Del so Al Desprendimiento - ALCIDA RITA RAMOS

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SRIE ANTROPOLOGIAISSN 1980-9867

414 DO ENGAJAMENTO AO DESPRENDIMENTO Alcida Rita RamosBraslia, 2007

Universidade de Braslia Departamento de Antropologia Braslia 2007

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Srie Antropologia editada pelo Departamento de Antropologia da Universidade de Braslia, desde 1972. Visa a divulgao de textos de trabalho, artigos, ensaios e notas de pesquisas no campo da Antropologia Social. Divulgados na qualidade de textos de trabalho, a srie incentiva e autoriza a sua republicao. ISSN Formato Impresso: 1980-9859 ISSN Formato Eletrnico: 1980-9867 1. Antropologia 2. Srie I. Departamento de Antropologia da Universidade de Braslia Solicita-se permuta. Srie Antropologia Vol. 414, Braslia: DAN/UnB, 2007.

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Universidade de Braslia Reitor: Thimothy Martin Mulholland Diretora do Instituto de Cincias Sociais : Lourdes Maria Bandeira Chefe do Departamento de Antropologia: Lia Zanotta Machado Coordenador da Ps-Graduao em Antropologia: Paul Elliott Little Coordenadora da Graduao em Cincias Sociais: Kelly Cristiane da Silva

Conselho Editorial: Lia Zanotta Machado Paul Elliott Little Kelly Cristiane da Silva Editora Assistente: Marcela Stockler Coelho de Souza Editorao Impressa e Eletrnica: Rosa Venina Macdo Cordeiro

4 EDITORIAL

A Srie Antropologia foi criada em 1972 pela rea de Antropologia do ento Departamento de Cincias Sociais da Universidade de Braslia, passando, em 1986, a responsabilidade ao recente Departamento de Antropologia. A publicao de ensaios tericos, artigos e notas de pesquisa na Srie Antropologia tem se mantido crescente. A partir dos anos noventa, so cerca de vinte os nmeros publicados anualmente. A divulgao e a permuta junto a Bibliotecas Universitrias nacionais e estrangeiras e a pesquisadores garantem uma ampla circulao nacional e internacional. A Srie Antropologia enviada regularmente a mais de 50 Bibliotecas Universitrias brasileiras e a mais de 40 Bibliotecas Universitrias em distintos pases como Estados Unidos, Argentina, Mxico, Colmbia, Reino Unido, Canad, Japo, Sucia, Chile, Alemanha, Espanha, Venezuela, Portugal, Frana, Costa Rica, Cabo Verde e GuinBissau. A principal caracterstica da Srie Antropologia a capacidade de divulgar com extrema agilidade a produo de pesquisa dos professores do departamento, incluindo ainda a produo de discentes, s quais cada vez mais se agrega a produo de professores visitantes nacionais e estrangeiros. A Srie permite e incentiva a republicao dos seus artigos. Em 2003, visando maior agilidade no seu acesso, face procura crescente, o Departamento disponibiliza os nmeros da Srie em formato eletrnico no site www.unb.br/ics/dan. Ao finalizar o ano de 2006, o Departamento decide pela formalizao de seu Conselho Editorial, de uma Editoria Assistente e da Editorao eletrnica e impressa, objetivando garantir no somente a continuidade da qualidade da Srie Antropologia como uma maior abertura para a incluso da produo de pesquisadores de outras instituies nacionais e internacionais, e a ampliao e dinamizao da permuta entre a Srie e outros peridicos e bibliotecas. Cada nmero da Srie dedicado a um s artigo ou ensaio. Pelo Conselho Editorial: Lia Zanotta Machado

5 SUMRIO Ttulo: Do Engajamento ao Desprendimento Resumo: Com a crescente tomada de conscincia de seus direitos, os povos indgenas no Brasil, a exemplo de tantos outros no mundo, passaram a reagir contra os abusos de certos pesquisadores que persistem em tratar o espao indgena como terra de ningum. Essas reaes atingem muitos etngrafos, principalmente a partir dos anos 90, o que nos leva a ponderar sobre o futuro dos estudos etnogrficos tradicionais. Ao mesmo tempo, com a crescente escolaridade dos indgenas, abre-se o horizonte para as autoetnografias, ou seja, pesquisas realizadas por aqueles que sempre foram objetos de investigao etnogrfica. Se essa tendncia se confirmar, o que acontecer com a etnografia acadmica? Sob o nome de ator coadjuvante, prope-se a possibilidade de uma gama de possveis papis que os etngrafos tradicionais podem assumir sem abrir mo de seu compromisso tanto com os povos indgenas quanto com a profisso antropolgica. Palavras-chave: Engajamento, desprendimento, pesquisa etnogrfica, auto-etnografias. Title: From engagement to disengagement Abstract: Indigenous peoples in Brazil, as elsewhere, increasingly take stock of the abuses perpetrated by certain scientific researchers who act as though indigenous spaces were no mans land. Reactions on the part of the Indians have affected a number of especially young ethnographers. This situation deserves our attention with regard to the future of traditional ethnography. At the same time, more Indians have access to higher education, which opens the horizon for the establishment of auto-ethnographies, namely, research carried out by those who have been the objects of ethnographic inquiry. If this trend is confirmed, what will happen to academic ethnography? It is suggested that a number of possible roles can be opened for non-indigenous ethnographers who might become supporting actors in ethnographic research. In such new scenarios academic ethnographers could continue to exercise their commitment both to indigenous peoples and to the anthropological profession. Keywords: Engagement, disengagement, ethnographic research, indigenous agency, auto-ethnographies.

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DO ENGAJAMENTO AO DESPRENDIMENTO Alcida Rita Ramos Universidade de Braslia Pesquisadora do CNPq Engajamento: Situao de quem sabe que solidrio com as circunstncias sociais, histricas e nacionais em que vive, e procura, pois, ter conscincia das conseqncias morais e sociais de seus princpios e atitudes. Desprendimento: Ato ou efeito de desprender (-se); abnegao, altrusmo, independncia (Novo Dicionrio Aurlio) Introduo1 Minha ateno aqui est voltada principalmente para a etnografia de povos indgenas como tem sido praticada no Brasil. No pretendo tecer comparaes com outros pases da Amrica Latina, embora seja inevitvel fazer algumas referncias a casos fora do Brasil. Apesar do ar de famlia perceptvel no modo latino-americano de se fazer antropologia, para alm das semelhanas esperadas, existem na regio certas diferenas de sotaque antropolgico que sublinham a diversidade de experincias histricas e olhares tericos. O fim do sculo XX testemunhou uma mudana drstica na etnografia brasileira. De sujeitos de pesquisa a pesquisadores, alguns indgenas no Brasil vm forando muitos antroplogos a refletir sobre a tica e a poltica da pesquisa etnogrfica. Num esforo de capturar o momento preciso desse processo, escrevi este trabalho como um exerccio em retrospeco. Dividido em duas partes, ele procura ponderar sobre tal mudana na conduo da etnografia indgena no pas, mas tambm sobre a minha prpria perplexidade ao observ-la. O caminho que escolhi vai do envolvimento ao desprendimento com relao tanto a tendncias tericas quanto a compromissos polticos. A primeira parte cobre um momento em que defender o direito de ser diferente significava defender a virtude de certos conceitos antropolgicos criados precisamente para enfatizar o valor da diversidade humana. Ser politicamente comprometida significava para mim ser crtica do que se poderia chamar de modismos antropolgicos. Portanto, defender tais idias como o conceito de cultura era defender os direitos indgenas contra as tendncias homogeneizantes das polticas tnicas a nvel nacional e internacional.

