupiado de um … tira!Trancou meticulosamente o

abrigo antiaéreo com corrente ecadeado, pôs a chave noesconderijo, sentou-se e ficoupensando no que a mãe contou.

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Depois de um tempo, ouviu passosdiscretos que se aproximavam dodepósito do porão. Uma voz quesussurrou: “Tommy…?”.

Ele se levantou da poltrona, foiaté a porta e a abriu. Oskar estavaali fora e parecia nervoso, tinha umacédula na mão.

— Aqui. Seu dinheiro.Tommy pegou a nota de

cinquenta e a enfiou amarrotada nobolso. Sorriu para Oskar.

— Vai vir aqui sempre? Entre.— Não, eu preciso…— Estou dizendo para entrar.

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Preciso perguntar uma coisa.Oskar sentou-se no sofá com as

mãos cruzadas. Tommy desabou napoltrona e olhou para ele.

— Oskar. Você é um garotointeligente.

Oskar encolheu os ombros,modesto.

— Você já deve ter ouvido falarno incêndio numa casa em Ängby.A mulher que saiu no jardim emorreu queimada.

— É, eu li sobre isso.— Foi o que eu pensei. Eles

escreveram alguma coisa sobre

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autópsia?— Não que eu saiba.— Isso. Mas eles fizeram, em

todo caso. Uma autópsia nela. Esabe de uma coisa? Não acharamnada de fumaça no pulmão. Vocêsabe o que isso significa?

Oskar pensou.— Que ela não estava respirando.— Isso. E quando é que a gente

para de respirar? Quando a gentemorre, certo?

— É. — Oskar se entusiasmou.— Eu já li sobre isso. Justamentesobre isso. É por isso que se faz a

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autópsia quando alguém morre numincêndio. Para ver se não… se nãofoi uma pessoa que causou oincêndio para esconder que essamesma pessoa matou aquela queestava lá dentro. No incêndio. Euli… bem, foi no Hemmets Journal ,sobre um cara na Inglaterra queassassinou a esposa, então ele…antes de pôr fogo na casa, meteu umtubo na garganta dela e…

— O.k., tudo bem. Você sabe.Ótimo. Mas nesse caso não haviafumaça no pulmão e mesmo assim avelha foi para o terreno da casa e

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ficou correndo lá de um lado para ooutro antes de morrer. Como issofoi possível?

— Ela deve ter prendido arespiração. Não, espere aí. Não dápara fazer isso, eu também já lisobre isso em algum lugar. É porisso que as pessoas sempre…

— O.k., tudo bem. Então meexplique isso.

Oskar pôs as mãos na cabeça,pensava. Disse em seguida: — Oueles cometeram algum erro napolícia ou ela ficou correndo lá foraapesar de já estar morta.

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Tommy assentiu. — Exato. Esabe de uma coisa? Eu não acho queesses caras cometem um erro dessetipo. Você acha?

— Não, mas…— Morte é morte.— É.Tommy arrancou um fio solto da

poltrona, enrolou a linha nos dedosformando uma bola e deu umpeteleco nela.

— É. Pelo menos a gente queracreditar nisso.

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TERCEIRA PARTE

Neve, derretendo na pele

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Pela mãome travando

diligente , Comledo gesto ecoração me

erguia , E aosmistérios guiou-me incontinenti .

DanteAlighieri, A

divina comédia– Inferno –

Canto iii—Não sou

nenhum lençol .

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Sou umfantasma de

verdade. bu…buu…

Você tem queficar com medo!— Mas eu, não .

Nationalteatern(grupo sueco de

rock),“Kåldomar och

kalsipper”

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Quinta-Feira, 5 de Novembro

Quinta-feira, 5 de novembro

Morgan sentia frio nos pés. Ofrio, que tinha vindo ao mesmotempo que o submarino afundou,ficou ainda pior na semana quepassou. Ele amava suas velhas botasde caubói, mas era impossível usá-las com meias grossas de lã. Alémdisso, uma das solas estavaesburacada. É claro que Morganpodia comprar um bagulho desses

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feito na China por cem contos, massentiria mais frio.

Eram nove e meia da manhã e elesaíra do metrô e estava indo paracasa. Tinha ido ao ferro-velho emUlvsunda para ver se estavamprecisando de uma maçaneta quedevia valer uns duzentos, trezentoscontos, mas o negócio andava mal.Nada de botas de inverno nesse anode novo. Fez um lanche com aturma lá no escritório apinhado decatálogos de peças de reposição e decalendários de mulher pelada, edepois pegou o metrô para casa.

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Larry saiu do conjunto e, comosempre, estava com aquela cara dequem tinha os dias contados.

— Olá, meu velho! — exclamouMorgan.

Larry balançou a cabeça sementusiasmo, como se já soubessedesde que abriu os olhos de manhãque Morgan estaria ali, e foi até ele.

— Oi. Como estamos?— Pés congelados, o carro no

ferro-velho, nenhum trabalho e emcasa me espera um prato de sopainstantânea. E você?

Larry continuou caminhando na

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direção da Björnsonsgatan, pelocaminho do parque.

— Tudo certo. Estou indo visitarHerbert no hospital. Quer meacompanhar?

— A cabeça dele clareou umpouco?

— Não, acho que está do mesmojeito que antes.

— Então não vou. Fico muitodeprimido com essa lenga-lengatoda. Da última vez, Herbert achouque eu fosse a mãe dele, queria queeu lhe contasse uma história deninar.

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— E você contou?— Claro que contei. Cachinhos

dourados e os três ursinhos. Aresposta é não. Hoje não estou comcabeça para isso.

Continuaram andando. QuandoMorgan viu que Larry vestia luvasquentes, deu-se conta de que sentiafrio nas mãos e enfiou-as com certadificuldade nos bolsos da calçajeans apertada. Na frente deles,ficou visível a passagemsubterrânea onde Jockedesaparecera.

Talvez para não falar no assunto ,

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Larry disse: — Você leu no jornalhoje de manhã? Agora Fälldin dizque os russos têm armas nucleares abordo daquele submarino.

— E o que ele achava que elestinham? Estilingues?

— Não, mas é que… já faz umasemana que o submarino está lá.Imagine se tivesse explodido.

— Não se preocupe. Eles sabem oque fazem, os russos.

— Bem, eu não sou comunista,mas…

— Eu tampouco.— É. Em quem você votou na

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última eleição? No Folkpartiet?— Pelo menos não é fiel a

Moscou.Eles já haviam tido essa

discussão antes. Agora remexiam noassunto para deixar de ver, deixar depensar naquilo ao se aproximar dapassagem subterrânea. Ainda assim,as vozes dos dois se calaram aoentrar na passagem, e eles pararamde andar. Ambos acharam que foi ooutro que parou primeiro. Olharampara os montes de folhas que agoratinham virado montes de neve e quesugeriam formas que deixaram os

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dois se sentindo mal. Larry sacudiua cabeça.

— O que a gente pode fazer?Morgan enfiou ainda mais as

mãos nos bolsos e batia com os pésno chão para aquecê-los.

— É só Gösta que pode fazeralgo.

Ambos olharam na direção doapartamento onde Gösta morava.Nenhuma cortina, janelas sujas.

Larry mostrou um maço decigarros a Morgan. Ele apanhou ume Larry outro, acendeu para os dois.Ficaram fumando em silêncio,

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olhando para os montes de neve.Depois de um tempo, suas reflexõesforam interrompidas por vozesjovens.

Um grupo de crianças com patinsde gelo e capacetes nas mãos vinhada escola, liderado por um homemcom jeito de militar. As criançasandavam com mais ou menos ummetro de distância entre elas, quaseno mesmo ritmo. O grupo cruzoucom Morgan e Larry na passagem.Morgan acenou com a cabeça paraum garoto que ele conhecia do pátiodo prédio.

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— Estão indo para a guerra?A criança sacudiu a cabeça, ia

dizer alguma coisa mas continuoutrotando, com medo de sair da fila.Continuaram descendo para o ladodo hospital; devia ser dia derecreação ao ar livre hoje. Morganpisou na guimba do cigarro, fez umfunil com as mãos na boca eexclamou: — Ataque aéreo!Protejam-se!

Larry soltou um riso seco eapagou o cigarro.

— Santo Deus. Como é que aindaexistem tipos como esse? Deve

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exigir que os casacos fiquem emposição de sentido no corredor.Você vem ou não?

— Não. Não tenho estrutura. Masaperte o passo, quem sabe vocêconsegue acompanhar a fila.

— Até logo.— Tchau.Despediram-se na passagem.

Larry desapareceu a passos lentosna mesma direção que as criançastinham tomado e Morgan subiu asescadas. Agora ele estava com friono corpo todo. Até que a sopainstantânea não era tão ruim assim,

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se a gente misturasse leite nela.

Oskar ia ao lado da professora.

Precisava falar com alguém e aprofessora foi a única pessoa dequem ele se lembrou. Ainda assim,teria mudado de grupo, se pudesse.Jonny e Micke nunca costumavamir a esses passeios em grupo quandoera dia de recreação ao ar livre, mashoje eles foram. Tinhamresmungado alguma coisa de manhãe olhado para ele.

Então Oskar ia com a professora.

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Ele mesmo não sabia se era para terproteção ou se era para poder falarcom um adulto.

Agora fazia cinco dias que Eli erasua namorada. Encontravam-se todanoite, fora de casa. Para a mãe,Oskar dizia que estava com Johan.

Na noite anterior Eli viera pelajanela de novo. Os dois ficaramdeitados sem dormir por um bomtempo, contando histórias em queum continuava o trecho que o outroacabara. Depois dormiramabraçados e de manhã Eli já tinhaido embora.

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No bolso das calças, ao lado dobilhete gasto de tanto manuseio,havia agora um outro que ele tinhaachado na escrivaninha de manhãquando estava se aprontando para aescola.

“ou parto e vivo, ou morrereificando. da sua eli.”

Ele sabia que era de Romeu eJulieta . Eli contara que o que elatinha escrito no primeiro bilhetetambém era de lá e Oskar pegara olivro emprestado na biblioteca daescola. Tinha gostado bastante dahistória, embora houvesse um

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bocado de palavras que ele nãoentendia. Sua túnica de vestal verdee doente . Será que Eli entendiatodas essas palavras?

Jonny, Micke e as meninasandavam uns vinte metros atrás deOskar e da professora. Passarampelo parque China, onde algumascrianças bem pequenas andavam decarrossel no gelo e gritavam tantoque o ar se cortava em mil pedaços.Oskar chutou um bolo de neve edisse em voz baixa: — Marie-Louise?

— Sim?

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— Como é que a gente sabe queama alguém?

— Hã, bem…A professora enfiou as mãos nos

bolsos do casaco de campanha eolhou para o céu lá no alto. Oskarqueria saber se ela estava pensandonaquele homem que vinha buscá-lana escola algumas vezes. Oskar nãotinha gostado da cara dele. O sujeitoparecia ser um tipo sagaz.

— Cada um sente de uma forma,mas… eu diria que é quando a gentesabe… ou em todo caso quando agente acredita mesmo que vai

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querer ficar para sempre com aquelapessoa.

— Que a gente não pode ficarsem ela.

— Isso mesmo. São duas pessoase uma não pode viver sem a outra…isso deve ser amor.

— Como em Romeu e Julieta .— É, e quanto maiores os

empecilhos… você viu o filme?— Li o livro.A professora olhou para ele e deu

um sorriso que Oskar sempreadorou mas do qual não gostoumuito nesse exato instante.

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Acrescentou rapidamente: — E seforem dois garotos?

— Nesse caso são amigos. E issotambém é uma forma de amor. Ouse você está falando de… bem,garotos também podem se amardesse jeito .

— E como é que eles fazem?A professora abaixou a voz.— Bem, não há nada de errado

com isso, mas… se você quiserfalar mais sobre esse assunto entãoa gente pode conversar numa outraocasião.

Eles caminharam alguns metros

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em silêncio e chegaram a umaladeira que descia para a enseadaKvarn. A ladeira Fantasma. Aprofessora aspirou profundamente oar, o cheiro da floresta nua de abeto.Em seguida ela disse: — A gentefaz um pacto. Independentementede ser com meninas ou meninos, agente faz um pacto de que… é vocêe eu. A gente sabe disso.

Oskar assentiu. Ouviu as vozesdas meninas chegando mais perto.Não demoraria muito e elas iam seapossar da professora, como era decostume. Ele se aproximou da

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professora de um jeito que oscasacos dos dois se roçaram e disse:— A gente pode ser… menina emenino ao mesmo tempo? Ou nemmenina nem menino?

— Não. Seres humanos, não. Háalguns animais que…

Michele correu para eles e gritoucom uma voz estridente:“Professora! Jonny jogou neve nomeu pescoço!”.

Eles tinham descido metade daladeira de neve. Logo depois, todasas meninas estavam ali explicando oque Jonny e Micke tinham feito.

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Oskar diminuiu a velocidade,ficando alguns passos atrás. Virou-se. Jonny e Micke estavam no topoda ladeira. Os dois acenaram paraOskar. Ele não acenou de volta. Emvez disso, apanhou um galhorobusto ao lado do caminho e tirouos gravetos do galho enquantoandava.

Passou pela casa fantasma quedeu o nome à ladeira. Um depósitoenorme com paredes de chapaondulada que pareciam umdisparate ali onde estavam no meiodas árvores pequenas. Na parede

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que dava para a ladeira alguémtinha pichado com letras grandes:vai dar sua motoneta?

As meninas e a professorabrincavam de pique, corriam pelocaminho às margens do lago. Oskarnão ia correr para alcançá-las. Jonnye Micke estavam atrás dele, issomesmo. O menino apertou commais força a vara na mão econtinuou andando.

Fazia um dia bonito. A águacongelara havia alguns dias e o geloestava tão espesso que o grupo depatinadores tinha descido para andar

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nele, sob a liderança do professorÁvila. Quando Jonny e Mickedisseram que queriam participar dogrupo da caminhada, Oskar pensouem correr para casa para apanhar ospatins e mudar de grupo. Mas faziadois anos que não comprava patinsnovos, provavelmente nãoconseguiria enfiar os pés neles.

Além do mais, ele tinha medo degelo.

Uma vez, quando era pequeno,estava na casa do pai em Södersvike ele tinha saído para esvaziar asarmadilhas de peixes. Do píer,

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Oskar viu como o pai se afundou nogelo e, durante um instanteassustador, sua cabeça desapareceuembaixo da borda do gelo. Oskarestava sozinho no píer e começou aberrar pedindo ajuda. Felizmente opai tinha uns pregos compridos nobolso que usou para sair do buraco,mas, desde essa ocasião, Oskar nãogostava de andar no gelo.

Alguém agarrou seu braço.Ele virou rapidamente a cabeça;

viu que a professora e as meninastinham desaparecido numa curva docaminho, atrás do monte. Jonny

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disse: — Agora o porco vai tomarbanho.

Oskar segurou ainda mais a vara,que ficou trancada em suas mãos.Era sua única chance. Eles lhederam um empurrão e começaram aarrastá-lo. Para o gelo lá embaixo.

— O porco está fedendo e precisatomar banho.

— Me larga.— Depois. É só você ficar

calminho. Que eu largo você.Eles estavam lá embaixo no gelo.

Não havia nada em que se apoiar.Puxavam Oskar pelas costas no lago

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congelado, em direção ao buraco nogelo perto da sauna. Os calcanharesde Oskar desenhavam uma trilhadupla na neve. No meio deles, avara ia se arrastando, fazendo umatrilha mais suave. Lá longe no gelo,ele viu dois vultos pequenos semexendo. Gritou. Gritou pedindosocorro.

— Continue gritando. Quem sabeeles consigam tirar você de lá.

O buraco se escancarava, negro, aalguns metros. Oskar contraiu osmúsculos que tinha na panturrilha ejogou-se, virou o corpo para o lado

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com um puxão. Micke teve de soltá-lo. Oskar bamboleava nos braços deJonny e brandiu a vara na caneladele; a vara quase pulou da mão deOskar na hora que a madeira bateuno osso.

— Ai, porra!Jonny largou Oskar, que caiu em

cima do gelo. Levantou-se perto docanto do buraco, segurando a varacom as mãos. Jonny esfregou acanela.

— Imbecil. Agora você vai…Jonny foi lentamente para cima

dele, não tinha coragem de correr

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temendo que ele próprio acabassena água gelada se empurrasse Oskardaquele jeito. Apontou para a vara.

— Largue essa coisa, senão eu temato, você está me ouvindo?

Oskar trincou os dentes. QuandoJonny estava a pouco mais de ummetro dele, Oskar brandiu a vara nadireção do ombro do outro. Jonny seabaixou para se desviar do golpe eOskar sentiu um baque nas mãosquando a ponta pesada da vara bateubem no ouvido de Jonny. Ele vooupara o lado parecendo um pino deboliche e caiu pesadamente de

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corpo inteiro no gelo, aos berros.Micke, que estava alguns passos

atrás de Jonny, recuava agora.Levantou as mãos no alto.

— Porra, a gente só estavabrincando… não ia…

Oskar foi na direção dele ebrandiu a vara para a frente e paratrás no ar, produzindo um zumbidoabafado. Micke se virou e correupara a terra firme. Oskar parou eabaixou a vara.

Jonny estava deitado de lado,todo encolhido, tapando o ouvidocom a mão. O sangue lhe escorria

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por entre os dedos. Oskar queriapedir desculpas. A intenção nãotinha sido machucá-lo tanto . Ele seagachou ao lado de Jonny, apoiou-sena vara, ia dizer “desculpe”, mas,antes de ter tempo de falar, viuJonny.

Ele estava bem pequeno,encolhido em posição fetal,gemendo “aaaai”, “aaai” enquantoum filete de sangue descia pordentro da gola da jaqueta. Virava acabeça para lá e para cá emmovimentos pequenos.

Oskar olhou para ele admirado.

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Aquele projeto de genteensanguentado no gelo não farianada com ele. Não podia bater nemimplicar, não mesmo. Não podiasequer se defender.

Podia bater nele mais algumasvezes e depois tudo ia ficar namaior calma .

Oskar levantou e se apoiou nobastão. A euforia desapareceu, foisubstituída por um enjoo bem lá nofundo do estômago. Olhe o que eletinha feito ! Jonny devia estarbastante machucado para sangrarassim. E se ele morresse de

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hemorragia? Oskar sentou-se nogelo de novo, descalçou um dossapatos e tirou a meia grossa de lã.Arrastou-se de joelhos para junto deJonny, cutucou a mão que tapava oouvido e enfiou a meia embaixodela.

— Aqui. Pegue isso.Jonny segurou a meia de lã e

apertou-a contra o ouvidomachucado. Oskar olhou para longeno gelo. Viu alguém de patins quese aproximava. Um adulto.

Gritinhos vieram do outro lado.Gritos de criança. Gritos de pânico.

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Um único tom agudo e penetranteque depois de alguns segundos semisturou com vários. A pessoa quese aproximou parou. Ficou paradapor um instante. Depois se virou efoi patinando no gelo para o outrolado.

Oskar estava de joelhos ao ladode Jonny, sentiu a neve derretermolhando seus joelhos. Jonny tinhaos olhos bem fechados, gemia entredentes. Oskar aproximou o rosto dodele.

— Você consegue andar?Jonny abriu a boca para dizer

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alguma coisa e um vômito amareloe branco jorrou dos seus lábios,manchou a neve. Um pouco caiu namão de Oskar. Ele olhou para asgotas gosmentas que tremulavam nodorso da sua mão e ficou com medode verdade. Largou o bastão ecorreu para terra firme em busca deajuda.

Os gritos das crianças lá para olado do hospital tinham aumentadode volume. Oskar correu na direçãodeles.

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O professor Ávila, FernandoCristóbal de Reyes y Ávila, gostavade andar de patins no gelo. Émesmo. Uma das coisas de que elemais gostava da Suécia era osinvernos longos. Fazia dez anos queele participara da corrida Vasa deesqui e, um ano ou outro em que aparte exterior do arquipélago ficavacongelada, ele pegava o carro todofinal de semana e ia para Gräddöpara correr nos skates de gelo atéonde a camada de gelo deixava nadireção de Söderarm.

Fazia três anos que o arquipélago

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congelara da última vez, mas,quando o inverno chegava cedocomo nesse ano, havia uma chance.É claro que Gräddö estaria comosempre cheia de amantes dapatinação no gelo, mas isso era dedia. Fernando Ávila gostava depatinar à noite.

Com o devido respeito pelacorrida Vasa, mas a gente se sentiacomo uma formiga entre milhões deoutras num formigueiro que derepente resolveu emigrar. Era outracoisa estar na vasta paisagem degelo, sozinho, numa noite à luz da

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lua. Fernando Ávila era um católicobem morno, mas uma coisa eraverdade: nessas horas Deus estavaperto dele.

O arranhar cadenciado daslâminas dos patins, a luz da lua queconferia ao gelo um brilho cinzaprateado, as estrelas que o cobriamcom a abóbada da sua infinitude, ovento frio que alisava seu rosto: eraeternidade, profundidade eimensidão para todos os lados.Maior que isso a vida não podia ser.

Um menininho puxou a perna dascalças dele.

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— Professor, preciso fazer xixi.Ávila acordou dos seus sonhos de

patinação no gelo e olhou ao redor,apontando para umas árvores nabeira do lago cujos galhos seestendiam por cima da água; aramagem fria parecia uma cortinaprotetora descendo em direção aogelo.

— Você pode fazer ali.O menino apertou os olhos para a

árvore.— No gelo ?— É. O que é que tem? Vira gelo

fresco. Amarelo.

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O menino olhou para ele como seo professor estivesse maluco, massaiu em disparada para o lado daárvore.

Ávila olhou ao redor e verificouse alguns dos mais velhos nãotinham ido patinar muito longe.Com algumas cortadas rápidas nogelo, foi para um ângulo de ondepodia ter uma visão mais ampla.Contou as crianças. Isso mesmo.Nove. Mais aquele que estavafazendo xixi. Dez.

Rodopiou e olhou para o outrolado, na direção da enseada Kvarn.

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Parou.Alguma coisa acontecia lá longe.

Um ajuntamento de corpos ia nadireção de uma coisa que devia serum buraco no gelo, umasarvorezinhas marcavam o lugar.Enquanto estava parado olhando, ogrupo se dissolveu, e ele viu quealguém segurava uma espécie devara na mão.

A vara foi levantada e um delescaiu. Ele ouviu um berro vindodaquele lado. Ávila deu meia-volta,contou pela última vez o grupo e emseguida acelerou em direção ao

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grupo na beira do buraco. Um delescorria agora para terra firme.

Então ele ouviu o grito.Um grito estridente de criança

veio lá do seu grupo. Ele freoufazendo a neve esvoaçar ao redordos patins. Logo entendeu que osque estavam perto do buraco nogelo eram crianças mais velhas.Talvez Oskar. Crianças mais velhas.Elas sabiam se virar. O grupo deleera de crianças mais novas.

O grito ficou mais forte e,enquanto ele se virava para ir nadireção do grito, ouviu que mais

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gritos se juntaram àquele.Cojones!Justamente na hora que ele não

estava presente é que tinha queacontecer alguma coisa. Deus queiraque o gelo não tenha partido. Correuo mais rápido que pôde, a neve selevantou em volta dos seus patinsquando ele saiu em disparada para aorigem do grito. Também viu umadulto descendo para o lago, dohospital lá em cima.

Depois de apenas algumascortadas possantes no gelo, elechegou às crianças e freou, de modo

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que a serragem de gelo voou paracima dos seus casacos. Nãoentendeu. Todas as criançasestavam reunidas junto da cortinados galhos, olhando para algumacoisa no gelo e gritando.

Ele deslizou para junto dascrianças.

— O que houve?Uma das crianças apontou para o

gelo, para um bolo que estavagrudado nele. Parecia um tufo decapim marrom, congelado com umafenda vermelha num dos lados. Ouum porco-espinho atropelado. Ele se

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inclinou sobre o bolo e viu que erauma cabeça. Presa no gelo de formaque só aparecia o alto da cabeça e aparte de cima da testa.

O menino que ele tinha mandadofazer xixi estava sentado no gelo aalguns metros de distância,soluçando.

— E-eu pi-pi-sei ne-le.Ávila se endireitou.— Todos saiam daqui! Todos

para a beira do lago agora .Era como se as crianças também

estivessem grudadas no gelo, osmenores continuaram gritando. O

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professor apanhou o apito e apitoucom força duas vezes. Os gritosterminaram. Ele deu alguns passospara ficar atrás das crianças e poderconduzi-las para as margens dolago. As crianças o seguiram.Apenas um menino do quinto anoficou ali, abaixado perto do bolo nogelo, curioso.

— Você também!Ávila acenou, mandando o garoto

segui-lo. Na beira do lago, ele dissepara a mulher que desceu dohospital: — Telefone para a polícia.Uma ambulância. Una persona está

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congelada no hielo.A mulher subiu correndo de volta

para o hospital. Ávila contou ascrianças na beira do lago e viu queestava faltando uma. O menino queencontrou a cabeça ainda estavasentado no gelo com o rostoenterrado nas mãos. Ávila foideslizando para ele e levantou omenino por debaixo do braço. Ogaroto se virou e abraçou Ávila. Oprofessor levantou a criançasuavemente como se ela fosse umembrulho frágil e levou-a para abeira do lago.

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— Dá para falar com ele?— Falar, ele não pode…— Certo, mas entende o que a

gente diz.— Acho que sim, mas…— Vai ser bem rápido.Através da névoa que encobria

seu olho, Håkan viu que um homemde roupa escura arrastou umacadeira e sentou-se perto do seuleito. Ele não conseguia enxergardireito o rosto do visitante, mashavia uma expressão artificialmenteneutra nele.

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Nos últimos dias Håkan tinhaentrado e saído de uma nuvemvermelha transpassada por linhastão finas como fios de cabelo. Elesabia que havia sido anestesiadoalgumas vezes, operado. Este era oprimeiro dia em que ele estavarealmente consciente, mas não sabiaquantos dias já tinham se passadodesde que entrara ali.

Na parte da manhã, Håkaninvestigou o novo rosto com osdedos da mão que ainda tinhasensibilidade. Algum tipo decurativo feito de uma espécie de

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borracha cobria todo o seu rosto,mas, pelos contornos debaixo docurativo, que ele seguiudolorosamente com a ponta dosdedos, entendeu que não tinha maisrosto nenhum.

Håkan Bengtsson não existiamais. O que restava era um corponão identificável num leito dehospital. É claro que a políciapoderia associá-lo ao outroassassinato, mas não à sua vidapregressa nem atual. Nem a Eli.

— Como você se sente?Bem , obrigado , senhor oficial .

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Está tudo ótimo . Tenho umacamada de napalm queimando norosto o tempo todo mas , tirandoisso , a vida segue seu curso normal.

— Bem, eu sei que você não podefalar, mas pode mexer a cabeça seestiver me ouvindo? Você podemexer a cabeça?

Posso . Mas não quero .O homem ao lado do leito fez um

muxoxo.— Você já tentou se suicidar

aqui, então pelo visto não estátotalmente… num outro mundo. É

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difícil mexer a cabeça? Você podelevantar a mão caso esteja meouvindo? Você consegue levantar amão?

Håkan se desconectou do policiale começou a pensar no inferno deDante, no limbo, para onde todas asgrandes almas da terra que nãoconheciam Cristo iam depois damorte. Tentou imaginar esse lugardetalhadamente.

— Sabe, gostaríamos de saberquem você é.

Em que círculo ou esfera celestialo próprio Dante foi parar depois da

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morte …O policial arrastou a cadeira,

aproximando-se mais dezcentímetros dele.

— Você sabe que vamos acabardescobrindo isso. Mais cedo oumais tarde. Você pode economizarum pouco do nosso trabalho secomunicando conosco agora.

Ninguém sente falta de mim .Ninguém me conhece . Tente .

Uma enfermeira entrou no quarto.— Uma ligação para vocês.

O policial levantou-se e foi até aporta. Antes de sair, ele se virou.

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— Já volto.Os pensamentos de Håkan se

transportaram agora para o que erarealmente essencial. Em que círculoele iria parar? Assassino decrianças. Sétimo círculo. Por outrolado; no primeiro círculo. Daquelesque tinham pecado por amor.Depois os sodomitas tambémtinham um círculo que era deles. Omais provável era a gente acabar nocírculo que marcava o pior crimeque se cometera. Ou seja, uma vezque a gente tivesse cometido umcrime bem grave, depois podia

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pecar à vontade dentro dos crimesque eram punidos nos círculos queestavam mais acima. De qualquerjeito, não podia ficar pior. Era maisou menos como aqueles assassinosnos Estados Unidos condenados atrezentos anos de prisão.

Os diversos círculos giravam emforma de espiral. O funil do inferno.Cérbero com sua cauda. Håkanevocou os homens violentos, asmulheres amargas, os arrogantes nalama fervente, na chuva de fogo,passeou entre eles, procurando suaposição.

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D e uma coisa ele pelo menostinha certeza absoluta. Nuncaacabaria no círculo mais baixo.Naquele onde o próprio Lúcifercomia Judas e Brutus, em pé nummar de gelo. O círculo dostraidores.

A porta foi aberta de novo,fazendo aquele barulho estranho desucção. O policial sentou-se juntodo leito.

— Notícias. Parece queencontramos mais um, lá no lagoem Blackeberg. Em todo caso, era amesma corda.

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Não!O corpo de Håkan teve um

espasmo involuntário quando opolicial disse a palavra“Blackeberg”. O policial balançou acabeça. — Pelo jeito você pode meouvir. Isso é bom. Então a gentepode deduzir que você mora emVästerort. Onde exatamente? EmRåcksta? Em Vällingby?Blackeberg?

A imagem de como ele se livroudo homem lá embaixo do hospitalpassou voando pela cabeça deHåkan. Tinha sido descuidado.

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Estragara tudo.— O.k. Então vou deixar você em

paz por enquanto. Você poderesolver se quer colaborar conosco.Fica tudo muito mais fácil nessecaso, certo?

O policial se levantou e saiu. Nolugar dele veio uma enfermeira, quese sentou numa cadeira no quarto,vigiando o paciente.

Håkan começou a jogar a cabeçapara cá e para lá, negando. Sua mãose estendeu querendo arrancar otubo do respirador. A enfermeiracorreu para fazê-lo parar.

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— Vamos ter que amarrá-lo. Seisso se repetir mais uma vez, agente te amarra. Entendeu? Se vocênão quer mais viver, o problema éseu, mas, enquanto estiver aqui,nosso dever é mantê-lo vivo.Independentemente do que vocêtenha ou não tenha feito. Estamosentendidos? E vamos fazer o que fornecessário para cumprir com essedever, mesmo que tenhamos queamarrá-lo na cama. Está meouvindo? É melhor para todos sevocê colaborar.

Colaborar . Colaborar . De

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repente todos querem que eucolabore . Não sou mais um serhumano . Eu sou um projeto . Ah ,santo Deus . Eli , Eli . Ajude-me .

Das escadas, Oskar já ouviu a voz

da mãe. Ela falava ao telefone comalguém e estava zangada. Será queera a mãe de Jonny? Ficou atrás daporta ouvindo.

— Eles vão me ligar e perguntaro que eu fiz de errado … É claroque vão, e o que é que eu vou dizer?Que infelizmente meu filho não tem

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pai, então ele… mas então mostreisso alguma vez… não, você não…eu acho que você pode conversarcom ele sobre isso.

Oskar abriu a porta e entrou nocorredor. A mãe disse: “Ele acaboude chegar”, e se virou para Oskar.

— Ligaram da escola e eu… vocêprecisa falar com seu pai sobre isso,porque eu… — Ela falou notelefone de novo. — Agora você…eu estou calma … É fácil para vocêque só fica aí de longe…

Oskar entrou no quarto, deitou-sena cama e tapou os ouvidos com as

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mãos. Sentia as batidas do coraçãopulsando na cabeça.

Quando ele chegou ao hospital,de início achou que todas as pessoasque corriam de um lado para o outrotinham alguma coisa a ver com oque ele fez com Jonny. Mas não eraisso, como ficou claro depois. Hojeele tinha visto pela primeira vez navida uma pessoa morta.

A mãe abriu a porta do quartodele. Oskar tirou as mãos dosouvidos.

— Seu pai quer falar com você.Oskar pegou o telefone e ouviu

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uma voz distante que recitavamecanicamente nomes de faróis, aintensidade e a direção dos ventos.Esperou com o fone no ouvido semdizer nada. A mãe franziu intrigadaas sobrancelhas. Oskar tapou o fonee sussurrou: — Previsão do tempopara áreas marítimas.

A mãe abriu a boca para dizeralguma coisa, mas só vieram umsuspiro e mãos que caíram. Foi paraa cozinha. Oskar sentou-se nacadeira do corredor, ouvindo aprevisão do tempo com o pai.

O menino sabia que o pai ficaria

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disperso com aquilo que estavasendo dito no rádio se elecomeçasse a falar agora. A previsãodo tempo era algo sagrado. Nasvezes em que ele esteve na casa dopai, todas as atividades paravam às16h45 e o pai ficava sentado pertodo rádio olhando de um modoausente para a paisagem lá fora,como se estivesse verificando se eraverdade tudo aquilo que diziam norádio.

Já fazia muito tempo que o paitinha parado de trabalhar no mar,mas o costume ficou.

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Almagrundet noroeste oito , naparte da noite virando para oeste .Visibilidade boa . Mar de Åland emar de Skärgård nordeste dez , naparte da madrugada previsão devendaval . Visibilidade boa .

Pronto. O mais importante tinhaacabado.

— Oi, pai.— Ah, você está aí. Oi. Vamos

ter vendaval hoje de madrugada.— É, eu ouvi.— Ahã. Como estão as coisas?— Tudo certo.— Bem, sua mãe contou o que

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houve com esse tal de Jonny. Issonão é lá muito bom.

— Não. Não é mesmo.— Ela disse que ele teve uma

concussão cerebral.— É. Ele vomitou.— É, isso costuma acontecer

nesse caso. Harry… bem, você oconhece… uma tora caiu na cabeçadele uma vez e ele… bem, ficouestirado no chão vomitando quenem um bezerro.

— Ele ficou bom?— Claro que ficou, foi… bem, é

que ele morreu na primavera que

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passou. Mas não teve nada a vercom isso. Não mesmo. Ele serecuperou bem rápido depois.

— O.k.— E a gente espera que esse

menino também se recupere.— É.O rádio continuou fazendo o

relatório das regiões marítimas;Bottenviken e o restante da região.Algumas vezes ele se sentou comum atlas na casa do pai eacompanhou com o dedo no mapaos faróis na ordem em que erammencionados. Houve um tempo em

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que ele sabia todos os nomes de cor,na ordem em que apareciam, masesqueceu. O pai deu uma tossidinha.

— Bem, sua mãe e eu estávamosconversando… se você está comvontade de vir para cá no final desemana.

— Hmm.— Então a gente pode conversar

mais sobre isso e sobre… tudo.— Neste final de semana?— E então? Se você quiser.— Tudo bem. Mas eu tenho um

pouco… e se eu chegar no sábado?— Ou na sexta à noite.

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— Não, mas… sábado. Demanhã.

— Está bem. Nesse caso eu voutirar um pato do congelador.

Oskar pôs o fone mais perto daboca e sussurrou: “Sem chumbo”.

O pai riu.No outono retrasado, quando

Oskar estava lá, ele quebrou umdente numa bala de chumbo queainda estava dentro do pássaro. Paraa mãe, ele disse que tinha sido umapedra numa batata. O pássaromarinho era a comida predileta deOskar, enquanto a mãe achava uma

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“crueldade enorme” atirar nospássaros indefesos. Dizer que eletinha quebrado o dente no próprioinstrumento do crime poderia levara uma proibição de comer esse tipode comida.

— Vou prestar mais atenção —disse o pai.

— A motoneta está funcionando?— Está. Por quê?— Por nada, só queria saber.— Sei. Há neve suficiente, então

a gente pode dar um passeio.— Legal.— O.k., então a gente se encontra

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no sábado. Você vai pegar o ônibusdas dez?

— Vou.— Então eu te pego. De

motoneta. O carro está fora deforma.

— O.k., tudo bem. Quer falarmais com a mãe?

— Quero… não… será que vocêpode dizer a ela o que a gentecombinou?

— Ahã. Tchau, até sábado.— Até sábado. Tchau.Oskar pôs o aparelho no gancho.

Ficou imaginando por um instante

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como seria. Dar uma volta demotoneta. Era legal. Oskar punha osminiesquis e eles amarravam umacorda na carreta da motoneta comum cabo na outra ponta. Nesse cabo,Oskar segurava-se com as duasmãos e depois saía pelo povoadoafora parecendo um esquiadoraquático na neve. Isso e o pato comgeleia de sorva. E só uma noitelonge de Eli.

Oskar foi para o quarto e guardoua roupa de ginástica e a faca namochila, já que não ia voltar paracasa antes de ver Eli. Oskar tinha

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um plano. Quando estava nocorredor vestindo o casaco, a mãesaiu da cozinha, limpando as mãossujas de farinha no avental. — Eentão? O que ele disse?

— Para eu ir no sábado.— O.k. E sobre aquilo?— Eu preciso ir para o treino

agora.— Ele não disse nada?— Disse, mas eu preciso sair

agora.— Para onde?— Para a piscina municipal.— Que piscina?

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— Aquela perto da escola. Apequena.

— O que você vai fazer lá?— Treinar. Volto lá pelas oito e

meia. Ou às nove. Vou me encontrarcom Johan depois.

A mãe pareceu ficar desolada.Não sabia o que fazer com as mãoscheias de farinha, então as enfiou nobolso da frente do avental.

— Sei. Tudo bem. Tenha cuidado.Cuidado para não escorregar nocanto da piscina ou algo desse tipo.Está levando o gorro?

— Estou.

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— Então ponha o gorro nacabeça. Depois de ter nadado,porque está frio lá fora e quando agente fica com o cabelo molhado…

Oskar deu um passo à frente,beijou a mãe de leve no rosto, disse“tchau” e foi. Ao sair do prédio, eleolhou furtivamente para a janela doseu apartamento. A mãe estava lá,ainda com as mãos no bolso dafrente do avental. Oskar acenou. Amãe levantou devagar uma dasmãos e acenou de volta.

Ele chorou durante a metade docaminho para o treino.

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A turma estava reunida do lado

de fora do apartamento de Gösta.Lacke, Virginia, Morgan, Larry,Karlsson. Ninguém tomava ainiciativa de tocar a campainha, jáque isso dava a quem apertava obotão a responsabilidade de dizer oassunto de que vinham tratar. Já naescada, eles podiam sentir umpouco do cheiro de Gösta. Mijo.Morgan deu uma cotovelada de ladoem Karlsson e resmungou algumacoisa inaudível. Karlsson levantouos protetores de ouvido que tinha no

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lugar do gorro e perguntou: — Quefoi?

— Eu perguntei se você nãopodia tirar esse troço. Parece umidiota.

— É sua opinião.De qualquer forma, ele tirou os

protetores de ouvido, enfiou-os nobolso do sobretudo e disse: — Vaiser você, Larry. Já que foi vocêquem viu.

Larry fez um muxoxo e tocou acampainha. Uma gritaria irritada dooutro lado da porta e em seguida umbaque suave como se algo tivesse

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caído no chão. Larry deu umatossidinha. Ele não gostava disso.Sentia-se como um tira com a turmatoda atrás dele, só faltavam osrevólveres em riste. Passosarrastados vieram de lá de dentro doapartamento, depois uma voz. “Meuamorzinho, você se machucou?”

A porta se abriu. Uma onda decheiro de mijo inundou o rosto deLarry e ele ficou sem ar. Göstaestava na porta, de camisa socialgasta, colete e gravata-borboleta.Um gato de listras alaranjadas ebrancas estava encolhido debaixo do

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seu braço.— Sim?— E aí, Gösta, tudo certo?Os olhos de Gösta percorreram

irrequietos o grupo na escada. Eleestava bastante bêbado.

— Tudo.— Bem, viemos aqui para… você

está sabendo o que aconteceu?— Não.— Bem, acharam Jocke. Hoje.— Não diga. Sei.— E o que acontece… é que…Ele virou a cabeça, procurando

apoio em sua comitiva. A única

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coisa que veio foi um gestoencorajador de Morgan. Larry nãosuportava estar ali dando uma derepresentante das autoridadesapresentando um ultimato. Só haviaum jeito, por mais que não gostasse.Ele perguntou: — A gente podeentrar?

Ele tinha esperado algum tipo derelutância; Gösta não estavaacostumado a ter cinco pessoasassim em sua porta sem mais nemmenos. Mas assentiu e recuoualguns passos no corredor para abrirpassagem.

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Larry hesitou por um instante; ocheiro que vinha do apartamento eraincrível, pairava no ar que nem umanuvem viscosa. Durante suaindecisão, Lacke já tinha entrado edepois dele veio Virginia. Lacke fezcarinho atrás da orelha do gato queestava nos braços de Gösta.

— Gato bonito, esse. Qual onome dele?

— Dela. Tisbe.— Nome bonito. Você também

tem um Píramo?— Não.Um a um, eles entraram

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calmamente no apartamento,tentando respirar pela boca. Depoisde alguns minutos, todos tinhamdesistido de tentar bloquear o fedor,deixaram o cheiro para lá e seacostumaram. Os gatos foramexpulsos do sofá e da poltrona,algumas cadeiras trazidas dacozinha, aguardente, grapetonic ecopos chegaram e, depois de teremjogado um pouco de conversa forasobre os gatos e sobre o tempo,Gösta disse: — Então encontraramJocke.

Larry bebeu o último gole do seu

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drinque. Era mais fácil com o calorda bebida no estômago. Serviu-se demais um drinque e disse: — Sim. Láembaixo perto do hospital. Eleestava dentro do gelo.

— No gelo ?— É. Estava uma agitação danada

lá embaixo hoje. Eu estava nohospital fazendo uma visita para oHerbert, não sei se você conhece oHerbert, bem… quando saí de láestava cheio de tiras e ambulâncialá e depois de um tempo chegou ocorpo de bombeiros…

— Houve incêndio também?

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— Não, mas eles tiveram quequebrar o gelo para tirar Jocke.Bem, naquela hora é claro que eunão sabia que era ele, mas depois,quando eles conseguiram arrastar ocorpo para a beira do lago, então eureconheci as roupas, porque acara… era só gelo em volta dela,então não dava para… mas asroupas…

Gösta abanou a mão no ar comose estivesse fazendo um afago numcachorro grande, invisível.

— Espere aí… se ele tivesse seafogado , então… não estou

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entendendo…Larry tomou um gole do drinque

e limpou ao redor da boca.— Não. Isso também foi o que o

tira achou. Num primeiro momento.Segundo o que entendi. Eles ficaramde braços cruzados lá em cima e oscaras da ambulância estavamocupados com um garoto quechegou sangrando na cabeça, entãofoi…

Gösta deu um tapinha maisentusiástico no cão invisível, outentou afastá-lo de si. Um pouco dodrinque acabou respingando em seu

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copo e aterrissou no tapete.— Bem… mas eu não posso…

sangrando na cabeça…Morgan pôs o gato que estava no

colo dele no chão e alisou as calças.— Isso não vem ao caso. Vamos

lá, Larry.— O.k., mas quando conseguiram

trazer o corpo para a beira do lago,então vi que era ele. Então todostambém viram que havia uma corda,assim, olhe. Amarrada nele. E umaspedras na corda, assim. Então ostiras ficaram alvoroçados.Começaram a falar no rádio e a

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interditar o local com aquelas fitas eafugentar as pessoas de lá. Ficaramaltamente interessados, assim, derepente. Isso quer dizer… bem, queele foi atirado lá no lago, e pronto.

Gösta se recostou no sofá e tapouos olhos com a mão. Virginia, queestava sentada entre ele e Lacke, fezum carinho em seu joelho. Morganencheu o copo e disse: — Oimportante é que acharam Jocke,não é? Quer uma tônica? Aqui. Elesacharam Jocke e agora sabem queele foi assassinado. Agora asituação é outra.

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Karlsson tossiu limpando agarganta e falou com um tomautoritário.

— No sistema legal sueco existeuma coisa que se chama…

— Veja se cala essa boca —interrompeu Morgan. — Você seimporta se eu fumar?

Gösta consentiu, balançando acabeça. Enquanto Morgan apanhavao cigarro e o isqueiro, Lacke seinclinou à frente no sofá para poderolhar nos olhos de Gösta.

— Gösta. Você viu o queaconteceu. Isso devia vir à tona.

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— Vir à tona? Como assim?— Bem, você vai à polícia e

conta simplesmente o que viu.— Não… não .Lacke soltou um suspiro, encheu

a metade do copo com aguardente eumas gotas de água tônica, tomouum gole grande e fechou os olhos nahora em que a nuvem de fogoencheu seu estômago. Não queriaobrigar ninguém.

Karlsson falou alguma coisasobre o dever de testemunhar e dese ter provas, mas, por mais queLacke quisesse que a polícia

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prendesse quem tinha feito aquilo,ele não ia mandar os tiras para cimade um amigo dando uma dealcaguete.

Um gato salpicado de cinzaroçava a cabeça na canela deKarlsson. Ele pôs o felino no colo eficou alisando o gato nas costas como espírito ausente. E queimportância tinha? Jocke estavamorto, agora ele sabia disso. Queimportância tinha isso detestemunhar, afinal de contas?

Morgan se levantou e foi para ajanela com o copo na mão.

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— Era aqui que você estava?Quando viu aquilo?

— … era.Morgan balançou a cabeça e

bebeu o drinque.— É, nesse caso eu entendo. Eu

bem que consigo ver daqui. Umbelo apartamento esse, de verdade.Vista bonita. Bem, tirando isso do…uma vista bonita.

Uma lágrima desciasilenciosamente pela face de Lacke.Virginia pegou a mão dele eapertou-a. Lacke tomou mais umgole daqueles para arrancar a dor

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que lhe rasgava o peito.Larry, que ficou olhando para os

gatos que iam de lá para cá na salafazendo um desenho sem sentido nochão, tamborilou com os dedos nocopo e disse: — E se a gente sódesse uma dica para a polícia? Dolugar? Quem sabe eles consigamachar impressões digitais e… ououtra coisa qualquer.

Karlsson sorriu.— E como é que vamos dizer que

ficamos sabendo disso? Quesabemos e pronto? Eles vão ficarbastante interessados em saber

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como… de quem a gente ficousabendo isso.

— A gente pode dar umtelefonema anônimo. Só para ainformação chegar até eles.

Gösta resmungou alguma coisano sofá. Virginia chegou a cabeçamais perto da dele.

— O que foi que você disse?Gösta falou bem baixinho

enquanto olhava para o copo.— Perdoem-me. Mas é que eu

tenho muito medo. Não posso.Morgan se virou da janela e abriu

a mão.

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— Então fica por isso mesmo.Não se discute mais o assunto. —Ele lançou um olhar severo paraKarlsson. — A gente vai bolaralguma coisa. A gente dá um jeitonisso. Desenhar, telefonar, qualquertroço desses. A gente vai bolaralguma coisa.

Ele foi até Gösta e cutucou-lhe opé.

— Vamos lá, Gösta, levante essacabeça. A gente vai dar um jeitonisso. Fique calmo. Gösta? Está meouvindo? A gente vai dar um jeitonisso. Saúde!

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Ele levantou o copo, bateu nocopo de Gösta, que tilintou, e tomouum gole.

— A gente vai dar um jeito.Certo?

Ele se despediu dos outros do

lado de fora da piscina e estava indopara casa quando ouviu a voz delavindo da direção da escola.

— Psiu! Oskar!Passos descendo a escada e

depois ela saiu da sombra. A garotatinha ficado esperando ali. Então

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ouviu Oskar dizer tchau para osoutros e ser tratado como se fossealguém normal.

O treino tinha sido bom. Ele nãoera nada fraco como achava,aguentava mais do que uns garotosque já tinham treinado várias vezes.A preocupação com o fato de oprofessor poder interrogá-lo sobre oque aconteceu no gelo foidesnecessária. Ele apenasperguntou: “Você quer conversarsobre isso?” e, quando Oskar fezque não com a cabeça, isso foi osuficiente.

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A piscina era um outro mundo,separado da escola. O professor eramenos severo e os outros garotosdeixaram Oskar em paz. Micke nãoapareceu por lá, é claro. Será queMicke estava agora com medo dele?Um pensamento estonteante.

Ele foi ao encontro de Eli.— Oi.— Oi.Sem comentar nada sobre isso,

eles tinham se cumprimentado. Elivestia uma camisa grande demais,de estampa xadrez, e estava daquelejeito… parecia ter encolhido de

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novo. A pele seca e o rosto maismagro. Já na noite anterior, Oskartinha visto os primeiros fios decabelo branco e agora havia maisdeles.

Quando Eli não estava doente,Oskar achava que ela era a meninamais linda que ele já vira. Mas dojeito que estava agora… não davapara comparar. Ninguém tinha esseaspecto. Talvez anões. Mas anõesnão eram tão magros desse jeito,então… não havia ninguém. Sentia-se aliviado por ela não ter semostrado para os outros meninos.

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— Como vai? — perguntou ele.— Mais ou menos.— Vamos fazer alguma coisa?— Vamos.Eles foram para casa, para o pátio

do prédio, lado a lado. Oskar tinhaum plano. Eles fariam um pacto. Sefizessem um pacto, Eli ficaria boa.Um pensamento mágico, inspiradonos livros que ele tinha lido. Masmagia… é claro que existe magia.Mesmo que fosse bem pouca. Osque negavam a magia, eram elesque acabavam mal.

Entraram no pátio. Oskar tocou

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no ombro de Eli.— Quer descer para a lixeira do

prédio?— O.k.Eles foram para a portaria de Eli

e Oskar abriu a porta do porão.— Você não tem a chave do

porão? — perguntou ele.— Acho que não.Dentro do corredor do porão

estava escuro como breu. A portabateu com força atrás deles. Os doisficaram parados um ao lado dooutro, respirando. Oskar sussurrou:— Sabe, Eli. Hoje… Jonny e Micke

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tentaram me jogar na água. Numburaco no gelo.

— Não! Você…— Espere. Sabe o que eu fiz? Eu

tinha um galho, um galho grande.Bati com ele na cabeça de Jonny eele sangrou. Teve uma concussãocerebral, foi para a emergência. Elesnão me jogaram na água. Eu… batinele.

Eles ficaram em silêncio poralguns segundos. Em seguida Elidisse: — Oskar.

— O quê?— Oba!

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Oskar estendeu a mão à procurado interruptor, pois queria ver orosto dela. Acendeu a luz. Eliolhava bem dentro dos seus olhos eele viu as pupilas dela. Por algunsinstantes, antes de ele se acostumarcom a luz, elas se pareceram comaqueles cristais que tiveram na aulade física, como é que era o nomedeles… elípticos.

Como nos lagartos . Não . Gatos .Gatos .

Eli piscou. Suas pupilas voltaramao normal de novo.

— O que é?

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— Nada. Venha.Oskar foi para a lixeira de

volumes grandes e abriu a porta. Ossacos estavam quase cheios até aboca, fazia tempo que não tinhamsido esvaziados. Eli se espremeupara ficar ao lado dele e os doisreviraram o lixo. Oskar encontrouuma sacola com cascos de garrafasretornáveis. Eli achou uma espadade brinquedo, brandiu-a e disse: —Vamos olhar as outras lixeiras?

— Não, pode ser que Tommy e osoutros estejam lá.

— Quem são os outros?

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— Ah, uns garotos mais velhosque têm um porão onde eles…ficam lá de noite.

— São muitos?— Não, três. Na maioria das

vezes é só Tommy.— E são perigosos?Oskar encolheu os ombros. —

Mas a gente pode ir para lá.Eles saíram do prédio de Oskar e

entraram na próxima galeria doporão, pelo prédio de Tommy. Nahora em que Oskar estava com achave na mão, prestes a abrir aúltima porta, ele hesitou. E se eles

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estivessem ali? E se vissem Eli? Ese eles… a situação podia ficar forade controle. Eli segurava a espadade plástico à frente. — O que é?

— Nada.Oskar abriu a porta. Assim que os

dois entraram no corredor, ele ouviuuma música vindo lá do depósito doporão. Ao dar meia-volta, Oskarcochichou: — Eles estão aqui!Venha.

Eli se deteve e farejou.— Que cheiro é esse?Oskar verificou se alguém estava

lá longe no corredor e inspirou. Não

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sentiu nada além dos cheiros desempre do porão. Eli disse: “Tinta.Cola”. Oskar inspirou de novo. Nãosentiu nada, mas ele sabia do que setratava. Quando se virou para Eli,para levá-la dali, viu que ela estavafazendo alguma coisa com afechadura na porta.

— Venha. O que você estáfazendo?

— Eu só…Enquanto Oskar destrancava a

porta da próxima galeria do porão, ocaminho de bater em retirada, aporta se fechou atrás deles. Não fez

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o mesmo barulho de sempre.Nenhum clique. Apenas um sommetálico abafado. No caminho devolta para o porão deles , Oskarcontou para Eli sobre a cheiração decola; como os garotos podiam ficarloucos depois de cheirar.

Já no porão dele, Oskar se sentiuem segurança de novo. Ficou dejoelhos e começou a contar oscascos na sacola de plástico.Catorze garrafas de cerveja e umade aguardente que não dava paratrocar por dinheiro.

Quando ele levantou os olhos

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para informar o resultado a Eli, elaestava na frente dele com a espadade plástico levantada como se fossedar um golpe. Mesmo acostumadocom pancadas repentinas, Oskarlevou um susto. Mas Eli resmungoualguma coisa e tocou em seguida aespada no ombro dele. Disse com avoz mais grave que podia: — Nesseinstante, vencedor de Jonny, eu vosnomeio cavaleiro de Blackeberg ede todos os arredores comoVällingby… mmm…

— Råcksta.— Råcksta.

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— Ängby, talvez?— Talvez Ängby.Eli batia de leve com a espada no

ombro dele a cada lugar novo quecitava. Oskar apanhou a faca damochila, segurou-a e seautoproclamou O Cavaleiro deTalvez Ängby. Queria que Eli fossea Virgem Bela que ele salvaria doDragão.

Mas Eli era um monstro terrívelque almoçava as virgens e era comela que ele tinha que lutar. Oskardeixou a faca ficar na bainhaenquanto eles lutavam de espada,

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falavam alto, corriam de lá para cánas galerias. No meio dabrincadeira, uma chave arranhou afechadura da porta do porão.

Os dois se meteram rapidamentenuma despensa onde mal tinhamespaço para sentar-se lado a lado,respiravam fundo e em silêncio.Uma voz de homem.

— O que vocês estão fazendoaqui embaixo?

Oskar estava colado junto de Eli.Seu peito borbulhava. O homem deuuns passos e entrou no porão.

— Onde vocês estão?

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Oskar e Eli prenderam arespiração na hora em que o homemficou parado, de ouvidos aguçados.Depois disse: “Moleques de umafiga”, e foi-se embora dali.Continuaram sentados no depósitoaté terem certeza de que o homemtinha ido, depois saíram na pontados pés, encostaram-se na parede detábuas e riram baixinho. Depois deum tempo, Eli se deitou de corpointeiro no chão de cimento e ficouolhando para o teto. Oskar cutucouo pé dela.

— Está cansada?

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— Estou. Estou cansada.Oskar tirou a faca da bainha e

olhou para ela. A faca era pesada,bonita. Ele pressionou com cuidadoo indicador na ponta, depois tirou odedo. Um pontinho vermelho. Fez omesmo de novo, agora com maisforça. Na hora em que tirou a faca,saiu uma gota de sangue. Mas nãoera assim que se fazia.

— Eli? Quer fazer uma coisa?Ela ainda estava olhando para o

teto.— O quê?— Você quer… fazer um pacto

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comigo?— Quero.Se ela tivesse perguntado

“como?”, talvez ele tivesseexplicado como pensava fazer acoisa antes de ter feito. Mas elaapenas disse “quero”. Eli iaparticipar, desse no que desse.Oskar engoliu a saliva com força,pegou a lâmina fazendo a partecortante da faca descansar na palmada mão, fechou os olhos e passou alâmina na mão. Ardência, pontadasde dor. Ele arfou.

Será que fiz mesmo?

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Ele abriu os olhos, abriu a mão.Fiz. Uma fenda superficial estavaexposta na palma da mão, o sanguebrotava devagar; não como Oskarachou que seria na forma de umalinha fina, mas como um colar depérolas que, enquanto ele olhavafascinado, se uniam formando umalinha mais grossa e irregular.

Eli levantou a cabeça.— O que você está fazendo?Oskar ainda estava com a mão na

frente do rosto, não tirava os olhosdela e disse: — É bem simples . Eli,não foi nada…

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Ele lhe mostrou a mão sangrando.Os olhos dela aumentaram. Elisacudiu a cabeça sem pararenquanto recuava lentamente,afastando-se da mão dele.

— Não, Oskar…— Que é?— Oskar, não.— Não dói quase nada .Eli parou de recuar na ponta dos

pés e ficou olhando para a mão deleenquanto continuou sacudindo acabeça. Oskar segurava na outramão a lâmina da faca, e estendeu afaca na direção dela com o cabo na

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frente.— Você só precisa fazer um furo

no dedo ou algo desse tipo. Depois agente mistura. Então a gente temum pacto.

Eli não apanhou a faca. Oskar adepositou no chão entre eles parapoder recolher com a mão que nãoestava machucada as gotas desangue que caíam da ferida.

— Vai logo. Você não quer?— Oskar… não dá. Você vai ser

contaminado, você…— Não sinto dor nenhuma, é…Um fantasma se apoderou do

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rosto de Eli e o desfigurou,transformando-o em algo tãodiferente da menina que eleconhecia que Oskar esqueceu derecolher o sangue que escorria dasua mão. Eli parecia agora omonstro que eles tinham fingidoque ela era na brincadeira e Oskarrecuou enquanto a dor aumentavaem sua mão.

— Eli, o que…Ela sentou-se, ficou de joelhos,

ficou de quatro olhando para a mãodele que sangrava, deu um passo àfrente na direção dela. Parou,

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trincou os dentes e falou silvando:— Saia daqui!

Lágrimas de medo encheram osolhos de Oskar. — Eli, pare comisso. Pare de brincar. Pare com isso.

Eli foi para a frente de quatro,mas parou de novo. Ela obrigou ocorpo a se fechar de forma que acabeça se curvou em direção aochão. Gritou: — Saia daqui! Senãovocê vai morrer!

Oskar se levantou e deu unspassos para trás. Seus pés bateramna sacola com as garrafas, quecaíram fazendo barulho. Ele

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encostou na parede enquanto Eli seaproximou da manchinha de sangueno chão, que caiu da mão dele.

Mais uma garrafa caiu,quebrando-se no chão de cimento,enquanto Oskar estava espremido naparede olhando para Eli, que esticoua língua e lambeu o cimento sujo.Ela passava a língua no lugar onde osangue dele tinha caído.

Uma garrafa tilintou baixinho eparou de balançar. Eli não parava delamber o chão. Ao levantar a cabeçapara ele, ela tinha uma manchacinza da sujeira do chão na ponta do

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nariz. — Vá embora… por favor…vá…

Depois o fantasma passou por seurosto de novo, mas, antes queconseguisse se apoderar dela, Eli selevantou e correu pelo corredor doporão, abriu a porta do prédio edesapareceu.

Oskar ficou ali parado com a mãoferida bem fechada. O sanguecomeçou a aparecer nos vãos entreos dedos. Abriu a mão e olhou paraa ferida. Foi mais profunda do queele queria, mas não era motivo depreocupação, achou. O sangue já

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começava a coagular.Olhou para a mancha agora

branca no chão. Em seguidaexperimentou lamber um pouco dosangue da palma da mão, mascuspiu.

As luzes da noite.Amanhã cedo eles iriam operar a

boca e a garganta dele. Na certaesperavam que Håkan fosse dizeralguma coisa. Sua língua aindaexistia, ele podia movimentá-ladentro da cavidade bucal fechada,

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fazer cócegas no maxilar superiorcom ela. Talvez conseguisse falarde novo, mesmo sem lábios. Masnão ia falar.

Uma mulher, Håkan não sabia sepolicial ou enfermeira, estavasentada a alguns metros lendo umlivro, tomando conta dele.

Será que eles empregam todosesses recursos quando se trata deum zé-ninguém que considera aprópria vida acabada?

Håkan entendeu que era valioso,que esperavam muito dele.Provavelmente a polícia

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desenterrava exatamente nesseinstante arquivos antigos, casos queesperavam poder resolver se elefosse o autor do crime. Um policialapareceu ali na parte da tarde paracoletar suas impressões digitais. Elenão ofereceu resistência. Não tinhamais nenhuma importância.

Possivelmente as impressõesdigitais iriam conectá-lo aosassassinatos em Växjö eNorrköping. Ele tinha tentadolembrar como fizera, se deixaraimpressões digitais ou outrosvestígios. Provavelmente sim.

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A única coisa que o deixavapreocupado era que as pessoas,através desses episódios,conseguissem chegar até Eli.

As pessoas …

Elas tinham deixado bilhetinhos

em sua caixa de correio, tinham-noameaçado.

Alguém que trabalhava noscorreios e morava na região deu adica aos outros vizinhos sobre ostipos de correspondência, os tiposde filme que ele recebia.

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Demorou mais ou menos um mêspara que Håkan fosse despedido dotrabalho que tinha na escola. Não sepodia ter uma pessoa dessas nomeio das crianças. Ele concordouem sair do emprego, emboraprovavelmente pudesse ter acionadoo sindicato.

Não fizera nada na escola, burroele não era.

A campanha contra ele seintensificou e, por fim, numamadrugada, alguém jogou umabomba incendiária que entrou pelajanela da sala de estar. Ele fugiu

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para o terreno da casa apenas decuecas, ficou assistindo enquantosua vida era consumida pelaschamas.

A investigação do crime foidemorada e por isso ele também nãorecebeu nenhum dinheiro dacompanhia de seguros. Das suasescassas economias, Håkan custeouo trem que o levou para longe dali;alugou um quarto em Växjö. Ali elecomeçara a procurar a morte.

Chegou a um nível de alcoolismoque passou a ingerir qualquer coisaem que conseguisse botar as mãos.

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Solução para acne da Aco, álcool decozinha. Surrupiava vinho parapreparação caseira e fermento daslojas de tintas, bebia tudo antes defermentar até o final.

Ficava fora de casa o máximopossível, de algum modo queria que“as pessoas” vissem que ele estavamorrendo, dia após dia.

A embriaguez deixava-odescuidado, ele passava a mão emmenininhos, recebeu pancada, foiparar na polícia. Ficou na delegaciapor três dias e vomitou o que tinha eo que não tinha no estômago. Foi

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solto. Continuou a beber.Uma noite, quando Håkan estava

sentado num banco perto de umascrianças no parque com um vinhofermentado pela metade dentro deuma sacola, Eli veio e sentou-se aoseu lado. Na embriaguez, Håkan pôsquase imediatamente a mão na coxade Eli. O garoto deixou a mão ficarali, segurou a cabeça de Håkan emsuas mãos, virou-a para si e disse:“Você vai ficar comigo”.

Håkan balbuciara alguma coisasobre não ter como pagar umabelezura dessas no momento, mas

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quando a economia delepermitisse…

Eli tirou a mão de Håkan da suacoxa, abaixou-se para pegar o vinho,jogou fora o contéudo da garrafa edisse: “Você não está entendendo.Escute bem. Você vai parar de beberagora. Vai ficar comigo. Vai meajudar. Eu preciso de você. E eu vouajudá-lo”. Em seguida Eli estendeua mão, Håkan pegou-a e eles saíramjuntos.

Ele parou de beber e começou aservir Eli.

Eli deu-lhe dinheiro para comprar

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roupas e alugar outro apartamento.Ele fez tudo sem questionar se Eliera “mau”, “bom” ou outra coisaqualquer. Eli era bonito e devolveraa dignidade a Håkan. E, em rarosmomentos… dera carinho também.

Farfalhar de papel quando o

guarda virava as folhas do livro queestava lendo. Provavelmente umdesses romances populares. Narepública de Platão, “Os guardas”seriam a classe mais letrada dopovo. Mas essa era a Suécia de 1981

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e aqui eles liam Jan Guillou.O homem no lago, o homem que

ele afundara. Foi tosco, é claro.Devia ter feito como Eli dissera eenterrado o sujeito. Mas nada nohomem podia levar os indícios atéEli. Os furos no pescoço seriamconsiderados algo estranho, maseles iam acreditar que o sanguetinha escorrido na água. As roupasdo homem eram…

A blusa!A blusa de Eli, que Håkan

encontrara no corpo do homemquando foi cuidar dele. Devia tê-la

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levado para casa e queimado, feitoqualquer coisa.

Em vez disso, enfiou a roupadentro do casaco do homem.

Como é que eles iam interpretarisso? Uma blusa de criança,manchada de sangue. Será quecorria o risco de alguém ter vistoEli com aquela blusa? Alguém quepodia reconhecê-la? E se elesmostrassem a blusa no jornal, porexemplo? Alguém que Eli tivesseencontrado antes, alguém que…

Oskar . O menino do prédio .O corpo de Håkan se revirou

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inquieto na cama. O guarda abaixouo livro e olhou para ele.

— Nada de bobagem agora.

Eli atravessou a Björnsonsgatan,

continuou pelo pátio entre osprédios de nove andares, duas torresde farol monolíticas acima dosprédios de três andares acocoradosao redor delas. Ninguém estava nopátio, mas das janelas do salão deginástica vinha uma luz. Eli subiupela escada de incêndio e olhou ládentro.

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A música retumbava numpequeno aparelho de fita cassete. Aoritmo da música, mulheres de meia-idade pulavam de lá para cá fazendoestremecer o chão de madeira. Elise aconchegou em cima das gradesde metal da escada, encostou oqueixo nos joelhos e ficoucontemplando a cena.

Várias mulheres eram obesas e ospeitos volumosos davam pinotesque nem bolas de boliche pordebaixo das blusas. As mulherespulavam, saltitavam, levantavam osjoelhos fazendo as carnes balançar

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nas calças apertadas em excesso.Elas se movimentavam em círculo,batiam as mãos, pulavam de novo.Tudo isso enquanto a músicaribombava. Sangue quente,oxigenado, correndo nos músculossedentos.

Mas havia gente demais.Eli saltou da escada de incêndio,

aterrissou suavemente no chãocongelado, deu a volta no pavilhãode ginástica e parou do lado de forada piscina.

As janelas grandes, de vidrofosco, faziam retângulos de luz na

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camada de gelo. Acima de cadajanela grande, havia uma janelamenor e ovalada feita de vidrocomum. Eli deu um salto para cima,ficou pendurada na beira do teto eolhou lá dentro. Não havia ninguémna piscina. A superfície da águabrilhava com a luz das lâmpadasfluorescentes. Umas bolas boiavamna água.

Nadar . Chapinhar . Brincar .Eli se balançava para a frente e

para trás, um pêndulo escuro. Olhoupara as bolas, imaginou-asatravessando o ar, sendo jogadas,

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risos, gritinhos e água respingando.Eli largou a borda do teto, caiu edeixou-se aterrissar de um modo tãoduro que doeu, atravessou o pátio daescola para o caminho do parque,parou embaixo de uma árvore altana beira do caminho. Estava escuro.Ninguém por perto. Eli olhou para otopo da árvore, uns cinco, seismetros de tronco liso. Tirou ossapatos. Mentalizou mãos novas,pés novos.

Quase não sentia mais dor, eracomo se fossem cócegas, umacorrente elétrica através dos dedos

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das mãos e dos pés quando elesdiminuíam, assumiam uma outraforma. O esqueleto estalava nosdedos da mão na hora em que seexpandia, crescia na pele quederretia da ponta dos dedosformando garras compridas ecurvas. A mesma coisa com osdedos dos pés.

Eli deu um salto de dois, trêsmetros para cima do tronco,enterrou as garras nele e escalou atéum galho grosso pendurado no altodo caminho. Fincou as garras dospés ao redor do galho e ficou

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sentada sem se mexer.Uma dor na raiz dos dentes na

hora em que Eli mentalizou osdentes afiados. As coroas seencurvaram para fora, afiadas poruma lixa invisível, ficarampontudas. Eli mordeu de leve olábio inferior e uma fileira deagulhas em forma de meia-luaquase furou a pele.

Era só esperar.

Eram quase dez horas e a

temperatura na sala estava quase

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insuportável. Duas garrafas deaguardente foram consumidas, umaoutra foi posta na mesa e todosconcordavam que Gösta era umsujeito de responsabilidade e quenão passara por isso à toa.

Apenas Virginia tinha tomadocuidado com a bebida, já quelevantaria cedo para trabalhar no diaseguinte. Ela parecia ser a única quesentia o cheiro na sala. O cheiroantes sufocante de mijo de gato e delugar fechado estava agoramisturado com o de cigarro, comvapores de bebida alcoólica e a

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transpiração de seis corpos.Lacke e Gösta ainda estavam

sentados com Virginia entre eles nosofá, agora um pouco apagados.Gösta fazia carinho num gato emseu colo, um gato que era estrábico,o que fez Morgan explodir numataque de riso e ele acabou batendoa cabeça na mesa; tomou um golede aguardente pura para anestesiar ador.

Lacke não falava muito. Ficoumais sentado olhando fixamentepara a frente enquanto seus olhosficaram embaçados, enevoados,

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depois dilatados. Seus lábios semoviam em silêncio de vez emquando, como se ele estivesseconversando com um fantasma.

Virginia se levantou e foi para ajanela. — Posso abrir?

Gösta negou, sacudindo a cabeça.— Os gatos… podem… pular

para fora.— Mas eu estou aqui olhando.Gösta continuou sacudindo a

cabeça por mero automatismo eVirginia abriu a janela. Ar! Elaaspirou sofregamente o ar puroalgumas vezes e sentiu-se

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imediatamente melhor. Lacke, quetinha começado a cair de lado nosofá quando o apoio de Virginiadesapareceu, endireitou-se e disseem voz alta: — Isso é que eraamigo! Amigo… de verdade!

Balbucios concordando vieram dasala. Todos entenderam que eleestava falando de Jocke. Lackeolhava para o copo vazio em suamão e continuou.

— Um amigo… que nuncaabandonou a gente. E isso não tempreço. Estão me ouvindo? Não tempreço! Eu quero que vocês

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entendam que Jocke e eu éramos…assim!

Ele fechou bem o punho e osacudiu na frente do rosto.

— E isso, nada pode substituir.Nada! Vocês ficam aí falandocoisas do tipo “que pessoa bacana”e isso e aquilo outro, mas vocês…vocês são apenas vazios . Só cascas!Eu não tenho nada agora queJocke… está morto. Nada . Entãonão fiquem aí falando de perdacomigo, não fiquem falando de…

Virginia estava na janelaouvindo. Ela foi até Lacke para

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lembrá-lo da existência dela .Agachou-se em frente a ele, tentoucapturar o olhar de Lacke e disse:— Lacke…

— Não! Não me venha comisso… de “Lacke, Lacke”… é isso epronto! Você não entende. Você é…fria. Você vai para a cidade eapanha qualquer merdinha demotorista de caminhão ou outrocara qualquer, leva o sujeito paracasa e deixa-o atravessar vocêquando as coisas ficam pesadasdemais. É assim que você faz.Uma… caravana de caminhões que

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passa por lá. Mas um amigo… umamigo…

Virginia levantou-se comlágrimas nos olhos, deu umabofetada em Lacke e saiu correndodo apartamento. Lacke caiu no sofáe bateu no ombro de Gösta, queresmungou: — A janela, a janela…

Morgan fechou a janela e disse:— Isso aí, Lacke. Você fez bem.Agora você não vai ver maisVirginia.

Lacke se levantou e se aproximoucom pernas vacilantes de Morgan,que estava olhando lá fora pela

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janela. — Pô, eu não queria…— É. Mas então diga isso a ela.Morgan apontou com a cabeça

para o chão lá embaixo, por ondeVirginia acabara de sair, andando apassos rápidos de cabeça baixa nadireção do parque. Lacke ouviu oque ele dissera. As últimas palavrasditas a ela ainda faziam eco em suacabeça. Eu disse desse jeito? Eledeu meia-volta e apressou-se emdireção à porta.

