21
Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(2): 219-239, 2006 219 DELEUZE E A LÓGICA DO SENTIDO: O PROBLEMA DA ESTRUTURA Alessandro Carvalho SALES 1 RESUMO: Este texto pretende acompanhar os principais movimentos apresenta- dos pelo filósofo Gilles Deleuze para propor uma estrutura do sentido, de acordo com a Lógica do sentido (1969). Para tanto, tentando nos alçar ao estruturalismo muito particular de Deleuze, seguiremos especialmente alguns argumentos es- tabelecidos entre a quarta (Das dualidades) e a oitava (Da estrutura) séries desse livro, bem como pontos do artigo Em que se pode reconhecer o estruturalismo? (1972). PALAVRAS-CHAVE: Deleuze; lógica do sentido; Estrutura; Paradoxo; Lewis Carroll. Introdução: Deleuze estruturalista? Nas três primeiras séries da Lógica do sentido (Do puro devir, Dos efei- tos de superfície e Da proposição), de acordo com aspectos privilegiados por Deleuze especialmente quanto ao pensamento estóico, ele busca apre- sentar uma primeira abordagem da questão que dá título ao livro. Tratar-se- ia de uma espécie de fenomenologia do sentido-acontecimento: aconteci- mento aos corpos que se manifesta na linguagem, até o ponto extremo e vi- sível de suas efetuações empíricas. A partir da quarta série (Das dualida- des) e pelo menos até a oitava ( Da estrutura), o autor vai estabelecendo a inflexão metodológica e conceitual com a qual passa a se compor, esten- 1 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de São Carlos- UFSCar sob orientação de Bento Prado Junior e com auxílio da Fapesp. Artigo recebido em jan/06 e aprovado para publicação em nov/06.

DELEUZE E A LÓGICA DO SENTIDO O PROBLEMA DA … · 2007-11-06 · RESUMO: Este texto pretende ... dos pelo filósofo Gilles Deleuze para propor uma estrutura do sentido, de acordo

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: DELEUZE E A LÓGICA DO SENTIDO O PROBLEMA DA … · 2007-11-06 · RESUMO: Este texto pretende ... dos pelo filósofo Gilles Deleuze para propor uma estrutura do sentido, de acordo

Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(2): 219-239, 2006 219

DELEUZE E A LÓGICA DO SENTIDO:O PROBLEMA DA ESTRUTURA

Alessandro Carvalho SALES1

■ RESUMO: Este texto pretende acompanhar os principais movimentos apresenta-dos pelo filósofo Gilles Deleuze para propor uma estrutura do sentido, de acordocom a Lógica do sentido (1969). Para tanto, tentando nos alçar ao estruturalismomuito particular de Deleuze, seguiremos especialmente alguns argumentos es-tabelecidos entre a quarta (Das dualidades) e a oitava (Da estrutura) séries desselivro, bem como pontos do artigo Em que se pode reconhecer o estruturalismo?(1972).

■ PALAVRAS-CHAVE: Deleuze; lógica do sentido; Estrutura; Paradoxo; LewisCarroll.

Introdução: Deleuze estruturalista?

Nas três primeiras séries da Lógica do sentido (Do puro devir, Dos efei-tos de superfície e Da proposição), de acordo com aspectos privilegiadospor Deleuze especialmente quanto ao pensamento estóico, ele busca apre-sentar uma primeira abordagem da questão que dá título ao livro. Tratar-se-ia de uma espécie de fenomenologia do sentido-acontecimento: aconteci-mento aos corpos que se manifesta na linguagem, até o ponto extremo e vi-sível de suas efetuações empíricas. A partir da quarta série (Das dualida-des) e pelo menos até a oitava (Da estrutura), o autor vai estabelecendo ainflexão metodológica e conceitual com a qual passa a se compor, esten-

1 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de São Carlos-UFSCar sob orientação de Bento Prado Junior e com auxílio da Fapesp. Artigo recebido em jan/06e aprovado para publicação em nov/06.

Page 2: DELEUZE E A LÓGICA DO SENTIDO O PROBLEMA DA … · 2007-11-06 · RESUMO: Este texto pretende ... dos pelo filósofo Gilles Deleuze para propor uma estrutura do sentido, de acordo

220 Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(2): 219-239, 2006

dendo o novo âmbito segundo o qual a questão se coloca e seguindo no em-bate teórico que tenta dar conta da problemática do sentido. Quanto a esteponto, eis o que nos coloca François Wahl:

O sentido foi considerado até aqui por Deleuze em sua relação com aquilo semo qual ele não é (...) mas aquém do qual – um aquém transcendental – seu ser, ou‘extra-ser’ – se afirma. É preciso chegar às relações internas ao sentido. (Wahl, 2000,p.131)

Nesta citação, ‘transcendental’ não se refere ao uso kantiano do termo.Deleuze reconhece a Kant a relevância da descoberta de tal conceito,2 mas,na crítica que leva a efeito, termina por deslocar o seu sentido. Em Kant,“(...) é transcendental, por oposição ao empírico, aquilo que é uma condiçãoa priori e não um dado da experiência (...) Por conseqüência, diz-se trans-cendental todo estudo que tem como objeto as formas, princípios ou idéiasa priori na sua relação necessária com a experiência” (Lalande, 1999,p.1151). Kant estabelece o estatuto do transcendental como constitutivo daexperiência, como o conhecimento das condições apriorísticas de toda ex-periência possível. Porém, de acordo com nosso autor, ele ainda “(...) decal-ca as estruturas ditas transcendentais sobre os atos empíricos de uma cons-ciência psicológica: a síntese transcendental da apreensão é diretamenteinduzida de uma apreensão empírica etc” (Deleuze, 1988, p.224). O trans-cendental kantiano seria estabelecido relativamente à forma pura do objetoe à forma pura da consciência, o que não os desligaria do plano empírico.

Sabemos que Deleuze, ao distinguir o sentido da significação, tencionainvestigar as condições efetivas de uma gênese intrínseca ao sentido. Kantpermaneceria vinculado a um tipo de condicionamento extrínseco, justa-mente aquele que ainda projeta a condição como imagem, possibilidade docondicionado, de modo semelhante ao que se passa com a significação. De-leuze (idem, p.252) espera, com o seu empreendimento, escapar da expe-riência previsível do possível, para se alçar à experiência real.

Ao não se contentar com as conformações empíricas, fenomenológicas,dos seus objetos de estudo, ele busca avançar ao lugar mesmo em que se-quer há sujeito e objeto formados e atingir o âmbito de uma ontologia. Nãobasta que atinemos com as efetuações empíricas e atuais concernentes aosentido como acontecimento. É preciso ir mais longe, correr todos os riscose adentrar o domínio estritamente ontológico em questão: o que é o sentidoenquanto acontecimento? O que o constitui? De maneira ainda mais explí-cita: de que ele é feito?

2 Uma citação já bem conhecida: “de todos os filósofos, Kant foi o que descobriu o prodigioso do-mínio do transcendental” (Deleuze, 1988, p.224).

Page 3: DELEUZE E A LÓGICA DO SENTIDO O PROBLEMA DA … · 2007-11-06 · RESUMO: Este texto pretende ... dos pelo filósofo Gilles Deleuze para propor uma estrutura do sentido, de acordo

Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(2): 219-239, 2006 221

Vamos variar um pouco e afirmar que Deleuze não se satisfaz com oplano formal das coisas; ao contrário, as formas se dão como um produto,como efeitos de um jogo muito mais complexo e poderoso que lhes é subja-cente. Este é o jogo múltiplo e enredado das potências, das forças, e cons-titui sua face propriamente transcendental. Podemos, ainda que muito inci-pientemente, inferir que o roteiro de Deleuze pretende seguir e descreverum duplo trajeto de pensamento: das formas às forças; e, logo após, o retor-no à superfície.3

O deslocamento entre as duas dimensões ocorre necessariamente pordisjunção, por divergência: o transcendental não pode se assemelhar ao em-pírico, senão retornaríamos ao contexto redundante da experiência possí-vel. Portanto, ainda que sumariamente, diremos que sair do plano dos entes,do vivido, e mergulhar na direção do transcendental, é dissolvê-lo no densoe múltiplo conjunto de forças a partir do qual ele emerge, e de modo que oretorno só pode ser feito em nova estrada: reencontrar o ponto de partida é,em suma, não mais encontrá-lo, mas encontrar um outro, pois que modifica-do, transformado pelas novidades e aspectos que há pouco vieram à tona.