A verso original deste trabalho, intitulada Disengaging Ethnography, faz parte da coletnea Blackwells Companion to Latin American Anthropology organizada por Deborah Poole (no prelo). Srie Antropologia. Vol. 414. Braslia: Departamento de Antropologia da Universidade de Braslia, 2006, pp. 6-25.

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7 Em cerca de cinco anos, minha viso da matria mudou substancialmente ao observar caso aps caso de jovens pesquisadores frustrados por situaes de campo pouco amistosas. Foi uma oportunidade de agarrei para tomar p do atual estado da profisso no Brasil. A anlise desse novo momento no trabalho etnogrfico levou-me a defender um estado de desprendimento. Porm, longe de ser uma abdicao ao compromisso, esse desprendimento implica um tipo de liberao de manias de grandeza que tm turvado a vista dos etngrafos para o vigor da vontade indgena por conquistar sua agencialidade plena. Engajamento Por mais de duas dcadas vimos o esforo louvvel de antroplogos anglosaxes que insistem na necessidade de compromisso poltico no trabalho etnogrfico, tendo em conta os povos nativos (Asad 1973; Hymes 1974; Fardon 1990; Fox 1991, Fox e King 2002). Eles conseguiram sacudir os centros metropolitanos de produo antropolgica de seu torpor atomstico que tanto tem debilitado o que Trouillot (1991) chamou de savage slot, ou seja, o nicho do conhecimento ocidental dedicado ao estudo de povos primitivos. Porm, eles tambm contriburam para o clima de desdm que levou certos profissionais ao exagero, negando mesmo o valor de se estudar o local e o distante. Mas, diz Herzfeld, quem estabelece a fronteira entre o que importante e o que trivial? E continua: H uma suspeita convergncia entre a recusa a levar a srio o detalhe etnogrfico e a homogeneidade prescrita por ideologias nacionalistas (Herzfeld 1997: 11). Os alvos de crtica e desconstruo tm sido o conceito de cultura, alteridade, exotismo e essencialismo. Para alm do hbito salutar de exames peridicos sobre os efeitos das explicaes secundrias (Bunzl 2004: 439) que aderem disciplina no correr de sua histria (a defesa da coetaneidade feita por Fabian em 1983 um exemplo), de se pr em dvida a propriedade de algumas crticas ao conceito de cultura. Na ltima dcada, os debates a favor e contra ele mobilizaram uma quantidade de estudiosos para, como seria de se esperar, chegar a resultados decepcionantes. Como muitos crticos de cultura acentuam os aspectos negativos do conceito sem dar nomes nem ttulos, podemos especular que o foco de suas objees o cnone malinowskiano para a escrita de etnografias ou, pelo menos, o esteretipo que se criou sobre ele desde os ltimos decnios do sculo XX. Afirma-se que, ao retratar uma cultura como autocontida, os etngrafos lhe fazem um desservio. Teme-se que o modo cannico de apresentar uma cultura transforma a antropologia num discurso de alteridade que amplia a distncia entre outros e ns, ao mesmo tempo em que suprime o envolvimento mtuo e a quebra poltica e de perspectivas das culturas de ambos os observadores e os observados (Thomas 1991: 309; minha nfase). No entanto, Thomas admite que bvio que muito da escrita antropolgica no est submetida quele cnone, que j existem exemplos de anlises comparativas (1991: 316; minha nfase). O desconforto que autores como Thomas e Fabian demonstram com a tendncia antropolgica de alterizar compreensvel na medida em que os produtos da etnografia, de fato, contribuem para o aviltamento de povos no ocidentais aos olhos dos centros de poder (o retrato que Chagnon [1968] pintou dos Yanomami exemplifica isso). Porm, negar que haja diferenas culturais significativas correr o risco de inflar ainda mais a imagem j excessivamente inchada do Ocidente como dono da verdade. Em seu esforo para criar um campo do dito empoderamento nativo, esses

8 antroplogos arriscam-se a obliterar um dos maiores valores da antropologia, ou seja, a importncia poltica e moral da diversidade cultural. No devemos supor que o conceito antropolgico de Outro se refira, necessariamente, a uma substncia, uma essncia inerente aos habitantes das margens do mundo. Muito pelo contrrio, ele deve ser tomado, no como uma categoria substantiva, mas como um conceito analtico aplicvel em qualquer lugar, desde os nossos vizinhos aos nossos antpodas. Os lugares remotos, diz Herzfeld, no so menos relevantes do que os acessveis (1987:187). De modo semelhante, alguns socilogos e cientistas polticos brasileiros por vezes depreciam os estudos antropolgicos por sua tendncia a favorecer o popular e o cotidiano em detrimento de uma teorizao mais impassvel e elevada (Peirano 1995: 13-14). O estado de indigncia analtica que disso resultaria temido como uma doena contagiosa que ameaa se alastrar para as outras cincias sociais. Alguns antroplogos, incomodados com opinies desse tipo e numa atitude semelhante conscincia infeliz hegeliana, parecem sentir-se diminudos ao se refletirem nos olhos mordazes de seus pares da sociologia e da cincia poltica cuja agenda profissional prioriza fenmenos macro e impessoais. Por isso, acabam adotando o estudo de questes relevantes em sociedades complexas no tanto por uma convico de que toda e qualquer forma de humanidade merece a ateno antropolgica, incluindo a suas manifestaes ocidentais, mas, para usar a extravagante expresso de Herzfeld (1997: 17), como uma adulao sicofntica de seus colegas sicofantas, ou como um tipo de contrio envergonhada pelo excesso atvico de ateno que a antropologia tem dado ao pequeno e remoto, o que teria deixado a profisso longe do centro borbulhante daquilo que realmente importa. Ao clamar por relevncia e dar as costas s margens, os antroplogos acabam por aumentar o gosto pelo extico. Estudar apenas o que relevante e os povos nas margens do mundo ocidental quase por definio no entram nesse clube forosamente confirmar o exotismo dos primitivos que abastece o complexo de superioridade do ocidente. No abandonando a prtica da etnografia local, bsica com povos nativos, que os antroplogos aliviam o peso do exotismo que derreia esses povos. Tal atitude s faz abrir mais ainda o apetite pelo extico, pois o Outro distante continua anedtico e irrisrio na medida em que a sua lgica cultural interna segue sendo ininteligvel ao mundo que sempre o exotizou. Alguns crticos consideram que o desinteresse da profisso por questes mais amplas pode ter origem na imaginao colonial que gerou a antropologia. Para que esse pecado original seja expurgado, preciso abandonar o velho cnone etnogrfico. Ou seja, o trabalho antropolgico s politicamente correto quando se dedica aos meandros da dominao ocidental sobre os povos nativos ou marginalizados. Em si mesmos, esses povos so incapazes de gerar qualquer interesse que no seja no registro do exotismo. Pareceria, ento, que eles dependem do antroplogo para se tornarem politicamente visveis e relevantes, quando esse antroplogo exibe ao mundo suas agonias de opresso (Herzfeld 1997: 23). Se no, estud-los em si mesmos equivaleria a fazer-lhes um desservio. Por trs desta concepo est a velha e talvez impossvel de erradicar incapacidade do ocidente (onde quer que este esteja) para se relacionar com as diferenas culturais de um modo que no seja de desigualdade: ser diferente ser inferior. Isto est to profundamente arraigado nas mentes ocidentais (onde quer que sejam formadas) que os prprios antroplogos tendem a essencializ-lo. Apesar de seu treinamento prolongado e meticuloso orientado a contrapor esse pr-juzo (no sentido de pr-julgamento de Gadamer [1975: 238]), os antroplogos parecem no conseguir se

