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Deleuze - Aula 5 Homero

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Page 1: Deleuze - Aula 5 Homero

DELEUZE, ESPINOSA E O PROBLEMA DA EXPRESSÃO

(Curso Vladimir, 3/10/07)

ESPINOSA

Leitura de Hegel:

Com o espinosismo, o absoluto foi elevado ao pensamento como nunca antes. “O

sistema espinosista é o do panteísmo e do monoteísmo absolutos, elevados ao plano do

pensamento.” Espinosa não é um ateu, pelo contrário, o seu problema é justamente que

“Deus é demasiado.”1 Quer dizer, Espinosa é um eco das terras orientais, quase um

místico, onde Deus é tudo e, sendo ele tudo, não sobra espaço para o indivíduo, para o

finito, que é então nada.2

Ora, para Hegel, determinar é negar, negar é determinar. Mas, sendo o

espinosismo uma filosofia da pura afirmação, positividade, “Espinosa destrói o

princípio de subjetividade da individualidade”.3 O finito é epifenômeno, os atributos são

meros pontos de vista dos homens sobre a substância. Sobra de real apenas a substância,

uma substância rígida, idêntica, indiferençada, monótona; é o ser de Parmênides: ela

simplesmente é — “É no fundo o mesmo que o tò ón dos eleatas”.4

O importante é que tal interpretação hegeliana vai marcar toda a interpretação

posterior (e acho que vários pontos do livro de Deleuze, alguns desdobramentos e

insistências, podem ser lidos como resposta à leitura hegeliana).

1 Lecciones sobre la historia de la filosofia, F.C.E., III, p. 304.2 “Ser espinosista é o começo de toda filosofia”, afirma Hegel. Vejamos porém o contexto da afirmação:“Para Espinosa, alma e corpo, pensamento e ser cessam de ter existência separada independente. A profunda unidade de sua filosofia, a manifestação do Espírito como identidade do finito e do infinito em Deus, em vez de Deus aparecer relacionado com eles como um Terceiro ― isto é um eco das terras orientais. A teoria oriental da absoluta identidade foi trazida ao pensamento europeu de maneira muito mais direta por Espinosa, primeiro com o pensamento europeu tradicional e depois com o concurso da filosofia européia e cartesiana. [...]O puro pensamento de Espinosa, tomado como um todo, é o que o tò ón? era para os eleatas. Essa idéia é, no principal, verdadeira e bem fundada; a substância absoluta é a verdade, mas não é toda a verdade; para sê-lo também precisa ser pensada como ativa e vivente em si mesma e, para isso, precisa determinar-se a si mesma como Espírito. No entanto, em Espinosa, a substância é apenas o universal e conseqüentemente a determinação abstrata do Espírito. Pode-se dizer que este pensamento é a fundação de todas as verdades, não, porém, como suas bases absolutamente determinadas e permanentes, mas como unidade abstrata do Espírito em si mesmo.Cabe reconhecer, pois, que o pensamento não teve outro remédio que colocar-se no ponto de vista do espinosismo; ser espinosista é o começo essencial de toda filosofia, pois quando se começa a filosofar a alma deve necessariamente banhar-se no éter da substância una, na qual tudo o que foi tido por verdadeiro desapareceu; essa negação de todo particular, a que todo filósofo deve ter chegado, é a liberação da alma e sua absoluta fundação. [...] O que constitui a grandeza de Espinosa é sua capacidade para renunciar a tudo o que é determinado e particular, restringindo-se ao Uno.” (Lecciones, III, pp. 284-285).3 Lecciones, III, p. 308.4 Lecciones, III, p. 284.

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Desde Hegel até meados do século XX, Espinosa é um pouco esquecido, tanto na

França quanto na Alemanha. Espinosa tem algo de maluco, por um lado, por outro, não

é um autor freqüentado por nenhuma das grandes correntes que marcam o pensamento

(sobretudo francês) da primeira metade do século: Heidegger não dá bola para Espinosa,

a fenomenologia husserliana não trata de Espinosa, Hegel que tratou de Espinosa só fez

mostrar sua inconsistência. Não é à toa que boa parte dos filósofos que marcam a

filosofia francesa até os anos 60 revelam pouco conhecimento do espinosismo (penso

em Sartre e em Merleau-Ponty).

Ainda que se possa pôr como um marco o livro de Victor Delbos (1916), O

espinosismo, esse marco é insuficiente para falar numa relevância de Espinosa na

primeira metade do século. Mesmo no plano historiográfico, é só na década de 60 que

de fato vêm os frutos do trabalho de Delbos.

O que ocorre na década de 60?

Começa a haver um interesse por Espinosa. Apoio-me numa entrevista de

Marilena Chauí: cansaço de fenomenologia, existencialismo, cansaço do sujeito, peso

de Nietzsche, estruturalismo, anti-humanismo; de tudo um pouco mas principalmente o

trabalho de Althusser: o vínculo entre espinosismo e marxismo que ele arma e inspira

toda uma geração de estudiosos: Etienne Balibar, Pierre Macherey, Alexandre

Mathéron, etc. Althusser, segundo Marilena, recoloca Espinosa na ordem do dia.

1968 é o marco francês desse renascimento de Espinosa: Spinoza I de Gueroult;

Espinosa e o problema da expressão de Deleuze.

ESPINOSA E DELEUZE

Por que Espinosa?

* Interesse da época.

* Como já ocorrera com Nietzsche, Espinosa é uma espécie de anti-Hegel; então,

nada melhor que retornar a esse autor da afirmação, da positividade, do método

geométrico (o oposto da dialética).

* Espinosa é um maldito, e Deleuze afirma gostar dos malditos. Fazer história da

filosofia, tudo bem, mas ir atrás daqueles filósofos que são deixados de lado pela

história universitária. Reencontrar um filósofo-cometa: “devemos observar esses

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Page 3: Deleuze - Aula 5 Homero

cometas, segui-los se possível, reencontrar-lhes o caminho fantástico”.5 Lucrécio,

Nietzsche, também Espinosa.

