86
Tradução de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: aux éditions de la différence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe – sem revisão. 1 Gilles Deleuze (1981). Francis Bacon: lógica da sensação Prólogo Cada uma das rubricas que se seguem considera um aspecto dos quadros de Bacon em uma ordem que vai do mais simples ao mais complexo. Mas esta ordem é relativa e só é válida sob uma lógica geral da sensação. De fato todos os aspéctos coexistem. Eles convergem na cor, em uma “sensação colorante”, que é auge desta lógica. Cada um dos aspectos pode servir de tema para uma seqüência particular na história da pintura. Os quadros citados aparecem progressivamente. São reproduzidos e designados por um número que remete a sua reprodução em um segundo tomo deste livro. Agradecemos a Senhorita Valérie Beston, da galeria Marlborough, pela ajuda preciosa a qual nos foi prestada. I – O redondo, a pista Um redondo delimita seguidamente o lugar onde está sentado o personagem, esta é a Figura. Sentado, deitado, inclinado ou outra coisa. Este redondo, ou este oval, toma mais ou menos lugar: ele pode transbordar as laterais do quadro, estar no centro de um tríptico, etc… Quase sempre ele é redobrado, ou ainda substituído, pelo redondo da cadeira onde o personagem está sentado, pelo oval da cama onde o personagem está deitado. Ele se espalha pelas pastilhas que cercam uma parte do corpo do personagem, ou no círculo giratório que envolve o corpo. Mas mesmo os dois camponeses só formam uma Figura com relação a uma terra arrebatada, estreitamente contida no oval em um pote. Resumindo, o quadro comporta uma pista, uma espécie de circo como lugar. É um procedimento muito simples que consiste em isolar a Figura. Existem outros procedimentos de isolamento: colocar a Figura em um cubo, ou antes em um paralelepípedo de vidro ou gelo; fazê-la colar sobre um raio, sobre uma barra estirada, como que sobre um arco magnético de um círculo infinito; combinar todos esses meios, o redondo, o cubo e a barra, como que em um estranho sofá largo e arqueado de Bacon. Estes são os lugares. De todo modo Bacon não esconde que tais procedimentos são quase que rudimentares, graças à sutileza de sua combinação. O importante é que eles não limitam a Figura à imobilidade; pelo contrário, eles tornam sensível uma espécie de encaminhamento, de exploração da Figura em seu lugar, ou sobre si mesma. É um campo operacional. A relação da Figura com seu lugar isolante define um fato: o fato é…, o que tem lugar… E a Figura, assim isolada, torna-se uma Imagem, um Ícone. Não é só o quadro que é uma realidade isolada (um fato), nem só o tríptico em três painéis isolados que, sobretudo, não devemos reunir em um só e mesmo quadro, mas a Figura ela-mesma é que está isolada neste quadro, pelo redondo ou pelo paralelepípedo.

DELEUZE Francis Bacon Logica Da Sensacao

Embed Size (px)

Citation preview

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    1

    Gilles Deleuze (1981). Francis Bacon: lgica da sensao

    Prlogo

    Cada uma das rubricas que se seguem considera um aspecto dos quadros de Bacon emuma ordem que vai do mais simples ao mais complexo. Mas esta ordem relativa e s vlida sob uma lgica geral da sensao.

    De fato todos os aspctos coexistem. Eles convergem na cor, em uma sensaocolorante, que auge desta lgica. Cada um dos aspectos pode servir de tema para umaseqncia particular na histria da pintura.

    Os quadros citados aparecem progressivamente. So reproduzidos e designados por umnmero que remete a sua reproduo em um segundo tomo deste livro. Agradecemos aSenhorita Valrie Beston, da galeria Marlborough, pela ajuda preciosa a qual nos foiprestada.

