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Deleuze e a Educação

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Texto que discute a interação da filosofia de Deleuze e seus aspectos no campo da educação. Traz os conceitos filosóficos incorporados nos ambientes educacionais.

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  • Copyright 2003 by Slvio Gallo

    Coordenao da coleo Alfredo Veiga-Neto

    Edito rao eletrnica f'r7ald11ia A lvarenga S a11tos Ata ide

    Reviso de textos A na Elisa Ribeiro

    Gallo, Silvio G172d Deleuze & a Educao / Slvio Gallo. - Belo Horizonte: Au-

    tntica, 2003. 120 p. - (Pensadores & educao, 3) ISBN 85-7 526-100-2 ! .Filosofia. 2.Educao. !.Ttulo. II.Srie.

    2003

    Todos os direitos reservados pela _Autntica Editora.

    CDUl

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    Nenhuma parte desta publicao poder ser reproduzida, seja por meios mecnicos, eletrnicos, seja via cpia xerogrfica,

    sem a autorizao prvia da editora.

    Autntica Editora Rua So Bartolomeu, 160 - Nova Floresta - 31 140-290

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    Escrever um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que

    extravasa qualquer matria vivvel ou vivida.

    G!LLES D ELEUZE, A Literatura e a Vida, in: Cdtica e clnica

  • SUMRIO

    Introduo

    Gilles Deleuze: uma vida

    Deleuze e a Filosofia

    A filosofia francesa contempornea:

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    um mapa em rascunho 25

    Deleuze, filsofo da multiplicidade 33

    Rasgar o caos: a filosofia como criao de conceitos 39

    Deslocamentos. Deleuze e a Educao 63

    Deslocamento 1. A Filosofia da Educao 65 como criao conceituai

    Deslocamento 2. Uma "educao menor"

    Deslocamento 3. Rizoma e educao

    Deslocamento 4. Educao e controle

    Bibliografia

    Sites de interesse

    O autor

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    85 99

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  • INTRODUO

    Este livro pretende ser uma introduo didtica obra do filsofo francs contemporneo Gilles Deleuze, assim como oferecer uma explorao inicial de questes tratadas por ele que podem fazer interface com temticas da educao.

    Que faz um texto sobre Deleuze, filsofo e profes-sor que nunca escreveu sobre educao, numa coleo dedicada a explorar temas emergentes em educao e au-tores importantes para o cenrio pedaggico contempo-rneo? Parece-me que no apenas aqueles que se puseram a pensar e a escrever sobre educao tm algo a dizer aos educadores; ousadamente, diria que talvez aqueles que no explicitamente se debruaram sobre a problemtica edu-cacional tenham mais a dizer aos educadores do que po-demos imaginar. A razo disso? O inusitado. O imprevisto. O diferente. O que as idias, os conceitos, as posies deste autor que, no tendo se colocado diretamente as questes com as quais lidamos, podem nos fazer pensar a partir de nossos prprios problemas.

    Deleuze e educao. Para algum que pensou, desde a tradio filosfica, as questes emergentes do sculo XX, buscando construir uma filosofia imanente, um pensamento

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  • COLEO "PENSADORES & EDUCAO"

    do acontecimento, o campo educacional no pode ser visto como estranho. Na vasta produo deste filsofo, muitas podem ser as veredas a serem exploradas. Fiz minhas es-colhas e as trago ao leitor. E essas escolhas foram marca-das pelos meus problemas, pelo meu olhar, pelos mltiplos encontros que fui tendo com Deleuze e sua obra, nos l-timos 20 anos. Certamente, se fosse outro a escrever este pequeno livro, as veredas escolhidas teriam sido outras.

    Preocupo-me com a produo de Deleuze desde os meus tempos de estudante, na graduao em filosofia. Meu primeiro encontro com ele foi por meio de uma obra que escreveu com Flix Guattari, O Anti-dipo. Minha preo-cupao ento era com uma viso libertria do desejo, com uma anlise psicanaltica da sociedade. Mas essa obra me ajudou a desconstruir a psicanlise, a abandon-la, a ficar com o desejo e a liberdade. Li, depois, a obra que ambos escreveram sobre Kafka, na qual aparece a noo de lite-ratura menor, que explorarei aqui e, em seguida, outra obra que fizeram em conjunto, uma continuao a O Anti-dipo, intitulada Mil Plats. Ali aparecia, entre muitos outros, o conceito de rizoma, que tambm ser explorado aqui. Tudo isso aconteceu ainda nos anos 1980; no final daquela d-cada e no incio dos noventa, eu acabaria lendo muito mais Guattari, sem me ocupar da obra "solo" de Deleuze.

    Mas em 1991 eles lanaram sua ltima obra: O que a filosofia?. Por meio dela, que passei a trabalhar (tanto no es-tudo da filosofia quanto em seu ensino), fui cada vez mais me aproximando da obra filosfica que Deleuze produziu sem a contribuio de Guattari. A partir de ento venho lendo Deleuze, em sua produo "solo", e tambm relendo

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    DELEUZE & A EDUCAO

    sua produo com Guattari, e pensando as implicaes de certos conceitos seus para o campo educacional.

    Vali-me, para a composio deste texto, de artigos e fragmentos de artigos j escritos. Usei e abusei daquilo que uma amiga certa vez chamou de "autoplgio". Mas senti-me reconfortado pelo prprio Deleuze, para quem a criao de conceitos , tambm, um ato de roubar con-ceitos de outros; segundo ele, o roubo criativo, pois sem-pre transformamos aquilo de que nos apropriamos. Ora, por que no roubar de si mesmo, ento? S espero que o roubo tenha sido, efetivamente, criativo e que possa moti-var criaes outras. Entraram, pois, na composio do li-vro, artigos que escrevi sobre o conceito de rizoma e suas implicaes na educao, um ou dois artigos sobre o tema da educao menor, a partir da noo de literatura menor, alm de um exerccio de pensar a filosofia da educao como criao conceitual.

    Na rpida introduo que fez para um conjunto de artigos e entrevistas que foram publicados com o ttulo de Conversaes, Deleuze escreveu que:

    Certas conversaes duram tanto tempo, que j no sabemos mais se ainda fazem parte da guerra ao j da paz. verdade que a filosofia inseparvel de uma clera contra a poca, mas tambm de uma serenidade que ela nos assegura [ ... ] Como as potncias no se con-tentam em ser exteriores, mas tambm passam por cada um de ns, cada um de ns que, graas filosofia, encontra-se incessantemente em conversaes e em guerrilha consigo mesmo. 1

    1 DELEUZE, Gilles. Conversaes. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

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    Minha pretenso com este livro - certamente no pequena - a de promover no leitor, educador, ou ao menos algum preocupado com questes educacionais, essas conversaes e guerrilhas consigo mesmo, por meio das provocaes postas por Deleuze. No se trata, por-tanto, de enunciar aqui as ltimas verdades sobre a educa-o, mas sim de trazer conceitos e provocaes que nos permitam, de novo, pensar a educao, desalojando-nos de nossas falsas certezas.

    Por fim, quero agradecer o convite de Alfredo Veiga-Neto, idealizador e coordenador desta coleo, pelo con-vite-desafio para mais esta aventura de escrita, e pela pacincia na espera .. .

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    GILLES ELEUZE: UMA VIDA

    O que a imanncia? uma vida ... Ningum melhor que Dickens narrou o que uma vida, ao considerar o artigo indefinido como ndice do transcendental. Um canalha, um mal sujeito, desprezado por todos, est para morrer e eis que aqueles que cuidam dele manifestam uma es-pcie de solicitude, de respeito, de amor, pelo menor sinal de vida do moribundo [ ... ] Uma vida no contm nada mais do que virtuais. Ela feita de virtualidades, acontecimentos, singularidades. 1

    Deleuze escreveu essas frases naquele que consi-derado o ltimo texto escrito por ele. Apareceu na Revis-ta Phi/osophie, publicada pelas ditions de Minuit, uma das editoras com as quais ele colaborou, em seu nmero 47, datado de 1 de setembro de 1995. Em novembro desse mesmo ano ele estaria morto. O acontecimento Gilles Deleuze veio ao mundo em Paris, 70 anos antes, mais pre-cisamente no dia 18 de janeiro de 1925, filho mais moo de um engenheiro. Que virtualidades, que singularidades estariam presentes nessa vida?

    1 Gilles Deleuze. L'lmmanence: une vie . .. Philosophie, n. 47. Paris: Les ditions de Minuit, 1 de setembro de 199 5, p. 5-6. Cito aqui na traduo de Tomaz Tadeu, Revista Educao & Realidade, n. 27 /2.

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    Deleuze fez seus estudos mdios no Liceu Carnot, em Paris, e aps sua concluso matriculou-se na Sorbon-ne, para estudar filosofia. Nessa instituio, assistiu aos cur-sos de professores renomados, como Jean Hippolyte, FerdinandAlqui e Maurice de Gandillac, por exemplo. Seu ingresso na Sorbonne deu-se em 1944 e, em 1947, obtinha o diploma de estudos avanados sobre Hume, que desen-volveu sob a orientao de Jean Hippolyte e Georges Can-guilhem. Deleuze apresentar sua tese de doutorado tardiamente, em 1968, quando j era um professor experi-ente e reconhecido, com vrios livros publicados. Na uni-versidade francesa, so apresentadas duas teses, a principal e a complementar; a tese principal de Deleuze foi intitulada Diferena e &petio, enquanto que a complementar foi Spinoza e o problema da expresso. A primeira foi orientada por Maurice de Gandillac; a segunda, por Ferdinand Alqui. Nas entre-vistas de O Abecedrio de Gilles Deleuze o filsofo narra, bem-humorado, o episdio de sua defesa de tese na Sor-bonne: foi a primeira sesso de defesa de tese aps as manifestaes de maio de 68 e estavam todos muito as-sustados, a banca mais preocupada em observar se no havia manifestantes por perto, que poderiam violentamen-te interromper a sesso, do que interessada na prpria apresentao do candidato. De toda forma, Deleuze foi, evidentemente, aprovado e ambas as teses seriam publi-cadas em seguida como livros, ainda nesse ano de 1968.

    J em 1948, logo aps concluir a graduao, prestou a agrgation, concurso pblico para ingresso no magistrio, na rea de Filosofia. Entre 1948 e 1957 foi professor de Filosofia na educao mdia francesa, em princpio nos li-ceus de Amiens e de Orlans, transferindo-se, finalmente,

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    DELEUZE & A EDUCAO

    para Paris, onde trabalhou no Liceu Louis-le-Grand. Em 1957 ingressou na carreira universitria, sendo que at 1969 exerceu diversos cargos: assistente, na Sorbonne, em His-tria da Filosofia (1957-1960); pesquisador (entre 1960-1964), no Centro Nacional de Pesquisa Cientfica (o famoso CNRS, na sigla em francs); encarregado de ensi-no, na faculdade de Lyon (entre 1964 e 1969) .