* Por fim, evidentemente, o interesse das questões espinosanas para a própria

filosofia que Deleuze está armando e que encontra sua expressão maior com Diferença

e repetição (vale lembrar que Espinosa e o problema da expressão é uma tese menor;

Diferença e repetição é a tese maior). Eu mencionaria três pontos amplos, só para

exemplificar (depois retornaremos a algo mais específico), pontos de convergência entre

a filosofia de Deleuze e a de Espinosa

- Sistema: não há autor sistemático como Espinosa (toda a tradição o reconheceu,

mesmo os inimigos); pois Deleuze parece retomar a idéia de sistema, propor uma

ontologia (ainda que o sistema deva assumir outra figura).

- Ingenuidade filosófica: Deleuze parece acatar um parecer de Foucault: “eu era o

mais ingênuo entre os filósofos de nossa geração. (...) Não passei pela estrutura, nem

pela lingüística ou a psicanálise, pela ciência ou menos pela história, porque penso que a

filosofia tem sua matéria-prima que lhe permite entrar em relações exteriores, tanto

mais necessárias com essas disciplinas. Talvez seja isso que Foucault queria dizer: eu

não era o melhor, porém o mais ingênuo, uma espécie de arte bruta, por assim dizer; não

o mais profundo, porém o mais inocente (o mais desprovido de culpa de ‘fazer

filosofia’).”6

Talvez possamos dizer que é mais ou menos o caso de Espinosa: ingenuidade com

a filosofia (à diferença de Descartes, Leibniz, Malebranche etc.). Nesse sentido, vale a

pena frisar o interesse que Deleuze sempre devotou à vida de Espinosa (a vida

filosófica), tal como se interessa pela de Nietzsche — é bem a conjunção que ele

estabelece para tratar da vida filosófica no início de Espinosa, filosofia prática.7

- Um derradeiro ponto de interesse de Deleuze em Espinosa, com vistas a sua

própria filosofia, eu diria ser a idéia de filosofia da natureza. Espinosa apresenta uma

filosofia da natureza, Deleuze parece projetar algo desse tipo (uma ontologia) para o

século XX (o que, decerto, é algo meio deslocado, mas do maior interesse). Espinosa é

quase passagem obrigatória para qualquer um que pense numa coisa do tipo, vide

Merleau-Ponty.

5 Nietzsche et la philosophie, p. 121.6 Pourparlers, citado por Alberto Gualandi, Deleuze, p. 16.7 “Por tê-lo vivido, Nietzsche percebeu em que consiste o mistério da vida de um filósofo. (...) uma vida não mais vivenciada a partir da necessidade, em função dos meios e dos fins, mas a partir de uma produção, de uma produtividade, de uma potência, em função das causas e dos efeitos.”

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O LIVRO

Espinosa e o problema da expressão é um estudo sistemático da Ética espinosana;

é claro que toda a obra espinosana comparece, mas sempre em função da Ética. O que

interessa a Deleuze é a expressão, seu livro é um percurso pela Ética, uma travessia pela

Ética do início ao fim, explicando-a, analisando-a, resolvendo certas dificuldades,

sempre pela idéia de expressão.

Pensando no aspecto da história da filosofia, pode-se dizer sem o menor receio

que é um livro que se sustenta como tal, ainda hoje pode ser recomendado como um

texto de estudo de Espinosa. Há um estilo próprio, frases fortes, reconstruções e

aproximações estranhas, sistematicidade, discurso que a certa altura nos faz perder de

vista quem está falando, porém é um livro de história da filosofia no sentido mais forte

do termo — e pensando que o autor é Deleuze, eu diria, não poderia ser diferente.

* * *

Problema da expressão: a primeira questão que se põe, evidentemente, é o que é a

expressão e por que ela interessa tanto a Deleuze?

Logo de entrada, é preciso dizer que não há uma definição espinosana de

expressão, então é preciso descobrir na armação e no movimento da filosofia o que é tal

expressão e por que ela é importante a ponto de poder ser a pedra de toque da

explicação do sistema. A introdução do livro de Deleuze nos dá conta disso. A idéia de

expressão, ele recorda, aparece logo abertura da Ética e no interior daquela que é a mais

importante definição da primeira parte e talvez de toda a obra: a definição de Deus:

“Por Deus entendo o ente absolutamente infinito, isto é, a substância que consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita.”

Quer dizer: infinitos atributos, todos eles diferentes e incomunicáveis, qualidades

infinitas em seu gênero, mas todos exprimem uma mesma coisa: uma única essência de

substância. Cada atributo exprime uma essência, mas cada atributo o faz em seu gênero

sem comunicação entre eles.

Mas não só o atributo. O modo também é expressivo; afirma Espinosa: “tudo o

que existe exprime a natureza de Deus, noutros termos, sua essência, de uma maneira

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Page 5: Deleuze - Aula 5 Homero

certa e determinada.” Trata-se de uma expressão segunda: expressão da expressão; o

modo exprime o atributo que exprime a substância. Temos então dois planos para a

expressão:

Expressão primeira: constituição da substância (do real).

Expressão segunda: constituição das coisas (dos realia, entes).

O que interessa a Deleuze? Sumariamente: como um todo se constitui como todo

único e diverso, como se dá a constituição de um uno diversificado, diferenciado. “A

idéia de expressão resume todas as dificuldades concernentes à unidade da substância e

a diversidade dos atributos.” Deleuze reata com uma tradição (via Espinosa) que sempre

se pôs tal questão: como o uno pode envolver as diferenças? Tradição filosófica do

panteísmo (o termo é ruim porque é uma acusação, é um reflexo negativo, não uma

opção deliberada), ou melhor, nos termos de Deleuze, uma “tradição expressionista”.