    I O redondo, a pista

    Um redondo delimita seguidamente o lugar onde est sentado o personagem, esta aFigura. Sentado, deitado, inclinado ou outra coisa. Este redondo, ou este oval, toma maisou menos lugar: ele pode transbordar as laterais do quadro, estar no centro de um trptico,etc Quase sempre ele redobrado, ou ainda substitudo, pelo redondo da cadeira ondeo personagem est sentado, pelo oval da cama onde o personagem est deitado. Ele seespalha pelas pastilhas que cercam uma parte do corpo do personagem, ou no crculogiratrio que envolve o corpo. Mas mesmo os dois camponeses s formam uma Figuracom relao a uma terra arrebatada, estreitamente contida no oval em um pote.Resumindo, o quadro comporta uma pista, uma espcie de circo como lugar. umprocedimento muito simples que consiste em isolar a Figura. Existem outrosprocedimentos de isolamento: colocar a Figura em um cubo, ou antes em umparaleleppedo de vidro ou gelo; faz-la colar sobre um raio, sobre uma barra estirada,como que sobre um arco magntico de um crculo infinito; combinar todos esses meios, oredondo, o cubo e a barra, como que em um estranho sof largo e arqueado de Bacon.Estes so os lugares. De todo modo Bacon no esconde que tais procedimentos so quaseque rudimentares, graas sutileza de sua combinao. O importante que eles nolimitam a Figura imobilidade; pelo contrrio, eles tornam sensvel uma espcie deencaminhamento, de explorao da Figura em seu lugar, ou sobre si mesma. um campooperacional. A relao da Figura com seu lugar isolante define um fato: o fato , o quetem lugar E a Figura, assim isolada, torna-se uma Imagem, um cone.

    No s o quadro que uma realidade isolada (um fato), nem s o trptico em trspainis isolados que, sobretudo, no devemos reunir em um s e mesmo quadro, mas aFigura ela-mesma que est isolada neste quadro, pelo redondo ou pelo paraleleppedo.

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    2

    Por que? Bacon repete dizendo: para conjurar o carter figurativo, ilustrativo, narrativo,que a Figura teria necessariamente se no estivesse isolada. A pintura no tem nemmodelo a representar, nem histria a contar. Desde ento ela tem como que duas viaspossveis para escapar ao figurativo: seguir no sentido de uma forma pura, por abstrao;ou no sentido de um puro figural, por extrao e isolamento. Se o pintor tende Figura,se ele toma a segunda via, isto ser para opor o figural ao figurativo1. A primeiracondio a de isolar a Figura. O figurativo (a representao) implica, de fato, emrelacionar uma imagem a um objeto e buscar ilustr-lo; mas ela implica tambm a relaode uma imagem com outras imagens em um conjunto composto que oferece precisamentepara cada um o seu objeto. A narrativa o correlato da ilustrao. Entre duas figuras, hsempre uma histria que se insinua ou tende a se insinuar, para animar o conjuntoilustrado2. Isolar ento o modo o mais simples, necessrio, mas no o suficiente, pararomper com a representao, quebrar a narrativa, impedir a ilustrao, liberar a Figura:para deter-se no fato.

    Evidentemente o problema mais complicado: ser que no existiria um outro tipo derelao entre as Figuras, no narrativo, e que portanto no destacaria nenhuma figurao?Figuras diversas que levariam ao mesmo fato, que pertenceriam a um s e mesmo fatonico, ao invs de remeter a uma histria e de remeter a objetos diferentes em umconjunto de figurao? Relaes no narrativas entre Figuras, e relaes no ilustrativasentre Figuras e fatos? Bacon no parou de fazer Figuras acopladas, que no contamnenhuma histria. E quanto mais os painis separados de um trptico tm uma relaointensa entre si, menos esta relao narrativa. Com modstia, Bacon reconhece que apintura clssica buscou constantemente traar este outro tipo de relao entre Figuras, eque esta ainda a tarefa da pintura: evidentemente muitas das grande obras foram feitascom um certo nmero de figuras sobre uma mesma tela, e claro que toda pintura querfazer isto Mas a histria que se conta entre uma figura e outra anula desde o princpioas possibilidades que a pintura tem em agir por si mesma. E reside a uma dificuldademuito grande. Mas um dia ou outro algum vir e ser capaz de colocar diversas figurassobre uma mesma tela3. Qual ser ento este outro tipo de relao entre Figurasacopladas ou distintas? Chamemos esta nova relao de matters of fact, por oposio srelaes inteligveis (de objeto ou de idias). Mesmo se reconhecemos que Bacon jtenha largamente conquistado este domnio, sob aspectos mais complexos do queaqueles que consideramos atualmente.