    Em 1969, foi nomeado, por indicao de Michel Fou-cault, professor na recm-criada Universidade de Paris VIII - Vincennes, onde permaneceria at sua aposentadoria, em 1987. A experincia de Vincennes foi sui generis-. fruto da reforma universitria empreendida pelo governo fran-cs aps as agitaes do "maio de 68", na qual as univer-sidades passam a ser regidas pelos princpios de autonomia, pluridisciplinaridade e participao dos usurios, Vincen-nes o primeiro "Centro Experimental" criado, justamente com o objetivo de promover novas perspectivas de pro-duo e ensino acadmicos. Por indicao de Georges Canguilhem, a direo do Departamento de Filosofia entregue a Foucault, que fica encarregado de contratar os professores. O primeiro a ser solicitado Deleuze; po-rm, devido a estar bas tante doente, s poder atender ao chamado dois anos depois, quando Foucault j ter deixa-do Vincennes, para assumir sua ctedra no College de Fran-ce. Dentre os contratados por Foucault e com os quais Deleuze trabalharia, podemos citar: Franois Chtelet, Jacques Ranciere, Alain Badiou, entre outros.

    O Centro Experimental de Vincennes ser determi-nante na experincia docente de Deleuze e tambm na construo de seu pensamento transversal. Sobre essa experincia, escreveu ele:

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    Em Vincennes, a situao diferente. Um professor, digamos, de filosofia, fa la de um pblico que inclui, com diferentes nveis de conhecimento, matemticos, msicos (de formao clssica ou da pop 11111sic), psic-logos, historiadores, etc. Ora, em vez de "colocar entre parnteses" essas outras disciplinas para chegar mais facilmente quela que pretendemos lhes ensinar, os ouvintes, ao contrrio, esperam da Filosofia, por exem-plo, alguma coisa que lhes servir pessoalmente ou que tenha alguma interseco com suas atividades. A Filo-sofia lhes interessar, no em funo de um grau de conhecimento que eles possuiriam nesse tipo de saber, mesmo quando se trata de um grau zero de iniciao, mas em funo direta de sua preocupao, ou seja, das outras matrias ou materiais dos quais eles tm j um certo domnio. , pois, por conta prpria que os ou-vintes vm buscar alguma coisa num curso. O ensino da filosofia orienta-se, assim, diretamente, pela ques-to de saber em qu a filosofia pode servir a matemti-cos, ou a msicos, etc. - mesmo, e sobretudo, quando ela no fala de msica ou de matemtica ( ... ]. A presena de numerosos trabalhadores e de um grande nmero de estrangeiros, _confirma e refora essa situa-o( ... ]. Atualmente, esse mtodo est ligado, na verda-de, a uma situao especfica de Vincennes, a uma histria de Vincennes, mas que ningum poder suprimir sem fazer desaparecer tambm uma das principais tentativas de renovao pedaggica na Frana. O que nos ameaa uma espcie de lobotomia do ensino, uma espcie de lobotomia dos docentes e dos discentes, qual Vincen-nes ope uma capacidade de resistncia.2

    2 Gilles Deleuze. Em qu a fosofia pode servir a matemticos, ou mesmo a msicos .. . Educao & Realidade, jul/dez. de 2002, v. 27, n. 2, p. 225-226.

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    DELEUZE & A EDUCAO

    Deleuze nunca foi um homem da mdia, um filsofo da mdia, moda de um Sartre ou de um Foucault. De esprito retrado, nunca gostou de viajar, de estar em congressos, de dar entrevistas. Mas foi um grande professor, em Vincennes e anteriormente a ela, como mostra seu pblico, sempre nu-meroso e diverso. Ao Magaziiie Littraire certa vez definiu seus "sinais particulares": "viaja pouco, jamais aderiu ao Partido Comunista, jamais foi fenomenlogo nem heideggeriano, no renunciou a Marx, no repudiou Maio de 68."3 Numa entre-vista a Raymond Bellour e Franois Ewald, em 1988, instado a falar sobre sua vida, afirmou o seguinte:

    As vidas dos professores raramente so interessantes. Claro, h as viagens, mas os professores pagam suas viagens com palavras, experincias, colquios, mesas-re-dondas, falar, sempre falaybs intelectuais tm uma cul-tura formidvel, eles tm opinio sobre tudo. Eu no sou um intelectual, porque no tenho cultura disponvel, nenhuma reserva. O que sei, eu o sei apenas para as neces-sidades de um trabalho atual, e se volto ao tema vrios anos depois, preciso reaprender tudo. muito agrad-vel no ter opinio nem idia sobre tal ou qual assunto. No sofremos de falta de comunicao, mas ao contr/ rio, sofremos com todas as foras que nos obrigam a nos exprimir quando no temos grande coisa a dizer. Viajar ir dizer alguma coisa em outro lugar, e voltar para dizer alguma coisa aqui. A menos que no se volte, que se permanea por J. Por isso sou pouco inclinado s viagens; preciso no se mexer demais para no es-pantar os devires. 4

    3 Magazine l..ittraire, n. 406, frvier 2002, L 'ejfet Deleuze - philosophie, esthtique, politiq11e, p. 20.

    4 Gilles Deleuze, Conversafes. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 171-172.

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    Adiante, na mesma entrevista, Deleuze fala de sua experincia como professor:

    As aulas foram uma parte da minha vida, eu as dei com paixo. No so de modo algum como as conferncias, porque implicam uma longa durao, e um pblico rela-tivamente constante, s vezes durante vrios anos. como um laboratrio de pesquisas: d-se um curso so-bre aquilo que se busca e no sobre o que se sabe. preciso muito tempo de preparao para obter alguns minutos de inspirao. Fiquei satisfeito em parar quan-do vi que precisava preparar mais e mais para ter uma inspirao mais dolorosa [ ... ] Um curso uma espcie de Sprechgesang [canto falado], mais prximo da msica que do teatro. Nada se ope, em princpio, a que um curso seja um pouco at como um concerto de rock.5

    Encontros. Os encontros foram virtualidades impor-tantes na imanncia Deleuze, que geraram agenciamentos e intercessores. No plano da "vida privada", podemos ci-tar seu encontro com Denise Paule Grandjouan (conhe-cida depois por Fanny Deleuze), com quem se casou em 1956 e com quem teve dois filhos. Fanny foi tambm com-panheira de militncia de Gilles, estando junto dele quan-do das atividades com o Grupo de Informao sobre as Prises (GIP), criado por Foucault em 1971.

    No plano da divulgao de sua obra, foi importante o encontro com a jornalista Claire Parnet. Com ela escre-veu Dilogos, em 1977, considerada uma boa introduo a seu pensamento. Em 1991, Parnet concebeu e produziu uma srie de entrevistas com Deleuze, j bastante debilitado pela

    5 Gilles Deleuze. Conversaes. Rio de Janeiro: Ed . 34, 1992, p. 173-174.

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    DELEUZE & A EDUCAO

    doena, cujo fio condutor so as letras do alfabeto. Para cada uma delas Parnet escolheu uma palavra significativa na vida/ obra de Deleuze e sobre a qual ele discorreu livre-mente, de forma mais breve ou demorada, dependendo do caso. Avesso mdia, o acordo foi que a entrevista s viria a pblico aps sua morte. hoje um importante documento vivo sobre o homem-Deleuze, o filsofo-Deleuze.6

    No plano filosfico, dois encontros foram determi-nantes. Em 1962, encontrou-se com Michel Foucault em Clermont-Ferrand, encontro promovido por Jules Vuille-min. A amizade com Foucault comea por uma afinidade filosfica: o interesse por Nietzsche; os dois seriam os responsveis pela edio crtica das obras completas do filsofo alemo em francs, entre 1966 e 1967. Essa ami-zade filosfica manifesta-se numa srie de artigos: Fou-cault comenta Deleuze; Deleuze comenta Foucault. Em 1970, Foucault escreveu o artigo "Theatrum Philosophi-cum", publicado na importante revista Critique, no qual comenta longamente dois livros de Deleuze, recm-lan-ados: Diferena e repetio e Lgica do sentido, e lana uma frase que se tornaria famosa: "um dia, talvez, o sculo ser deleuziano". A amizade se estende pelas opes pol-ticas de esquerda e, sobretudo pelo ativismo: Deleuze militou com Foucault junto ao GIP: Grupo de Informa-o sobre as Prises, no incio dos anos 1970. Mas tam-bm a poltica que os afasta: divergncias de concepes polticas e de militncia, que se agravam no final de 1977,

    6 L'Abcdaire de Gilles Deleuze est disponvel em vdeo no mercado francs. No Brasil, uma verso legendada em portugus veiculada pela TV Escola, do MEC, na srie Ensino Fundamental.

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    fazem com que os dois simplesmente nunca mais voltem a se encontrar.7 No obstante, aps a morte de Foucault, em 1984, Deleuze lana um belo livro dedicado filosofia do amigo. O curioso nesse encontro filosfico, que De-leuze e Foucault nunca escreveram nada juntos: suas obras tangenciam-se nos interesses e nas perspectivas, mas em termos de produo terica a nica coisa que fizeram jun-tos foi darem entrevistas, como aquela famosa sobre Os Intelectuais e o poder, de 1972. 8

    Em 1969 acontece o encontro filosfico mais im-portante de Deleuze: aquele que se deu com Flix Guattari. Deleuze, aps uma srie de estudos em Histria da Filo-sofia, produzindo obras sobre Hume, Spinoza, Nietzs-che, Kant, Bergson, acabava de produzir duas obras monumentais, nas quais lanava-se aventura de um pen-samento sem redes de segurana nem botes salva-vidas: Diferena e Repetio e Lgica do Sentido. Guattari, por sua vez, havia abandonado a psicanlise estruturalista de La-can e o modelo revolucionrio leninista, interessando-se pelos investimentos revolucionrios do desejo na vida coti-diana, e estava desenvolvendo a psicoterapia institucional na clnica La borde, com Jean Oury. Juntos, produziram os

    7 Sobre a amizade Deleuze-Foucault e seu afastamento, ver a biografia de Foucault escrita por Didier Eribon: Michel Fo11ca11/t-11111a biografia. So Paulo: Cia. das Letras, 1990.

    8 A entrevista de Foucault e Deleuze sobre os intelectuais e a poltica pode ser encontrada em portugus em duas fontes: na coletnea de textos de Foucault organizada por Roberto Machado, com o ttulo Microfsica do poder, publicada pela editora Graal; ou no vol. IV dos Ditos e esm'tos, de Michel Foucault, edio brasileira pela Forense Uni-versitria, sob a direo de Manoel Barros da Mota.

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    DELEUZE & A EDUCAO

    dois magistrais volumes de Capitalismo e esquizofrenia: O Anti-dipo, em 1972, e Mil Plats, em 1980, alm do volume sobre a literatura de Kafka, em 1975, Kefka:por uma litera-tura menor, e da ltima grande obra dos dois e de cada um deles: O que a Filosofia? (1991). Com Flix Guattari, De-leuze desenvolveu um estilo de produzir filosofia .

    Numa entrevista de 1985, assim Deleuze pronunciou-se sobre sua parceria com Guattari:

    O essencial so os intercessores. A criao so os inter-cessores. Sem eles no h obra. Podem ser pessoas -para um filsofo, artistas ou cientistas; para um cientis-ta, filsofo s ou artistas - mas tambm coisas, plantas, at animais, como em Castaiieda. Fictcios ou reais, ani-mados ou inanimados, preci so fabricar seus prprios intercessores. uma srie. Se no formamos uma srie, mesmo que completamente imaginria, estamos perdi-dos. Eu preciso de meus intercessores para me exprimir, e eles jamais se exprimiriam sem mim: sempre se traba-lha em vrios, mesmo quando isso no se v. E mais ainda quando visvel: Flix Guattari e eu somos inter-cessores um do outro.9

    Deleuze foi perdendo seus intercessores. Em 1984, morreu Foucault. Em 1992, morreu Guattari, logo depois que haviam publicado O que a Filosofia?. Sua doena se agravou: sofria de uma insuficincia pulmonar que lhe ti-rava as possibilidades de uma vida ativa. Aos poucos, viu-se obrigado a abandonar todas as suas relaes sociais e, por fim, inclusive suas atividades de escrita. Sentindo suas virtualidades e suas foras esvadas, Deleuze ps fim

    9 GiUes Deleuze. Conversaes. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 156.

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    prpria vida: jogou-se da janela de seu apartamento em Paris, em 04 de novembro de 1995.