Nesse sentido, falar de expressionismo é falar de panteísmo, de modo rigoroso e

positivo.

Panteísmo = complicação. Isso nos remete aos termos-chave do movimento

expressivo:

Implicação, explicação, complicação; envolvimento e desenvolvimento.

Explicar ou expressar = “desenvolvimento da coisa nela mesma e na vida”.

Gostaria de chamar a atenção de vocês para esse passo, que pode dar um bom

exemplo de como Deleuze tem em vista a interpretação hegeliana (que é também a

interpretação mais ou menos padrão à época) e renova o tema (como o faz Gueroult).

Interpretação idealista dos atributos:

Para Hegel, há apenas duas determinidades, quer dizer, duas determinações

qualitativas para a substância: pensamento e extensão. “O entendimento as percebe

como a essência da substância; porém a essência não é superior à substância, mas é só a

essência na consideração do entendimento, a qual está fora da substância.” São os

atributos, assim, apenas pontos de vista explicativos. “O que não se diz é onde se

converte a substância em atributo.”8

O que nos dirá Deleuze?

“Explicar, longe de designar a operação de um entendimento que resta exterior à coisa, designa primeiramente o desenvolvimento da coisa em si mesma e na vida. (...) Se os atributos reenviam essencialmente a um

8 Lecciones, III, p. 286.

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entendimento que os percebe ou os compreende, é primeiramente porque eles exprimem a essência da substância e que a essência infinita não é exprimida sem manifestar-se ‘objetivamente’ no entendimento divino.”9

Os atributos agora não são mais pontos de vista subjetivos, mas o ponto central da

atividade expressiva. Manifestam-se ao nosso intelecto, são aquilo que percebemos da

essência da substância mas só porque são aquilo que no intelecto divino se manifesta

“objetivamente” (e nós, quando temos idéias adequadas, as temos como estão no

intelecto divino). A questão é levar a sério a definição de atributo como constituinte da

essência da substância e entender isso em paralelo com a definição 6: atributo como

aquilo que exprime a essência da substância. Expressão e constituição, por isso Deleuze

dizia que a expressão primeira é aquela da constituição da substância.

Curioso: a Ética, explicação da substância, torna-se uma grande lógica10 que pode

apresentar o “desenvolvimento da coisa nela mesma e na vida”; uma lógica porém sem

um sujeito, sem um espírito. “Lógica da afirmação pura, da qualidade ilimitada e, por

isso, da totalidade incondicional que possui todas as qualidades, ou seja, lógica do

absoluto.”11

Uma outra lógica que pode competir com a hegeliana e que não careceria, nem

mesmo, de uma espécie de fenomenologia, ou um movimento próximo disso que se

encontra no Tratado da emenda do intelecto ou no próprio interior da Ética.

Uma das maiores inovações da leitura deleuziana, reconhecida por todos, é aquela

que toca à compreensão do Tratado da emenda do intelecto; ele detecta as dificuldades

(e talvez causa do inacabamento da obra) na ausência da idéia de noções comuns que

vai surgir na Ética. Mas pelo menos o Tratado é o momento da descoberta.

Atributo como noção comum: “Quando o atributo serve de noção comum, é

tomado como noção comum, não é considerado na sua essência nem nas essências de

modos aos quais ele se aplica, mas apenas como forma comum à substância existente da

qual ele constitui a essência, e aos modos existentes dos quais ele envolve as

essências.”12 Noção comum → forma comum.

9 Spinoza et le problème de l’expression, p. 14.10 Spinoza et le problème de l’expression, p. 115: “a filosofia de Espinosa é uma ‘lógica’.”11 Spinoza et le problème de l’expression, p. 69.12 Espinosa, filosofia prática, p. 122.

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Abuso deleuziano? Não. Inovação interpretativa dentro dos cânones da história da

filosofia. Para comprová-lo, basta lembrar:

Trajeto do TIE como uma fenomenologia: Marilena Chaui (1970), Bernard

Rousset (década de 80).

Noções comuns: é a interpretação de Lívio Teixeira na década de 50. “L.T. foi o

primeiro intérprete a demonstrar que, entre duas formas de conhecimento cujo objeto

são singularidades (...) intercala-se o conhecimento verdadeiro do universal concreto,

isto é, as leis da natureza ou as noções comuns da razão.”13 (Chaui,).

* * *

Como funciona tal lógica? Acho que é dever de quem quer tratar de um livro de

filosofia ir além das generalidades (ainda que interessem em alguma medida) e tentar

dar a ver ao menos um pouco do movimento conceitual da obra; levando em conta o

lugar desta apresentação, seria bom que a exemplificação tocasse um ponto que ao

menos sugerisse o encaixe entre o estudo deleuziano de Espinosa e a filosofia

deleuziana. Tendo essas duas exigências em mente, confesso que, ao repassar o livro de

Deleuze para esta apresentação, fiquei um pouco angustiado; trata-se de um texto

intrincado e de que qualquer assunto sempre parecia exigir um tratamento extenso que

iria para lá da paciência de vocês. Bem, como tinha de escolher, escolhi um percurso

que me parece relevante ao menos pela sua moldura mais geral.

Parto daquilo que Deleuze define como a tarefa da filosofia de sua época, pelo

menos desde Nietzsche, tal como surge num célebre apêndice de Lógica do sentido: a

tarefa de “reversão do platonismo”. Ora, encontramos algo próximo em Espinosa e o

problema da expressão, quando Deleuze, no capítulo XI, diz que “a tarefa pós-platônica

por excelência exigia uma reversão do problema” de Platão. É uma das formas de

pensar o trabalho historiográfico e a filosofia de Deleuze num mesmo correntio. Badiou:

“O platonismo não cessará de ser revertido, porque desde sempre foi revertido. Deleuze

é o momento contemporâneo da volta dessa reversão.”14 Platão não é uma fatalidade, há

vários momentos de reversão; Deleuze é um, Espinosa foi outro. É refletindo sobre a

solução espinosana para o problema platônico que Deleuze pode aprofundar o vínculo

lógico entre imanência e expressão, algo da maior importância.