Na primeira etapa desse trajeto, no que toca ao problema do sentido,será preciso portanto valorizar o fato de que suas efetuações empíricas,suas relações externas – seja do lado do estado de coisas, seja do lado dalinguagem –, são apenas uma face da questão, e certamente não a mais ri-ca. Deleuze quer buscar e problematizar o outro da matéria, o seu diferente,ou, numa acepção mais peculiar do termo e como disse François Wahl, seuaquém transcendental, aquilo que lhe constitui as relações internas.

Na direção apontada, o primeiro expediente filosófico com o qual o au-tor vai se compor é o conceito de estrutura. Não à toa, ele afirma que “o es-truturalismo não é separável de uma filosofia transcendental nova” (Deleu-ze, 1974, p.277). Mas – imprescindível anotá-lo –, o estruturalismo a queDeleuze vai se referir é uma certa leitura, ou, dito melhor, a sua leitura doestruturalismo, termo que designa um certo momento e uma certa instân-cia do pensamento francês, mais exatamente aquele que se situou ao longodas décadas de 50 e 60 (especialmente), e que se estabeleceu como contra-ponto aos humanismos e aos psicologismos em geral, às filosofias do sujeitoe da consciência, valorizando um certo caráter científico, a distinção maisevidente a ser possivelmente conferida aos saberes.

Não há dúvidas de que a paisagem do pensamento de Deleuze varia aolongo de sua produção, se agita e se modifica consideravelmente. De todo

3 Cf. Badiou, 1997, pp.48-49 e 52-54. Este autor tece críticas a Deleuze que não chegaremos a con-siderar. O fato, em nossa perspectiva, é que seu estudo não deixa de iluminar o sentido mais am-plo de algumas das proposições deleuzeanas.

Page 4: DELEUZE E A LÓGICA DO SENTIDO O PROBLEMA DA … · 2007-11-06 · RESUMO: Este texto pretende ... dos pelo filósofo Gilles Deleuze para propor uma estrutura do sentido, de acordo

222 Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(2): 219-239, 2006

modo, haveria aí um fundo essencial4 que, àquela época, travou relaçõescom um certo espírito estruturalista, e cujos ecos são verificáveis, porexemplo, em Lógica do sentido e em Diferença e repetição. Há ainda um ar-tigo fundamental, chamado Em que se pode reconhecer o estruturalismo?,5

que, ao buscar encaminhamentos para a questão apresentada e efetuar umexame de caracteres possivelmente comuns a autores tidos como estrutu-ralistas, termina por constituir-lhes uma vestimenta que inevitavelmentefaz ressoar o próprio filosofar do nosso autor, como de resto ocorre em pra-ticamente todos os seus ensaios de história da filosofia.

Deleuze estruturalista? Examinar detidamente esta pergunta já seria,por si só, assunto para uma longa pesquisa, pois, como sabemos, não só osestruturalismos – no plural – foram variados, como também seria precisodistinguir a delicadeza e o lugar do corte específico capaz de traduzir a pas-sagem para o chamado pós-estruturalismo. Podemos, no entanto, desde jáconsiderar o seguinte comentário:

A estrutura, pois, tal como a entende Deleuze, nada tem a ver com uma formafixa ou uma essência eternitária (por isso não é abstrata) (...) a leitura mais atentadeixa claro que a noção de estrutura que Deleuze enuncia aí [no texto Em que sepode reconhecer o estruturalismo?] é muito pouco estruturalista e que alguns anosantes [em relação à sua data de publicação] Diferença e repetição já enunciava pra-ticamente as mesmíssimas características como sendo constituintes da Idéia. (Pel-bart, 1998, pp.42-3)

Nossa hipótese é de que, no artigo em foco, Deleuze simplesmente dáseguimento ao seu projeto filosófico: mais do que um pensamento propria-mente estruturalista, o que dele não deixa de emergir é a especificidade dassuas propostas, o que enfatiza, mais uma vez, a enorme facilidade com quese apropria de idéias em curso, e, transmutando-lhes o feitio, termina pordesnortear leitores e estudiosos. Assim, Deleuze foi estruturalista somentena medida em que, valendo-se de aspectos de um certo éter de idéias e deconceitos – no caso, este que ficou designado como estruturalista –, pôde,

4 Cf. Machado, 1990, p.161: “Sem dúvida alguns conceitos, e sobretudo a terminologia, têm variadodurante todos esses anos de atividade filosófica. As modificações, no entanto, são secundáriaspara quem pretende compreender sua démarche filosófica em toda sua amplitude. O essencial doprojeto de crítica da filosofia da representação (...) e o modo como Deleuze o realiza (...) permane-ceram praticamente invariáveis”.

5 No início deste texto, Deleuze afirma e grifa: “Estamos em 1967” (edição brasileira de 1974,p.271). É provável portanto que ele tenha sido escrito mais ou menos na mesma época em que oautor trabalhava em Diferença e Repetição e na Lógica do Sentido, publicados um pouco depois.No entanto, tal artigo só foi divulgado em 1972 (original francês), na História da Filosofia de Fran-çois Châtelet.

Page 5: DELEUZE E A LÓGICA DO SENTIDO O PROBLEMA DA … · 2007-11-06 · RESUMO: Este texto pretende ... dos pelo filósofo Gilles Deleuze para propor uma estrutura do sentido, de acordo

Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(2): 219-239, 2006 223

sutilmente diferenciando essa via, dar vazão à sua filosofia. O camaleão De-leuze, se já tinha sido humeano, nietzscheano, bergsoniano, ou mesmo kan-tiano, pôde então ser estruturalista. Nada mais deleuzeano, portanto.

Assim, o autor parte em busca da “estrutura objetiva do próprio acon-tecimento” (Deleuze, 1998, p.3). Ao longo das páginas deste texto, propo-mo-nos então estabelecer uma análise desta ontologia, que é também a dosentido. Em busca de sua estrutura, vamos urdir, em especial, uma costuraentre pontos do escrito Em que se pode reconhecer o estruturalismo? e tre-chos da Lógica do sentido. Aqui, este caminho é o que começa a se desdo-brar já na quarta série, Das dualidades, até aproximadamente a oitava série,Da estrutura.

Dualidades

A quarta série trata de dualidades. Porém, numa operação típica da fi-losofia de Deleuze, elas serão apresentadas tendo em vista precisamente asua superação, o seu ultrapassamento. Os dualismos serão “esticados” aoponto mesmo de sua dissolução, firmada segundo o lugar especial capaz deoriginá-los.

Há, de acordo com a teoria estóica do acontecimento retomada por De-leuze, uma dualidade de partida, a mais profunda, a mais exterior, que exa-minaremos melhor: de um lado, as misturas e as causas sensíveis, evidênciacorporal, e, de outro, os acontecimentos-efeitos resultantes. Porém, sabemosque os acontecimentos nos chegam na proporção em que são ditos por pro-posições: o liame primeiro se prolongou, se elevou à superfície, agora comoo elo corpo-linguagem, a evidência linguageira, o sentido tornado possível(idem, p.25). Deleuze coloca então o problema de outro modo, sob uma óticacarrolliana do comer-falar: “Comer, ser comido, é o modelo de operação doscorpos, o tipo de sua mistura em profundidade, sua ação e paixão, seu modode coexistência um no outro. Mas falar é o movimento da superfície, dosatributos ideais ou dos acontecimentos incorporais” (idem, p.25).