9 libertar desse grilho. Em seu zelo em salvar os primitivos do estigma da inferioridade, eles acabam minimizando as especificidades culturais como se fossem arautos dessa inferioridade. Em vez de encarar de frente a arrogncia ocidental, alguns antroplogos metropolitanos preferem mudar de assunto e descartar o estudo das especificidades culturais como se elas fossem as responsveis pela produo do exotismo degradante, quando, na verdade, uma boa etnografia, seja cannica ou no, que tem o potencial de neutraliz-lo ao transformar o inescrutvel e recndito em inteligibilidades ou, ao menos, despertar a conscincia para o que no podemos alcanar. Entreter o gosto pelo exotismo tratar a alteridade como irredutvel compreenso humana; citar detalhes empricos fora do contexto, transformando-os em anedotas ftuas e vacuidades banais. Um relato etnogrfico superficial, uma palestra pblica inconseqente, uma piada ou comentrio jocoso ou chocante perante um pblico leigo so alguns exemplos de contextos que geram exotismo negativo. A intolerncia tnica, o paternalismo e a sujeio cultural dos povos indgenas devem muito a esses abusos verbais e escritos. Como poderia o antroplogo evitar a armadilha de produzir esses artefatos de exotismo negativo? Gregory Batson parece ter achado a resposta quando diz: Se fosse possvel apresentar adequadamente a totalidade de uma cultura, enfatizado cada aspecto exatamente como enfatizado pela prpria cultura, nenhum detalhe isolado pareceria bizarro, estranho ou arbitrrio ao leitor; ao contrrio, os todos os detalhes seriam naturais e razoveis como so para os nativos que vivem suas vidas nessa cultura (Bateson [1936] 1958: 1). To inalcanvel quanto um tipo ideal weberiano, essa aspirao de Bateson serve, no entanto, como antdoto contra o tumor maligno que Baudrillard chamou de simulacro. Novamente, o caso Yanomami ilustra isso. Sua imagem pblica circulou no mundo de forma reduzida, simplificada e altamente distorcida que pouca semelhana tem com a sofisticao cultural com a qual esse povo tem dotado a etnografia. Como povo feroz, os Yanomami tm sido profunda e repetidamente insultados pelos meios de comunicao: a cultura horripilante dos Ynomam faz sentido em termos de comportamento animal. Chagnon sustenta que as estruturas Ynomam tm um estreito paralelo em muitos primatas [tais como] bandos de babunos (Time 1976). O que a revista Time divulgou nem de longe se aproxima de uma verso honesta dos Yanomami; o que ela produziu foi um grotesco simulacro de uma realidade extraordinariamente complexa (Ramos 1987). Modelos reduzidos e eticamente duvidosos como esse parecem ser a moeda corrente quando o impressionismo ocidental decide retratar ndios de carne e osso (Ramos 1994). Se fosse possvel alcanar as aspiraes de Bateson, a familiaridade suplantaria o exotismo que, por sua vez, perderia muito de sua simulao virulenta. No podemos aspirar a tanto, mas podemos ter como meta atingir o mximo possvel de acuidade etnogrfica. De fato, abarcar o mundo inteiro do Outro e continuar mantendo o sentido das diferenas seria uma contradio em termos, ou seja, combinar familiaridade com estranhamento. O extico, diz Foster, sempre cheio de surpresas; deleita e excita. Domestic-lo exaustivamente seria neutralizar esse aspecto de seu significado e integr-lo, lamentavelmente, ao ramerro das rotinas dirias (1982:2122). O sentido da diferena deve ser mantido se quisermos desestabilizar a arrogncia da Metrpole e dar um basta perpetuao da idia de que o Outro um eterno desvalido.

10 Sempre que a Metrpole cambaleia ao confrontar a alteridade, a etnografia se redime um pouco. Sempre que a Metrpole despida etnograficamente como tm sido as margens, o significado de poder revisto. esse potencial de produzir dvidas sobre verdades estabelecidas que deveria ser o objetivo da antropologia repatriada. Tudo isto mostra uma face inusitada do exotismo (Ramos 2003a). Implica um imenso esforo, primeiro, de compreender a lgica, o sentido profundo do Outro, para depois encontrar formas de traduo cultural que faam jus s suas incrveis complexidades e, em tempo hbil, converter os resultados em instrumentos de defesa do direito diferena. Implica tambm recusar-se a adjetivar os sujeitos de nossas pesquisas, a reduzi-los a um punhado de traos estereotipados, a torn-los objeto de curiosidade vulgar. Uma etnografia sria que no nega a seus sujeitos o direito contemporaneidade, a ser coevo com o tempo do etngrafo (Fabian 1983), que se constri de modo sensvel e tico, que respeita a alteridade e que rejeita a banalizao pode contribuir muito para manter o extico nos limites das diferenas legtimas. Em outras palavras, possvel praticar a etnografia sem se consumir em sentimentos de culpa. Tambm se encontra o outro lado do exotismo nos movimentos sociais de povos indgenas que objetivam sua cultura com o propsito de proteger sua alteridade contra a presso homogeneizante dos estados-naes. Os Kayap do Brasil Central (Turner 1991), os povos do Nordeste (Oliveira 1999), os Mayas da Guatemala (Warren 1998), os diversos povos indgenas da Colmbia (Jackson 1989, 1991, 1995, 1999; Sotomayor 1998), os Yekuana da Venezuela (Arvelo-Jimnez e Jimnez 2001), ou os indgenas argentinos (Briones 2003; Gordillo e Hirsch 2003; Hirsch 2003; Lazzari 2003; Rappaport 2005; Warren 1998) ilustram bem esse fenmeno em rpida expanso. Seria bom aprendermos com povos no ocidentais, no apenas sobre suas especificidades culturais no estilo Bateson, mas tambm sobre suas estratgias, muitas vezes vistas pelos antroplogos como questionveis, ingnuas ou inoperantes. Seria bom termos em mente que os povos indgenas tm uma longa experincia de andar certo por trilhas tortas. O que talvez parea um vaguear sem rumo para uma mente cartesiana, pode representar o caminho mais curto entre dois pontos polticos. No so raras as ocasies em que nos surpreendemos com suas lies de criatividade (Sahlins 1988, 1992). Por trs da histria processual, h sempre um processo dialtico que trabalha em surdina, muitas vezes sem ser notado, mas que tem o poder de transformar o curso dos acontecimentos independentemente de se estar ou no consciente dele. Estes comentrios ecoam os de Foster escritos no incio dos anos 1980: Se os processos culturais atuam dialeticamente, de se esperar que os significados sociais que o extico fazer proliferar sejam controlados, contrapostos e limitados por mais maquinaes simblicas (Foster 1982: 27). At que ponto os antroplogos podem e querem seguir tal plano, sem dvida identificado hoje com a criatividade do local, o desafio da profisso neste incio de milnio. Desprendimento A maior parte do texto acima faz referncia a idias que me guiaram na virada do sculo. Mesmo ainda convencida do valor das etnografias, e mais ainda da justeza em demonstrar a legitimidade de se ser Outro, e tambm do valor tico do compromisso poltico, percebo agora essas questes sob um outro prisma, em grande medida, devido s reaes indgenas, recentemente identificadas, ao trabalho dos antroplogos. Este