13 Orelha de A doutrina dos modos de percepção e o conceito de abstração na filosofia de Espinosa.14 Alian Badiou, Deleuze, clamor do Ser, 121.

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Qual o problema que Platão deixa à posteridade?15 O problema da participação.

Como hipóteses, dirá Deleuze, Platão apresentava vários esquemas de participação:

tomar parte, imitar, receber um demônio, etc. O problema geral de todas estas vias é, no

entanto, o mesmo: o princípio da participação é buscado no participante. Ao

participado, a participação surge como algo externo e dependente de um terceiro (um

demiurgo, por exemplo) que força a idéia (ou forma) a deixar-se participar por algo que

repugna a sua natureza. Daí que a tarefa pós-platônica seja precisamente inverter o

problema: buscar um princípio que torne a participação possível do ponto de vista do

participado.

Os neoplatônicos tentam descobrir o princípio e o movimento interno que

fundamenta a participação no participado. O participado não passa ao participante, mas

permanece em si e é participado enquanto produz, enquanto dá. Plotino substitui a idéia

de violência pela de dom. Por isso a participação não será nem material nem imitativa,

mas emanativa. A emanação é doação produtora, sendo portanto atividade do

participado, ao passo que o participante só recebe. Assim chega-se a um princípio,

imparticipável, que apenas dá a participar. Para Plotino, o Uno é superior aos dons, não

sendo portanto o que ele dá. Daí que a emanação se dê na forma de tríade: doador,

doado, receptor. Há separação e hierarquia.

Ora, a idéia de emanação abre algumas possibilidades. Duas vão ser

experimentadas pela filosofia cristã (criacionista) para tratar do ser, de Deus, doador,

mantendo a transcendência: a via analógica e a via negativa. Mas há também uma outra

possibilidade, que é a de Espinosa — ele se insere nessa história, porém rompe com a

emanação. O mais importante é que em Espinosa a reversão do problema platônico se

dá não pela emanação mas pela imanência, não por uma causa emanativa mas por uma

causa imanente. Elas guardam semelhanças, mas duas diferenças são capitais.

Primeira diferença : o modo de produção; na causa emanativa, à diferença da

imanente, o efeito não permanece na causa.

Quando Plotino diz que o efeito não se separa da causa, refere-se à continuidade

do fluxo; porém, o efeito só existe saindo da causa e só determina sua existência ao

voltar-se para a causa como Bem, sua finalidade transcendente. Já na causa imanente, o

efeito é em outro, mas permanece na causa assim como ela permanece nela mesma, de

forma que a distinção de essência entre causa e efeito implica igualdade de ser, e não

15 Na apresentação de certos pontos do capítulo XI, utilizei alguns trechos tomados, quase literalmente, de um seminário apresentado por Luís César Oliva ao Grupo de estudos espinosanos.

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degradação. Ética, prop. 18: “Deus é causa imanente de todas as coisas, e não causa

transitiva.” Ou seja, tudo que é, é em si ou em outro; mas tudo é em Deus.

Segunda diferença : a imanência implica uma pura ontologia que exige o

princípio da igualdade do ser, ou seja, o ser está igualmente presente em todos os seres.

Todos esses seres dependem diretamente de Deus, o que dispensa a idéia de causa

remota e de uma hierarquia de dependência que defina os seres por sua distância em

relação ao Uno. A imanência impõe, portanto, o ser unívoco, que forma uma natureza

comum a produtor e produzido. A superioridade da causa não acarreta eminência

(posição de um princípio para além das formas presentes no efeito); logo, não há

teologia negativa, analogia nem hierarquia universal. Tudo é afirmação. A causa é

superior ao efeito, não ao que ela dá ao efeito. Melhor dizendo, ela não dá, mas tem uma

comunidade formal com ele, tem algo em comum com ele.

O que é esse algo em comum? É o atributo que determina a comunidade formal

entre Deus e os modos; em termos neoplatônicos, o atributo é o dom que é comum a

doador e receptor; mas já o pensar em, tal comunidade implode a tríade neoplatônica.

“Os atributos são formas comuns a Deus, cuja essência eles constituem, e aos modos ou

criaturas que os implicam essencialmente.”16

Não se trata então de um distanciamento ou uma separação absoluta, mas de um

expressar-se recíproco, de um entre-expressar-se. Uma mesma expressão perpassa tudo

e abre espaço para falar do ser e dos seres (entes) num mesmo sentido, com uma mesma

dignidade. Ética I, prop. 25, esc.: “da natureza divina deve concluir-se necessariamente

tanto a essência quanto a existência das coisas; e, em uma palavra, no sentido em que

Deus é dito causa de si, é a dizê-lo também causa de todas as coisas.”

Pela autocausalidade temos uma causalidade unívoca, um modo de falar unívoco.

Abre-se aqui a possibilidade da univocidade, isto é, da imanência. Univocidade que é

um grande tema deleuziano de Diferença e repetição; história em três etapas: Scotus,17

Espinosa, Nietzsche.18 A coisa se completa com este e por isso se completa a reversão

do platonismo que é, no sentido de Espinosa e o problema da expressão, a construção

16 Spinoza et le problème de l’expression, p. 39.17 Scotus é quem levou mais longe a empresa de uma teologia positiva. “Ele denuncia ao mesmo tempo a eminência negativa dos neoplatônicos, a pseudo-afirmação tomista [i.e. a analogia]. Ele lhe opõe a univocidade do Ser: o ser se diz no mesmo sentido de tudo o que é, infinito e finito, se bem que não seja sob a mesma modalidade. Mas precisamente, o ser não muda de natureza mudando de modalidade, ou seja, quando seu conceito é predicado do ser infinito ou dos seres finitos.” (Spinoza et le problème de l’expression, p. 54)18 Différence et répétion, p. 57.