    A obra de Deleuze constitui-se dos seguintes livros (citados no original francs com as respectivas tradues para o portugus):

    David Hume, sa vie, son oeuvre, avec un expos de sa phi-losophie (com Andr Cresson). Paris: PUF, 1952.

    Empirisme et suijectivit. Paris: PUF, 1953 (Empirismo e suijetividade. So Paulo: Ed. 34, 2001).

    Instincts et instituitions (organizao, prefcio e apre-sentao). Paris: Hachette, 1955 ("Instintos e Ins-tituies" in: Carlos Henrique Escobar (Org.), Dossier Deleuze. Rio de Janeiro: Hlon, 1991 ).

    Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF, 1962 (Nietzsche e a filosefia. Rio de Janeiro: Rio, 197 6).

    La philosophie critique de Kant. Paris: PUF, 1963 (Para ler Kant. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976).

    Proust et les signes. Paris: PUF, 1964 (Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1987).

    Nietzsche. Paris: PUF, 1965 (Nietzsche. Lisboa: Ed. 70, 1990).

    Le Bergsonisme. Paris: PUF, 1966 (O Bergsonismo. So Paulo: Ed. 34, 1999).

    Prsentation de Sacher-Masoch. Paris: PUF, 1967 (Apre-sentao de Sacher-Masoch. Rio de Janeiro: Taurus, 1983).

    Difjrence et rptition. Paris: PUF, 1968 (Diferena e repetio. Rio de Janeiro: Graal, 1988; Lisboa: Rel-gio D' gua, 2000).

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    DELEUZE & A !'DUCAO

    Spinoza et /e prob!eme de l'expression. Paris: Minuit, 1968. Logique du sens. Paris: Minuit, 1969 (Lgica do Sentido.

    So Paulo: Perspectiva, 1982). Spinoza. Paris: PUF, 1970. L'Anti-Oedipe (com Flix Guattari) . Paris: Minuit,

    1972 (O Anti-dipo. Rio de Janeiro: Imago, 1976). Kajka:pour une littrature mineure (com Flix Guatta-

    ri). Paris: Minuit, 1975 (Kafka: por uma literatura me-nor. Rio de Janeiro: Imago, 1977).

    Rhizome (com Flix Guattari). Paris: Minuit, 1976 (includo depois em Mille Plateaux) .

    Dialogues (com Claire Parnet). Paris: Flammarion, 1977 (Dilogos. So Paulo: Escuta, 1998).

    Superpositions(com Carmelo Bene). Paris: Minuit, 1979. Mille Plateaux (com Flix Guattari). Paris: Minuit,

    1980 (Mi/Plats. So Paulo: Ed. 34, 1995-97, 5 vols.). Spinoza, philosophie pratique. Paris: Minuit, 1981 (Es-

    pinosa, filosefia prtica. So Paulo: Escuta, 2002). Francis Bacon, logique de la sensation. Paris: ditions de

    la Diffrence, 1981, 2 vols. Cinma 1: l'image-mouvement. Paris: Munuit, 1983 (Cine-

    ma 1: a imagem-movimento. So Paulo: Brasiliense, 1990). Cinema 2: l'image-temps. Paris: Minuit, 1985 (Cinema

    2: a imagem-tempo. So Paulo: Brasiliense, 1990). Foucault. Paris: Minuit, 1986 (Foucault. So Paulo:

    Brasiliense, 1988). Le pli: Leibniz et /e baroque. Paris: Minuit, 1988 (A

    dobra: Leibniz e o barroco. Campinas: Papirus, 1991 ).

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  • COLEO "PENSADORES & EDUCAO"

    Pric/es et Verdi. Paris: Minuit, 1988 (Pricles e Verdi. Rio de Janeiro: Pazulin, 1999).

    Pourparlers. Paris: Minuit, 1990 (Conversaes. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992).

    Ou'est-ce que la philosophie? (com Flix Guattari) . Pa-ris: Minuit, 1991 (O que a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992).

    L'puis (in: Samuel Beckett, Quad) . Paris: Minuit, 1992.

    Critique et clinique. Paris: Minuit, 1993 (Crtica e clnica. So Paulo: Ed. 34, 1997).

    L 'oiseau philosophie (Duhme dessine Deleuze). Pa-ris: Seuil, 1997.

    L 'fie deserte et autres textes (te:xtes et entretiens 19 S 3-19 7 4). dition prpare par David Lapoujade. Paris: Mi-nuit, 2002.

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    ELEUZE E A FILOSOFIA

    A filosofia francesa contempornea: um mapa em rascunho

    Diferentemente das tradies filosficas europias, a filosofia francesa sempre foi muito marcada pela his-tria da filosofia, notadamente aquela produzida nos meios acadmicos. Enquanto na Gr-Bretanha, por exemplo, se incursionava pela filosofia analtica influen-ciada pelos positivistas lgicos de Viena, de um lado, e por Wittgenstein, de outro, por muito tempo, produzir filosofia foi identificado na Frana com fazer histria da filosofia, e isso marcou a atividade dos filsofos france-ses de forma indelvel. Mas mesmo esse fazer histria da filosofia jamais foi unvoco; so famosas as querelas entre as diferentes tendncias no estudo da histria da filosofia, as propostas de diferentes abordagens que, necessariamente, redundavam em diferentes histrias de diferentes filosofias. ric Alliez, no relatrio que produ-ziu sobre a filosofia contempornea francesa, a pedido da Direo Geral das Relaes Culturais Cientficas e Tcnicas do Ministrio de Assuntos Estrangeiros da Frana, demarca bem essa discusso:

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    Admitamos que essa leitura no leva a temer o que se poder qualificar de "invaso" da filosofia francesa pela histria da filosofia - uma histria da filosofia que certa-mente no mais "a francesa" no sentido do Ps-Guer-ra, com sua guerra de trincheiras entre "estruturalistas" (Guroult), "humanistas" (Gouhier) e "existencialistas" (Alqui), sua querela interminvel do racionalismo (e con-forme se partia de Descartes, de Hegel ou de Husserl...) e suas falsas batalhas de torpedeadores e de contratorpede-adores denunciadas no sem justeza por Beaufret -, como se fosse este o efeito ou o contragolpe do esgotamento de um filo mais criador: aquele dos pensadores que tinham sabido ajustar-se o fora da filosofia universitria, das cin-cias contemporneas histria dos dispositivos e das ins-tituies, sem omitir o dominio literrio no qual a influncia de Blanchot foi preponderante. 1

    Mas Alliez, no trecho citado, j aponta tambm que essa viso "historicista" da filosofia parece superada, nas ltimas dcadas. Mesmo antes disso, porm, duas ntidas linhas insinuavam-se na constituio do pensamento com sotaque francs do sculo XX: de um lado, a filosofia da vida na produo de Bergson e, de outro, uma filosofia que, voltada para o mundo da vida, queria transcend-lo, encontrando a o~iginalidade dos conceitos, a partir da pro-duo metodolgica de Husserl. Boa parte da filosofia francesa daquele sculo foi marcada pela fenomenologia. A descoberta do mtodo proposto por Husserl, muitas vezes por meio de Heidegger, balanou os jovens estudantes de filosofia franceses, gue tentavam fugir de uma metafsica do abstrato e buscavam a possibilidade de produzir uma

    1 ALLIEZ, Eric. Da Impossibilidade da Fe11ome11ologia; sobre a filosofia france-sa contempornea. So Paulo: Ed. 34, 1996, p. 32-33.

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    filosofia do concreto. Dois dos maiores expoentes da fi-losofia francesa no sculo XX, Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty, foram, no por acaso, leitores (ou releito-res) de Husserl.2

    Sartre, desde muito jovem, teve sua produo filos-fica marcada pela filosofia husserliana. Tendo obtido uma bolsa para estudos na Alemanha, passou um ano em Ber-lim, entre 1933 e 1934, estudando a obra de Husserl, sobre-tudo as Idias Fundamentais para uma Fenomenologia. O resultado foi a obra A Transcendncia do Ego, que publicou em seguida, e a forte influncia em O Ser e o Nada (1943), alm de em outros textos menores. A proposta de Sartre era de uma "volta a Husserl'', dei.'

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    isso s vezes chamada de gerao 68 - ser uma gerao de leitores de Nietzsche, entre os quais podemos destacar Deleuze, Foucault, Lyotard, Derrida, por exemplo. Um dos principais responsveis pela recepo de Nietzsche na Frana foi Pierre Klossowski, filsofo da mesma gera-o de Sartre (ambos nasceram em 1905), gerao que marcaria a formao de Deleuze, Foucault e companhia. Esse encontro com Nietzsche marcaria a filosofia france-sa, levando a prpria produo acadmica para mares nun-ca dantes navegados da histria da filosofia; basta frisar que os quatro citados foram professores nas mais impor-tantes instituies de ensino superior francesas, sendo portanto responsveis pela formao de novas geraes de filsofos franceses.

    Um comentrio de Deleuze emblemtico dessa "nova" forma de se fazer filosofia que, partindo de fil-sofos consagrados pela histria, consiste numa atividade criadora, e no apenas reprodutora:

    A histria da filosofia no uma disciplina particular-mente reflexiva. antes como uma arte de retrato em pintura. So retratos mentais, conceituais. Como em pin-tura, preciso fazer semelhante, mas por meios que no sejam semelhantes, por meios diferentes: a semelhana deve ser produzida, e no ser um meio para reproduzir (a nos contentaramos em redizer o que o filsofo dis-se). Os filsofos trazem novos conceitos, eles os expem, mas no dizem, pelo menos no completamente, a quais problemas esses conceitos respondem. Por exemplo, Hume expe um conceito original de crena, mas no diz por que nem como o problema do conhecimento se coloca de tal forma que o conhecimento seja um modo determinvel de crena. A histria da filo sofia deve, no

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    redizer o que disse um filsofo, mas dizer o que ele ne-cessariamente subentendia, o que ele no dizia e que, no entanto, est presente naquilo que diz. 3

    Trata-se, portanto, de produzir filosofia a partir da histria da filosofia, mas no ficando confinado a ela, ape-nas reproduzindo o pensamento, mas criando novos con-ceitos. A histria da filosofia a base da qual se parte, no mais o ponto de chegada.