Mas reconhecemos que não pode haver uma pura demarcação entrecorpo e linguagem, entre o comer e o falar. Se há códigos culturais moraisque querem separar veementemente as duas ações,6 Alice, em sua procurapela superfície, não tem qualquer preocupação em relacioná-las, e não seincomoda, por exemplo, em falar de comida ou em comer palavras (idem,p.25). No caminho para um terceiro, Alan Badiou confirma os seguintes ca-racteres da filosofia de Deleuze:

6 Por exemplo, o fato de que não se pode falar de boca cheia, ou de que não devemos, no discurso,engolir as palavras.

Page 6: DELEUZE E A LÓGICA DO SENTIDO O PROBLEMA DA … · 2007-11-06 · RESUMO: Este texto pretende ... dos pelo filósofo Gilles Deleuze para propor uma estrutura do sentido, de acordo

224 Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(2): 219-239, 2006

Como todo grande filósofo, ele só monta a maquinaria das oposições catego-riais para determinar o ponto que se subtrai a ela, a linha de fuga que absorve suasextremidades aparentes. Esse é o sentido profundo de uma máxima metódica sobrea qual ele não deixa de insistir: tomar as coisas pelo meio; não tentar achar primeirouma das pontas, para depois ir até a outra. (Badiou, 2000, p.159)7

O terceiro tão especial, o entre ou o meio que rasga e complica os ex-tremos formais, será aqui caracterizado como a superfície fronteiriça a serconquistada, a superfície que guarda os devires que se desprenderam dofundo absoluto dos corpos e que estão por se metamorfosear em aconteci-mento às coisas, aos objetos, e sentido na linguagem, sentido para um su-jeito. Tal fronteira – a se efetuar, insistimos, segundo a confecção de propo-sições subjetivas e a clarificação das coisas que ocorrem – é o sentido-acontecimento, que, se chega a delimitar as duas instâncias, o faz segundoa articulação de suas diferenças. Mais que delimitá-las, separá-las, ele asconecta pela diferença.8

Assim, por meio da fronteira, a dualidade naturalmente se estende e sedissemina em cada um dos ramos: o corpo está na linguagem, a linguagemestá nos corpos. No tocante às coisas, há certamente uma física, o real quelhes constitui, mas há também o atributo lógico que caracteriza o instanteinfinitivo de uma transformação incorporal. Já quanto às proposições, ossubstantivos e os adjetivos designam as coisas, mas temos também os ver-bos, que expressam os acontecimentos (Deleuze, 1998, p.26).

Fiquemos deste lado, do lado da proposição. Temos então nomes, estesque fixam e assinalam as coisas, segundo limites, pausas, presenças, e te-mos os verbos, eles que exprimem e trazem consigo os devires, as mudan-ças, as novidades incorporais. Deleuze aponta aí a dualidade fatal na qualqueria chegar: não propriamente entre nomes e verbos, mas entre designa-ções (de coisas) e expressões (de sentido). Ele afirma:

É como se fossem dois lados de um espelho: mas o que se acha de um lado nãose parece com o que se acha do outro (...) Passar do outro lado do espelho é passarda relação de designação à relação de expressão – sem se deter nos intermediários,manifestação, significação. É chegar a uma dimensão em que a linguagem não temmais relação com designados, mas somente com expressos, isto é, com o sentido.

7 Sugerimos também a leitura do apêndice da Lógica do sentido (1998) intitulado Klossovski ou OsCorpos-Linguagem.

8 Nas palavras de Deleuze (1998, p.26): “As coisas e as proposições acham-se menos em uma dua-lidade radical do que de um lado e de outro de uma fronteira representada pelo sentido. Esta fron-teira não os mistura, não os reúne (não há monismo tanto quanto não há dualismo), ela é, antes,a articulação de sua diferença: corpo/linguagem”. O mirante de Deleuze tornar-se-á cada vezmais claro: sua fronteira não será aquilo que irá delimitar, restringir, mas o que vai poder relacio-nar e articular os diferentes.

Page 7: DELEUZE E A LÓGICA DO SENTIDO O PROBLEMA DA … · 2007-11-06 · RESUMO: Este texto pretende ... dos pelo filósofo Gilles Deleuze para propor uma estrutura do sentido, de acordo

Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(2): 219-239, 2006 225

Tal é o último deslocamento da dualidade: ela passa agora para o interior da propo-sição. (idem, p.27)9

Atingimos um lugar central. Deleuze parte da relação profunda mistu-ras corporais-acontecimentos incorporais. Tal relação, emergindo à superfí-cie, se dá entre corpo e linguagem. Na face da linguagem, da proposição, adualidade é entre nomes e verbos, ou melhor, entre designações e expres-sões. “É a mesma dualidade (...) que passa pelo lado de fora entre os acon-tecimentos e os estados de coisas, na superfície entre as proposições e osobjetos designados e no interior da proposição entre as expressões e as de-signações” (idem, p.40). No entanto, ao tender para a linguagem, lingua-gem que inevitavelmente carrega um devir-corpo, o autor chega ao par de-signação-expressão, que servirá, como veremos, de fulcro para uma teoriadas séries, caminho para a estrutura. De outro modo, diremos que Deleuze,partindo da acontecimentalização profunda dos corpos, buscou chegar nonível específico da linguagem de superfície, que passará a pensar segundouma teoria das séries, ou melhor, segundo sua estrutura, desde que em tallinguagem se evidencie a distinção entre designações e expressões.

Veremos Deleuze caracterizar a distinção em foco a partir de um trechode Alice no país das maravilhas. O fragmento é parte do terceiro capítulo,Uma corrida em comitê e uma história comprida, quando, às margens da la-goa de lágrimas, ela se encontra com um estranho grupo de animais, e to-dos se reúnem para ouvir o camudongo. A certa altura, o papagaio pareceincomodado:

“Arre!” soltou o Papagaio, com um arrepio.“Perdão!”falou o Camudongo, fechando a cara, mas muito polido: “Disse algumacoisa?”“Eu não!” o Papagaio se apressou em responder.“Pensei que tinha”, disse o Camudongo. “Continuando: ‘Edwin e Morcar, condes daMércia e da Nortúmbria, proclamaram seu apoio a ele e até Stigand, o patriótico ar-cebispo de Canterbury, achando isso oportuno...’”“Achando o quê?” indagou o Pato.“Achando isso”, respondeu o Camudongo, bastante irritado. “Suponho que saiba oque ‘isso’ significa.”“Sei muito bem o que ‘isso’ significa quando eu acho uma coisa”, disse o Pato. “Emgeral é uma rã ou uma minhoca. A questão é: o que foi que o arcebispo achou?”Sem tomar conhecimento da pergunta, o Camudongo se apreesou em continuar:“achando isso oportuno, foi com Edgar Atheling ao encontro de Guilherme e lhe ofe-receu a coroa”. (Carrol, 2002, p.28)10

9 Atentemos para o espelho apresentado: ele não é nada perfeito, um espelho idealizado de purasemelhança; pelo contrário, a reflexão, no caso, é o que se dá pela diferença, pela dessemelhança.

10 Nas Aventuras de Alice (Carroll, 1980), p.54, na Lógica do sentido (Deleuze, 1998), a história é re-latada na p.27.

Page 8: DELEUZE E A LÓGICA DO SENTIDO O PROBLEMA DA … · 2007-11-06 · RESUMO: Este texto pretende ... dos pelo filósofo Gilles Deleuze para propor uma estrutura do sentido, de acordo

226 Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(2): 219-239, 2006

A questão que se interpõe entre o pato e o rato, segundo Deleuze, é adistância entre a designação e a expressão. Enquanto o primeiro compreen-de o isso como pura instância de determinação, indicadora de coisas e es-tados de coisas, o segundo toma a partícula como o expresso, o sentido deuma outra proposição (qual seja, ir ao encontro de Guilherme para oferecer-lhe a coroa). (Deleuze, 1998, p.27) Comenta Deleuze:

As duas dimensões da proposição se organizam em duas séries que não conver-gem senão no infinito, em um termo tão ambíguo quanto isto, uma vez que se encon-tram somente na fronteira que não cessam de bordejar. E uma das séries retoma à suamaneira “comer”, enquanto que a outra extrai a essência de “falar”. (idem, p.27-8)

Sem dúvida a poesia e a literatura modernas conhecem muito de pertoeste tipo de construção, que se dá, por exemplo (e no caso acima), na me-dida em que uma única palavra é capaz de desencadear a existência deduas séries diversas, heterogêneas, tais que uma é mais afim a uma condi-ção objetiva de designação, de indicação, ao passo que a outra diz respeitoaos acontecimentos, aos sentidos expressos. Estas dimensões estão aí co-nectadas por uma palavra muito especial, chamada esotérica, “fronteiraperpetuamente contornada, ao mesmo tempo que traçada pelas duas sé-ries” (idem, p.28).