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da univocidade e, portanto, da imanência — esta que é “a vertigem filosófica”

inseparável da expressão.

Dessa forma, Deleuze pode precisar a significação do espinosismo:

“Afirmar a imanência como princípio; livrar a expressão de toda subordinação com relação a uma causa emanativa ou exemplar. A própria expressão deixa tanto de emanar quanto de assemelhar-se. Ora, tal resultado não pode ser obtido senão em uma perspectiva de univocidade. Deus é causa de todas as coisas no mesmo sentido em que é causa de si; ele produz como ele existe formalmente, ou como ele se compreende objetivamente. Ele produz, portanto, as coisas nas próprias formas que constituem sua própria essência.”19

Duas observações:

Primeira: a partir daí, acho que dá para entender por que o livro de Deleuze se

constrói sobre a idéia de tríade (ao passo que tudo em Espinosa parece ser binário). Por

exemplo, na abertura do capítulo I: A expressão se apresenta como tríade. “Devemos

distinguir a substância, os atributos, a essência. A substância se exprime, os atributos

são expressões, a essência é o exprimido.” “A essência, enquanto existe, não existe fora

do atributo que a exprime. mas, enquanto ela é essência, não se refere senão à

substância.”20 Não há uma oposição, mas um vínculo expressivo que faz com que cada

termo remeta aos outros dois.

Ora, a idéia de tríade, creio, é necessária porque justamente o espinosismo é

concebido como reversão do platonismo. O que está em jogo no neoplatonismo? Uma

tríade, tríade da emanação: doador, doado, receptor. Não é à toa que a tríade da

substância vai “descer nos atributos e se comunicar aos modos”,21 produzindo uma “re-

expressão”22. “Cada atributo se exprime, os modos que dele dependem são expressões,

uma modificação é exprimida”.

Substância – expressa-seAtributo – expressãoEssência – exprimido

Cada atributo – expressa-seModo dele – expressão

Modificação – exprimido

19 Spinoza et le problème de l’expression, p. 164.20 Spinoza et le problème de l’expression, p. 21.21 Spinoza et le problème de l’expression, p. 97.22 Spinoza et le problème de l’expression, p. 93.

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Segundo ponto: essas considerações nos conduzem a uma questão que, ao meu

ver, é das mais importantes, já que leva Deleuze a responder à questão mais difícil posta

por Hegel, que é o sumiço do finito. Chegamos à univocidade, a univocidade põe de

imediato a questão do finito. Como se dirá em Diferença e repetição: “o ser unívoco se

vincula essencialmente e imediatamente a fatores individuantes”.23 E não é casual,

parece-me, que no movimento do livro a consideração dessa história da reversão do

platonismo esteja no capítulo XI, que fecha o que podemos dizer o primeiro plano da

expressão (a constituição da substância); a partir de então, temos o segundo plano da

expressão (a constituição dos modos), o título da terceira parte é “teoria dos modos

finitos”.

É disso que eu gostaria de falar um pouco. Sobre esse segundo plano. Pois dizer

que tudo é um, é fácil; difícil é dar conta da diferença nesse um. A univocidade não é a

solução, mas o início de um problema (que, decerto, ganha em estar agora, pelo menos,

bem colocado).

* * *

O primeiro passo aqui é debruçar-se sobre a teoria das distinções. Desde que se

falou pela primeira vez que o ser é o que é (portanto, desde o primeiro passo

ontológico), há o problema de entender as diferenças nesse ser. Uma das formas de

fazê-lo é a tradicional reflexão sobre as distinções.

Distinção real: pensamento e extensão em Descartes

Distinção numérica: se há distinção real entre duas coisas, tenho duas coisas.

Distinção de razão: vontade e intelecto no Deus cartesiano.

Distinção modal: entre dois modos de uma coisa, dois estados, etc.

Espinosa: anticartesiano. Renega a distinção real entre as substâncias cartesianas e

as torna atributos de uma única substância. Ele consegue então pensar uma distinção

real (pensamento e extensão são realmente diferentes) mas não numérica. Espinosa

renega toda distinção numérica no infinito e por isso pode conceber uma distinção real,

não-numérica, que não é uma mera distinção de razão (por exemplo, atributos como

pontos de vista subjetivos do entendimento). Assim, Espinosa reencontra Duns Scotus.

23 Différence et répétion, p. 56.

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O lugar desse na história da univocidade é fundamental porque ele cria um

instrumento formidável para pensar o real como uno, o ser unívoco (ainda que, cristão,

criacionista, não tenha podido levá-lo às últimas conseqüências). Scotus cria um tipo

particular de distinção que ele nomeia distinção formal.

“Esta concerne à apreensão de qüididades distintas que não pertencem menos a um mesmo sujeito. Ela reenvia evidentemente a um ato do entendimento. Mas o entendimento não se contenta em exprimir uma mesma realidade sob dois aspectos que poderiam existir à parte em outros sujeitos (...). Ele apreende objetivamente formas atualmente distintas, mas que, como tais, compõem um só e mesmo sujeito. Entre animal e racional não há somente uma distinção de razão como entre homo-humanitas. (...) A distinção formal é uma distinção real porque exprime as diferentes camadas de realidades que formam ou constituem um ser.”24

Exemplo: estrada Rio-Santos. A mesma estrada tem duas direções reais, duas

camadas de realidade que formam uma estrada e que não subsistem fora desse sujeito (é

um quid proprium desse sujeito, não é como o solo e o asfalto; a direção Rio-Santos não

se pode predicar da Bandeirantes).