    Uma nova gerao de filsofos franceses, formada a partir dos anos 1960 - e tendo, portanto, como mestres os leitores de Nietzsche - vai esboar uma reao, no final dos anos 1980 e incio dos 90. So aqueles que ficaram conhecidos como os "novos filsofos" que, para buscar seu lugar ao sol na concorrida cena filosfica francesa, seja no palco das academias ou no novo palco virtual das mdias Gornais, tev e depois o ciberespao), no hesitaram em revoltar-se contra os mestres. Bernard Henri-Lvy, An-dr Comte-Sponville, Luc Ferry, Alain Renaut, entre os mais conhecidos. Vrios deles propuseram o abandono da "filo-sofia do martelo" de Nietzsche e um retorno a um certo classicismo.4 Mas isso s serviu para ampliar ainda mais os horizontes mltiplos da filosofia francesa em nossos dias.

    Neste embate do estudo da histria da filosofia com a produo mais estritamente filosfica, nas confluncias e refluxos do bergsonismo com as leituras francesas da

    3 DELEUZE, Gilles. Po11rparlers. Paris: Minuit, 1990, p. 185-186 (na tra-duo brasileira, Conversaes. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 169-170).

    4 Emblemca dessa posio uma obra coleva, publicada na Frana em 1991: BOYER, Alain et alli. Porque no somos nietzschea11os. So Pau-lo: Ed. Ensaio, 1994.

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    fenomenologia, nos mltiplos encontros/ desencontros com Nietzsche, no debate com a filosofia analtica anglo-sax-nica, foi delineando-se a contemporaneidade da filosofia francesa. Contemporaneidade feita de multiplicidade, de diferentes referenciais, de distintas leituras e releituras. Essa multiplicidade dificulta, claro, as classificaes; qui daqui a um sculo o distanciamento temporal permita aos histo-riadores da filosofia perceber elementos de articulao que permitam o vislumbre de "correntes de pensamento", de territrios demarcados no mapa do pensamento francs da segunda metade do sculo XX. Por ora, qualquer tentativa de "classificao" parece-me prematura e equivocada.5

    Tal multiplicidade do pensamento francs contem-porneo interpretada no j citado relatrio deAlliez como o processo de libertao da filosofia de uma certa tradi-o mais recente, que circunscrevia a produo filosfica numa triangulao - similar quela da edipianizao, com que Freud circunscreve a produo do desejo - entre o positivismo, a fenomenologia e a crtica, impedindo no-vas experincias de pensamento.

    Enfrentando o termo equvoco de sua realizao, uma certa identidade da filo sofia francesa se constituiu: con-

    ; Discordo abertamente, portanto, daqueles que se apressam em falar em "ps-estruturalismo" ou em abarcar quase tudo sob o epteto de "ps-modernismo". De um lado porque o prefixo "ps" designa apenas posterioridade temporal e a camos na obviedade: claro que absolutamente tudo o que foi produzido posteriormente ao estrutura-lismo "ps-estruturalismo", mas isso muito pouco para delimitar um esforo de pensamento e produo conceituai; de outro lado por-que o ps-modernismo, se que podemos, de fato, falar em algo assim, seria tambm um termo excessivamente vago para designar esforos de pensamento.

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    tempornea. Da retomada da critica bergsoniana das filo-sofias da conscincia por Merleau-Ponty no quadro de sua crtica do idealismo transcendental de Husserl, des-construo derridiana da fenomenologia, 'metafsica da presena na forma da idealidade', como filosofia da vida, projetando um espectro cujas extremidades se dividiram hoje entre Deleuze e Badiou, imps-se assim um campo de pesquisa cuja aposta, em toda a diversidade de seus procedimentos, simplesmente a de libertar a razo do tringulo mgico Crtica - Positivismo lgico - Feno-menologia transcendental.6

    Assim, no se pode propriamente falar em "tendn-cias predominantes" na filosofia francesa contempornea. Tendo escapado do tringulo crtico (leia-se marxismo -positivismo - fenomenologia), as diferenas proliferaram. A gerao de filsofos leitores de Nietzsche, por inspira-o de Klossowski, parece ter levado a cabo o desafio lan-ado pelo filsofo da Basilia na Genealogia da Moral, obra de 1886; ali Nietzsche afirmou que

    Devemos afinal, como homens de conhecimento, ser gratos a tais resolutas inverses das perspectivas e valo-raes costumeiras, com que o esprito, de modo apa-rentemente sacrlego e intil, enfureceu-se consigo mesmo por tanto tempo: ver assim diferente, querer ver assim diferente, uma grande disciplina e preparao do intelecto para a sua futura 'objetividade' - a qual no entendida como 'observao desinteressada' (um ab-surdo sem sentido), mas como a faculdade de ter seu pr e seu contra rob controle e deles poder dispor: de modo a saber utilizar em prol do conhecimento a diversidade de perspectivas e interpretaes afetivas [ ... ] Existe apenas uma

    6 ALLIEZ, op. cit. , p. 57.

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    viso perspectiva, apenas wn 'conhecer' perspectiva; e quanto mais afetos permitirmos falar sobre wna coisa, quanto maisolhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo ser nosso 'conceito' dela, nossa 'objetividade'. Mas eliminar a vontade inteiramen-te, suspender os afetos todos sem exceo, supondo que o consegussemos: como? - no seria castrar o intelec-to? ... (2 Dissertao, 12).7

    No castrar o intelecto mas, ao contrrio, fazer pro-liferar as experincias de pensamento; parece ser essa a tnica da filosofia francesa inspirada por Nietzsche. E, mesmo por isso, fica difcil falar em uma "corrente filo-sfica". Se h pontos de contato, tangenciamentos, en-tre os pensamentos de Deleuze, Foucault, Derrida, Lyotard e outros, h tambm muitas diferenas, e dife-renas significativas, que no permitem que eles sejam colocados como representantes de uma mesma "corrente de pensamento".

    Se h a influncia de Nietzsche, h ainda vrias ou-tras; no caso de Deleuze, elas vm da filosofia e de ou-tros lados. Na filosofia, Deleuze bebe em Spinoza, em Bergson, em Hume, em Kant, em Leibniz. Mas h a lite-ratura: Proust, Lewis Carrol, Herman Melville, Sacher-Masoch. H o cinema. Assim, no possvel dizer que Deleuze tenha sido um "nietzscheano", como no o fo-ram Foucault, Derrida e companhia. So singularidades numa multiplicidade, singularidades que tm em comum atender ao apelo de Nietzsche de atentar para a diversidade

    7 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. So Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 108-109.

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    como elemento positivo na produo dos conhecimen-tos, mas que, justamente por atender ao apelo da diver-sidade, ficam marcadas pelas diferenas, entre si e com as outras.

    Deleuze, filsofo da multiplicidade

    Nesse quadro de multiplicidades que a filosofia con-tempornea francesa, podemos dizer que Gilles Deleuze foi o filsofo da multiplicidade. Como afirmou Roberto Machado, "no h dvida de que a grande ambio de Deleuze realizar, inspirado sobretudo em Bergson, uma filosofia da multiplicidade".8 E o prprio Deleuze inicia um de seus ltimos escritos afirmando que "a filosofia a teoria das multiplicidades".9

    Deleuze , em princpio, mais um historiador da filo-sofia. Mas no um historiador qualquer; ele , antes de qualquer coisa, um historiador-filsofo, ou melhor, um filsofo-historiador. A sua produo filosfica comea, necessariamente, com o estudo de filsofos importantes na histria das mentalidades (Hume, Bergson, Spinoza, Leibniz, Kant, Nietzsche ... ) para ir (re)desenhando novos mapas conceituais, pois, como vimos anteriormente, para ele a ao do historiador da filosofia pode ser vista como

    8 MACHADO, Roberto. Deleuze e a Filosofia. Rio de Janeiro: Graal, 1990, p. 12.

    9 L'act11el et le virt11el in: DELEUZE, Gilles et PARNET, Claire. Dialogues. Paris: Flammarion, 1997, p. 179. (traduo brasileira por Eloisa Ara-jo Ribeiro, Dilogos. So Paulo: Escuta, 1998; h tambm uma tradu-o deste texto em apndice a ALLIEZ, ric. Dele11ze Filmofia VirtuaL So Paulo: Ed. 34, 1996).

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    a ~ o do pintor retratista.' Fazer filosofia muito mais do que repetir filsofos, mas como a filosofia trata do mundo e h mais de dois mil anos que filsofos debru-am-se sobre ele, tambm difcil fazer filosofia (pensar o novo) sem retomar o j pensado.

    Mas essa "repetio" (que tambm, necessariamen-te, "diferena") que Deleuze faz dos filsofos antes de tudo um roubo. Citando e parafraseando Bob Dylan, Deleuze afirma que "roubar o contrrio de plagiar, de copiar, de imitar ou de fazer como".11 A produo filo-sfica , necessariamente, solitria, mas uma solido que propicia encontros; esses encontros de idias, de escolas filosficas, de filsofos, de acontecimentos que proporcionam a matria da produo conceituai. Em outras palavras, s se produz na solido da interiorida-de, mas ningum produz do nada, no vazio. A produo depende de encontros, encontros so roubos e roubos so sempre criativos; roubar um conceito produzir um conceito novo. Nesse sentido, a filosofia de Deleuze pode ser vista como um desvio.

    Se tivermos que ler a obra de Deleuze como um ataque ou uma traio aos elementos da tradio metafsica ocidental, temos que compreender tal postura como uma afirmao de outros elementos dessa mesma tradio. Em outras palavras, no podemos ler a obra de Deleuze como se estivesse "fora" ou "alm" da tradio filosfica,

    10 Sobre a questo do Deleuze-historiador da filosofia e do Deleuze-filsofo, ver as obras j citadas de Alliez, Delmze Filosofia virtual, e, de Machado, Deleuze e a Filosofia.

    11 DELEUZE, Gilles et PARNET, Claire. Dialogues. Paris: Flammarion, 1997, p. 13 (p. 15, na traduo brasileira).

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    ou mesmo como uma efetiva via de escape daquele blo-co; ao invs disso, devemos encar-la como a afirmao de uma (desconnua, mas coerente) linha de pensamen-to que permaneceu suprimida e latente, mas, no obs-tante, profundamente embebida na mesma tradio. 12

    Para alm dos encontros de Deleuze com os filso-fos j citados, outros so importantes na constituio de sua obra filosfica: seu encontro com o cinema (que resul-tou numa obra em dois volumes); seus mltiplos encon-tros com a literatura (Kafka, Beckett,Jarry, Sacher-Masoch, Lawrence, a literatura norte-americana, entre outros), que resultaram em diversos ensaios; seu encontro crtico (talvez no fosse demais falar em desencontro) com a psicanlise. Mas h ainda um encontro, dos mais fundamentais para a produo deleuziana dos anos 1970 aos 90: seu encontro com Flix Guattari. 13 A colaborao entre eles comeou com O Anti-dipo (primeira edio francesa datada de 1972), estendeu-se por Kqfka - por uma literatura menor (1975), Rizoma (1976), Mil Plats (1980), culminando com O que a filosefia? (1991).

    A filosofia de Deleuze uma constante ateno ao mun-do e ao tempo presente, a busca dos pequenos detalhes que

    12 HARDT, Michael. Gilles Deleuze, um aprendizado em filosofia. So Paulo: Ed. 34, 1996, p. 21-22.

    13 Guattari (1930-1993) foi uma personalidade mltipla. Analista, rom-peu com Lacan, o papa da psicanlise na Frana, e fundou a anlise institucional, criando, mais tarde, j com Deleuze, a esquizoanlise, que se prope desedipianizar a produo do desejo, liberando seus fluxos. Mas Guattari foi tambm um ativista poltico e um terico de primeira linha, com produo ampla e variada. Foi, certamente, um dos grandes intelectuais deste final de milnio, com o pensamento voltado para o futuro.