— Eu só preciso…Morgan balançou a cabeça. —

Seja rápido. Dê lembranças minhas.

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Lacke voou escada abaixo assimque as pernas trêmulas foramcapazes de carregá-lo. Os degraussalpicados de cores diferentespiscavam na frente dos seus olhos eo corrimão deslizava tão rápido quesua mão ardia com o calor dafricção. Ele escorregou numpatamar da escada, caiu e bateu comforça no cotovelo. Seu braço seencheu de calor e pareciaparalisado. Ele se levantou econtinuou tropeçando escadaabaixo. Corria para salvar uma vida.A dele.

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Virginia foi se afastando do

prédio e desceu para o parque, semvirar as costas.

Chorando de soluçar, ela andavameio que correndo como se fossepara fugir das lágrimas. Mas elasperseguiam Virginia, brotavam deseus olhos e escorriam-lhe pelorosto. Os saltos cortavam a neve,faziam tique-taque no asfalto docaminho do parque, e ela cruzou osbraços em volta de si mesma.

Não havia ninguém por perto,então ela deixou as lágrimas

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correrem livremente enquanto iapara casa, apertando os braços nabarriga; a dor lá dentro era comoum feto maligno.

É só deixar alguém entrar em suavida que ele te magoa .

Era por essas e outras que ela sótinha relacionamentos passageiros.Não deixava ninguém entrar. Umavez dentro, as pessoas têm outraspossibilidades de magoar. Console asi mesmo. Com a angústia, a gentepode conviver, enquanto ela só tema ver com a gente mesmo. Enquantonão há esperança.

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Mas ela teve esperanças comLacke. De que algo poderia crescerdevagar. E finalmente. Algum dia.O quê? Ele pegava a comida e ocarinho dela, mas na verdadeVirginia não significava nada paraLacke.

Ela andava toda encolhida pelocaminho do parque, encurvada sobrea tristeza. Suas costas estavamenvergadas e era como se alihouvesse um demônio sentadosussurrando coisas terríveis noouvido dela.

Nunca mais . Nada .

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Justamente na hora em queVirginia começou a imaginar a caradesse demônio, ele caiu em cimadela.

Um peso grande aterrissou emsuas costas e ela caiu desgovernadade lado. Sua bochecha bateu na nevee a camada de lágrimas setransformou em gelo. O pesopermaneceu onde estava.

Por um instante Virginia achoumesmo que fosse o demônio datristeza que tivesse assumido umaforma sólida e se jogado em cimadela. Depois veio a dor lancinante

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na garganta na hora em que dentesafiados penetraram sua pele.Virginia conseguiu ficar de pé denovo, rodopiou e tentou se livrardaquilo que estava em suas costas.

Era algo que mastigava seupescoço e sua garganta, e o sangueque jorrou foi lhe descendo porentre os seios. Ela berrou tentandoarrancar o animal das costas, econtinuou gritando enquanto caía denovo na neve.

Até que alguma coisa dura tocoua boca de Virginia. A mão dealguém.

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Na bochecha, garras que seenterraram na carne macia… e quecontinuaram, até atingirem o ossoda face.

Os dentes pararam de mastigar eela ouviu um barulho que lembravaaquele que se faz quando a gentesuga os restos de um copo com umcanudo. Um líquido escorreu-lhepelos olhos, e Virginia não sabia seeram lágrimas ou sangue.

Quando Lacke saiu do prédio,

Virginia era apenas um vulto escuro

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que se mexia lá pelos lados docaminho do parque, subindo paraArvid Mörnes. Seu peito doía dacorrida escada abaixo e o cotoveloirradiava pontadas de dor quesubiam para o ombro. Ainda assim,ele corria. Corria o mais rápido quepodia. Sua consciência começou aclarear com o ar fresco, e com omedo de perder aquela que oimpulsionava adiante.

Ao chegar à curva no caminho doparque — onde “o caminho deJocke”, como ele começara achamar o lugar, cruzava com “o

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caminho de Virginia” — , ele paroue encheu o máximo que pôde opulmão de ar para chamar pelonome dela. Virginia estava apenascinquenta metros à sua frente, porentre as árvores.

Quando Lacke estava prestes agritar seu nome, viu uma sombracaindo de uma árvore em cima dela,derrubando-a no chão. Seu grito setransformou num assobio, e elecomeçou a correr. Queria gritar,mas o fôlego não era suficiente paracorrer e gritar ao mesmo tempo.

Lacke correu.

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Na frente dele Virginia selevantou, com uma coisa grandeembolada nas costas, rodopiouparecendo um corcunda louco e caiude novo.

Ele não tinha nenhum plano,nenhuma ideia. Nada a não ser isto:ir até Virginia e tirar aquilo das suascostas. Ela estava caída na neve nabeira do caminho com aquela massanegra rastejando por cima dela.

Ele chegou e empregou todo orestante da força que tinha paraacertar um chute na coisa negra. Seupé bateu em algo duro e ele ouviu

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um estalo forte semelhante ao somde gelo que se rompe. A coisa negracaiu das costas de Virginia eaterrissou na neve ao lado dela.

Virginia estava caída sem semexer no chão, havia manchasescuras na neve. A coisa negrasentou-se.

Uma criança .Lacke ficou contemplando o rosto

de criança mais adorável que jávira, emoldurado por um véu decabelos pretos. Dois olhos enormese escuros cruzaram com os deLacke.

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A criança ficou de quatro comoum felino, preparado para dar umsalto. Seu rosto mudou quando elalevantou os lábios e Lacke pôde veras fileiras de dentes afiadosbrilhando no escuro.

Uma respiração ofegante. Acriança continuou de quatro e Lackepôde ver agora que os dedos delaeram garras, nitidamente delineadasna neve.

Em seguida o rosto da criança fezuma careta de dor e ela se levantounas duas pernas, correndo emdireção à escola com passos rápidos

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e compridos. Segundos mais tarde acriança se misturou às sombras edesapareceu.

Lacke continuou ali pestanejandopara tirar o suor que lhe entravapelos olhos. Depois se jogou nochão para junto de Virginia. Viu aferida. O pescoço inteiro estava emcarne viva, listras negras subiam nocouro cabeludo e desciam pelascostas. Ele arrancou o casaco, tiroua blusa que vestia por baixo eenrolou a manga até fazer uma bolae comprimi-la na ferida.

— Virginia! Virginia! Meu

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amor…Finalmente as palavras saíram.

Sábado, 7 de novembro

A caminho da casa do pai. Cadacurva da estrada era familiar, ele jáfizera esse percurso… quantasvezes mesmo? Sozinho apenas umasdez ou doze vezes, masacompanhado da mãe mais de trinta,no mínimo. Seus pais tinham seseparado quando ele tinha quatro

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anos, mas a mãe e Oskarcontinuaram visitando o pai nosfinais de semana e férias da escola.

Nos três últimos anos, Oskarrecebeu permissão para andar deônibus sozinho. Dessa vez a mãenem mesmo tinha ido com ele até aestação Tekniska Högskolan, deonde os ônibus saíam. Ele era ummenino crescido agora, com opróprio tíquete de metrô na carteira.

Na verdade ele tinha carteiramais para guardar os tíquetes, masagora, além disso, havia dentro delavinte coroas para doces e coisas do

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gênero, assim como os bilhetinhosde Eli.

Oskar cutucou o curativo napalma da mão. Não queria mais seencontrar com ela. Eli dava medo.Aquilo que aconteceu no porão…era como se…

Ela tivesse mostrado quem era deverdade .

… houvesse alguma coisa nela,alguma coisa que era… O Terrível.Aquilo tudo com que a gente devetomar cuidado. Grandes alturas,fogo, vidro na grama, cobras.Daquilo que a mãe se esforçava

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tanto para protegê-lo.Talvez tenha sido por isso que ele

não quis que Eli e a mãe seconhecessem. A mãe teria vistoisso, teria proibido Oskar de ficarperto disso. De Eli.

O ônibus saiu da autoestrada epegou o caminho de Spillersboda.Esse era o único ônibus que ia paraRådmansö, por isso ele tinha de darvoltas a fim de passar na maiorquantidade possível de povoados. Oônibus passou pela montanha detábuas empilhadas junto da SerrariaSpillersboda, fez uma curva

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repentina e quase resvalou ladeiraabaixo em direção ao píer.

Ele não tinha esperado Eli nasexta-feira à noite.

Em vez disso, foi andar sozinhode trenó na ladeira Fantasma. A mãeprotestou, já que Oskar não tinhaido à escola e ficado em casa porqueestava resfriado, mas ele disse quese sentia melhor.

Ele atravessou o Chinaparkencom o trenó nas costas. A ladeiraFantasma começava cem metrosdepois dos últimos postes de luz doparque, eram cem metros de bosque

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escuro. A neve estalava sob seuspés. Um som baixinho de sucçãovinha do verde, semelhante ao derespiração. A luz da lua penetravano bosque e o chão entre as árvoresera uma teia de sombras onde vultossem rostos estavam esperando,oscilando de lá para cá.

Ele atingiu o ponto em que ocaminho começava a descerabruptamente para Kvarnviken esentou-se no trenó. A casa fantasmaera uma parede negra junto daladeira, uma proibição: Você estáproibido de ficar aqui depois que

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escurecer . Esse lugar é nosso agora. Se quiser brincar aqui , então vocêtem que brincar conosco .

No final da ladeira brilhavamluzes solitárias do iate clube deKvarnviken. Oskar avançou maisuns trinta centímetros, o decliveassumiu o controle e o trenócomeçou a deslizar. Ele seguroufirmemente o volante, queria fecharos olhos mas não tinha coragem,pois podia acabar saindo docaminho e descer pelodespenhadeiro da casa fantasma.

Ele se arremessou ladeira abaixo,

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um projétil de nervos e músculosretesos. Mais rápido, cada vez maisrápido. Braços amorfos, de fumaçade neve, saíam da casa fantasma,tentavam arrancar seu gorro,roçavam seu rosto.

Talvez fosse apenas um ventorepentino, mas lá embaixo naladeira ele acabou batendo numamembrana transparente e viscosaatravessada no caminho e quetentou pará-lo. Mas a velocidadeestava alta demais.

O trenó foi para cima damembrana e ela se colou na cara e

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no corpo de Oskar, mas se alargou,esticou-se até arrebentar e eleatravessou.

Na Kvarnviken as luzescintilavam. Ele ficou sentado notrenó olhando para o lugar em que,na manhã anterior, surrara Jonny.Virou-se. A casa fantasma era ummonstro feio de chapas de metal.

Oskar arrastou o trenó ladeiraacima de novo. Desceu nele. Paracima de novo. Para baixo de novo.Não conseguia parar. E andou mais.Andou até o rosto virar umamáscara de gelo.

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Depois foi para casa.

Ele dormiu apenas umas quatro,

cinco horas, com medo de que Elifosse aparecer. Do que seriaobrigado a dizer e a fazer se elaviesse. De rejeitá-la. Por issodormiu no ônibus para Norrtälje esó despertou quando já tinhachegado. Ficou acordado no ônibuspara Rådmansö e brincou de tentarlembrar o máximo de coisas docaminho.

Ali na frente já vai aparecer uma

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casa amarela com um moinho devento no gramado .

Uma casa amarela com ummoinho de vento coberto de nevepassou pela janela. E assim pordiante. Em Spillersboda, umamenina entrou no ônibus. Oskarsegurou as costas do assento à suafrente. Parecia um pouco com Eli.Naturalmente não era ela. A meninasentou-se alguns assentos à frentede Oskar. Ele olhou para o pescoçodela.

O que há com ela?Esse pensamento já viera à

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cabeça de Oskar lá no porão,enquanto juntava as garrafas elimpava o sangue da mão com umpano da lixeira; Eli era um vampiro.Isso explicava um monte de coisas.

O fato de ela nunca aparecer dedia.

O fato de ela poder enxergar noescuro , o que ele já percebera serpossível.

Mais um monte de outras coisas:o modo como falava, o cubo, aelasticidade do corpo dela, coisasque certamente podiam ter umaexplicação natural… mas, além

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disso, o fato de ela ter lambido osangue dele do chão e aquilo que ofez gelar por dentro quando pensouno seguinte: “Posso entrar? Digaque eu posso entrar .”

O fato de ela precisar de umconvite para poder entrar em seuquarto e ir para a cama dele. EOskar tinha convidado Eli. Umvampiro. Um ser que vivia dosangue de seres humanos. Oskar nãopodia contar isso para ninguém .Nenhuma pessoa acreditaria nele. Ese ainda assim alguém acreditasse,o que iria acontecer?

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Oskar viu à sua frente umacaravana de homens queatravessavam a entrada do conjuntode Blackeberg — a entrada onde elee Eli tinham se abraçado — comestacas pontiagudas nas mãos.Agora ele tinha medo de Eli, nãoqueria mais encontrá-la, na verdadenão queria que acontecesse isso .

Depois de quarenta e cincominutos no ônibus para Norrtälje,Oskar chegou a Södersvik. Puxou acorda e o sinal tocou lá na frente, nomotorista. O ônibus parou bem emfrente à loja e ele teve de esperar

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uma senhora idosa, que elereconheceu mas cujo nome nãoconseguiu lembrar, saltar do ônibus.

O pai estava perto dos degraus,acenou com a cabeça ecumprimentou a senhora. Oskardesceu do ônibus e ficou parado porum instante na frente do pai. Nasemana que passou tinhamacontecido coisas que fizeramOskar se sentir grande. Não adulto.Mas em todo caso maior. Issodesapareceu dele na hora em queficou diante do pai.

A mãe dizia que o pai era infantil

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de uma maneira ruim. Imaturo,incapaz de assumirresponsabilidades. Bem, elatambém dizia coisas boas sobre ele,mas isso era sempre uma pedra nocaminho. A imaturidade.

Para Oskar, o pai era o símbolode um adulto, parado ali com osbraços compridos abertos. Oskarcorreu para abraçá-lo.

O pai tinha um cheiro diferentede todas as pessoas da cidade. Nocolete Helly Hansen rasgado econsertado com velcro havia semprea mesma mescla de madeira, tinta e

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principalmente de óleo. Esses eramos cheiros, mas Oskar não pensavano cheiro desse jeito. Erasimplesmente “o cheiro do pai”. Eleamava esse cheiro e respirou fundopelo nariz enquanto afundava orosto no peito do pai.

— Olá, filho.— Oi, pai.— A viagem correu bem?— Não, batemos num alce.— Não diga. Que chato.— Estou brincando.— Sei. Escute, eu lembro uma

ocasião…

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Enquanto eles iam para omercado, o pai se pôs a contar umahistória de como ele atropelou, comseu caminhão, um alce uma vez.Oskar já ouvira a história antes eolhou ao redor, resmungando umaresposta de vez em quando.

O mercado de Södersvik estavasujo como sempre. Cartazes ebandeirolas ainda pendurados àespera do próximo verão faziam olugar parecer um quiosque desorvete de dimensões exageradas. Atenda grande atrás do mercado —onde se vendiam ferramentas de

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jardinagem, terra, móveis de jardime similares — estava fechada até apróxima estação.

No verão, o número de habitantesem Södersvik quadruplicava. Aregião toda descendo paraNorrtäljeviken, Lågarö, era umaglomerado de casas de veraneio e,embora as caixas de correio lá peloslados de Lågarö fizessem fila duplacom trinta delas em cada fileira, ocarteiro quase nunca precisava irpara lá nessa época do ano. Nada degente, nada de correspondência.

Antes de chegar junto da

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motoneta, o pai terminou a históriasobre o alce.

— … então tive que dar umaporrada nele com um pé de cabraque eu tinha para abrir caixas ecoisas desse tipo. No meio dosolhos. O bicho estremeceu assime… Bem, não foi nada agradável.

— Não. Claro.Oskar entrou na carreta da

motoneta e sentou-se ajoelhado. Opai escarafunchava o bolso docolete, e tirou dali um gorro de lã.

— Aqui. Cubra as orelhas comele.

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— Não precisa, eu tenho.Oskar apanhou o próprio gorro e

o vestiu. O pai guardou o outro devolta no bolso.

— E você? Faz frio no ouvido.O pai riu.— Não precisa, estou

acostumado.Oskar sabia muito bem disso. Só

queria implicar um pouco. Não selembrava de ter visto alguma vez opai com gorro de lã. Se ficassemuito gelado e houvesse vento,podia vestir uma espécie de gorrode pele de urso com protetor de

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orelha que ele chamava de“herança”, mas não passava disso.

O pai pisou no pedal da motonetae ela roncou, parecendo umamotosserra. Ele falou alto algumacoisa sobre “ponto morto” e engatoua primeira marcha. A motoneta deuuma arrancada para a frente quequase fez Oskar cair para trás e opai exclamou “embreagem”, e entãoeles partiram.

Segunda. Terceira. A motonetacorreu pelo povoado. Oskar estavasentado de pernas cruzadas nacarreta que chacoalhava. Sentia-se

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rei de todos os reinos da terra epoderia continuar viajando assimeternamente.

Um médico lhe explicara. Os

vapores que inalara tinham corroídosuas cordas vocais e provavelmenteele nunca mais poderia falarnormalmente de novo. Uma novaoperação poderia recuperar umacapacidade rudimentar de produzirvogais, mas, já que a língua e até oslábios apresentavam lesões graves,seriam necessárias mais operações

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para recriar a possibilidade deformar consoantes.

Como ex-professor de sueco,Håkan não podia deixar de ficarfascinado com a ideia; de seproduzir língua por meio cirúrgico.

Ele sabia um bocado sobrefonemas e unidades distintivas dalíngua comuns a muitas culturas.Mas nunca refletira sobre asferramentas em si — o palato, oslábios, a língua, as cordas vocais —desse modo. Com o bisturi, talharaté formar a língua a partir de umamatéria bruta amorfa, como as

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esculturas de Rodin nasciam domármore em estado cru.

Ainda assim, é claro que nãoadiantava. Ele não ia falar. Alémdisso, suspeitava que o médicofalasse desse modo por uma razãoespecial. Håkan tinha o que sechama de propensão ao suicídio. Porisso era importante incutir nele umapercepção linear de tempo.Reproduzir a sensação de que a vidaé um projeto, um sonho deconquistas futuras.

Ele não caía nessa.Se Eli precisasse dele, Håkan

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podia pensar em continuar vivo. Docontrário, não. Nada indicava queEli precisasse dele.

Mas como é que Eli poderiaentrar em contato com ele nesselugar?

A julgar pelo topo das árvores dolado de fora da janela, eleimaginava que estava num andarbem alto. Ainda por cima, bemvigiado. Além de médicos eenfermeiras, sempre havia nomínimo um policial por perto. Elinão podia ir até ele e ele não podiair até Eli. A ideia de fugir, de entrar

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em contato com Eli pela última vez,lhe passou pela cabeça. Mas como?

A operação na garganta tornou-ocapaz de respirar de novo, ele nãoprecisava ficar acoplado aorespirador. No entanto, não podiaingerir comida pela via normal (issotambém seria resolvido, o médicolhe garantiu). O tubo do sorobalançava toda hora para lá e paracá em seu canto do campo de visão.Se Håkan arrancasse o soro,provavelmente algo começaria aapitar em algum lugar, e além domais ele enxergava muito mal.

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Fugir era algo quase impensável.Um cirurgião plástico aproveitou

para transplantar um pedaço detecido das costas de Håkan para apálpebra, para que ele pudessefechar os olhos.

Håkan fechou os olhos.A porta do quarto foi aberta.

Estava na hora de novo. Elereconheceu a voz. O mesmo homemdas outras vezes.

— Pois é — disse o homem. —Eles dizem que de qualquer jeitovocê não vai conseguir falar por umtempo. É uma pena. Mas é que

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tenho essa ideia teimosa na cabeçade que a gente podia se comunicarmesmo assim, você e eu, você sóprecisa ajudar um pouco.

Håkan tentou puxar pela memóriae lembrar o que Platão disse naRepública sobre assassinos epessoas violentas, como se deviaagir com eles.

— Bem, agora você pode tambémfechar os olhos. Isso é bom. Escute.Vou expor a situação de um modomais concreto. É que me veio àcabeça que talvez você não acrediteque vamos identificá-lo. Mas nós

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vamos. Você tinha um relógio depulso, com certeza se lembra dele.Felizmente era um relógio antigocom as iniciais do fabricante,número de série e tudo o mais.Vamos rastrear esse relógio dentrode alguns dias, de uma forma ou deoutra. Talvez demore uma semana.E há mais coisas.

Nós vamos achar você, semsombra de dúvida.

Então… Max. Não sei por quequero chamar você de Max, é sóprovisório. Max? Será que vocêgostaria de nos ajudar um pouco?

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Caso contrário, vamos ter que tiraruma foto sua e talvez deixarpublicar a foto nos jornais e… bem,você entende. Fica… tudocomplicado. Fica muito mais fácilse você falar… ou algo do tipo…comigo agora .

Você tinha um pedaço de papelcom o código morse no bolso. Vocêsabe usar o código morse? Poisnesse caso a gente pode conversarpor meio de batidas.

Håkan abriu o olho e olhou nadireção das duas manchas escurasna coisa oval branca e embaçada

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que era o rosto do homem. Pelovisto, o policial resolveu interpretaro gesto como um sinal deaprovação. Ele continuou.

— Esse homem no lago. Não foivocê quem o matou, não é? Ospatologistas disseram que as marcasde mordida na garganta foram feitasprovavelmente por uma criança . Eagora recebemos uma denúncia, queinfelizmente não posso comentarem detalhes, mas… acho que vocêestá protegendo alguém. É isso?Levante a mão se for isso.

Håkan fechou o olho. O policial

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fez um muxoxo.— O.k. Então nesse caso a gente

vai deixar a engrenagem continuarfuncionando. Não há nada que vocêqueira me dizer antes de eu irembora?

O policial estava prestes a selevantar quando Håkan levantouuma das mãos. O policial sentou-sede novo. Håkan levantou a mãomais alto. E acenou.

Tchau .O policial deixou escapar uma

espécie de grunhido, levantou-se efoi embora.

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Os ferimentos de Virginia não

tinham sido letais. Na sexta-feira àtarde ela deixou o hospital comcatorze pontos e um curativo grandeno pescoço, um menor no rosto. Elanão aceitou a oferta de Lacke paraficar com ela, morar com ela atéque ficasse melhor.

Ela tinha ido para a cama nasexta-feira à noite convencida deque iria trabalhar no sábado demanhã. Não tinha condiçõesfinanceiras de ficar em casa.

Foi difícil cair no sono. O ataque

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não saía da sua cabeça, ela nãoconseguia ter paz. Delirava vendobolos negros se despregando dassombras no teto do quarto e caindoem cima dela na cama, onde estavadeitada de olhos arregalados.Coçava debaixo do curativo grandena garganta. Lá pelas duas da manhãteve fome, foi para a cozinha e abriua geladeira.

Seu estômago estava totalmentevazio, mas, quando ela ficouolhando a comida na geladeira, nãohavia nada que quisesse comer.Mesmo assim, apanhara por força

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do hábito pão, manteiga, queijo eleite, e depositou tudo em cima damesa da cozinha.

Fez um sanduíche de queijo eencheu um copo de leite. Depois sesentou à mesa e ficou olhando parao líquido branco no copo, a fatiamarrom de pão com uma camadaamarela de queijo por cima. Tinhaum aspecto nojento. Não quis comeraquilo. Jogou fora o sanduíche ederramou o leite na pia. Nageladeira havia uma garrafa devinho branco aberta pela metade.Ela serviu-se da bebida e levou o

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copo à boca. Ao sentir o cheiro dovinho, perdeu a vontade.

Com uma sensação de derrota,encheu um copo com água datorneira. Ao levar a água à boca, elahesitou. Água, a gente semprepode…? Sim. Água, ela podiabeber. Mas ela tinha um gosto de…bolor. Como se tudo de bom com aágua tivesse sido retirado e sórestassem sedimentos chocos nela.

Foi se deitar de novo, ficou serevirando na cama por maisalgumas horas e por fim adormeceu.

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Quando Virginia acordou, eram

dez e meia. Atirou-se da cama evestiu as roupas na penumbra doquarto. Santo Deus. Devia estar nosupermercado às oito . Por que elesnão tinham ligado?

Espere aí. Ela tinha acordado comum sinal de telefone. Ele tocara emseu último sonho antes queacordasse, e depois parou dechamar. Se eles não tivessemtelefonado, ela ainda estariadormindo. Abotoou a blusa, foi paraa janela e levantou as persianas.

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A luz bateu nela como se fosseuma bofetada no rosto. Virginiarecuou tropegamente, para longe dajanela, e soltou a corda daspersianas. Elas farfalharam ao cairde novo e acabaram ficando tortas.Virginia sentou-se na cama. Umfiozinho de luz entrava pela janela,caindo em seu pé desnudo.

Um milhão de agulhas .Como se a pele fosse puxada para

dois lados diferentes ao mesmotempo; uma dor lancinante na peleexposta.

O que é isso?

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Ela tirou o pé dali e calçou asmeias. Pôs o pé na luz de novo.Apenas cem agulhas. Levantou-separa ir ao trabalho, mas sentou-sede novo.

Alguma espécie de … choque .A sensação que ela teve ao

levantar as persianas tinha sidotenebrosa. Como se a luz fosse umamatéria pesada que arremessaramno corpo dela, uma matéria que arepelia. O pior foi o que aconteceucom os olhos. Dois polegarespossantes que se afundavam neles eameaçavam espremê-los até

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pularem das órbitas. Ainda estavamardendo.

Esfregou os olhos com a palmadas mãos, apanhou os óculosescuros do armário do banheiro ecolocou-os.

A fome era avassaladora, masbastava que ela pensasse noconteúdo da geladeira e da despensapara fazer desaparecer todos ospensamentos de um café da manhã.Além do mais, ela não tinha tempo.Estava quase três horas atrasada.

Virginia saiu, trancou a porta edesceu as escadas assim que teve

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forças. Seu corpo estava fraco.Talvez ir para o trabalho fosse umerro, de qualquer jeito. Não. Omercado só ficaria aberto por maisquatro horas e era agora que osclientes do sábado começavam achegar.

Ocupada com essas questões, nãotomou cuidado ao abrir a porta doprédio.

A luz estava ali de novo.Os olhos lhe doíam apesar dos

óculos escuros, sentia como se águafervendo estivesse sendo derramadaem seu rosto e suas mãos. Deu um

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grito. Puxou as mãos para dentrodas mangas do casaco, abaixou orosto para o chão e correu para omercado. Não podia proteger opescoço e o couro cabeludo, e elesardiam como se estivessem emchamas. Felizmente o mercado nãoera longe.

Quando entrou no mercado, aardência e a dor diminuíramrapidamente. A maior parte dasjanelas da loja estava coberta comanúncios de produtos e plásticotransparente para que a luz do solnão estragasse as mercadorias. Ela

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tirou os óculos escuros. De qualquerjeito, sentia um pouco de dor, mastalvez fosse por causa das janelasque deixavam entrar luz nas junçõesentre os cartazes. Guardou os óculosescuros no bolso e foi para oescritório.

Lennart, o gerente do mercado echefe de Virginia, estavapreenchendo formulários maslevantou os olhos quando ela entrou.Virginia estava esperando serrepreendida, mas ele disse apenas:— Olá, como está?

— É… bem.

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— Você não devia estar em casadescansando?

— Não, mas eu pensei…— Não precisava. Lotten fica no

caixa hoje. Eu liguei antes, masquando você não atendeu…

— Então não há nada para eufazer?

— Dê uma olhada com Berit nasessão de charcutaria.Virginia…

— Sim?— Bem, isso que aconteceu foi

muito chato. Não sei o que dizer,mas… sinto muito. E entendo sevocê precisar pegar leve por um

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tempo.Virginia não entendeu nada.

Lennart não era o tipo de pessoacondescendente com licença médicae com os problemas das outraspessoas. E mostrar desse jeito aempatia dele era algo totalmentenovo. Ela devia estar com umaspecto horroroso com aquelabochecha inchada e os curativos.

Virginia disse: “Obrigada. Vouver que jeito eu dou”, e foi para aparte de charcutaria.

Pegou um caminho mais longo,dando a volta nos caixas para

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cumprimentar Lotten. Cincopessoas estavam esperando no caixade Lotta e Virginia achou que deviaabrir mais um caixa, apesar de tudo.A questão era se Lennart ao menosqueria que ela se sentasse no caixacom aquela cara.

Ao ser atingida pela luz da janeladescoberta atrás dos caixas,Virginia ficou daquele jeito denovo. Seu rosto repuxou, os olhosdoeram. Não era tão ruim quanto aluz direta do sol lá na rua, mas ruimo suficiente. Ela não ia conseguirficar ali.

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Lotten viu Virginia e acenouentre dois clientes.

— Oi, eu li… Como você está?Virginia levantou a mão e

balançou-a de um lado para o outro:mais ou menos .

Leu?Ela apanhou os jornais Svenska

Dagbladet e Dagens Nyheter ,levou-os para a charcutaria e passourapidamente os olhos nas primeiraspáginas. Nada ali. Bem, teria sidoum exagero.

A charcutaria estava no fundo domercado, junto dos laticínios;

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estrategicamente dispostos ali paraque os clientes fossem obrigados apercorrer a loja inteira para chegar aeles. Virginia ficou perto dasprateleiras com latas de conserva. Afome tremulava em seu corpo. Elaolhou minuciosamente todas aslatas. Purê de tomate, champignon,mariscos, atum, ravióli, salsichaBullen, sopa de ervilha… nada.Sentia apenas repulsa.

Berit avistou-a da charcutaria eacenou. Assim que Virginia foi paratrás do balcão, Berit lhe deu umabraço e cutucou de leve o curativo

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em seu rosto.— Argh. Pobrezinha.— Mas está tudo…Bem?Ela se retirou para o depósito

pequeno atrás do balcão. Sedeixasse Berit começar, ela acabariafazendo um longo sermão sobre osofrimento das pessoas em geral eespecialmente sobre a maldade nasociedade de hoje.

Virginia sentou-se numa cadeiraentre a balança e a porta dorefrigerador. O espaço era de apenasalguns metros quadrados, mas era o

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lugar mais agradável da loja. Aqui aluz do sol não chegava. Ela folheouos jornais e, numa nota do DagensNyheter na seção de assuntosnacionais, pôde ler:

MULHER ATACADA EMBLACKEBERG

Uma mulher de cinquenta anos foi atacada

e espancada na madrugada de sexta-feira emBlackeberg, subúrbio de Estocolmo. Umtranseunte interferiu e o agressor, uma mulherjovem, fugiu do local. O motivo do ataque édesconhecido. A polícia está investigandoagora possíveis relações com outros atos deviolência praticados em Västerort nas últimassemanas. Os ferimentos da mulher de

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cinquenta anos são considerados leves.

Virginia abaixou o jornal. Era tão

esquisito ler sobre si mesma.“Mulher de cinquenta anos”,“transeunte”, “leves”. Tudo o que seescondia atrás dessas palavras.

“Possíveis relações”? Bem, Lacketinha certeza absoluta de que ela foiatacada pela mesma criança quematou Jocke. Ele teve de se segurarpara não falar sobre isso no hospitalna hora em que uma policial e ummédico examinaram os ferimentosde Virginia mais uma vez na sexta

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de manhã.E l e ia contar, mas queria

primeiro informar Gösta, achou queGösta veria a coisa de outro jeitoagora que Virginia também tinhasido atingida.

Ela ouviu um farfalhar e olhouem volta. Levou alguns segundospara que percebesse que era elamesma quem produzia o barulho, jáque o jornal tremia em suas mãos.Pôs os jornais na prateleira acimados ganchos de carne e saiu paraonde Berit estava.

— Algo que eu posso fazer?

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— Mas, coração, você temcerteza?

— Tenho, é melhor eu fazeralguma coisa.

— Entendo. Então pese oscamarões. Pacotes de meio quilo.Mas você não devia …?

Virginia sacudiu a cabeça evoltou para o depósito. Vestiu umjaleco branco e gorro, apanhou umacaixa com camarões dorefrigerador, enfiou um sacoplástico na mão e começou a pesar.Revolvia com a mão revestida doplástico a caixa de camarões,

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transferia-os para saquinhos, pesavana balança. Um trabalho chato,mecânico, e ela já sentia a mãodireita congelada no quarto pacote.Mas estava fazendo alguma coisa eisso dava a ela um tempo para poderpensar.

De madrugada, no hospital, Lackedissera uma coisa bem estranha: quea criança que a atacou não era umser humano. Tinha dentes pontudose garras.

Virginia naturalmente rejeitouessa descrição como sendo umproduto de bebedeira ou de

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alucinação.Não se lembrava muito bem do

ataque. Mas uma coisa podiaaceitar: aquilo que tinha pulado emcima dela era leve demais para serum adulto, leve demais para sersequer uma criança. Uma criançamuito pequena, nesse caso. Decinco, seis anos. Ela lembrou que selevantou com o peso nas costas.Depois disso, tudo escureceu atéVirginia acordar em casa com todaa turma, menos Gösta, em voltadela.

Ela grampeou um pacote pronto,

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apanhou o próximo, despejou unspunhados de camarão. Quatrocentose trinta gramas. Mais sete camarões.Quinhentos e dez.

Isso aí vai de presente .Ela olhou para as mãos que

trabalhavam independentemente docérebro. Mãos. Com unhascompridas. Dentes afiados. Quecoisa era aquela? Lacke disse semrodeios. Um vampiro. Virginia tinharido, com cuidado, para nãoarrebentar os pontos no rosto. Lackenão tinha nem sequer dado umsorriso.

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— Você não viu a coisa.— Mas Lacke… essas coisas não

existem .— É. Mas então o que era aquilo?— Uma criança. Com uma

imaginação doentia.— E que deixou as unhas

crescerem? E afiou os dentes? Eugostaria de ver o dentista que…

— Lacke, estava escuro. Vocêestava bêbado, estava…

— É verdade. Eu estava. Mas foiisso mesmo que vi.

Estava quente e a pele repuxavaembaixo do curativo em sua

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garganta. Ela tirou o saco plásticoda mão direita e pôs a mão em cimado curativo. A mão estava gelada ea sensação foi boa. Mas Virginiaestava totalmente esgotada, pareciaque suas pernas não podiamcarregá-la por muito mais tempo.

Ela terminaria essa caixa e depoisiria para casa. Assim não dava. Sedescansasse no final de semana,com certeza estaria melhor nasegunda-feira. Enfiou o sacoplástico na mão e continuoutrabalhando com um pouco de raiva.Odiava ficar doente.

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Uma dor forte no indicador.Merda. É isso o que acontecequando não se está concentrado. Oscamarões cortavam quando estavamcongelados e ela se machucara.Tirou o saco plástico e olhou para oindicador. Um corte pequeno deonde o sangue começava a sair.

Ela enfiou automaticamente odedo na boca para sugar o sangue.

Uma mancha quente, terapêutica,de gosto bom se alastrou a partir deonde a ponta do dedo encostou nalíngua e se multiplicou. Ela sugou odedo com mais força. Todos os

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sabores bons em forma concentradaencheram a boca de Virginia. Umarrepio de deleite percorreu seucorpo. Ela não parava de sugar odedo, entregou-se ao prazer até vero que estava fazendo.

Arrancou o dedo da boca e ficouolhando para ele. Estava molhadode saliva e a pequena quantidade desangue que saía agora se dissolviana saliva parecendo tinta deaquarela diluída em demasia. Olhoupara os camarões na caixa. Centenasde corpinhos rosados, cobertos degelo. E olhos. Pontinhos pretos

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espalhados no branco e no rosa, umcéu estrelado ao avesso. Figuras,constelações começaram a dançarna frente dos olhos dela.

O mundo girava em torno do seueixo e alguém bateu em sua nuca.Diante dos seus olhos, umasuperfície branca com teias dearanha nos cantos. Entendeu queestava caída no chão, mas não tinhaforças para fazer nada a respeito.

Ela ouviu a voz de Berit distante:“Meu Deus… Virginia…”.

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Jonny gostava de ficar com oirmão mais velho. Contanto que osamigos terríveis do irmão nãoestivessem junto. Jimmy conheciauma gente de Råcksta que davabastante medo em Jonny. Umanoite, alguns anos atrás, eles tinhamaparecido no prédio para ter umaconversa com Jimmy, mas nãoquiseram subir nem bater na porta.Quando Jonny lhes contou queJimmy não estava em casa, elespediram que ele transmitisse umrecado.

“Diga ao seu irmão que se ele não

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aparecer com a grana até segundaalguém vai enfiar a cabeça dele numtorno… você sabe o que é umtorno?… Certo… e virar assim até agrana escorrer dos ouvidos dele.Você poder dizer isso? O.k., muitobem. Você é o Jonny, certo? Tchau,Jonny.”

Jonny deu o recado e Jimmy tinhaapenas balançado a cabeça, dito queele sabia. Depois sumiu dinheiro dacarteira da mãe e foi uma confusãodaquelas.

Jimmy não parava muito em casanos últimos tempos. É que não

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havia espaço para ele desde que aúltima irmãzinha nasceu. Jonny játinha duas irmãs menores e maiscrianças não estavam nos planos.Mas a mãe tinha encontrado umcara e… bem… acabou dando nisso.

Em todo caso, Jonny e Jimmyeram filhos do mesmo pai. Eletrabalhava atualmente numaplataforma petrolífera na Noruega enão apenas começou a mandar apensão direitinho, como tambémum pouco de dinheiro extra comocompensação. A mãe elogiava o paidos meninos e, uma vez que ficou

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bêbada, ela chorara por causa dele edisse que não acharia nunca maisum homem desses. Pela primeiravez em muito tempo, Jonny podiadizer que falta de dinheiro não eraum assunto constante em casa.

Agora eles estavam na pizzaria dapraça de Blackeberg. Jimmy tinhadado um pulo em casa na parte damanhã e brigado um pouco com amãe; depois saiu com Jonny. Jimmyespalhou a salada em cima da pizza,enrolou a massa, segurou o rologrande nas mãos e começou acomer. Jonny comia sua pizza do

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jeito de sempre, e pensou que, dapróxima vez em que fosse comerpizza sem Jimmy, iria comerdaquele jeito.

Jimmy mastigava a pizza, eapontou com a cabeça para ocurativo em cima do ouvido deJonny. — Está muito feio.

— É.— Dói?— Não muito.— A mãe disse que o ouvido está

totalmente estragado. Que você nãovai poder ouvir mais nada.

— Que nada. Eles não sabiam.

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Pode ficar bom.— Ahã. Bem, será que eu entendi

direito? O garoto pegou um galhoenorme e bateu com ele em suacabeça?

— Ahã.— Mas que sacanagem. E então?

O que você vai fazer a respeito?— Não sei.— Precisa de ajuda?— … não.— Como não? Posso trazer uns

dos meus amigos e aí a gente pega omoleque.

Jonny arrancou um pedaço grande

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com camarões da pizza dele, a partefavorita, enfiou-o na boca emastigou. Não. Não queria envolveros amigos de Jimmy nessa história,então a coisa podia ficar fora decontrole. Ainda assim, gostou deimaginar Oskar morrendo de medoao ver Jonny aparecendo no prédiodele com Jimmy e ainda mais comaquela gente de Råcksta. Sacudiu acabeça.

Jimmy pôs o rolo de pizza noprato e olhou seriamente nos olhosde Jonny.

— O.k., mas eu só vou dizer uma

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coisa. Mais um troço desses, e…Estalou os dedos com força e

cerrou o punho.— Você é meu irmão e não vai

ser nenhum filho da mãe que…Mais um troço desses, depois vocêpode dizer o que for. Mas eu pego omoleque. Certo?

Jimmy bateu o punho cerrado emcima da mesa. Jonny cerrou o dele eficou socando o de Jimmy. Isso erabom. Ter alguém que se preocupacom a gente. Jimmy balançou acabeça.

— Certo. Tenho uma coisa para

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você.Ele se curvou para debaixo da

mesa e apanhou um saco plásticoque ficou carregando a manhã toda.De dentro do saco, tirou um álbummagro de fotografias. — O paipassou por aqui na semana passada.Ele está com barba, quase não oreconheci. Trouxe isso aqui.

Jimmy entregou o álbum paraJonny por cima da mesa. Jonnylimpou os dedos num guardanapo eabriu o álbum.

Fotos de crianças. Da mãe.Talvez dez anos mais nova. E de um

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homem que ele reconhecia comosendo seu pai. O homem empurravaas crianças nos balanços. Numa fotoele estava com um chapéu de caubóipequeno demais na cabeça. Jimmy,talvez com nove anos, estava aolado dele segurando um revólver deplástico e com uma cara enfezada.Um menininho que devia ser Jonnyestava sentado no chão olhando deolhos arregalados para eles.

— Ele deixou comigo. Voudevolver na próxima vez que agente se encontrar. Queria levar oálbum de volta, disse que era… pô,

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o que foi que ele disse mesmo…que era “o bem mais precioso queele tinha”, acho que foi isso. Eupensei que talvez você tambémtivesse interesse.

Jonny assentiu sem tirar os olhosdo álbum. Só encontrara o pai duasvezes desde que ele saíra de casa naépoca em que Jonny tinha quatroanos. Em casa havia uma fotografiadele, uma foto bastante ruim em queo pai estava sentado com outraspessoas. Essas fotos eramtotalmente diferentes. Aqui davapara imaginar como ele era como

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pessoa.— Mais uma coisa. Não vá

mostrar isso para a mãe. Acho que opai surrupiou isso aí quando saiu decasa e se ela descobrir… bem, elegostaria de ficar com o álbum.Prometa-me isso. Que não vaimostrar para a mãe.

Ainda com o nariz enfiado noálbum, Jonny cerrou o punho e ficoucom ele acima da mesa. Jimmy deuuma risada e um pouco mais tardesentiu os nós dos dedos de Jimmyencostados nos dele. Prometo.

— Escuta, você pode olhar isso aí

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depois. Leva a sacola também.Jimmy mostrou a sacola; Jonny

fechou relutantemente o álbum e oenfiou na mochila. Jimmy acabou apizza, recostou-se na cadeira e deuum tapinha na barriga.

— E então? Como é que vai indocom as meninas?

O povoado passava voando por

ele. A neve que subia das rodas damotoneta espirrava para trás ebombardeava as bochechas deOskar. Ele segurava com força o

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cabo de zimbro com as mãos;inclinou-se para o lado, para sair danuvem de neve. Um barulho forte dearranhão quando os esquisatravessavam a neve solta e rala. Aparte externa do esqui roçou numpino de reflexo no acostamento. Elecambaleou, mas recuperou oequilíbrio.

No caminho para Lågarö e para ascasas de veraneio, a neve não tinhasido retirada. A motoneta deixavatrês marcas fundas na camada lisade neve e, cinco metros atrás, vinhaOskar nos esquis, e fazia mais duas

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marcas no chão. Ele andava emzigue-zague em cima do rastro dasrodas da motoneta, andava numesqui só que nem um bailarino dogelo, encolhia-se todo virando umabolinha de velocidade.

Bem, quando o pai reduziu amarcha ao descer a ladeiracomprida em direção ao velho píerdos barcos a vapor, a velocidade deOskar estava maior que a damotoneta. Ele foi obrigado adiminuir a marcha com jeito paraque a corda não afrouxasse, o queresultaria num arrancão quando a

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ladeira ficasse menos íngreme e avelocidade do veículo aumentasse.

A motoneta foi descendo até opíer e o pai pôs em ponto morto episou no freio. Oskar ainda estavaem alta velocidade e por um breveinstante pensou em largar o cabo econtinuar … Ultrapassar a beira dopíer e cair na água negra. Mas virouos miniesquis para dentro e freoualguns metros antes da beira.

Ficou ofegante por um tempo,contemplando a água. Porções degelo fino tinham começado a seaglomerar, estavam ali oscilando

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com as ondinhas na beira da praia.Talvez o mar congelasse esse ano.Então a gente podia passear pelaágua congelada e ir até Vätö, dooutro lado. Ou será que elescostumavam manter um caminhoaberto para Norrtälje? Oskar nãolembrava, fazia anos que a água nãocongelava desse jeito.

Quando Oskar ficava na casa dopai no verão, costumava pescarsardinha aqui no píer. Ganchospendurados na linha do anzol decarretilha, outro anzol lá na ponta.Se cruzasse com um cardume

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grande, podia acabar pescandoalguns quilos se tivesse paciência,mas na maioria das vezes a pescariaficava em dez, quinze peixes. Osuficiente para o jantar, os peixespequenos demais para fritar iampara o gato.

O pai veio e parou ao lado dele.— Correu tudo bem, não é?— Ahã. Mas às vezes os esquis

roçavam no chão.— É, a neve está um pouco solta

demais. A gente podia fazer a neveficar compacta de algum modo. Agente podia… se a gente pegasse

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uma tábua de compensado e pusesseatrás do carro, com um peso emcima. Isso, se você se sentasse natábua e fizesse peso nela, então…

— Vamos fazer?— Não, hoje não, fica para

amanhã. Vai escurecer daqui apouco. A gente precisa ir para casa epreparar o pato, senão o jantar nãosai.

— O.k.O pai contemplou o mar e ficou

calado um instante.— Oskar, eu fiquei pensando

numa coisa.

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— No quê?Agora vinha. A mãe dissera a

Oskar que tinha mandado o pai falarcom ele sobre aquilo com Jonny. Naverdade, Oskar realmente queriafalar sobre isso. O pai estava bemdistante de tudo, não ia interferir deforma alguma. O pai pigarreou,reuniu as forças. Suspirou. Olhoupara o mar. Disse em seguida: —Bem, eu estava pensando… vocêtem patins de gelo?

— Não. Nenhum que sirva.— Sei. Bem, se a água congelar

no inverno, e parece que vai… então

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é legal ter patins. Eu tenho.— Eles não devem servir.O pai bufou e deu uma espécie de

risada.— É, mas… O filho de Östen

tinha um par que estava pequenodemais para ele. Trinta e nove. Qualseu número?

— Trinta e oito.— Certo, mas com meias grossas

de lã… Então vou pedir para ficarcom eles.

— Tudo bem.— Bem. Isso aí. Vamos para casa

então?

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Oskar assentiu. Talvezconversassem mais tarde. Isso dospatins era uma boa ideia. Se dessepara pegá-los no dia seguinte, elepodia levá-los para a cidade.

Ele foi de miniesquis para ogalho de zimbro, andou para trás atéa corda ficar esticada e deu sinalverde para o pai, que pisou no pedal.Tiveram de ir na primeira marchaao subir a ladeira. A motonetaroncava tanto que gralhasassustadas levantaram voo do topode um pinheiro.

Oskar subia deslizando devagar,

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como num teleférico de esqui, como corpo ereto e as pernas bem juntasuma na outra. Não pensava em nada,a não ser em manter os esquis nastrilhas já feitas para evitar de roçarno chão. Enquanto iam para casa, ocrepúsculo se intensificava.

Lacke descia as escadas vindo da

praça com uma caixa de chocolateAladdin enfiada no cós das calças.Não gostava de afanar coisas, masnão tinha dinheiro e queria dar algoa Virginia. Também gostaria de

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levar algumas rosas, mas não é fácilsurrupiar numa floricultura.

Já estava escuro e, ao chegar àladeira para a escola, ele hesitou.Olhou ao redor, raspou com os pés aneve do chão e achou uma pedra dotamanho de um punho fechado quechutou e guardou no bolso; depoisficou segurando-a. Não porque eleachasse que a pedra ajudaria para sedefender daquilo que vira, mas opeso e o frio dela faziam Lacke sesentir um pouco mais protegido.

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As investigações de Lacke nopátio dos prédios não tinham dadonenhum resultado a não ser olharesdesconfiados e vigilantes de paisque faziam bonecos de neve com osfilhos. Velho tarado.

É, foi só quando ele abriu a bocapara falar com uma mulher queestava sacudindo a poeira dostapetes que entendeu como seucomportamento devia ser esquisito.A mulher parou de limpar e se viroupara ele com o batedor de tapetes namão, como se empunhasse umaarma.

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— Com licença — disse Lacke.— É que… eu queria saber de umacoisa… estou procurando umacriança.

— Sim?Pronto. Ele mesmo ouviu como

tinha soado e isso o deixou aindamais inseguro. — É, ela está…desaparecida. Queria saber sealguém viu a menina aqui.

— É sua filha?— Não, mas…À exceção de alguns

adolescentes, Lacke desistiu de falarcom pessoas que não conhecia. Ou,

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em todo caso, que não reconhecia.Cruzou com alguns conhecidos, maseles não tinham visto nada. Procurae encontrarás, com certeza. Masentão a gente precisa saber o queestá procurando, exatamente.

Lacke chegou ao caminho do

parque que ia para a escola e olhoude relance para a passagem deJocke.

A notícia teve um destaquegrande no jornal do dia anterior,mais por causa do modo macabro

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como tinham encontrado o corpo.Do contrário, um pé de canaassassinado não era grande coisapara os jornais, mas a imprensa deudestaque às crianças que viram ocorpo, aos bombeiros que tiveramque serrar o gelo e assim por diante.Ao lado do texto havia uma foto dopassaporte de Jocke, em que eleestava parecendo um serial killer ,no mínimo.

Lacke continuou andando epassou pela fachada sombria daescola de Blackeberg, a escada altade degraus largos, parecia a entrada

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do palácio da justiça ou do inferno.Na parede perto do degrau maisbaixo, alguém tinha pichado “IronMaiden”, sabe-se lá o que era isso.Talvez algum conjunto.

Ele passou pelo estacionamento esaiu na Björnsonsgatan.Normalmente teria pegado umatalho atrás da escola, mas aliestava… escuro. Ele ficouimaginando aquele ser encolhido alino meio das sombras. Olhou para otopo dos pinheiros que margeavamo caminho. Havia bolos escurosdentro da ramagem. Provavelmente

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ninhos de aves.Não era só a aparência daquela

criatura, mas também o jeito comoela atacava. Talvez, quem sabe ,Lacke pudesse aceitar que aquilocom os dentes e com as garras tinhauma explicação natural, se não fossepelo pulo dado da árvore. Antes queVirginia fosse levada para casa, eletinha olhado para o alto da árvore.Os galhos de onde a criatura deviater pulado estavam a uns cincometros de altura.

Cair cinco metros assim nascostas de alguém, se a gente ainda

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acrescentasse “artista de circo” àsoutras coisas para ter umaexplicação “natural”, talvez aí sim.Mas, nesse caso, a coisa toda era tãoabsurda quanto o que dissera paraVirginia aquela noite, algo de queagora se arrependia…

Merda …Tirou a caixa de chocolate das

calças. Será que o calor do corpo jáestragara ou derretera o chocolate?Balançou a caixa para conferir. Não.Chacoalhou lá dentro. O chocolatenão tinha virado uma papa. Lackecontinuou pela Björnsonsgatan e

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passou pelo mercado ica, com acaixa de chocolate na mão.

molho de tomate. três latas: 5coroas.

Seis dias atrás .Lacke ainda segurava a pedra

dentro do bolso. Olhou para o cartaze pôde ver a mão de Virginia semexendo para produzir num passede mágica as letras simétricas eretas. Será que ela estava em casadescansando hoje? Seria bem seuestilo ir cambaleando para otrabalho antes mesmo de o sangueter coagulado.

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Já em frente ao prédio deVirginia, ele olhou para a janeladela lá em cima. Tudo apagado.Será que ela estava na casa da filha?Pode ser. Em todo caso, ia subir edeixar a caixa de chocolates naporta se ela não estivesse em casa.Estava escuro na portaria do prédio.Os pelos do pescoço de Lackeficaram arrepiados.

A criança está aqui .Ele ficou absolutamente imóvel

durante uns segundos, lançou-sedepois para o ponto vermelho dointerruptor de luz e o apertou com o

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dorso da mão que segurava ochocolate. A outra mão apertavafirmemente a pedra no bolso.

Um clique fraco veio dointerruptor do porão quando a luz seacendeu. Nada. A portaria deVirginia. A escada amarela decimento com um desenho queparecia vômito. Portas de madeira.Lacke respirou fundo algumas vezese pôs-se a subir as escadas.

Só agora sentiu como estavacansado. Virginia morava lá emcima, no terceiro andar, e as pernasde Lacke se arrastavam pela escada,

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dois pedaços de pau sem vidapregados no quadril. Esperava queVirginia estivesse em casa, queestivesse bem, que ele pudesse seafundar em sua poltrona e descansarno lugar onde mais queria estarneste mundo. Largou a pedra nobolso e apertou a campainha.Esperou um instante. Apertou denovo.

Já começara a tentar equilibrar ochocolate na maçaneta quandoouviu passos na ponta dos pésvindos de dentro do apartamento.Lacke se afastou da porta. Lá dentro

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os passos pararam. Ela estavacolada na porta, do outro lado.

— Quem é?Nunca, nunca ela perguntara

desse jeito. A gente tocava acampainha; tac, tac, ouviam-se ospassos dela e a porta era aberta.Entre, entre. Ele tossiu, limpando agarganta. — Sou eu.

Uma pausa. Será que ele estavaouvindo a respiração dela ou eraapenas fruto da sua imaginação?

— O que você quer?— Ver como você está, só isso.Pausa de novo.

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— Não estou bem.— Posso entrar?Ele esperou. Segurava a caixa de

chocolates com as duas mãos numapose ridícula. Um estalo quando afechadura foi aberta, o tilintar daschaves quando a trava de segurançafoi girada. Mais um chacoalharquando a corrente foi retirada dogancho. A maçaneta foi pressionadapara baixo e a porta se abriu.

Ele deu sem querer meio passopara trás, sua região lombar bateuna ponta do corrimão da escada.Virginia estava na porta. Tinha cara

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de quem está morrendo.Além das bochechas inchadas,

seu rosto estava coberto de eczemasbem pequenos e os olhos pareciamestar curtindo a ressaca do século.Uma rede densa de linhas vermelhasriscava-lhe o branco dos olhos e aspupilas tinham quase sumido. Elaacenou com a cabeça. — Estou comuma cara horrível.

— Não, imagine. Eu só… acheique… posso entrar?

— Não. Não tenho ânimo paranada.

— Já foi ao médico?

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— Eu vou. Amanhã.— Certo. Aqui, eu…Ele entregou a caixa de

chocolates que estava segurando otempo todo à sua frente como sefosse um escudo. Virginia apanhouo presente. — Obrigada.

— Virginia? Não há nada que eupossa…

— Não. Vai ficar tudo bem. Sópreciso descansar. Não aguentoficar em pé aqui na porta. Até logo.

— O.k. Eu venho…Virginia fechou a porta.— … amanhã.

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O tilintar da fechadura e dascorrentes de novo. Ele continuou nafrente da porta de braços caídos.Depois foi para junto da porta ecolou o ouvido nela. Ouviu umarmário sendo aberto, passos lentosdentro do apartamento.

O que eu posso fazer?Não competia a ele obrigá-la a

fazer algo que ela não queria, masele preferia ter levado Virginiaagora para o hospital. Ia voltaramanhã de manhã. Se ela estivessena mesma, então iria carregá-la parao hospital, ela querendo ou não.

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Lacke desceu pela escada, umpasso de cada vez. Estava muitocansado. Ao chegar ao últimopatamar da escada antes da portaria,sentou-se no degrau de cima eenterrou a cabeça nas mãos.

Sou eu … o responsável por isso .A luz se apagou. Os tendões do

seu calcanhar se contraíram, elerespirou fundo. Era só o interruptor.Tinha um timer . Sentado naescuridão da escadaria, tirou comcuidado a pedra do bolso, deixou-aem cima das mãos e ficou olhandopara a frente no escuro.

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Pode vir , pensou ele. Pode vir .

Virginia deixou do lado de fora a

expressão de súplica no rosto deLacke, trancou e passou a correntena porta. Não queria que ele a visse.Não queria que ninguém a visse. Játinha sido um grande esforço dizeras palavras que ela disse, sustentaralgum tipo de normalidade básica.

Seu estado piorou rapidamentedesde que chegou do trabalho noica. Lotten ajudou-a a ir para casa e,em seu estado de embotamento,

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Virginia aguentou a dor que a luz dosol lhe causava no rosto. Uma vezem casa, ela tinha olhado no espelhoe visto as centenas de bolhasminúsculas em sua cara e no dorsodas mãos. Queimaduras.

Ela dormiu algumas horas eacordou depois que escureceu. Afome tinha então se transformadoem aflição. Um cardume decarapaus que se debatiam em suacorrente sanguínea. Não conseguiaficar deitada, nem sentada, nem empé. Andava de um lado para o outrono apartamento, seu corpo todo

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coçava, tomou um banho frio paraaliviar a sensação de inquietação, dedesassossego. Nada disso ajudou.

Não dava para explicar.Lembrava quando ela, aos vinte edois anos, recebeu a notícia de que opai tinha caído do teto da casa deveraneio e quebrado o pescoço.Naquela ocasião também ficouandando de um lado para o outro,como se não houvesse nenhum lugarno mundo onde o corpo pudesseficar em que ela não sentisse dor.

Era a mesma coisa agora, maspior. A aflição e a angústia não se

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aquietavam nem por um instante.Fizeram Virginia ficar zanzandopelo apartamento até que nãotivesse mais forças, até se sentarnuma cadeira e bater a cabeça namesa da cozinha. Num ato dedesespero, tomou duas pílulas deRohypnol que desceram com umgole de vinho branco que tinhagosto de sarjeta.

Normalmente uma era suficientepara que Virginia adormecessecomo se tivesse recebido umapaulada na cabeça. O único efeitoagora era um enjoo enorme, e

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depois de cinco minutos elavomitou uma gosma verde e as duaspílulas digeridas pela metade.

Continuou andando de um ladopara o outro, picou um jornal empedaços bem pequenos, arrastou-sepelo chão e chorou de tantaangústia. Foi de quatro para acozinha e arrancou a garrafa devinho de cima da mesa, de formaque o vidro caiu no chão e seespatifou à sua frente.

Ela apanhou um dos cacospontudos.

Não pensou. Apenas pressionou a

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ponta do vidro na palma da mão e ador melhorou, agora uma dor deverdade. O cardume de carapaus emseu corpo saiu em disparada para oponto da dor. Veio o sangue. Elaapertou a palma da mão nos lábios elambeu, sugou e a aflição diminuiu.Chorou de alívio enquanto furava amão num lugar novo e continuou asugar. O sabor do sangue semisturou ao das lágrimas.

Encolhida no chão da cozinha,com a mão pressionada na boca,sugando com a sofreguidão de umrecém-nascido que encontra pela

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primeira vez o seio da mãe, Virginiase sentiu tranquila nesse diahorrível.

Um pouco mais de meia horadepois de ela ter se levantado dochão, varrido os cacos de vidro eposto um esparadrapo na mão, aaflição começou a aumentar denovo. Foi então que Lacke apertou acampainha.

Depois de ter rejeitado acompanhia dele e trancado a porta,Virginia foi para a cozinha guardara caixa de chocolate na despensa.Sentou-se numa cadeira e tentou

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entender. A aflição não deixou. Nãodemorou muito e ela precisou ficarem pé de novo. A única coisa quesabia era que ninguém podia ficarali com ela. Especialmente Lacke.Ela iria machucá-lo. A aflição iriaobrigá-la.

Ela pegara alguma doença. E paradoenças existem remédios.

Amanhã ia procurar um médico,um médico que a examinasse edissesse: bem, é só um acesso dissoe daquilo. Vou receitar um remédiodurante umas semanas. E então vocêvai melhorar.

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Virginia andava de um lado parao outro no apartamento. Estavacomeçando a ficar insuportável denovo.

Bateu nos braços e nas pernas,mas os peixinhos tinham acordadode novo e nada adiantava. Ela sabiao que precisava fazer. Chorou umpouco por causa do medo da dor.Mas a dor era bem rápida e o alívio,bem grande.

Foi para a cozinha e apanhou umafaquinha afiada de fruta, sentou-seno sofá da sala e pousou a lâmina naparte de dentro do antebraço.

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Era só para aguentar essa noite.Amanhã ia procurar ajuda. É claroque não podia continuar desse jeito.Bebendo o próprio sangue. É claro.Isso tinha de mudar. Mas agora,provisoriamente…

A saliva encheu sua boca,expectativa molhada. Ela fez umcorte. Profundo.

Sábado, 7 de novembro(noite)

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Oskar tirou a mesa e o pai lavouos pratos. O pato estava umadelícia, é claro. Nada de balas dechumbo. Não havia muito o quelavar nos pratos. Depois de teremcomido quase tudo da ave e quasetoda a batata, passaram pão nospratos. Essa era a parte maisgostosa. Derramar só o molho noprato e sugá-lo com o pão brancoporoso que se desmanchava pelametade embebido no molho edepois derretia na boca.

O pai não era propriamente “bomna cozinha”, mas preparava tantas

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vezes três pratos —pytt-i-panna ,sardinha frita e ave marinha — queacabaram virando sua especialidade.Amanhã seria pytt-i-panna com osrestos da batata e da ave.

Oskar passou a hora anterior aojantar em seu quarto. Ele tinha umquarto na casa do pai que era bemsimples em comparação com seuquarto na cidade, mas Oskar gostavadele. No quarto da cidade haviapôsteres e retratos, um monte decoisas, o quarto mudava o tempotodo.

Esse quarto nunca mudava e era

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exatamente disso que ele gostava.Parecia o mesmo de quando

Oskar tinha sete anos. Quando eleentrava nesse quarto, com aquelecheiro familiar de umidade pairandono ar depois de um aquecimentorápido antes da sua chegada, eracomo se nada tivesse acontecidodesde… muito tempo.

Aqui ainda havia gibis do PatoDonald e do Bamse[7] compradosem vários verões. Não lia maisesses gibis na cidade, mas aqui sim.Conhecia as histórias de cor esalteado, mas lia tudo de novo.

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Enquanto os aromas da cozinhaiam penetrando no quarto, ele ficoudeitado na cama lendo um númeroantigo do Pato Donald. O pato, seussobrinhos e o Tio Patinhas viajarampara uma terra distante onde nãoexistia dinheiro e as chapinhas dasgarrafas com a bebida calmante doTio Patinhas tinham virado algoprecioso.

Depois que acabou de ler, ficouremexendo nas iscas artificiais, nosanzóis e nas chumbadas queguardava numa caixa antiga decostura que o pai lhe dera. Amarrou

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uma linha nova com ganchosavulsos, cinco, e pendurou o anzolpara pescar sardinha no verão.

Em seguida comeu e, quando opai acabou de lavar louça, elesjogaram jogo da velha.

Oskar gostava de ficar sentadoassim com o pai; o papelquadriculado em cima da mesaestreita, a cabeça dos dois curvadasobre o papel, uma perto da outra. Ofogo crepitando na lareira.

Oskar fazia cruz e o pai, círculos,como sempre. O pai nunca deixouOskar ganhar de propósito e, até

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alguns anos atrás, jogava melhorque ele, embora o menino ganhasseuma partida ou outra de vez emquando. Mas agora os resultadosestavam mais equilibrados. Talvezisso se devesse ao fato de Oskar terpraticado bastante com o cubo deRubik.

As partidas podiam se estender epegar mais da metade do papel, oque era bom para Oskar. Ele tinha amemória boa e guardava os lugarescom buracos vazios que podiam serpreenchidos se o pai fizesse isso ouaquilo, disfarçava um avanço de

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defesa.Nesta noite foi Oskar quem

ganhou.Três partidas seguidas tinham

recebido a letra “O” no meio.Apenas uma pequena, em que Oskarficara distraído pensando em outrascoisas, tinha recebido um “P”.Oskar fez uma cruz e ficou comduas fileiras abertas de quatrocruzes em que o pai só podiabloquear uma. O pai fez um muxoxoe sacudiu a cabeça.

— Vejam só, pelo visto encontreialguém capaz de me superar.

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— Parece que sim.Só para constar, o pai bloqueou

uma das fileiras e Oskar preencheua outra. O pai fechou um dos ladosda fileira e Oskar fez a quinta cruzna outra ponta, circulou tudo eescreveu um “O” com capricho. Opai coçou a barba incipiente efolheou o caderno até achar umafolha nova. Mostrou a caneta emriste.

— Dessa vez eu ganho…— Sonhar não custa nada. Você

começa.

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Havia quatro cruzes e três

círculos feitos no papel quandobateram na porta. Logo depois elafoi aberta e ouviram-se estampidosabafados de alguém tirando a nevedos pés.

— Ô de casa!O pai levantou os olhos do papel,

recostou-se na cadeira e espiou nocorredor. Oskar apertou os lábios.

Não .O pai acenou com a cabeça para o

recém-chegado. — Oi, entre.— Obrigado.

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Passos macios desajeitados dealguém que atravessava o corredorcom meias de lã grossa nos pés. Umsegundo mais tarde, Janne entrou nacozinha e disse: — Ora, ora. Aquiestão vocês sentados no aconchego.

O pai fez um gesto na direção deOskar. — Bem, você já conhecemeu garoto.

— Claro — disse Janne. — Olá,Oskar. Tudo certo?

— Tudo.Até agora . Vá embora daqui .Janne foi com passos pesados

para a mesa da cozinha, suas meias

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de lã tinham escorregado e estavamno calcanhar, sobrando na frente dosdedos do pé, parecendo nadadeirasdeformadas. Ele puxou uma cadeirae se sentou.

— Ah… então vocês estãojogando jogo da velha.

— É, mas o garoto ficou bomdemais. Não consigo mais ganhardele.

— É, é isso aí. Ele deve terpraticado na cidade, certo? Temcoragem de jogar uma partidacomigo, Oskar?

Oskar sacudiu a cabeça. Ele nem

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sequer queria olhar para a cara deJanne, sabia o que ia ver. Olhosembotados, uma boca arreganhadacom um sorriso abobalhado, é,Janne parecia um carneiro velho, e ocabelo louro e cacheado sóacentuava essa impressão. Um dos“amigos” do pai que eram inimigosdo Oskar.

Janne esfregou as mãos uma naoutra, produzindo um som queparecia o de uma lixa e, à contraluzdo corredor, Oskar viu restos depele seca caírem no chão. Jannetinha uma espécie de doença de pele

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que especialmente no verão deixavaseu rosto igual a uma laranja podre.

— E então. Aqui vocês estão noquentinho.

Você sempre diz isso . Saia daquie leve sua cara nojenta e suaspalavras repetidas .

— Pai, a gente não vai acabar dejogar?

— Vamos, mas quando chegavisita…

— Podem continuar jogando.Janne se recostou na cadeira e

parecia ter todo o tempo do mundo.Mas Oskar sabia que a batalha

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estava perdida. Agora era o fim.Agora nada ia mudar.

Ele queria gritar, quebrar tudo, depreferência Janne, na hora que o paifoi para a despensa apanhar agarrafa. Pegou dois copos deaguardente e os depositou em cimada mesa. Janne esfregou as mãos, oque fez as escamas de peledançarem no ar.

— Vejam só. O que temos aqui…Oskar olhou para o papel com a

partida inacabada.Ali ele deveria ter feito a próxima

cruz.

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Mas não haveria mais cruzes hojeà noite. Nada de círculos. Nadamais.

Um glug-glug débil veio dagarrafa quando o pai serviu abebida. O cone de vidro de cabeçapara baixo encheu-se do líquidotransparente. O copo era bempequeno e frágil na mão grossa dopai. Quase desaparecia.

Ainda assim destruía tudo. Tudo.Oskar amassou o papel da partida

inacabada e jogou a bola no fogo. Opai não protestou. Ele e Jannetinham começado a falar sobre

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algum conhecido dos dois que tinhaquebrado a perna. Passaram a falarsobre outras fraturas que elestiveram ou de que ouviram falar eencheram de novo os copos.

Oskar continuou sentado nafrente da lareira com a portinholaaberta olhando o papel pegar fogo,ficar negro. Depois apanhou asoutras partidas e também asqueimou.

O pai e Janne levaram o copo e agarrafa para a sala, o pai dissealguma coisa para Oskar do tipo“venha conversar um pouco” e

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Oskar disse “talvez, depois”. Oskarcontinuou sentado na frente dalareira olhando para o fogo. O caloracariciava-lhe o rosto. Ele selevantou, apanhou o caderno defolhas quadriculadas da mesa dacozinha, arrancou dele as folhas nãousadas e jogou tudo no fogo. Depoisque o caderno inteiro com capa etudo ficou carbonizado, Oskarapanhou um lápis e também o jogouno fogo.

Havia algo de especial com o

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hospital, assim tarde da noite. MaudCarlberg estava na recepçãocontemplando o hall de entradaquase vazio. A cafeteria e oquiosque estavam fechados;algumas poucas pessoas se moviamparecendo fantasmas sob o teto alto.

A essa hora da noite Maudgostava de imaginar que ela e só elaé quem tomava conta do enormeprédio do Hospital de Danderyd. Éclaro que isso não era verdade. Casosurgisse algum problema, ela sóprecisava apertar um botão e umguarda se materializava em no

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máximo três minutos.Havia uma brincadeira que Maud

costumava fazer para matar o tempoquando era tarde da noite: escolhiauma profissão, um lugar de moradiae uma história rudimentar para umapessoa. Talvez alguma doença.Depois aplicava essa história àprimeira pessoa que fosse até ela.Muitas vezes o resultado era…divertido.

Por exemplo, podia imaginar umpiloto que morava na Götgatan etinha dois cachorros que umavizinha tomava conta quando ele

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estava viajando. A vizinha tinhauma paixão secreta pelo piloto. Ogrande problema do piloto era queele via criaturinhas verdes comgorros vermelhos de pompom naponta flutuando nas nuvens quandoestava voando.

O.k. Então era só esperar.Depois de um tempo, talvez

aparecesse uma senhora desemblante sofrido. Uma pilota, queconsumira às escondidas asgarrafinhas de bebida que a genterecebe no avião, vira as criaturinhasverdes e fora despedida. Agora

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ficava em casa com os cachorros odia inteiro. Mas o vizinho aindaestava gamado nela.

Era assim que Maud fazia.Às vezes ela se repreendia por

causa dessa brincadeira, já que issoa impedia de levar as pessoasrealmente a sério. Mas Maud nãoconseguia se conter. Exatamentenesse instante estava esperando umclérigo cuja paixão eram os carrosesporte pomposos e que amava darcarona com o objetivo de redimir oscaroneiros.

Homem ou mulher? Jovem ou

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velho? Como é a cara de um sujeitodesses?

Maud estava com o queixoapoiado nas mãos, olhando para aentrada. Estava vazio agora à noite.As visitas dos pacientes internadostinham terminado e os novospacientes que vinham com lesões desábado à noite, normalmenterelacionadas com o consumo deálcool, iam para a emergência.

A porta giratória começou arodar. Eis o pastor do carro esporte,talvez.

Mas não. Esse era um daqueles

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casos em que ela se via obrigada adesistir. Era uma criança. Pequena emagra, uma… menina de dez, dozeanos. Maud começou a fantasiaruma cadeia de episódios queacabasse fazendo com que essacriança por fim virasse aquelepastor, mas parou logo. Amenininha estava com uma carabem triste.

A criança foi consultar o mapagrande do hospital onde linhas decores diferentes marcavamcaminhos que a gente devia seguirpara chegar a esse ou àquele lugar.

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Poucos adultos entendiam aquelemapa, quanto mais uma criança.

Maud se inclinou e chamou emvoz baixa: “Posso ajudar?”.

A menina se virou para ela esorriu timidamente, então seaproximou da recepção. O cabelopreto estava molhado, flocos deneve que ainda não tinham derretidobrilhavam no fundo negro. Amenina não ficou olhando para ochão do jeito que as crianças fazemem ambientes estranhos, não, seusolhos pretos e tristes olhavam bemdentro dos de Maud enquanto ela se

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aproximou do balcão. Umpensamento, tão nítido quanto umaimpressão auditiva, passou comoum flash pela cabeça de Maud.

Eu preciso te dar alguma coisa .O que será que eu vou te dar?

Era ridículo, mas ela começou apercorrer rapidamente de cabeça oque havia nas gavetas daescrivaninha. Uma caneta? Umbalão?

A criança estava na frente dobalcão. Apenas o seu pescoço e asua cabeça podiam ser vistos.