Vemos a antinomia instaurada por uma palavra desta estirpe. Ela nosconvida a dois caminhos de sentido que, por um lado, são diversos: um de-les é perfeitamente objetivo e literal, o outro, muito mais simbólico, expres-sivo (idem, p.28). De outro lado, porém, o sentido não diz respeito a apenasuma das duas vias. Ele não vem se instalar segundo uma pura escolha, umou exclusivo.11 Pelo contrário, ele pode ser as duas, ele é uma e outra, a fron-teira que as encaixa pela diferença, e que não pode deixar, assim, de ser pa-radoxal. Como se, por um caminho, dispuséssemos de um sentido mais “du-ro”, estrito, ao passo que o outro nos levaria a um sentido mais “mole”,maleável; no entanto, surpreendentemente descobrimos que ambos estãovinculados, há uma estrada, uma densa linha que os liga, segundo a pala-vra-fronteira que os institui.

Paradoxos

Se o sentido tem pois este caráter disparatado, seguiremos Deleuze etentaremos apresentar, ainda que um pouco brevemente, os quatro parado-

11 O ou exclusivo é a operação lógica cuja tabela de verdade é verdadeira sempre que um – e apenasum – dos dois operandos é verdadeiro. É muito próximo da linguagem cotidiana: “ou isto ou aqui-lo”; ou seja, um dos dois, mas não ambos.

Page 9: DELEUZE E A LÓGICA DO SENTIDO O PROBLEMA DA … · 2007-11-06 · RESUMO: Este texto pretende ... dos pelo filósofo Gilles Deleuze para propor uma estrutura do sentido, de acordo

Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(2): 219-239, 2006 227

xos principais relacionados à sua constituição interna; é que em si mesmoo sentido é paradoxal. O primeiro deles é o paradoxo da regressão ou da pro-liferação indefinida. O autor lembra, com Bergson, que a condição primeirapara os enunciados é o sentido. Nosso ponto de partida é o sentido: de den-tro dele é que atualizamos enunciados, ele é a condição para a proposição ede modo que, assim, um eu se habilita a falar (idem, p.31). Há uma conse-qüência: “Nunca digo o sentido daquilo que digo. Mas, em compensação,posso sempre tomar o sentido do que digo como objeto de uma outra propo-sição, da qual, por sua vez, não digo o sentido” (ibidem). Para falar o sentidode uma palavra a, não temos saída senão usar outra palavra b. Porém, paraexplicar o sentido da palavra b, precisamos dispor de uma outra palavra c,e assim numa regressão indefinida.

Não falamos sentidos, mas proposições, enunciados. De cada enuncia-do falado, depreende-se uma espécie de nuvem de sentido que condicionaum novo enunciado e assim por diante. Uma proposição nunca fecha umsentido, nunca dá conta dele por completo: sempre haverá um resto, um se-gredo, uma inexatidão a partir da qual poderemos fazer derivar uma outraproposição. De fato, se tivéssemos uma função absoluta, uma inequívocacorrespondência entre proposição e sentido, os dicionários seriam obrasperfeitas e acabadas, a linguagem perderia todo o seu dinamismo e, pior,perderia seus poetas.

Esta regressão dá testemunho, ao mesmo tempo, da maior impotência daqueleque fala e da mais alta potência da linguagem: minha impotência em dizer o sentidodo que digo, em dizer ao mesmo tempo alguma coisa e seu sentido, mas também opoder infinito da linguagem de falar sobre as palavras. (ibidem)

Dada então uma proposição designando uma coisa ou estado de coi-sas, tentar tomar seu sentido implicará compor uma segunda proposição,cujo sentido, por sua vez, será o objeto de uma terceira... “Para cada um deseus nomes, a linguagem deve conter um nome para o sentido deste nome”(idem, p.32). É o paradoxo de Frege, capaz de gerar uma derivação infinitaa partir de dois termos que se alternam, quais sejam, um nome e um nome-sentido deste nome.12

12 Para Deleuze (1998), é também o paradoxo de Carroll: “Ele aparece rigorosamente do outro lado doespelho, no encontro de Alice com o cavaleiro” (p.32). Cf. este exemplo particular nas Aventurasde Alice (Carroll, 1980), pp.221-222, ou, na Alice: Edição Comentada (Carroll, 2002), pp.234-235.Dias faz aí um comentário bastante incisivo: “(...) é o paradoxo de Frege, o paradoxo da ilimitadaregressão do sentido, que só prova a inaptidão da lógica para atingir o plano virtual, não referen-cial, do sentido, ou a ilegitimidade da pretensão lógica de proposicionalizar o conceito filosóficocomo cristalização do sentido-acontecimento” (Dias, 1995, p.98).

Page 10: DELEUZE E A LÓGICA DO SENTIDO O PROBLEMA DA … · 2007-11-06 · RESUMO: Este texto pretende ... dos pelo filósofo Gilles Deleuze para propor uma estrutura do sentido, de acordo

228 Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(2): 219-239, 2006

O segundo paradoxo é o do desdobramento estéril ou da reiteraçãoseca (idem, p.34). Há que se estancar a cadeia acima descrita em algumaetapa: neste ponto singular, o sentido é propriamente depreendido da pro-posição, sorriso sem gato, chama sem vela. Situamos então o sentido comoo duplo enevoado procedente de um enunciado, mas dele totalmente inde-pendente, e, como tal, estabelecido acima de qualquer valor lógico proposi-cional (o sentido não afirma nem nega, não é verdadeiro nem falso), bemcomo estéril, impassível (nem ativo nem passivo). Com efeito, lembrandoque o sentido-acontecimento é sempre extra-ser e extra-proposicional, esteparadoxo quer afirmar especificamente seu caráter de indiferença, nemagente nem paciente, frente aos estados de coisas, diversamente deles. “Eera um dos pontos mais notáveis da lógica estóica esta esterilidade do sen-tido-acontecimento: somente os corpos agem e padecem, mas não os incor-porais, que resultam das ações e das paixões. Este paradoxo podemos, pois,chamá-lo de paradoxo dos estóicos” (idem, p.34). Diz respeito ainda à cha-mada impenetrabilidade, que Deleuze tanto valoriza com Humpty Dumptye Lewis Carroll (idem, pp.26-7).13

Por sua vez, o paradoxo da neutralidade ou do terceiro-estado da es-sência decorre da consideração anterior, pois, na medida em que o duplotranscendental liberado da proposição, estéril e sem valor lógico atribuível,é indiferente aos estados de coisas, ele deve também ser indiferente aosquatro modos da proposição (idem, p.35).14 Em outras palavras, o sentidodeve permanecer o mesmo para proposições que se distinguem e se opõemem termos de qualidade, quantidade, relação e modalidade.

A evidência maior é que os modos da proposição, tema estudado desdeos trabalhos de Aristóteles, dizem respeito a uma série de relações que po-dem ser estabelecidas entre proposições, sempre em função dos valores ló-gicos que podemos lhes atribuir, verdade ou falsidade, de acordo com a cor-respondência – ou não – a um certo estado de coisas. Tais modos se fundamnesta possibilidade consoante quatro aspectos distintos. No entanto, pode-mos já notar: a condição de verdade é o que nos tolhe, como vimos no itemanterior, dentro do círculo tautológico da proposição. O sentido é justamen-te o plano transcendental que antecede e sustenta as efetuações empíricasrelativas ao círculo e de modo algum é por elas afetado.

Assim, as proposições podem ser classificadas segundo a qualidade(afirmativas e negativas: “Deus é” e “Deus não é”); a quantidade (universal

13 Eis então que há uma sinonímia entre impassibilidade, esterilidade, secura, tudo concernente àindiferença do sentido frente aos estados de coisas.

14 No tocante especificamente aos modos da proposição – qualidade, quantidade, relação e modali-dade –, sugerimos, por exemplo, Chauí, 2002 , pp.363-367, e Copi, 1978, pp.143-146.

Page 11: DELEUZE E A LÓGICA DO SENTIDO O PROBLEMA DA … · 2007-11-06 · RESUMO: Este texto pretende ... dos pelo filósofo Gilles Deleuze para propor uma estrutura do sentido, de acordo

Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(2): 219-239, 2006 229

e particular: “todos os homens são brancos” e “alguns homens são brancos”,“nenhuma caneta é vermelha” e “algumas canetas não são vermelhas”); arelação (Deleuze fala das proposições que guardam algum tipo de “relaçãoinvertida”)15 e a modalidade (em que ele remete diretamente às proposiçõesnecessárias ou possíveis em função do tempo cronológico) (idem, p.35-7).16

Porém, no tocante ao sentido, estas tipificações se dissipam, “pois todos es-tes pontos de vista concernem à designação e aos diversos aspectos de suaefetuação ou preenchimento por estados de coisas e não ao sentido ou à ex-pressão” (idem, p.35).