    Ainda estamos falando do aspecto simples do isolamento. Uma figura est isolada numapista, sobre a cadeira, a cama ou o sof, no redondo ou no paraleleppedo. Ela no ocupamais do que uma parte do quadro. Assim sendo, de que preenchido o restante doquadro? Para Bacon um certo nmero de possibilidades j vem anulado, ou sem interesse.No ser uma paisagem a preencher o restante do quadro, como correlata da figura, nem

    1 J.-F. Lyotard emprega o termo figural como substantivo, opondo-o a figurativo. Cf. Discours, Figure,d. Klincksieck.2 Cf. Bacon, Lart de limpossible, Entretiens avec David Sylvester, d. Skira. A crtica do figurativo (porsua vez ilustrativo e narrativo) constante nos dois tomos deste livro, que citaremos daqui em diantepor E.3 E.I, pp. 54-55.

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    3

    um fundo do qual surgiria a forma, nem um informal, claro-escuro, espessura da cor ondese do as sombras, textura onde se do as variaes. Iremos rpido, no entanto. claroque existem as Figuras-paisagens, no incio da obra, como em Van Gogh de 1957; existetexturas extremamente nuanceadas como em Figura em uma paisagem ou Figura estudoI, de 1945; existe ainda a espessura e a densidade como Cabea II, de 1949; e sobretudoexiste um perodo superposto de dez anos, do qual Sylvester diz ser dominado pelasombra, o obscuro e a nuance, antes de retornar ao preciso4. Mas no se exclui queaquilo que destino passa por contornos que parecem contradiz-lo. Pois as paisagens deBacon so a preparao daquilo que aparece mais tarde como um conjunto de curtasmarcas livres involuntrias arranhando a tela, traos assignificantes destitudos defuno ilustrativa ou narrativa: donde a importncia da erva, o carter irremediavelmenteherbceo de suas paisagens (Paisagem, 1952, Estudo de figura na paisagem, 1952,Estudo de babuino, 1953, ou Duas figuras na grama, 1954). Quanto s texturas, espessura, sombra e ao fluido, eles j preparam o grande processo de limpeza local,com papel chiffon, vassourinha ou escova, em que a espessura estendida sobre umazona no figurativa. Portanto, precisamente, os dois procedimentos de limpagem local edo trao assignificante pertencem a um sistema original que no nem o da paisagem,nem o do informal ou do fundo (bem que eles sejam aptos, em virtude de sua autonomia,a fazer paisagem ou a fazer fundo, e mesmo a fazer sombra).

    De fato, o que ocupa sistematicamente o resto do quadro so os grandes chapados de corviva, uniforme e imvel. Finos e duros, eles tm uma funo espacializante. Mas eles noesto sob a Figura, atrs dela ou alm dela. Eles esto estritamente ao lado, ou antes emtorno, e so tomados por e em uma vista prxima, ttil ou hptica, enquanto Figura-ela-mesma. Nesse estgio no h nenhuma relao de profundidade ou de distanciamento,nenhuma incerteza das luzes e das sombras, quando se passa da Figura ao chapado.Mesmo a sombra, mesmo o preto, no sombra (tentei tornar a sombra to presentequanto a Figura). Se os chapados funcionam como fundo, sobretudo em virtude de suacorrelao estrita com a Figura, a correlao de dois setores sobre um mesmo Planoigualmente prximo. Esta correlao, esta conexo, ela mesma dada pelo lugar, pelapista ou pelo redondo, que o limite comum dos dois, o seu contorno. isto o que dizBacon em uma declarao importante, qual voltaremos diversas vezes. Ele distingue nasua pintura trs elementos fundamentais que so: a estrutura material, o redondo-contorno, a imagem-erguida. Se pensamos em termos de escultura preciso dizer que: aarmadura, o pedestal que poderia ser mvel, a Figura que passeia na armadura com seupedestal. Se fosse necessrio ilustrar (e preciso em certos momentos, como em H omemcom o cachorro de 1953), falaramos em: uma calada, umas poas, personagens quesaem das poas e fazem seu passeio cotidiano5.