— Desculpe, mas… estou

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procurando meu pai.— Sei. Ele está internado aqui?— É que eu não sei direito…Maud olhou para a porta,

percorreu com os olhos o hall daentrada e parou na criança diantedela que não estava nem sequer decasaco. Apenas uma blusa de golaalta de tricô, onde gotas d’água eflocos de neve cintilavam com a luzda recepção.

— Você está sozinha aqui,querida? Assim tão tarde da noite?

— Estou, eu… só queria saber seele está aqui.

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— Então vamos dar uma olhada.Qual o nome dele?

— Não sei.— Você não sabe?A criança abaixou a cabeça,

parecia estar procurando algumacoisa no chão. Quando levantou acabeça de novo, os olhos grandes enegros estavam cheios d’água e olábio de baixo tremia.

— Não, ele… Mas ele está aqui.— Mas, querida…Maud sentiu alguma coisa se

rompendo no peito e procurou seproteger atrás de uma ação;

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abaixou-se e apanhou um rolo depapel da última gaveta daescrivaninha, arrancou um pedaço edeu-o para a menina. Finalmentepôde dar alguma coisa, ainda quefosse apenas um pedaço de papel.

A menina assoou o nariz e secouos olhos de um jeito bem… adulto.

— Obrigada.— Mas nesse caso eu não sei…

qual é o problema dele?— Ele é… a polícia o pegou.— Mas então é melhor você

procurar a polícia.— Tudo bem, mas estão com ele

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aqui. Porque ele está doente.— E que tipo de doença ele tem?— Ele… eu só sei que a polícia

está aqui com ele. Onde é que eleestá?

— Provavelmente no últimoandar, mas lá a gente não podeentrar sem ter… combinado antescom eles.

— Eu só queria saber onde fica ajanela dele, então eu podia… sei lá.

A menina começou a chorar denovo. Deu um nó tão forte nagarganta de Maud que até doeu. Amenina queria saber se ela podia

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ficar do lado de fora do hospital…na neve… olhando para a janela dopai lá em cima. Maud engoliu emseco.

— Mas posso telefonar, se vocêquiser. Tenho certeza de que vocêpode…

— Não. Tudo bem. Agora eu sei.Agora posso… Obrigada.

A menina saiu da recepção e foipara a porta giratória.

Santo Deus , quantas famíliasdestroçadas .

A menina desapareceu e Maudcontinuou sentada olhando para o

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ponto onde a criança sumira.Alguma coisa estava errada.Maud procurou se lembrar do

rosto da garota, do modo como semovimentava. Alguma coisa não seencaixava, alguma coisa que…Maud precisou de meio minuto paradetectar o que era. A menina estavasem sapatos.

Maud saiu em disparada darecepção e correu para a porta. Elasó podia deixar a recepção vazia sobcircunstâncias muito especiais.Julgou que essa era uma dessascircunstâncias. Sapateou irritada

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enquanto tentava passar pela portagiratória, vamos logo , vamos , esaiu no estacionamento. A meninanão estava ao alcance da vista. Oque ela deveria fazer? Asautoridades do serviço socialdeviam ser contatadas; eles nãohaviam verificado se a menina tinhaalguém que tomasse conta dela, eraa única explicação. Quem era o paidela?

Maud olhou ao redor doestacionamento sem encontrar amenina. Correu um pedaço quemargeava o hospital, na direção do

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metrô. Nada da garota. No caminhode volta para a recepção, tentouresolver para quem iria telefonar, oque devia fazer.

Oskar estava deitado na cama

esperando pelo Lobisomen. Seupeito fervia; de raiva, de desespero.Da sala de estar, ouvia as vozesexaltadas do pai e de Janne,misturadas com a música do toca-fitas. Os Irmãos Djup. Oskar nãopodia distinguir nenhuma palavra,mas conhecia a música de cor.

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“Moramos fora da cidade, e

assim que percebemos queprecisávamos de alguma coisa naporqueira vendemos a louça dejantar e compramos um porco...”

Em seguida o grupo inteirocomeçava a imitar diversos animaisde fazenda. Normalmente achava OsIrmãos Djup engraçados. Agoraodiava o conjunto. Porque elesparticipavam. Cantavam suamusiquinha idiota para o pai e Janneenquanto os dois se embebedavam.

Ele sabia exatamente como ia ser.

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Dali a mais ou menos uma hora, agarrafa estaria vazia e Janne iriapara casa. Depois o pai ficariadando voltas por um tempo nacozinha, andando de um lado para ooutro, e por fim teria a ideia de queprecisava falar com Oskar.

Ele entraria no quarto de Oskar enão seria mais o pai. Apenas umamassa desengonçada, fedendo abebida, feita de sede de carinho e desentimentalismo. Ia querer tirarOskar da cama. Para conversar umpouco. Falar o quanto ainda amava amãe, o quanto amava Oskar, será

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que Oskar amava o pai? Com alíngua enrolada, falaria sobre todasas injustiças cometidas contra ele e,no pior dos casos, se exaltaria eficaria zangado.

Ele nunca batia, isso não. Mas oque acontecia com seus olhos nessashoras era a coisa mais sinistra queOskar conhecia. Não sobravanenhum vestígio do pai. Apenas ummonstro que de algum modo entrarasorrateiramente no corpo dele eassumira seu comando.

A pessoa que o pai virava quandoestava bêbado não tinha nenhuma

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relação com a pessoa que ele eraquando estava sóbrio. Nessas horasera um consolo imaginar que o paiera um lobisomem. Que realmenteabrigava um ser completamentediferente no corpo dele. Assimcomo a lua despertava o lobo nolobisomem, a bebida despertavaesse ser no pai.

Oskar pegou um gibi do Bamse etentou ler, mas não conseguiu seconcentrar. Ele sentia-se…abandonado. Em breve estariasozinho com o Monstro. E a únicacoisa que podia fazer era esperar.

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Jogou o gibi na parede e selevantou da cama. Apanhou acarteira. Um tíquete de ônibus edois bilhetes de Eli. Pôs os bilhetesum ao lado do outro na cama.

então, janela, que o dia entre noquarto e a vida fuja.

O coração.até hoje à noite. eli.E o outro.ou parto, e vivo, ou morrerei

ficando. da sua eli.Vampiros não existem .A noite era uma capa negra do

lado de fora da janela. Oskar cerrou

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os olhos e pensou no caminho paraEstocolmo, passou em disparada porcasas, granjas, campos. Voou para opátio do prédio em Blackeberg,entrou pela janela dela, e lá estavaEli.

Abriu os olhos, olhou para osretângulos pretos da janela. Lá fora.

Os Irmãos Djup tinhamcomeçado a cantar uma músicasobre uma bicicleta com o pneufurado. O pai e Janne riram dealguma coisa, alto demais. Algocaiu no chão.

Com que monstro você fica?

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Oskar enfiou os bilhetes de Eli devolta na carteira e se vestiu. Foipara o corredor na ponta dos pés ecalçou os sapatos, vestiu o casaco eo gorro. Ficou parado no corredordurante uns segundos, ouvindo ossons da sala de estar.

Ele se virou para ir, mas viualguma coisa e parou.

Em cima da sapateira estavamsuas galochas velhas, que ele usavaquando tinha uns quatro, cinco anos.Elas tinham estado ali o tempo todo,embora não houvesse ninguém quepudesse usá-las. Ao lado delas, as

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botas Tretorn enormes do pai, umadelas remendada no calcanhar comuma dessas fitas que a gente põe empneu de bicicleta.

Por que ele tinha guardado asbotas?

Oskar entendeu. Duas pessoasapareceram calçando as botas decostas para ele. As costas largas dopai e, ao lado dele, as costasestreitas de Oskar. O braço de Oskarestendido, a mão dele na do pai.Eles andavam de botas por umrochedo, talvez fossem colherframboesas, talvez…

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Ele soluçou. O choro subiu à suagarganta. Esticou a mão para tocarnas galochas pequenas. Uma chuvade risos veio da sala. A voz deJanne, deformada. Devia estarimitando alguma coisa, ele era bomnisso.

Os dedos de Oskar se fecharamem torno do cano das botas. Isso.Não sabia por quê, mas sentiu queera a coisa certa a fazer. Oskar abriucom cuidado a porta, saiu e afechou. A noite estava gelada, aneve era um mar de diamantespequenos à luz da lua.

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Segurando firmemente as botas,ele começou a ir para a rodovia.

*

O vigia dormia. Um policialjovem que foi alocado depois que osfuncionários do hospitalreclamaram sobre o fato de ter deocupar uma pessoa o tempo todo sópara vigiar Håkan. No entanto, aporta estava trancada com umafechadura de senha. Devia ser porisso que o guarda ousava dormir.

Apenas uma lâmpada estava

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acesa e Håkan estudava as sombrastremidas no teto como um homemsaudável deitado na grama olhandopara as nuvens. Procurava formas,figuras nas sombras. Não sabia seconseguiria ler, mas tinha muitavontade.

Eli estava fora de cena e o quedominara sua vida antes deconhecê-la estava voltando. Eleseria condenado a uma pena longa edurante esse tempo ia se dedicar aler tudo o que não tinha lido e areler tudo o que prometera reler.

Estava pensando em todos os

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títulos de Selma Lagerlöf quandoum barulho interrompeu seuspensamentos. Aguçou os ouvidos.Alguma coisa arranhando. Vinha dajanela.

Håkan virou a cabeça o máximoque pôde e olhou para o lado dajanela. No fundo negro do céusurgiu uma sombra oval mais clara,iluminada pela luz do abajur. A mãode alguém. Acenou. A mão searrastou pela janela e o som dearranhar que causava arrepioapareceu de novo.

Eli .

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Håkan ficou agradecido por nãoestar acoplado a nenhum monitor deecg na hora em que seu coraçãodisparou. Começou a tremer comoum pássaro numa rede. Viu ocoração pular do peito e ir searrastando pelo chão até a janela.

Entre , meu amado . Entre .Mas a janela estava fechada e,

mesmo que estivesse aberta, seuslábios não podiam formar aspalavras que davam permissão paraEli entrar no quarto. Talvez pudessefazer um gesto que significaria amesma coisa, mas nunca entendera

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isso direito.Posso?Vacilante, Håkan desceu uma das

pernas da cama, depois a outra. Pôsos pés no chão e tentou se levantar.As pernas não queriam carregar seupeso depois de terem ficado imóveisdurante dez dias. Ele se apoiou nacama, mas quase caiu de lado.

O tubo do soro foi esticado aponto de puxar a pele onde estavafixado. Alguma espécie de alarmeestava ligado ao tubo, um fioelétrico bem fino corria junto dele.Se ele arrancasse uma das pontas do

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tubo, o alarme disparava. Puxou osuporte do soro para deixar o tubomais frouxo e virou-se para a janela.A sombra oval branca ainda estavaali, esperando por ele.

Tinha que dar um jeito .O suporte do soro tinha rodinhas,

a bateria do alarme estavaparafusada logo abaixo da bolsa desoro. Tentou pegar o suporte,conseguiu alcançá-lo. Usando osuporte do soro como apoio,levantou-se devagar, bem devagar.O quarto oscilava diante do seuúnico olho na hora em que Håkan

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experimentou dar um passo. Parou.Aguçou os ouvidos. A respiração doguarda ainda estava serena.

Com passinhos de formiga, foi searrastando pelo quarto. Assim queuma das rodas do suporte de sororangeu, parou de orelha em pé.Alguma coisa lhe dizia que essa eraa última vez que via Eli e ele nãoia…

estragar tudo .Estava exausto do esforço como

se tivesse corrido uma maratona.Quando ele finalmente chegou àjanela, pressionou tanto o rosto nela

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que a camada gelatinosa que cobriasua pele sujou o vidro e fez o rostocomeçar a queimar de novo.

Somente alguns centímentros devidro duplo separavam seu olho dosolhos do amado. Eli passou a mãopelo vidro, como se acariciasse orosto deformado. Håkan mantinha oolho o mais perto que podia dosolhos de Eli e, mesmo assim, suavista começou a falhar, os olhosnegros de Eli oscilaram, Håkan nãoos via mais claramente.

Ele partira do pressuposto de queo canal lacrimal estava destruído

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como o resto, mas não era bemassim. Lágrimas encheram seu olhoe o deixaram cego. A pálpebraprovisória não conseguia piscar paralimpar as lágrimas e ele passou comcuidado a mão ilesa pelo olhoenquanto seu corpo era sacudido porsoluços silenciosos.

Sua mão procurou o trinco dajanela. Girou-o. Escorria catarro doburaco que fora seu nariz; respingouno batente na hora que ele empurroua janela.

Uma corrente de ar frio entrou noquarto. Era apenas uma questão de

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tempo e o guarda acordaria. Håkanestendeu o braço, a mão boa dooutro lado da janela, na direção deEli, que se levantou e ficou em cimada borda. Segurou a mão de Håkan ea beijou. Sussurrou: — Oi, meucaro.

Håkan balançou a cabeçalentamente para confirmar queouvira. Soltou-se da mão de Eli e oacariciou no rosto. A pele era comoseda congelada debaixo da sua mão.

Então tudo voltou.Ele não iria apodrecer numa cela

cercado de letras sem o menor

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sentido. Ser perseguido por outrosprisioneiros por ter cometido aquiloque aos olhos deles era o pior doscrimes. Ia ficar com Eli. Ia…

Eli se inclinou para perto dele,encolhido na borda da janela.

— O que você quer que eu faça?Håkan tirou a mão do rosto de Eli

e apontou para o próprio pescoço.Eli sacudiu a cabeça, negando.— Então eu preciso… te matar.

Depois.Håkan tirou a mão do pescoço e o

aproximou do rosto de Eli. Ficouum instante com o indicador

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encostado nos lábios de Eli. Emseguida tirou o dedo.

Apontou para o pescoço de novo.

A respiração de Oskar formava

nuvens brancas ao sair da boca, masele não sentia frio. Depois de dezminutos, estava lá embaixo, pertodo mercado. A lua o seguira desde acasa do pai, brincando de esconde-esconde por detrás do topo dosabetos. Oskar consultou o relógio.Dez e meia. Vira na tabela docorredor que o último ônibus de

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Norrtälje passava por volta de meia-noite e meia.

Atravessou o lugar aberto nafrente do mercado, iluminado pelaslâmpadas das bombas de gasolina, efoi para o Kapellskärsvägen. Nuncapegara carona antes e a mãe ia subirpelas paredes se ficasse sabendo.Entrar no carro de gente estranha…

Começou a andar mais rápido,passando por umas casasiluminadas. Ali dentro haviapessoas no aconchego dos seuslares. Crianças dormindo em suascamas sem se preocupar se os pais

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iam entrar no quarto e acordá-laspara falar besteira.

Quem tem culpa disso é meu pai ,não eu .

Olhou para as botas que aindaestava segurando, jogou-as no canale parou. As botas ficaram caídas ali;dois borrões escuros com a neve nofundo à luz da lua.

Nunca mais minha mãe vai medeixar vir para cá .

O pai ia descobrir que ele nãoestava em casa daqui a mais oumenos… uma hora. Depois iaprocurar por ele, chamar por seu

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nome. Então ligaria para a mãe.Será? Provavelmente. Para saber seOskar tinha ligado. A mãeperceberia que o pai estava bêbadoassim que ele contasse que Oskarsumira e seria…

Espere aí. E se fosse assim.Ao chegar em Norrtälje, ele ia

ligar para o pai de uma cabinetelefônica e dizer que tinha ido paraEstocolmo, que dormiria na casa deum amigo e iria para casa no diaseguinte. Fingiria que nãoacontecera nada.

Então o pai levaria uma lição sem

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que virasse um drama.Certo . E então …Oskar desceu no canal e apanhou

as botas, enrolou-as e enfiou-as nobolso do casaco. Continuou andandopara a estrada. Agora tudo estavabem. Agora era Oskar quem decidiapara onde ia, e a lua olhava de umjeito camarada para ele lá embaixo,iluminava seus passos. Levantou amão para acenar e pôs-se a cantar.

“Eis Fritiof Andersson, está

nevando no chapéu dele.”[8]

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Não sabia mais a letra, então

ficou cantarolando a melodia.Depois de uns duzentos, trezentos

metros, passou um carro. Ele já oouvira de longe, então parou elevantou o polegar. O carro passoupor ele, parou e deu marcha a ré. Aporta do banco de carona se abriu;dentro do carro estava uma mulher,um pouco mais nova que a mãedele. Nada do que ter medo.

— Oi. Para onde você vai?— Estocolmo. Bem, Norrtälje.— Eu vou para Norrtälje, então…

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— Oskar se aproximou do carro. —Ué, seus pais sabem que você estáaqui?

— Sabem. Mas o carro do meupai está quebrado e… bem, é isso.

A mulher olhou para ele; pareciaestar pensando.

— Tudo bem, entre.— Obrigado.Oskar deslizou para o banco de

carona e fechou a porta. Elespartiram.

— Você vai para o terminal deônibus?

— Vou, obrigado.

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Oskar se endireitou no assento edeleitou-se com o calor quecomeçou a se espalhar por seucorpo, especialmente pelas costas.Devia ser um desses assentoselétricos. Não sabia que era tão fácilassim. Casas iluminadas passavamvoando por ele.

Fiquem sentadinhos aí dentro .Ele vai fazendo cantigas, vai

fazendo música para a Espanhae...[9]

— Você mora em Estocolmo?— Sim. Em Blackeberg.— Blackeberg… fica a oeste, não

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é?— Acho que sim. O nome é

Västerort,[10] então deve ser isso.— Sei. Tem alguma coisa

importante te esperando?— Tem.— Deve ser algo muito especial

para você viajar assim desse jeito.— É. É sim.

Estava frio no quarto. As

articulações do guarda estavamenrijecidas depois de tanto temponuma posição desconfortável. Ele se

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espreguiçou produzindo um estalo,olhou de relance para o leito eacordou na mesma hora.

Não está lá … que frio …caramba!

O guarda levantou-se trôpego eolhou ao redor. Graças a Deus. Ohomem não fugira. Mas com quediabos ele tinha conseguido ir para ajanela? E…

O que é isso?O assassino estava em pé

encostado no parapeito da janelacom uma coisa negra em cima deum dos ombros. O traseiro nu do

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doente à mostra debaixo dacamisola de hospital. O vigia deuum passo em direção à janela, paroue respirou fundo.

A coisa era uma cabeça. Doisolhos escuros cruzaram com osdele.

Ele apalpou à procura da arma,mas lembrou que não tinhanenhuma. Por motivo de segurança.A arma mais próxima estava nocofre lá fora no corredor. Além domais: era só uma criança, ele viuagora.

— Você aí! Não se mexa!

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Ele correu três passos até a janelae a cabeça da criança se ergueu dopescoço do homem.

No mesmo segundo em que oguarda chegou, a criança deu umsalto para fora da borda da janela edesapareceu para cima. Seus pésficaram balançando um instante naparte de cima da janela antes desumirem.

Pé s descalços .O guarda enfiou a cabeça para

fora da janela e conseguiu ver umcorpo que foi para cima do teto,ficando fora do alcance da vista. O

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homem ao lado dele soltou umgrunhido.

Oh , santo Deus!O ombro e as costas da camisola

estavam cheios de manchas pretasna luz fraca. A cabeça do homemestava dependurada e uma feridarecente brilhava no pescoço. Lá decima do teto vinham batidasabafadas de alguma coisa andandopor cima do telhado de chapa. Eleestava paralisado.

Prioridades . Quais eram asprioridades?

Ele não lembrava. Salvar vidas

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em primeiro lugar. Mas havia outrasque podiam… correu para a porta,digitou a senha e saiu escorregandopelo corredor. Exclamou: —Enfermeira! Enfermeira! Venha!Caso de emergência!

O guarda correu para as escadasde incêndio enquanto a enfermeirade plantão saía do seu posto eandava rapidamente para o quartoque ele acabara de deixar. Quandoum passou pelo outro, elaperguntou: — Qual é o problema?

— Emergência. É uma…emergência. Traga mais pessoas

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para cá, é caso de… assassinato.As palavras não queriam sair. Ele

nunca presenciara algo desse tipoantes. Tinha sido alocado para essafunção chata de vigia justamenteporque era inexperiente.Dispensável, como se diz por aí.Enquanto corria para as escadas,pegou o rádio e chamou a central,pedindo reforço.

A enfermeria tentou se preparar

para o pior; um corpo caído no chãonuma poça de sangue. Pendurado

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num lençol amarrado na tubulaçãode água quente. Já tinha visto essasduas coisas.

Ao entrar no quarto, viu apenasuma cama vazia. E algo na janela.Primeiro achou que fosse umatrouxa de roupas que tivesse sidodeixada no parapeito da janela.Depois viu que a trouxa se mexia.

Correu até a janela para impedir,mas o homem já tinha ido bemlonge. Já estava em cima doparapeito, a meio caminho de sejogar janela abaixo, quando ela sepôs a correr. Conseguiu chegar a

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tempo de segurar um pedaço dacamisola de hospital antes de ocorpo do homem rolar janela fora. Otubo do soro foi arrancado do braçodele. Um zás, e em seguida aliestava ela com um pedaço de panoazul na mão. Depois de algunssegundos, ela ouviu um baquedistante, um som abafado na horaque o corpo encontrou o chão.Depois o bip do alarme no suportedo soro.

O motorista de táxi parou na

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frente da emergência. O senhor nobanco de trás, que durante a viageminteira de Jakobsberg para lá odivertira com histórias sobre seusproblemas cardíacos, abriu a portado carro e ficou sentado esperando,com pose de exigência.

Tudo bem , tudo bem .O motorista abriu a porta, deu a

volta, foi até a parte traseira docarro e estendeu um braço paraapoiar o velho. A neve caía-lhe pelopescoço, entrando em seu casaco.Na hora em que o velho estavaprestes a lhe dar o braço, seu olhar

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se fixou em algum lugar lá em cimano céu e ele continuou sentado.

— Vamos lá. Eu seguro o senhor.O velho apontou para cima. — O

que é aquilo?O motorista olhou para onde o

outro tinha apontado.Uma pessoa no teto do hospital.

Uma pessoa pequena. Com o peitonu e os braços estendidos bemjuntos do corpo.

Ia pedir socorro .Ele devia comunicar pelo rádio.

Mas ficou parado, incapaz de semexer. Se ele se mexesse, alguma

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espécie de equilíbrio seriaperturbado e a criaturinha cairia delá de cima.

Sua mão doeu quando o velho aagarrou com dedos que pareciamgarras e enterrou-lhe as unhas napalma. Ainda assim, ele não semexeu.

A neve caiu em seus olhos e elepestanejou. A criatura lá em cimado teto abriu os braços e os dirigiupara cima da cabeça. Alguma coisase esticou entre os braços e o corpo;uma capa… membrana. O velhopuxou a mão do motorista,

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levantou-se do carro e ficou do ladodele.

Ao mesmo tempo que o ombro dovelho roçou o seu, a criaturinha… acriança… jogou-se de lá de cima.Ele prendeu a respiração e os dedosdo velho se enterraram em sua mãode novo. A criança se jogou lá doalto na direção deles.

Instintivamente, os dois seagacharam e puseram os braços emcima da cabeça.

Não aconteceu nada.Ao olharem para cima de novo, a

criança sumira. O motorista

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conferiu ao redor, mas tudo o quehavia para se ver no espaço aéreoera a neve caindo nos postes de luz.O velho roncou ao respirar.

— O anjo da morte. Era o anjo damorte. Nunca mais vou sair daqui.

Sábado, 7 de novembro(madrugada)

— Habba-Habba soudd-soudd!A turma de garotos e meninas

entrara cantando no metrô na

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estação Hötorget. Deviam ter aidade de Tommy. Estavam bêbados.Os garotos davam berros de vez emquando, jogavam-se por cima dasgarotas e elas riam, afastando osmeninos. Depois eles se puseram acantar de novo. A mesma música,várias vezes. Oskar olhoufurtivamente para o grupo.

Nunca vou ser assim .Infelizmente. Ele bem que queria.

Eles pareciam se divertir. MasOskar nunca poderia ser daquelejeito, fazer o que os garotos faziam.Um deles ficou de pé no assento e

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cantou alto: “A Huleba-Huleba, A-ha-Huleba…”.

Um coroa que estava cochilandono assento de deficientes físicos naoutra ponta do carro exclamou: —Abaixem o volume! Estou tentandodormir.

Uma das meninas levantou odedo médio e mostrou-o ao coroa.

— Lugar de dormir é em casa.A turma toda riu e começou a

cantar de novo. Num banco longedeles, um homem estava lendo umlivro. Oskar abaixou a cabeça parapoder ver o título, mas só conseguiu

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ler o nome do autor: GöranTunström. Ninguém que eleconhecia.

No quadrado de assentos perto deOskar estava sentada uma senhoracom uma bolsa no colo. Falavasozinha baixinho, gesticulava paraum interlocutor invisível.

Oskar nunca tinha andado demetrô depois das dez horas da noite.Será que essas eram as mesmaspessoas que durante o dia ficavamsentadas em silêncio olhando para afrente, lendo jornais? Ou esse eraum grupo especial, que só aparecia

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de madrugada?O homem com o livro virou a

página. Estranhamente, Oskar nãotrouxera nenhum livro. Uma pena.Queria ser como aquele homem,ficar lendo um livro, esquecer tudoao redor. Mas só tinha o walkman eo cubo. Ia ouvir a fita do Kiss queganhou do Tommy, já tinha tentadono ônibus, mas se cansou depois dealgumas músicas.

Tirou o cubo da mochila. Trêsfaces estavam resolvidas. Apenasum pedacinho de nada faltava naquarta face. Eli e ele tinham jogado

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uma noite com o cubo, conversadosobre como se resolvia o quebra-cabeça e depois disso Oskar tinhaficado melhor. Olhou para todas asfaces do cubo, tentou elaborar umaestratégia, mas viu apenas o rostode Eli na sua frente.

Que cara ela vai fazer?Não estava com medo. Estava

mergulhado numa sensação deque… bem… de que ele não podiaestar ali, a essa hora, não podiafazer o que estava fazendo agora.Isso não existia. Não era ele.

Eu não existo e ninguém pode me

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machucar .Ele telefonara para o pai de

Norrtälje e o pai tinha chorado aotelefone. Dissera que ia ligar paraalguém que podia buscar Oskar. Eraa segunda vez na vida que Oskarouvia o pai chorar. Por um breveinstante, Oskar amoleceu. Masquando o pai começou a se exaltar ea gritar dizendo que precisava vivera vida dele e fazer o que tinhavontade na própria casa, Oskarbateu o telefone.

Foi então que isso começou deverdade, aquela sensação de que ele

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não existia .A turma de meninos e meninas

desceu em Ängbyplan. Um dosgarotos se virou e exclamou dentrodo vagão: — Durmam bem, caros…caros…

Ele não encontrava a palavracerta e uma das meninas o puxou.Um segundo antes de as portas sefecharem, ele se soltou dela e correupara o vagão, segurou uma dasportas e exclamou: — … senhorespassageiros! Durmam bem,senhores passageiros!

Ele largou a porta e o metrô

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começou a andar. O homem que liabaixou o livro e olhou para osjovens na plataforma. Depois sevirou para Oskar e o olhou nosolhos. E sorriu. Oskar lhe lançou umsorriso fugaz e fingiu em seguidaconcentrar a atenção no cubo.

No peito uma sensação de que…fora aprovado. O homem tinhaolhado para ele e enviado opensamento Está tudo bem . Tudo oque você está fazendo está certo .

Mesmo assim, não teve maiscoragem de olhar para o homem.Parecia que ele sabia . Oskar deu

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uma pequena girada no cubo evirou-o de volta.

Além do próprio Oskar, houve

duas pessoas que saltaram emBlackeberg, dos outros vagões. Umgaroto mais velho que ele nãoconhecia e um sujeito vestido noestilo rockabilly , que pareciabastante bêbado. O cara foitropegamente para perto do garotomais velho e exclamou: — Psiu!Você tem um cigarro?

— Sorry , eu não fumo.

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O cara pareceu ter ouvido apenasa negação em si, pois arrancou umamoeda de dez coroas do bolso eacenou com o dinheiro. — Dezcoroas! Só unzinho .

O garoto sacudiu a cabeça econtinuou andando. O cara ficou empé com o corpo balançando e,quando Oskar passou por ele,levantou a cabeça e disse: “Vocêaí!”. Mas em seguida apertou osolhos, focou o olhar em Oskar esacudiu a cabeça: “Nada. Não énada, não. Vá em paz, brother ”.

Oskar continuou subindo as

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escadas para o hall da estação.Queria saber se por acaso o cara iamijar na parte elétrica dos trilhosagora. O garoto mais velhodesapareceu pela porta da saída. Anão ser pelo caixa do metrô, Oskarestava sozinho no hall da estação.

Tudo era bem diferente demadrugada. A loja de fotografia, afloricultura e as lojas de roupas quese encontravam dentro da estaçãoestavam apagadas. Bem silencioso.O relógio na parede mostrava quepassava das duas. Ele devia estar nacama agora. Dormindo. Devia pelo

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menos estar com sono. Mas não.Estava tão cansado que era como seo corpo estivesse cheio de buracos,mas eram cavidades preenchidascom eletricidade. Sem sono.

Uma porta lá na plataforma bateucom violência e ele ouviu a voz dorockabilly que vinha lá de baixo: “Ecurvem-se, homens da lei comcapacetes e cassetetes”.[11]

A mesma música que ele tinhacantado. Oskar deu uma risada ecomeçou a correr. Atravessoucorrendo as portas, desceu a ladeirapara a escola, passou por ela, pelo

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estacionamento. Começara a nevarde novo e os flocos grandes de nevefaziam furos no calor do seu rosto.Olhou para cima enquanto corria. Alua ainda o acompanhava, aparecia esumia brincando de esconde-esconde por entre os prédios.

No pátio, ele parou e recuperou ofôlego. Quase todas as janelasestavam apagadas, mas não é quehavia uma luzinha fraca por trás daspersianas do apartamento de Eli?

Que cara ela vai fazer?Ele subiu a ladeira e olhou de

relance para a própria janela

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apagada. Lá dentro estava o Oskarde sempre, dormindo. O Oskar…antes de Eli. Com a Bola do Mijo nacueca. Ele não usava mais a bola,não era mais necessário.

Abriu o portão do prédio eatravessou os corredores do porãopara chegar à portaria dela, nãoparou para ver se ainda haviaalguma mancha no chão. Apenaspassou adiante. Ele não existia,agora. Oskar não tinha mãe, nempai, nem uma vida anterior, estavaapenas… aqui. Continuou e entrouna portaria, subiu.

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De pé no patamar da escada,ficou olhando para a porta gasta demadeira, a placa sem o nome domorador. Atrás desta porta .

Ele tinha imaginado que correriaescada acima e tocaria a campainha.Em vez disso, sentou-se nopenúltimo degrau da escada, pertoda porta.

E se ela não o quisesse aqui?De qualquer jeito, havia sido ela

quem se escondera dele. Talvez elao mandasse embora, dissesse quequeria ficar em paz, que ela…

O depósito do porão . De Tommy

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e dos outros garotos .Ele podia dormir lá, no sofá. Não

é possível que eles ficassem lá demadrugada, certo? Então podia seencontrar com Eli na noite seguinte,como sempre.

Não vai ser como sempre .Ele não tirava os olhos da

campainha. Não seria como antes.Algo devia ser feito. Como fugir,pegar carona, ir para casa demadrugada para mostrar que aquiloera… importante. O que dava medonele não era o fato de que ela talvezfosse uma criatura que se

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alimentava do sangue das pessoas.Mas era a possibilidade de que elafosse rejeitá-lo.

Ele apertou a campainha.Um barulho desafinado veio de

dentro do apartamento e parouquando ele soltou o botão.Continuou sentado, esperando.Tocou de novo, um sinal maisdemorado. Nada. Nenhum som.

Ela não estava em casa.Oskar ficou sentado na escada

enquanto a decepção se afundavacomo uma pedra em seu estômago.E de repente se sentiu cansado,

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muito, muito cansado. Levantou-selentamente e desceu as escadas. Nomeio do caminho, teve uma ideia.Idiota, mas ainda assim. Foi até aporta de Eli de novo e, com sinaiscurtos e longos da campainha,soletrou o nome dela no códigomorse.

Curto. Pausa. Curto, longo, curto,curto. Pausa. Curto, curto. E… L…I…

Esperou. Nada do outro lado. Eletinha se virado para ir emboraquando ouviu a voz dela.

— Oskar? É você?

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E foi assim que aconteceu, apesarde tudo; que a alegria veio como umfoguete que soltaram em seu peito eexplodiu saindo pela boca com umaresposta em voz alta: — Sim!

Para ter alguma coisa que fazer,

Maud Carlberg foi apanhar umaxícara de café na sala atrás darecepção e sentou-se em seu postocom a luz apagada. Devia ter saídodo plantão uma hora atrás, mas apolícia lhe pedira que esperasse.

Alguns homens sem farda de

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policial estavam passando umpincel com uma espécie de pó pelocaminho onde a menininha andarade pés descalços.

O policial que a interrogou sobrea aparência da garota, e o que elatinha dito e feito, não foi amável. Otempo todo Maud teve a impressãode que a voz dele insinuava que arecepcionista fez algo errado. Mascomo é que ela podia saber?

Henrik, um dos vigias quefrequentemente tinha o mesmoplantão noturno que ela, foi até arecepção e apontou para a xícara de

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café.— Para mim?— Se você quiser.Henrik apanhou a xícara de café,

tomou um gole e ficoucontemplando o hall. Além dos queestavam passando o pincel no chão,havia um policial uniformizadofalando com um motorista de táxi.

— Muito movimento hoje ànoite.

— Não entendi nada. Como é queela conseguiu subir até lá ?

— Não sei. Eles devem estarinvestigando isso. Parece que ela

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subiu pela parede.— Mas não é possível.— É.Henrik apanhou um saquinho

com balas de alcaçuz do bolso e lheofereceu. Maud negou sacudindo acabeça e Henrik apanhou três balas,enfiou-as na boca e encolheu osombros se desculpando.

— Parei de fumar. Ganhei quatroquilos em duas semanas. — O vigiafez uma careta. — Argh, um horror.Você devia ter visto o cara.

— O cara… o assassino?— É. Respingou por toda parte…

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na parede toda lá fora. E o rosto…caramba… Se é para se mataralgum dia, é melhor tomar pílulas.Imagine ser médico-legista eprecisar…

— Henrik.— Que foi?— Dá para parar?

Eli estava em pé com a porta

aberta. Oskar, sentado na escada.Numa das mãos, ele segurava comforça a alça da mochila, como seestivesse preparado para ir embora a

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qualquer instante. Eli pôs umamecha de cabelo atrás da orelha.Estava com um aspecto bemsaudável. Uma menininha, insegura.Ela abaixou os olhos, olhou para asmãos e disse em voz baixa: — Querentrar?

— Quero.Eli balançou a cabeça de um

modo quase imperceptível e trançouos dedos. Oskar continuou sentadona escada.

— Posso… entrar?— Pode.O capeta tomou conta de Oskar.

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Ele disse: — Diga que eu possoentrar.

Eli levantou a cabeça, fez sinal deque ia dizer alguma coisa, mas nãodisse. Começou a fechar um pouco aporta, depois parou. Pisou com ospés descalços, e então disse: —Você pode entrar.

Ela se virou e entrou noapartamento. Oskar foi atrás efechou a porta. Pôs a mochila nocorredor, tirou o casaco e opendurou numa chapeleira comganchos onde não havia nada.

Eli estava em pé na porta da sala,

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de braços caídos. Estava só decalcinha e com uma camisetavermelha onde se lia Iron Maiden,escrito em cima de um desenho doesqueleto-monstro que aparecia nosdiscos do grupo. Oskar achou quereconheceu a camiseta. Tinha vistoessa peça de roupa no lixo uma vez.Será que era a mesma ?

Eli examinava os próprios péssujos.

— Por que você disse isso?— Foi você quem disse isso.— É mesmo. Oskar…Ela hesitou. Oskar ficou parado

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onde estava, com a mão no casacoque acabara de pendurar. Ele olhoupara o casaco na hora queperguntou: — Você é um vampiro?

Ela passou os braços em volta docorpo e sacudiu devagar a cabeça.

— Eu… me alimento de sangue.Mas eu não sou… isso aí.

— Qual é a diferença?Ela olhou bem dentro dos olhos

dele e disse, um pouco mais alto: —É uma diferença enorme.

Oskar viu como os dedos dos pésde Eli se contraíam, relaxavam e secontraíam. As pernas nuas eram

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muito magras e onde a camisetaacabava dava para ver a ponta deuma calcinha branca. Ele fez umgesto para ela. — Você está tipo…morta ?

Ela sorriu pela primeira vezdesde que ele chegara.

— Não. Não dá para perceber?— Bem, é que… você sabe…

você já morreu alguma vez?— Não. Mas já faz muito tempo

que estou viva.— Você é velha ?— Não. Tenho doze anos. Mas

faz tempo que estou com essa idade.

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— Então você é velha. Pordentro. Na cabeça.

— Não. Não sou. Isso é a únicacoisa que eu acho que é bemestranha. Não consigo entender. Porque é que eu nunca… de algummodo… fico com mais de dozeanos.

Oskar pensou, alisando a mangado casaco.

— Talvez porque você tenha essaidade.

— Como assim?— Bem… Você não pode

entender por que você só tem doze

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anos, porque você só tem doze anos.Eli franziu as sobrancelhas. —

Você está querendo dizer que eu souburra?

— Não. Mas um pouco lerda.Como as criancinhas costumam ser.

— Sei. Como vai indo o cubo?Oskar bufou, olhou bem nos

olhos dela e lembrou aquilo comsuas pupilas. Agora elas estavamnormais, mas tinham ficado umpouco esquisitas, não tinham?Ainda assim… era demais. Nãodava para acreditar.

— Eli. Você está inventando isso

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tudo, não é?Eli alisou o esqueleto-monstro na

barriga e deixou a mão parar nomeio da boca arreganhada domonstro.

— Você ainda quer fazer umpacto comigo?

Oskar deu meio passo atrás.— Não.Eli levantou os olhos para ele.

Triste, quase de um modo acusador.— Não desse jeito . Você entende

muito bem… que…Ela parou de falar. Oskar

completou em seu lugar.

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— Que, se você quisesse mematar, já teria feito isso há muitotempo.

Eli assentiu. Oskar deu mais meiopasso atrás. Com que rapidez elepodia sair pela porta? Será quedevia deixar a mochila? Eli nãoparecia perceber sua aflição, suavontade de fugir. Oskar parou, osmúsculos retesos.

— Eu vou ficar… contaminado?Ainda com os olhos pregados no

monstro em sua barriga, Eli sacudiua cabeça. — Eu não querocontaminar ninguém .

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Especialmente você.— E o que é isso? O pacto?Ela levantou a cabeça para a

direção onde achou que Oskarestava, mas descobriu que ele nãoestava ali. Hesitou. Então seaproximou de Oskar e segurou acabeça dele com as mãos. O meninonão relutou. O rosto de Eli estava…inexpressivo. Ausente. Mas nenhumsinal daquela cara que ele tinhavisto no porão. A ponta dos dedosda menina roçaram suas orelhas.Uma calma percorreu serenamenteo corpo de Oskar.

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Pode acontecer .Aconteça o que tiver que

acontecer.A cara de Eli estava a vinte

centímetros do rosto dele. Seuhálito era esquisito, tinha o mesmocheiro do depósito onde o paiguardava coisas de ferro-velho.Isso. Ela cheirava a… ferrugem. Aponta de um dedo acariciou a orelhadele. Ela sussurrou: — Estousozinha. Ninguém sabe. Você quer?

— Quero.Ela aproximou rapidamente seu

rosto do dele, fechou os lábios em

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volta do seu lábio superior e osegurou apertando de leve, bem deleve. Os lábios da menina eramquentes e secos. A saliva correupara dentro da boca de Oskar e,quando ele fechou os próprioslábios no lábio inferior dela, esteficou úmido, mais macio. Devagar,um sentiu o gosto dos lábios dooutro, deixaram que um deslizasseno outro e Oskar desapareceu numaescuridão quente que foi clareandoaos poucos, e se transformou numsalão grande, no salão de um casteloonde havia no centro uma mesa

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comprida cheia de comida, eOskar…

… corre para as iguarias ,começa a comê-las com as mãos .Em volta dele há outras crianças ,grandes e pequenas . Todas comema comida da mesa . Na ponta damesa , está sentado um …homem?… uma mulher …

Uma pessoa com algo que pareceuma peruca . Uma cabeleira enormecobre-lhe a cabeça . A pessoa estásegurando um copo , cheio de umlíquido vermelho-escuro , sentadaconfortavelmente na cadeira .

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Molha os lábios na bebida e acenacom a cabeça para Oskar de modoencorajador .

Eles não param de comer . Nooutro lado do salão , encostados naparede , Oskar vê pessoas em trajespobres que acompanhampreocupadas o que acontece aoredor da mesa . Uma mulher comum lenço marrom cobrindo oscabelos está com as mãos bemtrançadas em cima da barriga eOskar pensa “Mãe ”.

Em seguida , ouve-se o tilintar deum copo e a atenção se volta para o

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homem na ponta da mesa . Ele seergue . Oskar tem medo do homem .Sua boca é pequena , os lábios finos, vermelhos de um jeito artificial .Seu rosto é branco que nem giz .Oskar sente o caldo de carneescorrer pelo canto da boca , umpedacinho de carne está bem nafrente da sua boca , Oskar passa alíngua nele .

O homem segura no alto umsaquinho de couro . Com um gestoelegante , ele desamarra a corda emvolta do saquinho e deixa cair emcima da mesa dois dados grandes e

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brancos . Ecoa na sala quando osdados rolam e param . O homemapanha os dados ; mostra-os paraOskar e para as outras crianças .

O homem abre a boca para dizeralguma coisa , mas , nesse instante ,o pedacinho de carne cai da boca deOskar e …

Os lábios de Eli soltaram os dele,

ela largou sua cabeça e deu umpasso atrás. Apesar de ter seassustado com aquilo, Oskar tentoureaver a imagem do salão do

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castelo, mas ela sumiu. Eli olhouinterrogativa para ele. Oskaresfregou os olhos e balançou acabeça.

— Então é verdade.— É.Eles ficaram assim um tempo,

calados. Em seguida, Eli disse: —Quer entrar?

Oskar não respondeu. Eli puxou acamiseta, levantou as mãos e asdeixou cair.

— Eu nunca vou machucar você.— Eu sei disso.— Em que você está pensando?

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— Essa camiseta. Ela é do lixo?— … é.— Você a lavou?Eli não respondeu.— Você é um pouquinho porca,

sabia?— Eu posso trocar de roupa, se

você quiser.— O.k. Então troque.

Ele já tinha lido sobre o homem

no carrinho, debaixo do lençol. Oassassino ritual.

Benke Edwards já transportara na

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maca todo tipo de gente por essescorredores, para a geladeira.Homens e mulheres de todas asidades e de todos os tamanhos.Crianças. Não havia maca especialpara crianças e poucas coisasfaziam Benke sentir-se tão malquanto os espaços vazios quesobravam na maca quando elelevava uma criança; a criaturinhadebaixo do pano branco pareciaespremida na cabeceira da maca. Opé da maca vazio, o pano liso. Essasuperfície era a própria imagem damorte.

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Mas a pessoa que ele transportavaagora era um homem adulto e, comose não bastasse, uma celebridade.

Ele conduzia a maca peloscorredores silenciosos. O único somque se ouvia era o barulho das rodasde borracha rangendo no piso delinóleo. Aqui o chão estava marcadocom cores diferentes. Quandochegava um visitante aqui, semprevinha acompanhado de alguém dohospital.

Benke ficou esperando do lado defora do hospital enquanto a políciatirava fotografias do cadáver.

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Algumas pessoas da imprensaestavam com câmeras do lado defora de uma área interditada, tirandofotos do hospital com flashes fortes.No dia seguinte as fotos estariam nojornal, completadas com uma linhapontilhada que mostraria como ohomem caíra.

Uma celebridade.O bolo debaixo do lençol não

indicava nada disso, era igual atodos os outros. Ele sabia que ohomem parecia um monstro, queseu corpo se arrebentara como umbalão d’água ao bater no chão

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congelado, e Benke estavaagradecido por haver o lençol.Debaixo do lençol somos todosiguais.

Ainda assim, com certeza muitaspessoas ficariam aliviadas pelo fatode justamente esse bolo de carnesem vida ter sido levado para acâmara frigorífica a fim de sertransportado para a incineraçãoquando os médicos-legistasterminassem com ele. O homemtinha uma ferida no pescoço quechamara a atenção do fotógrafo dapolícia, que quis fotografá-la.

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Mas será que isso tinha algumaimportância?

Benke via a si mesmo como umaespécie de filósofo. Certamentetinha a ver com sua profissão. Jávira tanta coisa, a verdadeira facedo ser humano, que no finaldesenvolveu uma teoria, e ela erabem simples.

— Tudo está no cérebro.Sua voz ecoou nos corredores

vazios quando estacionou a maca nafrente da porta da câmarafrigorífica, digitou a senha e abriu aporta.

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É. Tudo está no cérebro. Desde ocomeço. O corpo era só uma espéciede unidade de serviço que o cérebroera obrigado a arrastar para semanter vivo. Mas tudo está alidesde o começo, no cérebro. E aúnica forma de modificar umapessoa dessas que estava agoradebaixo do lençol seria operar seucérebro.

Ou desligá-lo .A fechadura que devia manter a

porta aberta por dez segundosdepois de a senha ser digitada aindanão tinha sido consertada e Benke

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teve de segurar a porta com uma dasmãos enquanto apanhava com aoutra a cabeceira da maca e apuxava para dentro da câmarafrigorífica. A maca foi de encontroao batente da porta e Benkepraguejou.

Se fosse lá na cirurgia , já teriamconsertado a porta num piscar deolhos .

Então ele viu uma coisa estranha.Logo abaixo e à esquerda da

elevação que era a cabeça dohomem havia uma manchaamarronzada no pano. A porta se

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fechou atrás deles, quando Benke sedebruçou para olhar de perto. Amancha crescia lentamente.

Ele está sangrando .Benke não era o tipo de pessoa

que se assustava facilmente. Alémdo mais, esse tipo de coisa jáacontecera antes. Provavelmentealguma espécie de acúmulo desangue no crânio que foi liberadaquando a maca bateu no batente daporta.

A mancha no pano crescia.Benke foi para um armário de

primeiros socorros e apanhou uma

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fita cirúrgica e gaze. Sempre acharaestranho um armário desses numlugar como aquele, mas ele sedestinava aos casos em que alguémvivo se machucava ali dentro; seprendesse o dedo numa maca oualgo semelhante.

Com a mão em cima do panologo acima da mancha, ele crioucoragem. É claro que não tinhamedo de cadáveres, mas esse tinhaum aspecto tenebroso. E Benke eraobrigado a pôr o curativo nele. Iriareceber uma bronca se um monte desangue sujasse a câmara frigorífica.

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Então engoliu a seco e puxou olençol.

O rosto do homem desafiavaqualquer descrição. Era impossívelentender como ele tinha vivido umasemana com um rosto daqueles. Nãoexistia ali nada que pudesse serreconhecido como humano a não seruma orelha e um… olho.

Não podiam ter fechado o olho …com uma fita ?

O olho estava aberto. É claro.Mal havia pálpebra para fechá-lo. Eestava tão lesado que parecia havercicatrizes lá dentro, no branco do

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olho.Benke desviou do olhar do morto

e se concentrou no que tinha a fazer.A origem da mancha parecia seraquela ferida na garganta.

U m plof suave e Benke olhourapidamente ao redor. Merda. Dequalquer jeito, ele devia estar umpouco nervoso. Mais um plof .Vinha dos seus pés. Olhou parabaixo. Uma gota d’água caiu damaca e aterrissou em seu sapato.Plof .

Água?Ele investigou a ferida no

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pescoço do homem. Uma poça seformara embaixo dela e escorriapelo metal da maca.

Plof .Tirou o pé do lugar. Mais uma

gota caiu no chão de lajotas.Plof .Benke tocou com o indicador na

poça e roçou-o no polegar. Não eraágua. Era algum líquido viscoso,transparente e escorregadio.Cheirou os dedos. Nada que eleconhecesse.

Quando Benke olhou para o chãobranco, viu que uma poça se

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formara ali. Mas o líquido não eratransparente, era levemente rosa.Parecia aquele sangue de bolsas detransfusão. O material que sobraquando os glóbulos vermelhos sedepositam no fundo.

Plasma .O homem sangrava plasma.Como isso podia ser possível era

algo que os especialistas teriam deesclarecer amanhã, na verdade,hoje. Seu trabalho era apenas fazero líquido parar de escorrer, para nãolambuzar ali dentro. Queria ir paracasa agora. Entrar debaixo dos

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lençóis pertinho da esposaadormecida, ler algumas páginas dolivro Den vedervärdige mannen frånSäffle[12] e depois dormir.

Benke dobrou a gaze fazendouma compressa grossa e pressionou-a na ferida. Como iria fazer a fitaficar colada? Aliás, o que restava dopescoço do homem estava tãodilacerado que era difícil encontrarpontos onde a pele estivesse inteirapara prender a fita. Vai ser assimmesmo. Queria ir para casa agora.Arrancou umas tiras compridas defita, fez um trabalho de patchwork

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em zigue-zague no pescoço domorto sobre o qual ele seriainterrogado mais tarde, mas, cacete.

Ele era zelador, não cirurgião .Quando a compressa estava no

lugar, limpou a maca e o chão.Depois empurrou a maca com ocadáver para a sala quatro eesfregou as mãos uma na outra.Pronto. Um trabalho bem-feito euma história para contar no futuro.Enquanto conferia o local pelaúltima vez e apagava as luzes, jácomeçou a elaborar as réplicas.

Sabem aquele assassino que caiu

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do último andar? Fui eu quemcuidou dele depois da queda e ,quando levei a maca com ele para ofrigorífico , vi uma coisa estranha…

Benke pegou o elevador e subiupara seu escritório, lavou as mãosminuciosamente, trocou de roupa ejogou o jaleco no cesto de roupasuja ao sair. Desceu para oestacionamento, sentou-se no carroe fumou calmamente um cigarroantes de dar a partida. Depois deapagar o cigarro no cinzeiro, queestava realmente na hora de ser

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esvaziado, girou a chave de ignição.O carro empacou, como sempre

quando estava frio ou úmido. Massempre funcionava. Só precisavafazer um pouco de birra. Quando naterceira tentativa o som de vah-vahse transformou num ronco gago demotor, ele se lembrou.

O sangue não coagulava .É. Aquilo que escorreu do

pescoço do homem não iriacoagular debaixo da compressa. Iriaencharcar o curativo e depoiscontinuar escorrendo pelo chão… equando abrissem a porta, daqui a

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algumas horas…Merda!Tirou a chave da ignição, enfiou-

a com raiva no bolso e saiu docarro, de volta para o hospital.

A sala de estar não estava tão

vazia quanto o corredor e a cozinha.Ali havia um sofá, uma poltrona euma mesa grande com um monte decoisas miúdas em cima. Três caixasde mudança estavam empilhadasuma sobre a outra perto do sofá.Uma luminária de pé espalhava uma

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luz amarelada e suave sobre a mesa.Mas isso era tudo. Nada de tapetes,quadros ou televisão. Cobertoresgrossos estavam pendurados nafrente das janelas do cômodo.

Parece uma prisão . Uma prisãogrande .

Oskar deu um assobio, paraexperimentar. Isso mesmo. Fez eco,mas não muito. Provavelmente porcausa dos cobertores. Pôs a mochilajunto da poltrona. O clique que fezquando a parte de baixo da bolsabateu no chão duro de linóleo foimais acentuado, um lugar

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desabitado.Ele tinha começado a olhar as

coisas que estavam em cima damesa quando Eli saiu do cômodo aolado, agora vestida numa camisasocial grande demais. Oskar abriu amão, mostrando a sala de estar.

— Vocês estão de mudança?— Não. Como assim?— Só queria saber.Vocês?Como é que ele não tinha pensado

nisso antes? Oskar passou os olhospelas coisas em cima do tampo damesa. Tudo aquilo parecia

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brinquedo. Brinquedos antigos.— Aquele sujeito que morava

aqui antes. Ele não era seu pai, era?— Não.— Ele também era…?— Não.Oskar balançou a cabeça e olhou

ao redor da sala de novo. Era difícilimaginar que alguém podia morarassim. A não ser que…

— Você é tipo… pobre?Eli foi para perto da mesa,

apanhou uma coisa que parecia serum ovo preto e a entregou a Oskar.Ele se inclinou para a frente e

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segurou a coisa debaixo daluminária para pode enxergarmelhor.

A superfície do ovo era áspera e,quando Oskar olhou mais de perto,viu centenas de voltas complicadasde fios dourados que atravessavamo ovo. Ele era pesado, como se fossefeito de algum tipo de metal. Oskarvirou o ovo de um lado para o outro,viu que os fios dourados estavaminseridos em fendas na superfície doovo. Eli foi para junto de Oskar, quesentiu de novo aquele cheiro… ocheiro de ferrugem.

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— Qual é o valor disso, o quevocê acha?

— Não sei. Vale muito?— Há somente dois deles no

mundo inteiro. Se a gente tivesse osdois, seria possível vendê-los ecomprar… talvez uma usinanuclear.

— É…?— É, sei lá. Quanto custa uma

usina nuclear? Cinquenta milhões?— Acho que custa… bilhões.— Sei. Bem, nesse caso acho que

não dá.— E o que você ia fazer com uma

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usina nuclear?Eli deu uma risada.— Segure o ovo com as duas

mãos. Assim. Faça uma concha emvolta do ovo. E agora deixe-o rolarnelas.

Oskar fez o que Eli dissera. Fez oovo rolar com cuidado dentro dasmãos em forma de concha e sentiuque ele… estourou, espalhou-se napalma da mão. Ele resfolegou etirou a mão que estava em cima. Oovo era agora apenas centenas…milhões de cacos na mão dele.

— Desculpe! Eu fui cuidadoso ,

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eu…— Shhh! É assim que é. Tome

cuidado para não perder nenhumpedaço. Despeje tudo aqui.

Eli apontou para uma folha depapel branca em cima da mesinhade centro. Oskar prendeu arespiração na hora que tiroucuidadosamente os caquinhoscintilantes da mão. Cada pedacinhoera menor do que uma gota d’água eOskar teve que passar os dedos napalma da outra mão para fazer todosos pedaços caírem no papel.

— Mas ele quebrou.

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— Aqui. Olhe só.Eli puxou a luminária para mais

perto da mesa e concentrou a luzdébil em cima do monte depedacinhos de metal. Oskar seinclinou e olhou. Um pedaço, nãomuito maior que um carrapato,estava sozinho junto do monte e,quando ele olhou bem de perto,pôde ver que o pedaço tinhaentradas em alguns lados, saliênciascom formato de lâmpada quasemicroscópicas em outros. Oskarentendeu.

— É um quebra-cabeça.

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— Isso.— Mas… você pode montar o

ovo de novo?— Acho que sim.— Deve levar uma eternidade.— É.Oskar olhou para os outros

pedaços espalhados ao lado domonte. Pareciam ser idênticos aoprimeiro pedaço, porém, olhandomais atentamente, viu que haviapequenas variações. As entradas nãoestavam exatamente no mesmolugar, as saliências tinham outroângulo. Viu também um pedaço que

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tinha um lado liso a não ser por umamoldura de ouro da espessura de umfio de cabelo. Um pedaço da partede fora do ovo.

Ele desabou numa das poltronas.— Eu ia ficar maluquinho.— Imagine a pessoa que fabricou

isso.Eli revolveu os olhos e pôs a

língua para fora de um jeito queficou igual ao anão Dunga. Oskarriu. Ha-ha. O som parou ereverberou nas paredes. Localdesabitado. Eli sentou-se no sofácom as pernas cruzadas, olhava…

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cheia de expectativa para ele. Oskardesviou os olhos e contemplou otampo da mesa, uma paisagem emruínas feita de brinquedos.

Desabitada.De repente se sentiu cansado

daquele jeito de novo. Ela não era“sua namorada”, não podia ser.Era… outra coisa. Havia umadistância grande entre eles que nãodava para… fechou os olhos,recostou-se na poltrona e o negroatrás das pálpebras era o espaço queos separava.

Ele cochilou e entrou num sonho

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de um instante.O espaço entre eles estava cheio

de insetos feios e pegajosos quevoavam para cima dele e, quando osbichos se aproximaram, Oskar viuque tinham dentes. Sacudiu a mãopara afastá-los, e acordou. Eliestava sentada no sofá olhando paraele.

— Oskar. Eu sou um ser humano,igualzinho a você. Pense só queeu… tenho uma doença muito rara.

Oskar balançou a cabeça.Um pensamento queria chegar.

Alguma coisa. Uma situação. Ele

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não conseguiu apanhá-lo. Soltou.Mas nessa hora veio aquele outropensamento, o que dava medo. Deque Eli só estava fingindo . Quedentro dela havia uma pessoavelhíssima sentada olhando paraele, alguém que sabia de tudo, quese ria dele às escondidas.

Não dá .Para fazer alguma coisa, ele

vasculhou a mochila até achar owalkman e tirou uma fita de lá. Leu“Kiss: Unmasked ”, virou a fitacassete, “Kiss: Destroyer ”, e pôs afita de volta no lugar.

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Eu devia ir para casa .Eli se inclinou para a frente no

sofá.— O que é isso?— Isso? Um walkman.— É para… ouvir música?— É.Ela não sabe nada . Ela é

superinteligente e não sabe nada . Oque é que ela faz de dia? Dorme , éclaro . Onde está seu caixão? Isso .Ela nunca dormia quando estava láem casa . Só ficava deitada naminha cama esperando o diaclarear . Ou parto , e vivo …

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— Posso testar?Oskar lhe entregou o walkman.

Ela apanhou o aparelho e parecianão saber o que fazer, mas emseguida pôs os fones no ouvido eolhou interrogativa para ele. Oskarapontou para os botões.

— Aperte nesse onde está escrito“play”.

Eli inspecionou os botões eapertou o play. Oskar sentiu umaespécie de calma. Isso era umacoisa normal; tocar a músicafavorita para um amigo. Ele queriasaber se Eli ia gostar do Kiss. Ela

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apertou o play. Oskar ouviu dapoltrona o retumbar vibrante, oarranhar baixinho da guitarra, dabateria, da voz. Ela tinha apertadono meio de uma das músicas maispesadas.

Os olhos de Eli ficaramarregalados, ela soltou um grito dedor e Oskar ficou tão chocado quecaiu de costas. A poltrona balançou,quase caiu para trás enquanto elevia Eli tirar os fones do ouvido comtanta força que os fios foramarrancados. Ela atirou tudo paralonge, pôs as mãos nos ouvidos e os

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esfregou.Oskar estava sentado de queixo

caído. Olhando para os fones quetinham voado na parede. Levantou-se e os apanhou. Totalmentedestruídos. Os dois fios tinham sedespregado dos fones. Ele osdepositou em cima da mesa e seafundou na poltrona de novo.

Eli destapou os ouvidos.— Desculpe, eu… é que doeu

muito.— Não faz mal.— É caro?— Não.

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Eli desceu a caixa de mudançaque estava no alto, enfiou a mão ládentro e apanhou algumas cédulas.Entregou-as para Oskar.

— Pode ficar com isso.Ele pegou o dinheiro e contou as

notas. Três de mil e duas de cem.Sentiu uma coisa semelhante amedo, olhou para a caixa de papelãode onde ela tinha tirado o dinheiro,para Eli, para as cédulas.

— Eu… só custou cinquentacoroas.

— Fique com elas de qualquerjeito.

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— Mas é que… foram só os fonesque quebraram e eles…

— Fique com o dinheiro. Estoupedindo…

Oskar hesitou, depois enfiou asnotas, amassando tudo, dentro dobolso das calças enquanto faziacontas. Devia ser mais ou menos umano de trabalho aos sábados… vintee cinco mil folhas distribuídas.Cento e cinquenta horas. Mais queisso. Uma fortuna. As notasincomodavam um pouco no bolso.

— Obrigado.Eli assentiu e tirou da mesa

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alguma coisa que parecia ser umemaranhado de nós embolados, masque era provavelmente um quebra-cabeça. Oskar ficou olhandoenquanto ela mexia nos nós. Opescoço curvado, os dedos magros ecompridos que passavam pelaspontas dos fios. Ele pensou em tudoo que ela lhe dissera. Sobre seu pai,a tia na cidade, a escola quefrequentava. Tudo aquilo eramentira.

E de onde ela tirou todo essedinheiro? Surrupiou?

O que ele sentiu era tão incomum

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que primeiro não entendeu o queera. Começou com uma espécie deformigamento na pele, depois foientrando pelas carnes, e atirou emseguida um arco afiado e frio quesubiu do estômago para a cabeça.Ele estava… zangado. Não estavadesesperado nem com medo.Zangado.

Porque ela tinha mentido ealiás… de quem ela surrupiara essedinheiro? De alguém que ela…? Elecruzou as mãos em cima da barrigae se recostou.

— Você mata as pessoas…

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— Oskar…— Se isso aqui for verdade, então

você precisa matar gente. Roubar odinheiro delas.

— Eu ganhei esse dinheiro.— Você só mente. O tempo todo.— É verdade.— O que é verdade? Que você

mente?Eli largou o emaranhado de nós

em cima da mesa, olhou para elecom olhos desesperados e abriu asmãos. — O que você quer que eufaça?

— Me dá uma prova.

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— De quê?— De que… você é quem diz ser.Ela ficou olhando um bom tempo

para ele. Em seguida sacudiu acabeça.

— Não quero.— Por que não?— Adivinhe.Oskar se afundou ainda mais na

poltrona. Sentiu debaixo da palmada mão o bolinho que as notasformavam no bolso das suas calças.Viu diante dele a pilha de anúncios.Que chegou hoje de manhã. Queseria distribuída antes da terça. Um

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cansaço cinza em seu corpo. Tudocinza na cabeça. Raiva. “Adivinhe.”Mais uma brincadeira. Mais umamentira. Queria sair dali. Dormir.

O dinheiro . Ela me deu dinheiropara eu ficar .

Ele se levantou da poltrona, tirouo bolo amassado de notas do bolso epôs tudo em cima da mesa, comexceção de uma nota de cem.Guardou-a no bolso e disse: — Voupara casa.

Ela se esticou para a frente eagarrou o pulso dele. — Não vá. Porfavor.

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— Por quê? Se você só mente.Ele tentou se afastar dela, mas Eli

segurou ainda mais seu pulso.— Me solta!— Eu não sou nenhum monstro

de circo!Oskar trincou os dentes e disse

calmamente. — Solta.Ela não soltou. Um arco frio de

raiva começou a pressionar o peitode Oskar, a zunir, e ele se jogou emcima dela. Foi para cima da garota ea empurrou para trás no sofá. Elanão pesava quase nada e ele aencostou no braço do sofá, sentou-

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se atravessado em seu peitoenquanto o arco se esticou, tremeu elançou pontinhos pretos na frentedos seus olhos na hora que elelevantou a mão e deu um tapa combastante força no rosto dela.

Um clatch nítido reverberou nasparedes e a cabeça dela foi jogadapara o lado, gotas de saliva voaramda boca de Eli e a mão de Oskarficou quente quando o arco sequebrou, ficou em pedaços e a raivadesapareceu.

Ele estava sentado em cima dopeito da garota, olhando confuso

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para a cabecinha de perfil com opreto do sofá no fundo enquantouma flor grande de vermelhidãodesabrochava na bochecha onde elebatera. Ela estava imóvel, de olhosabertos. Oskar esfregou as mãos norosto.

— Desculpe. Desculpe. Eu…De repente, Eli se virou, tirou

Oskar de cima dela e o jogou paracima do encosto do sofá. Ele tentouagarrar seus ombros, mas nãoconseguiu, acabou agarrando seuquadril e ela terminou com a barrigabem na sua cara. Ele a jogou para

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longe, virou-se e um ficou tentandoagarrar o outro.

Eles rolaram de um lado para ooutro no sofá, lutavam. Com osmúsculos retesos e muita seriedade.Mas com cuidado, para queninguém saísse machucado.Enroscaram-se um no outro, umencontrão na mesa.

Pedaços do ovo negro foramparar no chão, soando como umachuvinha fina que cai num teto dechapa de metal.

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Ele não se preocupou em subirpara apanhar o jaleco, pois seuplantão já terminara.

Estou no meu tempo livre e sófaço isso aqui para me divertir .

Podia pegar um dos jalecos extrasdos médicos-legistas pendurados nacâmara frigorífica se estivesse…lambuzado lá dentro. O elevadorchegou, ele entrou e apertou o botãodo Porão 2. O que ele iria fazer sefosse isso? Telefonar e ver sealguém da emergência podia descerpara dar pontos? Não havia nenhumregulamento para esse tipo de coisa.

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Provavelmente o sangramento, ousabe-se lá que nome a coisa tinha,devia ter parado, mas ele eraobrigado a conferir. Do contrário,não ia dormir de noite. Só ia ficardeitado ouvindo aquele pinga-pinga.

Sorriu para si mesmo ao sair doelevador. Quantas pessoas normaisconseguiriam resolver um negóciodesses sem ficar de perna bamba?Não muitas. Estava bem satisfeitoconsigo mesmo porque ele… bem,cumpria com o dever. Eraresponsável.

Vai ver que eu não sou normal , é

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isso .E isso não podia ser negado:

havia alguma coisa nele queesperava … bem, que osangramento tivesse continuado;que ele precisasse ligar para aemergência, que houvesse um poucode confusão. Por mais que quisesseir para casa e dormir. Já que seriauma história melhor, era só isso.

É, ele não devia ser normal. Comcadáveres, ele não tinha nenhumproblema, máquinas com cérebrosapagados. O que, por outro lado,podia deixá-lo um pouco paranoico

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eram esses corredores .Só de pensar nessa rede de túneis

dez metros abaixo do solo, nossalões e cômodos vazios que eramuma espécie de unidadeadministrativa do Inferno. Tudogrande. Tudo silencioso. Tudovazio.

Os cadáveres são a própriaencarnação da saúde emcomparação com isso .

Ele digitou a senha e apertou porforça do hábito o botão de abrir aporta, que apenas respondeu comum clique inútil. Teve de empurrar

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a porta e entrou na câmarafrigorífica. Pôs um par de luvas deborracha.

O que é isso?O homem que ele deixara coberto

com um lenço estava nu agora. Opênis do morto estava ereto,apontava torto. O lençol estavajogado no chão. Os brônquios deBenke, lesados de tanto cigarro,apitaram quando ele respirou fundo.

O homem não estava morto. Não.Ele não estava morto… já que semexia.

Devagar, como se estivesse

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sonhando, ele se virou na maca.Suas mãos procuravam às cegas noar e Benke deu instintivamente umpasso para trás quando uma delas —que nem sequer parecia a mão deuma pessoa — passou rente pelorosto dele. O homem tentou selevantar, mas caiu de volta na macade aço. O olho solitário olhava paraa frente sem pestanejar.

Um som. O homem emitiu umsom.

— Eeeeeeeee…Benke passou a mão no rosto.

Alguma coisa acontecera com sua

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pele. A mão dele estava… olhoupara ela. As luvas de borracha.

Atrás da mão, ele viu o homemtentar se levantar mais uma vez.

Que diabos eu vou fazer?O homem caiu de novo na maca,

produzindo um baque molhado.Algumas gotas daquele líquidorespingaram no rosto de Benke, quetentou limpá-lo com a luva, mas sóacabou espalhando ainda mais.

Puxou um pedaço da camisa e selimpou com ela.

Dez andares . Ele caiu do décimoandar .

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O.k . O.k . Você tem uma situaçãoséria aqui . Trate de resolvê-la .

Se o homem não estava morto,devia pelo menos estar morrendo.Precisava de atendimento médico.

— Eeeeeeee…— Eu estou aqui. Vou ajudar

você. Vou levá-lo para aemergência. Tente não se mexer queeu vou…

Benke se aproximou do homem epôs as mãos no corpo relutante. Amão que não estava deformada seestendeu e agarrou o pulso deBenke. Merda, apesar de tudo ele

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era bem forte. Benke se viuobrigado a usar as duas mãos parase soltar do homem.

A única coisa que havia para pôrem cima do homem para aquecê-loera o lençol funerário. Benke pegoutrês deles e os jogou em cima docorpo, que se revirava o tempo todocomo uma minhoca de iscaenquanto emitia aquele som. Benkese inclinou sobre o homem, que seacalmara um pouco depois queBenke pusera os cobertores em cimadele.

— Agora vou levar você para a

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emergência o mais rápido possível,certo? Tente ficar quieto.

Ele empurrou a maca para a portae lembrou, apesar dascircunstâncias, que o mecanismoque abria a passagem não estavafuncionando. Deu a volta nacabeceira da maca e abriu a porta.Olhou para a cabeça do homem láembaixo. Desejou não ter feito isso.

A boca, que não era uma boca,estava se abrindo.

O tecido da ferida cicatrizadopela metade se rasgou, produzindoum barulho igual àquele de quando

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a gente arranca pele de peixe.Algumas tiras de pele vermelho-clara não quiseram se romper,esticaram-se quando o buraco naparte inferior do rosto se expandiu,e continuou se expandindo.

— aaaaaa!O berro ecoou pelos corredores

vazios e o coração de Benkecomeçou a bater mais forte.

Não se mexa! Fique calado!Se ele estivesse segurando um

martelo agora, seria grande o riscode ter batido naquela massarepugnante e trêmula com o olho

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vidrado, onde as tiras de pele nacavidade bucal se rompiam nesseinstante como se fossem elásticosesticados em demasia, e Benke pôdever os dentes do homem brilhando,brancos, no meio de todo aquelefluido vermelho e marrom que eraseu rosto.

Benke deu a volta e foi para o péda maca de novo. Começou aempurrar a maca pelos corredores,em direção ao elevador. Andavarápido, quase corria, morto de medode o homem se retorcer e acabarcaindo da maca.

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Os corredores se estendiam semfim diante dele, como numpesadelo. É. Era como um pesadelo.Todos os pensamentos acerca de“uma boa história” tinham sumido.Benke só queria chegar lá em cimaonde havia outras pessoas, pessoasvivas que podiam libertá-lo dessemonstro gritando em cima da maca.

Chegou ao elevador e apertou obotão, visualizando o caminho paraa emergência. Mais uns cincominutos e ele estaria lá.

Quando estivesse lá em cima, notérreo, haveria outras pessoas que

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podiam ajudar. Mais dois minutos eele estaria no mundo real de novo.

Ande , merda de elevador!Benke olhou para o elevador e

cerrou os olhos, e depois os abriu denovo. O homem tentou dizer algumacoisa, em voz baixa. Fez um gestopara Benke se aproximar. Então eleestava consciente.

Benke foi para junto da maca e sedebruçou sobre o homem. —Como? O que foi?

A mão agarrou de repente opescoço do zelador e puxou suacabeça para baixo. Benke perdeu o

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equilíbrio e caiu em cima dohomem. A mão segurava o pescoçode Benke com uma forçadescomunal quando sua cabeça foipuxada para baixo, para o… buraco.

Ele tentou se segurar na barra demetal da cabeceira da maca para sesoltar, mas sua cabeça foi virada eos olhos dele pararam apenas a unscentímetros da compressaencharcada em cima do pescoço dohomem.

— Me larga, seu…Um dedo foi enfiado no ouvido

dele e Benke ouviu os ossos se

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partindo no canal auditivo na horaque o dedo se enterrou lá dentro,afundando-se ainda mais. Benke deuum chute e, quando sua canela bateuno metal da parte de baixo da maca,finalmente gritou.

Em seguida os dentes secravaram na bochecha dele e o dedono ouvido entrou tão fundo quealguma coisa se apagou, algumacoisa se apagou e… ele desistiu.

A última coisa que ele viu foi acompressa molhada diante dos seusolhos mudando de cor, ficandovermelho-clara enquanto o homem

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comia o rosto dele.A última coisa que ele ouviu foi

um plimquando o elevador chegou.