Deleuze chega a retomar um filósofo árabe medieval, Avicena, que dis-cernia três estados da essência (idem, p.37). Quando as essências estão en-carnadas nas coisas, elas são chamadas de singulares ou físicas. O intelec-to, ao entrar em contato com as coisas, lhes apreende as essências, mas soba forma do universal, sob a forma do conceito. Por exemplo, o intelecto, arazão, não apreende a singularidade de uma cadeira, mas ele asbtrai a suageneralidade, o seu conceito, isto é, a cadeira. Assim, no intelecto, as es-sências singulares das coisas passam a ser universais; também não sãomais físicas, mas lógicas. No entanto, Avicena, em pleno século XI, propôsum terceiro estado da essência, além da essência universal ou lógica e dasingular ou física. Tratar-se-ia da essência em si mesma, metafísica (idem,

15 Aqui, faremos duas observações. Primeiramente, sugerimos verificar o chamado quadrado dosopostos, figura criada pelos medievais a partir da lógica aristotélica. Cf., por exemplo, Chauí,2002, p.366, ou Copi 1978, p.148. Tal figura apresenta as chamadas relações de contradição, con-trariedade, subcontrariedade e subalternação entre os valores lógicos de proposições de mesmosujeito e mesmo predicado, mas com qualidades e quantidades diferentes; seguramente pode-mos ligá-las ao que Deleuze chama de “relação invertida”. Acreditamos que, para o autor, a rele-vância do quadrado dos opostos dar-se-ia no plano das significações e das designações, dos va-lores lógicos plenamente determináveis, mas não relativamente aos sentidos. Uma segundaobservação se refere às proposições em que há permuta entre sujeito e predicado, de acordo comos exemplos que Deleuze tira de Carroll, “onde vemos que ‘os gatos comem os morcegos’ e ‘osmorcegos comem os gatos’, digo o que penso’ e ‘penso o que digo’ (...)” (Deleuze, 1998, p.36). Éque o sentido transcendental é sempre duplo sentido e foge a qualquer relação causal (pois, sabe-mos, os acontecimentos, como incorporais, são sempre efeitos, mas nunca causas, sempre inati-vos); deste modo, tais enunciados, independentemente da inversão entre sujeito e predicado, sereservariam o mesmo sentido.

16 O amanhã, o futuro, está no campo do possível; o ontem, o passado, no campo do necessário. O queé possível pode se tornar necessário. Quando enuncio que “amanhã, choverá”, é possível que ama-nhã caia uma chuva. Chegado o amanhã, e tendo chovido, o que era um futuro possível tornou-seum passado necessário. Como diz Deleuze (1998, p.36): “E se o acontecimento é possível no futuroe real [ou necessário] no passado, é preciso que seja os dois ao mesmo tempo, pois ele então sedivide aí ao mesmo tempo (...) É próprio também do acontecimento ser dito como futuro pela pro-posição, mas não é menos próprio à proposição dizer o acontecimento como passado”. A subjeti-vidade é refém da sucessão temporal, da possibilidade e da necessidade; mas não o sentido-acon-tecimento que se dá numa outra dimensão, e que é sempre os dois simultaneamente; ou, como dizo autor seguindo os estóicos, o acontecimento não é nem possível nem necessário, mas fatal.

Page 12: DELEUZE E A LÓGICA DO SENTIDO O PROBLEMA DA … · 2007-11-06 · RESUMO: Este texto pretende ... dos pelo filósofo Gilles Deleuze para propor uma estrutura do sentido, de acordo

230 Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(2): 219-239, 2006

p.37).17 Temos portanto uma mesma essência, mas que pode se apresentarem três estados diferentes; assim, o primeiro e o segundo estado são suasencarnações, dizendo respeito às atualizações em conceitos lógicos propo-sicionais e em estados de coisas designáveis, ao passo que a terceira seriaa essência fora destas relações, virtualmente em si mesma. Deleuze assimi-la este terceiro estado ao sentido, ao expresso. Vejamos como isto se passano registro da linguagem, das proposições:

O primeiro estado da essência é a essência como significada pela proposição,na ordem do conceito e das implicações de conceito. O segundo estado é a essênciaenquanto designada pela proposição nas coisas particulares em que se empenha.Mas o terceiro é a essência como sentido, a essência como expressa: sempre nestasecura, animal tantum, esta esterilidade ou esta neutralidade esplêndidas. Indife-rente ao universal e ao singular, ao geral e ao particular, ao pessoal e ao coletivo, mastambém à afirmação e à negação etc. Em suma: indiferente a todos os opostos.(idem, p.37)

É que, segundo Deleuze, todos estes opostos referem-se exclusivamen-te à questão em pauta, aos modos da proposição, sempre baseados em re-lações de significações e conceitos (o primeiro estado) e de designações es-tritas (o segundo estado). O sentido-acontecimento ultrapassa todo tipo deoposição, já que é neutro (com relação aos modos da proposição) e estéril,impassível (com relação aos estados de coisas) (idem, p.37).

Chegamos então ao último paradoxo, o do absurdo ou dos objetos im-possíveis: proposições que designam objetos contraditórios não deixam deter um sentido. A designação de uma tal proposição não existe, pois o sen-tido não tem como se efetuar em um estado de coisas. Do mesmo modo, nãohá significação, que estaria encarregada de estabelecer conceitualmente,formalmente, a possibilidade lógica de alguma efetuação. Mas há sentido.Os exemplos apresentados (“quadrado redondo”, “matéria inextensa”,“montanha sem vale” (idem, p.38)) mostram bem o que são tais objetos ine-fetuáveis, mas que não deixam de requerer um sentido extra-existente, ex-tra-proposicional. “Se distinguimos duas espécies de ser, o ser do real comomatéria das designações e o ser do possível como forma das significações,devemos ainda acrescentar este extra-ser que define um mínimo comum aoreal, ao possível e ao impossível” (idem, p.38). O sentido-acontecimento épois o terceiro-estado que excede uma física e uma lógica, o real designável

17 Ajudou-nos também, quanto a este ponto, a tese de doutorado de Cláudio Ulpiano, 1998. Porexemplo: no que toca ao mundo pré-medieval de Avicena, “a essência pode ser visada sob trêsaspectos, nas coisas – individualizada, física; no intelecto – universalizada, lógica; e fora das re-lações que pode ter com as coisas ou com o intelecto: em si mesma.” (pp.104-5)

Page 13: DELEUZE E A LÓGICA DO SENTIDO O PROBLEMA DA … · 2007-11-06 · RESUMO: Este texto pretende ... dos pelo filósofo Gilles Deleuze para propor uma estrutura do sentido, de acordo

Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(2): 219-239, 2006 231

e o possível significado. Ele é o transcendental, o impossível que a espéciehumana tornou possível...

A estrutura

No início da sexta série de paradoxos, intitulada Sobre a Colocação emSéries, Deleuze afirma: “O paradoxo de que todos os outros derivam é o daregressão indefinida. Ora, a regressão tem necessariamente a forma serial:cada nome designador tem um sentido que deve ser designado por um ou-tro nome, n1 > n2 > n3 > n4...” (idem, p.39).

O ponto central é que Deleuze vai ler toda seqüência serial não sob oponto de vista da homogeneidade dos termos que simplesmente se suce-dem, mas da heterogeneidade entre os planos que se alternam ao longo dasucessão, e que em suma evidencia uma dupla série, distintas entre si poruma relação basilar, a articulação da diferença entre designação e expres-são. Assim:

Desta vez, trata-se de uma síntese do heterogêneo; ou antes, a forma serial serealiza na simultaneidade de duas séries pelo menos. Toda série única, cujos termoshomogêneos se distinguem somente pelo tipo ou pelo grau, subsume necessaria-mente duas séries heterogêneas, cada série constituída por termos do mesmo tipoou grau, mas que diferem em natureza dos da outra série (eles podem também, comoé óbvio, diferir em grau). A forma serial é, pois, essencialmente multisserial. (ibidem)

Toda série é, no mínimo, uma dupla série, indissociável dos paradoxosde que há pouco falávamos. Esta dupla série heterogênea pode ser determi-nada indistintamente segundo o caminho de dualidades que já verificamos,trilha subsumida no ou pelo sentido: expressões/designações, verbos/no-mes, proposições/coisas, acontecimentos em efetuação/misturas corporais.Em realidade, trata-se sempre de uma mesma disposição: enquanto, numadas séries – a que chamaríamos de significante – os termos “trazem em si”o próprio sentido, na outra – a série de significados – temos seus correlatos,as efetuações, as apropriações, os usos.18

Da heterogeneidade entre as naturezas dessas duas séries de base, te-mos que a primeira é sempre excessiva em relação à segunda, ou, pelo in-verso, a segunda está em falta relativamente à primeira. Não há paralelismoexato entre elas, qualquer tipo de função biunívoca. Pelo contrário, há um

18 Reproduzimos uma nota de François Wahl (2000, p.131), relevante para o momento: “Teria sidomelhor evitar a designação do primeiro como ‘significante’ e do segundo como ‘significado’, de-signação que Deleuze admite poder ocasionar mal-entendidos.”