11 novo contexto tem feito em mim uma impresso to forte que proponho mudar a premissa, de compromisso a desprendimento. desnecessrio dizer que este trabalho repousa mais em perguntas do que em respostas, em parte, porque estamos lidando com um terreno intensamente movedio. O que se segue, portanto, uma tentativa de fazer algum sentido de um pequeno fragmento da histria, no Brasil, em que surpreendemos relaes intertnicas no processo de se fazerem. Pequenos crescem e remotos se aproximam Nas trs ltimas dcadas, se no antes, os etngrafos que trabalhavam na Amrica Latina, incluindo o Brasil, eram quase unnimes em endossar a proposta de combinar pesquisa com militncia em prol dos povos indgenas (Ramos 1990, 19992000, 2003a). O compromisso poltico estava na ordem do dia e a etnografia estava a servio da justia tnica. Essa dedicao causa indgena tinha, necessariamente, que afetar no s o modo como se conduz as pesquisas, mas tambm o que pesquisado. Como diz Albert, o compromisso social do etngrafo no pode mais ser visto como uma escolha pessoal poltica ou tica, opcional e alheia ao seu projeto cientfico. Tornou-se claramente um elemento constituinte e explcito da relao etnogrfica (1997: 57-58). Os temas de pesquisa passaram a contemplar no apenas os interesses do etngrafo, mas a necessidade de gerar conhecimento estratgico que possa contribuir para a defesa dos direitos indgenas. Essa defesa tornou-se uma obrigao dos etngrafos no Brasil, de modo que, progressivamente, os indgenas ganharam conscincia de que a pesquisa antropolgica tem um forte apelo poltico. Mas, enquanto os etngrafos que fizeram suas principais pesquisas de campo dos anos 60 aos 80 puderam escolher quando ir a campo, o que estudar e com quem, comeou a haver uma mudana quase imperceptvel. Os antroplogos acostumados a considerar o campo como uma base de pesquisa aberta e inconteste, comearam a perceber que j no tinham o controle da situao em campo. O que comeou como um ato de boa vontade por parte dos etngrafos repassar conhecimento e conscientizao poltica a seus sujeitos de pesquisa, de repente se transformou: mudaram registros, atores e motivos. J nos anos 1990, a nova gerao de etngrafos comeou a sentir claramente a presso para se conformar s demandas locais, fossem elas na forma de bens de troca, utenslios, projetos para captao de recursos, ou ajuda em diversas atividades, como condio para fazer suas pesquisas. Agora esse tipo de restrio total liberdade de pesquisa parte integrante do fazer etnogrfico entre povos indgenas e dirige-se, principal, mas no exclusivamente, aos jovens nefitos da antropologia, muitas vezes atravs de demandas exorbitantes para os recursos disponveis a esses que so, na maioria, estudantes. Ver, por exemplo, a exigncia de pavimentao de dez quilmetros de uma estrada como condio para que um mestrando pudesse entrar na rea. Por ironia, seu projeto de pesquisa focalizava os efeitos da biopirataria sobre esse grupo indgena que, escaldado com uma recente experincia negativa, passou a tratar por igual gregos e troianos. Neste, como em outros casos, esse tipo de provao iniciatria freqentemente se resolve com elaboradas negociaes que levam o pesquisador a cursos de ao imprevisveis. Provavelmente, os ndios acabam por redirecionar o projeto de pesquisa para atender a seus prprios interesses. O estilo malinowskiano de trabalho de campo coisa do passado e um punhado de tabaco no mais suficiente, se algum dia o foi, para ser admitido num paraso etnogrfico.

12 Quanto a falar pelos nativos, experincias anteriores com o ativismo indigenista h muito puseram um fim a esse prolongado hbito dos antroplogos, por muito tempo vistos e assumidos como substitutos naturais dos ndios. Ao longo de sua carreira como atores polticos (Ramos 1999-2000), os antroplogos viram seus sujeitos indgenas tomar para si a tarefa de defender seus prprios direitos, estipular condies e normas para atividades de pesquisa e afirmar-se como sujeitos polticos (Caplan 2003). Tudo indica que comea uma nova era em que os povos indgenas no Brasil (e alhures), depois de se apropriarem do papel de atores polticos, esto no processo de se apropriar tambm do principal produto dos etngrafos, ou seja, das etnografias. Daqui em diante, os antroplogos podero, cada vez mais, observar os primeiros resultados dos programas de educao inter-cultural que muitos ajudaram a criar e, com eles, o interesse crescente dos indgenas na escrita de auto-etnografias. Por longas dcadas abracei o ativismo indigenista, especialmente em defesa do povo Yanomami. O que se segue diz respeito sua situao atual, mas o que vemos no est restrito aos Yanomami nem a povos indgenas como tal e nem um fenmeno exclusivamente brasileiro. O impacto da pesquisa etnogrfica sobre nossos sujeitos de estudo muito maior do que pensamos ou estamos preparados para admitir. Muitos de ns que trabalhamos com povos antes de serem expostos a escolas tivemos a oportunidade de observar a curiosidade, principalmente dos mais novos, sobre o nosso constante hbito de escrever. Meus dirios de campo, e imagino que muitos dos meus colegas (como a experincia j relatada por Lvi-Strauss nos anos 1930 [1957: 312-323]), tm as margens cobertas de linhas onduladas desenhadas por jovens Yanomami enquanto observavam minha faina diria de registrar os eventos do dia. A escrita, inicialmente associada aos missionrios protestantes que residiam em suas aldeias, era um dos traos distintivos de se ser setenabi, conceito usado pelos Sanum (o subgrupo Yanomami mais setentrional com quem fiz minhas pesquisas de campo) e traduzvel como o outro, branco. Fazer a conexo entre escrita e poder foi relativamente fcil para eles, j que pr marcas num pedao de papel era capaz de produzir conseqncias espetaculares. Porm, diferentemente dos missionrios, logo percebidos como tendo como principal interesse a lngua e a pregao (em Sanum deusmo, do portugus Deus + -mo, verbalizador), a etngrafa no s fazia uma quantidade enorme de perguntas sobre muitos outros assuntos, mas at estimulava hbitos condenados pelos missionrios, como a poliginia e o xamanismo. Eram perguntas que talvez as pessoas das aldeias nunca tivessem feito, o que deflagrou um sutil processo de auto-curiosidade. Pensamentos desse tipo afloraram na minha mente no fim dos anos 1980, quando trouxe tona lembranas das minhas entrevistas de 1974 com um homem ambicioso, jovem ento, conforme eu compunha o texto que resultou em Memrias Sanum (Ramos 1990). Tomo a liberdade de citar um trecho: Foram essas entrevistas que me apontaram os caminhos que podem levar ao surgimento de filsofos nativos. A semente do estranhamento pode ser plantada por missionrios e outros agentes de mudana, mas o antroplogo, o estranhador por excelncia, em seu af de descortinar o implcito, no est excludo desse processo, perguntando o imperguntvel, duvidando do que tido como certo. Ao se destacar daqueles agentes de mudana, o etngrafo projeta uma maneira de ser branco que no tem