Eles estavam deitados um ao lado

do outro, suando, com a respiraçãoofegante. O corpo de Oskar estavatodo dolorido, exausto. Ao bocejar,ele abriu tanto a boca que seumaxilar estalou. Eli bocejoutambém. Oskar virou a cabeça paraela.

— Pare com isso.

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— Desculpe.— Você não está com sono,

certo?— Não estou.Oskar se esforçava para manter

os olhos abertos, falava quase semmexer os lábios. O rosto de Elicomeçou a ficar turvo, irreal.

— Como você faz? Paraconseguir sangue?

Eli ficou olhando para ele. Porbastante tempo. Em seguida decidiualguma coisa e Oskar viu que algocomeçou a se mexer dentro dasbochechas da garota, dos seus

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lábios, como se ela remexesse alíngua de lá para cá ali dentro.Depois abriu os lábios e arreganhoua boca.

E ele viu os dentes dela. Elifechou a boca de novo.

Oskar virou a cabeça para o outrolado e olhou para o teto, onde umfio de teia de aranha cheio de poeiracaía do lustre sem uso. Ele nemsequer tinha forças para ficarsurpreso. Então, o.k. Ela era umvampiro. Mas disso ele já sabia.

— Vocês são muitos?— Nós quem?

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— Você sabe.— Não, eu não sei.Os olhos de Oskar iam de um

lado para o outro no teto, tentandoencontrar mais teias de aranha.Achou duas. Acreditou ver umaaranha passeando numa das teias.Ele piscou. Piscou de novo. Osolhos estavam cheios de areia. Nadade aranha.

— E como é que eu devo chamarvocê? Isso que você é.

— Eli.— E por acaso é esse seu nome?— Quase.

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— Então qual é seu nome?Uma pausa. Eli se afastou um

pouco dele, foi para mais perto doencosto do sofá e se virou, ficandode lado.

— Elias.— Mas isso é nome de… menino.— É.Oskar fechou os olhos. Não

aguentava mais. As pálpebrastinham se grudado no globo dosolhos. Um buraco negro começou acrescer, a envolver seu corpo todo.Uma sensação vaga e gotejante,bem lá no fundo da cabeça, de que

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devia dizer alguma coisa, fazeralguma coisa. Mas ele não tinhaforças.

O buraco negro implodiu emcâmera lenta. Ele foi sugado para afrente, para dentro, deu umacambalhota devagar lá no espaçosideral, ali dentro do sono.

Bem longe, ele sentiu alguémacariciando um rosto. Nãoconseguiu elaborar o pensamento deque era seu próprio rosto, já que elesentia isso. Mas em algum lugar,num planeta bem distante, alguémacariciava de leve o rosto de

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alguém.E isso era bom.Depois só havia estrelas.

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QUARTA PARTE

Lá vem a companhia doduende!

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Lá vem acompanhia do

duendeDaqui não

escapa nenhumagente.

Bamse nafloresta de

duendes

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Domingo, 8 de novembro

Domingo, 8 de novembro

A ponte de Traneberg. Ao serinaugurada em 1934, era umpequeno orgulho nacional. A maiorponte de cimento de um só arco domundo . Um único arco potenteconstruído entre Kungsholmen e umVästerort que naquela época secompunha de cidadezinhas feitas decasas com jardim em Bromma eÄppelviken. Casas da época do

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movimento das moradias pequenasfeitas de partes pré-fabricadas emÄngby.

Mas o que era moderno estavapor vir. Os primeiros subúrbios deverdade com prédios de três andaresjá estavam prontos em Traneberg eAbrahamsberg e o Estado compraravastas extensões de terra a oestepara começar a construir dentro dealguns anos aquilo que viria a serVällingby, Hässelby e Blackeberg.

A ponte de Traneberg virou umaligação. Quase todo mundo queentra ou sai de Västerort passa por

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essa ponte.Já nos anos 1960, houve alertas

de que a ponte estava se degradandoaos poucos devido ao tráfegointenso que a sobrecarregava. Elafoi reformada e reforçada váriasvezes, mas a grande reforma ereconstrução de que as pessoasfalavam de vez em quando aindaestava por acontecer num futurodistante.

Então, na manhã de domingo dodia 8 de novembro de 1981, a ponteparecia cansada. Uma anciã saciadacom a vida que ruminava triste

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sobre os tempos em que o céu eramais claro, as nuvens, mais leves equando ela era a maior ponte decimento de um só arco do mundo .

A neve começara a derreter demanhãzinha e a lama escorria pelasrachaduras da ponte. As pessoas nãotinham coragem de jogar sal ali, jáque isso podia corroer ainda mais ocimento de idade avançada.

Não havia muito trânsito a essahora, especialmente no domingo demanhã. O metrô não funcionavamais e os poucos motoristas quepassavam por ali queriam muito ir

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para a cama ou voltar para ela.Benny Melin era uma exceção

nesse ponto. Está bem, é claro queele começava a querer chegar logoem casa para se deitar, masprovavelmente estava feliz demaispara poder dormir.

Oito vezes ele tivera encontroscom diversas mulheres através deanúncios de jornal, mas Betty, comquem ele combinara de se encontrarno sábado à noite, foi a primeira…bem, a primeira que “bateu” comele.

Ia dar em alguma coisa. Os dois

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sabiam disso.Eles tinham rido juntos de como

seria ridículo: “Benny e Betty”.Parecia uma espécie de casal decomediantes, mas o que eles podiamfazer? E se tivessem filhos, quenome iam dar a eles? Lenny eNetty?

É, eles tinham mesmo passadoum ótimo tempo juntos. Ficaramconversando no apartamento delaem Kungsholmen sobre seusmundos, tentando combinar os dois,e o resultado foi satisfatório. Já demanhãzinha havia apenas duas

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alternativas para o que eles iamfazer agora .

E Benny fizera o que achou ser acoisa certa, embora não tivesse sidotão fácil assim. Ele se despediracom a promessa de que se veriam denovo no domingo à noite. Sentou-seno carro e foi dirigindo para casaem Brommaplan, cantando altosozinho “I can’t help falling in lovewith you”.

Então Benny não era alguém queestivesse com energia sobrando parase lamentar, nem sequer notar, oestado deplorável da ponte de

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Traneberg nessa manhã de domingo.Pois ela representava a ponte para oparaíso, para o amor.

Ele acabara de chegar ao final daponte no lado de Traneberg ecomeçou a cantar o refrão talvezpela décima vez quando o vulto azulsurgiu na luz do farol, no meio dapista.

Benny só teve tempo de pensar:Não freie!, e em seguida tirou o pédo acelerador, deu uma viradabrusca no volante, para a esquerda,quando havia mais ou menos cincometros entre ele e o homem. Benny

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conseguiu avistar um roupão azul eum par de pernas brancas antes de alateral do carro bater na barreira decimento entre as duas pistas.

O barulho do carro arranhando nocimento foi tão alto que ele ficoutemporariamente surdo quando oveículo foi se arrastando espremidona barreira. O espelho retrovisor foiarrancado e voou para longe e aporta do lado de Benny foicomprimida a ponto de encostar emseu quadril, e depois o carro foijogado na pista de novo.

Ele tentou controlar a

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derrapagem, mas o carro escorregoupara o outro lado e bateu na gradede proteção da passagem parapedestres. O outro espelhoretrovisor foi arrancado e jogadopara longe e acabou atravessando agrade da ponte enquanto refletia nocéu as luzes da construção. Elefreou com cuidado e a próximaderrapagem foi mais branda; o carroapenas roçou na barreira decimento.

Depois de uns cem metros,conseguiu parar o carro. Bennyrespirou aliviado; ficou sentado sem

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se mexer com as mãos no colo e omotor ainda ligado. Um gosto desangue na boca: ele tinha semordido nos lábios.

Mas que maluco é esse?Olhou no retrovisor e pôde ver na

luz amarelada da pista a criaturacaminhando à frente com seu andarcambaleante, no meio da pista,como se nada tivesse acontecido.Benny ficou zangado. Um louco,claro, mas tudo tinha limite.

Tentou abrir a porta do assento,mas foi impossível. A fechaduratinha sido amassada. Retirou o cinto

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de segurança e foi se arrastandopara o lado do carona. Antes deconseguir se desembaraçar do carro,acionou o pisca alerta. Ficou ao ladodo carro de braços cruzados,esperando.

Viu que a pessoa que atravessavaa ponte trajava uma espécie decamisola de hospital e nada mais.Pés descalços, pernas nuas. Bennyia tentar ter algum tipo de conversaracional com ele.

Ele?A pessoa se aproximou. Os pés

nus faziam respingar lama e neve

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derretida, ele andava como sehouvesse um fio preso em seu peito,um fio que o puxava de um modoimplacável. Benny deu um passo emsua direção e parou. O homem deviaestar agora a uns dez metros dele eBenny pôde ver nitidamente o…rosto dele.

Benny respirou fundo e se apoiouno carro. Em seguida entrourapidamente pela porta do carona,engatou a primeira marcha e saiudali tão rápido que as rodas traseirasespirraram neve e provavelmentesujaram… aquela coisa na pista.

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Já em casa, ele se serviu de umadose cavalar de uísque e bebeu ametade. Em seguida ligou para apolícia. Contou o que tinha visto, oque acontecera. Depois de terbebido o que restava do uísque,pensou em ir para a cama apesar detudo. A patrulha de busca játrabalhava a todo vapor.

A busca foi feita por todo o

bosque de Judarn. Cinco cachorros,vinte policiais. Inclusive umhelicóptero, o que não era comum

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nesses tipos de ação.Um homem ferido e

desorientado. Apenas um policialcom cachorro podia tê-lo apanhado.

Mas as proporções aumentaramem parte porque o caso estava namira da imprensa (dois oficiaisforam designados para cuidarexclusivamente dos jornalistas quese agruparam em volta da estufa deWeibull perto da estação de metrôÅkeshov) e a polícia queria mostrarque não economizava esforços nessamanhã de domingo.

Em parte porque Benke Edwards

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foi encontrado.Isto é, partiu-se do pressuposto de

que era Benke Edwards, já queaquilo que foi encontrado carregavaum anel de casamento com o nome“Gunilla” gravado nele.

Gunilla era a esposa de Benke, oscolegas de trabalho dele sabiam.Ninguém tinha coragem detelefonar para ela. De contar que seumarido estava morto e que mesmoassim não tinham certeza de que setratava dele. De perguntar se poracaso ela sabia de algum sinalespecial… na parte de baixo do

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corpo dele.O médico-legista, que tinha

chegado às sete da manhã paraexaminar o cadáver do assassinoritual, recebeu uma outra tarefa. Setivesse sido apresentado ao querestava de Benke Edwards sem terconhecimento das circunstâncias,teria imaginado se tratar de umcorpo que ficou ao ar livre por umou mais dias numa temperatura bemfria.

Durante esse tempo, o corpo teriasido violado por ratos, raposas,talvez carcajus e ursos, se a palavra

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“violar” fosse adequada nessecontexto quando se trata de umanimal que comete tal ato. Em todocaso, predadores de grande porteteriam arrancado pedaços da vítimade um modo semelhante e roedoresde pequeno porte teriam tomadoconta das partes protuberantes comonariz, orelhas e dedos.

O relatório rápido e preliminar domédico-legista que foi encaminhadopara a polícia era o outro motivo dea busca acontecer numa escala tãogrande. O homem era descrito comoalguém extremamente violento, na

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linguagem oficial.Louco de pedra, na boca do povo.O fato de o homem estar vivo era

nada mais nada menos que ummilagre. Não um milagre do tipoque o Vaticano gostaria de celebrarcom o turíbulo de incenso, mas,ainda assim, um milagre. Antes daqueda do décimo andar, ele era umvegetal, agora estava em pé,andando e mais que isso.

Mas ele não podia estar bem . Éverdade que o tempo tinha ficadomais ameno, mas fazia apenaspoucos graus acima de zero e o

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homem estava de camisola dehospital. Ele não tinha nenhumcúmplice, até onde a polícia sabia, esimplesmente não conseguiriacontinuar escondido no bosque pormais de algumas horas, no máximo.

O telefonema de Benny Melinchegara quase uma hora depois deele ter visto o homem na ponte deTraneberg. Mas, apenas algunsminutos mais tarde, veio a ligaçãode uma senhora.

Ela fizera seu passeio matutinona companhia do cachorro quandoviu um homem com roupa de

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hospital nas proximidades dosestábulos de Åkershov, ondeficavam as ovelhas do rei durante oinverno. Foi para casaimediatamente e telefonou para apolícia, pois pensou que os animaispodiam estar em perigo.

Dez minutos mais tarde, aprimeira patrulha chegara ao local ea primeira coisa que os policiaisfizeram foi inspecionar os estábulosde revólver em punho, nervosos.

As ovelhas tinham ficado tensase, antes de a polícia ter examinadotodas as instalações do estábulo,

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uma multidão de corpos cheios de lãe indignados, juntamente combalidos altos e gritos quasehumanos, foi o que atraiu maispoliciais para o local.

Durante a vistoria dos currais,uma série de ovelhas fugiu pelocorredor e, quando os policiaisfinalmente puderam constatar que ohomem não estava nos estábulos edeixaram as instalações com oouvido ensurdecido, uma ovelhafugiu sorrateiramente porta afora.Um policial mais velho que tinhaagricultores na família se jogou por

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cima do animal e pegou a ovelhapelos chifres, arrastando o bicho devolta para os estábulos.

Foi só depois de ter rebocado aovelha para o curral que o policialentendeu que os flashes fortes quevira de soslaio durante a ação eramflashes de fotos. Julgouerroneamente que o assunto erasério demais para a imprensa quererfazer uso de uma foto dessas. Logodepois, instalou-se uma base para osjornalistas, fora da área de busca.

Agora eram sete e meia da manhãe a aurora chegava aos poucos sob

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árvores que pingavam de neve. Acaçada ao louco solitário estavabem organizada e a toda avelocidade. Tinha-se certeza de queele seria pego antes da hora doalmoço.

Bem, ainda demorariam algumashoras sem nenhum resultado doshelicópteros com sensores de calore dos focinhos sensíveis dos cãespara que as suspeitas de que ohomem talvez não estivesse maisvivo tomassem vulto. De que eraum cadáver o que se estavaprocurando.

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Quando a primeira luz pálida do

amanhecer penetrou pelos vãos daspersianas e bateu na palma da mãode Virginia parecendo uma lâmpadamuito quente, ela só queria umacoisa: morrer. Mesmo assim, tirou amão e se encolheu ainda mais nocanto da sala.

Sua pele estava aberta em maisde trinta lugares. Havia sangue portodo canto no apartamento.

Repetidas vezes de madrugadaela cortara artérias para beber, masnão conseguiu sugar e fazer curativo

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em tudo que escorreu. O sangueacabava caindo no chão, na mesa,nas cadeiras. Parecia que alguémtinha abatido um cabrito montês notapete grande de lã da sala.

A satisfação e o alívio diminuíamcada vez mais a cada ferida novaque ela abria, a cada gole quetomava do próprio sangue cada vezmais ralo. Lá pela aurora, Virginiaera uma massa que gemia deabstinência e angústia. Angústia porsaber o que precisava ser feito sequisesse continuar a viver.

O entendimento tinha vindo aos

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poucos, e se transformou emcerteza. O sangue de outra pessoa adeixaria… boa. E ela não conseguiase suicidar. Vai ver que nem mesmoera possível; os cortes que ela fizeracom a faca de frutas cicatrizaramtão rápido que não era natural. Pormais que cortasse fundo e comforça, parava de sangrar dentro deum minuto. Depois de uma hora, acicatriz já começava a aparecer.

Além do mais…Ela tinha sentido uma coisa.Foi de manhã, quando estava

sentada na cozinha, sugando uma

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ferida na dobra do braço, a segundano mesmo lugar, que Virginiapenetrou fundo no próprio corpo e aavistou.

A contaminação.É claro que ela não a viu , mas de

repente teve uma percepçãoabrangente do que era aquilo. Eracomo estar grávida e ver umultrassom do próprio ventre, ver natela o que havia dentro da barriga;não uma criança, mas uma cobragrande se contorcendo. Ver que eraisso que se estava carregando.

Pois o que ela vira naquele

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instante é que a contaminação tinhauma vida própria, uma força motrizprópria, totalmente independente doseu corpo. Que a contaminaçãopodia viver, mesmo que ela nãovivesse. A mãe morreria com ochoque do ultrassom, mas ninguémnotaria nada, já que a cobracomeçaria, em vez dela, a controlaro corpo.

Por isso suicídio não adiantavanada.

A única coisa que a contaminaçãoparecia temer era a luz do sol. A luzpálida na mão tinha causado mais

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dor que as feridas mais profundas.Durante muito tempo, ela ficou

sentada encolhida no canto da salade estar, vendo como a luz da aurorapor trás das persianas desenhavauma grade no tapete manchado.Pensou no neto, Ted. Como elecostumava engatinhar no chão parao lugar onde o sol da tarde batia edepois se deitava e adormecia napoça de luz com o polegar na boca.

A pele nua, macia, a pele fininhaque a gente só precisava…

que pensamentos são esses?!Virginia deu um pinote e ficou

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olhando com olhos vazios à frente.Tinha visto Ted, e imaginaracomo…

NÃO!Ela socou a própria cabeça. Não

parou de bater até a imagem sedesfazer. Mas nunca mais poderiaver o neto. Nunca mais poderia seencontrar com ninguém que elaamasse.

Nunca mais vou poder meencontrar com alguém que eu amo .

Virginia obrigou o corpo a seendireitar e se arrastou lentamentepara a grade de luz. A contaminação

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protestou e queria fazê-la recuar,mas ela era mais forte, ainda tinhacontrole sobre o próprio corpo. Aluz fazia seus olhos arderem, osriscos da grade queimavam suascórneas como fios de aço em brasa.

Queime! Queime tudo!Seu braço direito estava cheio de

cicatrizes, de sangue pisado. Elaestendeu o braço na luz.

Não conseguiria imaginar.Aquilo que a luz fizera com ela

no sábado foi uma carícia. Agora seacendeu a chama de uma solda, cujofoco era sua pele. Depois de um

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segundo, a pele ficou branca quenem giz. Depois de dois segundos,começou a soltar fumaça. Depois detrês segundos, apareceu uma bolha,que ficou preta e estourou, fazendoum chiado. Depois de quatrosegundos, ela arrancou o braço dalie foi se arrastando, chorando, paradentro do quarto.

O fedor de carne queimadaenvenenava o ar; ela não tinhacoragem de olhar para o braço aosubir se contorcendo na cama.

Vou descansar .Apesar das persianas fechadas,

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havia luz demais no quarto. Emborase tapasse com a coberta, Virginiase sentia desprotegida na cama. Osouvidos captavam todo e qualquerbarulho da manhã do prédio ao seuredor e cada som era uma ameaçaem potencial. Alguém caminhavapelo chão acima dela. Levou umsusto, virou a cabeça na direção dosom, prestou atenção. Uma gavetafoi puxada, tilintar de metal noandar de cima.

Colheres de chá .Ela sabia pelo som quebradiço

que se tratava de… colheres de chá.

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Viu diante de si a caixa revestida develudo com as colheres de prata quetinham sido da avó e que elaganhara da mãe quando esta semudara para o asilo. Viu comoabrira aquela caixa, olhara ascolheres e constatara que elas nuncatinham sido usadas .

Virginia pensou nisso agora, aosair devagar da cama; puxou oedredom consigo, foi para o armáriode duas portas e as abriu. No fundodo armário havia um edredom extrae uns cobertores.

Sentiu uma espécie de tristeza

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quando olhou para as colheres. Ascolheres que tinham ficado na caixatalvez durante uns sessenta anossem que ninguém nunca as tivesseapanhado, segurado nas mãos,usado.

Mais sons ao seu redor, o prédioacordava. Ela parou de ouvi-losquando estendeu o edredrom e oscobertores, enrolou-se neles, ficouencolhida dentro do armário efechou as portas. Estava escurocomo breu ali dentro. Ela cobriu acabeça com o edredrom e oscobertores, e se encolheu que nem

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uma lagarta num casulo duplo.Nunca mais na vida .Enfileiradas, em posição de

sentido em seu leito de veludo,esperando. Colherzinhas frágeis deprata. Ela se enrolou com o panodos cobertores bem rente ao rosto.

Quem vai ficar com elas agora ?A filha dela. É. Lena ia ficar com

elas e as usaria para dar comida aTed. Então as colheres ficariamfelizes. Ted comeria purê de batatasnaquelas colheres. Perfeito.

Ela ficou imóvel como umapedra, a calma invadiu-lhe corpo.

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Um último pensamento teve tempode ser pensado antes de ela cair nosono. Por que não estou com calor?

Com o cobertor em cima dorosto, enrolada num pano grosso,devia estar com muito calor nacabeça. A pergunta pairavasonolenta de lá para cá num cômodogrande e preto, aterrissando por fimnuma resposta muito simples.

Porque já faz alguns minutos queeu não respiro .

E nem sequer agora, quandoestava ciente disso, ela sentiu queprecisava . Nenhuma sensação de

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sufocamento nem falta de oxigênio.Não precisava mais respirar, era sóisso.

A pregação começava às onze,

mas já às dez e quinze Tommy eYvonne estavam na plataforma deBlackeberg esperando o metrô.

Staffan, que cantava no coro daigreja, contara a Yvonne qual era otema do culto de hoje. Yvonnedissera a Tommy, quis saber comjeito se o filho gostaria deacompanhá-la e, para sua surpresa,

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ele aceitara.Seria sobre a juventude de hoje.Tendo como ponto de partida a

passagem no Velho Testamentosobre a saída de Israel do Egito, opastor, com a ajuda de Staffan,escrevera uma pregação sobre asestrelas-guias . O que um jovem nasociedade de hoje podia ter à frentedo seu caminho, como se deixar serguiado na peregrinação pelodeserto, e assim por diante.

Tommy tinha lido a passagem naBíblia e dissera que gostaria de irjunto.

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Então, quando o metrô nessamanhã de domingo saiu ribombandodo túnel vindo da praça Island,soltando à frente uma coluna de arque fez esvoaçar os cabelos deYvonne, ela estava feliz da vida.Olhou para o filho, que estava aoseu lado com as mãos enfiadas nofundo do bolso do casaco.

Tudo vai dar certo .É. O fato de ele querer ir ao culto

de domingo com ela já eraimportante. Mas, além disso,também era um sinal de que eleaceitara Staffan, não é?

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Os dois entraram no metrô esentaram-se um na frente do outro,ao lado de um ancião. Antes de otrem chegar, eles tinhamconversado sobre o que ouviram norádio naquela manhã; a caçada aoassassino no bosque de Judarn.Yvonne se inclinou em direção aTommy.

— Você acha que ele vai serpreso?

Tommy deu de ombros.— Acho que sim. Mas aquilo é

um bosque grande, então… émelhor perguntar a Staffan.

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— A coisa toda é tão macabra.Imagine se ele vem para cá.

— O que ele vai fazer aqui? Mas,por outro lado, o que ele foi fazerem Judarn? Nesse caso tambémpode vir para cá.

— Argh.O senhor se esticou, fez um gesto

como se tivesse sacudido algumacoisa dos ombros e disse: — Agente fica se perguntando se umapessoa dessas pelo menos é um serhumano.

Tommy levantou os olhos para amãe, Yvonne disse “Ahã” e sorriu

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para ele, o que o homem interpretoucomo um gesto encorajador paracontinuar.

— O que estou dizendo é que…primeiro aqueles atos terríveis edepois… nesse estado, uma quedadessas. É, é o que eu disse: não setrata de um ser humano, e eu esperoque a polícia atire nele lá no bosque.

Tommy balançou a cabeça efingiu concordar.

— Melhor enforcá-lo na primeiraárvore.

O homem ficou exaltado.— Isso mesmo. É o que venho

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dizendo o tempo todo. Eles deviamter lhe dado uma injeção de venenoou alguma coisa parecida já nohospital, como se faz com cachorrolouco. Assim a gente não precisariaficar com medo nem testemunharessa caçada absurda que éfinanciada com o dinheiro dosnossos impostos. Um helicóptero. É,acabei de passar por Åkeshov e apolícia tem um helicópterosobrevoando a área. Para isso elestêm dinheiro. Mas para dar aosaposentados uma pensão dignadepois de uma vida inteira a serviço

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da sociedade, isso não dá. Masmandar um helicóptero que ficazunindo lá em cima e assustando osanimais…

O monólogo continuou até chegara Vällingby, onde Yvonne e Tommysaltaram enquanto o homem seguiuviagem. O metrô ia virar eprovavelmente o senhor percorreriao mesmo caminho de volta a fim deavistar mais uma vez o helicóptero,talvez continuar seu monólogo comoutra pessoa na plateia.

Staffan esperava por eles do ladode fora da igreja São Tomás, que

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parecia uma pilha de tijolos.Ele estava de terno e com uma

gravata desbotada de listras azuis eamarelas que fez Tommy pensarnaquele retrato da guerra: “Um tigresueco”. O rosto de Staffan seiluminou quando ele avistou os doise foi ao seu encontro. AbraçouYvonne e estendeu a mão paraTommy, que a apertou.

— Fico feliz de vocês teremvindo. Especialmente você, Tommy.O que o fez…

— Só queria ver como é.— Ahã. Bem, espero que goste.

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Que a gente o veja aqui mais vezes.Yvonne alisou o ombro de

Tommy.— Ele leu na Bíblia sobre… isso

de que vocês vão falar hoje.— É mesmo… Bem, foi

mesmo… aliás, Tommy. Ainda nãoachei aquele troféu. Mas… acho quea gente pode passar uma borrachanisso, o que você me diz?

— Ahã.Staffan esperou que Tommy fosse

dizer algo mais, porém, quando omenino não fez isso, Staffan sevirou para Yvonne.

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— Eu devia estar em Åkeshovagora, mas… não queria perder essaocasião. Mas depois, assim que agente acabar, eu tenho que ir direto,então a gente pode…

Tommy entrou na igreja.Nos bancos só estavam sentados

uns poucos idosos de costas paraele. A julgar pelos chapéus, tratava-se de senhoras.

A igreja era iluminada por umaluz amarela que vinha de lâmpadasnas paredes ao comprido daconstrução. Entre os bancos corriaum tapete vermelho com figuras

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geométricas que ia até o altar; umbanco de pedra onde havia vasoscom flores. No alto disso tudoestava pendurada uma cruz grandede madeira com um Jesusmodernista pregado nela. Aexpressão do seu rosto podiafacilmente ser interpretada comoum sorriso irônico.

Bem atrás da igreja, perto daentrada, onde Tommy seencontrava, havia tripés comfolhetos, um cofrinho para depositardinheiro e uma pia batismal grande.Tommy se aproximou dela e olhou

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lá dentro.Perfeito.Ao ver a pia, ele tinha pensado

que era bom demais ; que ela estavaprovavelmente cheia d’água. Masnão estava. A pia inteira havia sidoesculpida numa pedra só, ia até acintura de Tommy. A bacia eraverde-escura, áspera, e não havianenhuma gota d’água nela.

O.k . Vamos lá .Do bolso do casaco, ele tirou um

saco plástico de dois litros com umnó bem apertado cheio de um póbranco e olhou ao redor. Ninguém

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estava olhando para o lado dele.Tommy furou o plástico com o dedoe deixou o conteúdo do sacoescorrer na pia.

Depois enfiou o saco vazio nobolso e foi para fora, enquantotentava arranjar uma boa desculpapara não se sentar junto da mãe naigreja, pois queria ficar lá atrás,perto da pia batismal.

Podia dizer que queria ir emborasem incomodar ninguém, se o cultoficasse chato demais. Isso soavacorreto. Soava…

Perfeito .

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Oskar abriu os olhos e foi tomado

de angústia. Não sabia onde estava.O cômodo à sua volta estava noescuro, ele não reconheceu asparedes nuas.

Estava deitado num sofá. Emcima dele, havia um cobertor quefedia um pouco.

As paredes oscilavam diante deOskar, boiavam livres no arenquanto ele tentava dispô-las nolugar certo, encaixá-las de modoque juntas elas formassem umquarto conhecido. Não funcionou.

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Puxou o cobertor até o nariz. Umcheiro de bolor encheu suas narinase ele tentou se acalmar, deixar derefazer o lugar e, em vez disso, selembrar .

É. Agora se lembrava.O pai . Janne . A carona . Eli . O

sofá . A teia de aranha .Olhou para cima no teto. Os fios

poeirentos da teia de aranhaestavam ali, era difícil vê-los noescuro. Ele adormecera com Elijunto dele no sofá. Quanto tempo sepassara? Será que era de manhã?

As janelas estavam tapadas com

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cobertores, mas nos cantos Oskarpodia ver uma moldura suave de luzcinza. Empurrou o cobertor e foipara a janela da sacada, afastou umpouco o cobertor da janela. Aspersianas estavam fechadas.Levantou-as um pouco e, sim: já erade manhã lá fora.

A cabeça lhe doía e a luzmachucava seus olhos. Respirouofegante e assustado, largou ocobertor e sentiu a garganta comambas as mãos, o pescoço. Não.Claro que não. Ela já dissera quenunca…

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Mas onde ela está?Ele olhou ao redor na sala, os

olhos pousaram numa porta fechadaque dava para o cômodo onde Elitrocara de blusa. Deu alguns passosem direção à porta e se deteve. Aporta estava na sombra. Cerrou ospunhos, sugou o nó dos dedos.

E se ela estivesse mesmo …deitada num caixão?

Besteira. Por que ela ia fazerisso? E por que os vampiros iamfazer isso? Porque eles estãomortos. E Eli disse que ela não…

Mas e se …

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Ficou sugando o nó do dedo,passou a língua nele. O beijo de Eli.A mesa com comida. Só o fato deela poder fazer isso. E… os dentes.Os dentes de predador.

Se apenas fosse um pouquinhomais claro .

Ao lado da porta estava ointerruptor da luz no teto. Eleapertou, sem achar que iriaacontecer alguma coisa. Mas, sim.A luz no teto se acendeu. Apertou osolhos por causa da luz forte, deixou-os se acostumar antes de se virarpara a porta, e ficou segurando a

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maçaneta.A luz não ajudou nem um pouco.

O lugar ficou ainda mais sinistroagora que a porta era apenas umaporta comum. A mesma porta quehavia em seu quarto. Igualzinha . Amaçaneta tinha o mesmo formato. Eela estaria deitada ali dentro.Talvez com os braços cruzados nopeito.

Preciso ver .Para experimentar, ele apertou a

maçaneta, que ofereceu apenas umpouco de resistência. Ou seja, aporta não estava trancada, nesse

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caso a maçaneta teria apenasdeslizado para baixo. Apertou amaçaneta ao máximo e a portaabriu, fez-se um vão. Ali dentroestava escuro.

Alto lá!Será que ela ia se machucar com

a luz se ele abrisse a porta?Não. Na noite anterior ela se

sentou junto da luminária de pé semparecer se incomodar. Mas essalâmpada era mais forte e talvez aluminária… tivesse um tipoespecial de lâmpada, uma lâmpadaque… que não agredia vampiros.

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Muito ridículo. “Lojas especiaisde lâmpadas para vampiros.”

Eli não ia deixar a lâmpada noteto se fosse… prejudicial a ela .

Mesmo assim, Oskar abriu aporta com cuidado, deixou um conede luz se ampliar devagar dentro docômodo. Ali estava tão vazio quantona sala. Uma cama e uma pilha deroupas, nada mais. A cama tinhaapenas um lençol e um travesseiro.O cobertor que ele usou devia tervindo dali. Na parede perto dacama, um papel colado com fita.

O código morse.

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Então era aqui que ela ficavaquando…

Respirou fundo. Tinhaconseguido esquecer isso.

Do outro lado dessa parede estámeu quarto .

É. Ele estava a dois metros daprópria cama, da sua vida normal.

Deitou-se na cama, teve oimpulso de bater uma mensagem naparede. Para Oskar. Do outro lado.O que ele ia dizer?

O.N.D.E. V.O.C.Ê. E.S.T.Á.Sugou o nó do dedo novamente.

Ele estava aqui . Era Eli quem não

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estava.Sentiu-se tonto, confuso. Deixou

a cabeça afundar no travesseiro,com o rosto virado para o quarto. Otravesseiro tinha um cheiroestranho. Que nem o cobertor,porém mais forte. Um cheiro debolor, de gordura. Olhou para apilha de roupas que estava a algunsmetros da cama.

É tão nojento.Não queria mais ficar aqui. O

apartamento estava vazio esilencioso demais e tudo eramuito… anormal. Passou os olhos

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pela pilha de roupas, elesaterrissaram nos armários quecobriam a parede toda no ladooposto, até a porta. Dois armáriosde duas portas e um de uma porta.

Ali .Puxou as pernas para cima da

barriga, ficou olhando para as portasfechadas dos armários. Ele nãoqueria. Estava com dor de barriga.Sentia pontadas, uma ardência nabarriga.

Vontade de fazer xixi.Saiu da cama e foi para a porta

sem desgrudar os olhos dos

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armários. Tinha dois parecidos noquarto dele, sabia que Eli cabiamuito bem lá dentro. Era ali que elaestava e ele não queria ver maisnada.

A lâmpada do corredor tambémfuncionava. Ele acendeu a luz eatravessou o pequeno corredor parao banheiro. A porta estava trancada.A cor da fechadura acima damaçaneta estava vermelha. Elebateu.

— Eli?Nada. Bateu de novo.— Eli, você está aí?

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Nada. Mas, quando disse o nomedela em voz alta, Oskar se lembroude que estava errado. Foi a últimacoisa que ela dissera quandoestavam deitados no sofá. Que elana verdade se chamava… Elias.Elias . Um nome de menino. Seráque Eli era um menino? Mas elestinham… se beijado e dormido namesma cama e…

Oskar empurrou a porta dobanheiro e descansou a testa nasmãos. Ficou pensando . Pensandointensamente. E não entendeu. Ofato de ele poder aceitar de alguma

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forma que Eli era um vampiro , maso fato de ser mais… difícil deaceitar que ela era um menino.

Ele conhecia a palavra. Bicha.Bichinha. Essas coisas que Jonnydizia. Então era pior ser bicha queser…

Ele bateu na porta de novo.— Elias?Um calafrio no estômago quando

disse isso. Não ia se acostumar.Ela… ele se chamava Eli. Mas issoera demais para Oskar.Independentemente do que Elifosse, isso era demais. Ele não

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conseguia. Nada era normal comela.

Tirou a testa de cima das mãos esegurou a vontade de fazer xixi.

Passos lá fora na escada e logodepois o barulho da caixa decorreios sendo aberta, um baque.Ele saiu da porta do banheiro, foiver o que era. Anúncios.

carne moída 14,90 por quilo.Letras vermelhas e gritantes,

números. Apanhou os folhetos deanúncio e entendeu; colou o olho noburaco da fechadura enquantopassos ecoavam na escada lá fora,

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barulho de caixas de correio que seabriam e se fechavam.

Depois de meio minuto, viu peloburaco da fechadura sua mãe passar,descendo a escada. Oskar só viu derelance o cabelo e a gola do casacodela, mas sabia que era a mãe.Quem mais seria senão ela?

Que distribuía os anúnciosquando o filho não estava em casa.

Segurando bem apertado osfolhetos de anúncios, Oskar seafundou no chão junto à porta edescansou a testa nos joelhos. Nãochorou. A vontade de fazer xixi era

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um formigueiro ardendo em suabarriga, que de algum modo oimpediu de chorar.

Mas na cabeça ele tinha apenasum único pensamento: Eu nãoexisto . Eu não existo .

Lacke ficou a madrugada inteira

se preocupando. Desde que tinhadeixado Virginia, uma aflição seinstalou aos poucos e ficou roendoum buraco em seu estômago. Tinhaficado mais ou menos uma horacom a turma lá no restaurante

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chinês na noite de sábado, tentoufazer os outros compartilharem dasua preocupação, mas ninguém quis.Lacke sentira que ia acabarestourando, que corria risco de ficarfulo da vida, então foi embora.

Pois não saía nada de bom daturma.

Nenhuma novidade, é claro, masele tinha achado que… bem, quediabos mesmo ele tinha achado?

Que havia mais pessoas que seimportavam .

Que mais alguém além dele sentiaque algo muito estranho estava

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acontecendo.Era tanto papo, tantas palavras

vazias, especialmente vindas deMorgan, mas, quando chegava ahora de agir, ninguém tinha forçasde levantar um dedo para fazeralguma coisa.

Não que Lacke soubesse o que iafazer, mas pelo menos estavapreocupado. Mesmo que nãoajudasse em nada. Ficou deitadosem conseguir dormir a maior parteda noite, de vez em quando tentavaler um pouco de Os demônios deDostoiésvski, mas se esquecia do

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que tinha acontecido na páginaanterior, na frase anterior, e acaboudesistindo.

No entanto, uma coisa boaaconteceu essa noite: ele haviatomado uma decisão.

No domingo de manhã ele tinhaestado na casa de Virginia e batidona porta. Ninguém abriu e ele partiudo princípio… esperou que elativesse ido ao hospital. A caminhode casa, passou por duas mulheresque estavam conversando na rua eouviu alguma coisa sobre umassassino que a polícia estava

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procurando no bosque de Judarn.Santo Deus , é um assassino em

cada matagal . Agora os jornais vãose fartar com essa notícia nova .

Fazia pouco mais de dez dias quea polícia prendera o assassino deVällingby e os jornais estavam secansando de especular sobre quemele era e o porquê de ter feito o quefez.

Nos artigos a seu respeito, haviaum forte tom de… bem, de prazersádico. Descrevia-se com umaminúcia irritante o estado atual desaúde do assassino, que ele ficaria

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internado durante seis meses. Numbox, um quadro com dados sobrecomo o ácido clorídrico afetava ocorpo, assim o leitor podia sedeleitar imaginando a dor que asubstância devia causar.

Não, Lacke não sentia nenhumprazer com essas coisas. Só seimpressionava de ver como aspessoas ficavam exaltadas comalguém que já “teve seu castigo” eassim por diante. Ele era totalmentecontra a pena de morte. Não porquefosse adepto de uma concepção“moderna” do direito, não mesmo.

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Na verdade, sua concepção eraantiga.

Ele achava o seguinte: se alguémmata meu filho, então eu mato essapessoa. Dostoiésvski falava muitode perdão, de misericórdia. Certo.Da parte da sociedade, é claro. Maseu, como pai do filho morto, tenhopleno direito moral de sacrificaraquele que fez isso. Se a sociedadedepois vai me mandar cumprir oitoanos ou mais na cadeia, é outroassunto.

Não era assim que Dostoiévskipensava, e Lacke sabia disso. Mas

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ele e Fiódor tinham opiniõesdiferentes a esse respeito, era sóisso.

Lacke refletia sobre essas coisasenquanto ia para casa, naIbsengatan. Já no apartamento,descobriu que estava com fome,cozinhou uma porção de macarrãoinstantâneo e comeu com colherdireto da panela, com ketchup.Enquanto punha a panela de molhopara ficar mais fácil de lavar depois,veio o barulho da caixa de correios.

Anúncios. Não ligou, não tinhadinheiro de qualquer jeito.

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É. Era isso mesmo .Limpou a mesa da cozinha com o

pano e foi apanhar o álbum de selosdo pai da cômoda, que também erauma herança paterna, e transportá-lapara Blackeberg tinha sido uminferno. Pôs o álbum com cuidadoem cima da mesa e o abriu.

Ali estavam eles. Quatroexemplares sem carimbo doprimeiro selo emitido na Noruega.Ele se debruçou sobre o álbum eapertou os olhos examinando o leãoem pé apoiado nas patas traseiras nofundo azul-claro.

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Absurdo .Quatro vinténs tinha sido o valor

deles quando apareceram em 1855.Agora valiam… mais. O fato de osselos estarem juntos compondo doispares fazia com que o valor fosseainda maior.

Foi isso que ele resolvera demadrugada, enquanto se revirava nacama sem sono em meio aos lençóisimpregnados de cigarro; que tinhachegado a hora. Aquilo com aVirginia havia sido a gota d’água.Depois, além disso tudo, aincapacidade da turma de entender,

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e a conclusão: não, não quero ficarjunto dessa gente.

Ele iria embora dali e Virginiatambém.

Seja lá como fosse, com omercado em alta ou em baixa, elereceberia um pouco mais detrezentos mil contos pelos selos emais duzentos mil peloapartamento. Depois compraria umacasa no campo. Bem, está certo:duas casas. Uma granja pequena. Odinheiro era suficiente e tudo dariacerto. Assim que Virginia ficasseboa, ele faria a proposta e achava…

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bem, tinha quase certeza de que elaaceitaria, ela ia simplesmenteadorar a ideia.

Seria desse jeito.Lacke sentia-se mais calmo

agora. Tudo estava claro em suacabeça. Como ia fazer hoje, nofuturo. Tudo se ajeitaria.

Repleto de pensamentosagradáveis, ele entrou no quarto,deitou-se na cama para descansaruns cinco minutos e adormeceu.

— Nós os vemos nas ruas e nas

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praças, ficamos intrigados diantedeles e dizemos para nós mesmos: oque será que podemos fazer?

Nunca na vida Tommy tinhaficado tão entendiado. Sótranscorrera meia hora do culto eele achava que teria se divertidomais se tivesse ficado numa cadeiraolhando apenas para a parede.

“Bendito seja”, “Cantos delouvor” e “Regozijo do Senhor”,mas por que todo mundo ficava alisentado olhando para aquilo comose estivesse assistindo a um jogoclassificatório entre a Bulgária e a

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Romênia? Não significava nadapara eles, aquilo que eles liam nolivro, que eles cantavam. Tampoucoparecia ter alguma importância parao pastor. Era apenas uma coisa queele tinha que fazer para receber osalário.

Em todo caso, agora o sermãotinha começado.

Se o pastor se referissejustamente àquele trecho na Bíblia,aquele que Tommy tinha lido, ele iafazer. Do contrário, não faria.

A Bíblia vai decidir a questão .Tommy procurou no bolso. As

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coisas estavam no lugar e a piabatismal, apenas a três metros daúltima fileira onde ele estavasentado. Sua mãe estava lá nafrente, provavelmente para ficar sederretendo para Staffan enquantoele cantava aqueles hinos semsentido com as mãos entrelaçadasde leve em frente ao pau de policial.

Tommy trincou os dentes. Queriamuito que o pastor fosse dizeraquilo.

— Nós vemos em seus olhos queeles estão confusos, confusos comoalguém que está perdido e não

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encontra o caminho de casa. Quandovejo um jovem desses, sempre mevem à mente o êxodo do Egito dopovo de Israel.

Tommy ficou petrificado. Maspode ser que o pastor não fosse seaprofundar justamente naquilo .Talvez falasse alguma coisa sobre omar Vermelho. Mesmo assim, tirouas coisas do bolso; um isqueiro eum briquete. Suas mãos tremiam.

— Porque é assim queprecisamos olhar para esses jovensque às vezes nos deixam sem ação.Eles peregrinam por um deserto de

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perguntas sem respostas, deperspectivas incertas de futuro. Masexiste uma grande diferença entre opovo de Israel e a juventude dehoje…

Então diz logo …— O povo de Israel tinha alguém

que o guiava . Vocês se lembram doque está nas Escrituras, não selembram? “O Senhor ia à frentedeles: de dia, numa coluna denuvem, para os guiar; de noite,numa coluna de fogo, para osiluminar.” É essa coluna de nuvem,essa coluna de fogo que falta aos

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jovens de hoje e…O pastor baixou os olhos para

seus papéis.Tommy já tinha acendido o

briquete, segurava-o entre o polegare o indicador. A ponta queimavaproduzindo uma chama limpa e azulque descia para seus dedos. Na horaque o pastor consultou as anotações,Tommy aproveitou.

Ele se agachou, deu um passolargo para sair do banco, estendeu obraço ao máximo e jogou o briquetena pia batismal, voltandorapidamente para o banco. Ninguém

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tinha percebido nada.O pastor levantou os olhos de

novo.— … e é nosso dever na

qualidade de adultos ser essa colunade nuvem, essa estrela-guia para osjovens. E de quem eles podemesperar isso se não for de nós? E aforça para isso podemos receber dasobras do Senhor…

Uma fumaça branca subia da piabatismal. Tommy já podia sentir ocheiro adocicado e familiar.

Ele já tinha feito isso um montãode vezes; queimado ácido nítrico

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com açúcar. Mas raramente umaquantidade dessas de uma vez só enunca dentro de casa. Estavacurioso para ver que efeito surtiriaquando não houvesse mais ventonenhum que dissipasse a fumaça.Entrelaçou os dedos e apertou asmãos com força uma na outra.

O irmão Ardelius, pastor interino

de Vällingby, foi a primeira pessoaque viu a fumaça. Interpretou acoisa como ela era: fumaça da piabatismal. A vida toda ele esperara

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por um sinal do Senhor e não davapara negar que, quando viu subir aprimeira coluna de fumaça, pensoupor um instante: Oh , Senhor .Finalmente .

Mas o pensamento desapareceu.O fato de a sensação de milagre tê-lo deixado tão rapidamente foi paraele a prova de que aquilo não eranenhum milagre, nenhum sinal. Eraapenas isto: fumaça da pia batismal.Mas por quê?

O zelador da igreja, com quemele não se dava muito bem, tinhafeito piada da coisa. A água na pia

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começara a… ferver…O problema é que ele se

encontrava no meio de umapregação e não podia ficar pensandonesse assunto. Então o irmãoArdelius fez o que a maioria daspessoas faz em situaçõessemelhantes: continua como se nadativesse acontecido e espera que oproblema se resolva por si mesmo.Ele deu uma tossidinha e tentou selembrar do que dissera por último.

As obras do Senhor . Algumacoisa sobre tirar força das obras doSenhor . Um exemplo .

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Olhou disfarçadamente para aspalavras-chave no papel. Ali estava:descalços.

Descalços? O que eu quis dizercom isso? Que o povo de Israel iadescalço , ou que Jesus … algumacaminhada longa …

Ele levantou os olhos e viu que afumaça estava mais densa agora,formando uma coluna que subiadevagar da bacia em direção ao teto.O que foi que ele dissera porúltimo? Isso. Lembrou. As palavrasainda pairavam no ar.

“E a força para isso nós podemos

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receber das obras do Senhor.”Era um final razoável. Não era

bom, não exatamente o que ele tinhapensado, mas razoável. Ele sorriuconfuso para os fiéis e acenou coma cabeça para Birgit, que dirigia ocoro.

O coro, oito pessoas, levantou-secomo um corpo único e foi para opalco. Quando se viraram para osfiéis, o pastor pôde ver em seu rostoque eles também tinham visto afumaça. Louvado seja o Senhor, porum segundo ele pensara que haviasido só ele quem vira a fumaça.

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Birgit olhou interrogativamentepara o pastor e ele fez um gesto coma mão: comece , comece logo .

O coro começou a cantar.

Guie-me, Senhor , guie-me na

retidãoQue meus olhos vejam seu

caminho …

Uma das composições mais

bonitas de Wesley pai. O irmãoArdelius desejou poder desfrutar dabeleza da música, mas a coluna de

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fumaça estava começando apreocupá-lo. Uma fumaça densa ebranca se ergueu da pia batismal ealguma coisa lá no fundo da própriacuba queimava produzindo umachama branco-azulada que chiava ecrepitava. Um cheiro adocicadoatingiu suas narinas e os fiéisolharam ao redor tentando descobrirde onde vinha aquele crepitar.

Pois é apenas você , meu Deus ,

apenas vocêquem faz a alma sentir paz e

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proteção …

Uma das mulheres no coro

começou a tossir. Os fiéis viraram acabeça da pia batismal cheia defumaça para o irmão Ardelius a fimde receber orientação sobre como secomportar, se isso fazia parte dapregação.

Mais pessoas começaram a tossire puseram lenços ou mangas deblusa na frente da boca e do nariz. Aigreja começou a se encher de umanévoa suave e, através dessa névoa,

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o irmão Ardelius viu que alguém selevantou da última fileira e correuporta afora.

É. É a coisa mais sensata a fazer .Ele se aproximou do microfone.— Bem, aconteceu um

pequeno… contratempo, eu achoque é melhor… deixarmos o local.

Já na palavra “contratempo”Staffan deixara o palco e começou ase dirigir para a saída a passosrápidos e controlados. Ele entendeu.Era aquele moleque safado e ladrãode Yvonne que tinha feito isso. Jánaquela hora, em que descia do

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palco, tentou se controlar, porque jásentira que, se encontrasse Tommyagora, o risco de acabar batendo nogaroto era grande.

Na certa era justamente disso queaquele vândalo precisava, eraexatamente essa direção que faltavaa ele.

Coluna de nuvem , venha ao meusocorro . Umas bofetadas daquelas ,é disso que esse moleque estáprecisando .

Mas Yvonne não ia aceitar isso,pensando-se no estado atual dascoisas. Depois de casados, a coisa ia

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mudar de figura. Então ele ia cuidarda educação de Tommy, ou o nomedele não era Staffan. Mas primeiroia pegar o garoto agora . Dar umasacudida no moleque, pelo menosisso.

Staffan não conseguiu ir muitolonge. As palavras do irmãoArdelius no púlpito tiveram o efeitode um tiro de largada nos fiéis, queapenas tinham esperado umconsentimento para se retirar daigreja. Na metade da ala central, ocaminho de Staffan foi bloqueadopor velhinhas que tinham a

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preferência e se apressavam para asaída com uma determinaçãoinclemente.

Ele levou a mão direita aoquadril, mas ela parou no meio docaminho e se transformou numpunho cerrado. Ainda que estivessecom o cassetete, usá-lo não serianada conveniente.

A fumaça na pia batismalcomeçou a diminuir, mas a igrejaestava agora envolta numa neblinaque cheirava a fábrica de doces eprodutos químicos. As portas dasaída estavam escancaradas e

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através da neblina via-se umretângulo bem marcado da luzmatutina que caía.

Os fiéis iam em direção à luz,tossindo.

Na cozinha havia apenas uma

cadeira, e nada mais. Oskar arrastoua cadeira para a pia, subiu nela e fezxixi no ralo enquanto deixavaescorrer a água da torneira. Quandoacabou, pôs a cadeira no lugar deantes. A peça ficava estranha nacozinha, que de resto era vazia.

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Parecia um objeto num museu.Para que ela tem essa cadeira?Olhou ao redor. No alto da

geladeira havia uma fileira dearmários que ele só conseguiriaalcançar se subisse numa cadeira.Oskar arrastou a cadeira até lá esegurou a alça da geladeira para seapoiar. Um buraco no estômago.Estava com fome.

Sem pensar muito, abriu ageladeira para ver o que havia ládentro. Não era muita coisa. Umpacote aberto de leite, meio pacotede pão. Manteiga e queijo. Oskar se

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esticou para pegar o leite.Mas … Eli …Ele ficou com a caixa de leite na

mão e pestanejou. Mas isso nãobatia. Será que ela também comiacomida? Sim. Ela devia comercomida. Tirou a caixa de leite dageladeira e a depositou em cima dabancada da pia. No armário lá emcima não havia quase nada. Doispratos, dois copos. Oskar apanhouum copo e derramou o leite nele.

E então se lembrou. Com o copode leite gelado na mão, a coisa veiofinalmente à cabeça dele, com toda

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força.Ela bebe sangue .Na noite anterior, em meio ao

caos da sonolência e dodesligamento do mundo, no escuro,tudo pareceu de alguma formapossível. Mas agora, ali na cozinhaonde nenhum cobertor tapava asjanelas e onde as persianasdeixavam entrar a luz suave damanhã, com um copo de leite namão, aquilo tudo parecia tão… tãofora de tudo.

Como se fosse assim: Se alguémtem leite e pão na geladeira , então

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esse alguém é um ser humano ,certo?

Ele tomou um gole enchendo aboca de leite e cuspiu tudo logo emseguida. O leite estava azedo.Cheirou o que restava no copo. É.Azedo. Derramou-o no ralo da pia,lavou o copo e bebeu água para tiraro gosto da boca. Depois leu a datana embalagem.

data de validade: 28 de outubroFazia dez dias que o leite estavavencido. Oskar entendeu.

O leite do coroa .A geladeira ainda estava aberta.

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A comida do coroa.Que nojo . Que nojo .Oskar bateu com força a porta da

geladeira. O que aquele cara faziaaqui? O que ele e Eli tinham…Oskar gelou.

Ela matou o cara .É. Eli teve o coroa aqui para

poder… comer dele. Tinha usado ocara como um banco vivo desangue. Foi isso o que ela fez. Maspor que o coroa permitira isso? E seela o tivesse matado, onde estava ocorpo?

Oskar olhou de esguelha para os

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armários lá no alto. E de repentenão quis mais ficar na cozinha. Nemqueria mais ficar no apartamento.Saiu da cozinha e atravessou ocorredor. A porta do banheirofechada.

É lá dentro que ela está dormindo.

Ele se apressou para a sala deestar e apanhou a mochila. Owalkman estava em cima da mesa.Precisava comprar fones novos, sóisso. Quando pegou o aparelho paraguardá-lo, viu o bilhete. Estava emcima da mesinha de centro, na

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mesma altura onde a cabeça deletinha descansado.

Oi. Espero que você tenha dormido bem.Também vou dormir agora. Estou no banheiro.Não tente entrar lá, por favor. Confio em você.Não sei o que escrever. Espero que você possagostar de mim mesmo sabendo de tudo. Eugosto de você. Muito mesmo. Você está agoradeitado no sofá, roncando. Por favor, eu lhepeço uma coisa. Não tenha medo de mim.Eu peço mil vezes, não tenha medo de mim .Quer se encontrar comigo hoje à noite?Escreva no bilhete se você quiser.Se você escrever Não, então eu me mudo hojeà noite. Vou precisar fazer isso logo, dequalquer forma. Estou sozinho. Mais sozinhodo que você pode imaginar. Ou talvez você

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possa.Desculpe-me por ter quebrado seu aparelho.Pegue o dinheiro, se você quiser. Eu tenhomuito. Não tenha medo de mim. Você nãoprecisa ter medo. Talvez você já saiba. Esperoque sim. Gosto muito de você.

Do seu Eli .P.S.: você pode ficar aqui, se quiser. Mas, sefor embora, confira se fechou a porta direito.

Oskar releu o bilhete algumas

vezes. Depois pegou a caneta queestava ao lado dele. Percorreu comos olhos a sala vazia, a vida de Eli.Em cima da mesa ainda estavam as

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notas de dinheiro que ele recebera,amassadas. Pegou uma nota de mil ea enfiou no bolso.

Ficou olhando por um bom tempoo espaço vazio que havia embaixodo nome de Eli. Depois desceu acaneta e escreveu com letras tãograndes quanto esse espaço apalavra

Deixou a caneta em cima dopapel, levantou-se e enfiou owalkman na mochila. Virou-se pelaúltima vez e olhou para as letrasagora de cabeça para baixo.

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Depois sacudiu a cabeça,desenterrou do bolso a nota de mil epôs o dinheiro de volta em cima damesa. Já no corredor, conferiu bemse a porta estava fechada. Puxou-avárias vezes.

DO PROGRAMA DE RÁDIO

DAGENS EKO ÀS 16H45,DOMINGO, 8 DE NOVEMBRO

DE 1981

A busca da polícia pelo homem que fugiu

do Hospital Danderyd na madrugada desábado depois de ter matado uma pessoa não

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deu resultado.No domingo, a polícia fez a busca no

bosque de Judarn, na região oeste deEstocolmo, à caça de um homem que pareceser o assassino ritual. Na ocasião da fuga, ohomem estava gravemente ferido e a políciasuspeita agora que ele tenha tidocolaboradores.

Arnold Lehrman, policial de Estocolmo:“Bem, é o mais provável. É fisicamente

impossível que ele tenha conseguido se manterforagido nesse… estado. Tivemos trintahomens trabalhando aqui no bosque, além decães e helicópteros. Simplesmente não épossível.”

“Vocês vão continuar procurando nobosque de Judarn?”

“Sim. A possibilidade de ele ainda seencontrar na área não pode, apesar disso, sereliminada. Mas vamos reduzir a busca aqui

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para concentrar os recursos em… paraesclarecer como ele conseguiu sair daqui.”

O homem tem o rosto gravementedeformado e trajava, na ocasião da fuga, umacamisola de hospital azul-clara. A políciarecebe as informações da população pelonúmero…

Domingo, 8 de novembro(noite)

O interesse da população pelabusca em Judarn era grande. Osjornais vespertinos não quiserampublicar mais uma vez o retrato

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falado do assassino. As pessoasesperavam fotografias do assassinosendo preso, mas, na falta deimagens desse tipo, os dois jornaispublicaram a foto da ovelha.

O jornal Expressen até estampoua foto na primeira página.

Seja lá como fosse, essa fototinha uma certa dramaticidade. Orosto contorcido do policial devidoao esforço, a ovelha esperneando e aboca aberta do animal. Quase sepodia ouvir a respiração ofegante, obalido.

Um dos jornais tinha até

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procurado a família real para umcomentário. Tratava-se em todocaso das ovelhas do rei que o poderpolicial tratara daquele jeito. Noentanto, fazia dois dias que o rei e arainha tinham anunciado queesperavam o terceiro filho e talvezachassem que essa notícia já fosse osuficiente. A corte não fez nenhumcomentário.

Naturalmente várias páginasforam dedicadas aos mapas deJudarn e de Västerort. Onde seachava que o homem estava, comoera feita a busca da polícia. Mas as

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pessoas já tinham visto tudo aquiloantes, em outros contextos. A fotoda ovelha era algo novo e viria aficar gravada na retina das pessoas.

O jornal Expressen tinha atémesmo ousado fazer uma piadinha.O texto da foto começava com aspalavras: “Lobo em pele decordeiro?”.

Dava para rir um pouco e isso eranecessário. É que as pessoasestavam com medo. O mesmohomem que assassinara pelo menosduas pessoas, quase três, estavaagora em liberdade de novo e as

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crianças estavam mais uma vezproibidas de sair de casa: umpasseio de colégio para Judarn nasegunda-feira tinha sido cancelado.

E, permeando isso tudo, havia oódio silencioso sobre o fato de umapessoa, uma única pessoa ter opoder de dominar a vida de tantasoutras apenas por causa da suamaldade e… imortalidade.

Isso mesmo. Especialistas eprofessores chamados para fazercomentários em jornais e televisãodiziam todos a mesma coisa: eraimpossível o homem estar vivo. Em

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resposta a uma pergunta direta,reconheceu-se logo em seguida quea fuga do homem tinha sidoigualmente impossível.

Um professor adjunto emDanderyd deu uma má impressão noprograma Aktuellt ao dizer numtom agressivo: “Ele estava até hápouco ligado a um respirador. Vocêsabe o que isso significa? Significaque a pessoa não pode respirarsozinha . Acrescente a isso umaqueda de trinta metros de altura…”.O tom do professor insinuava que orepórter era um idiota e que a coisa

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toda era na verdade uma invençãoda imprensa.

Então tudo era uma mistura desuposições, absurdidades, boatos e— naturalmente — medo. Não erade estranhar a foto da ovelha tersido publicada apesar de tudo. Pelomenos era alguma coisa concreta.Foi assim que essa foto se espalhoupelo país e acabou ficando namemória das pessoas.

Lacke viu a foto quando foi

comprar um pacote de Prince com

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suas últimas coroas no Quiosquedos Namorados, a caminho da casade Gösta. Ele dormira a tarde inteirae sentia-se como um Raskolnikov, omundo era nebulosamente irreal.Olhou de relance para a foto daovelha e balançou a cabeça para simesmo. Em seu estado atual, nãoestranhava nem um pouco que apolícia estivesse prendendo ovelhas.

Foi só na metade do caminhopara a casa de Gösta que a foto lheveio à cabeça e ele pensou: “O queera aquilo?”, mas não tinha forçaspara se informar a respeito.

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Acendeu um cigarro e continuouandando.

Oskar viu a foto ao chegar em

casa depois de ter passado a tarderodando por Vällingby. Quando saiudo metrô, Tommy entrou. Estavanervoso, exaltado e disse que fizera“um lance muito maneiro”, mas nãoteve tempo de contar mais antes deas portas se fecharem. Em casa,havia um bilhete em cima da mesada cozinha; a mãe ia jantar com opessoal do coral à noite. Havia

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comida na geladeira, os anúnciosestavam distribuídos, beijos.

Em cima do sofá da cozinhahavia um jornal vespertino. Oskarolhou para a foto da ovelha e leutudo o que o jornal dizia sobre acaçada. Depois foi tratar de umacoisa que tinha sido deixada paratrás: recortar e guardar asreportagens dos últimos dias sobre oassassino ritual. Apanhou a pilha dejornais do armário de produtos delimpeza, o livro de recortes, tesoura,cola e mãos à obra.

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Staffan viu a foto mais ou menos

a duzentos metros do lugar onde elatinha sido tirada. Não conseguirafalar com Tommy e, depois detrocar poucas palavras com umaYvonne desesperada, dirigiu-se paraÅkeshov. Alguém no lugar sereferira a um colega que ele nãoconhecia usando a expressão “ohomem da ovelha”, mas Staffan sóentendeu algumas horas mais tarde,quando viu o jornal vespertino.

A chefia da polícia estava fula davida com a falta de tato dos jornais,

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mas a maioria dos policiais na áreaachava que isso foi algo divertido.À exceção do próprio “homem daovelha”, é claro. Ele teve de aturarpor várias semanas um comentáriodo tipo “bééé´” ou “blusa bonita, éde lã de ovelha?” de vez em quando.

Jonny viu a foto na hora em que

seu irmãozinho de quatro anos, omeio-irmão Kalle, foi até ele comum presente. Uma peça de Lego queo garotinho embrulhara na primeirapágina do jornal do dia. Jonny

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expulsou o irmão do quarto, disseque não estava a fim e trancou aporta. Apanhou o álbum de fotos denovo e olhou para as fotografias dopai, do seu pai verdadeiro que nãoera o pai de Kalle.

Um pouco mais tarde ouviu opadrasto berrando com Kalle porqueo menino destruíra o jornal. Jonnyabriu então o presente e ficougirando a peça de Lego nos dedosenquanto olhava para a foto daovelha. Deu uma gargalhada esentiu a orelha repuxar. Guardou oálbum na bolsa de ginástica — era

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mais seguro guardá-lo na escola —e dali seus pensamentos foram paraque diabos ele ia fazer com Oskar.

A foto da ovelha iniciaria um

pequeno debate sobre a ética daimprensa quanto à publicação defotos, mas mesmo assim viria aconstar da lista das melhores fotosdo ano de ambos os jornaisvespertinos. A ovelha que tinha sidopega foi apascentada na primaveranos campos de Drottningholm, parasempre ignorante do seu dia de

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fama.

Virginia descansa enrolada em

edredons e cobertores. Seus olhosestão fechados, o corpo permaneceabsolutamente imóvel. Dentro deum instante ela acordará. Duranteonze horas, ela ficou deitada dessejeito. A temperatura do corpo caiuagora para vinte e sete graus, o quecorresponde à temperatura ambientedentro do armário. Seu coração dáquatro batidas bem fracas porminuto.

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Durante essas onze horas, seucorpo se modificara de um modoirrevogável. O estômago e ospulmões se adaptaram a uma novaforma de vida. O mais interessante,do ponto de vista médico, é umcisto ainda em crescimento nonódulo sinoatrial do coração, umamontoado de células que controla afrequência cardíaca. O cisto atingiraagora mais que o dobro do tamanhoinicial. Um crescimento de célulasestranhas semelhante ao de umcâncer continua fora de controle.

Caso se coletasse uma amostra

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dessas células estranhas e o materialfosse disposto embaixo de ummicroscópio, veríamos uma coisaque todos os cardiologistasnegariam dizendo que o materialcoletado se misturara com outro.Uma piada de mau gosto.

O tumor no nódulo sinoatrialcompõe-se de células do cérebro.

Isso mesmo. Dentro do coraçãode Virginia encontra-se emformação um cérebro pequenoisolado. Durante sua construção,esse cérebro novo dependia docérebro grande. Agora ele é

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autossuficiente e o que Virginia jásentiu num instante terrível étotalmente correto: esse cérebroviveria mesmo que o corpomorresse.

Virginia abriu os olhos e soubeque estava acordada, embora olevantar das pálpebras não fizessenenhuma diferença. Estava tãoescuro quanto antes. Mas suaconsciência se acendeu. Suaconsciência pestanejou para a vida enesse mesmo instante uma outracoisa se escondeu rapidamente.

Como …

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Como quando a gente entra numacasa de veraneio que esteve vaziadurante o inverno. A gente abre aporta, procura o interruptor e, nahora em que a luz se acende, a genteouve um clique rápido, o arranharde garras pequenas no chão, e agente vê de passagem o rato quecorre para debaixo da pia dacozinha.

Uma sensação desagradável. Agente sabe que o bicho morou alienquanto não estávamos na casa.Que a considera como sua. Que vaiaparecer sorrateiramente, assim que

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apagarmos a luz.Eu não estou sozinha .A boca tinha gosto de cabo de

guarda-chuva. Ela não tinhanenhuma sensibilidade na língua.Continuou deitada, pensou na casaque ela e Per, o pai de Lena, tinhamalugado durante alguns verõesquando Lena era pequena. Na tocado rato que eles tinham encontradolá embaixo da pia. Os roedorestinham arrancado pedacinhos deembalagens vazias de leite e de umpacote de cereais, tinham feito umaespécie de casinha, uma construção

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fantástica de papeizinhos coloridos.Virginia sentira uma espécie de

sentimento de culpa ao passar oaspirador de pó na casinha. Não,mais que isso. Uma sensaçãosupersticiosa de violação . Ao entrarcom a tromba fria e mecânica doaspirador naquela coisa frágil ebonita que o rato passara o invernoconstruindo, parecia que ela estavaexpulsando um espírito bom.

E ela tinha razão. Quando o ratoescapou das armadilhas e continuoucomendo os alimentos nãoperecíveis, embora já fosse verão,

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Per espalhou veneno de rato. Elestinham brigado por causa disso.Tinham brigado também por causade outra coisa. Por tudo. Lá pelomês de julho o rato tinha morrido,em algum canto dentro da parede.

À medida que o fedor do corpomorto e putrefato do bicho seespalhava pela casa, o casamentodeles foi se esfacelando naqueleverão. Voltaram para casa umasemana antes do planejado, já quenão suportavam o fedor nem a simesmos. O espírito bom tinhadeixado os dois.

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O que será que aconteceu com acasa? Será que alguém mora nelaagora?

Ela ouviu um pip , um chiado.Um rato! No meio dos

cobertores!Ela ficou em pânico.Ainda embrulhada nos

cobertores, ela se jogou de lado,acertou as portas do armário demodo que elas se abriram e caiurolando no chão. Esperneou e agitouos braços até que conseguiu selibertar. Enojada, foi se arrastandopara cima da cama, para o canto,

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puxou os joelhos, que ficaramembaixo do queixo, e deteve-seolhando para o bolo de edredons ecobertores, esperando ummovimento. Quando o bicho saísseela ia gritar. Gritaria tanto que oprédio inteiro viria correndo commartelos e machados e bateria nobolo de cobertores até o rato morrer.

O edredom que estava no alto eraverde com bolinhas azuis. Será quealguma coisa não se mexera ali? Elarespirou fundo para gritar e pip , ochiado apareceu de novo.

Eu … estou respirando .

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Isso. Foi a última coisa queconstatara antes de adormecer, quenão estava respirando. Agora elarespirava de novo. Puxou o ar paratestar e ouviu o pip , o chiado.Vinha dos seus brônquios. Elestinham se ressecado enquanto eladescansava, mas faziam barulhoagora. Tossiu, limpando a garganta,e sentiu um gosto podre na boca.

Ela se lembrou. De tudo.Olhou para os braços. Tiras de

sangue seco cobriam-lhe os braços,mas não se via nenhuma ferida nemcicatriz. Concentrou-se no ponto da

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dobra do braço onde sabia quecortara pelo menos duas vezes.Talvez uma tira suave de pele rosa.Isso. Provavelmente. De resto, tudoestava cicatrizado.

Ela esfregou os olhos e consultouo relógio. Seis e quinze. Estava denoite. Escuro. Olhou de novo para oedredom verde, as bolas azuis.

De onde vinha a luz?A luz do teto estava apagada, lá

fora era noite, as persianas estavamarriadas. Como ela conseguiaenxergar todos os contornos enuanças tão nitidamente? Dentro do

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armário estava escuro que nembreu. Lá dentro não tinha visto nada.Mas agora… era como se estivessede dia.

Sempre entrava um pouco de luz .Será que ela estava respirando?Não dava para conferir. Assim

que começava a pensar narespiração, também começava acontrolá-la. Talvez só respirassequando pensava na respiração.

Mas aquela respiração inicial,aquilo que ela tinha achado que eraum rato… nisso Virginia nãopensara. Mas talvez só fosse igual a

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um… igual a um…Ela apertou os olhos.Ted .Ela estava lá quando o neto

nasceu. Lena nunca mais vira o paide Ted de novo depois da noite emque o menino foi concebido. Umempresário finlandês de passagemem Estocolmo num simpósio etc. etal. Então Virginia estava presentena hora do parto. Insistiu parapoder ficar nessa hora.

E agora veio-lhe à cabeça. Aprimeira respiração de Ted.

Como ele viera ao mundo. O

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corpinho, lambuzado, lilás, maltinha um aspecto humano. Aexplosão de felicidade no peito quevirou uma nuvem de preocupaçãoquando ele não respirou. Aenfermeira que pegou calmamenteaquela criaturinha nas mãos.Virginia achara que ela viraria ocorpo de cabeça para baixo e dariaum tapinha no bumbum da criança,mas, no instante em que aenfermeira pegou Ted, se formouuma bolha de saliva na boca dobebê. Uma bolha que foi crescendo,crescendo e… estourou. Depois veio

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o grito, o primeiro grito. E elerespirou.

E então?Era isso que a primeira respiração

de apito de Virginia tinha sido?Um… grito de recém-nascido?

Ela se endireitou e deitou-se decostas na cama. Continuou rodandoo filme do parto dentro dela. Comodera banho em Ted, já que Lenaestava exausta demais, pois tinhaperdido muito sangue. É. Depoisque Ted saíra, o sangue escorreupela maca e as enfermeiras usarampapel, um monte de papel. Aos

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poucos o sangue foi parandosozinho.

O bolo de papéis ensanguentados,as mãos vermelho-escuras daenfermeira. A calma, a eficiênciaapesar de todo aquele… sangue.Todo aquele sangue.

Sede .Sua boca estava pegajosa e ela

rebobinou o filme para a frente epara trás, dando um zoom em tudoque estava coberto de sangue; nasmãos da enfermeira, passar a línguanaquelas mãos , os bolos de papelencharcados no chão , enfiar esses

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papéis na boca e sugá-los . O úterode Lena de onde o sangue escorrianum filete …

Sentou-se de repente, assustada,correu encolhida para o banheiro,abriu com força a tampa do vasosanitário e pôs a cabeça lá dentro.Não veio nada. Apenas uma ânsiaseca e soluçante de vômito.Encostou a testa no canto do vaso.As imagens do parto começaram asurgir de novo.

NãoqueronãoqueronãoqueBateu com força a cabeça na

porcelana e um gêiser de dor gelada

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espirrou dela. Tudo ficou azul-claroem seus olhos. Ela sorriu e caiu delado no chão, no tapete do banheiroque…

Custava 14, 90 coroas , mas sópaguei dez por ele porque umpedaço grande do tapete ficoudesfiado na hora que a moça docaixa arrancou a etiqueta do preço equando eu saí na praça em frente aoÅhléns havia uma pomba bicandouma caixa de papelão onde haviarestos de batata frita e a pomba eracinza … e … azul … ela estava …em contraluz …

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Ela não sabia quanto tempo tinhaficado inconsciente. Um minuto,uma hora? Talvez apenas poucossegundos. Mas alguma coisamudara. Ela estava calma.

A felpa do tapete do banheiro eracomo uma carícia em seu rosto, alide onde ela estava olhando para ocano com manchas de ferrugem quedescia da pia para o chão. Achou oformato do cano bonito.