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    so o que de fato importa. Quando leio Deleuze, que des-loca a ateno da filosofia dos "universais" abstratos para a concretude dos eventos, dos acontecimentos, no con-sigo deixar de lembrar dos filmes de David Lynch, que tambm lanam luz sobre o efmero, fazendo com que vislumbremos os pequenos acontecimentos de uma ou-tra perspectiva.14

    1/ Inspirado em Nietzsche, Deleuze quer inverter o pla-

    t6nismo. Em lugar de buscar as formas puras expressas numa nica Idia, atentar para as mirades de detalhes da sensibilidade; em lugar de buscar a contemplao do Sol, divertir-se com as mltiplas possibilidades do teatro de som-bras no interior da caverny Nas palavras de Foucault,

    Converter o platonismo (um trabalho srio) faz-lo inclinar-se com mais piedade para o real, para o mundo e para o tempo. Subverter o platonismo tom-lo do alto (distncia vertical da ironia) e apreend-lo novamente em sua origem. Perverter o platonismo espreit-lo at em seu mnimo detalhe, descer (conforme a gravita-o caracterstica do humor) at esse cabelo, at essa sujeira debaixo da unha que no merecem de forma al-guma a honra de uma idia; descobrir atravs disso o descentramento que ele operou para se recentrar em

    14 Da filmografia de Lynch, fao destaque para trs obras, nas quais o leitor poder tomar contato com essa experincia de se colocar sob as lentes da cmera atos corriqueiros do cotidiano, como a mo que acende um fsforo, a mo que passa esmalte nas unhas dos ps, uma orelha achada num gramado de um terreno baldio, e toda a potica estranheza que manifestam: B/11e Ve/vet (Ve/11do AZfl~; Wi/d ai Heart (Corao Se/vagem) e Mulholand Drive (Cidade dos S anhos). Por outro lado, Tn1e Story (Uma Histna Rea~ todo ele dedicado a um ato efmero: um velho que decide atravessar o pas dirigindo um cortador de gra-ma, para visitar o irmo, com quem brigara h dcadas.

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    torno do Modelo, do Idntico e do Mesmo; se descen-trar em relao a ele para fazer agir (como em qualquer perverso) as superfcies prximas. A ironia eleva e sub-verte; o humor faz cair e perverte. Perverter Plato deslocar-se da maldade dos sofistas, dos gestos rudes dos cnicos, dos argumentos dos esticos, das quimeras esvoaantes de Epicuro. Leiamos Digenes Larcio. 15

    Mas como proceder para produzir uma filosofia do mltiplo e no do Uno, uma filosofia do concreto cotidi-ano e no do Universal abstrato? Como produzir uma filosofia distinta daquela da tradio ocidental, com mais de dois mil e quinhentos anos de histria? Como produ-zir uma filosofia atendendo ao desafio de Nietzsche sem , fazer como Nietzsche? Em outras palavras, qual o mto-do de Deleuze?

    faain. B~~ou cara~terizou o mtodo deleuziano como uma antzdzaletzcae uma forma smgular de intuio". 16 Uma antidialtica porque h uma recusa em se pensar por cate-gorias e por mediaes. Deleuze criticou a filosofia que se produz por divises no ser, procedendo por analogias, que foi dominante em toda a histria. Partindo de Parm-nides, com sua distino entre o Ser e o No-Ser, passan-do pelas dicotomias platnicas e pela dialtica hegeliana, que busca colocar a negao no interior da afirmao, es-tendendo-se fenomenologia, que permanece com a di-cotomia entre mundo-ai e mundo da vida, por exemplo ...

    i ; FOUCAULT, Michel. Theatrum Philosophicum, in: Ditos e escritos -v. 2. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2000, p. 232-233.

    16 BADIOU, Alain. Dele11ze- o clamor do Ser. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 47.

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    Para ele, h apenas uma voz do Ser, qiy: se multiplica e se diferencia em mltiplas tonalidades. 1fDa sua negao da dialtica, para buscar a multiplicidade, as diferenas, as variaes, que embora sejam expresses do mesmo, ja-mais devero ser unificada0 filosofia de Deleuze no , de forma alguma, uma filosofia do Uno/

    O verdadeiro mtodo filosfico no deve permitir-se absolutamente nenhuma diviso do sentido do Ser por distribuies categoriais, nenhuma aproximao do seu movimento por recortes formais preliminares, por mais refinados gue sejam. preciso pensar " juntas" a univo-cidade do Ser e a equivocidade dos entes (a segunda sendo apenas a produo imanente da primeira), sem a mediao dos gneros e das espcies, dos tipos ou dos emblemas, em suma: sem categorias, sem generalidades. /o mtodo de Deleuze , pois, um mtodo que rejeita

    o recurso s mediaes. por isso que ele essencialmente antidialtico. A mediao exemplarmente uma categoria. Ela pretende fazer passar de um ente para outro "sob" uma relao interna com pelo menos um deles.y / Badiou alerta que a intuio deleuziana no pode ser

    confundida com o sentido de intuio nos msticos ou em Descartes, por exemplo. No se trata de intuir "a par-tir do nada" uma idia clara e distinta ou mesmo uma revelao; a intuio, em Deleuze, um trabalho de pen-samento que, articulando multiplicidades de conceitos, intui novos conceitos/

    17 Ver DELEUZE, Gilles. Diferena e repetio. Rio de Janeiro: Graal, 1998.

    18 BADIOU, op. cit., p. 43-44.

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    por isso gue a intuio deleuziana no um golpe de vista da alma, mas um percurso atltico do pensamento; ela no um tomo mental, mas uma multiplicidade aber-ta; no um movimento unilateral (uma luz dirigida para a coisa), mas uma construo complexa, gue Deleuze cha-ma fregentemente de "um reencadeamento perptuo" . 19

    Com essa ao, Deleuze - embora isso ainda seja di-fcil de reconhecer - redefiniu a filosofia do sculo XX o

    ' que levou Foucault a afirmar que "um dia, talvez, o sculo ser deleuziano".20 S o tempo dir se Foucault teve razo. Mas o fato que Deleuze tornou explcito um modo de produzir filosofia que, se no novo, nunca antes havia sido explicitado da forma como ele o fez . Ou, como tam-bm afirmou Foucault, a operao deleuzeana recolocou a possibilidade do pensamento: "[ .. . ] produziu-se uma fulgu-rao que levar o nome de Deleuze: um novo pensamen-to possvel; o pensamento, de novo, possvel".21

    Rasgar o caos: a filosofia como criao de conceitos

    Em 1991 Deleuze publicou sua ltima grande obra, novamente escrita em parceria com Guattari. Trata-se de O que a filosofia?. Nesta densa obra, dedicam-se a pensar aquilo que, afirmam, s pode ser respondido na velhice, mesmo que a questo tenha sido sempre colocada, de uma ou de outra forma, ao longo de toda a vida: o que isso que fazemos, sob o nome de filosofia? E a resposta est

    19 Ibidem, p. 48. 2" FOUCAULT, Michel. Theatrum Philosophicum, op. cit., p. 230.

    21 Ibidem, p. 254.

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    presente j nas primeiras pginas, pois, na verdade, sem-pre esteve presente durante toda a vida de produo fi-losfica: "a filosofia a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos".22 O livro um ensaio em torno dessa definio, a explicitao do sentido de conceito (sophia) e de amizade (.philia); ou, em outros termos, a obra a pr-pria construo do conceito de filosofia.

    A palavra grega filosofia cruza amizade, que nos re-mete a proximidade, a encontro, com saber (deleuziana-mente, conceito). O amigo um "personagem conceituai", que contribui para a definio dos conceitos, e assim que Deleuze e Guattari lem o personagem do filsofo que nasce com os gregos: algum que, na busca pela sabedoria - que nunca de antemo, mas sempre procura, produo - in-venta e pensa o conceito, diferentemente dos sbios anti-gos, que pensavam por figuras, por imagens. Ao definir o filsofo como "amigo do conceito", admite-se que a tare-fa da filosofia necessariamente criativa:

    O filsofo o amigo do conceito, ele conceito em potncia. Quer dizer que a filosofia no uma simples arte de formar, de inventar ou de fabricar conceitos, pois os conceitos no so necessariamente formas, achados ou produtos. A filosofia, mais rigorosamente, a disci-plina que consiste em mar conceitos [ ... ] Criar conceitos sempre novos, o objeto da filosofia. porque o con-ceito deve ser criado que de remete ao filsofo como quele que o tem em potncia, ou que tem sua potncia e sua competncia ( .. . ] Que valeria um filsofo do qual

    22 DELEUZE, Gilles e GUATIARJ, Flix. O q11e a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 10.

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    se pudesse dizer: ele no criou um conceito, ele no criou / eus conceitos?2.'

    / O golpe que Deleuze e Guattari desferem contra as noes correntes de filosofia certeiro. A filosofia tem uma ao criadora (de conceitos) e no uma mera passivi-dade frente ao mundo. Podemos inferir que os dois fran-ceses discordam frontalmente da famosa XI Tese sobre Feuerbach, de Marx: "os filsofos se limitaram a interpre-tar o mundo de diferentes maneiras; mas o que importa tranifonn-lo"24, ou pelo menos da maneira que ela nor-malmente interpretada pela ortodoxia marxista. Para eles, a criao de conceitos , necessariamente, uma interven-o no mundo, ela a prpria criao de um mundo. As-sim, criar conceitos uma forma de transformar o mundo; os conceitos so as ferramentas RUe permitem ao filsofo criar um mundo sua maneira-jPor outro lado, os concei-tos podem ainda ser armas para a ao de outros, filso-fos ou no, que dispem deles para fazer a crtica de mundo, para instaurar outros mundos. Se verdade que na histria tivemos filosofias e filsofos que agiram no sentido de manter o status quo, tambm verdade que tive-mos filosofia e filsofos revolucionrios, agentes de trans-formao/ Que no se faa uma leitura idealista do conceito: no se trata de afirmar que uma idia (concei-to) que funda a realidade; num sentido completamente outro, o conceito imanente realidade, brota dela e serve

    23 DELEUZE, Gilles e GUA TIARI, Flix. O que a filosofia? op. cit., p. 13-14.

    24 MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach, em anexo a A ideologia ale111. So Paulo: Hucitec, 1986, p. 128.

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    justamente para faz-la compreensvel. E, por isso, o con-ceito pode ser ferramenta, tanto de conservao quanto de transformao. O conceito sempre uma intervenz-o no mundo, seja para conserv-lo, seja para mud-loJim-possvel no lembrar aqui de um verso da cano My IQ (Meu OI) da cantora folk norte-americana Ani diFranco: "qualquer ferramenta uma arma, se voc us-la direi-to";25 os conceitos tambm so armas, e a filosofia um empreendimento ativo e criativo.

    Mas a coisa no fica por a; a filosofia no pode ser vista nem como contemplao, nem como reflexo nem como comunicao.