Page 14: DELEUZE E A LÓGICA DO SENTIDO O PROBLEMA DA … · 2007-11-06 · RESUMO: Este texto pretende ... dos pelo filósofo Gilles Deleuze para propor uma estrutura do sentido, de acordo

232 Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(2): 219-239, 2006

“desnível essencial”, um “desequilíbrio orientado” (idem, p.42) entre as sé-ries, cuja comunicação é garantida pelo estatuto de um terceiro que as ar-ticula segundo a diferença entre ambas. Podemos já supor toda a relevânciadesta via complexa: ela recebe boa parte do acento e da atenção na monta-gem deleuzeana.

De fato, é justamente esse elemento que impede o fechamento das sé-ries em uma situação de espelho perfeito, de pura semelhança, pela qualum objeto nada mais faria que refletir a imagem do outro, o que terminariapodando qualquer tipo de deslizamento, de escape, de novidade. Este ter-ceiro é portanto o que vai situar a estrutura para além da dialética entre oreal e o imaginário, de sua oposição ou complementaridade, relação que atéentão definia várias chaves teóricas no campo das ciências humanas (De-leuze, 1974, pp.272-3).

De acordo com Deleuze, “a estrutura se encarna nas realidades e nasimagens segundo séries determináveis; mais ainda, ela as constitui encar-nando-se, mas não deriva delas, sendo mais profunda que elas, subsolo paratodos os solos do real como para todos os céus da imaginação” (idem, p.274).A estrutura, a ordem que será dita simbólica, é portanto o elo que tece asséries, que as entrelaça, uma no plano do real, outra no plano do imaginário,e o faz em heterogeneidade, em diferença, de modo que não há como umase refletir sobre a outra. O real tende a ser um, a fazer um em sua totalidadeaberta; o imaginário é o duplo sempre a se desdobrar deste real, segundocaminhos e variações múltiplas; mas há um terceiro, um “entre”, responsá-vel propriamente pelo movimento deste jogo, que o faz girar, que o faz, en-fim, acontecer (idem, p.274). Este terceiro, afirma Deleuze, não alude ape-nas à estrutura, mas também a um certo elemento extraordinário que lhe épropriamente constitutivo, e cujos caracteres deveremos ainda explicitar.

Apresentamos, até agora, na estrutura, a existência de pelo menosduas séries, heterogêneas, deslocadas entre si, e que se comunicam emfunção de uma certa instância muito particular. Necessitamos agora nosperguntar mais atentamente de que se compõe cada uma destas séries,como precisar seus componentes.

Distintos do real e do imaginário, os elementos simbólicos de uma es-trutura “não têm nem designação extrínseca nem significação intrínseca”(idem, p.276), e assim não dizem respeito a lugares cardinais, empíricos,em extensões reais ou imaginárias. No entanto, há um lugar propriamenteestrutural, ou, dito melhor, a estrutura está sim num certo lugar. Trata-se deum espaço absolutamente especial, “inextenso, preextensivo, puro spatiumconstituído cada vez mais como ordem de vizinhança, onde a noção de vi-zinhança tem precisamente, antes, um sentido ordinal e não uma significa-ção na extensão” (idem, p.276). Eis pois que esta noção de espaço, de posi-ção, é imprescindível à estrutura, que se diz então topológica. Os lugares da

Page 15: DELEUZE E A LÓGICA DO SENTIDO O PROBLEMA DA … · 2007-11-06 · RESUMO: Este texto pretende ... dos pelo filósofo Gilles Deleuze para propor uma estrutura do sentido, de acordo

Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(2): 219-239, 2006 233

estrutura são primeiros em relação aos seres e coisas reais que vêm ocupá-los, bem como às idéias imaginárias que sempre surgem após ocupados.

Estas unidades de posição se destacam dentro de um puro contínuo namedida em que se determinam reciprocamente, em função de relações di-ferenciais. Em si, não têm valor, não têm existência, nada designam, nadasignificam – podemos referi-las, determiná-las, apenas a partir daquilo queas diferencia entre si.

Um bom caso vem da fonologia. Os fonemas – desde que não referempartículas sonoras reais nem possíveis significações imaginárias – desta-cam-se do contínuo sonoro de que fazem parte devido às relações diferen-ciais que se estabelecem no interior de uma língua, que se manifestam emseus falantes, e que prescrevem, por exemplo, a distância mútua entre um‘b’ e um ‘p’.19 Em si mesmo, um ‘b’ ou um ‘p’ nada dizem, porém, na medi-da em que se trata de um ‘b’ e não de um ‘p’ (ou vice-versa), eles podememergir simbolicamente e ocupar lugares singulares dentro da paisagemordinal fonemática de uma dada língua. No limite, cada fonema é aquilo quetodos os outros não são, e de maneira que fica assim indicado o que cadaum deve ser, tudo se tratando, em suma, de relações diferenciais e de luga-res correspondentes. “É este processo de uma determinação recíproca nointerior da relação que nos permite definir a natureza simbólica” (idem,p.280). Estes lugares diferenciais, estas unidades de posição que compõemas séries são portanto singularidades, pontos especiais que se destacamdentro de um puro spatium, de um continuum, sempre distribuindo sua res-sonância, seus efeitos sobre as proximidades, a circunvizinhança. Diremosainda: as singularidades da estrutura são acontecimentos.20

Sabemos que os fonemas são a menor unidade lingüística capaz de es-tabelecer a distinção entre dois termos diferentes (‘bote’, e não ‘pote’). Osfonemas, em sua singularidade, são a própria diferença, o nível fonológicobásico. As singularidades fonemáticas, a partir mesmo das relações e dasregras diferenciais pelas quais determinam-se reciprocamente, se conju-gam e se combinam, gerando os sons, as letras, as sílabas típicas de umalíngua. Nível a nível, área por área, poderíamos falar de alguns dos objetosde pesquisa então estudados: fonemas, morfemas, semantemas, parente-mas, mitemas, literemas... De qualquer modo, “toda estrutura apresenta osdois aspectos seguintes: um sistema de relações diferenciais segundo osquais os elementos simbólicos se determinam reciprocamente, um sistema

19 Cf. referências sobre a fonologia em Deleuze, 1974, p.279.20 Deleuze, 1998, p.53: “Eis porque é inexato opor a estrutura e o acontecimento: a estrutura com-

porta um registro de acontecimentos ideais, isto é, toda uma história que lhe é interior”.

Page 16: DELEUZE E A LÓGICA DO SENTIDO O PROBLEMA DA … · 2007-11-06 · RESUMO: Este texto pretende ... dos pelo filósofo Gilles Deleuze para propor uma estrutura do sentido, de acordo

234 Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(2): 219-239, 2006

de singularidades que corresponde a essas relações e traça o espaço da es-trutura” (idem, p.280).

Ou bem inventariamos as manifestações empíricas de um domínio, aíbuscando encontrar as chamadas homologias estruturais, isto é, o conjuntode lugares singulares que insiste e se revela em cada série estudada segun-do os possíveis acentos diferenciais, ou, pelo inverso, partimos já das sin-gularidades, atentamos para as relações diferenciais em função das quaisse discriminam, e chegamos aos elementos simbólicos últimos. O impor-tante é – dentro das variações e deslocamentos característicos das séries –firmar o confronto entre sistemas de diferenças, entre séries de relações ede lugares que tenham chance de preservar algum tipo de homologia. Con-sideremos finalmente que “os elementos simbólicos encarnam-se nos serese objetos reais do domínio considerado; as relações diferenciais atualizam-se nas relações reais entre esses seres; as singularidades são outros tantoslugares na estrutura, que distribuem os papéis ou atitudes imaginários dosseres que vêm ocupá-los” (idem, p.281).