Um cheiro forte de urina. Nãofora ela quem tinha feito xixi nascalças, pois era… o cheiro do mijode Lacke que sentia agora.

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Envergou o corpo, aproximou orosto da parte do chão em volta dovaso sanitário e respirou fundo.Lacke e… Morgan. Ela nãoconseguia entender como sabiadisso, mas sabia: Morgan tinhamijado ali ao lado.

Mas Morgan não estivera aqui .Esteve sim. Naquela noite, na

madrugada em que eles a levarampara casa. A noite em que ela tinhasido atacada. Mordida . Isso. Éclaro. Tudo se encaixava. Morganestivera ali, Morgan mijara e elaficou deitada lá no sofá depois de

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ter sido mordida e agora podiaenxergar no escuro, tinha alergia àluz, precisava de sangue e…

Vampiro .Era isso. Ela não contraíra

nenhuma doença rara que podia sercurada num hospital ou com umpsiquiatra, ou com…

Terapia de luz!Ela deu uma risada, tossindo ao

mesmo tempo, deitou-se de costasno chão e ficou olhando para o teto,pensando em tudo o que acontecera.Nas feridas que cicatrizavamrápido, no impacto do sol em sua

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pele, no sangue. Disse em voz alta.— Eu sou um vampiro.Mas não dava. Vampiros não

existiam. E ainda assim ficou maisfácil. Como se uma pressão dentroda sua cabeça tivesse sido liberada.Como se um peso de culpa tivessesaído dos seus ombros. A culpa nãoera dela . As fantasias repugnantes,a coisa horrível que fizera contra simesma a noite inteira. Não podiacontrolar nada disso.

Já que era algo… totalmentenatural.

Ela ficou de joelhos, começou a

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encher a banheira de água, sentou-seno vaso e ficou olhando para a águaescorrendo, para a banheira que seenchia lentamente. O telefonetocou. O som era apenas um sinalsem importância, um barulhomecânico. Não significava nada. Dequalquer forma, não podia falar comninguém. Ninguém podia falar comela.

Oskar não lera o jornal de sábado.

Agora ele estava à sua frente namesa da cozinha. Já fazia um tempo

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que estava aberto na mesma páginae Oskar tinha lido o texto da fotovárias vezes. E não conseguia tiraros olhos da foto.

A reportagem era sobre o homemque foi encontrado no lagocongelado perto do hospital deBlackeberg. Sobre como ele foraachado, como o trabalho deremoção do corpo tinha sido feito.Havia uma foto pequena doprofessor Ávila, em que eleapontava para o lago, para o buracono gelo. Ao citar o comentário doprofessor, o jornalista corrigira suas

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particularidades linguísticas.Tudo muito interessante para se

recortar e guardar, mesmo assimnão era isso o que ele estavaolhando, não era disso que ele nãoconseguia tirar os olhos.

Era a foto da blusa.Dentro do casaco do homem

morto tinha sido encontrada umablusa em tamanho infantil e elaestava na foto, estendida em cimade um fundo neutro. Oskar areconheceu.

Você não está com frio?Na reportagem estava escrito que

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o morto, Joakim Bengtsson, haviasido visto com vida pela última vezno sábado, no dia 24 de outubro.Fazia duas semanas. Oskar selembrava dessa noite. Foi quandoEli resolveu o enigma do cubo. Elefizera um carinho no rosto dela e Elise fora do pátio. De noite ela e… ocoroa dela… tinham brigado e ovelho saíra.

Será que foi nessa noite que Elifez isso?

Foi. Provavelmente. No diaseguinte ela tinha um aspecto muitomais saudável.

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Ele olhou para a foto. Era empreto e branco, mas o texto diziaque a blusa era rosa-clara. O autordo artigo especulava se o assassinoera culpado da morte de mais umavítima jovem.

Espera .O assassino de Vällingby. Estava

escrito no artigo que a polícia tinhafortes indícios de que o homem nogelo fora morto pelo tal assassinoritual que tinha sido flagrado haviapouco mais de uma semana napiscina de Vällingby e que agoraestava foragido.

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Será que era … o coroa? Mas …o garoto no bosque … por quê?

Oskar via Tommy na frente dele,no banco lá do parquinho, fazendoaquele gesto com o dedo.

Pendurado numa árvore … com agarganta cortada … zás!

Ele entendeu. Entendeu tudo.Todas essas reportagens querecortara e guardara, no rádio, natelevisão, essa falação toda, essemedo todo…

Eli .Oskar não sabia o que fazer. O

que devia fazer. Então foi para a

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geladeira e apanhou um pedaço delasanha que a mãe deixara ali paraele. Comeu o prato frio enquantocontinuava lendo os artigos. Aoacabar de comer, ouviu batidas naparede. Fechou os olhos para ouvirmelhor. Sabia o código de cor esalteado a essa altura.

E.S.T.O.U.S.A.I.N.D.O.Ele se levantou rapidamente da

mesa, entrou no quarto, deitou-se debarriga para baixo na cama e bateu aresposta.

V.E.M.A.Q.U.I.Uma pausa. Em seguida:

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S.U.A.M.Ã.E.Oskar bateu de volta.S.A.I.U.A mãe só voltaria lá por volta das

dez horas. Eles tinham pelo menostrês horas sozinhos. Depois deOskar bater essa última mensagem,recostou a cabeça no travesseiro.Por um instante, concentrado queestava em formular palavras, eletinha esquecido.

A blusa … o jornal …Ele estremeceu, pensou em se

levantar para juntar os jornais queestavam à mostra. Pois ela ia ver…

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saber que ele…Em seguida Oskar recostou a

cabeça no travesseiro de novo,deixou para lá.

Um assobio baixo do lado de forada janela. Ele se levantou da cama eencostou-se no batente da janela.Ela estava ali embaixo com o rostovirado para a luz. Trajava acamiseta quadriculada grandedemais para ela.

Ele fez um gesto com o dedo:entre pela porta .

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— Não vá dizer a ele que eu estoulá, combinado?

Yvonne fez uma careta, expeliu afumaça pelo canto da boca nadireção da janela entreaberta dacozinha e não disse nada.

Tommy bufou. — Por que é quevocê está fumando assim, na janela?

A cinza do cigarro tinha ficadotão comprida que começou aenvergar. Tommy apontou para elae fez um movimento de apague-o-cigarro com o indicador. Elaignorou o filho.

— É porque Staffan não gosta,

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certo? De cheiro de cigarro.Tommy se recostou na cadeira da

cozinha. Ficou olhando para a cinzado cigarro e quis saber o que elatinha para poder ficar tão compridasem se partir. Abanou-se na frentedo rosto.

— Também não gosto de cheirode cigarro. Não gostava nem umpouco quando era criança. Masnaquela época você não abria ajanela. Olhe aí…

A coluna de cinzas partiu-se eaterrissou na coxa de Yvonne. Elalimpou a sujeira e uma tira cinza

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ficou em suas calças. Yvonnelevantou a mão que segurava ocigarro.

— Mas é claro que eu abria. Namaioria das vezes, em todo caso.Algumas vezes quando a genteestava com visita aqui em casa quetalvez… e você não é a pessoa certapara ficar falando que não gosta defumaça .

Tommy deu um risinho. — Masaté que foi legal, não foi?

— Não, não foi. Imagine se aspessoas tivessem entrado empânico. Se as pessoas tivessem… e

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aquela cuba, aquela…— A pia batismal.— É, a pia batismal. O pastor

ficou todo atordoado, era como sehouvesse uma… crosta negra portoda… Staffan teve que…

— Staffan, Staffan…— É, Staffan . Ele não disse que

foi você. Ele disse isso para mim,que foi difícil para ele, com a…convicção dele, ficar mentindo alibem na cara do pastor, mas queele… para proteger você…

— Você sabe muito bem.— Eu sei o quê?

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— Que ele está protegendo a simesmo.

— Mas ele não…— Pense um pouco mais.Yvonne deu uma última tragada,

apagou o cigarro no cinzeiro eacendeu imediatamente um novo.

— Era uma… antiguidade. Agoraeles vão ter que mandar a pia parareforma.

— E foi o enteado de Staffan quefez isso. Com que cara ele ia ficar?

— Você não é enteado dele.— É, mas você sabe como são as

coisas. Se eu fosse dizer para

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Staffan que eu estava pensando emdizer ao pastor que “fui eu quem fezisso, eu me chamo Tommy e Staffané meu… futuro padrasto”. Eu achoque ele não ia gostar disso.

— Então fale você mesmo comele.

— Não. Hoje não.— Você não tem coragem.— Você fala que nem uma

criancinha.— Você se comporta que nem

uma criancinha.— Mas não foi legalzinho ?— Não, Tommy. Não foi.

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Tommy fez um muxoxo. Ele erainteligente o bastante para entenderque a mãe também ia ficar fula davida, mas, ainda assim, tinha achadoque ela em algum instante veriauma pitada de comédia naquilotudo. Mas ela estava do lado deStaffan agora. Era só aceitar.

Então o problema, o problema deverdade era arranjar um lugar paramorar. Bem, depois que eles secasassem. Por enquanto Tommypodia dormir lá no porão em noitescomo essas, quando Staffan vinhade visita. Às oito ele sairia do

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plantão em Åkeshov e viria diretopara cá. E Tommy não ia ficar aliouvindo um sermão daquele cara.Não mesmo.

Então Tommy foi para o quarto,apanhou o edredom e o travesseiroda cama enquanto Yvonnecontinuava fumando e olhando láfora pela janela da cozinha. Quandoestava pronto, foi para a porta dacozinha com o travesseiro debaixode um dos braços e o edredomenrolado debaixo do outro.

— O.k. Estou de saída. Faça ofavor de não dizer que eu estou lá.

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Yvonne se virou para ele. Tinhalágrimas nos olhos. Sorriu umpouco.

— Está parecendo quando…quando você ia…

As palavras ficaram presas nagarganta. Tommy não se mexeu:Yvonne engoliu a seco, tossiulimpando a garganta e olhou paraele com olhos bem claros. Disse emvoz baixa: — Tommy, o que vocêacha que eu devo fazer?

— Não sei.— Será que eu…?— Não. Não por minha causa. É

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assim mesmo.Yvonne balançou a cabeça.

Tommy sentiu que também estavaficando muito triste, que devia irembora antes de fazer algo errado.

— Mãe? Não diga que eu…— Tudo bem, tudo bem. Não vou

dizer nada.— Certo. Obrigado.Yvonne se levantou e foi até

Tommy. Abraçou o filho. Ela tinhaum cheiro forte de cigarro. Se osbraços de Tommy estivessem livres,ele também a teria abraçado devolta. Mas estavam ocupados, então

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ele apenas recostou a cabeça noombro da mãe e os dois ficaramassim por algum tempo.

Depois Tommy saiu.Não confio nela . Staffan pode

fazer aquele teatro sobre qualquercoisa …

No porão, ele jogou o edredom eo travesseiro no sofá. Pôs umaporção de rapé embaixo do lábio,deitou-se e ficou pensando.

Seria melhor se levasse um tiro .Mas Staffan não devia ser do tipo

que… não, não. Era mais o tipo desujeito que metia um dardo bem no

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meio da testa do assassino. Recebiauma caixa de chocolate dos tiras,colegas de trabalho. Ele viria depoispara cá para procurar Tommy. Podeser.

Ele pescou a chave, foi para ocorredor e destrancou o abrigoantiaéreo, levando consigo acorrente para dentro. Usando oisqueiro para iluminar, tentou seachar no corredor curto que tinhadois cômodos para depósito de cadalado. Nos depósitos havia alimentosnão perecíveis, conservas, jogos detabuleiro antigos, um fogareiro e

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outras coisas para se sobreviver aum cerco.

Ele abriu uma porta e jogou acorrente lá dentro.

Certo. Ele tinha uma saída deemergência.

Antes de deixar o abrigoantiaéreo, apanhou o troféu deatirador e sentiu seu peso na mão.Pelo menos dois quilos. Será quedava para vender ? Era só o valor dometal. Podiam derreter o troféu.

Estudou o rosto do atirador. E nãoé que ele era bem parecido comStaffan? Então era para derreter o

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troféu.Cremar . Definitivamente .Ele deu uma risada.O melhor seria derreter o troféu

todo menos a cabeça e depoisentregar a Staffan. Uma poçaendurecida de metal só com acabecinha saindo dela.Provavelmente não dava para fazer.Uma pena.

Pôs a escultura de volta no lugar,saiu e fechou a porta sem girar aroda que a trancava. Agora ele podiafugir para lá se fosse necessário. Oque ele não achava que seria.

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Apenas se fosse o caso.

Lacke deixou tocar dez vezes

antes de desligar. Gösta estavasentado no sofá fazendo cafuné numgato de listras alaranjadas e nemlevantou os olhos ao perguntar: —Ninguém em casa?

Lacke passou a mão no rosto edisse, irritado: — Claro que sim.Você não ouviu a genteconversando?

— Quer mais um?Lacke amoleceu e tentou sorrir.

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— Sorry , eu não queria… sim,claro. Obrigado.

Gösta se inclinou para a frente nadireção da mesa de um modo tãobrusco que o gato foi amassado emseu colo. O animal emitiu umchiado e deslizou para o chão,sentou-se e ficou olhando de umjeito sentido para Gösta, quederramou um pouco de água tônicae uma dose cavalar de gim no copode Lacke, oferecendo-o a ele.

— Aqui. Não se preocupe, ela sódeve estar… bem…

— Internada. Obrigado. Virginia

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foi ao hospital e aí eles ainternaram.

— É… isso mesmo.— Então diga isso.— O quê?— Ah, não é nada. Saúde.— Saúde.Os dois beberam. Depois de um

tempo, Gösta começou a cutucar onariz. Lacke olhou para ele e Göstatirou o dedo de lá, dando um sorrisode desculpas. Não estavaacostumado com gente por perto.

Um gato gordo branco e cinzaestava esparramado no chão, parecia

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mal aguentar levantar a cabeça.Gösta acenou-lhe com a cabeça. —Miriam vai ter filhote logo, logo.

Lacke tomou um gole grande efez uma careta. A cada gota deentorpecimento que a bebidaproporcionava, ele sentia cada vezmenos o cheiro no apartamento.

— O que você faz com eles?— Como assim?— Com os filhotes. O que você

faz com eles? Deixa-os viver, nãoé?

— Sim. Mas eles já nascemmortos na maioria das vezes. Hoje

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em dia.— Então… me explica uma

coisa. Essa barriga… gorda aí da,qual o nome mesmo… Miriam?…da Miriam, é só… um monte defilhotes mortos lá dentro?

— É.Lacke bebeu tudo o que havia no

copo e o depositou em cima damesa. Gösta fez um gestointerrogativo na direção da garrafade gim. Lacke sacudiu a cabeça.

— Não. Preciso de uma pausa.Ele abaixou a cabeça. Um tapete

laranja tão cheio de pelos de gato

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que parecia ser feito de pelos degato. Gatos e mais gatos por todaparte. Quantos eles eram? Começoua contar. Foi até dezoito. Só nessasala.

— Você nunca pensou em… darum jeito neles? Bem, castrar ou,como se chama mesmo…esterilizar? Bastava fazer comapenas um dos sexos.

Gösta olhou para ele sementender.

— E como é que eu vou fazerisso?

— É, é claro.

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Lacke viu na frente dele Göstasentado no metrô com uns… vinte ecinco gatos. Numa caixa. Não.Numa sacola, num saco grande. Eleiria ao veterinário e despejaria todosos gatos na mesa. “Castração, porfavor.” Lacke deu uma risada seca.Gösta inclinou a cabeça de lado.

— O que é?— Não, é que eu só pensei… que

eles podiam dar um desconto pelaquantidade.

Gösta não gostou da brincadeira eLacke sacudiu as duas mãos nafrente dele. — Não, desculpe. Eu

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só… ah, estou totalmente… issocom a Virginia, bem, eu… —Endireitou-se de repente e bateucom a mão na mesa.

— Não vou mais ficar aqui!Gösta deu um pulo no sofá. O

gato em frente aos pés de Lackedeslizou para o outro lado e seescondeu debaixo da poltrona. Dealgum lugar na sala ele ouviu umchiado. Gösta se remexeu inquietono sofá e balançou o copo.

— Você não precisa ficar. Nãopor minha…

— Não é isso. É aqui. Aqui .

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Estou falando de toda essa bosta.De Blackeberg. Tudo isso. Essesprédios, as ruas por onde a genteanda, os lugares, as pessoas, tudoisso é… como se fosse uma doençagigante, entende? É como um erro .Eles arquitetaram esse lugar,planejaram tudo para que ficasse…perfeito, certo? E de alguma forma,ao invés disso, tudo deu errado.Ficou uma merda. Como se… nãodá para explicar… como se elestivessem uma ideia de como osângulos seriam, de como tudo seria,os ângulos onde os prédios seriam

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levantados, como ficariam emrelação aos outros prédios, certo.Para que houvesse uma harmoniaou algo do gênero. E então algumacoisa estava errada na fita métrica,no esquadro, sei lá o que eles usam,de forma que ficou um pouco erradono início e depois mais erradoainda. Por isso a gente anda nomeio desses prédios e só senteque… não. Não, não, não. A gentenão quer ficar aqui. Está errado ,entende? Mas não se trata dosângulos, é outra coisa, algo quesó… que é como uma doença

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entranhada… nas paredes e eu…não quero mais fazer parte disso.

Um tilintar quando Gösta serviusem pedir permissão mais umdrinque no copo de Lacke, queaceitou agradecido. O desabafoespalhara uma calma agradável porseu corpo, uma calma que a bebidaaquecia agora. Recostou-se napoltrona e respirou aliviado.

Os dois ficaram calados dessejeito até que alguém bateu na porta.Lacke perguntou: — Você estáesperando visita?

Gösta sacudiu a cabeça enquanto

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se levantava com dificuldade dosofá.

— Não. Já foi um movimentodanado hoje de noite.

Lacke deu um risinho e levantouo copo na direção de Gösta quandoeste passou por ele. Sentia-semelhor agora. Tudo sob controle, deverdade.

A porta foi aberta. Alguém lá foradisse alguma coisa e Göstarespondeu: — Pois não, entre.

Deitada na banheira, na água

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quente que se tingia de rosa quandoo sangue seco se diluía nela,Virginia se decidira.

Gösta .A nova consciência dela disse que

devia ser alguém que a deixasseentrar. A velha disse que não podiaser alguém que ela amava. Nemsequer gostasse. Gösta se encaixavanessas duas descrições.

Ela saiu da banheira, secou-se,vestiu as calças e a blusa. Foi só láfora na rua que ela percebeu que nãovestira nenhum casaco. Aindaassim, não estava sentindo frio.

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Descobertas novas , o tempo todo.

Ela parou junto do prédio e olhoupara a janela de Gösta lá em cima.Ele estava em casa. Ele sempreestava em casa.

E se ele oferecer resistência?Não pensara nisso. Apenas

imaginou tudo como se fosse buscaraquilo de que precisava. Mas e seGösta quisesse viver?

É claro que ele queria viver. Eleé um ser humano , tem suas noias eimagine todos os gatos que vão …

O pensamento foi freado,

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desapareceu. Pousou a mão em cimado coração. Ele dava cinco batidaspor minuto e ela sabia que precisavaproteger o coração. Que havia umquê de verdade naquilo com… asestacas.

Pegou o elevador para openúltimo andar e apertou acampainha. Quando Gösta abriu aporta e viu Virginia, os olhos deleaumentaram, parece que exprimiamuma espécie de horror.

Será que ele sabe? Será que dápara ver?

Gösta disse: — Mas… é você?

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— É. Posso…Ela fez um movimento para

dentro do apartamento. Nãoentendeu. Sabia apenasintuitivamente que precisava de umconvite, senão… senão… algumacoisa acontecia. Gösta balançou acabeça e deu um passo atrás.

— Pois não, entre.Virginia entrou no corredor do

apartamento e Gösta fechou a porta.Olhou para ela com os olhos turvos.Sua barba estava por fazer; a peleflácida do pescoço, suja de barbaincipiente. O fedor do apartamento

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era pior do que ela se lembrava,mais nítido.

Eu não queri …O cérebro antigo foi desativado.

A fome assumiu o comando. Pôs asmãos nos ombros de Gösta, viu aspróprias mãos sendo baixadas nosombros de Gösta. Deixou acontecer.A velha Virginia estava encolhidaagora em algum lugar lá atrás dasua cabeça, sem controle dasituação.

A boca disse: — Você pode mefazer uma coisa? Não se mexa.

Ela ouviu algo. Uma voz.

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— Virginia! Que bom que…

*

Lacke recuou quando a cabeça deVirginia se virou para ele.

Os olhos dela estavam vazios.Como se alguém tivesse enterradoagulhas neles, sugado tudo o que eraVirginia e deixado apenas o olharinexpressivo de um modeloanatômico. Imagem 8: olhos.

Virginia olhou para ele umsegundo, em seguida largou Gösta ese virou para a porta. Apertou a

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maçaneta, mas a porta estavatrancada. Girou a tranca, mas Lackea segurou e a tirou da porta.

— Você não sai daqui antes de…Virginia lutou para se soltar dele

e seu cotovelo acabou acertando aboca de Lacke, os lábios semachucaram nos dentes. Elesegurava firmemente os braços dela,pressionava seu rosto nas costasdela.

— Pô, Ginja. Eu preciso falarcom você. Estou muito preocupado.Acalme-se, o que há com você?

Ela deu um arrancão em direção à

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porta, mas Lacke a segurou erebocou Virginia para a sala deestar. Ele se esforçou em falar comcalma, como se fosse com umanimal assustado, enquanto a faziaandar na frente dele.

— Agora Gösta vai servir umdrinque e então a gente vai se sentare conversar com calma, porque eu…porque eu vou ajudar você. Seja láqual for o problema, eu vou ajudarvocê, certo?

— Não, Lacke. Não.— Sim, Ginja. Sim, senhora.Gösta abriu caminho entre eles e

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foi para a sala, fez um drinque paraVirginia no copo de Lacke. Lackeconseguiu fazer Virginia entrar,soltou-a e ficou na porta que davapara o corredor com as mãos nosbatentes da porta, parecia umguarda. Ele tirou com a língua umpouco de sangue que havia no lábioinferior.

Virginia estava no meio da sala,tensa. Olhou ao redor como seprocurasse um caminho de fuga. Osolhos pararam na janela.

— Não, Ginja.Lacke se preparou para correr

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para ela, segurá-la de novo se elatentasse fazer alguma besteira.

O que há com ela? Ela pareceque está vendo fantasmas na salatoda .

Ele ouviu um barulho parecidocom um ovo fritando numafrigideira bem quente.

Mais um, igual.Mais um.A sala foi se enchendo de um

chiado cada vez mais forte.Todos os gatos na sala tinham se

levantado, estavam com as costasencurvadas e as caudas levantadas,

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olhando para Virginia. Até Miriamse levantara toda desajeitada com abarriga arrastando pelo chão, asorelhas puxadas para trás,mostrando os dentes.

Do quarto, da cozinha, vinhammais gatos.

Gösta terminara de servir odrinque; segurava a garrafa olhandoespantado para os gatos. O chiadopairava agora na sala como umanuvem de eletricidade, a intensidadeaumentando. Lacke foi obrigado afalar alto para poder ser ouvido emmeio às vozes dos gatos.

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— Gösta, o que eles estãofazendo?

Gösta sacudiu a cabeça, fez ummovimento amplo com o braço eum pouco de gim acabourespingando da garrafa.

— Não sei… eu nunca…Um gatinho preto saltou na coxa

de Virginia, enterrou as unhas e seagarrou ali. Gösta pôs a garrafa emcima da mesa fazendo umestampido: — Xô, Titania, xô!

Virginia se abaixou, pegou o gatopela corcunda e tentou arrancá-lo.Mais dois gatos aproveitaram a

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chance e pularam nas costas e nopescoço dela. Virginia soltou umgrito e tirou o gato da perna,jogando o animal longe. Ele vooupela sala, bateu no canto da mesa ecaiu aos pés de Gösta. Um dos gatosnas costas de Virginia subiu nacabeça dela e fincou-lhe suas garrasenquanto atacava a testa.

Antes de Lacke conseguir ajudar,mais três gatos tinham pulado paracima dela. Eles berravam enquantoVirginia batia neles de punhocerrado. Ainda assim, os felinoscontinuavam agarrados, rasgando as

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carnes dela com seus dentinhos.Lacke meteu as mãos no bolo

pulsátil e rastejante no peito deVirginia, agarrou a pele quedeslizava por cima de músculoscontraídos e arrancou os corpinhos,a blusa de Virginia rasgou, elagritava e…

Estava chorando .Não; era sangue que escorria pelo

rosto dela. Lacke pegou o gato queestava agarrado na cabeça dela, maso animal enterrou ainda mais asunhas em Virginia, estava como quecosturado nela. A cabeça dele cabia

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na mão de Lacke e ele a puxou paraa frente e para trás até que, no meiodaquele barulho todo, ele ouviu umcrack

e, quando Lacke largou a cabeçado animal, ela caiu mole do alto dacabeça de Virginia. Uma gota desangue saiu do focinho do gato.

— Aaiaiaaai! Minha criança…Gösta foi na direção de Virginia

e, com lágrimas nos olhos, começoua acariciar o gato que mesmo mortoestava grudado na cabeça dela.

— Minha criança…Lacke abaixou os olhos que se

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cruzaram com os de Virginia.Era ela de novo.Virginia.

Deixe-me ir .Através do túnel duplo que eram

os olhos dela, Virginia ficoucontemplando o que acontecia como corpo dela, olhando para Lacketentando salvá-la.

Deixa para lá .Não era ela quem lutava, quem

batia. Era aquele outro ser quequeria viver, que queria que… o

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hospedeiro continuasse vivo. Elamesma desistira quando viu opescoço de Gösta e sentiu o fedor doapartamento. Era assim que ia ser. Eela queria sair disso.

A dor. Ela sentiu a dor, osarranhões. Mas ia passar logo.

Então … Deixa para lá .

Lacke viu. Mas não aceitou.A granja … duas casas … um

jardim …Em estado de pânico, tentou

arrancar os gatos de Virginia.

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Estavam grudados, um bando demúsculos com pelugem. Os poucosque ele conseguiu arrancar levaramconsigo pedaços da roupa dela,deixaram arranhões profundos napele embaixo do pano, mas amaioria estava agarrada que nemsanguessuga. Ele tentou bater nosbichos, ouviu ossos se quebrando,mas, quando um caía, vinha outro,pois os gatos trepavam uns nosoutros em sua sofreguidão de…

Preto.Ele levou uma cacetada no rosto e

cambaleou para trás um metro,

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quase caiu, apoiou-se na parede,pestanejou. Gösta estava de punhoscerrados junto de Virginia, olhandopara ele com uma fúria lacrimosano olhar.

— Você está machucando osgatos! Você está machucando osgatos!

Ao lado de Gösta, Virginia erauma massa fervilhante de pelos quechiava e miava. Miriam foi searrastando, levantou-se nas patastraseiras e atacou a panturrilha deVirginia. Gösta viu o que aconteceu,abaixou-se e pôs o dedo em riste: —

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Não faça isso, menina. Dói .A razão abandonou Lacke. Ele

deu dois passos à frente e chutouMiriam. O pé se afundou na barrigainchada do felino e Lacke não sentiunojo, apenas satisfação quando osaco de vísceras voou para longedos pés dele e acabou searrebentando no sistema decalefação. Ele pegou Virginia pelobraço…

Precisamos sair agora daqui… e puxou-a para a porta doapartamento.

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Virginia tentou oferecer

resistência. Mas a força motriz deLacke e a da contaminação eramiguais, e mais fortes que ela.Através dos túneis que saíam da suacabeça, Virginia viu Gösta cair dejoelhos no chão, ouviu o grito detristeza que ele deu quando apanhouum gato morto e acariciou obichano nas costas.

Me perdoe , me perdoe .Em seguida Lacke puxou-a para

sair dali e a visão dela foi obstruídaquando um gato pulou em seu rosto,

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mordeu-lhe a cabeça e tudo era dor,agulhas vivas furando sua pele e elase sentiu como uma donzela deferro ao perder o equilíbrio e cair,sentindo que era arrastada pelochão.

Deixe-me ir .Mas o gato na frente dos seus

olhos mudara de posição e ela viu aporta do apartamento sendo aberta.A mão de Lacke, vermelho-escura,que a puxava, e ela viu as escadasdo prédio, conseguiu se levantar denovo, lutou para adentrar a própriaconsciência, assumiu o comando

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e…

Virginia tirou o braço da mão

dele.Lacke se virou para a massa

rastejante de pelos que era o corpodela para segurá-la de novo, para…

O quê? O quê?Sair dali. Para sair dali.Mas Virginia conseguiu passar

por ele e, por um segundo, acorcunda trêmula de um gatopressionou o rosto de Lacke. Emseguida ela estava na escadaria do

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prédio onde os chiados dos gatos semultiplicaram iguais a sussurrosexaltados enquanto ela corria paraos degraus e…

NãonãonãoLacke tentou correr para impedi-

la, mas, como alguém convencidode que faria uma aterrissagem suaveou que não se importava caso fosseou não se estatelar no chão, ela seatirou à frente parecendo umagelatina e deixou-se cair escadaabaixo.

Os gatos que acabaramespremidos davam gritos quando

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Virginia foi rolando e quicando nosdegraus de cimento. Estalosmolhados quando os ossinhos finosse quebravam, estampidos maisfortes que fizeram Lacke pular desusto quando a cabeça de Virginia…

Alguma coisa atravessou o pédele.

Um gatinho cinza com um defeitonas patas traseiras foi se arrastandopara a escadaria, ficou chorandotristemente lá no alto das escadas.

No final da escada, Virginiaestava caída, imóvel. Os gatos quesobreviveram à queda deixaram-na

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e voltaram subindo pela escada.Entraram no corredor doapartamento e começaram a selamber.

Apenas o gatinho cinza continuousentado, triste por não ter podidoparticipar.

A polícia fez uma declaração à

imprensa na noite de domingo.Tinham escolhido um salão de

conferências na sede da polícia comlugar para quarenta pessoas, mas olocal acabou sendo pequeno demais.

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Repórteres de jornais e de redes detelevisão europeus apareceram. Ofato de o homem não ter sidocapturado durante o dia aumentara aimportância da notícia e talveztenha sido um jornalista britânicoquem analisou melhor o porquê de acoisa toda despertar tanto interesse:— É a caça ao Monstro. À aparênciadele, às coisas que fez. Ele é oMonstro, aquilo de que tanto falamos contos de fada. E cada vez que ocapturamos, queremos fingir que épara sempre.

Já quinze minutos antes do

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horário estipulado, o ar da sala malventilada tinha ficado quente eúmido e os únicos que nãoreclamavam eram os caras daequipe da tevê italiana, quedisseram estar acostumados comcondições piores de trabalho.

Todos se mudaram para um salãomaior e às oito horas chegou o chefede polícia de Estocolmo,acompanhado do comissário quecuidava da investigação e queconversara com o assassino nohospital, assim como do chefe dapatrulha de busca que comandara a

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operação no bosque de Judarndurante o dia.

Eles não temiam ser dilaceradospelos jornalistas, já que resolveramjogar um osso para eles.

É que a polícia tinha uma foto dohomem.

A busca pelo relógio dera

resultado, enfim. Um relojoeiro emKarlskoga tinha tirado um tempo nosábado para examinar o arquivo daloja com as apólices de seguro jávencidas. Acabou encontrando o

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número que a polícia lhe solicitaranuma carta, para que ele e outrosrelojoeiros procurassem.

Ele ligou para a polícia e lhesforneceu nome, endereço e telefoneda pessoa registrada comocomprador. A polícia de Estocolmoprocurou o nome do homem emseus registros e pediu à polícia deKarlskoga que visitasse esseendereço para ver o que podiamencontrar por lá.

Houve um rebuliço quando sedescobriu que o homem foracondenado por tentar estuprar uma

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criança de nove anos, sete anosatrás. Passou três anos preso numainstituição para doentes mentais.Depois recebera alta e foi solto.

Mas a polícia de Karlskogaencontrou o homem em casa,gozando de boa saúde.

Isso mesmo, ele teve um relógiodesses. Não, ele não se lembrava dofim que foi dado ao relógio. Depoisde algumas horas de interrogatóriona sede da polícia em Karlskoga eadvertências de que um atestado desaúde mental sempre podia serobjeto de reavaliação, o homem

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lembrou por fim quem tinhacomprado o relógio dele.

Håkan Bengtsson, de Karlstad.Eles tinham se encontrado emalgum lugar e feito alguma coisa,ele não lembrava o quê. Vendera orelógio a Håkan, em todo caso, masnão tinha o endereço do sujeito e sópodia descrevê-lo vagamente…Será que podia ir para casa agora?

Håkan Bengtsson não deunenhum resultado no registro.Foram encontrados vinte e quatroHåkan Bengtsson na região deKarlstad. A metade podia ser

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excluída de cara devido à idadeerrada. A polícia começou atelefonar. A busca foi simplificadaconsideravelmente, pois, se alguémpudesse falar , isso desqualificava apessoa como candidato.

Lá pelas nove da noite, a políciaconseguira reduzir a lista e sobrouapenas uma pessoa. Um HåkanBengtsson que tinha sido professorde sueco do ensino médio e que semudou de Karlstad quando teve acasa destruída por um incêndio emcircunstâncias suspeitas.

A polícia telefonou para o diretor

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da escola e ficou sabendo que eraisso mesmo, houve boatos quediziam que Håkan Bengtsson…gostava de crianças de um modoinconveniente. A polícia tambémfez o diretor ir à escola no sábado ànoite para desarquivar uma fotoantiga de Håkan Bengtsson, tiradapara o álbum do colégio em 1976.

Um policial de Karlstad que dequalquer forma tinha coisas a fazerem Estocolmo mandou uma cópiada foto por fax e foi para Estocolmocom a foto original na noite desábado. A fotografia chegou à sede

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da polícia à uma da manhã nodomingo, ou seja, meia hora depoisde o homem em questão ter sejogado da janela do hospital e serdeclarado como morto.

A manhã de sábado foi dedicada averificar nas fichas médicas edentárias de Karlstad se o homemda foto era o mesmo que até a noiteanterior não podia sair do leito dehospital e, sim: era ele.

No domingo à tarde foi feita umareunião na sede da polícia. Elessabiam que acabariam descobrindoo que o morto fizera depois da saída

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de Karlstad, ver se suas obrasfaziam parte de um contexto maior,se havia mais vítimas pelo caminho.

Mas agora a situação eradiferente.

O assassino ainda estava vivo, emliberdade, e o mais importante nomomento era encontrar onde ohomem tinha morado , já que haviacerta chance de que ele fosseregressar para lá. O movimento nadireção de Västerort parecia indicarisso.

Assim, a polícia resolveu que, seo homem não tivesse sido capturado

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até a hora da reunião com aimprensa, lançaria mão do cãofarejador genioso de várias cabeçaschamado A População.

Alguém podia ter visto o homemna época em que ele ainda tinha amesma cara da foto e quem sabeessa pessoa tivesse uma ideia deonde ele havia morado. Além domais, e isso era obviamente algosecundário, a polícia precisava dealguma coisa para dar à imprensa.

Então os três policiais estavam

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sentados agora à mesa comprida emcima do tablado e um burburinhocorreu entre os jornalistas alireunidos quando o chefe de polícia— com um gesto simples que elesabia ser o mais eficiente do pontode vista dramático — levantou afoto ampliada de Håkan Bengtsson edisse: — O homem que procuramosse chama Håkan Bengtsson e, antesdo seu rosto ficar deformado, eletinha… essa cara aqui.

O chefe de polícia fez uma pausaenquanto as câmeras clicavam e osflashes fizeram a sala se

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transformar por uns segundos numverdadeiro estroboscópio.

É claro que havia cópias da fotoque podiam ser distribuídas para osjornalistas, mas foramprincipalmente os jornaisestrangeiros que escolheriam a fotode maior apelo emocional, que era ado chefe de polícia com o assassino— por assim dizer — nas mãos.

Depois de todos terem recebidosuas fotos e de o investigador e ochefe da busca terem apresentado aanálise deles, foi a hora dasperguntas. O primeiro que recebeu a

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palavra foi um repórter do jornalDagens Nyheter .

— Quando vocês calculam quevão prendê-lo?

O chefe de polícia respirou fundo,resolveu pôr em jogo sua reputação,aproximou-se do microfone e disse:— O mais tardar amanhã.

— Oi.— Oi.Oskar entrou na sala de estar

antes de Eli para apanhar o discoque ia mostrar. Percorreu a coleção

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magra de discos da mãe e achou. OsVikings. O grupo inteiro estavareunido numa coisa que parecia sero esqueleto de uma embarcaçãoviking, não combinava com osternos lustrosos dos integrantes.

Eli não veio. Com o disco namão, Oskar voltou para o corredor.Ela ainda estava do lado de fora doapartamento.

— Oskar, você precisa meconvidar.

— Mas… a janela. Você já…— Essa é uma entrada nova.— Sei. Você pode…

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Oskar não continuou; passou alíngua nos lábios. Olhou para odisco. A foto da capa foi tirada noescuro e com flash e Os Vikingsestavam iluminados parecendo umgrupo de santos prestes a chegar àterra firme. Ele deu um passo emdireção a Eli e lhe mostrou o disco.

— Olhe só. Parece que eles estãona barriga de uma baleia ou algo dotipo.

— Oskar…— Quê?Eli estava parada de braços

caídos olhando para Oskar. Ele deu

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um risinho, foi até a porta e passoua mão no ar entre o batente e asoleira da porta, na frente do rostode Eli.

— O que é? Por acaso existealguma coisa aqui?

— Não comece.— É sério. O que acontece se eu

não disser?— Não. Co-me-ce. — Eli deu um

sorriso amarelo. — Quer ver o queacontece, quer?

Eli disse isso de um jeito queobviamente tinha o objetivo delevar Oskar a dizer não; uma

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promessa de algo terrível. MasOskar engoliu em seco e disse: —Quero. Eu quero! Vamos lá!

— Você escreveu no bilheteque…

— É, escrevi. Mas vamos lá! Oque acontece?

Eli apertou os lábios, pensou umsegundo e em seguida deu um passoà frente, atravessando a soleira daporta. O corpo todo de Oskar secontraiu, ele esperava um raio azul,que a porta fosse se mexer,atravessar Eli e se fechar com forçaou algo parecido. Mas nada disso

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aconteceu. Eli entrou no corredor efechou a porta. Oskar encolheu osombros.

— Só isso?— Ainda não.Eli continuava na mesma posição

de quando estava do lado de fora doapartamento. Parada, de braçoscaídos e não tirava os olhos deOskar. O menino sacudiu a cabeça.

— E então? Se…Ele parou de falar quando uma

lágrima brotou do canto do olho deEli, não, uma de cada canto dosolhos. Mas não era lágrima, já que

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era bem escura. A pele do rosto deEli começou a ficar vermelha, ficourosa, vermelho-clara, cor de vinho eos punhos dela se cerraram na horaque os poros do rosto se abriram egotículas de sangue foram brotando,deixando o rosto todo pontilhado.No pescoço, a mesma coisa.

Os lábios de Eli se retorceram dedor e uma gota de sangue escorreuda boca, juntou-se com as gotas quebrotavam e ficavam cada vezmaiores no queixo e foramdescendo para se unir às gotas nopescoço.

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Oskar perdeu a força nos braços,deixou-os cair e o disco deslizou dedentro da capa, sua ponta quicouuma vez no chão e ele ficou caídono tapete do corredor. O olhar domenino foi para as mãos de Eli.

O dorso das mãos estava úmidode uma película de sangue e maissangue brotava.

Mais uma vez ele olhou Eli nosolhos, mas não a encontrou. Osolhos pareciam ter se afundado nasórbitas, estavam cheios de sangueque transbordava, escorria pelaslaterais do nariz para cima dos

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lábios, entrando pela boca, de ondebrotava mais sangue. Dois filetesescorriam do canto da boca,descendo pelo pescoço, edesapareceram por baixo da gola dacamisa dela, onde manchas maisescuras começavam agora aaparecer.

Ela sangrava por todos os porosdo corpo inteiro.

Oskar respirou fundo, ofegante, egritou: — Você pode entrar, vocêpode… seja bem-vinda, vocêpode… você pode ficar aqui!

Eli relaxou. Os punhos cerrados

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se abriram. A careta de dor sedesmanchou, Oskar achou por uminstante que o sangue também fossedesaparecer, que tudo seria como senão tivesse acontecido , já que elatinha sido convidada.

Mas não. O sangue parou deescorrer, mas o rosto de Eli e asmãos ainda estavam vermelho-escuros e, enquanto os dois estavamum na frente do outro sem dizernada, o sangue começou lentamentea coagular, a formar listras escurase a se aglutinar nas regiões ondeescorrera mais, e Oskar sentiu um

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leve cheiro de hospital.Ele apanhou o disco do chão,

enfiou-o de volta na capa e disse,sem olhar para Eli: — Desculpe, éque eu… eu não achei que…

— Tudo bem. Fui eu quem quis.Mas acho que vou precisar tomarum banho. Você tem um sacoplástico?

— Saco plástico?— É. Para as roupas.Oskar assentiu, foi para a cozinha

e desenterrou do buraco debaixo dapia um saco plástico onde estavaescrito “ica: coma, beba e seja

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feliz”. Foi para a sala, pôs o discona mesinha de centro e parou, com osaco farfalhando na mão.

E se eu não tivesse dito nada . Ese eu tivesse deixado Eli … ficarsangrando .

Ele amassou o saco plástico e fezdele uma bola, soltou-a e o sacopulou da sua mão, caindo no chão.Ele o apanhou, jogou-o no ar e opegou novamente. O chuveiro nobanheiro foi aberto.

Tudo é verdade . Ela é … ele é …Enquanto se dirigia para o

banheiro, ele abriu o saco. Coma,

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beba e seja feliz. Barulho dechapinhar atrás da porta fechada. Afechadura estava destrancada. Elebateu de leve.

— Eli…— Sim. Entre.— Não, eu só… o saco.— Não ouço nada. Entre.— Não.— Oskar, eu…— Vou deixar o saco aqui!Ele deixou o saco do lado de fora

da porta e fugiu para a sala. Tirou odisco da capa e o enfiou no prato davitrola, ligou o toca-discos e pôs a

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agulha na faixa número três, afavorita dele.

Uma introdução bem comprida eem seguida a voz macia do vocalistacomeçou a ecoar do alto-falante:

A menina prende flores no cabeloenquanto passeia no pradoEla vai fazer dezenove nesse anoe vai sorrindo sozinha por onde

anda

Eli entrou na sala de estar. Tinhaenrolado uma toalha em volta dacintura e, na mão, segurava o sacode plástico com as roupas. Seu rosto

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estava limpo agora e o cabelomolhado estava grudado em mechasnas bochechas e nas orelhas. Oskar,ao lado da vitrola, cruzou os braçosno peito e acenou com a cabeça paraela.

Por que você está sorrindo ,

pergunta o garotoquando eles se encontram por

acaso perto do portãoBem , é que eu estou pensando

nele que será meuResponde a menina de olhos que

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tão azuis sãoEle que eu tanto amo …

— Oskar?— Quê? — Ele abaixou o volume

e fez um gesto com a cabeça nadireção do toca-discos. — Ridículo,não é?

Eli sacudiu a cabeça. — Não, émuito bom. Dessa , eu gosto.

— Verdade ?— É. Mas, Oskar… — Eli

parecia que ia dizer mais algumacoisa, mas exclamou apenas “ah” e

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desatou a toalha que amarrara nacintura. A toalha caiu no chão juntodos seus pés e Eli ficou nua a algunsmetros de Oskar. Ela fez um gestoamplo com a mão na direção dopróprio corpo magro: — Agora vocêjá sabe.

… descem para o lago , onde eles

escrevem na areia .Baixinho , um diz para o outro ;

Escute , meu amor , é você quem euquero

La-lala-lalala …

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Um trecho instrumental curto e

depois a música acabava. Umcrepitar suave dos alto-falantesenquanto a agulha girava emdireção à próxima música, enquantoOskar olhava para Eli.

Os mamilos pequenos pareciamquase negros com a pelebranquíssima ao fundo. A partesuperior do corpo era delgada, reta esem contornos. Apenas o formatodas costelas se destacavanitidamente à luz forte do lustre doteto. Os braços finos e as pernas

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magras pareciam compridos demaissaindo dali do tronco, uma árvorejovem, revestida de pele humana.No meio das pernas, ela… não tinhanada. Nenhuma fenda, nenhumpênis. Apenas uma superfície lisa depele.

Oskar passou a mão no cabelo e adeixou em formato de concha emcima do pescoço. Ele não queriadizer aquela palavra ridícula damãe, mas saiu mesmo assim.

— Mas você não tem… bilau.Eli dobrou o pescoço e olhou para

a virilha como se isso fosse uma

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descoberta totalmente nova. Apróxima música começou e Oskarnão ouviu o que ela respondeu. Eleapertou o dispositivo que levantavaa agulha para tirá-la do disco.

— O que foi que você disse?— Eu disse que tive.— E o que aconteceu com ele?Eli soltou um riso e o próprio

Oskar ouviu como a pergunta tinhasoado; enrubesceu um pouco. Eliabriu os braços e pôs o beiço emcima do lábio superior.

— Esqueci no metrô.— Ah… Como você é

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desleixado…Sem olhar para Eli, Oskar passou

por ele e foi até o banheiro para verse não havia nenhum vestígio ládentro.

O vapor quente ainda pairava noar, o espelho estava embaçado. Abanheira estava tão branca quantoantes, apenas uma tira um poucoamarela de sujeira velha que nuncasaía perto da borda. A pia, limpa.

Isso não aconteceu .Eli só tinha entrado no banheiro

porque fazia parte da encenação,manter a ilusão. Mas não: o

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sabonete. Oskar levantou osabonete. Ele tinha tirinhaslevemente rosadas e na pequenaconcavidade da pia, lá embaixo, napoça d’água, havia um bolo dealguma coisa que parecia ser umgirino, isso mesmo: estava vivo, eele levou um susto quando o sercomeçou a…

nadar… a se mexer, sacudir a cauda e a

se contorcer em direção aoescoamento da concavidade, desceupela pia e ficou preso no canto. Masa coisa ficou imóvel ali, não estava

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viva. Ele abriu a torneira erespingou água nela de modo que oser desceu esgoto abaixo. Oskarenxaguou o sabonete e lavou a pia.Em seguida tirou do gancho oroupão de banho que era dele,voltou para a sala e o entregou paraEli, que ainda estava nu no meio dasala, olhando ao redor.

— Obrigado. Quando sua mãechega?

— Daqui a algumas horas. —Oskar pegou a sacola com asroupas. — Isso aqui é para jogarfora?

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Eli vestiu o roupão e o amarrou.— Não. Eu levo comigo mais

tarde. — Tocou no ombro de Oskar.— Oskar? Você entendeu que eunão sou menina, que eu não…

Oskar deu um passo para seafastar dele.

— Pare de ficar falando a mesmacoisa! Eu já sei. Você já disse isso!

— Não, eu não disse.— Disse sim.— Quando?Oskar refletiu.— Não lembro, mas de qualquer

jeito eu sabia . Já sabia há muito

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tempo.— Você está… triste?— E por que eu ficaria?— Porque… sei lá. Porque você

acha que é… uma coisa difícil. Seusamigos…

— Corta essa! Corta essa. Você édoente da cabeça. Corta essa.

— Tudo bem.Eli ficou mexendo na faixa do

roupão, foi depois para a vitrola eolhou o disco girando. Virou-se eolhou toda a sala.

— Sabe, faz muito tempo queeu… estive assim na casa de

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alguém. Eu não sei muito bem… Oque eu devo fazer?

— Sei lá.Eli deixou os ombros afundarem,

enfiou as mãos nos bolsos doroupão de banho e olhou como quehipnotizado para o buraco deescuridão do disco. Abriu a bocapara dizer alguma coisa, masfechou-a de novo. Tirou a mãodireita do bolso, estendeu-a nadireção do disco e apertou oindicador no lp, o que fez o discoparar.

— Cuidado. O disco pode…

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riscar.— Desculpe.Eli tirou rapidamente o dedo do

disco e o lp ganhou velocidade,continuou girando. Oskar viu que odedo deixara uma mancha deumidade que ficava visível cada vezque o disco passava pelo espectro daluz projetado pela lâmpada do teto.Eli enfiou a mão de novo no bolsodo roupão e olhou para o discocomo se estivesse tentando ouvir amúsica através do exame das faixasdo lp.

— Isso pode parecer… mas… —

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uma puxada no canto da boca de Eli— … é que eu não tenho… umamigo há duzentos anos.

Ele olhou para Oskar com umsorriso de desculpe-se-eu-disser-coisas-tão-estranhas. Oskararregalou os olhos.

— Você é tão velho assim?— Sou. Não sou. Eu nasci mais

ou menos duzentos e vinte anosatrás, mas fiquei dormindo a metadedesse tempo.

— Eu também. Bem, em todocaso... oito horas… quanto é quedá… um terço do tempo.

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— É. Mas… quando eu digodormir , estou falando de váriosmeses em que eu… não acordomesmo. E depois de alguns mesesem que… vivo. Mas então descansode dia.

— É assim que a coisa funciona?— Não sei. Pelo menos é assim

comigo. E depois quando acordoestou… pequeno de novo. E fraco. Énessas horas que eu preciso deajuda. Pode ser por isso que estousobrevivendo. Porque sou pequeno.E as pessoas querem me ajudar.Mas… por razões bem diferentes.

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Uma sombra passou pelo rosto deEli quando ele trincou o maxilar.Enfiou ainda mais as mãos nosbolsos do roupão, achou algumacoisa e tirou o objeto de lá dedentro. Uma tira de papel brilhante,fino. Algo que a mãe esquecera, elacostumava usar o roupão de Oskarde vez em quando. Eli depositoucom cuidado a tira de volta no bolsocomo se fosse algo valioso.

— E você dorme num caixão ?Eli deu uma risada e sacudiu a

cabeça.— Não, não. Eu…

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Oskar não conseguia mais ficarcom aquilo guardado dentro dele.Na verdade, não foi sua intenção,mas saiu como se fosse umaacusação quando disse: — Mas vocêmata gente!

Eli olhou bem nos olhos dele comuma expressão semelhante àsurpresa, como se Oskar tivessecomentado de forma enfática queEli tinha cinco dedos em cada mãoou algo tão óbvio quanto isso.

— É. Eu mato gente. É uma pena.— Mas então por que você faz

isso?

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Uma faísca de raiva surgiu nosolhos de Eli.

— Se você tiver uma ideiamelhor, é só dizer.

— O.k., mas… sangue… deve darpara arranjar… de algum jeito…que você…

— Não dá.— Por que não?Eli bufou e apertou os olhos.— Porque eu sou igual a você.— Como igual a mim? Eu…Eli fez um movimento amplo no

ar como se tivesse uma faca na mãoe disse: — O que é que você está

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olhando, idiota? Quer morrer, hein?— Deu uma facada com a mãovazia. — É isso que dá ficar meencarando.

Oskar esfregou o lábio de cimano de baixo e os umedeceu.

— O que você está dizendo?— Não sou eu que estou dizendo.

Foi você quem disse. Foi a primeiracoisa que ouvi você dizer. Láembaixo no parquinho.

Oskar lembrou. A árvore. A faca.Como ele inclinara a lâmina da facae, fazendo um espelho dela, viu Elipela primeira vez.

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Sua imagem aparece emespelhos? A primeira vez que eu vivocê foi num espelho .

— Eu… não mato gente.— Não. Mas gostaria. Se pudesse.

E você realmente faria seprecisasse.

— Porque eu odeio todos eles. Éuma grande…

— Diferença. Será mesmo?— É…— Se você não fosse punido. Se

apenas acontecesse . Se vocêpudesse desejar a morte deles e elesmorressem. Então você não ia

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desejar?— … sim.— Isso. E só seria para seu bel-

prazer. Vingança. Eu faço issoporque preciso. Não há outro jeito.

— Mas é porque eles… porqueeles judiam de mim, implicamcomigo, porque eu…

— Porque você quer viver .Exatamente como eu.

Eli estendeu os braços,pressionou as mãos junto dasbochechas de Oskar e aproximou orosto do dele.

— Seja eu um pouco.

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E beijou a boca de Oskar.

Os dedos do homem estão

encurvados sobre os dados e Oskarvê que suas unhas estão pintadas depreto .

O silêncio paira na sala comouma névoa sufocante . A mãodelgada vira de lado … devagar …e os dados caem dela , em cima damesa … pa-bang . Um bate no outro, giram e param .

O número dois . E o númeroquatro .

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Oskar sente um alívio cujo motivoele não sabe quando o homempercorre a mesa e fica na frente dafila de meninos como um generaldiante do seu exército . A voz dohomem não tem um tom definido,não é grave nem aguda quando eleestende um dedo comprido e começaa contar as crianças na fila .

— Um … dois … três … quatro …Oskar olha para a esquerda ,

para o lado onde o homem começoua contar . Os meninos estãorelaxados , libertos . Um soluço . Omenino ao lado de Oskar se encolhe

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, com o lábio de baixo tremendo . Ah. É ele que é … o número seis .Oskar entende agora seu próprioalívio .

— Cinco … seis … e … sete .O dedo aponta bem na direção de

Oskar . O homem olha dentro dosolhos dele . E sorri .

Não!Mas não foi … Oskar se liberta

do olhar do homem e olha para osdados . Os dados exibem agora onúmero três e o sete . O menino aolado de Oskar olha ao redor ,confuso como se tivesse acabado de

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acordar de um pesadelo . Por umsegundo , os olhos deles se cruzam .Olhares vazios . De incompreensão .

Em seguida um grito vindo lá daparede .

… mãe…A mulher com o lenço marrom na

cabeça corre para ele , mas doishomens aparecem , seguram-napelos braços e … atiram a mulherde volta para a parede de pedra . Osbraços de Oskar têm um espasmocomo se fossem aparar a queda damulher e seus lábios formam apalavra:

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… mãe!na hora em que mãos fortes como

nós são pousadas em seus ombros eele é retirado da fila , para junto deuma porta pequena . O homem deperuca ainda está com o dedolevantado; acompanha Oskar com odedo enquanto ele é empurrado earrancado do salão para uma salaescura que cheirava a

… bebida …… depois flashes , imagens

confusas ; claro , escuro , pedra ,pele nua …

até a imagem se estabilizar e

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Oskar sentir uma pressão forte nopeito. Não consegue mexer osbraços. Sua orelha direita pareceque vai estourar, está pressionadanuma… tábua.

Alguma coisa está na boca deOskar . Um pedaço de corda . Elesuga a corda , abre os olhos .

Está deitado de barriga parabaixo em cima de uma mesa . Seusbraços estão amarrados nas pernasda mesa . Está nu . Diante dele ,duas pessoas ; o homem com perucae um outro homem . Um homembaixo e gordo que parece ser …

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engraçado . Não. Parece ser alguémque se acha engraçado . Sempreconta histórias de que ninguém ri .O homem engraçado segura umafaca numa das mãos e uma tigela naoutra .

Alguma coisa está errada .A pressão no peito , na orelha .

Nos joelhos . Talvez uma pressão no… bilau também . Mas é como sehouvesse … um buraco na mesa bemali . Oskar tenta se virar paradescobrir o que é , mas o corpo estábem preso .

O homem de peruca diz alguma

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coisa para o homem engraçado eeste ri , balançando a cabeça . Emseguida os dois se agacham . Ohomem de peruca fica olhando paraOskar . Os olhos dele são azul-claros , como o céu num dia frio deoutono . Parece interessado de umjeito afável . O homem olha dentrodos olhos de Oskar como seestivesse procurando algo bonito alidentro , algo que ele ama .

O homem engraçado se agacha eentra embaixo da mesa , segurandoa faca e a tigela . E Oskar entende .

Também sabe que é só conseguir

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… tirar aquela corda da boca queele não precisará ficar aqui . Entãoele desaparece .

Oskar tentou puxar a cabeça para

trás, deixar o beijo. Mas Eli, queestava preparado para essa reação,pôs uma das mãos em forma deconcha atrás da nuca dele, apertouos lábios na boca de Oskar eobrigou-o a permanecer naslembranças dele, e elascontinuaram.

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O pedaço de corda é pressionadona boca de Oskar e ouve-se umchiado molhado na hora em que elepeida de tanto medo . O homem deperuca franze o nariz e estala alíngua , em sinal de repreensão .Seus olhos não mudaram . Ainda amesma expressão que lembra a deuma criança prestes a abrir a caixaque ele sabe conter um filhote decachorro .

Dedos frios seguram o bilau deOskar e o puxam . Ele abre a bocapara gritar “nããoo!”, mas a cordao deixa incapaz de formar a palavra

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e só sai um “éééé!”.O homem embaixo da mesa

pergunta alguma coisa e o homemde peruca responde , sem tirar osolhos de Oskar . Depois a dor . Umbastão em brasa em sua virilha .Sobe para a barriga , o peito sendocorroído , um cano de fogo passapor seu corpo de ponta a ponta e elegrita e não para de gritar enquantoseus olhos se enchem de lágrimas eo corpo queima .

Seu coração bate contra a mesaparecendo um punho cerradobatendo num portão e ele aperta os

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olhos , morde a corda enquantoouve de longe um barulho de águacorrendo , gorgolejando , e ele vê …

… a mãe de joelhos na beira doriacho lavando roupa. Mãe. Mãe.Ela perde alguma coisa , um pano ,e Oskar se levanta , ficou deitado debarriga para baixo e seu corpo estáqueimando , ele se levanta , correpara o riacho , para o pedacinho depano que foge arisco , joga-se naágua para apagar o fogo do corpo ,para salvar a roupa e conseguepegá-la . A blusa da irmã . Elelevanta o pano na direção da luz ,

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na direção da mãe cuja silhueta elevê na beira d’água e o pano estágotejando, brilhando ao sol , asgotas caem no riacho e respingamem seus olhos e ele não consegueenxergar claramente , pois a águalhe entra pelos olhos , escorre pelorosto quando ele …

… abre os olhos e vê embaçado ocabelo louro, os olhos azuis quenem duas flores trientalis distantes.Vê a tigela que o homem estásegurando, a tigela que é levada àboca e que o homem bebe. Vê que ohomem fecha os olhos, finalmente

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fecha os olhos e bebe …Mais tempo … Um tempo infinito

. Preso . O homem morde . E bebe .Morde . E bebe .

Depois o bastão em brasa vaipara sua cabeça e tudo ficavermelho-claro quando ele a puxapara trás , para se soltar da corda ,e cai …

Eli segurou Oskar quando o

menino ia caindo de costas ao sesoltar dos lábios dele. Segurou-o emseus braços. Oskar agarrou-se no

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que havia para se agarrar, no corpodiante dele; abraçou-o com força eolhou ao redor na sala sem enxergarnada.

Calma… assim.Depois de um tempo, um desenho

começou a surgir diante de Oskar.Um papel de parede. Bege e branco,rosas quase invisíveis. Elereconheceu. Era o papel de parededa sala. Estava na sala do seuapartamento.

Esse que ele estava abraçandoera… Eli.

Um menino . Meu amigo . Isso .

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Oskar sentiu-se enjoado, tonto.Soltou-se do abraço e sentou-se nosofá; olhou ao redor de novo comopara se certificar de que estava devolta, de que ele não estava… lá.Engoliu em seco, percebeu quepodia recordar cada mínimo detalhedo lugar que acabara de visitar. Eracomo se fosse uma lembrança real.Alguma coisa que tinha acontecidocom ele recentemente. O homemengraçado, a tigela, a dor…

Eli estava de joelhos no chão nafrente dele, as mãos apertando abarriga.

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— Desculpe.Do mesmo jeito que …— O que aconteceu com a mãe?Eli pareceu ter dúvidas e

perguntou: — Você está falando…da minha mãe?

— Não… — Oskar se calou, viu aimagem da mãe na frente dele lá noriacho enxaguando roupa. Mas nãoera a mãe dele . Elas não eram nemum pouco parecidas. Ele esfregou osolhos e disse: — Isso. Isso mesmo.Sua mãe.

— Não sei.— Não foram eles que…

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— Eu não sei!As mãos de Eli se fecharam tanto

contra a barriga que os nós dos seusdedos ficaram brancos, os ombrossubiram. Depois ele relaxou e dissemais brando: — Não sei. Desculpe.Desculpe por… tudo isso. Eu queriaque você… sei lá… Desculpe. Foi…burrice minha.

Eli era a cara da mãe dele. Maismagro, com menos curvas, maisnovo, porém… uma cópia. Em vinteanos Eli provavelmente teria omesmo rosto da mulher na beira doriacho.

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Mas só que ele não vai mudar . Acara dele vai permanecerigualzinha à cara que ele tem agora.

Oskar suspirou, exausto, e serecostou no sofá. Aquilo foi demais.Uma dorzinha de cabeça ficoutateando às cegas nas suastêmporas, instalou-se, deu umapertão. Era demais. Eli se levantou.

— Vou embora.Oskar apoiou a cabeça na mão e

balançou-a. Não tinha forças paraprotestar, pensar no que devia fazer.Eli tirou o roupão e Oskar olhou

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mais uma vez de relance para suavirilha. Agora via que na pelebranca sobressaía uma manchalevemente rosa, uma cicatriz.

Como ele faz na hora de … fazerxixi ? Talvez ele não …

Não tinha forças para perguntar.Eli se agachou perto da sacola deplástico, abriu-a e começou a tiraras roupas de lá de dentro. Oskardisse: — Você pode… pegar umaroupa minha.

— Não precisa.Eli tirou do saco a camisa

quadriculada. Manchas escuras

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sobre o fundo azul-claro. Oskarsentou-se. A dor de cabeçarodopiava nas têmporas.

— Não complique, você pode…— Não precisa.Eli começou a vestir a camisa

manchada de sangue e Oskar disse:— Você é sujo, sabia disso? Você ébem sujo .

Eli se virou para ele com acamisa nas mãos: — Você acha?

— Acho.Eli enfiou a camisa de volta na

sacola.— E o que eu posso vestir?

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— Qualquer coisa do armário, oque você quiser.

Eli assentiu e entrou no quarto deOskar onde estava o armário,enquanto o menino se deixou cair delado no sofá e apertava as mãos nastêmporas como se isso fosseimpedir que elas estourassem.

Mãe , a mãe de Eli , minha mãe ,Eli , eu . Duzentos anos . O pai deEli . O pai de Eli? Aquele coroa que… O coroa .

Eli apareceu na sala de novo.Oskar tomou impulso para dizer oque pensara em dizer, mas parou

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quando viu que Eli estava devestido. Um vestido de verão bemdesbotado, amarelo de bolinhasbrancas. Um dos vestidos da mãe.Eli alisava o vestido.

— Está bem esse? Eu peguei oque parecia mais gasto.

— Mas é…— Eu devolvo depois.— O.k., tudo bem.Eli se aproximou de Oskar, ficou

agachado à sua frente e pegou a mãodele.

— Oskar? Eu sinto muito… eunão sei o que…

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Oskar abanou a outra mão parafazê-lo parar e disse: — Você sabeque aquele coroa, que ele fugiu, nãosabe?

— Que coroa?— Aquele que… você disse que

era seu pai. O coroa que moravacom você.

— O que tem ele?Oskar fechou os olhos. Raios

azuis luziram dentro das suaspálpebras. A cadeia deacontecimentos que ele reconstruíraatravés dos jornais passou emdisparada e o menino ficou com

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raiva, soltou-se da mão de Eli efechou a mão, bateu com o punho naprópria palma da mão, a cabeçaexplodia e ele disse com os olhosainda fechados: — Corta essa. Cortaessa. Eu sei de tudo, o.k.? Pare defingir. Pare de mentir , estou cheiodisso.

Eli não disse nada. Oskar apertouos olhos, inspirou e expirou.

— O coroa fugiu. A polícia estáatrás dele o tempo inteiro mas nãoconsegue encontrá-lo. Agora você jásabe.

Uma pausa. Depois a voz de Eli,

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por cima da cabeça de Oskar.— Onde?— Aqui. Em Judarn. No bosque.

Perto de Åkeshov.Oskar abriu os olhos. Eli se

levantara, com a mão tapando aboca e os olhos grandes e assustadosacima da mão. O vestido era grandedemais, parecia um saco penduradonos ombros estreitos e ele pareciauma criança que pegou as roupas damãe sem pedir e agora esperavaalgum tipo de castigo severo.

— Oskar — disse Eli. — Nãosaia de casa. Quando ficar escuro.

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Me prometa.O vestido. As palavras. Oskar

bufou, não podia deixar de dizer.— Você está falando igual à

minha mãe.

O esquilo desce rapidamente pelo

tronco do carvalho, para, prestaatenção. Uma sirene, lá de longe.Pelo Bergslagsvägen, passa umaambulância com a luz azulpiscando, a sirene ligada.

Dentro da ambulância há trêspessoas. Lacke Sörensson sentado

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num banquinho dobrável segura amão arranhada e anêmica quepertence a Virginia Lindblad. Umenfermeiro ajusta o tubo quetransporta soro fisiológico para ocorpo de Virginia, o que dá aocoração dela algo para bombear,agora que perdeu muito sangue.

O esquilo considera o barulho

inofensivo, irrelevante. Ele continuadescendo pelo tronco. Durante o diainteiro houve gente no bosque, cães.Nenhum momento de tranquilidade

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e só agora, quando já escureceu, éque o esquilo tem coragem dedescer do carvalho onde foiobrigado a ficar o dia todo.

Agora o latido dos cães e as vozesse calaram, desapareceram. Assimcomo o pássaro trovejante que ficoupairando lá por cima das árvoresparecia ter voado para casa, para suamorada.

O esquilo chega ao pé da árvore ecorre por cima de uma raiz grossa.Não gosta de andar pelo chãoquando está escuro, mas a fome oobriga. Ele se movimenta com

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cautela, para e presta atenção, olhaao redor a cada dez metros. Pega umcaminho mais longo para não ter depassar pela toca onde até o verãotinha morado uma família detexugos. Fazia tempo que ele não osvia, mas nunca é demais agir comcautela.

Finalmente chega ao seu destino;a reserva de comida mais próximadas muitas que ele fez no outono. Atemperatura caiu agora de noite eestá de novo abaixo de zero e, porsobre a neve que começou a derreterdurante o dia, se formara uma crosta

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fina e dura. O esquilo põe-se aescarafunchar a crosta com suasgarras, fura a crosta e continuaremexendo. Para, presta atenção,cava de novo. Atravessa a neve, asfolhas, a terra.

Bem na hora que apanha uma nozentre as patas, ele ouve um barulho.

Perigo .O esquilo segura a noz nos dentes

e sobe num pinheiro sem ter tempode camuflar o depósito. Já emsegurança lá no alto de um galho,segura a noz com as duas patas denovo e tenta localizar o som. A

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fome é grande e a comida estáapenas a uns centímetros da boca,mas primeiro o perigo deve serlocalizado e evitado.

A cabeça do esquilo virarapidamente de um lado para ooutro, seu focinho treme quando eleolha lá embaixo na paisagem à luzda lua, abaixo dos seus pés, eencontra a origem do som. É. Valeua pena ter usado o caminho maislongo. O arranhar, o som úmidovem da toca do texugo.

Texugos não podem subir emárvores. O esquilo afrouxa um

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pouco a vigilância, come um pedaçoda noz enquanto continua estudandoo chão, agora mais como umespectador de uma peça teatral, doterceiro camarote. Quer ver o quevai acontecer, quantos texugos elessão.

Mas o que sai da toca não énenhum texugo. O esquilo tira a nozda boca, olha. Tenta entender.Compara o que ele está vendo comfatos conhecidos. Não consegue.

Por isso leva a noz à boca denovo, sobe rápido para um lugarmais alto na árvore, vai até o topo.

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Talvez um desses consiga subirem árvores.

Nunca é demais agir com cautela.

Domingo, 8 de novembro(noite/madrugada)

São oito e meia, domingo à noite.Ao mesmo tempo que a

ambulância com Virginia e Lackeatravessa a ponte de Traneberg, aomesmo tempo que os policiais daprovínvia de Estocolmo seguram

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uma fotografia diante de jornalistasfamintos de imagens, ao mesmotempo que Eli escolhe um vestidono armário da mãe de Oskar, aomesmo tempo que Tommy espremecola instantânea num saco plástico easpira o doce torpor e esquecimentoprofundamente pelo nariz, aomesmo tempo que um esquilo, oprimeiro ser vivo que, depois decatorze horas, vê Håkan Bengtsson,Staffan, um dos que estão à procuradele, está se servindo de chá.

Ele não notou que está faltandoum pedaço de porcelana na frente

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do bico da chaleira, e uma grandequantidade de chá escorre pelo bico,pela chaleira, e desce pela bancadada pia. Ele resmunga alguma coisa einclina a chaleira mais rápido; o cháacaba entornando e a tampa dachaleira cai dentro da xícara. O cháfervendo respinga nas suas mãos eele bate a chaleira com força nabancada, fica com os braços duroscaídos enquanto recita na cabeça oalfabeto hebraico para dominar oimpulso de atirar a chaleira naparede.

Aleph , Beth , Gimel , Daleth …

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Yvonne aparece na cozinha e vê

Staffan encurvado sobre a bancadada pia de olhos fechados.

— Algum problema?Staffan sacudiu a cabeça. — Não.Lamed , Mem , Nun , Samesh …— Você está chateado?— Não.Koff , Resh , Shin , Taff . Assim…

Bem melhor .Ele abriu os olhos e fez um gesto

na direção da chaleira.— Essa chaleira não serve.— Está quebrada?

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— Está, ela… o chá escorre pelolado de fora na hora de servir.

— Nunca reparei.— Mas é assim que ela faz.— Mas o erro não deve ser dela .Staffan apertou os lábios,

estendeu a mão queimada nadireção de Yvonne e fez-lhe umgesto: Paz . Shalom . Cale a boca .— Yvonne, agora me deu umavontade enorme de bater em você.Então, me faça um favor: não falemais nada.

Yvonne deu meio passo atrás.Alguma coisa nela já esperava isso.

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Não deixara tal entendimento entrarem sua consciência, mas mesmoassim suspeitara que a fachadadevota de Staffan abrigava uma ououtra forma de… ira.

Ela cruzou os braços, inspirandoe expirando algumas vezes enquantoStaffan estava parado, olhandofixamente para a xícara de chá coma tampa dentro. Em seguida, eladisse: — Você costuma fazer isso?

— O quê?— Bater. Quando as coisas não

dão certo.— Eu já te bati?

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— Não, mas você disse…— Eu disse . E você escutou. E

agora está tudo bem.— E se eu não tivesse escutado?Staffan parecia agora

absolutamente calmo e Yvonnerelaxou, deixando cair os braços.Ele segurou as mãos de Yvonne.Beijou de leve o dorso das suasmãos.

— Yvonne, a gente precisa seescutar.

O chá foi servido e eles beberamna sala. Staffan guardou namemória que compraria uma

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chaleira nova para dar de presente aYvonne. Ela quis saber sobre abusca no bosque de Judarn e Staffancontou. Ela fez o máximo paradesviar a conversa para outrosassuntos, mas no final veio dequalquer jeito a pergunta inevitável:— Onde está Tommy?

— Eu… não sei.— Você não sabe? Yvonne…— É, ele está na casa de um

amigo.— Ahã. Quando é que ele chega

em casa?— Bem, eu acho que…ele vai

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passar a noite fora. Lá.— Lá?— É, na casa do…Yvonne percorreu de cabeça a

lista dos nomes dos amigos deTommy que ela conhecia. Nãoqueria dizer a Staffan que Tommydormia fora de casa sem que elasoubesse onde . Para Staffan eramuito importante essa coisa deresponsabilidade dos pais.

— … do Robban.— Robban. É o melhor amigo

dele?— É, acho que sim.

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— Qual o sobrenome do Robban?— … Ahlgren, como assim? É

alguém que você…— Não, eu só estava pensando.Staffan apanhou a colher e bateu-

a de leve na xícara de chá. Umtilintar delicado. Ele balançou acabeça.