13 precedente nem nexo para os indgenas. O prprio respeito e emulao que demonstra pelos costumes locais passam a ser fonte de questionamento para os seus anfitries. (Ramos 1990: 329-330) Considerando que o aprendizado entre povos indgenas se faz, principalmente, pela observao e imitao, ou replicao, obter instruo atravs de um processo intenso de perguntas e respostas no estilo etnogrfico parece ter sido para os Yanomami uma tremenda novidade. Silenciosamente, eles no somente assimilaram esse modo de aprender, mas at incorporaram alguns dos conceitos antropolgicos como dispositivos para fazer sentido da nova ordem de relaes intertnicas que os afetava cada vez mais (Albert 1993). Observar o etngrafo reproduzir fragmentos do saber local, fixando-os em papel levou muitos Yanomami no Brasil a querer estudar. Suspeito que, no seu caso como em muitos outros, no h razo para pensar que a pesquisa etnogrfica localizada venha suprimir o envolvimento mtuo, como Thomas parecia temer. Em 1995, a Comisso Pr-Yanomami, ONG brasileira criada em 1978, que de modo to vigoroso empreendeu uma ampla e longa campanha pela demarcao das terras Yanomami (assinada pelo presidente da Repblica em 1991, depois de 13 anos de intensos esforos), comeou um programa de alfabetizao, primeiramente, num pequeno grupo de aldeias. Em 2004, j havia 38 escolas abertas em sete regies com cerca de 1.700 pessoas, 470 alunos e 25 professores Yanomami. Quase todas as aulas so dadas nas lnguas locais que, assim, se tornaram o principal veculo de comunicao via troca de mensagens abrangendo uma vasta rede que cobre a grande Terra Indgena Yanomami (mais de nove milhes de hectares). Alguns jovens vm desenvolvendo um gosto pela pesquisa e tomaram a si a tarefa de obter de seus pais e avs o conhecimento erudito sobre o universo Yanomami. Em visita a outros povos indgenas no pas (como parte de suas atividades escolares), esses jovens dedicam parte de seu tempo pesquisando seus anfitries. O fortalecimento cultural e poltico que advm do comando da escrita, embora ainda tmido, tm se manifestado, por exemplo, no uso pelos Yanomami de cartas coletivas a autoridades do estado exigindo respeito por seus direitos, seja com relao sade, seja sobre invases de terras. Essas cartas tm sido divulgadas via Internet pela Comisso Pr-Yanomami, alcanando um pblico grande e variado, desde membros do governo a jornalistas. Dos incoerentes rabiscos dos anos 60 e 70, os Yanomami esto, finalmente, dominando a tcnica da escrita e j sentem seus primeiros efeitos como instrumento poltico. Quando a Comisso Pr-Yanomami foi criada, seus fundadores (entre eles alguns antroplogos), propuseram que a expectativa de vida da organizao dependeria do grau de preparao dos Yanomami para enfrentar as presses externas2. O primeiro passo nessa direo foi garantir a proteo oficial de seus direitos territoriais. Feito isso, comearam de maneira sistemtica os programas de sade e educao, no apenas como parte do objetivo original de poupar aquele grupo tnico do destino que encheu copiosos volumes sobre a tragdia do contato intertnico nas Amricas, mas tambm para atender crescente e insistente demanda dos prprios Yanomami. Treze anos depois da demarcao oficial de seu territrio, em novembro de 1004, os Yanomami no Brazil criaram sua primeira associao destinada a promover suas lnguas e cultura e dirigir seus prprios interesses do modo mais autnomo possvel. A Comisso Pr-Yanomami, seu maior aliado, prev seu prprio fechamento no futuro prximo, assim que o projeto original esteja consolidado. Quando os Yanomami estiverem plenamente aptos para2

Para maiores informaes, consultar www.proyanomami.org

14 defender os seus direitos e caminhar em solo intertnico firme, ento ser a hora da Comisso, la Misso Impossvel, se auto-destruir, por assim dizer. Longe de ser uma derrota, essa retirada vista por seus membros fundadores como seu maior sucesso. Os Yanomami chegaram ao sculo XXI relativamente isentos das aflies que atingiram a grande maioria dos povos nativos do mundo. As invases e as epidemias fizeram, sim, um grande estrago, principalmente na segunda metade do sculo XX (Ramos 1995), mas boa parte dos 25 mil Yanomami (divididos entre a Venezuela e o Brasil) conseguiu escapar da degradao material e da humilhao social que satura a histria do contato intertnico nas Amricas. uma situao muito favorvel e adequada para um trabalho preventivo, uma vez que quase toda a rea est livre de invasores, as escolas seguem os moldes da educao intercultural estabelecida pelo estado brasileiro e, com maior ou menor empenho por parte do estado, a sade tem sido objeto de ateno especial. No entanto, para uma boa parte da populao Yanomami, todos esses elementos soam estranhos e longe de sua experincia imediata. Por exemplo, a rdua batalha pelos seus direitos territoriais contra fortes interesses nacionais e regionais tem algo de abstrato para um povo que toma terra como um dado inquestionvel. Essas realidades distantes de sua experincia esto sendo aos poucos incorporadas pelos Yanomami pela via da educao formal para a qual a sua nova associao servir como possante catalizador. O etngrafo como ator coadjuvante O sculo XX marcou a antropologia tanto com srios abusos de ordem tica tais como as atividades de espionagem estadunidense na Amrica Latina e no Sudeste da sia (Weaver 1973) quanto com uma grande preocupao com a conduta tica em atividades de pesquisa (Caplan 2003; Fluehr-Lobban 2003; Victora et alli 2004). Como resultado surgiram vrias questes que tm assombrado os etngrafos e que transcendem as preocupaes com a moralidade do conceito de cultura: como os sujeitos de pesquisa reagiro aos escritos etnogrficos; ser que eventuais reaes negativas poro um fim a pesquisas futuras; os etngrafos tm o direito moral de desnudar as vidas das pessoas; quo tico, afinal, o ato mesmo da pesquisa etnogrfica (Mills 2003)? O aumento da conscincia crtica por parte dos povos indgenas culmina, assim, com a possibilidade de que todas essas questes podem, mais cedo ou mais tarde, se tornar ociosas, ou seja, quando esses povos completarem o processo de apropriao do saber etnogrfico e se lanarem num projeto de auto-etnografias. Se e quando isso ocorrer, o que ser do pesquisador de campo tradicional? A capacidade de autopreservao dos hbitos acadmicos parece ter protegido os antroplogos de serem expostos a tais desafios, se observarmos, principalmente, a experincia dos Estados Unidos. Por anos a fio, indgenas como Vine Deloria chamaram a ateno dos antroplogos para a sua duvidosa tica profissional e falta de compromisso para com seus sujeitos de pesquisa. O resultado dessas advertncias tem sido irrisrio (Deloria Jr. 1988; Mihesuah 1998). Talvez o peso da Metrpole seja to forte a ponto de sufocar possveis vocaes ativistas na academia daquele pas. Talvez fosse preciso que o grito de fora antroplogos tomasse propores globais para ser levado em considerao pela antropologia metropolitana. J estamos beira desse desafio. Por sua vez, na Amrica Latina em geral e no Brasil em particular, a condio antropolgica, longe dos centros metropolitanos de produo, tem favorecido uma posio aberta a influncias mltiplas, inclusive que provem diretamente da experincia etnogrfica com povos indgenas (Velho 1982; Ramos 1990; Ribeiro 2005).