Disto tudo, ratificamos desde já uma importante consideração relativaao nosso problema principal, e que constituirá o fundo mesmo do próximocapítulo. Se, quanto a estas singularidades, não cabe designação extrínse-ca ou significação intrínseca, o sentido é o que justamente emerge – ele éum efeito – da combinação simbólica e diferencial de lugares que, em si,não detém qualquer sentido. “Há profundamente um não-sentido do senti-do, de onde resulta o próprio sentido (...) [e] que o faz valer e o produz circu-lando na estrutura” (idem, p.278). O não-sentido é portanto a própria condi-ção do sentido, seu alicerce paradoxal, e que o configura segundopossibilidades combinatórias sempre múltiplas e desmedidas, pelo que osentido, aliás, é necessariamente excessivo.

Eis que se nos apresenta, novamente, a caprichosa ponte que se firmaentre não-sentido e sentido, ou, por outra, o terceiro enigmático que asse-gura a heterogeneidade entre duas séries básicas de trabalho, uma sempredesencontrada da outra. Este “ponto de desencontro”, móvel, é, sabemos,quem especificamente assevera a comunicação entre as séries, impedindoque uma se dobre imaginariamente sobre a outra. Deleuze chama este lugarnodal de casa vazia.

Trata-se de um lugar bastante específico, sem qualquer registro de si,dessemelhante a si, caracteristicamente vinculado à figura do paradoxo.Anima simultaneamente as duas séries: numa, é lugar sem ocupante, alionde ele não está quando o procuramos; noutra, é ocupante sem lugar, pre-cisamente quando não o encontramos onde ele está (Deleuze, 1998, p.43).Seria o próprio espelho, preciso em sua potência de refração, e de modo quesuas faces nunca se complementam, nunca se encaixam. Eis porque Deleu-ze gosta de comparar o sentido a um efeito ótico. (idem, p.8 e p.73; 1974,

Page 17: DELEUZE E A LÓGICA DO SENTIDO O PROBLEMA DA … · 2007-11-06 · RESUMO: Este texto pretende ... dos pelo filósofo Gilles Deleuze para propor uma estrutura do sentido, de acordo

Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(2): 219-239, 2006 235

p.278). Este objeto falta em seu lugar (1998, p.43), uma ausência presente,mas é em função dele que tudo passa, que tudo se passa – não se fica imunea ele, não se é mais o mesmo....

É propriamente a casa do não-sentido, mas que, ao percorrer as sériesdo mundo, gera sentido pelos seus arredores, distribui seus efeitos, fazacontecer. Diríamos: é o lugar do mistério! “Como denominá-lo, senão Ob-jeto = x, Objeto da adivinhação ou grande Móvel?” (Deleuze, 1974, pp.291-2). Eis aí a instância simbólica por excelência, ponto cego que dá a ver, grauzero que pede passagem. Vagueando incessantemente, esta anomalia faztoda a diferença, e ela é o (não-)lugar sempre muito fluido que faz escorrero simbólico desde sua raia mais básica. Ao que parece, assim vamos dandosentido às coisas – sentido como construção, como invenção –, na medidamesma em que o mundo circula e nos envolve em sua voragem sem fim.

Podemos então tentar sumarizar, com Deleuze, as condições mínimasde uma estrutura em geral:

1. São necessárias, pelo menos, duas séries heterogêneas, das quais uma serádeterminada como “significante” e a outra como “significada” (...); 2. Cada uma des-tas séries é constituída por termos que não existem a não ser pelas relações quemantêm uns com os outros. A estas relações, ou antes, aos valores destas relações,correspondem acontecimentos muito particulares, isto é, singularidades designá-veis na estrutura (...); 3. As duas séries heterogêneas convergem para um elementoparadoxal, que é como o seu “diferenciante”. Ele é o princípio de emissão das singu-laridades. Este elemento não pertence a nenhuma série, ou antes, pertence a ambasao mesmo tempo e não pára de circular através delas. (1998, p.53)

Considerações finais

Retomaremos, neste tópico, os vínculos das noções apresentadas comas Idéias propostas por Deleuze. Parece-nos relevante apontar: sentido,acontecimento, estrutura e Idéia têm o mesmo estatuto.21 Trata-se semprede valorizar e de precisar cada vez mais uma dimensão ideal, mas real, e quese dá como efeito, que é produzida ao mesmo tempo em que recolhemossuas efetuações, consoante o que vimos no capítulo anterior. Tentaremosesclarecer um pouco mais esse contexto, agora enfatizando os elementosestruturais – estrutura que, em nosso caso, é a do sentido – como compo-nentes da Idéia. Ao mesmo tempo, esperamos enxergar melhor um outro fa-tor extremamente relevante em toda esta conceituação: o movimento inces-sante posto em jogo. Para tudo isto, vamos nos valer de um par conceitualbastante potente, e essencial a Deleuze. Trata-se do par virtual-atual.

21 Como, aliás, confirma Machado (1990, p.155).

Page 18: DELEUZE E A LÓGICA DO SENTIDO O PROBLEMA DA … · 2007-11-06 · RESUMO: Este texto pretende ... dos pelo filósofo Gilles Deleuze para propor uma estrutura do sentido, de acordo

236 Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(2): 219-239, 2006

Comecemos pela seguinte proposição: “(...). não há qualquer dificulda-de em conciliar este duplo aspecto pelo qual a Idéia é constituída de ele-mentos estruturais que não têm sentido por si mesmos, mas constitui o sen-tido de tudo o que ela produz (estrutura e gênese)” (Deleuze, 1988, p.254).Efetivamente, a Idéia é bem estabelecida: temos pelo menos duas séries –uma das quais será dita significante, a outra, significada – de pontos singu-lares, que se firmam e se comunicam sempre em divergência, em diferença,mediante a casa vazia. Entre as duas séries, o que se passa é precisamenteo processo do sentido. Se o sentido tem uma dimensão empírica, correspon-dente aos estados de coisas em suas significações de linguagem, ele temtambém, como postulamos nas primeiras páginas deste capítulo, uma di-mensão transcendental, que podemos aproximar às séries significantes.Para introduzir o virtual e o atual, usaremos um trecho de Em que se podereconhecer o estruturalismo?, no qual Deleuze afirma, retomando Proust:

Da estrutura, diremos: real sem ser atual, ideal sem ser abstrata (...). Extrair aestrutura de um domínio é determinar toda uma virtualidade de coexistência quepreexiste aos seres, aos objetos e às obras desse domínio. Toda estrutura é uma mul-tiplicidade de coexistência virtual. (1974, p.283)22

De uma só vez, o autor indica a estrutura como ideal, real e compostapor virtuais. O que são estes virtuais? Anteciparemos o seguinte cotejo, queficará paulatinamente mais claro ao longo das páginas que ainda virão: ovirtual expõe o transcendental, o intensivo, campo especulativo pré-subje-tivo e pré-objetivo composto por uma multiplicidade de instâncias ainda in-formais (as diferenças, as singularidades), dimensão inconsciente, pré-lin-güística, problemática, pré-sensível, ligada a uma experiência real. O atualrelata o empírico, o extenso, campo dos sujeitos e objetos já formados, a di-mensão própria da consciência, da linguagem, das soluções, do vivido e dasexperiências possíveis comuns. “Todo objeto é duplo, sem que suas duasmetades se assemelhem, sendo uma a imagem virtual e, a outra, a imagematual. Metades desiguais ímpares” (Deleuze, 1988, p.337).23

Especificamente no artigo referido, Deleuze firma a complexidade deum duplo movimento – que vai expor precisamente as duas séries da estru-tura –, de acordo, numa ponta, com um processo de virtualização ou dife-

22 Grifo do autor. Quanto à utilização da fórmula de Proust, cf. também Deleuze, 1987, p.61.23 No que toca ao par virtual-atual, parece-nos que as principais referências são Em que se pode

reconhecer o estruturalismo? e Diferença e repetição. Neste, Deleuze define detidamente as duasfaces da realidade mencionadas: elas equivalem aos capítulos IV, Síntese ideal da diferença, e V,Síntese assimétrica do sensível, e respondem, nesse livro, pelo processo mais completo de carac-terização da ontologia de nosso autor, que aliás visitaremos no último capítulo deste trabalho.