— Ótimo. Aliás, olhe… eu achoque a gente precisa ligar para essetal de Robban e pedir para o Tommydar uma passada em casa. Assim euposso ter uma conversa com ele.

— Eu não tenho o telefone dele.— Não, mas… Ahlgren. Você

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sabe onde ele mora, não sabe? É sóolhar no catálogo telefônico.

Staffan se levantou do sofá eYvonne mordeu o lábio inferior,sentiu que estava construindo umlabirinto de onde era cada vez maisdifícil sair. Ele apanhou o catálogolocal e postou-se no meio da sala,folheando o catálogo eresmungando: — Ahlgren,Ahlgren… Hmm. Ele mora em querua?

— Eu… Björnsonsgatan.— Björnsons… não. Nenhum

Ahlgren por lá. Mas existe um aqui

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na Ibsengatan. Será que é esse?Quando Yvonne não respondeu,

Staffan pôs o dedo no catálogo edisse: — Acho que vou tentar comesse, em todo caso. Robert, é esse onome dele, não é?

— Staffan…— Que é?— Eu prometi a ele que não ia

contar.— Agora não estou entendendo

nada.— Tommy. Eu disse que eu não

ia falar… onde ele está.— Então ele não está na casa do

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Robban.— Não.— E onde ele está?— Eu… prometi não contar.Staffan largou o catálogo em

cima da mesinha de centro e foi sesentar junto de Yvonne no sofá. Elatomou um gole de chá e continuoucom a xícara na frente do rostocomo para se esconder enquantoStaffan esperava por ela. Ao pôr axícara no pratinho, percebeu quesuas mãos tremiam. Staffan pôs amão em seu joelho.

— Yvonne, você precisa entender

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que…— Eu prometi.— Eu só quero conversar com

ele. Desculpe, Yvonne, mas eu achoque é exatamente essa incapacidadede resolver as coisas enquanto elassão atuais que faz com que… bem,com que elas aconteçam. Quando setrata de jovens, minha experiênciadiz que, quanto mais rápido a gentereage com eles, maior é a chancede… pegar um viciado em heroína.Se alguém tivesse reagido enquantoele ainda estava tomando outrascoisas, bem, por exemplo haxixe…

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— Tommy não mexe com essascoisas.

— Você tem certeza absoluta ?A sala ficou em silêncio. Yvonne

sabia que, a cada segundo que sepassava no relógio, um “sim” valiacada vez menos para a pergunta deStaffan. Tique-taque. Agora ela járespondera “não”, sem dizer apalavra. E Tommy era às vezesesquisito. Quando chegava em casa.Alguma coisa com os olhos dele.Imagine se…

Staffan se recostou no sofá, sabiaque a batalha estava ganha. Agora

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ele só esperava pelas restrições.Os olhos de Yvonne procuravam

alguma coisa em cima da mesa.— O que é?— O pacote de cigarro, você…— Na cozinha. Yvonne…— O.k. Tudo bem. Você está

proibido de procurá-lo agora .— Está bem. Você decide. Se

você achar…— Amanhã cedo. Antes de ele ir

para a escola. Prometa-me. Quevocê não vai para lá agora .

— Prometo. E que lugar místico éesse onde ele está?

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Yvonne contou.Depois ela foi para a cozinha e

fumou um cigarro, soltou a fumaçapelo vão da janela aberta. Fumoumais um, não se preocupou tantocomo antes com o paradeiro dafumaça. Quando Staffan apareceuna cozinha, abanando com a mão demodo demonstrativo e perguntandoonde estava a chave do porão, eladisse que esquecera, mas queprovavelmente lembraria na manhãseguinte.

Se ele fizesse esse favor a ela.

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Depois que Eli foi embora, Oskar

sentou-se à mesa da cozinha denovo e olhou para os jornaisabertos. A dor de cabeça estavapassando conforme suas impressõesiam se reorganizando e assumindouma estrutura lógica.

Eli explicara que o coroaestava… contaminado. Mais queisso. A contaminação era a únicacoisa nele com vida. O cérebroestava morto e a contaminaçãodirigia o coroa. Para Eli.

Eli dissera a ele, pedira a ele para

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não fazer nada. Eli ia embora no diaseguinte, assim que escurecesse, enaturalmente Oskar tinhaperguntado por que não agora, demadrugada?

Porque … não dá.Mas por quê? Eu posso ajudar .Oskar , não dá . Estou fraco

demais .Como você pode estar fraco? Se

você …Mas eu estou , e pronto .E Oskar entendera que era ele a

causa da falta de energia de Eli. Osangue todo escorrera pelo corredor.

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Se o velho pusesse as mãos em Eli,a culpa era de Oskar.

As roupas!Oskar se levantou tão

bruscamente que a cadeira caiu paratrás e bateu no chão.

O saco com as roupasensanguentadas de Eli ainda estavano chão na frente do sofá, a metadeda camisa pendurada para fora dasacola. Ele a enfiou dentro do saco eas mangas pareceram um cogumeloúmido na hora que espremeu acamisa no fundo do saco, amarrou asacola e… Parou e olhou para a mão

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que pressionara a camisa.O corte que ele fizera na mão

estava com uma casca de ferida quese rompera um pouco agora,mostrando o que havia por baixodela.

… o sangue … ele não queriamisturar … será que fui …contaminado agora?

Com as pernas andando de ummodo autômato, ele foi para a portada rua com a sacola na mão e tentouescutar se havia alguém na portaria.Silêncio lá fora. Oskar subiucorrendo as escadas para a lixeira

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do prédio e abriu a tampa. Enfiou asacola no buraco, ficou com elapendurada na mão, com a sacolabalançando na escuridão do poço.

Uma corrente de ar frio circulavapela lixeira; esfriou sua mão, queestava imóvel ali, segurandofirmemente o nó de plástico dosaco. O saco estava branco emcontraste com o preto do túnel, asparedes, um pouco desiguais. Se elesoltasse a sacola, ela não subiria.Ela cairia. A gravidade a puxariapara baixo. Para o saco de lixo.

Dentro de alguns dias, o

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caminhão de lixo viria para apanharo saco. Ele vinha de manhã bemcedinho. O pisca-pisca da luzlaranja ia se refletir no teto deOskar mais ou menos na mesmahora que ele costumava acordar eele ficaria na cama ouvindo oroncar, o despedaçar e o barulho desucção na hora que o lixo fossetriturado. Talvez se levantasse eficasse olhando para os homens demacacão que, habituados, jogavamcom agilidade os sacos no veículo eapertavam o botão. As mandíbulasdo caminhão de lixo que se

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fechavam e os homens que saltavamem seguida para dentro docaminhão e percorriam o pequenotrecho até o prédio seguinte.

E isso sempre lhe despertava umsentimento… de afeição. De estarprotegido no quarto dele. De que ascoisas funcionavam. E talveztambém despertasse uma vontade.Uma vontade de ver aqueleshomens, aquele caminhão. De poderficar na cabine em penumbra domotorista, de ir embora…

Solte . Eu preciso soltar .Sua mão segurava a sacola como

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se estivesse com cãibra. Seu braçodoía de tanto ficar esticado. O dorsoda mão começava a ficar geladocom a corrente de ar. Ele soltou.

Um chiado quando a sacola roçounas paredes, meio segundo desilêncio quando teve uma quedalivre e em seguida um baque aoaterrissar no saco de lixo.

Eu ajudo você .Ele olhou para a mão de novo. A

mão que ajuda. A mão que…Eu mato alguém . Eu entro em

casa para apanhar a faca e depoissaio para matar alguém . Jonny .

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Corto a garganta dele e junto osangue todo e vou com o sanguepara a casa de Eli , pois não tem amenor importância , já que eu estoucontaminado de qualquer jeito elogo, logo eu vou …

Suas pernas queriam se dobrar eele foi obrigado a se apoiar no cantoda lixeira para não cair. Ele tinhapensado nisso. De verdade . Não foique nem a brincadeira com aárvore. Ele tinha… por uminstante… realmente pensado emfazer isso.

Quente. Ele estava quente, como

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se fosse de febre. Sentia pontadasno corpo e queria se deitar. Agora.

Estou contaminado . Vou virar …vampiro .

Obrigou as pernas a descerempela escada enquanto ele apoiavauma das mãos…

a que não estava contaminada… no corrimão. Oskar conseguiu

entrar no apartamento, foi para oquarto, deitou-se na cama e fitou opapel de parede. O bosque.Rapidamente, apareceu um dos seuspersonagens, olhou nos olhos. Oduendezinho. Ele passou o dedo

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pelo duende e, enquanto isso, umpensamento altamente ridículo veioà tona: Amanhã é dia de escola .

E havia uma folha mimeografadaque ele não tinha feito. África. Eledevia se levantar agora, sentar-se àescrivaninha, acender o abajur ecomeçar a procurar no atlas. Acharnomes sem sentido e copiá-los naslinhas pontilhadas.

Er a isso o que ele devia fazer.Alisou devagar o gorro do duende.Depois, bateu na parede.

E.L.I.Nenhuma resposta. Ele devia

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estar na rua…fazendo aquilo que a gente faz .Ele cobriu a cabeça com o

edredom. Começou a ter tremedeirano corpo. Tentou imaginar. Comoseria. Viver para sempre. Temido,odiado. Não. Eli não ia odiá-lo. Seeles… juntos…

Ele tentou imaginar, usava afantasia. Depois de um tempo, aporta se abriu e a mãe chegou emcasa.

Travesseiros de sebo .

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O olhar vazio de Tommy estavavidrado na foto diante dele. Agarota apertava tanto um peito nooutro que eles pareciam dois balõesde ar, a boca fazia biquinho. Aquilotinha um aspecto absurdo. Elepensara em bater uma, mas deviaestar com algum problema nocérebro, pois achava que a mulherparecia um monstro.

Com uma lentidão descomunal,fechou a revista e enfiou-a debaixodas almofadas do sofá. Cadamovimento, por menor que fosse,era fruto de um pensamento

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consciente. Chapado. Ele estavatotalmente chapado de cola. E erabom. Nada de mundo. Só o cômodoonde ele estava e, fora dali… umdeserto ondulante.

Staffan .Tentou pensar em Staffan. Não

dava. A imagem escapava. Só viaaquele policial de cartolina queestava nos correios. Em tamanhonatural. Para amedrontar os ladrões.

Vamos roubar os correios?Não , ficou maluco , o policial de

cartolina está lá!Tommy deu um risinho quando o

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policial de papel ficou com a carade Staffan. De castigo nessa função.Vigiar os correios. Havia algumacoisa escrita naquele tira decartolina, o que era mesmo?

O crime não compensa . Não. Apolícia está de olho em você . Não.Mas qual era a frase mesmo?Cuidado! Sou campeão de tiro aoalvo!

Tommy riu. Riu mais. Sacudiu-setodo de tanto rir e achou que a luznua do teto balançava para a frente epara trás ao compasso do seu riso.Riu disso. Cuidado! Policial de

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papelão! Com revólver de papelão!E cabeça de papel!

Uma batida soou em sua cabeça.Alguém queria entrar nos correios.

O policial de papelão aguça osouvidos . Há duzentas cartolinas nocorreio. Ele destrava o três-oitão .Bang! Bang!

Toc. Toc. Toc.Bang .… Staffan … a mãe, que merda…Tommy ficou petrificado. Tentou

pensar. Não dava. Apenas umanuvem franzida em sua cabeça.Depois ficou calmo. Talvez fosse

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Robban ou Lasse. Ou então eraStaffan. E ele era de papelão.

Imitação de pênis , feita depapelão .

Tommy limpou a garganta eperguntou com voz pastosa: —Quem é?

— Eu.Ele reconheceu a voz, mas não

conseguia saber de onde. Não eraStaffan, em todo caso. Não era opai-papelão.

Barbapai . Pare com isso .— E quem é você?— Você pode abrir?

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— O correio já fechou. Voltedaqui a cinco anos.

— Eu tenho dinheiro.— Dinheiro de papel?— É.— Tudo bem.Ele se levantou do sofá. Devagar,

bem devagarzinho. A silhueta dascoisas não queria ficar quieta. Suacabeça pesava que nem chumbo.

Ressaca .Ficou parado por alguns

segundos, oscilando. O chão decimento se inclinava de uma formaonírica para lá e para cá, como na

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casa dos espelhos. Ele foi para afrente, um passo de cada vez,levantou o trinco e empurrou aporta. Lá fora estava aquela garota.A amiguinha do Oskar. Tommyolhou para ela sem entender o queestava vendo.

Sol e praia .A garota trajava apenas um

vestido de pano fino. Amarelo, combolinhas brancas que atraíam oolhar de Tommy, e ele tentou seconcentrar nas bolinhas, mas elascomeçaram a dançar, a se mexertanto que ele ficou com enjoo. Ela

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devia ser uns vinte centímetros maisbaixa que ele.

Uma graça que nem … que nem overão .

— Já é verão assim de repente?— perguntou ele.

A garota inclinou a cabeça delado.

— Como?— É que você está vestindo…

como se chama isso… um vestidode verão .

— É.Tommy balançou a cabeça,

satisfeito por ter achado a palavra.

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O que foi que ela disse? Dinheiro?O.k. Oskar tinha contado que…

— Você quer… comprar algumacoisa?

— Quero.— Que tipo de coisa?— Posso entrar?— Pode.— Diga que eu posso entrar.Tommy fez um gesto amplo e

exagerado com o braço. Viu aprópria mão se movendo numavelocidade a jato, um peixe drogadonadando no ar.

— Entre. Seja bem-vinda na…

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filial.Tommy não aguentava mais ficar

em pé. O chão queria abraçá-lo. Elese virou e despencou no sofá. Amenina atravessou o umbral, fechoua porta e passou o trinco. Ela erapara ele um frango incrivelmentegrande, Tommy riu-se da visão queteve. O frango sentou-se napoltrona.

— O que é?— Não, é que eu só… você está

toda… de amarelo.— Sei.A menina cruzou as mãos em

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cima de uma bolsa pequena no colo.Ele não tinha visto que ela estavacom uma bolsa. Não. Não era umabolsa. Parecia mais uma nécessaire .Tommy ficou olhando para anécessaire . Quando a gente vê umabolsa. A gente quer saber o que hádentro dela.

— O que você tem… aí dentro?— Dinheiro.— Mas é claro.Não . Alguma coisa não bate .

Isso aqui está um pouco esquisito .— E o que é que você quer

comprar?

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A menina abriu o zíper danécessaire e tirou uma nota de milde lá de dentro. Mais uma nota.Mais uma. Três mil. As cédulaspareciam ridiculamente grandes emsuas mãozinhas quando ela seinclinou à frente e pôs o dinheiro nochão.

Tommy bufou: — E o que é isso?— Três mil.— O.k. E daí?— Para você.— Não.— Sim.— Isso aí é dinheiro de…

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mentira, do Banco Imobiliário , né?— Não.— Não?— Não.— E por que você está me dando

essa grana?— Porque eu quero comprar uma

coisa de você.— Você quer comprar um coisa

por três mil … ah, não.Tommy estendeu ao máximo o

braço e conseguiu apanhar umacédula. Sentiu a nota, roçou umaponta na outra, segurou a cédula naluz e viu que ela tinha a marca-

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d’água. O mesmo rei ou sabe-se lá oque essa cédula costumava ter.Verdadeira.

— Então você não está brincando.— Não.Três mil . Podia viajar para

algum lugar . Tomar um avião paraalgum lugar .

Staffan e a mãe podiam ficarali… Tommy sentiu que ospensamentos estavam mais claros.A coisa era totalmente doida, mastudo bem: três mil. Isso era um fato.Agora restava a pergunta…

— E o que você quer comprar?

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Por esse valor você pode comprar…— Sangue.— Sangue.— É.Tommy deu um risinho, sacudiu a

cabeça.— Não, infelizmente não dá.

Nossa reserva acabou.A menina estava imóvel na

poltrona, fitava Tommy. Nemsequer sorria.

— Tudo bem, agora falando sério— disse Tommy. — Como assim?

— Você recebe esse dinheiro…se eu receber um pouco de sangue.

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— Eu não tenho sangue.— Tem sim.— Não.— Tem sim.Tommy entendeu.Mas que diabos …— Você está falando sério?A menina apontou para as notas

de mil.— Não é nada de mais.— Mas… o quê… como assim?A menina enfiou a mão na

nécessaire , apanhou alguma coisa.Um pedacinho de plástico branco equadrado. Sacudiu-o. Alguma coisa

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tilintou um pouco. Agora Tommyviu o que era. Uma embalagem comgiletes. Ela a depositou no colo eapanhou mais uma coisa. Umretângulo cor de pele. Um band-aidgrande.

Isso não tem cabimento .— Não, vamos parando por aí.

Será que você não percebe que… ésó eu roubar esse dinheiro de você.Enfiar as notas no bolso e dizer:“Não, como assim? Três mil. Nuncavi”. É muito dinheiro, será que vocênão entende? De onde você tirouessa grana toda?

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A menina fechou os olhos esuspirou. Ao abri-los de novo, nãotinha mais a mesma cara amigável.

— Você quer ou não quer?Ela está falando sério . Caramba

, ela está falando sério . Não … Não…

— Como assim, você vai… e záse pronto…

A menina balançou a cabeça,ansiosa.

Zás ? Espere um pouco . espereum pouco agora … o que era mesmoaquilo com … porcos .

Ele franziu as sobrancelhas. A

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ideia quicava para cá e para lá emsua cabeça que nem uma bola deborracha atirada com toda força.Tentou segurá-la, fazê-la parar. Eela parou. Ele lembrou. Abriu aboca. Olhou a garota bem nos olhos.

— … é mesmo…?— É, sim.— Você está de brincadeira, não

está? Escute. Vá embora daqui. Saiaagora daqui.

— Eu tenho uma doença. Precisode sangue. Posso dar mais dinheirose você quiser.

Ela vasculhou as coisas na

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nécessaire , procurava alguma coisa,apanhou duas notas de mil e asdepositou no chão. Cinco mil. —Por favor.

O assassino . Vällingby. Agarganta cortada . Mas que diabos… essa menina …

— E o que você vai fazer com osangue… mas que diabos… você ésó uma pirralha, você…

— Você está com medo?— Não, eu posso… é você? Você

está com medo?— Estou.— De quê?

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— De você dizer não.— Mas eu já disse não. Isso é

totalmente… não, tome juízo. Vápara casa.

A menina ficou sentada napoltrona, pensando. Em seguidabalançou a cabeça concordando,levantou-se e apanhou o dinheiro dochão, enfiou as notas na nécessaire .Tommy olhou para o ponto onde odinheiro estivera. Cinco. Mil. Otrinco tilintou ao ser levantado.Tommy se virou, sentado de costas.

— Mas… me explique… vocêvai cortar minha garganta?

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— Não. Só a dobra do braço. Umpouquinho.

— E o que você vai fazer com osangue?

— Beber.— Agora?— É.Tommy fez um autoexame e viu

aquele mapa da circulaçãosanguínea posto como uma folha depapel-carbono do lado de dentro dasua pele. Sentiu, talvez pelaprimeira vez na vida, que ele tinhauma circulação. Não apenas pontosisolados, ferimentos quando

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aparecem uma ou várias gotas desangue, mas sentiu-se uma árvoregrande e pulsante feita de artérias echeias de… quanto é mesmo?…quatro, cinco litros de sangue.

— E que doença é essa?A menina não disse nada, apenas

ficou junto à porta com o trinco namão, estudando Tommy, e então aslinhas das artérias e veias do corpodele, o mapa, assumiram de repenteo caráter de um… esquema de cortede carne. Ele repeliu o pensamento,pensou em vez disso em Sejadoador de sangue . Vinte e cinco

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coroas e um sanduíche de queijo .Em seguida ele disse: — Entãopasse o dinheiro para cá.

A menina abriu o fecho danécessaire e apanhou as cédulas denovo.

— E se eu der… três agora. Edois depois?

— O.k., tudo bem. Mas é que eupodia… muito bem ir para cima devocê e roubar seu dinheiro, entende?

— Não. Você não ia fazer isso.Ela lhe entregou as três mil

coroas, que segurava entre o dedomédio e o indicador. Ele levantou as

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notas uma a uma na luz e constatouque eram verdadeiras. Fez depoisum cilindro delas em torno do qualfechou a mão esquerda.

— Certo. E agora?A menina pôs as duas notas

restantes em cima da poltrona,agachou-se junto do sofá,desenterrou a embalagem de gileteda nécessaire e tirou uma delas lá dedentro.

Ela já fez isso antes .A menina virou a gilete de um

lado para o outro como se estivessedecidindo qual lado estava mais

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afiado. Levantou depois a gilete noalto, perto do rosto. Uma pequenamensagem, cuja única palavra era:zás . Ela disse: — Você não podecontar isso aqui a ninguém.

— E o que acontece se eu contar?— Você não vai contar. Para

ninguém.— Tudo bem. — Tommy olhou

furtivamente para o braçoestendido, para as notas de mil emcima da poltrona. — E quanto é quevocê vai tirar?

— Um litro.— É… muito?

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— É.— É tanto que eu…— Não. Você aguenta.— O sangue volta.— É.Tommy balançou a cabeça. Ficou

olhando depois fascinado para agilete, que brilhava como umespelhinho, sendo enterrada em suapele. Como se isso estivesseacontecendo com outra pessoa, emoutro lugar. Só via o jogo de linhas.O maxilar da menina, o cabeloescuro dela, o braço branco dele, oretângulo da gilete que empurrou de

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lado um cabelinho do braço eatingiu seu objetivo, descansandopor um instante no inchaço da veia,um pouco mais escuro do que a peleao redor.

A gilete foi empurrada parabaixo, de leve, bem de leve. Umadas pontas afundou-se na pele semfurá-la. Em seguida…

zás .Um movimento súbito para trás e

Tommy arfou, apertando ainda maisas notas na outra mão. Um estalo ládentro da sua cabeça quando eletrincou os dentes, que rangeram. O

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sangue brotou, esguichou.Um tilintar quando a gilete caiu

no chão e a menina segurou o braçodele com as mãos, apertando oslábios na dobra do braço.

Tommy virou a cabeça para ooutro lado, sentia apenas os lábiosquentes, a língua lambendo sua pelee, novamente, viu à frente a imagemdo mapa dentro do seu corpo, oscanais por onde o sangue corria ecirculava para a… fenda.

O sangue está saindo de mim .É. A dor aumentou. O braço

começou a ficar paralisado, ele não

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sentia mais os lábios, sentia apenaso sugar, que o sangue… era sugadodele, que…

Ele se esvaía .Ficou com medo. Quis acabar

com aquilo. Doía demais. Aslágrimas subiram-lhe aos olhos, eleabriu a boca para dizer algumacoisa, para… não conseguiu. Nãohavia palavras que fossem… Elelevou o braço livre à boca e apertoua mão fechada nos lábios. Sentiu ocilindro de papel que saía dela.Mordeu-o.

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Domingo à noite, às 21h17 em

Ängbyplan: Um homem éobservado do lado de fora do salãode cabeleireiro. Está com o rosto eas mãos encostados na vitrine.Parece estar muito embriagado. Apolícia chega ao local quinzeminutos mais tarde. A essa altura ohomem já deixara o lugar. A vidraçanão está danificada, apenasapresenta vestígios de barro outerra. Na vitrine iluminada, há fotosde jovens, manequins de cortes decabelo.

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— Já está dormindo?— Não.Uma corrente de ar de perfume e

de friagem na hora em que a mãeentrou no quarto de Oskar e sentou-se no canto da cama.

— O dia correu bem?— Sim.— O que você fez?— Nada de especial.— Eu vi os jornais. Na mesa da

cozinha.— Ahã.Oskar se enrolou ainda mais no

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edredom e fingiu bocejar.— Está com sono?— Ahã.Verdade e mentira ao mesmo

tempo. Ele estava cansado , tãocansado que sua cabeça estavazunindo. Queria apenas ficarenrolado no cobertor, bloquear aentrada e só sair quando…quando… mas não estava com sono. E… será que podia dormir agoraque estava contaminado?

Ouviu que a mãe perguntoualguma coisa sobre o pai e disse“bem” sem saber o que estava

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respondendo. Silêncio no quarto.Em seguida a mãe suspirou fundo.

— Meu filho, está tudo bem comvocê? Será que eu posso ajudar dealguma forma?

— Não.— E o que você tem?Oskar enterrou a cabeça no

travesseiro e expirou tão forte que onariz, a boca e os lábios ficaramquentes de umidade. Não aguentou.Era difícil demais. Precisava dizerpara alguém . Com a cara enterradano travesseiro, falou: — …euôcotaminato…

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— O que você disse?Ele levantou a boca do

travesseiro.— Eu estou contaminado.A mãe acariciava a nuca de

Oskar, o pescoço, a mão delacontinuou descendo, e o edredomsaiu um pouco de cima dele.

— Como assim contami… mas…você ainda está de roupa!

— É, é que eu…— Deixe-me ver. Você está

quente? — Ela pôs a mão fria natesta dele. — Você está com febre.Ande logo. Você tem que tirar a

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roupa e se deitar direito. —Levantou-se da cama e sacudiuOskar de leve pelos ombros. —Ande.

Ela respirou fundo e lembroualguma coisa. Disse num tomdiferente: — Por acaso você sevestiu como devia quando estava nacasa do seu pai?

— Sim. Não é isso.— Usou o gorro?— Usei. Não é isso.— Então o que é?Oskar apertou o rosto no

travesseiro de novo, abraçou-o e

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disse: — … Bôbirábambiro…— Oskar, o que foi que você

disse?— Vou virar vampiro!Pausa. Um farfalhar veio do

casaco da mãe quando ela cruzou osbraços no peito.

— Oskar. Agora você vai selevantar. Tirar essas roupas. E ir sedeitar.

— Eu vou virar vampiro .A respiração da mãe. Nítida, com

raiva. — Amanhã sou eu quem vaijogar fora todos aqueles livros quevocê fica lendo.

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O edredom foi arrancado de cimade Oskar. Ele se levantou e tirou aroupa lentamente; evitou olhar paraa mãe. Deitou-se na cama de novo ea mãe o enrolou no edredom.

— Você quer alguma coisa?Oskar sacudiu a cabeça.— Quer que eu pegue o

termômetro…?Oskar sacudiu ainda mais a

cabeça. Agora ele olhava para amãe. Ela estava debruçada sobre acama, com as mãos nos joelhos. Oolhar preocupado, investigativo.

— Posso ajudar de alguma forma

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?— Não. Sim, pode.— Com o quê?— Esqueça, não é nada.— Mas diga.— Você pode… contar uma

história?Um flash de sentimentos diversos

passou pelo rosto da mãe: tristeza,alegria, preocupação, um pequenosorriso, uma ruga de preocupação.Tudo isso durante alguns segundos.Em seguida ela disse: — Eu… nãosei contar histórias… Mas eu…posso ler uma, se você quiser. Se a

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gente tiver um livro…Ela levantou os olhos para a

estante de livros perto da cabeça deOskar.

— Não, não precisa.— Mas eu posso contar.— Não. Não quero.— Por que não? Você acabou de

dizer…— É, mas… não. Não quero.— Você quer que… eu cante

alguma coisa?— Não!A mãe apertou os lábios,

magoada. Depois resolveu não ficar,

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já que Oskar estava doente, e disse:— Eu posso inventar alguma coisase…

— Não, tudo bem. Eu querodormir agora.

Depois de um tempo, a mãe lhedeu boa-noite e saiu do quarto.Oskar ficou na cama de olhosarregalados, olhando para a janela.Tentou sentir se estava… setransformando. Não sabia o que sesentia nessas horas. Eli. O queaconteceu na hora que ele… setransformou?

Afastar-se de tudo .

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Deixar. A mãe, o pai, a escola…Jonny, Tomas…

Ficar com Eli. Para sempre.Ele ouviu que a televisão foi

ligada na sala, o volume foirapidamente reduzido. O barulhosuave do bule de café na cozinha. Ofogão a gás que era aceso, o tilintarda xícara e do pratinho. O armárioque foi aberto.

Os sons de sempre. Oskar jáouvira esses sons centenas de vezes.E ficou triste. Muito triste.

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As feridas tinham cicatrizado.Dos arranhões no corpo de Virginiarestavam apenas linhas brancas, portoda parte restos de cascas de feridaque ainda não tinham se soltado.Lacke alisou a mão dela, presa juntoao corpo por uma cinta de couro, emais uma casca de ferida esfarelousob seus dedos.

Virginia oferecera resistência.

Resistiu com violência até cair emsi e perceber o que estavaacontecendo. Tinha arrancado o

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cateter para transfusão de sangue,gritado e chutado.

Lacke não aguentara ficarolhando enquanto eles tentavamdominá-la, ela estava transfigurada.Ele desceu para a cafeteria e tomouuma xícara de café. Em seguidamais uma e depois mais uma.Quando estava prestes a servir oterceiro copo, a mulher no caixaobservou cansada que o preço docafé dava direito a só mais umaxícara. Lacke disse então que estavaduro, que estava tão mal que tinha asensação de que ia morrer amanhã,

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será que ela não podia abrir umaexceção?

Ela podia. Até ofereceu a Lackeum pedaço de bolo ressecado que“ia de qualquer jeito para o lixo”.Ele comeu o doce com um nó nagarganta, pensou na bondaderelativa das pessoas, na maldaderelativa delas. Saiu do hospital efumou o penúltimo cigarro quetinha antes de subir para verVirginia.

Eles tinham amarrado Virginia nacama.

Uma enfermeira recebera uma

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pancada tão forte que seus óculostinham se partido e um pedaço dovidro arranhou-lhe a sobrancelha.Tinha sido impossível acalmarVirginia. Não queriam arriscar lhedar uma injeção por causa do estadode saúde em que ela se encontravae, por isso, prenderam os braços deVirginia com cintas de couro, maispara, como disseram, “impedir queela machucasse a si mesma”.

Lacke esmigalhou entre os dedosa casca de ferida e um pó tão finoquanto pigmento sujou-lhe a pontados dedos de vermelho. Um

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movimento no canto do olho, osangue da bolsa pendurada numsuporte ao lado da cama de Virginiapingava dentro de um cilindro deplástico e continuava descendo parao cateter em seu braço.

Pelo visto, depois de teremconstatado qual era o gruposanguíneo de Virginia, eles tinhamfeito primeiro uma transfusão emque uma grande quantidade desangue foi bombeada nela, masagora, depois de o quadro ter seestabilizado, o sangue apenas caíaem gotas. Na bolsa de sangue pela

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metade havia uma etiqueta com ummonte de códigos incompreensíveis,e nela dominava um “A” grande. Ogrupo sanguíneo, é claro.

Mas … alto lá …Lacke era do grupo B. Lembrou

que ele e Virginia tinhamconversado sobre isso uma vez eque Virginia também era do grupoB, e que por isso eles podiam…isso. Foi exatamente desse jeito queeles tinham dito. Que um podia doarsangue para o outro porque eleseram do mesmo grupo sanguíneo. ELacke era do grupo B, disso ele

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tinha certeza absoluta.Ele se levantou e foi para o

corredor do hospital.Será que eles cometem esse tipo

de erro?Conseguiu achar uma enfermeira.— Desculpe, mas…Ela olhou para as roupas gastas

dele, ficou um pouco receosa edisse: — Pois não?

— Eu só queria saber uma coisa.É com Virginia… Virginia Lindbladque está… internada…

A enfermeira balançou a cabeça,pareceu assumir agora quase uma

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postura de recusa. Talvez elaestivesse presente quando eles…

— Bem, é que eu só queriasaber… o grupo sanguíneo?

— O que tem ele?— Eu vi que estava escrito “A”

no pacote que… mas ela não é dessegrupo.

— Agora não estou entendendo.— Bem… é… você teria um

tempinho?A enfermeira olhou ao redor até o

final do corredor. Talvez paraverificar se alguém podia ajudá-lase a coisa degenerasse, talvez para

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marcar que tinha coisas maisimportantes para fazer. No entanto,ainda assim, ela acompanhou Lackee entrou no quarto onde Virginiaestava deitada de olhos fechados, osangue gotejando devagar pelo tubo.Lacke apontou para a bolsa desangue.

— Aqui. Esse “A”. Isso significaque…

— É o sangue do grupo A dentrodele. Há uma carência enorme dedoadores hoje em dia. Se as pessoassoubessem como…

— Desculpe. Mas ela é do grupo

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B. Nesse caso não é perigoso dar…— É, sim.A enfermeira não foi diretamente

grossa, mas a postura do seu corpoinsinuava que o direito de Lacke dequestionar a competência dohospital era mínimo. Ela encolheude leve os ombros e disse: — Se apessoa for do grupo B. Mas não é ocaso dessa paciente. Ela tem ab.

— Mas… está escrito “A” no…pacote.

A enfermeira suspirou e depoisfalou, como se explicasse a umacriança que não havia habitantes na

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Lua: — Pessoas do grupo ab podemreceber sangue de todos os grupossanguíneos.

— Mas… certo. Então o gruposanguíneo dela mudou.

A enfermeira alçou asobrancelha. A criança acabara deafirmar que estivera na Lua e viraseres humanos lá em cima. Fazendoum gesto com a mão como secortasse uma faixa, ela disse: —Isso simplesmente não acontece.

— O.k. Então ela me deu ainformação errada.

— Deve ser isso. Com licença,

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mas eu tenho que fazer outras coisasagora.

A enfermeira controlou o cateterno braço de Virginia, girou umpouco o suporte e, olhando paraLacke com um olhar que dizia queisso sim eram coisas importantes eai dele se ele fosse cutucar nessascoisas, ela deixou o quarto a passosenérgicos.

O que acontece se a gente recebesangue errado? O sangue … seaglutina .

Não. Virginia deve ter seenganado.

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Ele foi para um canto do quartoonde havia uma poltrona pequena euma mesa com uma flor de plástico.Sentou-se na poltrona e olhou para oquarto. As paredes nuas, o chãoreluzente. Luz fluorescente no teto.A cama de Virginia feita dealumínio, em cima dela um cobertoramarelo desbotado onde estavaescrito Conselho da Província.

É desse jeito que vai ser.Na obra de Dostoiévski, a doença

e a morte eram quase sempre algosujo, miserável. Gente esmagadadebaixo da roda de uma carroça,

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lama, tifo, lenços de narizmanchados de sangue. E assim pordiante. Mas vai ver que essa misériatoda era melhor que isso. Que serafastado e depositado numa espéciede máquina polida.

Lacke se recostou na poltrona ecerrou os olhos. O apoio das costasera curto demais, sua cabeça caíapara trás. Ele se endireitou, pôs ocotovelo no braço da poltrona erecostou o rosto na mão. Olhou paraa flor de plástico. Era como se ativessem depositado ali paradestacar que aqui era proibido

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existir algum tipo de vida; aquiestava tudo em seu devido lugar.

A flor continuou gravada em suaretina quando ele fechou os olhos denovo. Transformou-se numa flor deverdade, cresceu, virou um jardim.O jardim da casa que eles iamcomprar. Lacke estava no jardimolhando para uma roseira comflores vermelhas e cintilantes. Dacasa vinha a sombra comprida deuma pessoa. O sol se pôsrapidamente e a sombra cresceu,ficou mais comprida, estendeu-sepelo jardim.

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Lacke estremeceu e acordou. A

palma da sua mão estava molhadada saliva que escorrera enquanto eledormia. Passou a mão na boca,sentiu o gosto e tentou levantar acabeça. Não dava. O pescoçoparecia travado. Obrigou o pescoçoa se endireitar e os ligamentosestalaram. Parou.

Olhos arregalados olhavam paraele.

— Oi! Você está…Sua boca se fechou. Virginia

estava deitada de costas, amarrada

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com cintas, com o rosto virado paraele. Mas a cara dela estava imóveldemais. Nenhum movimento dereconhecimento, de alegria… nada.Os olhos não pestanejavam.

Morta! Ela está …Lacke se levantou subitamente da

poltrona e alguma coisa estalou emseu pescoço. Jogou-se de joelhos nochão na frente da cama, segurou aarmação de alumínio e aproximou orosto do dela, como se, com suapresença, ele obrigasse a alma avoltar para o rosto, lá do fundo.

— Ginja! Você está me ouvindo?

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Nada. Ainda assim, ele podiajurar que os olhos dela de algummodo olhavam dentro dos olhosdele, que não estavam mortos. Ele aprocurou em cada cantinho deles;jogou fateixas de onde estava, nosburacos que eram as pupilas deVirginia para, ali na escuridão,conseguir apanhar…

As pupilas . Será que é assim queelas ficam quando a gente …

As pupilas não estavam redondas.Eram dois traços na vertical,pontudos na extremidade. Ele fezuma careta quando uma pontada de

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dor irradiou para o pescoço; passoua mão ali, massageou.

Virginia fechou os olhos. Abriu-os de novo. E apareceu.

Lacke abriu a boca de um jeitoridículo, continuou a massagear opescoço de um modo mecânico.Fez-se um clique que parecia o somde madeira quando Virginia abriu aboca e perguntou: — Você está comdor?

Lacke tirou a mão do pescoço,como se tivesse sido surpreendidofazendo algo feio.

— Não, eu só… eu achei que

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você estivesse…— Eu estou presa.— É, você… lutou um pouco.

Espere que eu… — Lacke enfiou amão entre duas grades da cama ecomeçou a soltar uma das cintas.

— Não.— O que é?— Deixe do jeito que está.Lacke hesitou, com as cintas

entre os dedos.— Está querendo bater mais?Virginia fechou os olhos pela

metade.— Deixe do jeito que está.

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Lacke soltou as cintas, não sabiao que fazer com as mãos quando atarefa foi retirada delas. Sem selevantar, virou-se de joelhos epuxou a poltrona pequena para juntoda cama, o que fez a dor irradiarnovamente para o pescoço. Sentou-se desengonçado nela.

Virginia balançou a cabeça de ummodo quase imperceptível. — Vocêligou para Lena?

— Não. Eu posso…— Está bem.— Você não quer que eu…?— Não.

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Surgiu um silêncio entre eles. Osilêncio que é peculiar aos hospitaise que aparece porque a própriasituação — um de cama, doente ouferido, e um com saúde ao lado —na verdade já diz tudo. As palavrasficam insignificantes,desnecessárias. Apenas o maisimportante pode ser dito. Por umbom tempo, ficaram se olhando.Disseram o que podia ser dito, sempalavras. Depois Virginia virou acabeça acompanhando o corpo eolhou para o teto.

— Você precisa me ajudar.

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— Com o que você quiser.Virginia passou a língua em volta

dos lábios, encheu o pulmão de ar esoltou um suspiro tão profundo ecomprido que parecia ter usadoreservas escondidas do corpo.Depois seus olhos passearam pelocorpo de Lacke. Perscrutadores,como se ela estivesse dando oúltimo adeus ao cadáver de umapessoa querida e quisesse gravar nalembrança a imagem dele. Elaesfregou um lábio no outro eproferiu por fim as seguintespalavras: — Eu sou um vampiro.

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Os cantos da boca de Lackequeriam se levantar num sorrisoamarelo, a boca queria fazer algumcomentário para espairecer, depreferência um pouco cômico. Masos cantos da boca não se mexeram eo comentário se perdeu, nuncachegou perto dos lábios. Em vezdisso, veio apenas um: — Não.

Ele massageou a nuca paraquebrar a atmosfera no quarto, aimobilidade que transformava todasas palavras em verdade. Virginiafalou com calma, controlada.

— Eu fui à casa de Gösta. Para

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matá-lo. Se não tivesse acontecido.O que aconteceu. Eu teria matadoGösta. E depois… bebido o sanguedele. Eu ia fazer isso. Era minhaintenção. Com aquilo tudo.Entende?

Os olhos de Lacke erravam pelasparedes do quarto como seestivessem procurando o mosquito,a causa do zumbido irritante que nosilêncio fazia cócegas em seucérebro, impossibilitando todo equalquer pensamento. Finalmenteeles pararam na armação da luzfluorescente no teto.

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— Merda de luz que não para dezumbir.

Virginia olhou para a luz e disse:— Não posso ficar exposta à luz.Não posso comer nada. Tenhopensamentos horríveis. Vou acabarmachucando alguém. Machucandovocê. Não quero mais viver.

Finalmente alguma coisaconcreta, algo que dava pararesponder.

— Não diga uma coisa dessas —disse Lacke. — Virginia? Não digauma coisa dessas. Está me ouvindo?

— Você não está entendendo.

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— Não, eu não entendo. Masvocê não vai morrer. Sacou? Vocêestá aí na minha frente agora, vocêpode falar, você está… está tudobem.

Lacke se levantou da poltrona,deu alguns passos sem rumo noquarto e abriu os braços.

— Você está proibida… proibidade falar desse jeito.

— Lacke. Lacke?— Sim!— Você sabe. Que é verdade. Não

sabe?— O que é verdade?

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— Isso que eu disse.Lacke deu um risinho e sacudiu a

cabeça enquanto as mãos davambatidinhas no corpo. Procurava emcima dos bolsos. — Preciso fumarum cigarro. Está…

Ele achou o maço amassado, oisqueiro. Conseguiu tirar o últimocigarro lá de dentro e o enfiou naboca. Depois lembrou onde estava.Tirou o cigarro da boca.

— Merda, eles vão me atirar dajanela de cabeça para baixo se eu…

— Abra a janela.— É mesmo para eu pular?

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Virginia sorriu. Lacke foi para ajanela, escancarou-a e debruçou-seo máximo nela.

A enfermeira com quem eleconversou podia certamente sentircheiro de cigarro a dez quilômetrosde distância. Ele acendeu o cigarro etragou fundo, esforçou-se em soprara fumaça de um jeito que ela nãoentrasse de novo pela janela, olhoupara as estrelas no céu. Por trásdele, Virginia começou a falar denovo.

— Foi aquela criança. Fuicontaminada. E depois… não parou

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de crescer. Eu sei onde está. Nocoração. No coração todo. Como umcâncer. Está fora do meu controle.

Lacke soprou a fumaça. Sua vozecoou nos prédios altos ao redor.

— Mas você consegue conversar.Você está do jeito que… sempre foi.

— Eu me esforço. Além disso,recebi sangue. Mas posso deixarcorrer solto. A qualquer momentoposso deixar de me segurar. Então acoisa me domina. Eu sei disso. Eusinto isso. — Virginia respiroufundo algumas vezes e continuou:— Você está aí. Estou olhando para

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você. E tenho vontade de… tecomer.

Lacke não sabia se foi o torcicoloou outra coisa que fez um arrepiosubir por sua espinha. De repente,sentiu-se desprotegido.Rapidamente, apagou o cigarro naparede e deu um peteleco naguimba, que traçou um arco no ar.Virou-se para o interior do quarto.

— Mas isso é uma loucura.— É. Mas é desse jeito.Lacke cruzou os braços no peito.

Com um riso forçado, eleperguntou: — E o que você quer que

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eu faça?— Eu quero que você… destrua

meu coração.— O quê? Mas como?— De qualquer jeito.Lacke revirou os olhos.— Você está ouvindo a si

mesma? Como isso tudo soa? É umdisparate. Como assim? Será queeu… devo enfiar uma estaca emvocê, é isso?

— É.— Não, não e não. Olhe, isso aí

você pode esquecer. Vai ter quepensar em algo melhor.

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Lacke riu e sacudiu a cabeça.Virginia olhou para ele andando delá para cá no quarto, ainda com osbraços cruzados no peito. Depoisbalançou calmamente a cabeça.

— Está bem.Ele foi para junto de Virginia e

segurou sua mão. Era estranho coma mão… presa. Suas mãos nemsequer cabiam em volta da mão deVirginia. Em todo caso, a mão delaestava quente e apertou a dele. Coma mão que estava livre, ele alisou orosto dela.

— Não quer que eu solte você?

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— Não. Pode… vir à tona.— Você vai ficar boa. Isso aí vai

se resolver. Virginia, você é tudoque eu tenho. Quer saber de umsegredo?

Sem largar a mão dela, Lackesentou-se na poltrona e começou acontar. Contou tudo. Sobre os selos,o leão, a Noruega, o dinheiro. Acasa no campo que eles teriam.Perdeu-se numa fantasia compridade como o jardim seria, que floreseles teriam e como iriam pôr umamesinha do lado de fora, fazer umcaramanchão onde poderiam se

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sentar e…A uma certa altura no meio disso

tudo, as lágrimas começaram a rolardos olhos de Virginia. Silenciosas,pérolas transparentes que lhedesciam pela face, molhando afronha. Nada de soluços, apenaslágrimas descendo, joias feitas detristeza… ou de alegria?

Lacke parou de falar. Virginiaapertou com força a mão dele.

Depois Lacke foi para o corredor,conseguiu com uma dose depersuasão e uma de apelo fazer osfuncionários do hospital disporem

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mais uma cama no quarto. Lackemudou a posição da cama, que ficoubem junto da de Virginia. Emseguida apagou a luz, tirou a roupa emeteu-se debaixo dos lençoisásperos, procurou e encontrou amão dela.

Durante muito tempo ficaramassim em silêncio. Depois vieram aspalavras.

— Lacke, eu te amo.E Lacke não respondeu. Deixou

as palavras pairando no ar. Seremencapsuladas e crescerem até setransformar num cobertor vermelho

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e grande flutuando pelo quarto, umcobertor que desceu sobre ele e oaqueceu a noite inteira.

Segunda-feira de manhã, às 4h23,

praça Island: Várias pessoas nasimediações da Björnsonsgatanacordaram por causa de umagritaria. Uma delas telefona para apolícia acreditando ser um recém-nascido que está gritando. Quando apolícia chega ao local, dez minutosmais tarde, os gritos tinhamterminado. A polícia faz uma busca

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e encontra vários gatos mortos.Alguns deles tiveram asextremidades separadas do corpo. Apolícia anota nome e número detelefone dos gatos que estão comcoleira de identificação, a fim decomunicar o ocorrido aos donos. ASecretaria de Vias Públicas échamada para limpar o local.

Falta meia hora para o sol nascer.Eli está recostado na poltrona da

sala. Ficou a noite e a madrugadainteira dentro de casa. Guardou o

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que havia para ser guardado.Na próxima noite, assim que

escurecer, Eli vai procurar umacabine telefônica para chamar umtáxi. Não sabe para que número vaitelefonar, mas isso é provavelmentealgo que todo mundo sabe. É sóperguntar. Depois que o táxi chegar,ele vai enfiar três caixas demudança no bagageiro e pedir aomotorista para ir…

Aonde?Eli fechou os olhos, tentou

imaginar um lugar onde queriaficar.

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Como sempre, aparece primeiro aimagem da casa onde ele moravacom os pais e o irmãos mais velhos.Mas ela não existe mais. No lugarda casa, nos arredores deNorrköping, existe hoje um anelviário. O riacho onde a mãe lavavaroupa secou, a vegetação cresceu evirou uma baixada ao lado doacostamento.

Eli tinha muito dinheiro. Podiapedir ao motorista que o levassepara qualquer lugar, enquanto aescuridão permitisse. Para o norte.Ou para o sul. Sentar-se no banco de

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trás e dizer para ele ir rumo ao norteaté completar duas mil coroas.Depois sair do carro. Começar denovo. Encontrar alguém que…

Eli atira a cabeça para trás e gritapara o teto lá no alto: — Não quero!

Os fios poeirentos da teia dearanha balançam devagar com o arexpelido por ele. O som morre nocômodo fechado. Eli leva as mãosao rosto e pressiona a ponta dosdedos nas pálpebras. Sente no corpoo nascer iminente do sol em formade aflição. Sussurra: — Deus. Deus?Por que eu não posso ter nada? Por

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que eu não posso…Faz muitos anos que a pergunta

fica remoendo dentro dele.Por que não posso viver ?Porque você devia estar morto .Apenas uma vez depois de ter

sido contaminado, Eli encontraraum outro agente transmissor dadoença. Uma mulher adulta. Tãocínica e destroçada quanto o homemde peruca. Mas Eli obteve nessaocasião a resposta a uma outrapergunta que não saía de sua cabeça.

— Somos muitos?A mulher sacudira a cabeça e

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respondera com uma tristeza teatral:— Não, somos pouquíssimos.

— Por quê?— Por quê? Bem, porque a

maioria se suicida, é claro. Vocêpode entender. É um fardo tãopesaaaado , ai, ai, ai. — Abanou asmãos e disse com voz estridente: —Oooh, não aguento carregar mortesna minha consciência.

— Nós podemos morrer?— É claro. É só atear fogo em

nós mesmos. Ou deixar que outraspessoas o façam; elas fazem issosem o menor problema, sempre

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fizeram. Ou… — Ela esticou oindicador, apertou o dedo com forçano peito de Eli, em cima do coração.— Aí. É aí que ela está, não é? Masagora, meu amigo, tive uma ótimaideia…

E Eli tinha fugido dessa ótimaideia. Como fugira antes. E maistarde.

Eli pôs a mão em cima docoração e sentiu as batidas lentas.Talvez porque ele fosse umacriança. Talvez fosse por isso quenão dera um fim naquilo tudo. Ascrises de consciência eram mais

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fracas que a vontade de viver.Eli se levantou da poltrona.

Håkan não viria hoje à noite. Mas,antes de ir descansar, Eli tinha quepassar no Tommy. Ver se ele tinhase recuperado. Contaminado ele nãoestava. Mas, por causa de Oskar, elequeria ver se estava tudo bem comTommy.

Eli apagou todas as lâmpadas esaiu do apartamento.

Já lá embaixo, no prédio deTommy, Eli só precisou empurrar aporta do porão; muito tempo atrás,quando esteve aqui com Oskar, ele

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enfiara umas bolinhas de papel nafechadura para a porta não trancarquando batesse. Entrou no corredordo porão e a porta se fechou comum baque.

Ele parou e aguçou os ouvidos.Nada.

Nenhum som da respiração dealguém dormindo; apenas o cheiroforte de solvente e de cola.Percorreu o corredor a passosrápidos e chegou ao depósito. Puxoua porta.

Vazio.Faltavam vinte minutos para o

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amanhecer.

Durante a noite, Tommy entrara e

saíra de um torpor feito de sono,metade consciência e metadepesadelos. Não tinha ideia de quantotempo já se passara quandocomeçou a acordar de verdade. Alâmpada nua do porão não mudava.Talvez estivesse amanhecendo,podia ser de manhã, de dia. Talvez aescola já tivesse começado. Nãoestava nem aí.

Sua boca tinha gosto de cola. Ele

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olhou ao redor, recém-desperto. Emcima do seu peito havia duas notas.De mil coroas cada. Dobrou o braçopara pegá-las, sentiu que repuxava.Um esparadrapo grande estavacolado na dobra do braço, no meiodo curativo uma manchinha desangue aparecera.

Mas não foi … só isso …Ele se revirou no sofá, procurou

pelos cantos das almofadas eencontrou o canudinho que perderade noite. Mais três mil. Abriu ascédulas, juntou-as com as notas quetinha tirado de cima do peito, sentiu

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a quantidade, ouviu o farfalhardelas. Cinco mil. Tudo o que elepodia fazer com esse dinheiro.

Olhou para o esparadrapo e deuuma risada. Muito bem pago só paraficar deitado de olhos fechados.

Muito bem pago só para ficardeitado de olhos fechados .

Como é que era mesmo? Alguémtinha dito isso, alguém…

Isso. A irmã de Tobbe, como erao nome dela… Ingela? Ela ficavadando por aí e Tobbe tinha contado.Que ela recebera quinhentas coroaspara isso e o comentário de Tobbe

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tinha sido: — Muito bem pago sópara…

Ficar deitado de olhos fechados .Tommy apertou as cédulas na

mão, fez um bolo delas. Ela pagarapara beber do sangue dele. Umadoença, foi o que ela disse. Mas quedoença estranha é essa? Nuncaouvira falar nessa doença. E se agente tinha uma coisa dessas, entãoia para o hospital, então recebia…Não se descia para a porra de umporão com cinco mil e…

Zás .Será ?

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Tommy sentou-se no sofá earrancou o edredom de cima dele.

Mas essas coisas não existem.Não mesmo. Vampiros. A menina, agarota do vestido amarelo deve dealguma forma estar achando que elaé… mas alto lá. Foi aqueleassassino ritual que… aquele que apolícia está procurando…

Tommy enterrou a cabeça nasmãos, sentiu o farfalhar de notasamassadas na orelha. As coisas nãose encaixavam. De qualquer forma,ele agora morria de medo daquelamenina.

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Bem no instante em que estavaconsiderando ir para casa apesar detudo, mesmo que ainda fosse demadrugada, enfrentar o que viesse,Tommy ouviu a porta do seu prédiose abrir lá em cima. Seu coraçãoesvoaçou como um pássaroassustado e ele olhou ao redor.

A arma .A única coisa que havia era a

vassoura. A boca de Tommy selevantou num risinho que durou umsegundo.

Vassoura , boa arma contravampiros .

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Depois se lembrou, levantou-se esaiu do depósito enquanto enfiava odinheiro no bolso das calças. Deuum passo e entrou no abrigoantiaéreo ao mesmo tempo que aporta do porão se abriu. Não tevecoragem de trancar a porta, temendoque ela fosse ouvir o barulho.

Ele se agachou no escuro e tentourespirar o mais silenciosamentepossível.

A gilete brilhava no chão. Um

dos cantos estava com manchas

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marrons, como se fosse ferrugem.Eli arrancou um pedaço da capa deuma revista, embrulhou a gilete nopapel e a enfiou no bolso de trás.

Tommy não estava ali, issosignificava que estava vivo. Que elemesmo tinha saído dali, ido paracasa dormir e, mesmo que Tommytivesse tirado suas própriasconclusões, ele não sabia onde Elimorava, então…

Tudo está sob controle . Tudo …em cima .

Encostada na parede havia umavassoura de madeira, de cabo

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comprido.Eli apanhou-a e quebrou a

vassoura no joelho, lá embaixoquase junto dos pelos. A superfícieonde ela se quebrou ficou irregular,pontuda. Uma estaca fina de ummetro. Ele pôs a ponta no peito,entre duas costelas. Exatamente noponto onde aquela mulher pusera odedo.

Respirou fundo, segurou bem ocabo e experimentou a ideia.

Fure! Fure!Expirou, soltou o cabo. Segurou

de novo. Pressionou.

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Durante dois minutos, ele ficoucom a ponta a um centímetro docoração, com o cabo apertado namão, quando veio um estrondo damaçaneta e a porta do porão seabriu.

Tirou o bastão de madeira dopeito e aguçou os ouvidos. Passosincertos e lentos lá fora no corredor,como os de uma criança que acaboude aprender a andar. Uma criançamuito grande que acabou deaprender a andar.

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Tommy ouviu os passos epensou: quem é ?

Não era Staffan, nem Lasse, nemRobban. Alguém que estava doentede alguma forma, alguém quecarregava algo muito pesado…Papai Noel ! A mão tapou a bocapara abafar um risinho quando eleviu a imagem do Papai Noel em suafrente, na versão da Disney…

Hohoho! Say “mama ”!… atravessando com passos

pesados o corredor do porão com osaco enorme nas costas.

Seus lábios tremeram debaixo da

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palma da mão e ele trincou osdentes para impedir que rangessem.Ainda agachado, foi se arrastandopara a porta, meio metro de cadavez. Sentiu o canto do cômodo nascostas ao mesmo tempo que a flechade luz do vão da porta se escureceu.

O Papai Noel estava parado entrea lâmpada e o abrigo antiaéreo.Tommy apertou a outra mão emcima da que já estava na boca paranão gritar e esperou a porta se abrir.

Não há para onde correr .

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Nas frestas da porta, o corpo deHåkan se delineou em linhasquebradas. Eli estendeu ao máximoo braço com o bastão e cutucou aporta. Ela abriu dez centímetros, emseguida o corpo lá fora ficou nomeio do caminho.

A mão segurou o canto da porta ea escancarou, fazendo-a bater naparede; uma dobradiça se soltou. Aporta ficou empenada, fechou-se denovo sustentada pela únicadobradiça e bateu no ombro docorpo que agora ocupava a entrada.

O que você quer de mim?

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Manchas azul-claras aindapodiam ser vistas no camisolão quelhe cobria o corpo até os joelhos. Oresto era um mapa sujo feito deterra, barro, resquícios de algumacoisa que o nariz de Eli identificoucomo sendo sangue de animal esangue de gente. O camisolão estavarasgado em vários lugares, pelasfendas via-se a pele branca, cheia dearranhões que nunca iriamcicatrizar.

O rosto não mudara. Uma massamal sovada de carne nua com umolho vermelho jogado ali só de

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brincadeira, uma cereja maduraenfeitando um bolo podre. Mas aboca estava aberta agora.

Um buraco negro na metade debaixo do rosto. Ausência de lábiosque podiam encobrir os dentes, quepor isso estavam à mostra, umacoroa irregular branca que deixava oescuro na cavidade bucal ainda maisescuro. O buraco se ampliou,diminuiu com um movimento demastigar e dele saiu: — Eeeiiiiij.

Não dava para entender se o somsignificava “Hej”[13] ou “Eli”, jáque o “J” ou o “L” eram formados

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sem a ajuda dos lábios nem dalíngua. Eli virou o bastão na direçãodo coração de Håkan e disse: — Oi.

O que você quer?Mortos-vivos. Eli não sabia nada

sobre eles. Não sabia se o ser à suafrente era movido pelas mesmaslimitações que ele próprio tinha.Nem sequer sabia se adiantavadestruir o coração. De qualquerjeito, o fato de Håkan estar paradona porta indicava que ele precisavaser convidado.

A pupila de Håkan percorreu decima a baixo o corpo de Eli, que se

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sentiu desprotegido no vestidinhoamarelo. Queria que houvesse maispano, mais empecilhos entre seucorpo e o de Håkan. Eli aproximouainda mais o bastão do peito deHåkan.

Será que ele pode sentir algumacoisa? Será que ele pode sequer …sentir medo?

Eli experimentou um sentimentoesquecido: o medo de sentir dor. Éverdade que tudo cicatrizava, masHåkan irradiava uma ameaça tãogrande que…

— O que você quer?

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Um som cavernoso e gutural saiuquando a criatura expirou, e umagota de um líquido gosmento eamarelado escorreu do buraco duploonde estivera o nariz. Um suspiro?Em seguida, um “Ééééiii…” malsussurrado e um dos braços selevantou rapidamente, como numespasmo, movimentos de bebê

apanhou desajeitado a camisola láembaixo quase na bainha e levantoua roupa.

O pênis de Håkan estava ereto,apontando de lado, querendoatenção, e Eli olhou para aquele

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inchaço rígido onde seentrecruzavam uma rede de veiase…

Como é que ele pode … ele deveter ficado assim o tempo todo .

— Ééééiiill…Espasmos agressivos na mão de

Håkan quando ele puxou o prepúciopara cima e para baixo, para cima epara baixo e a glande aparecia esumia, aparecia e sumia como obrinquedo do boneco na caixaenquanto a criatura soltava umgemido que era de prazer ou desofrimento.

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— Éééêê…E Eli riu de alívio.Tudo isso . Só para tocar uma .Será que ele ia ficar ali, incapaz

de sair do lugar até… até…Será que ele pode gozar? Ele vai

ter que ficar ali uma … umaeternidade .

Surgiu na frente de Eli a imagemde um desses bonecos obscenos, agente gira a chave nele; um mongetrajando um hábito que subia e elecomeçava a se masturbar até a cordaacabar.

cliquetique , cliquetique .

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Eli riu, estava tão absorto com aimagem absurda que não percebeuque Håkan entrara no depósito semser convidado. Só percebeu algumacoisa quando a mão, que há poucoestava fechada em volta do prazerimpossível, se levantou no alto dasua cabeça.

Com um espasmo da velocidadede um raio, o braço desceu e opunho cerrado aterrissou no ouvidode Eli com uma força tal que podiater matado um cavalo. O socoacertou de lado e a orelha de Elivirou para dentro de um modo tão

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brutal que a pele se rasgou e metadeda orelha se soltou da cabeça, quefoi projetada para baixo e bateu nochão de cimento, produzindo umestalo abafado.

Quando Tommy entendeu que a

coisa que apareceu no corredor nãoestava a caminho do abrigoantiaéreo, teve coragem de tirar asmãos da boca. Estava encolhido nocanto ouvindo atentamente,tentando entender.

A voz da menina.

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Oi . O que você quer?Depois o riso. E em seguida a

outra voz. Nem sequer parecia ser avoz de um ser humano. Depoisbaques abafados, barulho de corposse movendo.

Agora acontecia uma espéciede… movimento lá dentro. Algumacoisa era arrastada pelo chão eTommy não ia ver o que era. Mas ossons encobriam o barulho que elemesmo podia fazer ao se levantar.Tateou às cegas junto à parede eachou a pilha de caixas de papelão.

Seu coração batia como um

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tambor de brinquedo e suas mãostremiam. Não tinha coragem deacender o isqueiro, então, para seconcentrar melhor, fechou os olhose procurou por cima da pilha decaixas.

Os dedos se fecharam em tornodaquilo que ele achou. O troféu deatirador de Staffan. Com cuidado,tirou a escultura do lugar e sentiu opeso dela na mão. Se ele segurasse afigura pelo peito, a base de pedrafuncionava como um martelo. Abriuos olhos e constatou que distinguiavagamente os contornos do atirador

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de prata.Amigo . Meu amiguinho .Com o troféu bem junto do peito,

ele se afundou novamente no cantodo cômodo, esperando que tudo issofosse finalmente acabar.

Agora manuseavam Eli.Enquanto Eli nadava para a

superfície da escuridão em que seafundara, sentia que seu corpo, adistância, numa outra parte do marera… manuseado.

Uma pressão forte nas costas, as

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pernas que eram puxadas para cima,para trás, e anéis de ferro apertadosem volta dos pulsos. Agora ospulsos com anéis de ferro seencontravam de cada lado da suacabeça e a coluna estava tãoesticada, esgarçada, que estavaprestes a quebrar.

Meu corpo vai se partir .Sua cabeça era um recipiente de

dor fulgente na hora que o corpo foidobrado com violência, atado comose fosse uma bola de pano, e Eliachou que ainda estava tendo umaalucinação da dor, pois, quando os

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olhos começaram a enxergar, eleapenas via tudo amarelo. E, atrás doamarelo, um vulto enorme, agitado.

Em seguida veio o frio. Na pelefina no meio das suas nádegas,esfregavam uma bola de gelo.Alguma coisa tentava, primeirocutucando de leve, em seguidaempurrando com força, penetrarnele. Eli arfou; o pano do vestido nafrente do seu rosto voou com osopro e ele viu.

Håkan em cima dele. O únicoolho fitava as nádegas abertas láembaixo. As mãos segurando

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apertado os pulsos de Eli. As pernastinham sido afastadas brutalmentede modo que os joelhos erampressionados no chão de cada ladodos ombros de Eli e, quando Håkanpressionou ainda mais, Eli ouviu ostendões da parte traseira das coxasse rompendo igual a cordas queforam esticadas demais.

— Nããão!Eli berrou bem na cara disforme

de Håkan, que não transparecianenhum sentimento de qualquerespécie. Um filete de baba viscosacaiu da boca da criatura, esticou e

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partiu-se caindo nos lábios de Eli, eo gosto de cadáver encheu-lhe aboca. Os braços de Eli afastados docorpo, moles como os braços deuma boneca de pano.

Alguma coisa debaixo dos dedos.Redonda. Dura.

Ele tentou pensar, fez um esforçopara criar um relógio de mergulhofeito de luz dentro da loucura negraque o puxava. E viu a si mesmodentro do relógio. Com uma estacana mão.

Isso .Eli apertou o cabo da vassoura, os

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dedos se fecharam ao redor da tábuade salvação frágil enquanto Håkancontinuava cutucando, empurrando,tentando penetrar.

A ponta . A ponta tem que estardo lado certo .

Ele virou a cabeça para o cabo eviu que a ponta estava na direção dogolpe.

Uma chance .Silêncio na cabeça de Eli quando

ele visualizou o que ia fazer. Emseguida, ele fez. Num sómovimento, tirou o cabo do chão egolpeou com o máximo de força na

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direção do rosto de Håkan.O antebraço roçou na lateral da

coxa dele e o bastão se transformounuma linha reta que… que parou aalguns centímetros do rosto deHåkan quando a mão de Eli, porcausa da posição em que ele estava,não conseguiu se mover mais àfrente.

Ele tinha falhado.Durante um segundo Eli teve

tempo de pensar que talvez pudessecomandar a morte do próprio corpo.Se ele desligasse todas…

Em seguida, Håkan deu um

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empurrão à frente ao mesmo tempoque a cabeça se lançou para baixo.Um barulho suave igual ao de umaconcha que é afundada no mingau,quando a ponta de madeira penetrouno olho dele.

Håkan não gritou. Talvez nemtivesse sentido. Talvez fosse apenasa surpresa diante do fato de nãopoder mais enxergar que fez comque ele soltasse os pulsos de Eli.Sem sentir dor na parte interna dascoxas dilaceradas, Eli virou os pés,conseguiu soltá-los e deu um chutena direção do peito de Håkan.

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Um pleft! molhado quando a solado pé bateu na pele e Håkan caiu decostas. Eli puxou as pernas parabaixo do corpo e, sentindo umaonda de dor que vinha das costas,conseguiu ficar de joelhos. Håkannão caíra, apenas tinha sido jogadopara trás e, como um bonecoelétrico do castelo do terror,endireitou-se e levantou de novo.

Os dois estavam de joelhos um nafrente do outro.

O cabo no olho de Håkan foicaindo dando tremidinhas, descendomais e mais, com a nitidez do

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ponteiro de segundos, e caiu depois,tamborilou algumas vezes no chão eficou parado. Um líquidotransparente começou a escorrer doburaco onde o cabo estivera, um riode lágrimas.

Nenhum dos dois se mexia.O líquido do olho de Håkan

pingava na coxa nua de Eli.Eli concentrou toda a sua força no

braço direito e cerrou o punho.Quando o ombro de Håkan deu umaestremecida e o corpo fez mençãode se esticar para pegar Eli de novo,para continuar de onde tinha parado,

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Eli deu um soco com a mão direitano lado esquerdo do peito de Håkan.

A costela partiu e a pele seesticou por um instante, não resistiue rompeu.

A cabeça de Håkan se curvoupara ver o que não podia ver na horaem que Eli ficou remexendo dentroda caixa torácica e encontrou ocoração. Um bolo frio, macio.Inerte.

O coração está morto . Mas eledeve …

Eli amassou o coração. O órgãosucumbiu sem oferecer resistência,

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acabou arrebentando como umaágua-viva morta.

A reação de Håkan não foi maiordo que se houvesse uma moscairritante pousada nele: levantou obraço para afastar a coisa incômodae, antes de conseguir segurar opulso de Eli, este tirou a mão compedaços do coração que saíambalançando do punho fechado.

Preciso sair daqui .Eli quis se levantar, mas as

pernas não obedeceram. Håkantateava às cegas sacudindo osbraços à frente, procurando Eli, que

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por sua vez se deitou de barriga parabaixo e foi saindo da salarastejando, os joelhos roçando nochão de cimento. Håkan virou acabeça procurando de onde vinha obarulho, abriu as mãos e acabouapanhando o vestido, conseguiurasgar a manga da roupa antes deEli alcançar a porta. Håkan ficou dejoelhos de novo.

Ficou em pé.Eli teve o tempo de alguns

segundos antes que Håkanencontrasse o caminho da porta.Tentou comandar a cicatrização das

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articulações danificadas paraconseguir ficar em pé, mas, quandoHåkan alcançou a porta, suas pernasainda não estavam fortes e Eli sóconseguiu se levantar se apoiandona parede.

As farpas das tábuas rústicasfuraram a ponta dos dedos de Eli nahora que sua mão foi se arrastandopela parede de madeira para ele nãocair. E ele sabia agora. Que, semcoração e cego, Håkan iria persegui-lo até… até…

Tenho que … acabar … tenho que… acabar com ele .

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Um risco preto.Um risco preto na vertical na

frente dos olhos. Não estava aliantes. Eli sabia o que iria fazer.

— Éééé…A mão de Håkan segurando o

batente da porta e em seguida ocorpo que saía trôpego do escritóriodo porão, as mãos tateando às cegasà frente. Eli pressionou as costas naparede, esperando o momento certo.

Håkan saiu, deu alguns passoscambaleantes e parou depois bem nafrente de Eli. Os ouvidos aguçados,o nariz farejando.

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Eli se inclinou para a frente demodo que as mãos estavam agora naaltura do ombro de Håkan.Aproveitou o apoio das costas naparede, jogou o corpo à frente e fezforça para tirar o equilíbrio deHåkan.

E conseguiu.Håkan deu um passinho ao lado e

caiu na direção da porta do abrigoantiaéreo. O vão que era um riscopreto para Eli aumentou quando aporta se abriu para dentro e Håkanentrou na escuridão abanando osbraços ao mesmo tempo que Eli

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caiu de barriga no corredor,conseguiu frear a queda apoiando asmãos no chão antes de bater o rostonele e foi se arrastando para a saída,segurando uma das rodas quetrancava a porta.

Håkan estava caído imóvel nochão quando Eli fechou a porta,girou as rodas e trancou. Emseguida foi rastejando para oescritório do porão, apanhou o cabode vassoura e enfiou-o entre asrodas para que não fosse possívelgirá-las do lado de dentro.

Continuou concentrando as

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energias do corpo no processo decicatrização e saiu rastejando doporão. Um rastro de sangue queescorreu do seu ouvido acompanhouEli, serpenteando para a saída doabrigo antiaéreo. Na altura da portado porão ele já estava tãorecuperado que conseguiu selevantar. Empurrou a porta e subiuas escadas de pernas bambas.

Dormir Dormir DormirAbriu a porta e saiu na luz da

portaria. Estava quebrado,humilhado, e o nascer do sol estavaà espreita no horizonte.

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Dormir Dormir DormirMas Eli precisava… eliminá-lo.

E só sabia de um modo quefuncionava. Fogo. Cambaleando,tentou sair do pátio e ir para o únicolugar onde sabia que encontrariafogo.

7h34, domingo de manhã,

BlackebergO alarme que detecta

arrombamentos dispara nosupermercado ica do Arvid Mörnesväg. A polícia chega ao local onzeminutos depois e encontra a vitrine

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estilhaçada. O dono da loja, quemora ao lado, encontra-se no local.Ele diz ter visto da janela de casauma pessoa muito jovem e decabelo escuro sair correndo domercado. O local é vistoriado, masse conclui que nada foi roubado.

7h36, nascer do solAs persianas do hospital eram

muito melhores, mais juntas que asda casa dela. Apenas num lugar emque as lâminas estavam danificadas,deixavam entrar um filete da luzmatinal que fez um corte cinza cor

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de poeira no teto escuro.Virginia estava estirada e imóvel

na cama, olhando para a listra cinzaque tremulou quando uma rajada devento fez a janela vibrar. Luz fraca,refletida. Só causava uma leveirritação, um cisco no olho.

Lacke fungava e respirava pesadona cama ao lado. Ficaram acordadosaté tarde, conversando. Lembranças,na maioria. Lá pelas quatro damanhã, Lacke acabou dormindo,ainda segurando a mão dela.

Ela teve de se soltar da mão deLacke quando uma enfermeira

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apareceu uma hora mais tarde paraverificar sua pressão; a enfermeiraachou o resultado satisfatório e saiudo quarto olhando para Lacke desoslaio, com um olhar realmentemeigo. Virginia ouvira Lackeinsistindo para poder ficar noquarto, as razões que alegara.Provavelmente vinha daí o olharmeigo.

Agora Virginia estava deitadacom as mãos cruzadas em cima dopeito, lutava contra o instinto docorpo de… desligar tudo. Dormirnão era lá a palavra certa. Assim

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que ela deixava de se concentrar naprópria respiração, parava derespirar. Mas precisava ficaracordada.

Esperava que uma enfermeiraentrasse antes de Lacke acordar.Isso. O melhor seria se ele pudessecontinuar dormindo até tudo passar.

Mas isso já era querer demais.

O sol alcançou Eli na altura da

arcada do pátio, um alicate em brasaque beliscou sua orelha dilacerada.Instintivamente, ele recuou para

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ficar na sombra da arcada e apertouno peito as três garrafas plásticas deálcool, como se também quisesseprotegê-las do sol.