    A filosofia no contemplao, como durante muito tempo - por inspirao sobretudo platnica - se julgou, pois a contemplao, mesmo dinmica, no criativa; con-siste na visada da coisa mesma, tomada como preexisten-te e independente do prprio ato de contemplar, e nada tem a ver com a criao de conceitos. Ela tampouco comunicao, e a dirige-se uma crtica a duas figuras em-blemticas da filosofia contempornea: a Habermas, com sua proposta de uma "razo comunicativa'', e a Rorty e ao neopragmatismo, propositores de uma "conversao de-mocrtica". Porque a comunicao pode visar apenas ao consenso, mas nunca ao conceito; e o conceito, muitas vezes, mais dissenso que consenso. E, finalmente, a filosofia no reflexo, simplesmente porque a reflexo no especfi-ca da atividade filosfica: possvel que qualquer um (e

    25 A cano citada de 1991. Os versos finais, no original ingls, so os seguintes: "cause every toai is a 1veapo11 - if you hold it righl'.

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    DELEUZE & A EDUCAO

    no apenas o filsofo) reflita sobre qualquer coisa. Vale citar as prprias palavras de Deleuze e Guattari:

    Ela no reflexo, porque ningum precisa de filosofia para refletir sobre o que quer que seja: acredita-se dar muito filosofia fazendo dela a arte da reflexo, mas retira-se tudo dela, pois os matemticos como tais no esperaram jamais os filsofos para refletir sobre a matemtica, nem os artistas sobre a pintura ou a msica; dizer que eles se tornam ento filsofos uma brincadeira de mau gosto,

    / que sua reflexo pertence sua criao respectiva. 26

    / No podemos identificar a filosofia com nenhuma dessas trs atitudes porque nenhuma delas especfica da filosofia, "a contemplao, a reflexo, a comunicao no so disciplinas, mas mquinas de constituir Universais em todas as disciplinas". 27 Por outro lado, prprio da filoso-fia criar conceitos que permitam a contemplao, a refle-xo e a comunicao, sem os quais elas no poderiam existir, uma vez que contemplamos conceitos refletimos sobre conceitos e comunicamos conceitos.

    Se a filosofia ganha densidade e identidade como a empresa de criao conceitua!, ento cai por terra e perde o sentido a questo sempre discutida da utilidade da filosofia, ou mesmo o anncio reincidente da sua morte, de sua su-perao: "se h lugar e tempo para a criao dos conceitos, a essa operao de criao sempre se chamar filosofia, ou no se distinguir da filosofia, mesmo se lhe for dado outro nome".28 Em outro lugar, Deleuze j havia afirmado que

    26 DELEUZE, Gilles e GUATIARJ, Flix, op. cit. , p. 14. 27 Ibidem, p. 15. 28 Ibidem, p. 17.

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  • COLEO "PENSADORES & EDUCAO"

    A filosofia consiste sempre em inventar conceitos. Nun-ca me preocupei com uma superao da metafsica ou uma morte da filosofia. A filosofia tem uma funo que permanece perfeitamente atual, criar conceitos. Nin-gum pode fazer isso no lugar dela. Certamente, a filo-sofia sempre teve seus rivais, desde os "rivais" de Plato at o bufo de Zaratustra. Hoje a informtica, a co-municao, a promoo comercial que se apropriam dos termos "conceito" e "criativo", e esses "conceitu-adores" formam uma raa atrevida que exprime o ato de vender como o supremo pensamento capitalista, o cogito da mercadoria. A filosofia sente-se pequena e s diante de tais potncias, mas, se chegar a morrer, pelo menos ser de rir.29

    Bem, se o ato filosfico consiste na criao de con-ceitos, devemos, filosoficamente, perguntar: o que um conceito?

    Essa questo nunca foi privilegiada na histria da fi-losofia; o conceito foi sempre tomado como um dado, um "sempre j presente", algo que no precisa ser expli-cado. Para dizer de outra maneira, raras vezes encontra-mos na histria um esforo de "conceituao do conceito". Mas se o conceito criao, necessrio que se saiba exa-tamente o que ele, e quais as condies e possibilidades de sua produo. necessria uma verdadeira "pedagogia do conceito", um aprendizado do trato com ele.

    Para compreendermos o conceito de conceito criado por Deleuze e Guattari, precisamos desconstruir nossas

    29 Entrevista concedida ao Magazine Uttraire em 1988, publicada de-pois em Po11rparlers, op. cit., p. 186 (na traduo brasileira, Conversaes, p. 170).

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    DELEUZE & A EDUCAO

    noes de conceito previamente estabelecidas. De modo geral, os leitores encontram dificuldades de compreender a definio deleuzo-guattariana de conceito, pois ela , a um s tempo, mais e menos do que aquelas com as quais estamos acostumados a lidar. Por exemplo: o conceito no apenas um operador lgico; mais que isso e menos que isso, na medida em que se coloca para alm da lgica e para aqum da lgica.

    Tampouco o conceito um universal, na medida em que prprio do conceito colocar o acontecimento, que sempre singular. Mas, na tradio filosfica, o conceito sempre visto como universal, na esteira de Plato. Kant o definiu da seguinte maneira:

    Todos os conhecimentos, isto , todas as representaes conscientemente referidas a um objeto, so ou intuies ou conceitos. A intuio uma representao singular, o con-ceito, uma representao universal ou representao refletida. "O conhecimento por conceitos chama-se pensar."~

    Ora, para nossos filsofos, o conceito no uma re-presentao, muito menos uma representao universal.

    / Podemos definir o conceito, na viso dos filsofos fran-ceses, como sendo uma aventura do pensamento que ins-titui um acontecimento, vrios acontecimentos, que permita um ponto de visada sobre o mundo, sobre o vivi-do. Poderamos, aqui, lembrar a clebre afirmao de Mer-leau-Ponty: "a verdadeira filosofia consiste em reaprender a ver o mundo"; parece ser disso que falam Deleuze e

    3" KANT, Manual dos Ctlrsos de Lgica GeraL 2. ed. Campinas/Uberlndia:

    Ed. Unicamp/Edufu, 2003, p. 181.

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    Guattari quando exprimem a ao do conceito: um rea-prendizado do vivido, uma ressignificao do mundo. por isso que o conceito exclusivamente filosfico. A cin-cia, por exemplo, no cria conceitos; ela opera com propo-sies ou funes 31 , que partem necessariamente do vivido para exprirr.-lo/ o conceito mais como um sobrevo (essa imagem reincidente em Deleuze: o conceito como um pssaro que sobrevoa o vivido, o que levou criao de um belo livro pstumo3~. Para dar inteligibilidade a essa defini-o, vejamos as caractersticas bsicas dos conceitos.

    Primeiro, todo conceito necessariamente assinado; cada filsofo, ao criar um conceito, ressignifica um termo da lngua com um sentido propriamente seu. Podemos tomar como exemplo: a Idia de Plato; o cogito de Des-cartes; a mnada de Leibniz; o nada de Sartre; o fenmeno de Husserl; a durao de Bergson ... A assinatura remete ao

    31 ''A cincia no tem por objetivo conceitos, mas funes que se apre-sentam como proposies nos sis temas discursivos. Os elementos das funes se chamam jimctivos. Uma noo cientfica determinada no por conceitos, mas por funes ou proposies. uma idia muito variada, muito complexa, como se pode ver j no uso que dela fazem respectivamente a matemtica e a biologia; porm, essa idia de funo que permite s cincias refletir e comunicar. A cincia no tem nenhuma necessidade da filosofia para essas tarefas. Em contra-partida, quando um objeto cientificamente construdo por fun-es, por exemplo, um espao geomtrico, resta buscar seu conceito filosfico que no de maneira alguma dado na funo. Mais ainda, um conceito pode tomar por componentes os functivos de toda fun-o possvel, sem por isso ter o menor valor cientfico, mas com a finalidade de marcar as diferenas de natureza entre conceitos e fun-es." DELEUZE e GUATIARI, Oqueajilosofia ?, op. cit., p. 153.

    32 L 'Oiseau Phi/osophie ("O Pssaro Filosofia"). Paris: ditions du Seuil, 1997. Frases de Deleuze com ilustraes de Jacqueline Duhme.

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    DELEUZE & A EDUCAO

    estilo filosfico de cada um, forma particular de pensar e de escrever. "O batismo do conceito solicita um gosto propriamente filosfico que procede com violncia ou com insinuao, e que constitui na lngua uma lngua da filoso-fia, no somente um vocabulrio, mas uma sintaxe que

    ,, 33 A . di tinge o sublime ou uma grande beleza . partir sso, Alliez criou a bela imagem da filosofia como uma "assina-tura do mundo": cada filsofo assina o mundo sua ma-neira, por meio dos conceitos que cria./

    Todo conceito uma multiplicidade, no h conceito simples. O conceito formado por componentes e defi-ne-se por eles; claro que totaliza seus componentes ao constituir-se, mas sempre um todo fragmentado, como um caleidoscpio, em que a multiplicidade gera novas !0-talid es provisrias a cada golpe de mo.

    Todo conceito criado a partir de problemas. Ou pro-blemas novos (mas como difcil encontrar problemas novos em filosofi~!) ou problemas que o filsofo consi-dera que foram mal-colocados; de toda forma, um pro-blema deve ser posto pelo filsofo, para que conceitos possam ser criados. Um conceito nunca criado do nada; veremos adiante a noo de plano de imanncia, que o solo de toda filosofia/ .

    Todo conceito tem uma histria. Cada conceito reme-te a outros conceitos do mesmo filsofo e a conceitos de outros filsofos, que so tomados, assimilados, retraba-lhados, recriados. No podemos, entretanto, pensar que a histria do conceito linear; ao contrrio, uma histria

    33 DELEUZE e GUATIARI, op. cit., p. 16.

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    de cruzamentos, de idas e vindas, uma histria em zigueza-gue, enviesada. Um conceito se alimenta das mais variadas fontes, sejam filosficas sejam de outras formas de abor-dagem do mundo, como a cincia e a arte.

    Cada conceito retoma e remete a outros conceitos, numa encruzilhada de problemas. "Cada conceito remete a outros conceitos, no somente em sua histria, mas em seu devir ou suas conexes presentes. Cada conceito tem componentes que podem ser, por sua vez, tomados como conceitos [ ... ] Os conceitos vo pois ao infinito e, sendo criados, no so jamais criados do nada."34

    Todo conceito uma heterognese: "uma ordenao de seus componentes por zonas de vizinhana."35 Ele o ponto de coincidncia, de condensao, de convergncia de seus componentes que permitem uma significao sin-gular, um mundo possvel, em meio multiplicidade de possibilidades. Desta forma, uma filosofia no deve ja-mais ser vista como sistema, como resposta absoluta a todas as pergurttas, mas como respostas possveis a pro-blemas possveis num determinado mundo vivido. Hori-zonte de eventos.

    Todo conceito um incorporal, embora esteja sempre encarnado nos corpos. No pode, entretanto, ser confun-dido com as coisas; um conceito nunca a coisa-mesma (esse horizonte sempre buscado e jamais alcanado pela fenomenologia, da adequao imediatizada da conscincia com o mundo-a). Um conceito "no tem coordenadas

    34 Ibidem, p. 31. 3; Ibidem, p. 32.

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    espao-temporais, mas apenas ordenadas intensivas. No tem energia, ~ somente intensidades, anergtico - e, fundamental 1~. conceito diz o acontecimento, no a es-sncia ou a co1sa".36Todo conceito , pois, sempre, um acon-tecimento, um dizer o acontecimento; portanto, se no diz a / coisa ou a essncia, mas o evento, o conceito sempre devir/

    / um conceito absoluto e relativo ao mesmo tempo. Relativo pois remete a seus componentes e a outros con-ceitos; relativo aos problemas aos quais se dirige. No en-tanto, adquire ar de absoluto, pois condensa uma possibilidade de resposta ao problema. Em outras pala-vras, absoluto em relao a si mesmo, relativo em relao ao seu contexto/ Nas palavras de Deleuze e Guattari, o conceito " abso uto como um todo, mas relativo enquanto fragmentrio. ilifinito por seu sobrevo ou sua velocidade, mas finito por seu movimento que traa o contorno dos componentes. Um filsofo no pra de remanejar seus conceitos, e mesmo de mud-los; basta s vezes um ponto de detalhe que se avoluma, e produz uma nova condensao, acrescenta ou retira componentes." 37 Que no se confunda seu teor de absoluto, porm, com universalidade.