    4 E. I, pp.34-35.5 Citemos ento o texto completo, E.II, pp.34-36: Pensando nelas como esculturas, a maneira na qual euposso faz-las em pintura, e de faz-las melhor em pintura, me veio de repente ao esprito. Um tipo depintura estruturada na qual as imagens surgiro, diga-se assim, de um mar de carne. Esta idia soaterrivelmente romntica, mas vejo isto de um modo bastante formal e que forma ser que isto tem? Elassurgiro certamente sobre estruturas materiais Demais figuras? Sim, e haver sem dvida uma caladaque se elevar mais alto do que na realidade, e sobre a qual elas podero se mover, como se as imagens seelevassem de charcos de carne, se possvel, de pessoas determinadas fazendo seu passeio cotidiano. Esperoser capaz de fazer as figuras surgindo de sua prpria carne com seus chapus coco e seus guarda-chuvas, e

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    4

    O que neste sistema h de coincidente com a arte egpcia, com a arte bizantina, etc., issons veremos mais adiante. O que conta agora a proximidade absoluta, esta copreciso,do chapado que funciona como fundo, e da Figura que funciona como forma, sobre omesmo plano de viso prxima. E este sistema, esta coexistncia de dois setores um aolado do outro que fecha o espao, que constitui um espao absolutamente fechado erodopiante, muito mais do que se procedssemos com a sombra, o obscuro e o indireto.Eis porque h um enevoado em Bacon, at mesmo dois tipos de fluidez, mas quepertencem os dois a este sistema de mais alta preciso. No primeiro caso, o enevoado obtido no por indistino mas, ao contrrio, pela operao que consite em destruir anitidez pela prpria nitidez6. Assim o homem com a cabea de porco, Autoretrato de1973. Ou ainda o tratamento dos jornais amarotados, ou no: como diz Leiris, oscaracteres tipogrficos so nitidamente traados, e sua preciso mecnica que se ope sua prpria legibilidade7. No outro caso, o enevoado obtido pelos procedimentos demarcas livres, ou de limpagem, eles tambm pertencentes aos elementos precisos dosistema (existem ainda outros casos).

    de fazer figuras to pungentes quanto uma crucifixo. E em E.II, p. 83, Bacon acrescenta: Sonhei comesculturas posadas num tipo de armadura, uma grande armadura feita de modo que a escutura pudesseescorregar por sobre, e que as pessoas pudessem elas mesmas, a seu gosto, mudar a posio da escultura.6 A propsito de Tati, outro grande artista do chapados, Andr Bazin disse que: Raros so os elementossonoros indistintosPelo contrrio, toda a astcia de Tati consiste em destruir a nitidez pela nitidez. Osdilogos no so incompreensveis mas insignificantes, e sua insignificncia revelada por sua prpriapreciso. Tati at mesmo deforma as relaes de intensidade entre os planos (Quest-ce que le cinma?P.46, d. Du Cerf.)7 Leiris, Au verso des images. d. Fata Morgana, p.26.

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    5

    II nota sobre a relao da pintura antiga com a figurao

    A pintura deve banir a figura do figurativo. Mas Bacon invoca dois dados que fazem comque a pintura antiga no tenha mais com a figurao ou com a ilustrao a mesma relaoque a pintura moderna. De um lado, a fotografia tomou para si a funo ilustrativa edocumentria, se bem que a pintura moderna no tenha mais que preencher esta funoque ainda pertence antiga. Por outro lado, a pintura antiga ainda estava condicionadapor certas possibilidades religiosas que davam um sentido pictrico figurao,enquanto a pintura moderna um jogo ateu.1

    No certo portanto que estas duas idias, tomadas de Malraux, sejam adequadas. Pois asatividades concorrem entre si, e uma no se contenta em simplesmente preencher umpapel abandonado pela outra. No imaginamos uma atividade que se encarregue de umafuno largada por uma arte superior. A fotografia, mesmo a instantnea, tem toda umaoutra preteno que no a de representar, ilustrar ou narrar. E quando Bacon fala porsua conta da fotografia, e das relaes fotografia-pintura, ele diz coisas mais profundas.Por outro lado, o vnculo entre elemento pictrico e sentimento religioso, na pinturaantiga, parece, por sua vez, mal definido pela hipotese de uma funo figurativa queestaria sendo simplesmente santificada pela f.