A dez passos de distância estavao prédio dele. A vinte passos, o deOskar. E a trinta passos, o deTommy.

Não dá .Não. Se ele estivesse recuperado

e forte, provavelmente teria ousadoir para o prédio de Oskar eenfrentado a luz que sabia ficarmais forte a cada segundo quepassava. Mas não para o de Tommy.

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Agora não.Dez passos . Depois dentro da

portaria . A janela grande naescada . E se eu tropeçar . E se o sol…

Eli correu.O sol foi para cima dele como um

leão faminto, fincou os dentes emsuas costas. Eli quase perdeu oequilíbrio ao ser lançado para afrente pela força física gritante dosol. A natureza expelia suarepugnância pela transgressão dele;nem sequer por um instante Elipodia ficar na luz do sol.

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As costas de Eli crepitavam eborbulhavam como se estivessemcom óleo fervendo quando elechegou ao prédio e abriu a portacom força. A dor quase o fezdesmaiar e ele se dirigiu, como seestivesse drogado, para as escadasde olhos fechados; não ousava abriros olhos de tanto medo que tinha dederreter.

Deixou cair uma das garrafas,ouviu que ela rolou pelo chão.Melhor deixar para lá. De cabeçabaixa, um braço em volta dorestante das garrafas, o outro no

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corrimão, subiu as escadasmancando e chegou ao patamar.Ainda faltava um lance.

Pela janela, o sol o agrediu pelaúltima vez. Passou a pata em seupescoço, mordiscou, mordeu depoissuas coxas, as panturrilhas, ocalcanhar, enquanto ele subia aescada. Estava em brasa. A únicacoisa que faltava eram chamas.Abriu a porta e caiu na escuridãodoce e refrescante do lado dedentro. Fechou-a. Mas não estavaescuro.

A porta da cozinha estava aberta

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e ali não havia cobertores tapandoas janelas. Ainda assim, essa luz eramais fraca e mais cinza do queaquela à qual ele tinha se expostoagora há pouco. E, sem pensar duasvezes, Eli largou as garrafas no chãoe continuou em frente. Enquanto aluz, que em comparação com aoutra parecia uma carícia, ralavasuas costas conforme ele searrastava do corredor para obanheiro, o fedor de carne queimadachegou ao seu nariz.

Nunca vou ficar totalmentecurado .

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Estendeu o braço, abriu a porta dobanheiro e arrastou-se para dentroda escuridão compacta. Tirou docaminho uns garrafões de plástico,fechou a porta e trancou o banheiro.

Antes de deslizar para dentro dabanheira, conseguiu pensar: Nãofechei a porta da rua .

Mas então já era tarde demais. Orepouso desligou seu corpo nomesmo instante que Eli se afundouna escuridão molhada. De qualquerforma, ele não teria aguentado.

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Tommy estava parado, encolhidono canto. Ficou com a respiraçãopresa até que seu ouvido começassea zumbir e estrelas cadentescruzaram a noite à sua frente. Aoouvir a porta do porão bater denovo, teve coragem de soltar o ar edeu um suspiro longo que roloupelas paredes de cimento e morreu.

O silêncio era total. A escuridão,tão absoluta que tinha massa, peso.

Levou a mão ao rosto. Nada.Nenhuma diferença. Alisou o rostopara se certificar de que existia.Sim, ele existia. Nas pontas dos

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dedos sentiu o nariz, os lábios.Irreais. Passaram rápido sob seusdedos, desapareceram.

A figura pequena que elesegurava na outra mão parecia sermais viva, mais real que ele próprio.Segurou-a com força, não saiu deperto dela.

*

Tommy ficara sentado com acabeça curvada nos joelhos, osolhos apertados, as mãos tapando osouvidos para não saber e não ouvir o

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que estava acontecendo noescritório do porão. A julgar pelobarulho, parecia que a menininhatinha sido assassinada. Ele nãoconseguira, não tivera coragem defazer nada e por isso tentou negar asituação, procurando desaparecer.

Pensara no pai. No campo defutebol, no bosque, na piscinamunicipal Kanaan. No final, parouna lembrança daquela vez no campode Råcksta em que ele e o paitinham brincado pela primeira vezcom um aeromodelo que o paipegara emprestado de alguém no

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trabalho.A mãe permanecera com eles por

um tempo, mas acabou achandochato demais ficar olhando para oavião que dava piruetas no ar e foipara casa. Ele e o pai ficaram atéescurecer e o avião virar apenasuma silhueta no céu rosado. Depoisforam para casa, de mãos dadas pelobosque.

Foi nesse dia que Tommy seconcentrou, afastando-se dos gritose da loucura que aconteciam aalguns metros dele. O que existiaera só o zumbido nervoso do avião,

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o calor da mão grande do pai emsuas costas enquanto ele manobravafreneticamente o avião que faziacírculos amplos no alto do campo,do cemitério.

Até então Tommy nunca estiveradentro do cemitério, imaginaragente andando sem rumo de lá paracá no meio dos túmulos, chorandoaquelas lágrimas grandes ebrilhantes de revista em quadrinhosque gotejavam nas lápides fazendobarulho. Isso foi naquela época.Depois o pai morreu e Tommy ficousabendo que o luto de cemitério

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raramente, muito raramente tinhaessa cara.

As mãos taparam com mais forçaos ouvidos, para afastar essespensamentos. Pense no passeio nobosque, pense no cheiro da gasolinaespecial do avião na garrafinha,pense…

Foi só quando ele, apesar daproteção do ouvido, ouviu um trincoser girado de novo é que tirou asmãos e olhou ao redor. Inutilmente,já que o abrigo antiaéreo naqueleinstante estava mais negro que oespaço debaixo das suas pálpebras.

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Começou a prender a respiraçãoquando a outra trinca caiu no lugar econtinuou assim enquanto sei-lá-o-que-era-aquilo ainda estava noporão.

Em seguida, a porta do porãobateu ao longe, as paredesestremeceram e ei-lo aqui. Vivo.

A coisa não me pegou .Exatamente que “coisa” era essa,

ele não sabia, mas,independentemente do que fosse, acoisa não descobrira Tommy.

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Ele se levantou da posiçãoencolhida em que se encontrava.Sentiu um forte formigamento nosmúsculos adormecidos das pernasquando foi tateando às cegas, aolongo da parede, em direção à porta.Com as mãos suadas de medo e umapressão no ouvido, quase deixa aestatueta cair.

A mão que estava livre achou aroda de trancar a porta, e elecomeçou a girá-la.

A roda andou uns dez centímetrose depois parou.

O que é isso …

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Ele usou de mais força, mas aroda não saiu do lugar. Tommylargou a estatueta para poder girarcom as duas mãos e o troféu caiu nochão fazendo um bum .

Tommy parou.Mas que barulho estranho …

Como se fosse uma coisa … macia .Ele se agachou junto da porta e

tentou girar a roda de baixo. Amesma coisa aqui. Uns dezcentímetros e depois nada. Tommysentou-se no chão. Tentou pensar demodo racional.

Merda , será que eu vou ficar

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aqui dentro …É, mais ou menos isso.Mas, ainda assim, ele foi

surgindo de mansinho… aquelepavor que Tommy tivera durantealguns meses depois da morte dopai. Fazia muito tempo que nãosentia esse medo, mas agora,trancado naquela escuridãoabsoluta, ele apareceu de novo. Oamor pelo pai que, devido à morte,se transformara em medo dele. Docorpo do pai.

Um nó começou a se formar emsua garganta, os dedos da mão

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ficaram rijos.Agora pense . Pense!Havia velas de estearina numa

prateleira da despensa do outrolado. O problema era conseguirchegar lá com essa escuridão.

Idiota!Deu um tapa tão forte na testa

que produziu um estalo. Riu. Masele tinha um isqueiro! E ainda porcima: de que ia adiantar procurarvelas se não havia nada paraacendê-las?

É como aquele cara que tinhacentenas de latas de conserva mas

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nenhum abridor. Acabou morrendode fome no meio da comida .

Enquanto ele vasculhou o bolso àprocura do isqueiro, pensou que asituação não era tão ruim assim.Mais cedo ou mais tarde, alguém iaaparecer no porão: se não fosse amãe, seria outra pessoa, era só eleconseguir luz que estava resolvido.

Tirou o isqueiro do bolso e oacendeu.

Os olhos agora adaptados àescuridão ficaram cegos por umsegundo com a chama, mas, ao seacostumarem com a luz, viram que

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Tommy não estava sozinho.Estirado no chão, bem junto dos

seus pés, estava…… o pai …O pai de Tommy tinha sido

cremado, mas ele não se lembroudisso quando viu o rosto do cadáverà luz bruxuleante do isqueiro. E esserosto correspondia às suasexpectativas de como as pessoasdeviam ficar depois de permanecervários anos debaixo da terra.

… pai …Ele berrou bem em cima do

isqueiro, de modo que a chama se

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apagou, mas, um segundo antes dese apagar, Tommy viu que a cabeçado pai deu uma tremida e…

… ele está vivo …O seu intestino se esvaziou nas

calças com uma explosão molhadaque respingou quente por todo otraseiro. Em seguida suas pernas sedobraram, o esqueleto se dissolveue ele caiu que nem um saco debatatas, soltando o isqueiro, quequicou no chão. Sua mão acabouparando em cima dos dedos do pédo cadáver. As unhas afiadasarranharam a palma da sua mão e

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enquanto ele berrava —Mas pai!Você não cortou as unhas?

— começou a acariciar, a dartapinhas no pé gelado como se o péfosse um filhote de cachorro comfrio que precisasse de consolo.Acariciou a canela, a coxa, sentiu osmúsculos se contraírem sob a pele,se mexerem enquanto ele gritavacom a voz entrecortada, uivava quenem um corço.

As pontas dos dedos bateram nummetal. A estatueta. Estava no meiodas coxas do cadáver. Ele segurou opeito da escultura, parou de gritar e

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pensou por um instante em algoconcreto.

Um martelo .No silêncio que se fez depois do

grito, Tommy ouviu o barulho dealgo pegajoso e molhado quando ocadáver levantou a parte de cima docorpo e um membro frio roçou nodorso da mão de Tommy. Eleafastou a mão e apertou a estatueta.

Não é meu pai .Não. Tommy foi deslizando para

trás no chão, afastando-se docadáver com as fezes lambuzandoseu traseiro, e achou por um

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instante poder enxergar no escuroquando a audição se transformouem visão e ele viu o cadáver selevantar na escuridão, um contornoamarelado, uma constelação.

Enquanto ele sapateava indo paratrás em direção à parede, bateu ocorpo no outro lado e emitiu umbreve — … óó…

E Tommy viu…Um elefantinho , um elefantinho

desenhado e lá vem (buuuu) oelefante grande e então … levantemas trombas e apitem “A ”, depoisaparecem Magnus , Brasse e Eva

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cantando “Ali! É lá! Lá onde não se…[14]

Não , como é que é …O cadáver devia ter esbarrado na

pilha de caixas de papelão, pois foiuma barulheira de equipamentos desom caindo no chão na hora queTommy recuou tanto que acaboubatendo a nuca na parede e suacabeça se encheu de ruído branco.Em meio a esse barulho, ouviu osom de pés duros e descalços que sedescolavam do chão, andando àprocura de algo.

Aqui. É lá. Lá onde não se está.

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Não. É sim.Isso mesmo. Ele não estava aqui.

Ele não via a si mesmo, não via acriatura que produzia aquelebarulho. Então era só um barulho .Apenas algo que ele estava ouvindoenquanto fitava a tela preta do alto-falante. Algo que não existia.

Aqui . É lá. Lá onde não se está.Tommy estava quase cantando

alto, mas um restinho de bom sensolhe disse que não devia fazer isso. Oruído branco estava acabando,deixou um espaço vazio onde elecomeçou com dificuldade a fazer

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uma pilha de pensamentos.A cara . A cara .Ele não queria pensar no rosto,

não queria pensar no…Era alguma coisa com a cara que

apareceu com a luz do isqueiro.O corpo chegou mais perto. Não

eram só os passos se aproximandoque Tommy ouvia, agora eratambém o chiado pelo chão. Não,ele podia sentir a presença do outrocomo se fosse uma sombra maisescura que a própria escuridão.

Tommy mordeu tanto o lábioinferior que sentiu o gosto de

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sangue. Fechou os olhos. Viu ospróprios olhos desaparecerem dacena como se fossem dois…

Olhos .A criatura não tem olhos .Um ventinho frio no rosto dele

quando uma mão cortou o ar.Cega . A criatura é cega .Ele não tinha certeza, mas a

massa acima dos ombros da criaturanão tinha olhos.

Quando a mão se levantounovamente, Tommy sentiu a caríciade ar comprimido em seu rosto umcentésimo de segundo antes de a

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mão atingi-lo, e conseguiu desviar acabeça de modo que a mão apenasalisou seu cabelo. Ele completou omovimento e se jogou no chão debarriga para baixo, pôs-se a rastejaragitando as mãos para a frente,nadando no seco.

O isqueiro , o isqueiro …Alguma coisa encostou em sua

bochecha. Uma ânsia de vômitosubiu-lhe do estômago quandoentendeu que era a unha do pé dacriatura, mas Tommy rolou no chãopara não ter que ficar no mesmolugar quando as mãos vieram lhe

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procurar.Aqui . É ali . Ali onde não se está

.Ele bufou e foi quase uma

golfada. Tentou evitar, mas não deu.A saliva jorrou da sua boca. E dagarganta cansada de tanto berrarvieram soluços de riso ou de choro,enquanto as mãos, dois radares,continuavam varrendo o chão à caçada única vantagem que ele talvezpudesse ter sobre a escuridão quequeria levá-lo.

Deus , me ajude . Que a luz dasua face … Deus … me perdoe por

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aquilo lá na igreja , me perdoe por… tudo . Eu sempre vou ter fé emvocê , do jeito que você quiser , é sóvocê … me ajudar a achar oisqueiro … por favor , Deus , fiquedo meu lado .

Alguma coisa aconteceu.No mesmo instante que Tommy

sentiu a mão da criatura tateando àscegas em cima do seu pé, o cômodose encheu por um milésimo desegundo de uma luz branco-azulada,como fosse um flash de máquinafotográfica, e Tommy viu nessemilésimo de segundo as caixas de

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papelão caídas no chão, a estruturairregular das paredes, a passagempara dentro dos depósitos.

E viu o isqueiro.Apenas a um metro da sua mão

direita estava o isqueiro e, quando aescuridão o envolveu de novo, aposição do objeto já estava gravadaem sua retina. Tommy soltou o pédas mãos da criatura, estendeu obraço e apanhou o isqueiro, fechou amão em torno dele e se levantourapidamente.

Sem refletir se pedia muito,começou a fazer uma nova oração

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silenciosamente.Deus , faça com que ele seja cego

. Faça com que ele seja cego . Deus

. Faça …Ele acendeu o isqueiro. Um flash,

semelhante ao que houvera umpouco antes. Em seguida a chamaamarela com o núcleo azul.

A criatura estava parada, masvirou a cabeça na direção da luz.Começou a ir na direção dela. Achama tremulou quando Tommydeu dois passos deslizando ao lado echegou à porta. O ser parou ondeTommy estivera três segundos atrás.

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Se ele pudesse se sentir feliz,então teria ficado. Mas, à luz fracado isqueiro, aquilo tudo ficouimpiedosamente real . Não davamais para fugir inventando que elenão estava aqui, fingindo que issonão estava lhe acontecendo.

Ele estava fechado num cômodocom isolamento acústico juntodaquilo de que ele mais tinha medo.Alguma coisa se mexeu em suabarriga, mas ele não tinha mais nadaque expelir. Só saiu um punzinho denada e a criatura virou novamente acabeça em sua direção.

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Tommy forçou tanto a roda daporta com a mão livre que a outra, aque segurava o isqueiro, acaboutremendo e a luz se apagou. A rodanão se mexeu, mas Tommyconseguiu ver de soslaio que acriatura vinha em sua direção e saiude perto da porta, jogando-se para aparede onde estava acocorado antes.

Ele choramingava, soluçava.Deus, dê um fim nisso tudo. Dê

um fim nisso tudo.De novo o elefante grande que

levantava o chapéu e dizia com suavoz anasalada: Agora acaboouuu!

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Toque a trombeta, tromba, boouuu!Agora acabou!

Estou ficando maluco, eu … é …Ele sacudiu com força a cabeça e

acendeu o isqueiro de novo. Ali nochão, à sua frente, estava aestatueta. Ele se abaixou, apanhou otroféu e deu uns passos saltitantesde lado. Continuou indo para aparede do outro lado. Ficou vendo acriatura tateando às cegas no lugarque ele acabara de deixar.

Cabra-cega .O isqueiro em uma das mãos, a

estatueta na outra. Tommy abriu a

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boca, mas emitiu apenas umsussurro silvante: — Pode vir…

A criatura prestou atenção, virou-se e foi em sua direção.

Tommy levantou o troféu deStaffan como se fosse um martelo e,quando a criatura estava a meiometro dele, bramiu o martelo norosto do ser.

Igual a uma cobrança de pênaltiperfeita, quando se sente no instanteem que o pé bate na bola que ochute… que o chute foi certeiro, domesmo modo sentiu Tommy quandona metade do caminho ele…

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Isso!… e, quando o canto pontudo da

pedra bateu na têmpora da criaturacom uma força tal que se reproduziuirradiando pelo braço de Tommy, otriunfo já tinha tomado conta dele.Foi só uma confirmação do que elejá sabia quando a cabeça seespatifou emitindo um estalo degelo se partindo, um líquido friorespingou no rosto de Tommy e acriatura desmoronou.

Tommy ficou no mesmo lugar,ofegante. Olhava para o corpoestirado no chão.

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Ele tem ereção .Isso mesmo. Igual a uma lápide

funerária minúscula e meio caída, opau da criatura apontava do corpo eTommy continuou ali, olhando,esperando que ele fosse amolecer.Mas não. Tommy quis rir, mas agarganta doía muito.

Seu polegar doía e latejava.Tommy olhou para baixo. Oisqueiro estava começando aqueimar a pele do polegar queapertava o botão do gás.Instintivamente, soltou o polegar.Mas o dedo não se mexeu. O

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polegar ficara travado com cãibraem cima do botão.

Virou o isqueiro para o outrolado. De qualquer jeito, não queriaapagar o isqueiro. Não queria ficarno escuro com aquele…

Um movimento.E Tommy sentiu que algo

essencial, algo de que ele precisavapara ser Tommy, o abandonouquando a criatura levantou de novoa cabeça e começou a levantar ocorpo.

Um elefante se equilibrava numteiazinha de araaaa-nha!

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A teia partiu. O elefante caiu.E Tommy bateu de novo. Bateu

mais uma vez.Depois de um tempo, começou a

achar que aquilo era bem divertido.

Segunda-feira, 9 denovembro

Morgan passou pelo fiscal dometrô, acenou com um bilhete quejá tinha expirado seis meses atrás,enquanto Larry parou, cumpridor do

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seu dever, mostrou o cupomamassado e disse: “Ängbyplan”.

O fiscal levantou os olhos dolivro que estava lendo e carimbouos dois bilhetes. Morgan riu quandoLarry se juntou a ele e os doiscomeçaram a descer a escada.

— Mas por que diabos você fazisso, hein?

— Isso o quê? Mandar carimbar?— É. Eles vão te pegar de

qualquer jeito.— Não é isso.— Então o que é?— Eu não sou que nem você,

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o.k.?— Sai dessa… o fiscal estava ali

sentado lendo… você podia teracenado com a foto do rei que elenão ia reagir.

— O.k., tudo bem. Não precisafalar tão alto.

— Você acha que ele vai vir atrásda gente, hein?

Antes de abrirem as portas para aplataforma, Morgan fez um funilcom as mãos em volta da boca eexclamou para o hall da estação láem cima: Atenção! Atenção!Caloteiro à vista!

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Larry saiu de mansinho e deualguns passos, indo para aplataforma. Quando Morganalcançou o colega, ele disse: —Você é muito infantil, sabia?

— Claro. Pode ir contando. O quefoi mesmo que aconteceu?

Larry já tinha telefonado paraMorgan de madrugada e fornecidoum relato resumido do que Göstalhe contara dez minutos antes portelefone. Eles tinham combinadoque se encontrariam no metrô demanhã bem cedo para ir ao hospital.

Agora ele contava tudo mais uma

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vez. Virginia, Lacke, Gösta. Osgatos. Lacke acompanhando naambulância. Enfeitou um pouco ahistória com detalhes que elemesmo inserira e, antes de acabar, ometrô para o centro da cidade játinha chegado. Eles entraram,conseguiram um lugar isolado eLarry terminou a história com: —… e então levaram os dois naambulância com a sirene apitando.

Morgan balançou a cabeça,mordendo a unha do polegar, olhavalá fora da janela enquanto o trem foideslizando do túnel e parou na praça

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Island.— E por que isso aconteceu?— Isso com os gatos? Sei lá.

Devem ter ficado malucos.— Todos eles? De uma vez só?— É. Você tem um palpite

melhor?— Não. Gatos de uma figa. Lacke

deve estar arrasado agora.— Ahã. Ele já não estava muito

bem. Tampouco da última vez.— É. — Morgan fez um muxoxo.

— Dá muita pena de Lacke, deverdade. A gente devia… bem, seilá. Fazer alguma coisa.

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— E de Virginia?— O.k., tudo bem. Mas ficar

machucado. Doente. A pessoa temque se conformar, certo? A genteestá de cama e pronto. O maisdifícil é ficar ao lado da pessoa e…é… sei lá, mas ele estava bem…naquela última vez, quando ele… oque foi que ele ficou resmungandomesmo? Sobre lobisomens?

— Vampiros.— É. Isso já é um sinal de que ele

não está muito bem, certo?O metrô parou em Ängbyplan.

Quando as portas se fecharam,

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Morgan disse: — É isso aí. Agoraestamos no mesmo barco.

— Acho que eles não são tãoduros se a gente já deixou carimbarduas vezes.

— É o que você acha . Mas vocênão sabe.

— Você viu os números? DoPartido Comunista?

— Vi sim. A coisa vai se ajeitaraté as eleições. Um monte desociais-democratas enrustidos, é sóeles segurarem a cédula que votamde acordo com o coração.

— É o que você acha.

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— Não. Eu sei. No dia que oscomunistas saírem do parlamentovou passar a acreditar em vampiro.Mas uma coisa é certa: osmoderados sempre vão existir.Bohman e a turma dele, você sabe.Esses são sanguessugas deverdade…

Morgan disparou com um dosseus monólogos. Larry parou deescutar na altura de Åkeshov. Dolado de fora da estufa, havia umpolicial sozinho olhando para ometrô. Larry sentiu uma pontada depreocupação quando pensou no

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cupom sem carimbo suficiente, masafugentou o pensamento quandolembrou por que o policial estavaali.

Mas o policial parecia sóentediado. Larry relaxou, e algumaspalavras da ladainha de Morganmartelavam em sua consciênciaenquanto o metrô continuouribombando para o Sabbatsberg.

Quinze para as oito, e nenhuma

enfermeira ainda.A listra cor de poeira no teto

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tinha ficado cinza-clara e aspersianas deixavam entrar luzsuficiente para Virginia se sentircomo se estivesse num solário. Ocorpo esquentava, latejava, mas erasó isso. Ficaria nisso.

Lacke estava chiando na cama aolado, a boca se mexia mastigandono sono. Ela estava pronta. Sepudesse apertar um botão para fazeruma enfermeira entrar, teriaapertado. Mas suas mãos estavampresas e ela não podia.

Então ficou esperando. O calor napele era incômodo, mas não

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insuportável. O pior era o esforçoconstante para se manter acordada.Era só ter um segundo de distraçãoque a respiração parava, os cômodosna cabeça começavam a se apagar auma velocidade assustadora e elatinha de arregalar os olhos e sacudira cabeça para acendê-los de novo.

Por outro lado, esse estado dealerta constante era uma bênção;impedia Virginia de pensar. Todaenergia mental era usada paramantê-la acordada. Não haviaespaço para dúvida,arrependimento, alternativas.

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Às oito em ponto veio aenfermeira.

Quando ela abriu a boca paradizer “Bom dia!” ou aquilo que asenfermeiras costumam dizer demanhã, Virginia fez: — Shhhh!

A boca da enfermeira fechou comum clique surpreso e ela franziu assobrancelhas quando foi napenumbra para a cama de Virginia,debruçou-se sobre ela e disse: —Certo… e como é…

— Shhh! — Virginia chiou. —Desculpe, mas é que eu não queroacordá-lo. — Ela fez um

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movimento com a cabeça na direçãode Lacke.

A enfermeira assentiu e dissemais baixo: — Está bem. Mas eupreciso verificar sua temperatura ecoletar uma amostra de sangue.

— O.k., tudo bem. Mas será quevocê poderia… tirá-lo daquiprimeiro?

— Tirar… você quer que eu oacorde?

— Não. Mas se você pudesse…tirá-lo daqui enquanto ele estádormindo.

A enfermeira olhou para Lacke

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como se fosse para decidir se issoque Virginia estava pedindo era poracaso fisicamente possível, sorriuem seguida, sacudiu a cabeça edisse: — Está bem. Vou tirar atemperatura pela boca, então vocênão vai precisar se sentir…

— Não é isso. Será que nãodaria… para você fazer isso queestou pedindo?

A enfermeira consultourapidamente o relógio.

— Você me desculpe, mas é queeu tenho outros pacientes que…

Virginia silvou, o mais alto que

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pôde: — Por favor!A enfermeira deu meio passo

atrás. Pelo visto, ela estava beminformada sobre o que aconteceracom Virginia de noite. Seus olhospassearam pelas tiras queamarravam os braços de Virginia.Pareceu se acalmar com o que tinhavisto e se aproximou da cama denovo. Agora ela falou com Virginiacomo se falasse com alguém quetinha o juízo comprometido: — Éque… para eu… para poder ajudarvocê a ficar boa de novo,precisamos de um pouco…

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Virginia cerrou os olhos,suspirou, desistiu. Enquanto isso,chutou o lençol e ficou deitada como corpo exposto. Prendeu arespiração. Fechou os olhos.

Tinha acabado. Agora ela queriaser desligada. As mesmas funçõescontra as quais lutara a manhãinteira, Virginia tentou liberá-lasagora conscientemente. Não dava.Em vez disso, veio aquilo que aspessoas costumam contar; a vidapassava por ela como se fosse umfilme rebobinando em altavelocidade: O passarinho que eu

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tinha numa caixa de papelão … ocheiro de lençol recém-engomadona lavanderia … a mãe que seinclina sobre os farelos de pão decanela … o pai … a fumaça docachimbo dele … Per … a casa nocampo … Lena e eu , o cogumelochanterelle grande que a genteachou naquele verão … Ted compurê de mirtilo na bochecha …Lacke , as costas dele … Lacke …

Um chiado metálico na hora queas persianas foram levantadas e elafoi sugada num mar de fogo.

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Como de costume, Oskar foi

acordado pela mãe por volta dassete e dez. Como de costume, ele selevantou e tomou café da manhã.Vestiu-se e deu um abraço na mãe,despedindo-se dela por volta dassete e meia, como de costume.

Ele se sentia como de costume.Cheio de aflição e de maus

pressentimentos, claro. Mas issotambém não era algo fora docomum para ele no primeiro dia deescola depois de um final desemana.

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Oskar enfiou o livro de geografia,o atlas e a folha mimeografada quenão fizera na mochila, e ficoupronto às 7h35. Só precisava irdaqui a quinze minutos. E se elefizesse aquele exercício agora? Não.Não aguentava.

Sentou-se à escrivaninha e ficouolhando para a parede.

Será que isso significava que elenão estava contaminado? Ou haviaum tempo de incubação? Não. Comaquele coroa… só levara umashoras para ele.

Eu não estou contaminado .

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Ele devia ficar feliz, aliviado.Mas não estava. O telefone tocou.

Eli! Aconteceu alguma coisa com…

Levantou-se de supetão da mesa,foi para o corredor e arrancou otelefone do gancho.

— AquiquemfalaéOskar!— Oi… Então é você…O pai. Era só o pai.— Oi.— Bem, então você… está em

casa.— Estou de saída para a escola.— Claro, então não vou… sua

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mãe está em casa?— Não, ela já foi para o trabalho.— É, eu já imaginava.Oskar entendeu. Foi por isso que

ele ligou nesse horário estranho;porque ele sabia que a mãe nãoestava em casa. O pai deu umatossidinha.

— Bem, eu estava pensando…sobre aquilo que aconteceu nosábado. As coisas deram umpouco… errado.

— É.— É. Você contou para sua

mãe… o que aconteceu?

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— O que você acha?O pai ficou mudo no outro lado

da linha. O chiado estático de cemquilômetros de fiação de telefone.As gralhas sentadas nela, tremendode frio, enquanto a conversa dosseres humanos passava rapidamentesob seus pés. O pai deu umatossidinha de novo.

— Aliás, eu fui perguntar sobreaquilo dos patins de gelo e sinalverde. Você pode ficar com eles.

— Preciso ir agora.— É claro. Então tenha… um

bom dia na escola.

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— O.k. Tchau.Oskar pôs o fone no gancho,

apanhou a mochila e saiu a caminhoda escola.

Ele não sentia nada.

Faltavam cinco minutos para a

aula começar e alguns alunospermaneciam no corredor, fora dasala de aula. Oskar hesitou por uminstante, depois jogou sua mochilano ombro e caminhou em direção àporta. Todos os olhares se voltarampara ele.

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Corredor polônes. Surra debando.

Sim, ele temia o pior.Naturalmente todos sabiam o quetinha acontecido com Jonny naquinta e, embora Oskar não tivesseencontrado o rosto de Jonny nomeio dos que estavam ali reunidos,sabia que foi a versão de Micke queeles tinham ouvido na sexta-feira.Micke estava ali, com aquelesorriso idiota de sempre.

Em vez de arrastar o passo e ficarpronto para fugir, ele estendeu opasso e foi rapidamente ao encontro

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da turma. Estava vazio por dentro.Não ligava mais para o queocorrera. Não tinha importância.

E claro: o milagre aconteceu. Omar se abriu.

O grupo do lado de fora da sala sedissolveu e abriu uma passagempara Oskar que ia até a porta. Naverdade, ele não tinha esperadooutra coisa. Se isso se devia a umaforça que ele irradiava ou a ele serum pária fedorento que eles deviamevitar, Oskar não estava nem aí.

Ele era outra pessoa agora. Elessentiram isso, e se afastaram.

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Oskar entrou na sala sem olharpara os lados e sentou-se em suacarteira. Ouviu o burburinho quevinha do corredor e depois dealguns minutos os outros entraram.Johan levantou o polegar ao passarpela carteira de Oskar. Oskar deu deombros.

Em seguida veio a professora e,cinco minutos depois de a aula tercomeçado, veio Jonny. Oskarpensara que ele teria algum tipo decurativo tapando a orelha, mas nãohavia nada. No entanto, a orelhaestava vermelho-escura, inchada, e

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parecia não fazer parte do corpo.Jonny sentou-se no lugar dele.

Não olhou para Oskar nem paraninguém.

Ele está com vergonha .É, era isso. Oskar virou a cabeça

para olhar Jonny, que apanhou umálbum de fotografias da mochila e oenfiou dentro da carteira. E viu queas bochechas de Jonny tinhamficado bem vermelhas, combinandocom a orelha. Oskar pensou emmostrar-lhe a língua, mas nãomostrou.

Seria criancice demais.

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Tommy só entrava na escola às

nove nas segundas-feiras, então àsoito horas Staffan se levantou ebebeu rapidamente uma xícara decafé antes de descer para levar umpapo sério com o garoto.

Yvonne já tinha ido para otrabalho; quanto a Staffan, teria quese apresentar às nove em Judarnpara prosseguir em ritmo lento coma busca no bosque, que eleimaginava que não ia dar em nada.

Bem, até que era agradáveltrabalhar ao ar livre, e parecia que

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ia fazer tempo bom hoje. Ele lavoua xícara de café debaixo da torneira,refletiu um instante, depois foivestir o uniforme. Tinha pensadoem descer para falar com Tommytrajando roupa do dia a dia,conversar com ele como uma pessoacomum. Mas, em princípio, aquiloera um assunto de caráter policial,vandalismo e, além do mais, ouniforme era uma capa deautoridade que ele não achava quefizesse falta em seu dia a dia, mas…sim.

Além disso, era prático já estar

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vestido, já que ele iria para otrabalho depois. Então Staffanvestiu a farda e o casaco, verificouno espelho a impressão que fazia eficou satisfeito. Depois apanhou achave do porão que Yvonne deixaraem cima da mesa da cozinha, saiu,fechou a porta, olhou de relancepara a fechadura (cacoete deprofissão), desceu pela escada eabriu a porta do porão.

E por falar em cacoete deprofissão…

A q u i havia alguma coisa deerrado com a fechadura. Nenhuma

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resistência quando ele girou achave, era só abrir a porta. Ele seagachou e examinou a estrutura dafechadura.

Isso. Bolinhas de papel.Um truque clássico entre ladrões

que arrombam casas; usar dealguma desculpa para visitar o localque se quer invadir mais tarde,manipular a fechadura e depoisesperar que o proprietário nãoperceba nada quando o ladrão deixao local.

Staffan abriu a sovela da navalhae cutucou para tirar o papel.

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Tommy , é claro .Não passou pela cabeça de

Staffan se perguntar o porquê deTommy bloquear a fechadura deuma porta cuja chave ele mesmotinha. Tommy era um ladrão quefrequentava aquele lugar e esse eraum truque usado por ladrões. Ouseja: só podia ser Tommy.

Yvonne explicara a ele onde odepósito de Tommy ficava e,enquanto Staffan ia naquela direção,elaborava na cabeça o discurso queia fazer. Ele tinha pensado usar deum tom amigável, ir com calma,

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mas isso agora com a fechadura odeixou com raiva de novo.

Ele ia explicar para Tommy —explicar, não ameaçar — sobre acasa de detenção de menores, asautoridades do serviço social, aidade passível de pena e assim pordiante. Assim ele entenderia por quecaminho estava enveredando.

A porta do depósito do porãoestava aberta. Staffan olhou ládentro. Certo. A raposa tinha saídoda toca . Depois viu as manchas.Ele se agachou e passou o dedonuma delas.

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Sangue .O cobertor de Tommy estava em

cima do sofá, e tinha até umasmanchas de sangue. E o chão estava— foi só agora que ele viu, já que oolhar estava antenado nisso —coberto de sangue.

Horrorizado, foi saindo de costasdo depósito.

Diante dele, havia agora… a cenade um crime. Em vez do discursoque ele ia fazer, o manual detratamento de cenas de crimecomeçou a ser folheado em suacabeça. Sabia o livro de cor e

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salteado, mas, enquanto fazia umxis nos parágrafos…

Coletar material que seja o tipode material que pode desaparecer… anotar a hora … evitarcontaminar lugares onde possamexistir vestígios de fibras .

… ele ouviu um murmúrio fracoàs suas costas. Um murmúriointercalado por batidas abafadas.

Um cabo estava atravessado nasrodas que trancavam a porta doabrigo antiaéreo. Foi para junto daporta e ficou ouvindo. Sim. Omurmúrio, as batidas vinham de lá

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de dentro. Quase pareciam… umamissa. Uma ladainha cujas palavrasele não conseguia entender.

Adoradores do diabo …Pensamento bobo, mas, ao olhar

para o bastão atravessado na porta,ficou com medo de verdade, porcausa do que viu na ponta dele.Fiapos vermelho-escuros eencaroçados que se espalhavam poruns dez centímentos até a ponta dopróprio bastão. Era desse jeito,assim mesmo que ficava a lâminade faca quando era usada em atos deviolência e quando já secara um

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pouco.O murmúrio do outro lado da

porta continuava.Pedir reforço?Não. Talvez estivesse ocorrendo

um ato criminoso que seriafinalizado lá dentro enquanto ele iacorrendo telefonar. Tinha queenfrentar sozinho.

Ele desabotoou o coldre dorevólver para ter a pistolafacilmente à mão e sacou ocassetete. Com a outra mão, puxouum lenço do bolso, ajeitou-ocuidadosamente em cima da ponta

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do bastão e começou a tirá-lo daroda da porta enquanto prestavaatenção se o roçar na porta causavaalguma mudança na atividade ládentro do cômodo.

Não. A ladainha e os baquescontinuavam.

O bastão tinha saído. Ele deixou ocabo encostado na parede para nãoestragar os vestígios de mão ou deimpressões digitais.

Ele sabia que um lenço nãogarantia que as impressões digitaisfossem conservadas, então, em vezde segurar as rodas da porta, pôs

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dois dedos num dos raios e girou.A tranca deslizou. Staffan passou

a língua nos lábios. Sua gargantaestava seca. A outra roda girou atéparar e a porta abriu um centímetro.

Agora ele ouvia as palavras. Erauma música. A voz, um sussurroentrecortado que apitava:

Duzentos e setenta e quatroelefantes se equilibrando

Numa teiazinha de araaaa-(Pow.)-nha !Eles acharam tão interessanteQue buscaram outro elefante !

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Duzentos e setenta e quatroelefantes se equilibrando

Numa teiazinha de araaaa-(Pow.)-nha !Eles acharam tão interessante …

Staffan deixou o cassetete

perpendicular ao corpo e empurroua porta com ele.

Ele viu.A massa por trás da qual Tommy

estava de joelhos seria dificilmentereconhecida como o corpo de um

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ser humano se não fosse pelo braçoque apontava dele, com a metadependendo do corpo. O peito, abarriga, o rosto eram apenas ummonte de carne, vísceras e ossosestraçalhados.

Com ambas as mãos, Tommysegurava uma pedra quadrada queusava, num certo trecho da música,para golpear os restos dacarnificina, que não ofereciamresistência a não ser pelo fato de apedra atravessá-los e bater no chãofazendo barulho antes de serlevantada de novo e mais um

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elefante subir na teia.Staffan não tinha certeza de que

era Tommy. A pessoa que seguravaa pedra estava tão coberta de sanguee de pedaços de carne que eradifícil… O estômago de Staffanrevirou. Ele engoliu um arrotoazedo que ameaçava crescer, olhoupara baixo para não precisar ver e osolhos pararam num soldado dechumbo caído na soleira da porta.Não. Era um atirador. Elereconheceu o objeto. A figura estavacaída de um jeito que deixava orevólver apontando para o teto.

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Onde está a base?Depois ele entendeu.A cabeça deu voltas e,

esquecendo tudo aquilo sobreimpressões digitais e preservação deevidências, apoiou a mão no batenteda porta para não cair enquanto amúsica continuava repetitiva:

Duzentos e setenta e seteelefantes se equilibravam

Numa teiazinha …

Ele não devia estar nada bem,

pois começou a ter alucinações.

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Achou que via… isso… que vianitidamente os restos do ser humanono chão… se mexer no intervaloentre cada pancada.

Tentou se levantar.

Morgan era um fumante

compulsivo; quando apagou ocigarro no canteiro do lado de forado hospital, Larry só tinha fumado ametade do cigarro dele. Morganenfiou as mãos nos bolsos, andoupara lá e para cá no estacionamento,e praguejou quando uma poça de

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água suja entrou pelo buraco da solado sapato, molhando sua meia.

— Larry, você tem algumagrana?

— Você sabe que eu vivo daminha aposentadoria por invalideze…

— Tudo bem, eu sei. Mas vocêtem alguma grana?

— Por quê? Eu não emprestose…

— Não é isso. Só estava pensandoem Lacke. Se a gente o convidassepara um daqueles… você sabe.

Larry tossiu e lançou um olhar

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acusador para o cigarro.— E daí… para ele se sentir

melhor?— É.— Não… sei não.— Como assim? Porque você

acha que ele não vai se sentirmelhor com isso, porque você nãotem grana ou porque você é um mãode vaca que não quer gastar?

Larry fez um muxoxo, deu maisuma tragada tossindo ao mesmotempo, fez uma careta e apagou ocigarro, pisando nele. Apanhoudepois a guimba e a enfiou num

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vaso de plantas cheio de areia.Olhou para o relógio. — Morgan…são oito e meia da manhã.

— O.k., tudo bem. Mas daqui aalgumas horas. Quando abrir.

— Não sei. A gente vê issodepois.

— Então você tem grana?— Vamos entrar, vamos?Eles atravessaram a porta

giratória. Morgan passou a mão noscabelos e foi até a mulher narecepção para se informar ondeVirginia estava, enquanto Larryficou estudando alguns peixes do

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aquário que davam voltassonolentos num cilindro grande eborbulhante.

Depois de um minuto veioMorgan, alisou o colete de courocomo se estivesse tirando algumacoisa grudada nele, e disse: —Mocreia. Não quis dizer.

— Mas ela deve estar na uti.— Dá para entrar lá?— Às vezes.— Você parece ter experiência

nisso.— Tenho.Eles se dirigiram para a uti, Larry

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sabia o caminho.Muitos “conhecidos” de Larry

estavam ou estiveram internados nohospital. No momento eram apenasdois no Sabb, sem contar comVirginia. Morgan suspeitava que aspessoas que Larry só encontrarapoucas vezes se tornaram colegasou, na verdade, amigos no instanteque elas foram parar no hospital.Então ele se interessava mesmo pelapessoa, fazia visitas.

Por que ele fazia isso, bem, issoMorgan estava prestes a perguntarquando eles chegaram à porta

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vaivém da uti, empurraram-na eavistaram Lacke no corredor.Sentado numa cadeira, apenas decuecas. Suas mãos seguravam osbraços da cadeira enquanto eleolhava fixamente para um quarto àsua frente, onde se via uma agitaçãode gente entrando e saindo.

Morgan inspirou. — Pô, será queeles cremaram alguém aqui? — Deuuma risada. — Malditos moderados.Contenção de despesas, sabe. Deixeos hospitais cuidarem dos…

Ele parou de falar quandochegaram perto de Lacke. O rosto

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dele estava cinza, os olhos,vermelhos, não enxergavam nada.Morgan imaginou o que acontecera,deixou Larry tomar a frente. Elemesmo não era bom nessas coisas.

Larry foi para junto de Lacke epôs a mão em seu braço.

— Oi, Lacke. Como vão ascoisas?

Confusão no quarto ao lado. Asjanelas que podiam ser vistas daporta estavam escancaradas, masmesmo assim um cheiro acre decinzas chegava ao corredor. Umanévoa pairava no quarto, dentro dela

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havia gente falando alto,gesticulando. Morgan conseguiupescar as palavras“responsabilidade do hospital” e“nós temos que tentar…”.

Não ouviu o que eles tinham quetentar, pois Lacke se virou para eles,olhou para os dois como se fossemestranhos e disse em seguida: — …devia ter percebido…

Larry se inclinou para ele.— Devia ter percebido o quê?— Que isso ia acontecer.— O que aconteceu?Os olhos de Lacke clarearam e

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ele olhou na direção do quartoenevoado e de aparência irreal edisse simplesmente: — Ela pegoufogo.

— Virginia?— É. Ela pegou fogo.Morgan deu uns passos na

direção do quarto e olhou lá dentro.Um senhor com um jeito autoritáriofoi até ele.

— Com licença, mas isso aquinão é nenhum show de circo.

— Não, claro. Eu só…Morgan estava a ponto de dizer

algo inventivo sobre estar

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procurando a jiboia dele, masdeixou para lá. Tinha conseguidover, em todo caso. Duas camas.Uma com o lençol amarrotado e umcobertor que foi jogado para o lado,como se alguém tivesse selevantado rapidamente.

A outra tinha um cobertor grossoe cinza-escuro em cima dela que iada cabeceira ao pé da cama. Amadeira da cabeceira estava pretade fuligem. Debaixo do cobertorviam-se os contornos de uma pessoaincrivelmente magra. A cabeça, otórax e a região pélvica eram as

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únicas coisas que davam paradistinguir. O resto podia muito bemser dobras, rugas do cobertor.

Morgan esfregou com tanta forçaos olhos que o globo ocular pareciater sido espremido algunscentímetros para dentro da cabeça.É verdade . É verdade mesmo .

Ele olhou ao redor no corredor,procurando alguém para descarregarseu atordoamento. Avistou umhomem idoso apoiado num andadorcom um suporte de soro ao ladotentando olhar dentro do quarto.Morgan deu um passo na direção

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dele.— O que você está olhando,

velho idiota? Quer que eu arranqueseu andador, quer?

O homem começou a andar paratrás, dez centímetros de cada vez.Morgan cerrou os punhos, teve de sesegurar. Lembrou-se depois dealguma coisa que tinha visto dentrodo quarto, virou-se de supetão evoltou.

O homem que se dirigira a eleantes saía nesse instante do quarto.

— Com licença , mas…— Tudo bem, já sei… — Morgan

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tirou o homem da frente. — Só vouapanhar as roupas do meu amigo, seme deixarem. Ou você acha que elepode ficar pelado o dia inteiro alifora, hein?

O homem cruzou os braços nopeito e deixou Morgan passar.

Ele juntou as roupas de Lacke dacadeira ao lado da cama que estavapor fazer e olhou de relance para aoutra cama. Viu a mão carbonizadacom os dedos arreganhadosapontando debaixo do cobertor. Amão estava irreconhecível, mas oanel no dedo não. Um anel dourado

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com uma pedra azul, o anel deVirginia. Antes de Morgan se virarpara o outro lado, teve tempo deobservar uma tira presa no pulsodela.

O homem ainda estava na portade braços cruzados.

— Satisfeito?— Não. Por que ela está

amarrada?O homem sacudiu a cabeça.— Você pode dizer ao seu colega

que a polícia vai chegar daqui apouco e provavelmente vão quererfalar com ele.

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— Mas por quê?— Isso eu não sei. Não sou

policial.— Não, é claro. Mas bem que

parece.Lá fora no corredor eles ajudaram

Morgan a se vestir e, na hora quetinham acabado, chegaram doiscomissários de polícia. Lacke estavaincomunicável, mas a enfermeiraque levantara as persianas tevepresença de espírito suficiente paratestemunhar que ele não tivera nadaa ver com aquilo. Que ainda estavadormindo quando tudo… começou.

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Ela era consolada pelos colegas.Larry e Morgan guiavam Lacke paraa saída do hospital.

Quando os três saíram da portagiratória, Morgan aspirouprofundamente o ar frio e disse: —Agora preciso chamar o Hugo. —Inclinou-se sobre o canteiro evomitou os restos do jantar do diaanterior misturado com uma gosmaverde nos arbustos sem folhas.

Depois de acabar, passou a mãona boca e secou-se nas calças. Emseguida, mostrou a mão como sefosse uma espécie de evidência e

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disse para Larry: — Agora você vaiter que soltar um pouco da grana.

Eles foram para Blackeberg e

Morgan recebeu cento e cinquentacoroas para gastar com a compraenquanto Larry levava Lacke para acasa dele.

Lacke deixou-se guiar. Não deunem sequer um pio durante aviagem de metrô.

Dentro do elevador que subiapara o apartamento de Larry nosétimo andar, ele desatou a chorar.

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Não foi um choro brando, choroucomo uma criança mas pior, maisque isso. Quando Larry abriu a portado elevador e levou Lacke para aescada, o urro ficou mais grave,ressoava nas paredes de cimento. Ogrito de tristeza genuína e infinitaencheu todos os lances da escada,entrou pelas caixas de correio, pelasfechaduras, transformou o prédionum monumento sepulcrallevantado ao amor e à esperança.Larry teve um arrepio, nunca ouviraalgo parecido antes. Não se choradesse jeito. Não se deve chorar

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desse jeito. A gente morre se choradesse jeito.

Os vizinhos . Eles vão achar queeu estou matando o cara .

Larry mexia atrapalhado nomolho de chaves enquanto todo osofrimento humano, mil anos deimpotência e decepções que nomomento tinham encontrado umcanal no corpo frágil de Lacke,continuava a jorrar do outro.

A chave entrou na fechadura e,com uma força que ele não achavaque possuía, Larry quase carregouLacke para dentro do apartamento e

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fechou a porta. Lacke não parava degritar, parecia que o ar nuncaacabaria. O suor brotava no courocabeludo de Larry.

Mas que diabos eu vou … o queeu vou …

Em pânico, fez uma coisa quetinha visto em filmes. Com a palmada mão aberta, deu um tapa no rostode Lacke, ficou aterrorizado com oestalido e arrependeu-se no mesmoinstante. Mas funcionou.

Lacke parou de repente, olhoupara Larry com um olhar de louco eeste achou que receberia uma

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porrada de volta. Depois, algumacoisa amoleceu lá dentro dos olhosde Lacke, ele abriu e fechou a bocacomo se estivesse puxando ar edisse: — Larry, eu…

Larry passou os braços em voltadele. Lacke recostou o rosto noombro do amigo e chorou tanto queseu corpo inteiro sacudia. Depois deum tempo, as pernas de Larry nãoaguentavam mais. Tentou se soltardo abraço para sentar-se na cadeirado corredor, mas Lacke não o largoue foi junto. Larry acabou sentandona cadeira e as pernas de Lacke

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ficaram embaixo dele, a cabeçaacabou parando no colo de Larry.

Larry alisou o cabelo do outro,não sabia o que fazer. Sussurrouapenas: — Calma… assim…

As pernas de Larry tinhamcomeçado a ficar dormentes quandoocorreu uma mudança. O choro seacalmara, dando lugar a um gemidobaixinho, quando sentiu na coxa omaxilar de Lacke se contrair. Lackelevantou a cabeça, limpou o catarrocom a manga da camisa e disse: —Vou matar aquela coisa.

— Que coisa?

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Lacke baixou os olhos, furou comos olhos o peito de Larry e balançoua cabeça.

— Vou matar aquela coisa.Aquilo vai morrer.

No intervalo mais longo, às nove

e meia, Staffe e Johan foram falarcom Oskar e disseram “fez muitobem” e “ é isso aí”. Staffe ofereceu-lhe umas balas e Johan perguntou seOskar queria ir junto com elesarranjar cascos de garrafa um diadesses.

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Ninguém empurrou Oskar outapou o nariz quando ele passou.Até mesmo Micke Siskov lhesorriu, balançando a cabeça emsinal de aprovação como se Oskartivesse contado uma históriaengraçada quando os dois secruzaram no corredor do lado defora do refeitório.

Como se todo mundo tivesseesperado que Oskar fizesseexatamente o que fez e, agora que acoisa estava feita, ele era um deles.

O problema era que ele não sesentia orgulhoso por ter feito aquilo.

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Constatou o fato, mas não o afetava.Era bom não levar pancada, é claro.Mas, se alguém tivesse tentado lhebater, ele teria revidado. Nãopertencia mais àquele lugar.

Durante a aula de matemática,levantou os olhos do livro e olhoupara a turma que acompanhavahavia seis anos. Uns estavam decabeça baixa concentrados nosexercícios, outros mastigavam aponta do lápis, mandavambilhetinhos, davam risinhos. E elepensou: não passam de … crianças .

Ele mesmo era uma criança,

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mas…Oskar desenhou uma cruz no

livro e depois a transformou numaforca com uma corda.

Eu sou uma criança , mas …Desenhou um trem. Um carro.

Um barco.Uma casa. Com a porta aberta.A inquietação aumentou. No final

da aula de matemática, já nãoconseguia mais ficar parado nacadeira; batia os pés, seus dedostamborilavam na carteira. Aprofessora pediu, depois de virarespantada a cabeça, que ele ficasse

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quieto. Oskar tentou, mas nãodemorou muito e a aflição apareceude novo, puxou os fios da marionetee as pernas começaram a se mexersozinhas.

Quando chegou a hora da últimaaula, de ginástica, ele não aguentoumais. No corredor, pediu a Johan:— Diga para o Ávila que eu estoudoente, o.k.?

— Vai se mandar?— Não trouxe a roupa de

ginástica.Era verdade; tinha esquecido as

roupas de ginástica, mas não era por

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isso que ia matar a aula. A caminhodo metrô, viu a turma posicionadaem fila reta. Tomas exclamou“buuu!” para ele.

Provavelmente ia dedurar. Nãotinha importância. Nenhuma.

As pombas levantaram voo em

bandos cinza quando ele atravessouapressadamente a praça deVällingby. Uma mulher comcarrinho de criança franziu o narizpara Oskar; um desses que não seimportam com os animais. Mas o

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menino estava com pressa e tudoque estava entre ele e seu objetivoeram meros apetrechos, estavam nomeio do caminho.

Parou em frente à loja debrinquedos e olhou na vitrine.Smurfs dispostos numa paisagem desonhos. Estava velho para isso.Numa caixa em casa, ele tinha unsbonecos Falcon, com os quaisbrincava quando era pequeno.

Um ano atrás .O tilintar eletrônico de um

sininho quando ele empurrou aporta da loja de brinquedos.

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Atravessou o corredor estreito, asprateleiras cheias de bonequinhosde guerreiros e caixas de brinquedosde montar. Perto do caixa estavamas embalagens com moldes desoldadinhos de chumbo. A gentetinha de pedir o chumbo no caixa.

O que ele queria estava em cimado próprio caixa.

I s s o , as cópias estavamempilhadas debaixo das bonecas deplástico, mas com o original, com aassinatura de Rubik na embalagem,eles tinham mais cuidado. Custavanoventa e nove coroas a unidade.

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Um homem baixo e gordinhoestava no balcão exibindo umsorriso no rosto que Oskar teriachamado de “bajulador”, seconhecesse a palavra.

— Olá… está procurando algo…específico?

Oskar sabia que os cubosestariam em cima do balcão, tinha oplano bem delineado em mente.

— Estou. Queria saber ondeestão… as tintas. Para pintarsoldadinhos.

— Pois não.O homem fez um gesto para as

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fileiras de latinhas minúsculas queestavam atrás dele. Oskar seinclinou para a frente e pôs os dedosde uma mão em cima do balcão,bem na frente dos cubos, enquantosegurava com o polegar a mochila,aberta ali embaixo. Oskar fingiuestar escolhendo uma tinta.

— Dourada. Tem?— Dourada, claro que temos.Quando o homem se virou, Oskar

apanhou um dos cubos e jogou obrinquedo dentro da mochila, foi otempo contado para pôr a mão devolta na mesma posição que estava

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antes quando o homem veio comduas latinhas de tinta e as depositouem cima do balcão. O coração deOskar bateu forte e esquentou-lhe asbochechas, as orelhas.

— Opaco ou metálico?O homem levantou os olhos para

Oskar, que sentiu que o rosto inteirovirava um pisca-pisca com osdizeres “Aqui está um ladrão”. Paranão dar bandeira com a vermelhidãodo rosto, debruçou-se sobre aslatinhas e disse: — Metálica…parece bonita.

Ele tinha vinte coroas. A tinta

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custava dezenove. Pôs a latinha numsaquinho que enfiou no bolso docasaco para não ter que abrir amochila.

Do lado de fora da loja veio comosempre aquela excitação, porémmaior que de costume. Saiutrotando da loja como se fosse umescravo em liberdade, livrado haviapouco dos seus grilhões. Não pôdedeixar de correr para oestacionamento e, protegido pordois carros, abrir com cuidado aembalagem e tirar o cubo dela.

Era bem mais pesado do que a

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cópia que ele tinha. As seçõesdeslizavam que nem rolamento deesferas. Será que tinha rolamento deesferas? Não, ele não ia desmontar ocubo para ver e correr o risco deestragá-lo.

A caixa era uma coisa feia deplástico transparente agora que ocubo não estava dentro dela e, aosair do estacionamento, ele a jogouno lixo. O cubo sozinho era maisbonito. Enfiou o brinquedo no bolsodo casaco para poder alisá-lo, sentirseu peso de lá para cá na mão. Eraum bom presente, um presente

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fino… de despedida.Dentro do hall de entrada do

metrô, ele parou.Se Eli achar … que eu …É. Que ele, porque dava um

presente a Eli, aceitava que Elifosse embora. Dar um presente dedespedida, tudo bem. Tchau, tchau.Mas não era assim. Ele não queriade jeito nenhum que…

Seus olhos passearam pelo hall,ele parou no Pressbyrån. Na bancade jornais. Jornal Expressen . Aprimeira página estava tomada poruma foto grande do coroa que tinha

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morado com Eli.Oskar foi até a banca e abriu o

jornal. Cinco páginas dedicadas àcaçada no bosque de Judarn… oassassino ritual… a história da suavida e depois: mais uma páginaonde a foto aparecia. HåkanBengtsson… Karlstad… paradeirodesconhecido durante oito meses…polícia apela à população… sealguém notou…

A angústia cravou seus espinhosno peito de Oskar.

Se mais alguém viu o coroa ,alguém que sabe onde ele morava …

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A mulher da banca pôs a cabeçapara fora do guichê.

— Vai comprar o jornal?Oskar sacudiu a cabeça e jogou o

jornal de volta na banca. Depoissaiu correndo. Foi só na plataformaque lembrou que não tinha mostradoo bilhete para o fiscal lá em cima.Os pés sapateavam, ele sugava osnós dos dedos, seus olhos seenchiam de lágrimas.

Vem logo , metrô , vem logo …

Lacke estava com metade do

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corpo deitada no sofá, espiando asacada onde Morgan tentava em vãoatrair um pisco-de-peito-ruivosentado na grade ao lado. O sol quese punha estava bem atrás da cabeçade Morgan e espalhava uma aura deluz ao redor do seu cabelo.

— Isso… chegue mais perto. Eunão mordo.

Larry estava na poltrona,assistindo sem interesse a um cursode espanhol da ur. Pessoas semgraça em situações artificiaismexiam-se na tela e diziam: —Yotengo un bolso .

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— ¿Qué hay en el bolso ?Morgan baixou a cabeça e a luz

do sol acabou entrando nos olhos deLacke, que fechou os olhosenquanto ouvia Larry resmungar: —Ke hai en el bôlsô.

O apartamento tinha um cheiropesado de cigarro e de poeira. Acachaça tinha sido tomada, a garrafaestava em cima da mesinha decentro ao lado de um cinzeiro cheio.Lacke não tirava os olhos dasmarcas de queimado no tampo damesa deixadas por cigarros malapagados; elas deslizavam diante

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dele, besouros lentos.— Ona kamisa y pantalônes.Larry riu entre dentes sozinho.— … pantalônes.

Não tinham acreditado nele. Bem,

na verdade tinham, mas se negarama interpretar o episódio do modocomo ele interpretou.“Autocombustão espontânea”,dissera Larry, e Morgan pedira paraele soletrar.

O detalhe é que autocombustãoespontânea era um fenômeno tão

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estudado e comprovadocientificamente quanto vampiros ,ou seja , nem um pouco .

Mas as pessoas preferemacreditar no disparate que menosconvoca à ação. Eles não iam ajudá-lo. Morgan ouvira seriamente orelato de Lacke sobre o que tinhaacontecido no hospital; no entanto,quando ele começou a falar emdestruir o ser que causara aquilotudo, Morgan dissera: — Comoassim? Você quer dizer que a gentevai virar caçador de vampiros?Você, eu e Larry. Arranjar umas

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estacas e umas cruzes e… Olhe,desculpe, Lacke, para mim édifícil… imaginar isso.

O pensamento imediato de Lackeao ver a cara ressabiada e a atitudearredia dos dois tinha sido: Virginiateria acreditado em mim .

E a dor enterrou de novo suasunhas nele. Foi ele quem nãoacreditara em Virginia e por isso elatinha… Lacke teria preferido passaruns anos preso por ajudá-la a sesuicidar do que precisar viver comaquela imagem gravada na retina: Ocorpo dela se retorcendo na cama

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enquanto a pele vai ficando negra ecomeça a soltar fumaça . A camisolado hospital sobe e fica em cima dabarriga , deixando o sexo à mostra .O chacoalhar da armação metálicada cama na hora que as coxas sedebatem , vão para cima e parabaixo numa relação sexual loucacom um homem invisível enquantosaem chamas das coxas e ela nãopara de gritar , o fedor de cabelo ede pele queimados toma conta doquarto , os olhos apavoradosolhando para mim e um segundodepois eles ficam brancos ,

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começam a ferver … estouram …Lacke bebera mais da metade do

que havia na garrafa. Morgan eLarry tinham deixado.

— … pantalônes.Lacke tentou se levantar do sofá.

Sua nuca pesava tanto quanto oresto do corpo. Ele se apoiou notampo da mesa, fez força para selevantar. Larry levantou para lhe daruma ajuda.

— Poxa, Lacke… tente dormirum pouco.

— Não, preciso ir para casa.— O que você vai fazer em casa?

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— Só preciso… resolver umacoisa.

— Não tem nada a ver comisso… disso que você fica falando?

— Não, não.Morgan veio da sacada enquanto

Lacke ia cambaleante para ocorredor.

— Você aí! Para onde você vai?— Para casa.— Então vou junto.Lacke se virou, esforçou-se em

equilibrar o corpo e ficar com aaparência de sóbrio. Morgan foi atéele, com as mãos preparadas caso o

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outro caísse. Lacke sacudiu a cabeçae deu um tapinha no ombro deMorgan.

— Quero ficar sozinho, tá? Queroficar sozinho.

— Você vai dar conta?— Eu me arranjo.Lacke balançou a cabeça várias

vezes, travou num movimento,obrigou-se a interrompê-lo para nãoficar parado em pé, virou-se emseguida e foi para o corredor, calçouos sapatos e vestiu o casaco.

Ele sabia que estavaextremamente bêbado, mas ficara

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assim tantas vezes antes que já tinhacerta prática em, por assim dizer,desassociar seus movimentos docérebro, em executá-losmecanicamente. Ele podia jogarpega-varetas por alguns minutossem que a mão tremesse.

De dentro do apartamento, ouviuas vozes dos outros dois.

— Será que a gente não devia…?— Não. Se ele disse isso, então

temos que respeitar.Em todo caso, eles apareceram no

corredor para se despedir. Deramum abraço um pouco atrapalhado

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em Lacke. Morgan segurou-lhe osbraços, abaixou a cabeça para poderolhar dentro dos olhos dele e disse:— Não vá fazer nenhuma besteira,certo? Você sabe que tem a gente.

— O.k., tudo bem. Não vou.

Do lado de fora do prédio, Lacke

ficou olhando para o sol quedescansava no topo de um abeto.

Nunca mais vou poder … o sol …A morte de Virginia, a maneira

que ela tinha morrido era um pesode chumbo pendurado em seu peito,

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no lugar onde antes estava ocoração; fazia-o andar encurvado,pesado.

A luz da tarde nas ruas era comose fosse um deboche. As poucaspessoas que andavam nela… umdeboche. As vozes. Falavam decoisas corriqueiras como se não…em toda parte, a qualquermomento…

A coisa também pode atacarvocês .

Do lado de fora da banca, umapessoa estava encostada no guichêfalando com o dono. Lacke viu um

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bolo negro caindo do céu, que seprendia às costas e…

Mas que diabos …Ele parou em frente às manchetes

de jornal, pestanejou, tentoufocalizar direito a foto que tomavaconta de quase todo o espaço. Oassassino ritual. Lacke deu umarisadinha. Ele já sabia. O que narealidade acontecera. Mas…

Ele conhecia aquela cara. Masnão era…

No restaurante chinês . Aquelecara que Lacke convidara paratomar um uísque . Não …

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Ele deu um passo à frente e olhoumais atentamente a foto. Issomesmo. Sim, era ele. Os mesmosolhos juntos, a mesma… Lackelevou a mão à boca e apertou osdedos nos lábios. Imagensrodopiaram em sua cabeça, eletentou juntar as coisas.

Ele bebera com a pessoa quematara Jocke. O assassino de Jocketinha morado no mesmo conjuntoque ele, a alguns prédios dele.Cumprimentara o sujeito algumasvezes, ele tinha…

Mas não foi ele quem fez isso .

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Foi …Uma voz. Disse alguma coisa.— E aí, Lacke? Alguém que você

conhece?O dono da banca e o homem do

lado de fora estavam olhando paraele. Lacke disse: “… sim” e pôs-sea andar de novo, para o conjunto. Omundo desapareceu. À sua frente,ele viu a imagem do prédio onde ohomem morava. As janelascobertas. Ele ia procurar saber. Eleia.

Seus pés se movimentavam maisrápido e sua coluna se endireitou; o

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peso de chumbo era um pêndulo desino batendo em seu peito, que ofazia tremer, anunciava retumbanteo presságio através do corpo dele.

Agora ninguém me segura . Agora… ninguém me segura .

O metrô parou em Råcksta e

Oskar mordia os lábios deimpaciência, pânico; achou que asportas ficavam abertas tempodemais. Quando fez um barulho dearranhar no alto-falante, ele achouque o condutor ia dizer que eles iam

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ficar parados ali por um tempo,mas…

“cuidado com as portas. elasserão fechadas.”

… e o metrô saiu da estação.Ele não tinha nenhum plano a não

ser avisar Eli; dizer que qualquerpessoa, a qualquer hora, podia ligarpara a polícia e contar que tinhavisto o coroa. Em Blackeberg.Naquele bloco. Naquele prédio.Naquele apartamento.

O que acontece se a políca … seela arrombar a porta … o banheiro…

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O metrô chacoalhou ao atravessara ponte e Oskar olhou pela janela.Dois homens estavam lá embaixono Quiosque dos Namorados e, umpouco escondidas atrás de um deles,Oskar pôde ver a fileira demanchetes amarelas e detestáveis. Ooutro homem foi rapidamenteembora da banca.

Qualquer pessoa . Qualquerpessoa pode saber . Ele pode saber .

Quando o metrô estava parando,Oskar já estava na porta, apertandoos dedos no meio da junção deborracha como se as portas fossem

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abrir mais rápido desse jeito.Encostou a testa no vidro, frio natesta quente. Os freios guincharam eo condutor deve ter esquecido, jáque foi só agora que ele falou: —próxima estação. blackeberg.

Jonny estava na plataforma.Tomas também.

Não . Nãonãoenão , tire eles daí .Quando o metrô parou

balançando, os olhos de Oskarcruzaram com os de Jonny. Elesaumentaram e, ao mesmo tempoque as portas se abriram chiando,Oskar viu que Jonny disse alguma

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coisa para Tomas.Oskar ficou tenso, lançou-se

porta afora e começou a correr.As pernas longas de Tomas se

desdobraram, ficaram no meio docaminho e Oskar tropeçou e caiu debarriga na plataforma. Arranhou apalma das mãos ao tentar aparar aqueda. Jonny sentou-se em suascostas. — Está com pressa, hein?

— Me solta! Me solta!— Por quê?Oskar fechou os olhos e cerrou os

punhos. Respirou fundo algumasvezes, fundo até onde dava com o

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peso de Jonny em cima dele, e dissecom o rosto colado no cimento: —Façam o que vocês quiserem. E mesoltem depois.

— Cer-to.Eles seguraram os braços de

Oskar e o arrastaram para deixá-lode pé. Oskar conseguiu avistar orelógio da estação. Duas e dez. Oandar quebrado do ponteiro dossegundos pelo mostrador. Contraiuos músculos do rosto, da barriga,tentou fingir que era uma pedra,insensível a pancadas.

É só não demorar.

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Foi só quando Oskar viu o queeles iam fazer que começou a lutar.Mas, como se tivessem um acordotácito, os dois tinham virado seubraço de uma forma que cadamovimento que ele dava parecia queia quebrá-lo. Eles levaram Oskarpara a outra beirada da plataforma.

Não vão ter coragem . Eles nãopodem …

Mas Tomas estava louco eJonny…

Ele tentou resistir fincando os pésno chão. Os pés dançavam naplataforma enquanto Tomas e Jonny

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carregavam Oskar para a faixabranca de segurança em frente àdescida para os trilhos.

O cabelo perto da têmporaesquerda de Oskar fez cócegas emsua orelha, esvoaçando com o golpede ar do túnel quando o metrô foichegando da cidade. Os trilhoscantaram e Jonny sussurrou: —Agora você vai morrer, estáentendido?

Tomas deu um risinho, segurandoainda mais o braço dele. Tudo seapagou na cabeça de Oskar: eles vãomesmo fazer isso . Eles o

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seguravam à frente de modo que seutronco ultrapassou a beirada daplataforma.

As lâmpadas do metrô que seaproximava atiraram uma flecha deluz fria nos trilhos. Oskar virourapidamente a cabeça para aesquerda e viu o trem se lançar parafora do túnel.

bôôôôôô!O apito do metrô rugiu e o

coração de Oskar deu um saltomortal no peito, ao mesmo tempoque ele fez xixi nas calças e seuúltimo pensamento foi…

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Eli!… antes de ser puxado para trás e

seu campo visual ser tomado pelacor verde na hora que o trem passouem disparada, a uns dez centímetrosdele.

Oskar estava caído de costas na

plataforma, o vapor saindo da bocaofegante. O molhado lá embaixo nomeio das pernas ficou mais frio.Jonny se agachou junto dele.

— Isso é só para você entenderbem. As regras do jogo. Ouviu?

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Oskar balançou a cabeça,instintivamente. Só queria pôr umfim naquilo. Os velhos impulsos.Jonny passou a mão com cuidado noouvido machucado e sorriu. Depoispôs a mão na boca de Oskar,apertando suas bochechas.

— Grite que nem um porco sevocê entendeu.

Oskar gritou. Que nem um porco.Eles riram, os dois. Tomas disse: —Ele fazia melhor antes.

Jonny balançou a cabeça. — Agente vai precisar treiná-lo de novo.

O metrô veio do outro lado. Eles

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o deixaram.Oskar ficou no chão por um

tempo, vazio. Depois veio um rostopairando acima dele. Uma senhora.Ela lhe estendeu a mão.

— Minha criança, eu vi tudo.Você precisa dar parte deles napolícia, o que houve aqui foi…

A polícia .— … tentativa de homicídio.

Venha, que eu…Sem se importar com a mão dela,

Oskar se levantou. Enquanto ia aostropeços para a porta, na escada,ouviu a voz da senhora atrás dele:

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— Como é que você está…

O tira .Lacke entendeu quando chegou

ao pátio do seu prédio e viu aviatura lá em cima na ladeira. Doispoliciais do lado de fora do carro,um deles escrevia alguma coisanum bloco. Lacke partiu doprincípio de que eles procuravam amesma coisa que ele, mas que apolícia estava mal informada. Ospoliciais não tinham notado suahesitação, então ele continuou em

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direção ao primeiro prédio do blocoe entrou.

Nenhum dos nomes no quadro demoradores lhe dizia alguma coisa,mas Lacke já sabia: lá embaixo, àdireita. Perto da porta do porãohavia uma garrafa de álcool. Eleparou e olhou para o recipiente,como se a garrafa pudesse daralguma dica de como devia agiragora.

Álcool pega fogo. Virginia pegoufogo .

Mas o pensamento parou por aí eele sentiu apenas a ira seca e

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gritante de novo, continuou subindoas escadas. Uma mudança tinhaocorrido.

Agora era sua cabeça que estavaalerta, mas o corpo se atrapalhava.Seus pés escorregavam nos degrause ele teve de se apoiar no corrimãopara poder se deslocar escadaacima, ao mesmo tempo que océrebro raciocinou claramente: Euentro . Encontro o ser . Atravessoum troço em seu coração . Depoisfico esperando os tiras .

Em frente à porta sem nome demorador, ele ficou parado.

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E como é que eu vou entrar?Como se fosse de brincadeira, ele

estendeu rapidamente um dosbraços e sentiu a maçaneta. E aporta abriu, deixando à mostra umapartamento vazio. Nada de móveis,tapetes ou quadros. Nada de roupas.Ele passou a língua nos lábios.

O ser se mandou . Não tenhonada que …

No chão do corredor doapartamento havia mais duasgarrafas de álcool. Tentou entendero que isso significava. Que aquelacriatura bebia… não. Que…

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Isso só significa que alguémesteve aqui agora há pouco . Docontrário , a garrafa lá embaixonão estaria ali .

Isso.Ele entrou, parou no corredor e

aguçou os ouvidos. Não ouviu nada.Deu uma volta pelo apartamento,viu que havia cobertores penduradosna frente das janelas em várioscômodos, entendeu por quê. Quetinha chegado ao lugar certo.

Por fim, parou na frente da portado banheiro. Apertou a maçaneta daporta. Trancada. Mas não era difícil

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abrir essa fechadura; só precisavade uma chave de fenda ou algo dogênero.