    Finalizando, o conceito no discursivo, no pro-posicional. Essa uma singularidade da cincia, que per-mite que ela seja reflexiva e comunicativa, mas no da filosofia. A cincia no produz conceitos, mas prospectos, enquanto que a arte tambm no produz conceitos, mas efectos e perceptos. Nas palavras de Deleuze e Guattari:

    36 Ibidem, p. 33. 37 Ibidem, p. 34.

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    Das frases ou de um equivalente, a filosofia tira conceitos (que no se confundem com idias gerais ou abstratas), enquanto que a cincia tira prospectos (proposies que no se confundem com juzos) e a arte tira perceptos e efectos (que tambm no se confundem com percepes e sentimentos). Em cada caso, a linguagem submetida a provas e usos incomparveis, mas que no definem a diferena entre as disciplinas, sem constituir tambm seus cruzamentos perptuos.38

    Veremos adiante, com mais detalhes, como Deleuze e Guattari concebem a arte, a cincia e a filosofia, seus tangenciamentos, suas transversalizaes, suas singulari-dades. Por ora, basta-nos saber que, para eles, o conceito uma entidade exclusiva da filosofia; cincia e arte, que tambm so potncias criadoras, criam outras coisas, e no conceitos.

    Talvez a melhor definio de conceito na viso de Deleuze e Guattari seja a de que o conceito um dispositi-vo, para usar o termo de Foucault, ou um agenciamento, para ficar com um termo prprio a nossos autores. O conceito um operador, algo que faz acontecer, que produz. O conceito no uma opinio; como veremos adiante, o conceito mais propriamente uma forma de reagir opi-nio generalizada. Souza Dias escreveu que:

    O conceito no uma opinio, nem a opinio "verda-deira" dialecticamente formada nem a argui-opinio de uma subjetividade universal constituinte: nem Doxa ra-cional nem Ur-doxa transcendental. Antes um opera-dor muito preciso, muito especfico, em si mesmo

    38 Ibidem, p. 37.

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    indiscutvel, vlido apenas pela fecundidade eventual de seus efeitos paradoxais, ou seja, por aquilo que, em domnios heterogneos, ele faz pensar, ver e at sentir o que sem ele continuaria impensado, invisvel, insensvel, precisa-mente porque o que ele revela, o que s ele pode revelar, por natureza incaptvel no horizonte real-vivido das opinies. Pragmatismo intrnseco da noo filosfica, do conceito-paradoxo. O conceito intervm, pois, reagindo sobre as opinies, sobre os flu.xos ordinrios de idias, criando "pregnncias" inditas, novas singularidades ou um novo sistema de pontos singulares, propondo uma redistribuio inesperada dos dados, uma reclassificao inslita e todavia "iluminadora" das coisas e dos seres, aproximando coisas que se supunha afastadas, afastan-do outras que se supunha prximas. S a filosofia detm esta capacidade, esta fora selvagem do conceito, mes-mo se o exclusivo dessa funo criativa no lhe outorga nenhum privilgio ou preeminncia, visto haver outros modos de idear e de criar, como a cincia e a arte, que no passam pelo conceito.39

    Assim, o conceito no deve ser procurado, pois no est a para ser encontrado. O conceito no uma "enti-dade metafsica", ou um "operador lgico", ou uma "re-presentao mental". O conceito um dispositivo, uma ferramenta, algo que inventado, criado, produzido, a partir das condies dadas e que opera no mbito mesmo des-tas condie /o conceito um dispositivo que faz pensar, que permite,' de novo, pensar. O que significa dizer que o conceito no indica, no aponta uma suposta verdade, o que paralisaria o pensamento; ao contrrio, o conceito

    39 DIAS, Souza. Lgica do acontecimento- Deleuze e a Filosofia. Porto: Afron-tamento, 1995, p. 32.

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    justamente aquilo que nos pe a pensar. Se o conceito produto, ele tambm produtor: produtor de novos pen-samentos, produtor de novos conceitos; e, sobretudo, pro-dutor de acontecimentos, na medida em que o conceito que recorta o acontecimento, que o torna possvel/

    H, portanto, um estatuto pedaggico do conceito, que delimita as possibilidades de sua criao: uma multi-plicidade de elementos que ganham sentido com o movi-mento de articulao que o mecanismo de conceituao promove O conceito um amlgama de elementos sin-gulares que se torna uma nova singularidade, que produz/ cria uma nova significai

    O conceito o contorno, a configurao, a constelao de um acontecimento por vir[ ... ] O conceito evidente-mente conhecimento, mas conhecimento de si, e o que ele conhece, o puro acontecimento, que no se con-funde com o estado de coisas no qual se encarna. Desta-car sempre um acontecimento das coisas e dos seres a tarefa da filosofia quando cria conceitos, entidades. Eri-gir o novo evento das coisas e dos seres, dar-lhes sempre um novo acontecimento: o espao, o tempo, a matria, o pensamento, o possvel como acontecimentos ... 40

    Tal multiplicidade possvel porque, como mostram Deleuze e Guattari, a produo de conceitos na Filosofia d-se por meio da imanncia, enquanto que o conhecimen-to mtico-religioso opera pela transcendncia - "o filso-fo opera um vasto seqestro da sabedoria, ele a pe a servio da imanncia pura"41 ; o trabalho filosfico d-se

    40 Ibidem, p. 46. 4 1 Ibidem, p. 61.

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    pela delimitao de um plano de imanncia, sobre o qual so gerados os conceitos. jA noo de plano de imanncia fundamental para a criao filosfica, pois o plano o solo e o horizonte da produo conceituai. No podemos confundir plano de imanncia com conceito, embora um dependa do outro (s h conceitos no plano e s h plano povoado por con-ceitos): "os conceitos so acontecimentos, mas o plano o horizonte dos acontecimentos".jBento Prado Jnior explicou bem essa noo:

    O plano de imanncia essencialmente um campo onde se produzem, circulam e se entrechocam os conceitos. Ele sucessivamente definido como uma atmosfera (qua-se como o englobante de Jaspers, que mais tarde Deleuze vai recusar), como informe e fractal, como horizonte e reservatrio, como um meio indivisvel ou impartilh-vel. Todos esses traos do plano de imanncia, somados, parecem fazer da filosofia de Deleuze uma 'filosofia de campo' - num sentido parecido quele em que se fala das 'psicologias de campo', como a propsito da "Ges-taltpsycologie". Mas um campo infinito (ou um hori-zonte infinito) e virtual. 43

    Enquanto solo da produo filosfica, o plano de imanncia deve ser considerado como pr-filosfico. Aqui poderia ser traado um paralelo - desde que guardadas as devidas propores, j que no esto tratando da mesma questo - com a noo de episteme que Foucault desenvolve

    42 Ibidem, p. 52. 43 PRADO JNIOR, B. A Idia de Plano de Imanncia. Folha de S.

    Paulo, Caderno Mais! , 08/ 06/ 97, p. 5-6 a 5-8.

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    em Les Mots et les Choses, como o solo sobre o qual brotam os saberes produzidos em cada poca histrica;44 entretanto, na concepo foucaultiana h apenas uma episteme em cada poca histrica, enquanto que para Deleuze, como veremos em seguida, podem coexistir mltiplos planos de imanncia.

    O plano de imanncia remete tambm para a relao da filosofia com o no-filosfico, pois no basta que haja uma explicao filosfica da filosofia, necessrio tam-bm que haja uma explicao para os leigos, para os no-iniciados. Dizer que o plano de imanncia pr-filosfico no significa, porm, que ele seja anterior filosofia, mas que ele uma condio interna e necessria para que a filosofia exista. Logo, plano de imanncia e conceito sur-gem juntos, um implicando necessariamente o outro: "A filosofia , ao mesmo tempo, criao de conceito e instau-rao do plano. O conceito o comeo da filosofia, mas o plano sua instaurao."45 O incio da filosofia a criao de conceitos (filogeneticarnente - histria da filosofia, e ontogeneticamente - aparecimento de cada filsofo sin-gular) mas, no prprio momento em que se criam os con-ceitos h a instaurao de um plano de imanncia que, a rigor, a instaurao da prpria filosofia, pois se assim no fosse os conceitos criados ficariam perdidos no vazio.

    Alguns filsofos criam seus prprios planos, enquanto outros conceitualizam no contexto de planos j delimita-dos - por exemplo, os neoplatnicos, os neokantianos

    44 Ver meu artigo O conceito de pistem e sua arqueologia em Fou-cault. MARIGUELA, M. (Org.). Foucault e a destmio das evidncias. Piracicaba: Editora Unimep, 1995.

    45 DELEUZE e GUATTARI, op. cit., p. 58.

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    etc. - podendo existir, ao mesmo tempo, mltiplos pla-nos de imanncia que se opem, se complementam ou mesmo so indiferentes entre si, convivendo todos numa simbiose rizomtica:

    O plano de imanncia toma do caos determinaes, com as quais faz seus movimentos infinitos ou seus traos diagramticos. Pode-se, deve-se ento supor uma multiplicidade de planos, j que nenhum abraaria todo o caos sem nele recair, e que todos retm apenas movi-mentos que se deixam dobrar juntos [ .. . ] Cada plano opera uma seleo do que cabe de direito ao pensa-mento, mas essa seleo que varia de um para outro. Cada plano de imanncia Uno-Todo: no parcial, como um conjunto cientfico, nem fragmentrio, como os conceitos, mas distributivo, um 'cada um'. O pla-no de imanncia jol/Jado. 46

    Imersos no tempo filosfico que no o do antes e do depois, os vrios planos podem coexistir:

    verdade que camadas muito antigas podem ressurgir, abrir um caminho atravs das formaes que as tinham recoberto e aflorar diretamente sobre a camada atual, qual elas comunicam uma nova curvatura. Mais ainda, segundo as regies consideradas, as superposies no so forosamente as mesmas e no tm a mesma or-dem. O tempo filosfico assim um grandioso tempo de coexistncia, que no exclui o antes e o depois, mas os superpe numa ordem estratigrfica. um devir infini-to da filosofia, que atravessa sua hi st ria, mas no se confunde com ela. A vida dos fil sofos, e o mais exteri-or de sua obra, obedece a leis de sucesso ordinria; mas

    46 Ibidem, p. 68.

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    seus nomes prprios coexistem e brilham, seja como pontos luminosos que nos fazem repassar pelos compo-nentes de um conceito, seja como os pontos cardeais de uma camada ou de uma folha que no deixam de visitar-nos, como estrelas mortas cuja luz mais viva que nun-ca. A filosofia devir, no histria; ela coexistncia de planos, no sucesso de sistemas.47

    Um terceiro elemento completa a definio da filoso-fia como criao de conceitos: o personagem conceitua!. Cada filsofo cria "personagens", maneira de heterni-mos, que so os sujeitos da criao conceitua!. Em alguns filsofos isso mais explcito, em outros mais velado. Podemos tomar Plato como exemplo: Scrates o perso-nagem que ele cria para, em seus dilogos, criar e expor os seus conceitos, enquanto outros personagens expem as opinies, as idias correntes da poca ou mesmo concei-tos de outras filosofias. Nietzsche emblemtico dessa prtica, onde ela se esca7ara: Dioniso, Zaratustra, O Crucificado, o Anti Cristo/ Mas h tambm os casos em que o filsofo no inventa heternomos: ele o persona-gem de si mesmo. Mas sempre o personagem o criador dos conceitos. Como mostrou Foucault em sua confern-cia intitulada "O que um autor?", apresentada Socie-dade Francesa de Filosofia em 1969, o autor de um texto uma fico, uma funo-autor, no uma "mnada sub-jetiva" que se coloque para alm da obra produzida.48 essa funo-autor trabalhada por Foucault que, no caso

    47 Ibidem, p. 78. 48 FOUCAULT, Michel. O que um autor? In: Ditos e escritos- v. 3. Rio

    de Janeiro: Forense Universitria, 2001.