    Em um exemplo extremo, O enterro do conde de Orgaz, de Greco. Uma horizontaldivide o quadro em duas partes, inferior e superior, terrestre e celestial. Na parte de baixoexiste claramente uma figurao ou narrativa que representa o enterro do conde, aindaque todos os coeficientes de deformao dos corpos, e notadamente o seu alongamento,faam parte da obra. Mas no alto, l onde o conde recebido por Cristo, h uma liberaolouca, uma total liberdade: as Figuras se elevam e se alongam, se afinamdesmedidamente, fora de todo limite. Graas s aparncias, no h mais histria a sercontada, as Figuras so libertadas de seus papis representativos, elas entram em relaodireta com uma ordem de sensao celeste. isto que a pintura crist encontrou nosentimento religioso: um atesmo propriamente pictrico, onde podemos tomar ao p daletra que Deus nunca deveria ser representado. De fato, com Deus, mas tambm comCristo, com a Virgem, e tambm com o Inferno, as linhas, as cores, os movimentos seliberam das exigncias da representao. As Figuras se levantam ou mergulham, ou secontorcem, livres de toda figurao. Elas no tm mais nada a representar ou narrar, poisse contentam em remeter , neste domnio, ao cdigo existente da Igreja. ento que, porsua conta, elas no tm mais a ver com as sensaes celestiais, infernais ou terrestres.Tudo passar por um cdigo, pintaremos o sentimento religioso de todas as cores domundo. No mais necessrio dizer que se Deus no est, tudo permitido. exatamente o contrrio. Pois com Deus que tudo permitido. com Deus que tudo permitido. No s moralmente, pois as violncias e infmias encontram sempre umajustificativa sagrada. Mas esteticamente, de uma maneira ainda mais importante, vistoque as Figuras divinas so animadas por um livre trabalho criador, por uma fantasia que

    1 Cf. Bacon, Francis e Silvester, David lart de limpossible, entretiens avec David Silvester. Skira. (E),pp. 62-65 (Bacon pergunta porque Velasquez podia permanecer to prximo da figurao . Ao que eleresponde, de uma parte, que a fotografia no existia; de outra, que a pintura estava ligada a um sentimentoreligioso, mesmo que vago).

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    6

    se permite todas as coisas. O corpo de Cristo verdadeiramente talhado de umainspirao diablica que o faz passar por todos os domnios sensveis, por todos osnveis de sensao diferentes. Vejamos mais dois exemplos: o Cristo de Giotto,transformado num pipa em pleno cu, verdadeiro avio, que lana sua cicatriz sobre SoFrancisco, enquanto as linhas hachureadas do percurso da cicatriz aparecem como asmarcas livres com as quais o santo maneja os fios do avio pipa. Ou ainda a Criao dosAnimais de Tintoreto: Deus como um starter que d a partida de uma corrida deobstculos, os pssaros e os peixes partindo primeiro, enquanto o co, os coelhos, ocervo, a vaca e o licorne esperam por sua vez.

    No podemos mais dizer que o sentimento religioso sustentava a figurao na pinturaantiga: pelo contrrio, ele torna possvel uma liberao das Figuras, o surgimento dasFiguras fora de toda figurao. Tambm no podemos mais dizer que a renuncia figurao seja mais fcil pintura moderna enquanto jogo. Pelo contrrio, a pinturamoderna est invadida, sitiada pelas fotografias e pelos clichs que se instalam sobre atela antes mesmo que o pintor comece seu trabalho. De fato, ser um erro acreditar que opintor trabalha sobre uma superfcie branca e virgem. A superfcie j est toda investidavirtualmente por todo tipo de clichs com os quais necessrio romper. E isto que dizBacon ao falar da fotografia: ela no uma figurao do que vemos, ela o que o homemmoderno v.2 Ela no simplesmente perigosa por ser figurativa, mas porque pretendereinar sobre a viso, ou seja, sobre a pintura. Assim, tendo renunciado ao sentimentoreligioso, mas cercada pela fotografia, a pintura moderna fica numa situao difcil pararomper com a figurao que parecer ser seu miservel domnio reservado. Estadificuldade a pintura abstrata confirma: foi necessrio o trabalho extraordinrio dapintura abstrata para retirar a arte moderna da figurao. Mas no existiria uma outra via,mais direta e menos sensvel?