Mais uma vez passou a seconcentrar nos movimentos . Emexecutar os movimentos . Não iamais pensar. Não precisava maispensar. Se começasse a pensar, iavacilar, e vacilar ele não podia.Então: os movimentos.

Ele abriu as gavetas da cozinha.Achou uma faca. Foi para obanheiro. Enfiou a ponta da faca noparafuso do meio e girou, emsentido anti-horário. A fechadura

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cedeu, a porta foi aberta. Estavaescuro que nem breu ali dentro. Eleprocurou o interruptor E acendeu aluz.

Deus do céu! Mas o que é …A faca caiu da mão de Lacke.

Metade da banheira à sua frenteestava cheia de sangue. No chão dobanheiro havia garrafões de plásticocuja superfície transparentemostrava listras vermelhas. Otilintar da faca ao bater no pisopareceu um sininho.

Sua língua grudou no palatoquando ele se inclinou à frente

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para… para fazer o quê? Para…sentir aquilo… ou fazer outra coisa,algo mais primitivo; a fascinaçãodiante de uma quantidade tãogrande de sangue… molhar a mãonele, poder…

banhar as mãos no sangue .Baixou os dedos em direção à

superfície serena e escura e…afundou-os. Era como se os dedostivessem sido mutilados,desapareceram e, com a boca aberta,ele afundou ainda mais a mão atéque ela esbarrou…

Lacke deu um gritou e recuou.

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Arrancou a mão da banheira egotas de sangue voaram fazendoarcos ao seu redor; aterrissaram noteto, nas paredes. Por puro reflexo,ele tapou a boca com a mão. Sópercebeu o que tinha feito quando odoce e o viscoso foram registradospela língua, pelos lábios. Cuspiu elimpou a mão nas calças. Pôs aoutra mão, a limpa, na frente daboca.

Alguém está … lá embaixo .É. O que ele sentiu na ponta dos

dedos foi uma barriga. Ela cedeucom a pressão da sua mão, antes de

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Lacke arrancá-la de lá. Para distraira mente do asco que sentia, seusolhos passaram a procurar pelo chãoe encontraram a faca. Apanhou-a denovo e segurou firmemente o cabo.

Mas que diabos eu vou …Se estivesse sóbrio, talvez saísse

dali no mesmo instante, deixandoesse laguinho escuro que podiaabrigar qualquer coisa sob suasuperfície novamente serena ecristalina. Um cadáver esquartejado,por exemplo.

Vai ver que a barriga é … vai verque é só a barriga …

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Mas a embriaguez o deixavaabusado, até mesmo com seupróprio medo; assim, quando Lackeviu a corrente fina que descia docanto da banheira para dentro dolíquido escuro, estendeu a mão parapuxá-la.

A rolha de banheira foi arrancada,a água começou a escorrer e agorgolejar no cano e umredemoinho suave formou-se nasuperfície. Ele ficou de joelhos nafrente da banheira e passou a línguanos lábios. Sentiu o gosto ruim naboca e cuspiu no chão.

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A superfície afundavalentamente. Uma linha bemmarcada de um vermelho maisescuro ficou visível no nível maisalto.

O sangue já devia estar aqui hámuito tempo .

Depois de alguns minutos, veio àtona o contorno de um nariz numdos lados da banheira. No ladooposto, um conjunto de dedos do péque, enquanto ele olhava, foi serevelando e virou a metade de doispés. O redemoinho na superfícieficou mais compacto, mais forte,

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estava exatamente entre os dois pés.Ele olhou de cima a baixo o corpo

de criança que aos poucos ficouvísivel no fundo da banheira. Duasmãos, cruzadas em cima do peito.Rótulas de joelhos. Um rosto. Obarulho de sucção diminuiu quandoo restante do sangue escorreu pelocano.

O corpo diante dele estavavermelho-escuro; manchado,lambuzado como o de um recém-nascido. Tinha um umbigo. Masnenhum órgão sexual. Menino oumenina? Não importava. Ao estudar

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o rosto de olhos fechados, viu que oconhecia muito bem.

Quando Oskar tentou correr, suas

pernas travaram. Recusaram-se.Durante cinco segundos negros

ele acreditara de verdade que iamorrer. Que iam empurrá-lo. Agoraos músculos não queriam sedesacostumar com a ideia.

No trecho entre a escola e opavilhão de esportes a coisadesandou.

Ele quis se deitar. Cair de costas

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naqueles arbustos, por exemplo. Ocasaco e as calças acolchoadas nãodeixariam que elas pinicassem; osgalhos apenas o receberiamsuavemente. Mas ele tinha pressa .O ponteiro dos segundos; o andarquebrado do ponteiro pelomostrador.

A escola.A fachada avermelhada e

angulosa feita de pedra sobre pedra.Em pensamento, ele voou como umpássaro pelos corredores e entrou nasala de aula. Jonny estava lá.Tomas. Sentados nas carteiras,

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rindo dele. Oskar baixou a cabeça eolhou para as botinas nos pés.

Os cadarços estavam sujos; umdeles quase se soltando. Um ganchode metal lá perto do tornozelo tinhaficado torto e aberto. Andava comos pés um pouco virados paradentro; na região do tornozelo, aimitação de couro nos dois sapatosestava esgarçada, gasta. Mesmoassim, ele usaria esses sapatosdurante todo o inverno,provavelmente.

Suas calças estavam frias,molhadas. Ele levantou a cabeça.

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Eles não vão ganhar . Eles . Nãovão . Ganhar .

Um líquido quente e espumanteescorreu por suas pernas. As linhasretas do reboco da fachada da escolase inclinaram, ficaram embaçadas edesapareceram quando ele começoua correr. Esticou tanto os passos queo que estava no chão grudava erespingava nos pés. O chão corriadebaixo dos seus pés e agora elesentia o contrário: como se o globoterrestre girasse rápido demais eOskar não conseguisse acompanhá-lo.

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As pernas levaram-no aostropeços quando o bloco de prédios,o supermercado Konsum e a fábricade trufas de coco surgiram pelocaminho, e a velocidade emcombinação com o hábito fizeramOskar correr diretamente paradentro do pátio, passar pelo prédiode Eli e subir para o dele.

Ele quase esbarrou num policialque estava prestes a entrar em seuprédio. O policial abriu os braços eficou na frente de Oskar.

— Ôôôpa! Estamos com pressa!A língua enrijeceu. O policial

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deixou Oskar passar, olhou paraele… desconfiado?

— Você mora aqui?Oskar assentiu. Nunca tinha visto

esse policial antes. Parecia ser umsujeito legal. Não. Ele tinha umacara que Oskar normalmenteacharia que era de uma pessoa legal.O policial deu uma fungada e disse:— Bem, é bom você saber que…que ocorreu uma coisa aqui. Noprédio ao lado. Agora estouperguntando para os moradores sealguém ouviu alguma coisa. Ou viualguma coisa.

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— Em qual… em qual prédio?O policial fez um movimento

com a cabeça para o prédio deTommy e o pânico imediato saiu deOskar.

— Aquele. Bem, não foi noprédio, foi no… porão. Por acasovocê ouviu ou viu alguma coisadiferente por lá? Nos últimos dias?

Oskar sacudiu a cabeça negando.Os pensamentos giravam de ummodo tão caótico em sua mente que,na verdade, ele não tinha pensadonem um pouco, mas achou que omedo devia transbordar dos seus

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olhos, estar bem visível para opolicial. E, de fato, o policialinclinou a cabeça de lado e olhouperscrutador para ele.

— Tudo bem com você?— … tudo.— Você não precisa ter medo.

Agora já… passou. Você nãoprecisa se preocupar. Seus paisestão em casa?

— Não. Minha mãe. Não.— Certo. Mas eu vou aparecer

por aqui de novo, então… você podeir pensando se por acaso viu algumacoisa.

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O policial segurou a porta doprédio para ele. — Você primeiro.

— Eu só vou…Oskar se virou e fez um esforço

para andar de um jeito natural aodescer a ladeira. No meio docaminho, deu meia-volta e viu opolicial entrar em seu prédio.

Pegaram Eli .Seu maxilar começou a tremer, os

dentes começaram a estalar umamensagem incompreensível emcódigo morse através do esqueletoe, enquanto isso, ele empurrou aporta do prédio de Eli e subiu as

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escadas. Será que eles tinham postoaquelas faixas em frente à porta deEli, para bloquear a porta?

Diga que eu posso entrar .A porta estava entreaberta.Se a polícia esteve aqui, por que

eles iam deixar a porta aberta? Nãoagiam desse modo, certo? Pôs osdedos na maçaneta, empurrou comcuidado a porta e entrou no corredorna ponta dos pés. Estava escuro alidentro. Seu pé bateu em algumacoisa. Uma garrafa de plástico.Primeiro achou que havia sangue nagarrafa, depois viu que era uma

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dessas coisas para fazer fogo.Respiração.Alguém estava respirando.E se mexia.O barulho veio do corredor perto

do banheiro. Oskar prosseguiu, umpasso cauteloso de cada vez, dobrouos lábios para dentro para calar osdentes e a tremedeira desceu para oqueixo, para o pescoço, dava puxõesem seu pomo-de-adão incipiente.Ele dobrou a quina da parede eolhou para dentro do banheiro.

Esse aí não é um policial .Um homem vestido de roupas

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gastas estava de joelhos junto docanto da banheira com o troncoinclinado sobre ela, fora do campode visão de Oskar. Ele viu apenascalças sujas na cor cinza, doissapatos muito velhos com a pontados dedos virada para o piso delajotas. A bainha de um sobretudo.

O coroa!Mas ele … está respirando .É. Um chiado de inspiração e

expiração, quase igual a suspiros,vinha do banheiro e, sem pensarmuito, Oskar foi de mansinho paramais perto. Pouco a pouco, ele foi

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vendo mais do banheiro e, quase ládentro, Oskar viu o que estavaacontecendo.

Lacke não aguentou.O corpo no fundo da banheira

parecia totalmente débil. Nãorespirava. Lacke tinha posto a mãono peito dele e constatado que ocoração batia, mas apenas algumasbatidas por minuto.

Ele tinha esperado algo…medonho. Algo que fosse na mesmamedida do horror que vivera no

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hospital. Mas essa criaturinhaensanguentada parecia que nuncamais ia poder se levantar de novo,muito menos machucar alguém. Erasó uma criança. Uma criançamachucada.

Era como ver alguém que a genteama definhando de câncer e depoisver uma célula cancerígena nomicroscópio. Nada. Isso aí ? Foiisso aí que fez isso tudo? Essacoisinha.

Destrua meu coração .Ele soluçou, a cabeça caiu e

acabou batendo no canto da

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banheira, produzindo um baquesurdo que fez eco. Ele não podia.Matar uma criança. Uma criançadormindo. Não dava.Independentemente de…

É assim que isso conseguesobreviver.

Isso. Isso. Não a criança. Isso .Isso se jogara em cima de

Virginia e… isso matara Jocke.Isso. A criatura que estava alideitada na frente dele. A criaturaque ia atacar de novo, outraspessoas. E essa criatura não era umser humano. Ela nem sequer

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respirava e, mesmo assim, ocoração batia como… se fosse ocoração de um animal emhibernação.

Pense nas outras pessoas .Uma cobra venenosa num lugar

onde mora gente. Será que não voumatá-la porque ela no momentoparece indefesa?

E, de qualquer jeito, não foi issoo que fez Lacke se decidir no final.Foi quando ele olhou para o rosto denovo; o rosto coberto por umapelícula de sangue e ele achou que acriatura exibia um… sorrisinho.

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Sorria para tudo de ruim quetinha feito.

Basta .Ele levantou a faca de cozinha no

alto do peito da criatura, afastou umpouco as pernas para poderconcentrar todo o peso dele naestocada e…

— aaaahhh!

Oskar gritou.O cara não pulou de susto, só

ficou petrificado, virou a cabeçapara Oskar e disse lentamente: —

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Eu tenho que fazer isso. Entende?Oskar reconheceu o homem. Um

dos pés de cana que moravam noconjunto, costumava cumprimentá-lo de vez em quando.

Mas o que ele está fazendo aqui?Não tinha importância. O que

importava é que o cara tinha umafaca na mão, uma faca que apontavapara o peito de Eli, nu e exposto nabanheira.

— Não faça isso.A cabeça do cara foi para a

esquerda e para a direita, pareciamais estar procurando alguma coisa

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no chão que uma negação.— Não…Ele se virou de novo para a

banheira, para a faca. Oskar queriater podido explicar. Que aquele alina banheira era o amigo dele, queera o… que ele tinha um presentepara aquela pessoa ali na banheira,que… que era Eli .

— Espere um minuto.A ponta da faca estava de novo

em cima do peito de Eli, tãopressionada que quase furava a peledele. Oskar não sabia na verdade oque estava fazendo quando enfiou a

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mão no bolso do casaco paraapanhar o cubo e mostrou obrinquedo ao cara.

— Olhe!Lacke viu o cubo apenas de

soslaio e o brinquedo pareceu umainvasão súbita de cores no meio detodo aquele negro e cinza que oenvolvia. Apesar da bolha dedeterminação em volta de Lacke,ele não pôde deixar de virar acabeça para aquele lado, olhar o queera.

Esse cubo na mão do menino.Cores alegres.

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Parecia uma coisa totalmentelouca naquele meio. Um papagaiono meio de gralhas. Por um instante,ficou como que hipnotizado pelaprofusão de cores do brinquedo,depois voltou os olhos para abanheira de novo, para a faca quedescia na direção das costelas.

Eu só preciso … furar …Um raio.Os olhos da criatura estavam

abertos.Ele contraiu o corpo para enfiar a

faca e sua têmpora explodiu.

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O cubo fez um estalo quando um

dos cantos do brinquedo bateu nacabeça do cara voando da mão deOskar. O sujeito caiu de lado,acabou em cima de um garrafão deplástico que deslizou e entrou pelocanto da banheira, produzindo umestrondo igual ao de um bumbo.

Eli sentou-se.Da porta do banheiro, Oskar só

conseguiu ver a parte de trás docorpo dele. Seu cabelo estavalambuzado e achatado na nuca esuas costas, cheias de feridas.

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O homem tentou se levantar; masEli, que mais caiu do que saltou dabanheira, acabou em seu colo; umacriança no colo do pai em busca deconsolo. Eli passou os braços emvolta do pescoço do homem epuxou-lhe a cabeça para mais pertocomo se fosse dizer alguma coisacarinhosa em seu ouvido.

Oskar saiu de costas do banheirona hora em que Eli fincou os dentesno pescoço do homem. Eli não tinhavisto Oskar. Mas o homem o viu. Oolhar dele parou em Oskar, não olargava, enquanto o menino foi

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andando de costas para o corredor.— Desculpe.Oskar não conseguiu produzir o

som mas os lábios formaram apalavra, antes de ele dobrar a quinada parede e o contato com os olhosdo outro ser interrompido.

Ele estava com a mão namaçaneta da porta quando o homemgritou. Depois o som desapareceusubitamente, como se tivessem lhetapado a boca.

Oskar hesitou. Depois fechou aporta. E trancou o banheiro.

Sem olhar para a direita,

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atravessou o corredor e entrou nasala.

Sentou-se na poltrona.Começou a cantarolar baixinho

para abafar o barulho do banheiro.

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QUINTA PARTE

Deixa ela entrar

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Hoje emdia essa é minhaúnica chance de

protestar …Bob Hund

(grupo sueco derock), “Ensom

stretar emot”Let the

right one in Letthe old dreams

die Let thewrong ones go

They cannot doWhat you want

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them to doMorrissey,

“Let the rightone slip in”

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TRECHO DO NOTICIÁRIODAGENS EKO, ÀS 16H45,SEGUNDA-FEIRA, 9 DE

NOVEMBRO DE 1981

O chamado assassino ritual foi preso pela

polícia na manhã de segunda-feira. O homemestava no porão de um prédio em Blackeberg,na parte oeste de Estocolmo. Com a palavra, oporta-voz da polícia, Bengt Lärn:

— A informação é correta, uma pessoa foipresa.

— Vocês têm certeza de que é a pessoaprocurada?

— Bastante. No entanto, alguns fatoresdificultam sua identificação.

— Que fatores são esses?— Infelizmente não posso fazer nenhum

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comentário a respeito no momento.Depois da prisão, o homem foi levado para

o hospital. Seu estado é considerado muitograve.

Junto com o homem havia um menino dedezesseis anos. O menino não apresentavaferimentos no corpo, mas estava muitochocado e foi levado para o hospital, onde seencontra em observação.

A polícia investiga agora os arredores paracoletar mais informação sobre como tudoaconteceu.

O rei Carl Gustaf inaugurou hoje a novaponte que atravessa o estreito de Almö emBohuslän. No discurso de inauguração…

TRECHO DO RELATÓRIO DO

PROFESSOR

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DR. T. HALLBERG,SOLICITADO PELA POLÍCIA

… exame preliminar foi dificultado…

contrações musculares de naturezaespasmódica… estímulo não localizável dosistema nervoso central… atividade cardíacasuspensa…

Os movimentos musculares cessaram às14h25… a autópsia mostra sinais antesdesconhecidos… órgãos internosextremamente deformados…

A enguia que morta e esquartejada pula nafrigideira… nunca antes observado em tecidohumano… solicito poder ficar com o corpo…atenciosamente…

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TRECHO DO JORNALVÄSTERORT, SEMANA 46

quem matou nossos gatos?— A única coisa que sobrou dela foi a

coleira — diz Svea Nordström, e abre o braçopara mostrar o prado coberto de neve derretidaonde foram encontrados a gata dela e mais oitogatos de moradores das redondezas…

TRECHO DO NOTICIÁRIO

AKTUELLT, SEGUNDA-FEIRA, 9DE NOVEMBRO, ÀS 21H

A polícia entrou agora à noite no

apartamento que parece ter sido do chamado

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assassino ritual, que foi preso na manhã dehoje.

Uma informação da população ajudou apolícia a localizar por fim a moradia emBlackeberg, a uns cinquenta metros do lugaronde o homem foi preso.

Nosso repórter, Folke Ahlmarker, está agorano local:

— Os enfermeiros estão neste exatomomento trazendo para fora o corpo de umhomem que foi encontrado morto noapartamento. A identidade do homem ainda édesconhecida. Parece que, de resto, oapartamento está totalmente vazio. Pelo visto,há indícios de que mais pessoas estiveram nolocal recentemente.

— O que a polícia está fazendo agora?— Percorremos os arredores o dia inteiro e

batemos nas portas de moradores dessa área,mas ainda não sabemos se surgiu algum dado

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novo por esse método.— Obrigado, Folke.A ponte Tjörn, que ficou pronta seis

semanas antes do prazo estipulado, já pôde serinaugurada hoje pelo rei Carl Gustaf…

Segunda-feira, 9 denovembro

Uma luz pisca-pisca azul no tetodo quarto.

Oskar está deitado com as mãoscruzadas atrás da cabeça.

Debaixo da cama há duas caixas

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de papelão. Uma está com dinheiro,um monte de cédulas, e duasgarrafas de álcool combustível; aoutra está cheia de quebra-cabeças.

A caixa com roupas ficou paratrás.

Para esconder as caixas, Oskarpôs o jogo de hóquei atravessado nafrente delas. Amanhã ele as levarápara o porão, se aguentar. A mãeestá vendo televisão, exclamaalguma coisa sobre o prédio deles,que está aparecendo no noticiário.Mas ele só precisa se levantar e iraté a janela para ver a mesma coisa,

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só que de um outro ângulo.

Oskar jogou as caixas da sacada

de Eli para a sacada dele quandoainda estava claro lá fora, enquantoEli se lavava. Quando ele saiu dobanheiro, as feridas em suas costasestavam cicatrizadas e Eli pareciaembriagado do álcool no sangue.

Ficaram deitados um ao lado dooutro na cama, abraçados. Oskarcontou o que acontecera no metrô.Eli disse: — Desculpe. Por eu tercomeçado isso tudo.

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— Tudo bem.Silêncio. Bem longo. Em seguida

Eli perguntou, com jeito: — Vocêgostaria de… virar o que eu sou?

— … não. Eu queria ficar comvocê, mas…

— É. É claro que você não quer.Eu entendo muito bem.

Quando estava anoitecendo, elesfinalmente se levantaram e sevestiram. Estavam abraçados nasala quando ouviram a serra.Estavam serrando a fechadura.

Correram para a sacada, pularama grade e aterrissaram suavemente

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nos arbustos lá embaixo.De dentro do apartamento,

ouviram alguém dizer: — Mas quediabos…

Ficaram encolhidos embaixo dasacada. Mas não havia tempo.

Eli virou o rosto na direção dorosto de Oskar e disse: — Eu…

Fechou a boca. Colou em seguidaum beijo nos lábios de Oskar.

Durante alguns segundos, Oskarviu o que havia dentro dos olhos deEli. E o que viu foi… ele mesmo.Só que muito mais bacana, maisbonito, mais forte do que ele mesmo

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achava que era. Visto com amor.Durante alguns segundos.

Vozes no apartamento ao lado.A última coisa que Eli fez quando

eles tinham se levantado foiarrancar da parede a folha com ocódigo morse. Agora sons de pésestranhos andando para lá e para cáno quarto onde Eli mandara asmensagens para ele.

Oskar encosta a palma da mão naparede.

— Eli…

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Terça-feira, 10 de novembro

Oskar não foi à escola na terça.Ficou deitado ouvindo os barulhosdo outro lado da parede, queriasaber se eles tinham encontradoalguma coisa que pudesse levar atéEli. Lá pela parte da tarde, nãoouviu mais nada e eles ainda nãotinham chegado.

Então Oskar se levantou, vestiu-se e foi para o prédio de Eli. A porta

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do apartamento estava lacrada.Proibido entrar. Enquanto estava aliolhando, um policial subia pelaescada. Mas ele era só um garotocurioso da vizinhança.

Quando estava escurecendo láfora, Oskar carregou as caixas parao porão e pôs um tapete velho emcima delas. Precisava decidir maistarde o que fazer com elas. Sealgum ladrão arrombasse odepósito, com certeza ficaria feliz.

Oskar ficou bastante tempo noescuro do porão, pensando em Eli,em Tommy, no coroa. Eli contara

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tudo; não era sua intenção que ascoisas acabassem daquele jeito.

Mas Tommy estava vivo. Ia ficarbom de novo. A mãe dele disserapara a mãe de Oskar. Ele ia receberalta e ir para casa amanhã.

Amanhã.Amanhã Oskar iria para a escola

de novo.Para Jonny, Tommy, para…A gente vai ter que treiná-lo de

novo.Os dedos frios e rígidos de Jonny

em sua bochecha. Apertando a carnemacia no maxilar até a boca de

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Oskar se abrir contra a vontade.Grite que nem um porco .Oskar cruzou os dedos, ficou com

o rosto encostado neles e olhou parao montinho que o tapete formavaem cima das caixas. Levantou-se,arrancou o tapete e abriu a caixacom dinheiro.

Cédulas de mil, de cem, jogadassem ordem, alguns maços. Enfiou amão na caixa e revirou o dinheiroaté achar uma das garrafas deplástico. Depois subiu para oapartamento e apanhou fósforos.

Um refletor solitário espalhava

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uma luz branca e fria no pátio daescola. Fora do alcance da luz,viam-se os contornos de brinquedosde parque. As mesas de pingue-pongue, tão rachadas que eraimpossível jogar algo ali além debolas de tênis, estavam cobertas deneve derretida.

Algumas janelas da escolaestavam com a luz acesa. Cursosnoturnos. Por causa deles, uma dasportas laterais também estavaaberta.

Procurou pelos corredores semluz e conseguiu achar sua sala.

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Ficou olhando para as carteiras porum tempo. A sala de aula pareciairreal assim de noite; como se osfantasmas sussurrando em silêncio ausassem para a aula deles , e sabe-selá como era uma aula dessas.

Ele foi até a carteira de Jonny,abriu a tampa e borrifou nela algunsdecilitros de álcool. A mesma coisana carteira de Tomas. Depois foi sesentar em sua carteira. Deixou olíquido ser absorvido. Do jeito quese costuma fazer com carvão dechurrasco.

Eu sou um fantasma . Buuu …

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buuu …Abriu a tampa da carteira,

apanhou o livro A incendiária ,sorriu para o título e guardou-o namochila. O livro de sueco onde eleescrevera uma história de quegostava. A caneta favorita. Paradentro da mochila. Depois selevantou, deu uma volta pela sala deaula e sentiu prazer em estar ali. Empaz.

Havia um cheiro de produtoquímico na carteira de Jonnyquando Oskar levantou a tampa denovo. Apanhou os fósforos.

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Não , espere aí .Foi apanhar duas réguas grandes

de madeira da prateleira lá no fundoda sala. Usou uma régua para deixara tampa da carteira de Jonnylevantada, usou a outra na carteirade Tomas. Senão o fogo se apagariaassim que ele largasse a tampa.

Dois animais pré-históricos,famintos, de boca aberta esperandocomida. Dragões.

Ele acendeu um fósforo e osegurou até a chama ficar grande eclara. Soltou-o em seguida. Ele caiuda sua mão, uma gota amarela, e…

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vrum Merd …Os olhos arderam quando uma

caudinha de cometa saiu da carteira,lambeu o rosto dele. Ele recuou;tinha achado que ia pegar fogo quenem… que nem carvão dechurrasco, mas a carteira seinflamou, virou uma labaredagrande e solitária que subia para oteto.

Fogo demais.A luz dançava, bruxuleava nas

paredes da sala de aula, e umaguirlanda com letras de papelpendurada no alto da carteira de

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Jonny se soltou e caiu com o “P” e o“Q” em chamas. A outra metade daguirlanda balançou no ar fazendoum arco grande e as chamas caíramna carteira de Tomas, que seincendiou imediatamente.

vrum Estampidos e Oskar correupara fora da sala com a mochila daescola batendo em seu quadril.

Imagine se a escola toda …Quando chegou ao final do

corredor, os sinais dispararam. Umgrito metálico encheu o prédio e foisó quando ele já descera um bompedaço da escada que entendeu que

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era o alarme de incêndio.Lá fora, no pátio, o sinal grande

tocou irritado, chamando os alunosque não estavam lá, reunindo osfantasmas da escola. O sinalacompanhou Oskar na metade docaminho para casa.

Oskar só relaxou quando chegouao antigo supermercado Konsum eparou de ouvir o sinal. Prosseguiucalmamente para casa.

No espelho do banheiro, viu queas pontas dos seus cílios estavamcrespas, queimadas. Quando passouo dedo nos cílios, as pontas caíram.

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Quarta-feira, 11 denovembro

Oskar não foi à escola. Dor decabeça. O telefone tocou por voltadas nove horas. Ele não atendeu. Dedia, da janela viu Tommy e a mãedele passando lá fora. Tommyandava um pouco encurvado àfrente, devagar. Igual a uma pessoaidosa. Oskar se agachou debaixo doparapeito da janela quando eles

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passaram.O telefone tocava de hora em

hora. Por fim, por volta do meio-dia, ele atendeu.

— Alô, aqui é Oskar.— Olá. Meu nome é Bertil

Svanberg e, como você já devesaber, sou o diretor da escolaonde…

Ele bateu o telefone. O telefonetocou de novo. Oskar ficou olhandopara o aparelho que tocou por umtempo, imaginou o diretor de ternoquadriculado tamborilando osdedos, fazendo caretas. Depois se

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vestiu e desceu para o porão.Ficou brincando com os quebra-

cabeças e remexeu na caixinhabranca de madeira onde brilhavamas centenas de pedacinhos do ovo devidro. Eli só levara algumas cédulasde mil e o cubo. Ele fechou a caixacom quebra-cabeças, abriu a outra,enfiou a mão lá dentro e remexeunas cédulas que farfalhavam.Apanhou um punhado delas e asjogou no chão. Enfiou-as no bolso.Tirou uma por uma do bolso ebrincou de “Pojken medguldbyxorna ”[15] até se cansar.

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Doze notas de mil amassadas e setenotas de cem estavam aos seus pés.

Empilhou as notas de mil edobrou o monte. Guardou de novoas notas de cem e fechou a caixa.Subiu para o apartamento, procurouum envelope branco e guardou neleas notas de mil. Com o envelope namão, ficou pensando em como faria.Não queria escrever; alguém podiareconhecer sua letra.

O telefone tocou.Pare de tocar . Entenda que eu

não existo .Alguém queria ter uma conversa

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séria com ele. Alguém queriaperguntar se ele entendia o quefizera. Entendia muito bem. Jonny eTomas também entendiam. Muitobem. Isso não era assunto deconversa.

Ele foi para a escrivaninha eapanhou as letras de decalque. Nomeio do envelope colou um “T” eum “O”. O primeiro “M” ficoutorto, mas o outro ficou direito.Assim como o “Y”.

Ao abrir a porta do prédio deTommy com o envelope no bolso docasaco, ele estava com mais medo

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que na noite anterior na escola. Comcuidado e com o coração batendoforte, enfiou sem fazer barulho oenvelope pela porta de Tommy deforma que ninguém ouvisse e fosseaté a porta ou o visse pela janela.

Mas ninguém veio e, de volta aoapartamento, ele se sentiu um poucomelhor. Por um tempo. Até aquilochegar de mansinho de novo.

Não devo … ficar aqui .Às três horas a mãe chegou em

casa, algumas horas antes do que onormal. Oskar estava então na salaouvindo o disco dos Vikings. Ela

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apareceu na sala, levantou a agulhae desligou o toca-discos. Por suacara, ele imaginou que ela já sabia.

— Como você está?— Mais ou menos.— É…Ela deu um suspiro e sentou-se no

sofá.— O diretor da escola me ligou.

No trabalho. Ele contou que…houve um incêndio ontem à noite.Na escola.

— É? Ficou tudo queimado?— Não, mas…Ela fechou a boca e ficou olhando

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o tapete da sala por uns segundos.Em seguida, levantou os olhos eencontrou os dele.

— Oskar. Foi você?Ele olhou bem nos olhos dela e

disse: — Não.Pausa.— O.k., porque pelo visto muita

coisa ficou destruída na sala deaula, mas… as carteiras do Jonny edo Tomas… parece que o incêndiocomeçou nelas.

— Sei.— E pelo visto eles tinham

bastante certeza de que… de que foi

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você.— Mas não fui eu.A mãe continuou no sofá.

Estavam sentados a um metro dedistância um do outro, umadistância infinita.

— Eles querem… falar com você.— Eu não quero falar com eles.E a noite seria longa. Nada de

bom na tv.

De noite, Oskar não conseguiu

dormir. Saiu da cama e foi na pontados pés para a janela. Achou que

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havia alguém sentado no trepa-trepalá embaixo no parquinho. Mas erasó fruto da sua imaginação, é claro.Ainda assim, continuou olhandopara a sombra lá embaixo até suaspálpebras ficarem pesadas.

Na cama de novo, mesmo assim,ele não conseguiu dormir. Comcuidado, bateu na parede. Nenhumaresposta. Apenas o som seco daspróprias pontas dos dedos, do nódos dedos no cimento batendo numaporta fechada para sempre.

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Quinta-feira, 12 denovembro

Oskar vomitou de manhã e ficouem casa por mais um dia. Emborasó tivesse dormido algumas horasde noite, não conseguiu descansardurante o dia. Era uma afliçãoconstante no corpo que não deixavaOskar parar quieto, ficou andandode lá para cá no apartamento.Apanhava as coisas, olhava paraelas e as punha de volta no lugar.

Era como se houvesse algumacoisa que ele tinha que fazer.

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Alguma coisa absolutamentenecessária para ele fazer. Mas elenão conseguia entender o que era.

Ele tinha achado na hora que eraisso , quando queimou as carteirasde Jonny e Tomas. Depois ele tinhaachado que era isso quando deixou odinheiro para Tommy. Mas não eraisso . Era outra coisa.

Uma grande peça de teatro queagora chegara ao fim. Ele andava delá para cá no palco apagado e vazio,catando o que tinha sido esquecido.Quando na verdade era outra coisa…

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Mas o quê?Quando o correio chegou por

volta das onze, só veio uma carta.Seu coração pulou pela boca quandoele apanhou a correspondência evirou o envelope.

Era para a mãe. No canto superiordireito do envelope estavacarimbado “Diretoria das escolas deSödra Ängby”. Sem abrir a carta,ele a rasgou em mil pedaços, jogou-a no vaso sanitário e deu descarga.Arrependeu-se. Tarde demais. Elenão ligava para o que estava nacarta, mas tudo ficaria mais

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complicado se ele se intrometessedaquele jeito do que se ele deixassepara lá.

Mas não tinha importância.Ele se despiu e vestiu o roupão de

banho. Ficou na frente do espelhodo corredor se examinando. Fingiuque era outra pessoa. Foi à frentepara beijar o vidro do espelho. Nomesmo instante em que seus lábiostocaram a superfície fria, o telefonetocou. Sem pensar muito, elelevantou o fone. — Sou eu.

— Oskar? Oi, aqui é Fernando.— Quem?

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— Ávila. Professor Ávila.— Tudo bem. Oi.— Só liguei para saber se você…

vem para o treino hoje à noite?— Eu estou… um pouco doente.Silêncio no outro lado da linha.

Oskar podia ouvir a respiração doprofessor. Uma. Duas. Depois: —Oskar, se você fez aquilo. Ou nãofez. Isso não é da minha conta. Sevocê quiser conversar, nosotrosconversamos. Se você não quiserconversar, todo bien. Mas quieroque você venha para o treino.

— Mas… por quê?

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— Porque você não pode ficarsentado aí como un caracol. Naconcha. Se você não está enfermoentão você vai quedar enfermo.Você está enfermo?

— … estou.— Entonces hay que exercitarse

fisicamente. Você vem hoy à noche.— E os outros?— Os outros? O que são os

outros? Se eles fizerem algumacoisa, eu digo buuu e eles param.Mas eles não vão fazer nada. Vai sertreino.

Oskar não respondeu.

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— Combinado? Vienes?— Vou…— Ótimo. Hasta más tarde.Oskar pôs o fone no gancho e fez-

se silêncio ao seu redor de novo.Não queria ir para o treino. Masqueria ver o professor. Podia chegarum pouco mais cedo, se o professorjá estivesse lá. Depois iria para casaquando estivesse na hora.

Não que o professor fosse aceitarisso, mas…

Deu mais algumas voltas peloapartamento. Preparou a sacola dotreino, mais para ter alguma coisa

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que fazer. Que sorte que ele nãopusera fogo na carteira de Micke, jáque o menino podia aparecer notreino. Mas talvez a carteira deletenha ficado destruída de qualquerjeito, já que ficava ao lado dacarteira de Jonny. Afinal, quantacoisa ficou mesmo destruída?

Alguém a quem ele pudesseperguntar…

Às três horas o telefone tocou denovo. Oskar hesitou, mas, depoisdaquele raio de esperança quesurgiu nele quando viu o envelopesolitário, não conseguiu deixar de

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atender.— Sim? Oskar.— Oi, sou eu, Johan.— Oi.— Que tal?— Mais ou menos.— Quer fazer alguma coisa hoje

de noite?— De noite… quando?— Bem… por volta das sete, por

aí.— Não dá. Eu vou para o…

treino.— Sei. Tudo bem. Uma pena.

Tchau.

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— Johan?— Sim?— Eu… fiquei sabendo que

houve um incêndio. Na sala de aula.Foi… muita coisa que ficoudestruída?

— Não. Só umas carteiras.— Mais nada?— Bem… uns papéis, coisas

desse tipo.— O.k.— Sua carteira se salvou.— O.k. Que bom.— O.k. Tchau.— Tchau.

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Oskar pôs o fone no gancho comuma sensação estranha no peito.Tinha achado que todos sabiam queera ele. Mas não é o que pareciapela voz de Johan. E a mãe tambémdissera que muita coisa estavadestruída. Mas ela podia terexagerado, é claro.

Oskar resolveu acreditar emJohan. Pois ele tinha visto a sala,apesar de tudo.

— Argh…Johan pôs o fone no gancho e

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olhou ao redor, perdido. Jimmysacudiu a cabeça e soprou a fumaçada janela aberta do quarto de Jonny.

— Foi a pior coisa que já ouvi.Fazendo voz de coitadinho, Johan

disse: — Não é fácil.Jimmy se virou para Jonny, que

estava sentado na cama esfregandoentre os dedos as franjas da colchade cama.

— Como foi? Queimou a metadeda sala de aula?

Jonny balançou a cabeçaconfirmando. — Todos da turma oodeiam agora.

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— E você disse… — Jimmyvirou-se para Johan de novo —disse que… o que foi mesmo quevocê disse? “Uns papéis.” Vocêacha que ele caiu nessa?

Johan baixou a cabeçaenvergonhado.

— Eu não sabia o que dizer.Achei que ele ficaria… desconfiadose eu dissesse que…

— O.k., tudo bem. Agora já estáfeito. Agora é só esperar que eleapareça.

Johan olhou para Jonny e Jimmy,Jimmy e Jonny. Os dois estavam

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com o olhar vazio, já viam na frentedeles as imagens de logo mais ànoite.

— O que vocês estão planejandofazer?

Jimmy se inclinou para a frentesentado na cadeira, limpou umpouco das cinzas que tinham caídona manga da sua camisa e dissedevagar: — Ele queimou. Tudo oque a gente tinha do nosso pai.Então você não precisa… sepreocupar muito com o que a gentevai fazer. Certo?

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A mãe chegou por volta da seis.

A mentira, a falta de confiança danoite anterior ainda pairavam no arcomo uma névoa fria entre eles. Amãe foi direto para a cozinha ecomeçou a bater a louça semnecessidade. Oskar fechou a portado quarto. Deitou-se na cama eficou olhando para o teto.

Ele podia ir. Para o pátio lá fora.Descer para o porão. Ir para a praça.Pegar o metrô. Mas, mesmo assim,não havia nenhum lugar… nenhumlugar onde ele… nada.

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Ele ouviu que a mãe foi para otelefone e discou um número commuitos algarismos. Provavelmente odo pai.

Oskar sentiu um pouco de frio.Cobriu-se com o cobertor,

sentou-se com a nuca encostada naparede, ficou ouvindo o som daconversa entre a mãe e o pai. Se elepudesse falar com o pai. Mas elenão podia. Nunca adiantou.

Oskar se enrolou no cobertor.Fingiu que era um chefe apache,nada o abalava, enquanto a voz damãe ficou mais alta. Depois de um

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tempo, ela começou a gritar e ochefe apache caiu na cama, apertouo cobertor e as mãos nos ouvidos.

É tão silencioso dentro dacabeça. É o… espaço sideral.

Oskar transformou os riscos, ascores, as bolinhas na frente dosolhos em planetas, sistemas solaresdistantes nos quais ele viajava.Aterrissou em cometas, voou umpouco com eles, saltou e ficouflutuando no espaço até alguémpuxar o cobertor e ele abrir osolhos.

A mãe estava ali. Os lábios

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retorcidos. A voz entrecortadaquando ela disse: — Então é assim.Seu pai contou agora… que ele…no sábado… que ele… por ondevocê andou, hein? Onde foi queesteve? Você pode responder?

A mãe arrancou o cobertor, bemperto do rosto dele. Sua gargantatinha esticado e virado uma cordagrossa e dura.

— Agora você não vai mais lá.Nunca mais. Está me ouvindo? Porque você não disse nada? Aquele…safado. Gente como essa não deviater filhos. Ele não vai mais se

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encontrar com você. Assim ele podeficar lá longe enchendo a cara comobem entender. Está me ouvindo? Agente não precisa dele. Estou tão…

A mãe se virou de supetão e seafastou da cama, bateu tão forte aporta que as paredes estremeceram.Oskar ouviu como ela discourapidamente o número grande denovo, praguejou quando perdeu umalgarismo e recomeçou. Algunssegundos depois de ela ter discado oúltimo algarismo, começou a gritarde novo.

Oskar saiu de dentro do cobertor,

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pegou a sacola do treino e foi para ocorredor onde a mãe estava tãoocupada em gritar com o pai quenão percebeu quando ele calçou asbotinas de mansinho e, sem amarrá-las, foi para a porta da rua.

Foi só quando ele já estava naescada que ela viu o filho.

— Oskar! Para onde é que vocêestá indo?

Oskar bateu a porta e desceucorrendo as escadas. Continuoucorrendo para a piscina municipalcom as solas tamborilando no chão.

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— Roger e Prebbe…Jimmy apontou com o garfo

plástico para os dois que tinhamsaído do metrô. A porção de saladade camarão que acabara de comerdo tunnbrödsrulle ficou presa emsua garganta e ele foi obrigado aengolir mais uma vez para fazê-ladescer. Lançou um olharinterrogativo para o irmão, mas aatenção de Jimmy estava voltadapara os dois que vinham com umandar gingado para a barraca defast-food e cumprimentaram.

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Roger era magro, tinha um cabelocomprido e bagunçado, usavacasaco de couro. A pele do seu rostoera esburacada com centenas decrateras pequenas e parecia terencolhido, já que os ossos debaixodela eram nitidamente salientes e osolhos pareciam grandes demais.

Prebbe vestia uma jaqueta jeanscom as mangas cortadas e debaixodela uma camiseta e só isso, emboraa temperatura estivesse apenasalguns graus acima de zero. Eragordo. Inchado por todos os lados,cabelo cortado rente. Um caçador de

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montanha que perdera a forma.Jimmy lhes disse alguma coisa,

apontou e eles foram na frente emdireção à estação dostransformadores no alto dos trilhosdo metrô. Jonny cochicou: — Porque... eles vieram?

— Para ajudar, é claro.— É necessário?Jimmy deu um risinho e sacudiu

a cabeça como se Jonny nãoentendesse nem um pouco como ascoisas funcionavam.

— E o que você pensou em fazercom o professor?

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— Com Ávila?— É. Você acha que ele vai

deixar a gente aparecer por lá…hein?

Para isso Jonny não tinharesposta, então foi com o irmão paratrás da casinha de tijolos. Roger ePrebbe ficaram na sombra com asmãos nos bolsos batendo com os pésno chão, Jimmy tirou do bolso docasaco uma cigarreira prateada,abriu-a e ofereceu o conteúdo paraos dois.

Roger estudou os seis cigarrosfeitos à mão dentro dela e disse: —

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Já estão enrolados, a gente só podeagradecer — e apanhou para si comdois dedos finos o mais grossodeles.

Prebbe fez uma careta e ficouparecendo um daqueles bonecos queficam na sacada nos Muppets. —Perdem o efeito se ficam guardados.

Jimmy meneou a cigarreiraconvidativo e disse: — Parece umamulherzinha. Enrolei os cigarros háuma hora. E isso aqui não é esselixo marroquino que você costumausar. Isso aqui é material deprimeira.

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Prebbe bufou e pegou um doscigarros, conseguiu fogo de Roger.

Jonny olhou para o irmão. O rostode Jimmy era uma silhueta bemdefinida com a luz no fundo quevinha da plataforma do metrô.Jonny admirava o irmão. Ele seperguntava se algum dia ia ficar quenem ele e ter coragem de dizer“parece uma mulherzinha” para umcara que nem Prebbe.

O próprio Jimmy apanhou umcigarro e o acendeu. O papelenrolado na ponta do cigarro ficouqueimando por um instante até virar

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brasa. Ele tragou profundamente eJonny foi envolvido pelo cheiroadocicado que sempre estava nasroupas de Jimmy.

Fumaram em silêncio por umtempo. Depois Roger estendeu ocigarro para Jonny.

— Quer dar uma pitada?Jonny estava prestes a estender a

mão para apanhar o cigarro, masJimmy deu um tapa no ombro deRoger.

— Idiota. Você quer que ele fiqueigual a você, hein?

— Seria bacana.

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— Para você. Não para ele.Roger deu de ombros e retirou o

convite.Às seis e meia todos tinham

acabado de fumar e, quando Jimmyfalou, ele o fez com uma clarezaexagerada, cada palavra umaescultura complicada que sairia dasua boca: — O.k. Esse aqui é…Jonny. Meu mano.

Roger e Prebbe balançaram acabeça mostrando que tinhamentendido. Jimmy segurou o queixode Jonny fazendo um movimentoum pouco desajeitado, virou sua

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cabeça de perfil para mostrá-lo aosoutros dois.

— Olhem o ouvido dele. Foi issoo que ele fez. É desse sujeito que agente vai… cuidar.

Roger deu um passo à frente,espiou a orelha de Jonny e estaloulíngua: — Que merda… Está umhorror.

— A gente não precisa… daopinião… de especialistas. Agoraprestem toda atenção.Vai serassim…

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Os portões no corredor entre asparedes de tijolos estavamdestrancados. Kaplof , kaplof ,faziam os sapatos de Oskar quandoele foi para a porta da piscinamunicipal e a abriu. O calor úmidoenvolveu seu rosto e uma nuvem devapor invadiu o corredor frio. Elese apressou para entrar e fechar aporta.

Tirou rapidamente os sapatos efoi para o vestiário. Vazio. Doschuveiros, o som de águaescorrendo, uma voz grave quecantava:

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Besame , besame muchoComo si fuera esta noche la

última vez …

O professor. Sem tirar o casaco,

Oskar sentou-se num dos bancos eficou esperando. Depois de umtempo, acabaram tanto o barulho deágua quanto a cantoria e o professorapareceu no vestiário com umatoalha enrolada no quadril. Seupeito era todo peludo, com cabelospretos e crespos, um poucogrisalhos. Oskar achou que ele

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parecia um ser de outro planeta. Oprofessou avistou Oskar e deu umamplo sorriso.

— Oskar! Então você salió de laconcha.

Oskar assentiu.— Já estava ficando um pouco…

apertado.O professor riu e coçou o peito;

as pontas dos seus dedosdesapareceram no meio da pelugemcrespa.

— Você veio cedo.— É, eu queria…Oskar encolheu os ombros. O

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professor parou de se coçar.— Você queria?— Sei lá.— Conversar?— Não, eu só…— Deixe-me olhar para você.O professor deu alguns passos

rápidos e ficou junto de Oskar,estudou o rosto dele e balançou acabeça. — O.k. Certo.

— O… quê?— Foi você. — O professor

apontou para os olhos de Oskar. —Estou vendo. Suas sobrancelhasestão queimadas. Não, qual é o

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nome disso mesmo? Embaixo. Cí…— …lios?— Cílios. Isso mesmo. Um pouco

ali no cabelo também. Ahã. Se vocênão quiser que ninguém lo sepa comcerteza, entonces você tiene quecortar un poco o cabelo. Los cí…lios crescem rápido. Na segunda-feira estará melhor. Gasolina?

— Álcool.O professor fez um assobio

silencioso e sacudiu a cabeça.— Muito perigoso.

Provavelmente… — O professortocou a têmpora dele com o dedo.

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— … você é um pouco loco. Nãomuito. Pero un poco. Por queálcool?

— Eu… achei a garrafa.— Achou? Mas onde?Oskar levantou os olhos para o

rosto do professor; uma pedraúmida, cheia de boa vontade. E elequis contar. Quis contar tudo. Sónão sabia por onde começar. Oprofessor estava esperando. Disseem seguida: — Brincar com fogo émuito perigoso. Pode virar umcostume. Não é um método bom.Atividade física é mucho mejor.

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Oskar balançou a cabeça e avontade desapareceu. O professorera legal, mas não ia entender.

— Agora você vai trocar de roupae eu vou mostrar umas técnicas coma barra, certo?

O professor se virou para ir aoescritório. Parou do lado de fora daporta.

— E Oskar. Não te quedespreocupado. No voy decir nada sevocê no quer. Combinado? Podemoshablar más depois do treino.

Oskar mudou de roupa. Quandoestava pronto, vieram Patrik e

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Hasse, dois garotos do 6º ano A.Cumprimentaram Oskar, mas omenino achou que os dois ficaramolhando um pouco demais para elee, quando entrou no local do treino,ouviu que um começou a cochicharcom o outro.

Ele sentiu-se mal. Arrependeu-sede ter vindo. Mas logo depois veio oprofessor, vestido de camisa ebermudas, e mostrou como eleconseguia levantar melhor a barrase a deixasse descansar na ponta dosdedos e Oskar conseguiu levantarvinte e oito quilos; dois quilos a

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mais do que na vez passada. Oprofessor anotou o novo recorde emseu livro.

Chegaram mais garotos, entreeles Micke. Ele deu aquele sorrisoenigmático, que podia significartanto dar um presente bonito paraalguém no próximo instante comofazer algo terrível com essa mesmapessoa.

Agora valia a última opção,mesmo que o próprio Micke nãoentendesse a amplitude da coisa.

No caminho para o treino, Jonnycorreu para alcançá-lo e pediu que

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Micke fizesse uma coisa, já queJonny queria fazer umabrincadeirinha com Oskar. Mickeachou que não havia nenhumproblema. Gostava de brincadeiras.Além disso, toda a sua coleção defigurinhas de hóquei tinha viradocinza na terça-feira à noite, entãoele ajudaria com o maior prazer afazer uma brincadeirinha às custasde Oskar.

Mas, por enquanto, ele estavasorrindo.

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O treino continuou. Oskar achouque os outros o olhavam de um jeitoesquisito, mas, assim que eletentava olhar em seus olhos, elesdesviavam o olhar. Ele teriapreferido ir para casa.

… não … ir …Ir embora, só isso.Mas o professor tomava conta

dele e o incentivava; não havia jeitode ir embora. Além disso, estar aquiera melhor que estar em casa.

Depois de terminado o treino,Oskar estava tão exausto que nemtinha forças de se sentir mal. Foi

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para os chuveiros, um pouco depoisdos outros, e tomou banho de frentepara a parede. Não porque tivessealguma importância. A gente tomabanho pelado de qualquer jeito.

Ficou por um tempo junto daparede de vidro entre ocompartimento dos chuveiros e apiscina, abriu com a mão um buracopara enxergar no vidro embaçado,ficou olhando para os outros quepulavam em volta da piscina, umcorrendo atrás do outro, jogandobolas. E aquilo veio de novo. Não naforma de um pensamento formulado

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com palavras, mas na forma de umsentimento avassalador: Eu estousozinho . Eu estou … totalmentesozinho .

Depois o professor o avistou eacenou para que ele entrasse, sejogasse na água. Oskar desceu bemdevagar a escada curta, foi para abeira da piscina e olhou para a águade um azul químico. Não tinhaânimo nem esperança, então foidescendo a escada da piscina, umpasso de cada vez, e deixou que aágua bem fria o envolvesse.

Micke estava sentado na beira da

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piscina, sorrindo e acenando com acabeça para ele. Oskar deu umasbraçadas para o outro lado, nadireção do professor.

— Ôôô!Ele viu de soslaio a bola que veio

voando um segundo mais tarde. Elacaiu dura na água bem na frente deOskar e o cloro da piscina respingouem seus olhos. Ardeu tanto que eleslacrimejaram. Esfregou os olhos e,quando olhou para cima, Oskar viupor acaso que o professor olhavapara ele com uma expressão de…compaixão?… no rosto.

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Ou de desprezo.Talvez fosse apenas fruto da sua

imaginação, mas Oskar bateu nabola, que oscilou bem na frente delee afundou. Afundou a cabeça naágua, o cabelo esvoaçante lhe faziacócegas nas orelhas. Estendeu osbraços ao lado do corpo e ficouboiando com o rosto sob asuperfície, o corpo oscilando com aágua. Fingiu-se de morto.

Fingiu que podia ficar boiandoeternamente.

Nunca mais ia precisar selevantar e encontrar os olhares

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daqueles que, no final das contas, sólhe desejavam coisas ruins. Oufingiu que o mundo, quando elelevantasse a cabeça, não existiriamais. Fingiu que havia só ele e umaimensidão azul.

Mas, mesmo com os ouvidosdebaixo d’água, podia ouvir o somdistante, as batidas do mundo à suavolta e, quando tirou o rosto daágua, é claro que o som estava ali;ecoando, gritando.

Micke tinha saído do lugar ondeestava na beira da piscina e osoutros estavam ocupados com uma

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espécie de voleibol. A bola brancavoou no ar, bem nítida contra onegro das janelas foscas no fundo.Oskar foi remando com as mãospara um canto na parte mais fundada piscina e ficou ali apenas com onariz fora d’água, olhando.

Micke veio rapidamente doschuveiros na outra ponta do salão eexclamou: — Professor! O telefoneestá tocando na sua sala!

O professor resmungou algumacoisa e contornou com passadasfirmes e largas a beira da piscina.

Acenou com a cabeça para Micke

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e desapareceu no vestiário. A últimacoisa que Oskar viu do professor foiuma silhueta vaga por trás do vidroembaçado.

Depois ele sumiu.

Assim que Micke deixou o

vestiário, eles assumiram suasposições.

Jonny e Jimmy entraramdiscretamente na sala de ginástica;Roger e Prebbe ficaram encolhidosna parede ao lado do batente daporta. Eles ouviram o chamado de

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Micke lá dentro da piscina eficaram preparados.

Passos macios de pés descalçosque se aproximavam e passarampela sala de ginástica e, algunssegundos mais tarde, o professorÁvila veio pela porta do vestiário efoi para a secretaria. Prebbe jáenrolara na mão duas meias brancascheias de moedinhas para ter maisfirmeza. Quando Ávila chegou àporta, de costas para ele, Prebbe deuum passo à frente e brandiu o pesoem direção à nuca do professor.

Prebbe não era muito ágil e o

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professor deve ter ouvido algumacoisa. Enquanto ele ainda girava ameia, o professor virou a cabeça delado e, em vez da nuca, o golpeacabou aterrissando acima da orelhadele. Mesmo assim, surtiu o efeitodesejado. O professor foi atirado umpouco torto para a frente, bateu acabeça no batente da porta e caiumole no chão.

Prebbe sentou-se em cima dopeito dele e enrolou o bolo pesadode moedas na palma da mão parapoder dar uma pancada maiscerteira se assim fosse necessário.

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Parecia não ser o caso. Os braços doprofessor tremeram um pouco, masele não fez nenhuma menção deoferecer resistência. Prebbe nãoachava que ele estava morto. Nãoparecia que estava.

Roger se aproximou para ver ocorpo caído como se nunca tivessevisto algo semelhante.

— Ele é turco, não é?— Sei lá. Apanhe as chaves.Enquanto Roger remexia na

bermuda do professor para pegar aschaves, viu que Jonny e Jimmytinham saído da sala de ginástica e

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foram para a piscina. Achou aschaves e experimentou uma a umana porta da secretaria, olhando deesguelha para o professor.

— Parece um macaco de tantocabelo que tem. Aposto que é turco.

— Ande logo.Roger fez um muxoxo e

continuou testando as chaves.— Só estou falando isso por sua

causa. A gente se sente um poucomelhor se…

— Esqueça isso agora. Andelogo.

Roger achou a chave certa e abriu

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a porta. Antes de entrar, apontoupara o professor e disse: — Vocênão devia ficar sentado nele dessejeito. Assim o cara não conseguerespirar.

Prebbe saiu de cima do peito dooutro e sentou-se ao lado do corpocaído com o peso a postos, casoÁvila fosse tentar alguma coisa.

Roger revirou os bolsos do casacoque encontrou na secretaria e achouuma carteira com trezentas coroasdentro. Numa gaveta daescrivaninha, cuja chave ele acharadepois de procurar um pouco, havia

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dez cupons novos de tíquetes demetrô. Ele os apanhou também.

Nada que enchesse os olhos. Masnão se tratava disso. Mera troca defavores.

Oskar ainda estava no canto da

piscina fazendo bolhas na águaquando Jonny e Jimmy apareceram.Sua primeira reação não foi demedo, mas indignação.

É que eles estavam de roupa,casaco e tudo o mais.

É, não tinham tirado nem os

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sapatos, e o professor, que era tãosevero com essas coisas…

Quando Jimmy foi para a beira dapiscina e começou a reconhecer oterreno, então veio o medo.Encontrara Jimmy algumas vezes,só superficialmente, e já naquelasvezes Oskar achou que ele davamedo. Agora, além disso, haviaalguma coisa com os seus olhos… ojeito como mexia a cabeça…

Como Tommy e aqueles carasquando…

Seus olhos se cruzaram e Oskarse deu conta, com um arrepio, de

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que estava… nu.Jimmy estava com roupas,

couraças. Oskar estava sentado naágua fria e cada centímetro da suapele estava exposto. Jimmy acenoucom a cabeça para Jonny, fez umsemicírculo com a mão e elescomeçaram a andar, um de cadalado da piscina, em direção a Oskar.Enquanto andava, Jimmy gritoupara os outros: — Fora daqui! Todomundo! Saiam da água!

Os outros estavam parados oubatendo os pés na água, indecisos.Jimmy ficou na beira da piscina,

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tirou do bolso da jaqueta umcanivete, abriu-o e apontou-o comose fosse uma flecha para oajuntamento de meninos. Deu umainvestida com o canivete na direçãoda beira da piscina no outro lado.

Oskar estava sentado encolhidono canto, olhando congeladoenquanto os outros meninosnadavam ou atravessavam rápidopara o outro canto, deixando-osozinho na piscina.

O professor … onde está oprofessor …

A mão de alguém segurou seu

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cabelo. Os dedos se entrelaçaramtanto no cabelo que fez arder ocouro cabeludo; sua cabeça foipuxada para trás até o canto dapiscina. No alto, ele ouviu a voz deJonny.

— Aquele ali é meu irmão. Seufilho da puta.

A cabeça de Oskar foi puxadapara trás algumas vezes e a águarespingou no seu ouvido enquantoJimmy foi para o canto da piscina ese agachou com o canivete na mão.

— Olá, Oskar.Mergulharam a cabeça de Oskar e

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ele começou a tossir. Cada vez quea cabeça sacudia com a tosse ocouro cabeludo ardia, no lugar ondeos dedos de Jonny seguravam commais força seu cabelo. Quando atosse acabou, Jimmy fez a lâminado canivete tilintar no ladrilho dabeira da piscina.

— Oskar, eu pensei numa coisa.Que a gente podia fazer umacompetiçãozinha. Fique bemquieto…

O canivete passou bem rente àtesta de Oskar na hora em queJimmy entregou a faca para Jonny e

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segurou seu cabelo no lugar doirmão. Oskar não ousava fazer nada.Ele tinha olhado durante algunssegundos nos olhos de Jimmy e elespareciam totalmente loucos. Tãocheios de ódio que nem dava paraolhá-los.

A cabeça de Oskar estavapressionada no canto da piscina.Seus braços se debatiam sem forçana água. Não havia nada em que sesegurar. Ele procurou os outrosmeninos. Todos estavam em pé nalateral da piscina, Micke era o maisafastado, ainda com aquele

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sorrisinho, na expectativa. Os outrospareciam estar com medo.

Ninguém ia ajudá-lo.— Bem, é assim… é bem

simples, o.k.? As regras sãosimples. Você vai ficar debaixod’água… durante cinco minutos. Sevocê conseguir, então a gente só fazum arranhão em sua bochecha oualgo desse tipo. Só vai ser umalembrancinha. Se você nãoconseguir, então… bem, quandovocê sair da água, eu furo um olhoseu. Combinado? Entendeu asregras?

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Oskar conseguiu tirar a boca daágua. Golfadas de água saíram doslábios quando ele disse com a vozentrecortada: — … não dá…

Jimmy sacudiu a cabeça.— O problema é seu . Está vendo

o relógio ali? Daqui a vintesegundos a gente vai começar.Cinco minutos. Ou o olho.Aproveite para respirar desde agora.Dez… nove… oito… sete…

Oskar tentou se projetar à frenteusando os pés, mas precisava ficarna ponta dos pés para pelo menosconseguir permanecer com a cabeça

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inteira fora d’água e a mão deJimmy segurava firmemente seucabelo, impossibilitando todos osseus movimentos.

Se eu conseguir soltar o cabelo… cinco minutos …

Quando ele fizera sozinho, tinhaconseguido três, no máximo. Quase.

— Seis… cinco… quatro…três…

O professor . O professor vaichegar antes de …

— Dois… um… zero!Oskar só teve tempo de encher

um pouco o pulmão de ar antes de a

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cabeça ser mergulhada. Perdeu oapoio dos pés e a parte inferior docorpo foi flutuando devagar paracima até ele ficar deitado comcabeça curvada no peito uns dez,vinte centímetros debaixo d’água, apele da sua cabeça ardeu que nemfogo quando a água com cloroentrou nas feridas e fissuras docouro cabeludo.

Não devia ter passado mais de umminuto quando veio o pânico.

Arregalou os olhos e viu tudoazul-claro… véus de rosa quedeslizavam da cabeça e passavam

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por seus olhos quando ele tentouresistir contraindo o corpo, emboranão fosse possível, pois não havianada em que pudesse se segurar.Suas pernas se debatiam lá em cimana superfície e o azul-claro nafrente dos olhos ficou encrespado,quebrou-se em ondas de luz.

Bolhas saíam da boca de Oskar eele abriu os braços, ficou flutuandode costas e os olhos foram atraídospelo branco, pelos raios oscilantesda luz fluorescente no teto. Ocoração pulsava igual a quando secola a mão numa janela de vidro e,

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quando aconteceu de a água entrarpor seu nariz, uma espécie de calmafoi se espalhando pelo corpo. Mas ocoração bateu mais forte, maisinsistente, queria viver, e ele sedebateu de novo desesperadamente,tentou segurar alguma coisa ondenão havia nada em que se segurar.

E a cabeça foi empurrada maisfundo. E estranhamente ele pensou:Melhor isso . Do que o olho .

Depois de dois minutos, Micke

começou a se sentir mal com aquilo.

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É que parecia que… que eles iammesmo… Olhou ao redor para osoutros garotos, mas ninguémparecia disposto a fazer algumacoisa e ele mesmo só falou meiopara dentro: — Jonny… mas quediabos…

Mas Jonny pareceu não ouvir oque ele disse. Estava totalmenteimóvel, de joelhos na beira dapiscina com a ponta do canivetevirada para a água, para a formabranca e quebrada que se mexia láembaixo.

Micke olhou para o

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compartimento dos chuveiros. Porque o professor não aparecia? Patriktinha corrido para buscá-lo, por queele não vinha? Micke se afastouainda mais para o canto, junto daporta de vidro escura que dava paraa noite, e cruzou os braços no peito.

De soslaio, ele achou que viualguma coisa cair do teto lá fora.Alguém começou a socar tanto aporta de vidro que ela tremeu nosalicerces.

Ele ficou na ponta dos pés, espioupela janela de vidro comum queestava lá no alto e viu uma

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garotinha. A menina levantou orosto para ele.

— Diga “Entre”!— O… quê?Micke voltou a olhar para o que

estava acontecendo na piscina. Ocorpo de Oskar tinha parado de semexer, mas Jimmy ainda estavaagachado na beira da piscina,empurrando na água a cabeça dooutro. A garganta de Micke doeuquando ele engoliu a saliva.

Qualquer coisa . Contanto queisso acabe .

Socos na porta de vidro de novo,

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agora mais fortes. Ele olhou lá forana escuridão. Quando a meninaabriu a boca e gritou para ele, eleviu… que os dentes dela… e quealguma coisa pendia dos seusbraços.

— Diga que eu posso entrar!Qualquer coisa .Micke balançou a cabeça e disse

num tom quase inaudível: — Podeentrar.

A menina se afastou da porta edesapareceu no escuro. Aquilo quependia dos seus braços cintilou e eladesapareceu. Micke se virou de

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novo para a piscina. Jimmy tinhatirado a cabeça de Oskar da água epegado de volta o canivete deJonny. Desceu a faca na direção dorosto de Oskar e fez pontaria.

Uma mancha clara surgiu najanela escura do meio e, ummilésimo de segundo mais tarde, ajanela se estilhaçou.

O vidro de segurança se quebroucomo se fosse vidro comum.Explodiu em centenas defragmentos minúsculosarredondados que caíram tilintandona beira da piscina, voaram para o

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corredor, caíram na água, brilhavamcomo uma miríade de estrelasbrancas.

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EpílogoSexta-feira, 13 de novembro

Sexta-feira , 13 de …Gunnar Holmberg estava na sala

vazia da direção da escola, tentandoorganizar seus apontamentos.Passara o dia inteiro na escola deBlackeberg; olhara o local do crime,conversara com os alunos. Doistécnicos do centro e um perito emmanchas de sangue do LaboratórioNacional de Ciência Forense ainda

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estavam trabalhando com apreservação dos vestígios lá napiscina.

Dois jovens tinham sidoassassinados lá na noite anterior.Um terceiro… estava desaparecido.

Ele também falara com Marie-Louise, a professora responsávelpela turma. Holmberg chegou àconclusão de que o menino queestava desaparecido, OskarEriksson, era o menino quelevantara a mão e respondera à suapergunta sobre heroína três semanasatrás. Gunnar se lembrava dele.

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Bem , é que … eu leio muito , sóisso .

Também lembrou que tinhaachado que o menino seria oprimeiro a sair para dar uma olhadana viatura. Então talvez ele levasseo menino para dar uma volta. Sepossível, teria fortalecido um poucosua autoestima. Mas o garoto nãotinha aparecido.

E agora ele estava sumido.Gunnar passou os olhos pelos

apontamentos das conversas com osgarotos que se encontravam napiscina na noite anterior. No geral,

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não havia discordâncias notestemunho deles e uma palavraaparecia o tempo todo: anjo.

Um anjo buscara Oskar Eriksson.O mesmo anjo que, segundo os

testemunhos, tinha arrancado ascabeças de Jonny e de JimmyForsberg e as deixado no fundo dapiscina.

Quando Gunnar contou isso doanjo para o homem que fotografaracom câmera de mergulho as duascabeças no lugar em que foramencontradas, o fotógrafo da políciadissera: “Muito improvável que seja

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um anjo celeste”.É…Olhou lá fora da janela, tentou

achar uma explicação plausível.Lá no pátio, a bandeira da escola

oscilava a meio pau.Dois psicólogos estiveram

presentes durante as conversas comos meninos da piscina, já que váriosdeles mostraram sinaispreocupantes ao falar do que tinhaacontecido de um modo demasiadotrivial, como se fosse um filme,alguma coisa que não ocorrera deverdade. E bem que era nisso que a

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gente queria acreditar.O grande problema era que o

perito em manchas de sangue tinhade certa forma confirmado o que osmeninos disseram.

O sangue fizera percursos,deixara vestígios em lugares (teto,vigas do teto) que davam aimpressão imediata que aquilo tudotinha sido feito por alguma coisaque… voava. Era isso que elestentavam esclarecer agora. Ounegar.

Mas certamente elesconseguiriam.

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O professor dos meninos estavana uti com uma concussão cerebralgrave e poderia ser interrogado apartir do dia seguinte. Nadaindicava que ele fosse dizer algonovo.

Gunnar apertava tanto astêmporas que seus olhos ficarampuxados. Olhou para osapontamentos.

“anjo… asas… a cabeçaarrebentou… o canivete… tentouafogar Oskar… Oskar já estavaazul… uns dentes iguais a dentes deleão… buscou Oskar…”

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E a única coisa que ele conseguiupensar foi: Eu devia viajar paralonge daqui .

— Essa aí é sua?Steffan Larsson, fiscal de trem no

trecho Estocolmo-Karlstad, apontoupara a mala na prateleira debagagens. Não se via mais umdesses hoje em dia. Um genuíno…baú.

O menino na cabine balançou acabeça e mostrou o bilhete de trem.Steffan furou a passagem.

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— Alguém vai buscar você?O menino sacudiu a cabeça.— Não é tão pesado quanto

parece.— Não, é claro. Sem querer me

intrometer, o que tem nela?— Um pouco de tudo.Steffan consultou o relógio e

furou o ar com o alicate de furarbilhete.

— Já será noite quando a gentechegar.

— Ahã.— E as caixas. Elas também são

suas?

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— São.— Eu não estou querendo… Mas

como é que você…— Eu vou ter ajuda. Depois.— Sei. Então tudo bem. Boa

viagem.— Obrigado.Steffan fechou a porta da cabine e

seguiu para a próxima. Parece que omenino ia se arranjar. Se ele própriotivesse tanta coisa para carregar,não teria uma cara tão alegre assimquanto a dele.

Mas bem que é diferente quandose é jovem.

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Se alguém for verificar ascondições climáticas do mês denovembro de 1981, vai descobrirque foi um inverno bem maisbrando que o normal. Tomei aliberdade de baixar mais um poucoa temperatura.

De resto, tudo o que está no livroé verdade, mesmo que tenhaacontecido de outra forma.

Também gostaria de agradecer aalgumas pessoas.

Eva Månsson, MichaelRübsahmen, Kristoffer Sjögren eEmma Berntsson leram a primeira

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versão e fizeram comentários queforam valiosos.

Jan-Olof Wesström leu e não feznenhum comentário. Mas ele é meumelhor amigo.

Aron Haglund leu e gostou tantoda história que fiquei com coragemde mandá-la para uma editora.Muito obrigado.

Agradeço também aosfuncionários da Biblioteca deVingåker que, pacientes e gentis,procuraram e pediram obrasincomuns de que precisei enquantoescrevia o livro. Uma biblioteca

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pequena com um coração enorme.E naturalmente: agradeço a Mia,

minha esposa, que ouviu minhaleitura do texto em voz altaenquanto ele estava sendoelaborado, incentivou-me a mudar oque estava uma porcaria e adesenvolver o que estava bom. Nãoouso mencionar as cenas que aindaestariam no livro, se não fosse porela.

A todos, obrigado.

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John Ajvide Lindqvist

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[1] Documentário sueco de 1979 dirigido porStefan Jarl. É a segunda parte de uma trilogiaque acompanha a trajetória de Kenta e Stoffe,boêmios e usuários de drogas. Uma das cenasd e Ett anständigt liv (Uma vida digna) foifilmada em Blackeberg. (N. T.)[2] Hino religioso escrito em 1906 por PaulNilsson. “Veja, subimos para Jerusalém”, emportuguês. (N. T.)[3] “Oi, luzinha do sol que pela janela daminha casa entra…” (N. T.)[4] “Um dia eu também quis ser grande e tãoajuizado quanto o pai e a mãe.” Cançãoensinada nas aulas de catequese aos domingos.(N. T.)[5] Também conhecido como cubo mágico.[6] A piada se refere a um escândalo nos anos1980 na Suécia com um empresário do ramodo petróleo chamado Malmberg Finns, queenganou a prefeitura de Växjö numa

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negociação de barris de petróleo. O sobrenomeFinns tem a mesma grafia do verbo existir emsueco –finns. No original: “Var finns oljan? ,Var oljan Finns?”. (N. T.)[7]Bamse é uma série de revistas emquadrinhos infantis muito conhecida na Suécia.(N. T.)[8] Música famosa de Evert Taube. (N. T.)[9] Mais um verso da música de Evert Taube.(N. T.)[10] “Väst” significa “oeste” em sueco,Västerort é o nome da região que fica a oesteem Estocolmo. (N. T.)[11] Verso da música “Fritiof AnderssonsParadmarsch”. (N. T.)[12] Romance policial de 1971 da autora suecaMaj Sjöwall.[13] “Hej” em sueco significa “oi”. (N. T.)[14] Referência à série educativa Fem myror ärfler än fyra elefanter, muito popular na Suécia,

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principalmente nos anos 1970. (N. T.)[15] Programa infantil da televisão sueca. “Omenino com as calças de ouro” (em português)conta a história de um garoto que descobre quepode tirar dinheiro dos bolsos das calças. (N.T.)

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Table of Contents

CapaFolha de rostoCréditosDedicatóriaPrimeira ParteQuarta-feira, 21 de outubro de1981Quinta-feira, 22 de outubroSexta-feira, 23 de outubroSábado, 24 de outubroSegunda ParteQuarta-feira, 28 de outubroQuinta-feira, 29 de outubro

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Sexta-feira, 30 de outubroSábado, 31 de outubroTerceira ParteQuinta-Feira, 5 de NovembroSábado, 7 de novembroSábado, 7 de novembro (noite)Sábado, 7 de novembro(madrugada)Quarta ParteDomingo, 8 de novembroDomingo, 8 de novembro(noite)Domingo, 8 de novembro(noite/madrugada)Segunda-feira, 9 de novembro

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Quinta ParteSegunda-feira, 9 de novembroTerça-feira, 10 de novembroQuarta-feira, 11 de novembroQuinta-feira, 12 de novembroEpílogo