15 Exemplos atuais mostram como podem ser os papis dos etngrafos no futuro. Na regio do Uaups no Brasil tem havido um rico perodo de produo literria por parte dos Desana, povo de fala Tukano, e dos Tariana, de fala Aruaque, que receberam recursos para publicar uma srie de livros sobre sua mitologia. Para levar a cabo o projeto, pediram a assessoria de sua etngrafa e ativista de longa data, Dominique Buchillet, que assumiu a organizao e editorao dos sete volumes da srie Narradores Indgenas do Rio Negro, sob os auspcios da Federao de Organizaes do Rio Negro (FOIRN). A pesquisa dessa antroploga sobre sade e xamanismo, que a qualificou para aquela tarefa, deu lugar a esse novo compromisso de modo a atender intensa demanda dos ndios para publicar sobre sua prpria cultura. Portanto, de uma posio de principal investigadora com seus projetos prprios, ela assumiu o papel de atriz coadjuvante numa produo de seus sujeitos de pesquisa. De modo semelhante, Bruce Albert, com pesquisa de campo entre os Yanomami no Brasil desde 1975, viu sua pesquisa etnogrfica solitria interrompida pela demanda de seu anfitrio, Davi Kopenawa, de preparar um livro sobre a sua vida, sua cultura e rica experincia intertnica. Albert escreve, mas Kopenawa o mentor inconteste do projeto e autor da narrativa. Percebendo a extraordinria importncia desse gratificante trabalho de intensa cooperao etnogrfica, Albert abandonou qualquer idia de voltar etnografia cannica que praticou durante dcadas (Albert 1997). Estes casos ilustram os papis que os antroplogos podem desempenhar numa era em que os sujeitos de pesquisa podero manter os etngrafos distncia como parte do seu processo de auto-afirmao e fortalecimento scio-poltico. O investimento intelectual de toda uma vida (dos antroplogos) comea a frutificar para aqueles (seus sujeitos de pesquisa) que, afinal, tornaram possvel esse investimento. Como um eco figurativo de um cargo cult, esse movimento tem por objetivo apreender a substncia da etnografia, de preferncia, descartando o etngrafo, no por meio do que Stocking (1983) evocou de Malinowski como a magia do etngrafo, mas por uma nova forma de erudio. A relao dialgica entre observador e observado, to alardeada, mas em geral mantida num vcuo social pelos autores ps-modernos, pode muito bem materializar-se como uma joint venture na qual o papel principal no cabe mais ao etngrafo convencional, como de hbito nas etnografias a mais de duas mos. O conhecimento gerado da pesquisa de campo e posto em prtica em certas aes polticas, como a mobilizao da opinio pblica, a organizao de grupos de apoio e, talvez mais contundentemente, em busca de recursos, vem convencendo os sujeitos de pesquisa que, por trs da curiosidade aparentemente inocente, sem sentido ou irritante dos pesquisadores, h um poder insuspeito de criar imagens e alteridades etnogrficas. As reaes nem sempre so afveis, muitas vezes causam desgosto nos etngrafos, mas isso no nos deve cegar para as conseqncias plenas das nossas atividades profissionais. As normas brasileiras para obter permisso para fazer trabalho de campo em rea indgena incluem a necessidade de aceitao do projeto de pesquisa pelas comunidades envolvidas. Isto pe nas mos dos ndios o destino do pesquisador. Em certas circunstncias, sentimentos de rejeio ou exigncias excessivas produzem tal decepo no etngrafo a ponto de embotar sua capacidade de refletir seriamente sobre o que est por trs desse antagonismo. Com freqncia, incidentes no campo acarretam mal-entendidos que, na verdade, so potencialmente produtivos e, no tempo certo quando a poeira assentar, provocam no antroplogo a vontade de ponderar e analisar essas novas conjunturas de velhas estruturas que se desvendam diante de seus olhos incrdulos.

16 Os antroplogos ativistas fariam bem em abandonar a fantasia de que sua redentora boa vontade um salvo conduto automtico contra a recusa nativa de cooperar. De fato, no impossvel que a benevolncia antropolgica se incline mais para a sociedade dominante do que para o povo estudado, como aponta Povinelli no caso dos Aborgines australianos: Por serem gente de boa vontade que demonstravam solidariedade real, conhecimento e paixo pela sociedade Aborgine os antroplogos podiam tranqilizar o pblico de que qualquer que fosse o protocolo disciplinar que defendiam para a sociedade Aborgine era defendido humanitariamente, tolerantemente e em seu benefcio. Seria justo e moral (Povinelli 2002: 122). Muitas imagens etnogrficas distorcidas de povos indgenas foram feitas com a boa inteno de proteglos de juzos ofensivos sobre costumes que desagradam sociedade dominante. Essas tentativas de sanear as culturas nativas so to insultuosas quanto os casos em que elas so denegridas. Ambos so hoje objeto de enfurecidas reaes por parte do povo ofendido. Os obstculos que dificultam a pesquisa, muitas vezes percebidos pelo magoado etngrafo como tratamento injusto em troca de sua dedicao altrusta, devem ser reconhecidos como um fenmeno muito mais profundo cuja inteligibilidade deve ser buscada na histria recente das relaes intertnicas e no na contingncia pessoal dos desencontros etnogrficos. Depois de uma longa trajetria de submisso forada, os povos indgenas no Brasil, e alhures, agem agora com a urgncia de assumir a produo de etnografias como capital simblico. como se, do ponto de vista nativo, a etnografia fosse importante demais para ser deixada aos etngrafos. A busca, simbolicamente saturada, por repatriar a identidade cultural, que teve incio com o ato poltico de autorepresentao, completa-se quando a produo etnogrfica devidamente apropriada. No entanto, isso no nada fcil. Transmitir a lgica indgena a um pblico no indgena sem a intermediao do antroplogo pode ser uma tarefa extremamente difcil, como atesta o historiador da etnia Huron, Georges E. Sioui (1992: xxi): Muitas vezes me surpreendi com as imensas dificuldades que encontram os povos de culturas nativas ao tentar sensibilizar forasteiros sobre seus valores tradicionais. Cultivar a imagem do ndio hiperreal (Ramos 1994) um velho hbito que, certamente, custar a morrer. Na ordem inversa do compromisso indgena com a auto-afirmao, a conscincia antropolgica no Brasil, e alhures, gradualmente se afasta das convenes etnogrficas e militantes. H questes tcitas no ar que ainda esperam por uma formulao explcita. A etnografia poder sobreviver sem os etngrafos convencionais? Os antroplogos concordariam em desempenhar o papel de atores coadjuvantes? Nesse caso, o que poderiam eles fazer: assumir as tarefas rotineiras que os sujeitos de pesquisa esperam deles? Facilitar o acesso destes s teorias antropolgicas como ferramentas para refinar sua auto-pesquisa? Gui-los no vasto mundo das etnografias comparadas se, naturalmente, eles mostrarem algum interesse pela teoria e pela comparao, o que no nada claro? Simplesmente abdicar de seu prprio protagonismo e se retirar para os bastidores, convertidos em mera convenincia para os objetivos dos novos atores do auto-indigenismo, ou se regozijar com os novos e criativos prospectos, embora ainda imensurveis, de um novo tipo de trabalho terico e comparativo? A tradio da antropologia acadmica no Brasil, relativamente longa e estabelecida (Ribeiro 1999-2000; Grimson et allii 2004; Trajano Filho e Ribeiro 2004), resultou numa relao algo ambgua entre etngrafos e seus sujeitos de pesquisa. Por um lado, se a maioria dos que trabalham com povos indgenas aderiu ao compromisso poltico que tem caracterizado o estudo das relaes intertnicas no pas (Ramos 19992000), por outro lado, o peso da autoridade acadmica no tem passado despercebido