A distinção formal é um instrumento chave para pensar o atributo como forma

comum, para pensar a comunidade formal de que já falamos. Ainda está em questão o

atributo, por isso o capítulo XII se inicia por uma reconsideração do atributo.

Pergunta-se Deleuze: o que é atribuir algo a alguma coisa? É principalmente

qualificar esta coisa, conferir-lhe algo, dizer que ela tem este algo ou que ela é este algo.

Atributo é uma qualidade. Identidade clássica que é válida também em Espinosa;

neste, porém, isso só pode ser afirmado na medida em que o termo “qualidade” deixa de

ser entendido em sentido ordinário. “Cada atributo exprime uma essência infinita, isto é,

uma qualidade infinita”. O mais importante, que nos lança ao cerne de nosso capítulo

XII: os atributos espinosanos são qualidades que não são absolutamente avessas a uma

expressão quantitativa, quer dizer, estas qualidades deverão exprimir-se

quantitativamente.

Por aí, Deleuze reconhece mais uma inovação decisiva de Espinosa naquela

história da emanação, da univocidade e da imanência. “As teorias da emanação e da

criação concordavam na recusa à participação de todo sentido material”. Quase tudo aí é

imaterial: o uno, o participado não tem vínculo material com o participante, a

24 Spinoza et le problème de l’expression, pp. 54-55.

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participação é puramente qualitativa. A novidade espinosana será precisamente a

abertura para a quantidade, e abertura que não é abrupta, que não vem cavar um poço

entre o qualitativo e o quantitativo.

“As teorias da emanação e da criação concordavam na recusa à participação de todo sentido material. Ao contrário, em Espinosa, é o princípio mesmo da participação que nos obriga a interpretá-la como uma participação material e quantitativa. Participar é ter parte, ser uma parte. Os atributos são como qualidades dinâmicas às quais corresponde a potência absoluta de Deus. Um modo em sua essência é sempre um certo grau, uma certa quantidade de uma qualidade. Por isso mesmo está/existe, no atributo que o contém, como uma parte da potência de Deus.”25

Marquemos isto: modo = grau determinado de intensidade, certa quantidade de

qualidade.

Resumo: o esforço do capítulo XII é compreender essa passagem da qualidade à

quantidade, o que significa compreender a passagem do infinito (qualidade infinita) ao

finito (quantidade finita); noutras palavras, significa entender o modo finito.

* Com a causa de si surgia, desde o início, uma diferença positiva no interior do

ser. A substância não é o uno neoplatônico, os atributos não são emanações; entre a

substância e os atributos há uma diferença interna: o ser se diferencia compondo-se,

constituindo-se (a ação da causa de si): “Antes de toda produção, há uma distinção, mas

essa distinção é também composição da própria substância.” Diferença qualitativa e

originária.

* Agora, nos atributos encontramos uma nova distinção, uma nova diferenciação,

mas uma diferença quantitativa. O processo tem de ser o mesmo, ou melhor, o

surgimento das duas diferenças deve ser por um processo unívoco. Frisemos: o escólio

da proposição 25 da Ética I, que determina a univocidade: “no sentido em que se diz

que Deus é causa de si deve ser dito também causa de todas as coisas”.

Como isso ocorre? Antes de irmos à solução, cabe reunir alguns elementos

I. Quantidade intensiva e quantidade extensiva (a partir da carta 12)

Partes de potência

uma coisa tem mais potência que outra

25 Spinoza et le problème de l’expression, p. 166.

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parte intrínseca ou intensiva

grau ou intensidade

modus intrinsecus=gradus=intensio

partes intra partes

Quantidade intensiva, partes intensivas.

Partes extrínsecas ou extensivas

exteriores umas às outras, partes extra partes

Ex.: corpos simplíssimos, a última divisão extensiva da extensão. Isso vale

também para o atributo pensamento: a idéia de um corpo simplíssimo é a derradeira

divisão do pensamento sob o aspecto da extensividade.

Quantidade extensiva, partes extensivas.

II. Essência de modo

Há divisão no interior desses infinitos quantitativos. Como ela se dá, como

podemos pensar em partes? Para isso, é preciso determinar o que vem a ser uma

essência de modo ou, noutros termos, uma essência particular ou singular.

Resumo da tese espinosana, conforme Deleuze: “as essências de modos não são

nem possibilidades lógicas, nem estruturas matemáticas, nem entidades metafísicas, mas

realidades físicas, res physicae. Espinosa quer dizer que a essência, enquanto essência,

tem uma existência.”26

NB. A essência enquanto essência tem uma existência; já não dizemos que ela

simplesmente existe, e isso deve nos alertar para uma importante distinção em dois: uma

essência de modo ≠ existência dessa essência de modo; a existência de uma essência de

modo ≠ existência do modo de que a essência em questão é essência

Temos assim três elementos que podemos arrolar:

1) essência de modo

2) existência dessa essência de modo

3) existência do modo.

Introdução de um quarto elemento:

26 Spinoza et le problème de l’expression, p. 174.

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4) a idéia de um modo inexistente (“temos idéias verdadeiras de modificações

inexistentes”, segundo a Ética).

III. sistema

Insistamos: uma essência de modo não é causa da existência do modo de que é

essência; uma essência de modo não é causa de sua própria existência e tampouco pode

ser causa de outras essências de modo.

Deus é causa de todas as coisas e causa de todas as essências de modo. Por isso, e

só por isso, considerando “concretamente” elas formam um “sistema total, um conjunto

atualmente infinito”. Resolve-se dessa forma, antecipadamente, a questão da

conveniência e coexistência das essências de modo que, particulares, singulares,

poderiam ser absolutamente díspares. A conveniência, notemos bem, se dá pela causa

única de todas as essências, Deus; o fato de serem todas criadas por Deus as sistematiza.