    2 E, p. 67. Voltaremos a este ponto que explica a atitude de Bacon com relao fotografia, ora de fascnioora de despreso. Em todo caso, o que ele reprova na fotografia no o fato de ela ser figurativa.

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    7

    III Atletismo

    Voltemos aos trs elementos pictricos de Bacon: os grandes chapados como estruturamaterial espacializante a Figura, as Figuras e seus fatos o lugar, ou seja o redondo, apista ou o contorno, que o limite comum da Figura e do chapado. O contorno parece sermuito simples, redondo ou oval; antes sua cor que coloca os problemas na dupla relaodinmica onde ela tomada. De fato, o contorno, como lugar, o lugar de uma troca emdois sentidos: entre as estrutura material e a Figura, entre a Figura e o chapado. Ocontorno como uma membrana atravessada por uma dupla troca. Algo passa numsentido e noutro. Ainda que a pintura no tem nada a narrar, no tenha histria a contar,mesmo assim algo se passa, definindo o funcionamento da pintura.

    No redondo a Figura est sentada numa cadeira, deitada numa cama: s vezes ela parecemesmo a espera do que vai se passar. Mas o que se passa, ou vai passar, ou j estpassando, no um espetculo, uma representao.Aqueles que espreitam em Bacon,no so espectadores. Nos quadros de Bacon surpreendemos o esforo por eliminar todoespectador, e com isto todo espetculo. Assim a tauromaquia de 1969 apresenta duasverses: na primeira o grande chapado comporta ainda um painel aberto em quepercebemos uma multido, como uma legio romana que teria vindo ao circo. Enquanto asegunda verso fecha o painel e no se contenta mais em entrelaar as duas Figuras detoureiro e de touro, mas volta-se verdadeiramente para seu fato nico ou comum, aomesmo tempo em que desaparece o tecido rubro que ligava o espectador ao que ainda espetculo. Os Trs estudos de Isabel Rawthorne(1967) mostram a Figura em vistas defechar a porta sobre um intruso ou uma visitante, mesmo que seja seu prprio duplo.Diremos ento que em muitos casos subsiste uma espcie de espectador, um voyeur, umfotgrafo, um passante, um que espreita, distinto da Figura, notadamente nos trpticos,onde isto quase uma lei, mas no somente neles. Veremos portanto que Bacon precisa,em seus quadros e sobretudo em seus trpticos, de uma funo de testemunho, que fazparte da Figura e no tem nada a ver com o espectador. Mesmo os simulacros defotografias, enganchados na parede ou sobre a raia, podem jogar este papel detestemunho. So testemunhos no no sentido de espectadores, mas de elementos-referencia ou de constante com relao qual se estima uma variao. Na verdade, onico espectador aquele da ateno ou do esforo, mas estes s so produzidos quandono h mais espectador. Isto aproxima Bacon a Kafka: a Figura de Bacon o grandeEnvergonhado, ou o grande Nadador que no sabe nadar, campio dos jovens; e a pista,circo, a plata-forma1, o teatro de Oklahoma. A este ponto tudo culmina em Bacon comPintura de 1978: colada em um painel a Figura estende todo seu corpo e uma perna, parafazer girar a chave da porta com seu p do outro lado do quadro. Notamos que ocontorno, o redondo, de um belo alaranjado-ouro, no est mais no solo mas migrou,situado sobre a porta, se bem que a Figura, na extrema ponta de p, parece elevar-sesobre a porta vertical, numa reorganizao do quadro.