Page 19: DELEUZE E A LÓGICA DO SENTIDO O PROBLEMA DA … · 2007-11-06 · RESUMO: Este texto pretende ... dos pelo filósofo Gilles Deleuze para propor uma estrutura do sentido, de acordo

Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(2): 219-239, 2006 237

rençação, na outra, segundo um processo de atualização, de diferenciação.(Deleuze, 1974, p.283-5). De fato, há uma reversibilidade e uma coexistên-cia permanente entre estes processos, o virtual que continuamente se atu-aliza, o atual que mergulha no seu virtual; por direito, há uma direção da gê-nese que parte do virtual e vai ao atual.

Comentávamos no início deste trecho da dissertação que a sutilezamaior é, quanto ao trabalho e ao trajeto do pensamento, partindo do empí-rico, atingir a dimensão transcendental precedente, bem como daí perse-guir o retorno rumo ao estado de coisas. Aquém portanto das efetuaçõessensíveis, das séries atuais, necessitaríamos encontrar a estrutura de rela-ções diferenciais e pontos singulares que exibe as séries de ordem virtual.

O âmbito virtual da estrutura é excessivo, inesgotável, e de modo quecontinuamente, segundo caminhos e condições sempre ocasionais e exclu-sivas, ela atualiza, em divergência, algum conjunto de relações e de singu-laridades. (idem, p.284). Temos assim, em suma, o duplo aspecto determi-nável da estrutura, do sentido, do acontecimento ou da Idéia, suas metades:a diferençação e a diferenciação.24 São metades dessemelhantes e de natu-rezas distintas, mas ambas reais, que se espelham desigualmente dado umvazio sempre movente.

A diferençação é a multiplicidade das relações diferenciais e dos pon-tos singulares correspondentes, dentro de um domínio considerado. Trata-se de elementos, sem designação nem significação, mas que se apontam ese precisam reciprocamente a partir de relações diferenciais.

Já a diferenciação converte tais relações diferenciais em espécies qua-litativamente distintas e as singularidades nas partes e figuras extensas re-lativas a cada espécie. A diferenciação é especificação e organização, équalificação e composição, é qualitativa e quantitativa. Ela desdobra as vir-tualidades em seus produtos empíricos, mas sem jamais esgotá-las, mesmoporque elas perduram segundo as linhas divergentes atuais (idem, p.284;1988, pp.337-8 e 353-4).

Podemos então atentar: a metade virtual da estrutura nos diz que ela édiferencial em si, diferençada quanto aos seus termos e relações; de outrolado, ela é o que se diferencia no espaço e no tempo, ela é diferenciadoraquanto aos seus efeitos – mas sem jamais se perder, reserva sempre plena,inexaurível. (Deleuze, 1974, p.285-6). Eis então a estrutura: diferençaçãodos termos e relações, diferenciação dos efeitos.

24 Cf. também Machado (1990, p.157). Ou ainda Orlandi (2000, p.55): “Em sua inteireza, a Idéia é umsistema de diferenças determinado por uma complexa articulação de “diferençações” (différenti-ations) e “diferenciações” (différenciations). Toda e qualquer coisa, seja natural ou artificial, sejafísica ou social, seja uma cor ou um poema, até mesmo um conceito, comporta, no mínimo, essadupla articulação própria da Idéia dita ‘inteira’”.

Page 20: DELEUZE E A LÓGICA DO SENTIDO O PROBLEMA DA … · 2007-11-06 · RESUMO: Este texto pretende ... dos pelo filósofo Gilles Deleuze para propor uma estrutura do sentido, de acordo

238 Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(2): 219-239, 2006

Ratifiquemos, finalmente, o que desencadeia o andamento dos doisprocessos, o que comunica um ao outro: um terceiro especial, o diferencia-dor de diferenças, casa vazia. Este é, propriamente, o catalisador de movi-mentos, uma vez que ele faz tudo acontecer e ressoar, é ele que “determinaou desencadeia, que diferencia a diferenciação do atual em sua correspon-dência com a diferençação da Idéia” (Deleuze, 1988, p.354).25 Se uma facenada tem a ver com a outra (pois são desiguais). é porque uma se reverte naoutra, não se dá sem a outra, mas sempre ali pelo meio, onde um notávelportal garante o mundo em sua discordância comunicante, marcha da cria-ção e da novidade.

Chegamos no nível da estrutura, das determinações transcendentais,virtuais, relativas ao sentido: Idéia. Com este percurso algo ziguezaguean-te, particularmente entre a Lógica do sentido e Em que se pode reconhecero estruturalismo?, apresentamos e até mesmo antecipamos alguns dos prin-cipais elementos envolvidos na tessitura proposta pelo autor. Nas séries se-guintes, Deleuze retomará e fará variar estas figuras, estabelecerá novas re-lações, tudo a fim de examinar ainda mais demoradamente as maquinariasconceituais produtoras de sentido. Ele continuará a refinar sua montagem.

SALES, A. C. Deleuze and The logic of sense: structure as a problem. Trans/Form/Ação, (São Paulo), v.29(2), 2006, p.219-239.

■ ABSTRACT: This article intends to follow the main movements presented by thephilosopher Gilles Deleuze (1925-1995). to propose a strucuture of the sense ac-cording to The logic of sense (1969). In order to do this, trying to achieve the veryparticular Deleuzian structuralism, we will follow especially some arguments es-tablished between the fourth (Of dualities). and the eighth (Of structure). series ofthis book, as well as points of the text How do we recognize structuralism? (1974).

■ KEYWORDS: Deleuze; logic of sense; structure; paradoxe; Carroll.

Referências bibliográficas

BADIOU, Alan. Da vida como nomes do ser. In: ALLIEZ, Éric (org). Gilles Deleuze:uma vida filosófica. São Paulo: Ed.34, 2000.

25 Relativamente aos capítulos IV e V, que estabelecem a ontologia, Deleuze costuma chamar deIdéia dialética ou apenas de Idéia a metade virtual do sistema em jogo, as diferençações que aíocorrem. Há pouco víamos, com Orlandi, que a Idéia dita inteira diz respeito ao conjunto formadopelas virtualizações e atualizações: a mesma p.354 de Diferença e repetição (1988) apresenta umatal proposição (“A Idéia inteira é tomada no sistema matemático-biológico da diferençação/di-ferenciação”).

Page 21: DELEUZE E A LÓGICA DO SENTIDO O PROBLEMA DA … · 2007-11-06 · RESUMO: Este texto pretende ... dos pelo filósofo Gilles Deleuze para propor uma estrutura do sentido, de acordo

Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(2): 219-239, 2006 239

BADIOU, Alan. Deleuze: o clamor do ser. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

CARROLL, Lewis. Alice: edição comentada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

________. Aventuras de Alice. São Paulo: Summus, 1980.

CHAUI, Marilena. Introdução à filosofia: dos Pré-Socráticos a Aristóteles. Vol. I. SãoPaulo: Companhia das Letras, 2002.

COPI, Irving. Introdução à lógica. São Paulo: Mestre Jou, 1978.

DELEUZE, Gilles. (1968). Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1988.

________. (1972). Em que se pode reconhecer o Estruturalismo? In CHÂTELET,François (org). História da filosofia – idéias, doutrinas. Vol 8. Rio de Janeiro:Zahar, 1974.

________. (1969). Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1998.

________. (1964). Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988.

DIAS, Sousa. Lógica do Acontecimento – Deleuze e a Filosofia. Porto: Afrontamento,1995.

LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. 3 ed. São Paulo: MartinsFontes, 1999.

MACHADO, Roberto. Deleuze e a filosofia. Rio de Janeiro: Graal, 1990.

ORLANDI, Luiz. Linhas de ação da diferença. In: ALLIEZ, Éric (org). Gilles Deleuze:Uma Vida Filosófica. São Paulo: Ed.34, 2000.

PELBART, Peter. O tempo não-reconciliado. São Paulo: Perspectiva: Fapesp, 1998.

ULPIANO, Cláudio. O pensamento de Deleuze ou a grande aventura do espírito. Tese(Doutorado). Campinas: Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Univer-sidade Estadual de Campinas, 1998.

WAHL, François. O copo de dados do sentido. In: ALLIEZ, Éric (org). Gilles Deleuze:uma vida filosófica. São Paulo: Ed.34, 2000.