17 pelos anfitries das pesquisas. Durante um tempo, os antroplogos eram vistos como um recurso em vrias esferas que envolviam os ndios em questes de direitos humanos. De modo um tanto caricatural, cada tribo tinha seu antroplogo para atender s suas demandas. Ainda hoje esse padro sobrevive em alguns contextos intertnicos, mas os lderes indgenas cada vez mais se esforam por se desvencilhar dos antroplogos como autoridades. Na melhor das hipteses, permite-se que estes atuem como assessores na poltica intertnica. Apesar das boas intenes, os antroplogos no tm mais o papel proeminente que j tiveram na defesa de seu povo. No entanto, de todos os parceiros polticos possveis no cenrio etno-poltico, os ndios brasileiros ainda preferem trabalhar com antroplogos. Por que optam por se envolver com eles em suas empreitadas polticas? Poderia ser por respeito e apreciao, pelo fato de que o envolvimento etnogrfico em pesquisa no tem cobranas, por exemplo, de ordem econmica ou religiosa; ou que percebem como a capacidade dos etngrafos de propagar sua imagem pelos centros de poder? Talvez uma combinao de todos esses e outros fatores fez brotar uma nova relao no campo. Uma leitura otimista disto que, se pudermos pr entre parnteses o diferencial de poder que sempre existe entre etngrafo acadmico e povo estudado, podemos conceber essa nova associao como parceria. O que foi enaltecido como cumplicidade3 talvez j no seja suficiente para descrever a novidade na ambincia etnogrfica em pases como o Brasil. Se a cumplicidade sublinha o vnculo criado com a interao prolongada no trabalho de campo, em contraste com aqueles que no partilham da intimidade etnogrfica, ela silencia sobre os termos da co-produo entre o pesquisador acadmico e o etngrafo nativo. Portanto, cumplicidade uma condio necessria, mas no suficiente para se criar uma parceria etnogrfica. Muito alm das surpresas, desiluses e dvidas que o trabalho de campo tem trazido nos ltimos tempos, os antroplogos, principal, mas no exclusivamente os que atuam na esfera dos direitos humanos, devem ter em mente a dupla influncia de seu trabalho etnogrfico. Por um lado, pelo exemplo de esquadrinhar mundos culturais e depois atuar em sua defesa, eles primeiro despertam em seus sujeitos de pesquisa a vontade de atuar em prol de sua integridade tnica e poltica. Por outro, com seu ativismo, os antroplogos abriram novas linhas de pesquisa, contribuindo para dignificar o lado prtico da profisso que, por muito tempo, foi tido como antropologia de segunda classe ao ser chamada de antropologia aplicada ou antropologia da ao (Hastrup e Elsass 1990: 302, 306, 307; Caplan 2003: 14). Ambos aspectos tm tido conseqncias profundas para o futuro da antropologia. Do ponto de vista dos povos indgenas, h uma clara convergncia de interesses em sua nova atitude para com o legado dos antroplogos. Auto-defesa e autorepresentao caminham juntas quando os ndios, como todo mundo, se do conta de que conhecimento poder e que a escrita uma poderosa tecnologia para acumular conhecimento. Por que, ento, deixar a sabedoria de seu mundo em mos estrangeiras? E, o que pior, de forma incompleta, fragmentada e muitas vezes distorcida, como soe ser o conhecimento etnogrfico na viso de Bateson, entre outros, quando, nas prprias mos, esse conhecimento pode alcanar incomparveis nveis de profundidade, inteligibilidade e significado imediato4? No poderiam as auto-etnografias satisfazer oA condio bsica que define a mise-em-scne alterada, da a qual a cumplicidade e no o rapport a figura mais apropriada, uma conscincia de duplicidade existencial por parte tanto do antroplogo como do sujeito (Marcus 1999: 97). 4 A questo do significado e da relevncia ficou evidente para mim durante uma aula de ps-graduao quando discutamos o livro de Fernando Coronil, The Magical State. Convidada aula, a antroploga3

18 desejo de Bateson por uma alteridade sem exotismo? Juntos, conhecimento etnogrfico e ao poltica parecem perfazer um pacote de tipo cargo cult secular beira de ser resgatado dos ocidentais e repassado aos atores nativos que esto ocupando o palco intertnico. Ser, diz Stuart Kirsch cuja pesquisa e militncia na Nova Guin tem provocado pensamentos semelhantes (2006), que estamos na cspide de uma terceira era na qual o povo com quem trabalhamos comea a ter preocupaes com a nossa participao, que talvez no nos queira envolvidos em projetos to intimamente ligados s suas prprias identidades e auto-determinao? (Kirsch 2004). Por ironia, nessa emergente tendncia nativa, os etngrafos, os promotores por excelncia do distanciamento e arautos da auto-curiosidade, so os principais responsveis, embora no nicos, pelo atual boom de conscincia cultural e afirmao poltica indgenas. Ver, por exemplo, a transformao do conceito de cultura, de artefato conceitual acadmica a cone de fortalecimento tnico e auto-determinao (Turner 1991; Sahlins 1992, 1993; Ramos 2003b). Ver tambm a fora do slogan Nosso Saber Nossa Marca que acompanha o logotipo do Instituto Indgena Brasileiro de Propriedade Intelectual. No por acaso que a produo etnogrfica tradicional est sob suspeita e vigilncia, tratada como um tipo de contrabando ou invaso para os quais raramente h um consentimento adequadamente informado. Por que optei pela expresso auto-etnografias e no etnografias nativas ou o que poderamos chamar de etnografias metonmicas (o igual pesquisando o igual, como mulheres estudando mulheres, negros estudando negros, homossexuais estudando homossexuais, tnicos estudando tnicos, etc.)? A principal razo tem a ver com a orientao intelectual especfica da primeira que difere muito das outras duas. De fato, praticamente a nica coisa que h em comum nas trs a pequena ou nenhuma distncia entre observador e observado. Tanto a etnografia nativa quanto a etnografia metonmica seguem o cnone antropolgico metropolitano com sua nfase na base terica e a busca de conhecimento pelo conhecimento. Embora os antroplogos nativos se rebelem contra o estado de invisibilidade a que a Metrpole os relega (Briggs 1996), ainda assim se moldam pela diviso fundacional entre Eu e Outro que organiza o trabalho de campo clssico e produz o antroplogo nativo como membro virtual da disciplina (Bunzl 2004: 436). Parte integrante do modo acadmico tradicional, a etnografia metonmica tem sido elogiada por seu apelo repatriao da antropologia (Clifford e Marcus 1986). Por sua vez, as auto-etnografias, que se saiba, no mostram nenhum compromisso perceptvel com o lado acadmico da antropologia e talvez nunca o faam se persistir a tendncia de rejeitar qualquer emulao dos hbitos intelectuais do ocidente. Na atual fase de conscincia tnica (insisto novamente de que me refiro ao contexto brasileiro), as auto-etnografias parecem dirigir-se instrumentalizao dos recursos tnicos a ser aplicados em contextos de poltica intertnica. Esta percepo coincide com a de Mary Louise Pratt para quem as auto-etnografias, em distintos graus, so fundidas e infiltradas nos idiomas indgenas para criar auto-representaes a fim de intervir nos modos de compreenso metropolitanos (Pratt 1994: 28; nfase no original).venezuelana, Nelly Arvelo-Jimnez, divertiu-se com o animado debate em que eu e os estudantes levantvamos vrias possibilidades de interpretar o contexto venezuelano tendo como pano de fundo a experincia brasileira. Quando solicitada a comentar, nossa convidada declarou que todas as opinies eram interessantes, mas, embora no estando erradas, eram virtualmente vazias de significado para um venezuelano. De modo semelhante, os intelectuais brasileiros tendem a tomar as anlises dos brasilianistas com um gro de ceticismo. Nos velhos tempos da etnocincia, isso era um ponto de discrdia, espirituosamente intitulado Gods truth or hocus-pocus (Burling 1964).