Portanto, a conveniência se dá pelo ser-causado, pela existência. “Todas as essências

convêm pela existência ou realidade que resulta da causa delas.”27 Em suma, pode haver

múltiplas singularidades sem haver absoluta discrição ou disparidade.

Com esses elementos, podemos atacar o cerne do problema do finito: o problema

da individuação.

Todas as essências estão contidas nos atributos. Aí parecem não se distinguir; só

se distinguiriam quando existentes os modos correlatos das essências de modos no

atributo. Quer dizer, a distinção só viria posteriormente, por algo a mais que o estar

contido. Esse algo a mais é: duração, estar no tempo. Um modo existente tem duração

e, se ele dura, ele e sua essência não são mais apenas contidos nos atributos, a idéia

desse modo não está mais apenas contida na idéia de Deus.

Problema: a duração distingue extrinsecamente (quantidade extensiva), “os modos

existentes têm uma individuação extrínseca”.28 Ora, isso não é pensar positivamente;

pelo contrário, seria fraquejar num problema crucial; quando muito ceder à idéia de que

a diferença (disso é que se trata) é conseguida apenas por oposição: o que é X? é não-Y,

27 Spinoza et le problème de l’expression, p. 177.28 Spinoza et le problème de l’expression, p. 179.

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não-Z, etc. — e só quando na duração; contidos no atributo, essas essências de modo

seriam indistintas, o atributo seria a noite escura em que todos os gatos são pardos.

Tarefa: buscar uma distinção intrínseca. Já antes, contido no atributo, o modo é

singular. Como as essências de modos se distinguem entre si se são inseparáveis umas

das outras? Como podem ser singulares? Só a distinção extrínseca da duração não será

suficiente para compreendermos o que é uma essência de modo singular, para

compreendermos qual é sua realidade física. Devemos então procurar uma individuação

intrínseca. O que, pensando nas categorias avançadas no início do capítulo, quer dizer:

descobrir uma diferença (ou distinção) que seja primeira, intrínseca (tal como acontecia

com a autocausação da substância).

Solução: pensemos o sistema dos modos como uma muralha branca.

Imaginemos uma muralha branca, inteiramente branca; nenhuma figura pode nela

ser distinguida enquanto a qualidade da brancura não for afetada a partir do exterior.

Mas como pensar assim o sistema das essências de modos, nessa absoluta indistinção

que só pode ser quebrada por um efeito externo? Parece impossível pensar a

singularidade da essência de modo sem um princípio intrínseco de individuação,

argumenta Deleuze, sem uma distinção que venha distinguir as essências já na muralha

branca antes de qualquer intervenção externa. Ademais, se podemos distinguir as coisas

existentes, e podemos distingui-las, ao que parece esta distinção pressupõe essências

distintas; com efeito, afirma Deleuze: toda distinção extrínseca pressupõe uma distinção

intrínseca.

Como podemos chegar aí? Mais uma vez Duns Scotus é a carta que Deleuze traz

na manga. Seu ponto de vista é que é invocado: “A brancura tem intensidades variáveis;

estas não se ajuntam à brancura como uma coisa a uma outra coisa, como uma figura se

ajunta à muralha sobre a qual é traçada; os graus de intensidade são determinações

intrínsecas dos modos intrínsecos da brancura, a qual permanece univocamente a

mesma sob qualquer modalidade que seja considerada”.29 Isso, contudo, embora se

possa perfeitamente falar de um mais e de um menos; pode haver um branco “mais”

branco que outro, um branco “menos” branco que outro.

Salientemos na passagem a idéia de intensidade, fundamental para a seqüência do

texto e para a explicação deleuziana da individuação em Espinosa.

29 Spinoza et le problème de l’expression, p. 179.

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Ora, dirá Deleuze, “parece que é assim em Espinosa”. Com isso a solução de

nosso grande problema não exigirá muito mais que o trabalho de definir precisamente

uma distinção intensiva que venha acompanhar aquela outra, invocada lá no início,

extensiva (o estar fora). Todo nosso quadro inicial deve ser revisto e precisado. O

atributo é qualidade, mas a participação é material, quantitativa. O atributo é qualidade e

nessa medida é o que é univocamente, tal como o branco é branco, não é verde, não é

preto, não é azul. No entanto, sabemos que nem todo branco é assim tão branco, há

matizes, há nuanças, mesmo no interior de uma muralha toda branca pode haver um

degradê; cada um desses “brancos” é grau de intensidade do mesmo branco da muralha.

É claro que o branco é não-preto: mas essa diferença (não-preto) é posterior, extrínseca

(tanto que já exige uma identidade branco=branco); mas antes de eu chegar a tal

identidade, já é necessário que haja uma distinção ou diferença anterior, intrínseca

(lembro Deleuze: toda distinção extrínseca pressupõe uma distinção intrínseca); tal

diferença anterior é pura, anterior ao próprio branco: são as intensidades de branco que

constituem o branco.

No plano da ontologia espinosana, parece que nos dirigimos a algo semelhante,

mesmo que Deleuze admita não haver menção explícita a uma tal concepção: “O

atributo-qualidade resta univocamente o que é, contendo todos os graus que o afetam

sem modificar-lhe a razão formal; as essências se distinguem portanto do atributo como

a intensidade da qualidade, e se distinguem entre elas como os diversos graus de

intensidade.”30

Conciliam-se assim dois assuntos difíceis:

1) a passagem da qualidade à quantidade (a caminhada do infinito ao finito).

2) a individuação intrínseca e positiva.

As coisas se resolvem juntas: “a diferença dos seres (essências de modo) é ao

mesmo tempo intrínseca e puramente quantitativa”.31 “Quantitativa” em que sentido?

Não pode ser de uma quantidade simples, divisível; tratamos aqui de uma quantidade

intensiva, inteiramente compatível com a identidade da qualidade absoluta (o atributo).