    No esforo por eliminar o espectador, a Figura j mostra um atletismo todo singular.Ainda mais singular quando a fonte do movimento no est mais nela. O movimento vai

    1 Plate-forme = forma chapada

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    8

    antes da estrutura material, do chapado, para a Figura. Em muitos quadros o chapado precisamente tomado em movimento no qual ele forma um cilindro: ele volteia ocontorno, o meio; e envolve, aprisiona a Figura. A estrutura material roda em volta docontorno para aprisionar a Figura que acompanha o movimento de todas as foras.Extrema solido da Figura, extremo fechamento dos corpos excluindo todo espectrador: aFigura s se torna assim pelo seu movimento em que ela se fecha e que a fecha. Jornadaem que os corpos procuram cada um o despovoar o interior de um cilindro rebaixadotendo cinquenta metros de dimetro e dezesseis de altura para a harmonia. Luz. Suafraqueza. Seu amarelo2 Ou bem se tem uma queda suspensa no buraco negro do cilindro:primeira frmula do atletismo derisrio, violento csmico em que os orgos so prteses.Ou o lugar, o contorno, que se torna adequado ginstica da Figura no meio do chapado.

    Mas o outro movimento, que coexiste evidentemente com o primeiro, pelo contrrioaquele da Figura indo para a estrutura material, para o chapado. Desde o incio a Figura o corpo e o corpo tem seu lugar no centro do redondo. Mas o corpo no espera apenasalgo da estrutura, ele espera algo em si mesmo, ele faz esforo sobre si mesmo para setornar Figura. Agora no corpo que algo se passa: ele fonte de movimento. No maisproblema do lugar mas do evento. Se h esforo, um esforo intenso, este no de modoalgum um esforo estraordinrio como se se tratasse de um feito do corpo alm de suasforas sobre um objeto distinto. O corpo se esfora precisamente, ou espera precisamenteescapar. No sou eu que tento escapar de meu corpo, o corpo que tenta se escaparporResumindo, um espasmo: o corpo como plexus, e seu esforo ou sua espera por umespasmo. Talvez seja uma aproximao do horror ou da abjeo, segundo Bacon. Umquadro pode nos guiar como exemplo, Figura no lavabo, de 1976: pendurado no oval dolavabo, fixo pelas mos na torneira, o corpo-figura faz sobre si um esforo intenso,imvel, para escapar-se por completo pelo ralo. Joseph conrad descreve uma cenasemelhante em que ele tambm via a imagem de abjeo: em uma cabine hermtica donavio, em plena tempestade, o negro do narciso estende os outros marinheiros queconseguiram fazer um buraco minsculo na clausura que os aprisiona. um quadro deBacon. E o negro infame, se lanando pela abertura, fixava seus lbios e gritava porsocorro! De uma voz apagada, forando a cabea contra a madeira, num esforo dementepara sair de um palmo de largura por trs de comprimento. Desmantelados comoestavamos, esta ao incrvel nos paralisou totalmente. Parecia impossvel fugir dal3. Afrmula corrente ento: passar por um buraco de rato, tornar banal o prprioabominvel ou o Destino. Cena histrica. Toda a srie dos espasmos em Bacon destetipo, amor, vmito, excremento; sempre o corpo que tenta escapar por um de seus rgos,para reencontrar o chapado, a estrutura material. Bacon disse muitas vezes que nodomnio das Figuras a sombra era to presente quanto o corpo; mas a sombra no adquireesta presena a no ser por que escapa do corpo, ela corpo que se escapou por um ououtro ponto localizado no contorno. E o grito, o grito de Bacon, a operao pela qual ocorpo inteiro se escapa pela boca. Todos as convulses do corpo.

    A pia do lavabo um lugar, um contorno, uma retomada do redondo. Mas qui a novaposio do corpo em relao ao contorno, mostra que chegamos a um aspecto mais 2 Beckett, Le dppeupleur, d. Du Minuit, p.7.3 Conrad, Le ngre du Narcise, d. Gallimard, p.103.