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    DELEUZE & A EDUCAO

    da filosofia, Deleuze e Guattari chamam de personagem conceitua!. O filsofo Ren Descartes, por exemplo, foi um personagem criado pelo homem Ren Descartes; e foi esse personagem que criou os seus conceitoV

    ~Esses personagens conceituais "operam os movimen-. tos que descrevem o plano de imanncia do autor, e inter-

    vm na prpria criao de seus conceitos" . 49 o personagem conceitua!, o heternimo, portanto, que aca-ba sendo o sujeito da filosofia, ele quem manifesta "os territrios, desterritorializaes e reterritorializaes ab-solutas do pensamento/

    A filosofia ento constituda por essas trs instn-cias correlacionais: o plano de imanncia que ela precisa traar, os personagens filosficos que ela precisa inventar e os conceitos que deve criar. Esses so os trs verbos cons-tituintes do ato filosfico, e no contemplar, refletir e co-municar, conforme j comentado. Portanto, uma filosofia deve ser examinada pelo que ela produz e pelos efeitos que causa. Os conceitos filosficos so vlidos na medida em que sejam verdadeiros, mas na medida em que so impor-tantes e interessantesY Assim, "um grande personagem ro-manesco deve ser um Original, um nico, como dizia Melville; um personagem conceitua! tambm. Mesmo an-tiptico, ele deve ser notvel; mesmo repulsivo, um con-ceito deve ser interessante."52

    49 Ibidem, p. 85 . 50 Ibidern,p. 92. 51 Cf. DELEZE e GUATTARI, op. cit., p. 107 e seguintes. 52 Ibidem, p. 108.

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    Vejamos aqui o eco de Nietzsche: a filosofia no lida com verdades, com objetividades; a filosofia deve, sim, estar preocupada com a multiplicidade, com as distintas perspectivas, com os "mltiplos olhos" que podem nos possibilitar um conhecimento mais completo e mais com-plexo. E o conceito esse dispositivo diferenciador, que faz multiplicar as relaes, que faz proliferar os pensa-mentos, na mesma medida em que o levedo faz fermentar a cerveja. O conceito um catalisador, um fermento, que a um s tempo faz multiplicar e crescer as possibilidades de pensamento. Por isso cabe a ele ser interessante, mas no necessariamente verdadeiro.

    Se no cabe ao conceito ser verdadeiro, ele tambm no est para ser compreendido. No nos importa se com-preendemos ou no um determinado conceito; importa que ele seja ou no operativo para nosso pensamento; importa que ele nos faa pensar, em lugar de paralisar o pensamento. Importa que tenhamos afinidade com um certo conceito, afinidade que se produz pelo fato de ele agenciar em ns mesmos certas possibilidades. Na obra que escreveu com Claire Parnet, Deleuze diz que hoje devemos ler um livro como escutamos um disco: se gos-tamos, se a msica nos toca de alguma maneira, se produz em ns efeitos, intensidades, afetos, seguimos ouvindo e ouvimos mais e mais; mas se a msica no nos toca, no nos afeta, ou se nos afeta negativamente, abandonamos o disco, desligamos o rdio ou mudamos de estao. O mesmo deve se dar com os conceitos:

    No h questo alguma de dificuldade nem de compre-enso: os conceitos so exatamente como sons, cores ou

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    DELEUZE & A EDUCAO

    imagens, so intensidades que lhes convm ou no, que passam ou no passam. Pop'filosofia, no h nada a com-preender, nada a interpretar. 53

    Assim como na arte, cabe a cada filsofo criar seu estilo, sua maneira prpria de ver o mundo e fazer ver o mundo, sua forma de criar uma linguagem dentro da lin-guagem. E isso leva tempo; preciso muita experimenta-o, anos a fio de dedicao, para que se possa comear a pr suas prprias cores, singularizar. Certa vez, numa ex-posio de gravuras de Picasso, li a seguinte frase sua: "eu quis ser pintor, e tornei-me Picasso". Parece ser disso que fala Deleuze: para ser filsofo preciso singularizar, desta-car-se, criar seu estilo prprio. Mas assim como Picasso no se fez da noite para o dia, tambm para a construo de um filsofo so necessrios anos de dedicao. Nas entrevistas do Abecedrio, Deleuze afirma que seria muita pretenso algum dizer: quero ser filsofo, e sair criando conceitos. Pretenso e leviandade. Sim, preciso criar os prprios conceitos, desenvolver o prprio estilo; mas isso depois de uma longa jornada .. .

    Deleuze e Guattari afirmam que vivemos sob . im-prio da opinio. Assim como na poca de Plato os gre-gos eram dominados pela doxa, pelas aparncias sensveis, e s a filosofia poderia mostrar o verdadeiro mundo, tam-bm ns, dominados pelas mdias e pela literatura best-se/ler, estamos condenados s opinies e s fceis certezas daqueles que "tudo sabem". A opinio luta contra o caos

    " DELEUZE, Gilles ct PARNET, Claire. Dialogues, op. ct., p. 10 (p. 12 na traduo brasileira).

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    que a multiplicidade de possibilidades; incapaz de viver com o caos, sentindo-se tragada por ele, a opinio tenta vencer o caos, fugindo dele, impondo o "pensamento nico". Mas essa fuga apenas aparente; o caos contnua a, sub-repticiamente jogando dados com nossas vidas. O que importa no nem vencer o caos nem fugir dele, mas conviver com ele e dele tirar possibilidades criativas.

    H trs ordens de saberes que mergulham e recortam o caos, produzindo significaes: a filosofia, que cria concei-tos; a arte, que cria afetos, sensaes; e a cincia, que cria conhecimentos. Cada uma irredutvel s outras e elas no podem ser confundidas, mas h um dilogo de comple-mentaridade, uma interao transversal entre elas. Cada uma delas, sua maneira, um esforo de luta contra o caos de nossas idias, um esforo de se conseguir um mnimo de ordem. Cada uma delas uma reao contra a opinio, que nos promete o impossvel: vencer o caos. S a morte vence o caos, s no h caos quando j no h nada. A opinio no gosta da multiplicidade, ela busca apenas um sempre-eterno consenso, o reinado do Mesmo, do Absoluto. Para a opinio, necessrio que o pensamento esteja sempre de acordo com as coisas, com a "realidade"; o pensamento no pode, jamais, virtualizar, criar .. . Em nome da ordem, a opinio quer proteger-nos do caos, fugindo dele, tendo a iluso de que o domina, de que o vence. Mas o mesmo no se d com a arte, a cincia e a filosofia.

    Mas a arte, a cincia, a filosofia exigem mais: traam pla-nos sobre o caos. Essas trs disciplinas no so como as religies, gue invocam dinastias de deuses, ou a epifania de um deus nico, para pintar sobre o guarda-sol um

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    DELEUZE & A EDUCAO

    firmamento, como as figuras de uma Urdoxa de onde derivam nossas opinies. A filosofia, a cincia e a arte que-rem gue rasguemos o firmamento e gue mergulhemos no caos. S o venceremos a esse preo. Atravessei trs vezes o Agueronte como vencedor. O filsofo, o cientista, o artista parecem retornar do pas dos mortos.54

    De volta do caos, do mundo dos mortos, o filsofo traz variaes conceituais, o cientista traz variveis funcio-nais e o artista traz vanedades afetivas. Todas as trs figuras - a do filsofo, a do cientista e a do artista-, cada uma de seu modo, contribuem, portanto, para que a multiplicida-de seja possvel, para que as singularidades possam brotar e para que no sejamos sujeitados a viver sob a ditadura do Mesmo, que o que busca nos impor a opinio, por meio da literatura pasteurizada, das mdias homogenei-zantes e mesmo de certas "filosofias" que, longe de bus-car a criao de conceitos, contentam-se em ficar numa "reflexo sobre ... ". Lutando com o caos, filosofia, cincia e arte aprendem que, de fato, no ele o real inimigo: "diramos que a luta contra o caos implica afinidade com o inimigo, porque uma outra luta se desenvolve e toma mais importncia, contra a opinio que, no entanto, pretendia nos proteger do prprio caos".55 A batalha contra a opi-nio a mais importante, "pois da opinio que vem a

    " ,...6 desgraa dos homens . ,

    A filosofia , pois, um esforo de luta contra a opi-nio, que se generaliza e nos escraviza com suas respostas

    54 Ibidem, p. 260. 55 Ibidem, p. 261. 56 Ibidem, p. 265.

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  • COLEO "PENSADORES & EDUCAO"

    apressadas e solues fceis, todas tendendo ao mesmo; e luta contra a opinio criando conceitos, fazendo brotar acontecimentos, dando relevo para aquilo que em nosso cotidiano muitas vezes passa desapercebido. A filosofia um esforo criativo.

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    DESLOCAMENTOS. DELEUZE E A EDUCAO

    O que teria Deleuze a dizer Educao, enquanto campo de produo de saberes? Ou melhor, o que pos-svel de ser dito sobre Educao, a partir de Deleuze? Como afirmei na Introduo deste livro, Deleuze no foi um filsofo da educao, no se dedicou a problemas re-lativos educao seno de forma muito marginal, na medida em que sempre ganhou a vida como professor de Filosofia e, de alguma maneira, tinha esses problemas de educao em seu horizonte. Mas esse horizonte foi man-tido longnquo; foi com outros problemas que Deleuze se preocupou, foi de outros problemas que ele se ocupou.

    No tenho, pois, a pretenso de colocar na boca de Deleuze coisas que ele no disse, nem de colocar em seus textos coisas que ele no escreveu. O que pretendo de-senvolver aqui uma demonstrao da fecundidade do pensamento de Deleuze para nos fazer pensar a educa-o, para nos permitir pensar, de novo, a educao. No se trata, portanto, de apresentar "verdades deleuzeanas sobre problemas educacionais". De verdades - falsas ver-dades, diga-se de passagem - e de certezas - tambm falsas - a doxografia educacional recente est repleta. Trata-se, ao contrrio, de propor exerccios de pensamento, exerccios

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