Cada ser e cada essência de modo é diferente em si, há uma diferença interna que

é uma diferença de intensidade; cada um exprime o absoluto “segundo a quantidade

intensiva que constitui a sua essência, isto é, segundo seu grau de potência”.32 O tipo de

30 Spinoza et le problème de l’expression, pp. 179-180.31 Spinoza et le problème de l’expression, p. 180.32 Spinoza et le problème de l’expression, p. 174.

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distinção em questão é intrínseco, qualitativo, intensivo; com o que cabe retomar a

equação inicialmente mencionada: modus intrinsecus = gradus = intensio.33

Por conseqüência, deveremos dizer que já antes da duração, antes de o modo

existir, as essências de modo se distinguem, são diferentes e singulares enquanto

contidas nos atributos divinos. Cada essência de modo é uma parte intensiva de uma

série infinita, é pars intensiva.

Um dado a observar é que esse conjunto, embora não admita uma distinção

puramente numérica devido a sua infinitude, admite em seu interior um certo “mais” e

um certo “menos”, como o branco admite o degradê de brancos: há “essências de grau

inferior”, há essências “de grau superior” ― um mais e um menos como que

intrínsecos, absolutos e irredutíveis, portanto diferentes da numeração pura e simples

Para terminar, um resumo de tudo isso:

“A substância é como a identidade ontológica absoluta de todas as qualidades, a potência absolutamente infinita, potência de existir sob todas as formas e de pensar todas as formas; os atributos são as formas ou qualidades infinitas, como tais indivisíveis. O finito não é, portanto, nem substancial nem qualitativo. Mas tampouco é aparência: ele é modal, ou seja, quantitativo. Cada qualidade substancial tem uma quantidade modal-intensiva, ela própria infinita, que se divide atualmente numa infinidade de modos intrínsecos. Estes modos intrínsecos, contidos todos juntos no atributo, são as partes intensivas do próprio atributo. Por isso mesmo, eles são partes da potência de Deus, sob o atributo que os contém.”34

Confirma-se o anterior:

* Os modos são partes irredutíveis da potência divina e em sua essência são

expressivos, são expressões; a passagem ao finito, longe de ser um problema insolúvel,

é condição para que as essências de modos sejam partes da potência.

Duas observações finais:

Existência do modo

É uma questão razoavelmente fácil, agora que temos a distinção intrínseca das

essências das coisas singulares.

33 Spinoza et le problème de l’expression, p. 173.34 Spinoza et le problème de l’expression, p. 181.

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essência de modo = grau determinado de intensidade, grau de potência

irredutível.

modo existente = algo que existe desde que passa a possuir um grande número de

partes extensivas que correspondem a sua essência ou grau de potência.

Estas partes (no caso das do atributo extensão) só se distinguem e se relacionam

por movimento e repouso. O que é meio de distinção extrínseca, na medida em que as

partes são determinadas ao movimento e repouso de fora. Os conjuntos de partes

(modos) têm uma determinada proporção de movimento e repouso, e isto dá a cada uma

delas uma particularidade, algo só dela, mesmo que vindo do exterior.

Um modo passa a existir quando um desses conjuntos de corpos assume uma

determinada proporção que corresponde a uma determinada essência de modo; a morte

é a perda dessa proporção, ou melhor, quando tal proporção torna-se outra proporção e

portanto passa a corresponder a outra essência de modo.

Questão que pode surgir: não seria contrário à imanência, ser posto “fora de

Deus”?

Não. Retomamos aqui um pormenor surgido anteriormente: “Espinosa não diz que

os modos existentes deixam de estar contidos na substância, mas que eles ‘não estão

mais apenas’ contidos na substância ou no atributo”.35 Insistamos: a distinção extrínseca

é sempre uma distinção modal, não é uma distinção numérica. A quantidade extensiva

pertence ao atributo tanto quanto a quantidade intensiva, mas é como “uma forma de

exterioridade propriamente modal”. É a maneira de estar fora.

A quantidade extensiva “apresenta os modos existentes como exteriores ao

atributo, como exteriores uns aos outros”. Nada disso, porém, vai contra a imanência. O

que temos é uma passagem do complicado ao explicado (explicação, lembremos, que

é definida por Deleuze como o “desenvolvimento da coisa nela mesma e na vida”). A

nova existência de um modo explica o atributo em que sua essência estava contida;

nesse sentido a existência do modo exprime o atributo.

“O atributo não se exprime mais nas essências de modo que ele complica ou contém, conforme aos graus de potência delas; ele se exprime de uma maneira certa e determinada, ou seja, conforme às proporções que correspondem às essências deles. A expressão modal inteira é constituída por esse duplo movimento da complicação e da explicação.”36

35 Spinoza et le problème de l’expression, p. 195.36 Spinoza et le problème de l’expression, p. 196.

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Conatus

Parte intensiva da potência de Deus = conatus (esforço de perseveração no próprio

ser; a potência divina exprimida de maneira determinada).

É verdade que essa parte pode fortificar-se ou enfraquecer, mas o pode na medida

em que afirma o seu grau de intensidade determinado (sua essência singular). Notar que

é por abstração que pensamos num grau maior ou menor no que se refere às

intensidades e nos pomos a compará-las; elas são irredutíveis, são singulares.

O conatus varia (e aí há um grau de medida não abstrato) como afirmação da

essência: alegria = aumento da potência de afirmar; tristeza = diminuição da potência

de afirmar.

Aqui vem toda a questão, fundamental para Deleuze em toda a sua obra e até bem

mais em Espinosa, filosofia prática, do corpo. Para Espinosa, o modelo para pensar o

homem é o corpo; todos se perguntam o que pode a mente, mas a verdadeira pergunta é:

o que pode um corpo? (ver Ética III, prop. 2, esc.) A trilha agora torna-se sobretudo

ética, a questão da ação na realidade modal.

Homero Santiago

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