19 pouco provvel que as auto-etnografias se espelhem nas etnografias tradicionais, pois, at onde se pode discernir, a apropriao nativa da produo etnogrfica tem uma razo claramente diferente (ver, por exemplo, a experincia de Gewertz e Errington na Nova Guin [1991: 154-168]). Seu interesse na autorepresentao mais poltico do que acadmico o que, com certeza, molda a observao e a anlise de maneira distinta das etnografias acadmicas. Por exemplo, de se esperar que haja uma grande diferena na escolha de tpicos, estilos e pblico. at possvel que a questo de autoria, to importante para os pesquisadores ocidentais (mesmo com todas as complicaes advindas da era eletrnica), pode ter um papel bem menor no cenrio poltico das auto-etnografias. Tambm seria possvel esperar que, mesmo que houvesse interesse dos povos indgenas em etnografar o ocidente, ele seguiria o mesmo rumo poltico e no acadmico. No h razo para se supor que a orientao escolar das etnografias feitas no ocidente seja um pr-requisito para produzi-las. Se fazer etnografias tiver como conseqncia o repasse dos conhecimentos necessrios para que os sujeitos desenvolvam suas prprias pesquisas, ento no h porque supor que a pesquisa etnogrfica seja uma prerrogativa apenas do ocidente. O velho Malinowski versus o novo Boas Estaria surgindo um novo zeitgeist no horizonte antropolgico. Os sinais de uma terceira era, na intuio de Kirsch, parece estar no ar, anunciando no apenas a sada do antroplogo do palco do ativismo, mas tambm a confluncia da prxis com a teoria antropolgicas. O cnone malinowskiano de pesquisa etnogrfica, responsvel que foi por grande parte da bagagem emprica e terica da disciplina, deixou de ser vivel e at mesmo necessrio. A magia do etngrafo, pela qual ele pode evocar o real esprito dos nativos, o verdadeiro retrato da vida tribal (Malinowski 1961: 6) est perdendo seu mistrio. Ao olhar por cima do ombro do etngrafo por tanto tempo, o nativo agora comea a desvendar a frmula secreta daquela magia. Podemos detectar, pelo menos, dois fatores principais responsveis pela perda da hegemonia etnogrfica e pela sensao de mal-estar que abala a profisso. Por um lado, a queda do objeto de pesquisa, esse bastio imaginado da imanncia, ultimamente, tem causado bastante desconforto, brutalmente acentuado no auge da rebelio ps-moderna. No foram poucos os etngrafos que, incompreensivelmente alheios metamorfose histrica que transformou seus informantes em espertos atores polticos, se viram apanhados de surpresa, por estranho que parea, quando souberam que seus preciosos projetos de pesquisa no tinham o menor interesse para os seus anfitries de outrora e, por isso, por favor, no voltem por aqui. Com o tapete puxado de baixo de seus ps, os etngrafos parecem ter perdido o equilbrio e ainda cambaleiam de espanto, atordoados pesquisadores em busca do campo perdido. Isto aparece mais no Brasil do que em outras partes da Amrica Latina, mas evidente que a etnografia indigenista (alis, um segmento minoritrio na antropologia do pas) atrai menos ateno do que outros assuntos. De fato, alguns etngrafos mudaram de campo depois de suas pesquisas doutorais. Apanhados entre duas conjunturas contrastantes que podem bem levar a uma nova, mas imprevisvel configurao de pesquisa, muitos de ns ainda precisam ponderar sobre um futuro onde a etnografia poder se tornar, literalmente, alheia ao nosso treinamento e s nossas expectativas. Por outro lado, a antropologia est totalmente saturada de fatos etnogrficos que se acumularam durante nove dcadas at transbordar, entulhando a disciplina com um excesso de aproveitamento decrescente (diminishing returns). Em quase um sculo

20 de atividade profissional, a antropologia produziu um extraordinrio acervo etnogrfico que resultou do esforo contnuo e crescente de coleta de dados do mundo inteiro (o maior exemplo so os Human Relations Area Files, projeto mirabolante criado na Universidade de Yale em 1949 que pretende catalogar todo e qualquer trao cultural j registrado por etngrafos e outras fontes). Com essa reserva em mos, todas as principais metas nobres da antropologia j foram alcanadas, algumas, inclusive, ad nauseam, mas no, necessariamente, por consenso: a universalidade e primazia da cultura, os mritos e perigos do relativismo, o elogio e orgulho da diversidade humana. At que ponto o acmulo compulsivo e interminvel de novos dados no levar a um pesadelo do tipo aprendiz de feiticeiro, se os nativos no lhe puserem um ponto final? Ou continuar, apesar de tudo, a alimentar o tipo de imaginao antropolgica ocupada eternamente em tecer filigranas mentais la pense sauvage (por exemplo, Viveiros de Castro 1995)? Como disse a antroploga estadunidense, Sherry Ortner h quase uma dcada: A anlise cultural, em geral, no pode mais ser um fim em si mesma. Retratar outras culturas, mesmo com talento, no mais a opo principal (1999: 9). Se a maneira malinowskiana de fazer etnografias minimizava o trnsito intelectual entre observador e observado, o roteiro antropolgico criado por Boas deixou essa possibilidade em aberto. Talvez no seja coincidncia que Boas exerceu maior influncia na Amrica Latina do que Malinowski5. Os esforos recentes para restaurar a influncia de Boas na antropologia contempornea aponta para um modo neo-boasiano de modelar campo. Respondendo em parte barragem de crticas contra o conceito de cultura, Bashkow (2004), Bunzl (2004), Handler (2004), Orta (2004) e Rosenblat (2004) fizeram uma triagem do pensamento antropolgico de Boas para mostrar que o espectro das culturas isoladas nada mais do que um exemplo de racionalizao secundria, muito carregado de valor emocional (Stocking citado em Bunzl 2004: 439), e que o abismo entre o sujeito cognoscente objeto cognoscvel no constava de sua agenda profissional. De fato, Boas no se importava se eram os nativos americanos que geravam eles mesmos os dados etnogrficos (Bunzl 2004: 438). Em outras palavras, Boas, que veio da tradio herderiana onde Kultur assumiu o status de essncia nacional, de maneira muito significativa, concebeu para a antropologia um sentido de cultura totalmente aberto no apenas ao trabalho da histria, mas tambm ao escrutnio interno e externo. Aquilo que por tantos anos jazia dormente nas dobras da memria antropolgica, submerso por ondas sucessivas de novidades tericas, voltou tona como sabedoria ancestral para resgatar a disciplina de um impasse pendente. A matriz boasiana, rebobinada, poderia se tornar um instrumento adequado para medir o que acontece agora no problemtico campo da etnografia. Longe de ser uma panacia universal para o atual mau humor antropolgico, o neo-boasianismo simplesmente oferece uma oportunidade para reflexo. bom para pensar os problemas atuais do campo, pois oferece uma condio dinmica de possibilidade para uma antropologia significativa e relevante (Orta 2004: 485). Seguindo a deixa que Boas, talvez involuntariamente, legou, bem possvel que a etnografia esteja em vias de ser transferida para os seus tradicionais sujeitos, o que, em si, j uma medida de seu sucesso. O hbito de observar seus observadores em ao, transformando infindveis perguntas em conhecimento e conhecimento em influncia, provocou nos nativos da etnografia o desejo de assumir o controle desse precioso instrumento de agencialidade e poder. de se esperar que as auto-etnografias tenham um sabor muito diferente do cnone ocidental. Observar os observados no ato5

Agradeo a Deborah Poole por ter chamado minha ateno para este ponto.

21 de nos observarem pode ser uma gratificante concluso para a longa narrativa que a antropologia vem compondo sobre a Alteridade. Por conseguinte, tanto em termos de ativismo como de trabalho etnogrfico, a tica do desprendimento est na ordem do dia. desnecessrio dizer que o desprendimento como descrito aqui em si mesmo um potente ato de compromisso. De fato, eu diria que a maior expresso de compromisso, pois requer do etngrafo que ele saia do palco de modo que este seja ocupado pelos nossos outros tradicionais. o reconhecimento ltimo de que, por fim, esses outros esto se afirmando como plenos agentes, produtores de conhecimento antropolgico. Quo mais comprometido se pode ser ao se renunciar no somente ao status de autoridade etnogrfica, mas tambm a dcadas de tratar as feridas da submisso dos povos indgenas? Quo mais madura pode ser a prpria antropologia ao acolher de braos abertos aqueles que durante geraes eram apenas alimento para o seu pensar terico?

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A lista completa dos ttulos publicados pela Srie Antropologia pode ser solicitada pelos interessados Secretaria do: Departamento de Antropologia Instituto de Cincias Sociais Universidade de Braslia 70910-900 Braslia, DF Fone: (061) 348-2368 Fone/Fax: (061) 273-3264/307-3006 E-mail: [email protected] A Srie Antropologia encontra-se disponibilizada em arquivo pdf no link: www.unb.br/ics/dan

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