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    9

    complexo (mesmo se este aspecto sempre estivesse al). No mais a estrutura materialque roda em volta do contorno para envolver a Figura, a Figura que pretende passar porum ponto de fuga no contorno para se dissipar na estrutura material. a segunda direoda troca, e a segunda forma de atletismo derrisrio. O contorno toma assim uma novafuno, pois ele no mais achatado, mas desenha um volume oco e comporta um pontode fuga. Quanto a isto, os guarda-chuvas de Bacon so anlogos ao lavabo. Nas duasverses de Pintura de 1946 e 1971, a Figura est bem posta no redondo de umabalaustrada, mas ao mesmo tempo ela se deixa apanhar pelo guarda-chuva semiesfrico, eparece querer escapar inteira pela ponta do instrumento: no vemos mais do que o sorrisoabjeto. Nos Estudos do corpo humano, de 1970, e Trptico maio-junho de 1974, o guarda-chuva verde garrafa tratado mais como uma superfcie, mas a figura agachada se serveao mesmo tempo como que de um balano, de um guarda-chuva, de um aspirador, deuma ventosa, pela qual todo corpo contrado quer passar, e a cabea j vem abocanhada:esplendor desses guarda-chuvas como contorno, com uma ponta voltada para baixo. Naliteratura, Burroughs sugeriu melhor este esforo do corpo por escapar por uma ponta oupor um buraco que fazem parte dele mesmo e de seu entorno: o corpo de Johnny secontrai na direo de seu queixo, as contraes so mais e mais longas, Aiiiiie ! gritam osmsculos enfaixados, e seu corpo inteiro tenta escapar pela cauda4 O mesmo aconteceem Bacon, a Figura adormecida com seringa hipodrmica (1963) menos um corpoencravado, como diz Bacon, do que um corpo que tenta passar pela seringa, e escapar poreste buraco ou esta ponta de fuga flutuante como rgo-prtese.

    Se a pista ou o redondo se prolongam no lavabo, no guarda-chuva, o cubo ou oparaleleppedo se prolongam tambm no espelho. Os espelhos de Bacon so o quequisermos, menos uma superfcie que reflete. O espelho uma espessura opaca por vezespreta. Bacon no vive, de modo algum, o espelho ao modo de Lewis Carroll. O corpopassa dentro do espelho, ele se aloja, a si mesmo e a sua sombra. Eis o que fascinante:no h nada atrs do espelho, mas dentro dele. O corpo parece se alongar, se achatar,esticar-se dentro do espelho como se ele se contrasse para passar pelo buraco. Se forpreciso a cabea se fende numa grande greta triangular, que vai se reproduzir dos doislados e espalh-la por todo o espelho, como um bloco de gordura numa sopa. Mas nosdois casos, tanto no guarda-chuva ou no lavabo quanto no espelho, a Figura no est maisisolada, sozinha, ela est deformada, contrada e aspirada, estirada e dilatada. que omovimento no mais aquele da estrutura material que se enrola en torno da Figura, aquele da Figura que vai no sentido da estrutura e tende, no limite, a se dissipar noschapados. A Figura no somente corpo isolado, mas o corpo deformado que escapa. Oque faz da deformao um destino que o corpo tem uma relao necessria com aestrutura material: no somente esta se enrola em torno dele, mas ele deve juntar-se a elae se dissipar, e assim passar por ou pelos instrumentos-prtese que constituem passagense estados reais, fsicos, efetivos, sensaes e de maneira nenhuma imaginaes. Se bemque o espelho ou o lavabo possam ser localizados em muitos casos; mesmo assim, o quese passa dentro do espelho, o que vai se passar dentro do lavabo ou sob o guarda-chuva,remete imediatamente Figura ela mesma. Acontece com a figura exatamente o quemostra o espelho, o que anuncia o lavabo. As cabeas so preparadas para receber as

    4 Aburroughs, Le festin nu, d. Gallimard, p.102.

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    10

    deformaes (vem da as zonas , raspadas, esfregadas nos retratos de cabeas). E medida em que os instrumentos tendem ao conjunto da estrutura material eles noprecisam mais ser especficos: a estrutura toda que assume o papel de espelho virtual,de guarda-chuva ou lavabo virtuais, ao ponto em que as deformaes instrumentais seencontram imediatamente referidas sobre a Figura. Assim Autoretrato de 1973, ohomem com cabea de porco: no prprio lugar que a deformao se faz. Assim como oesfoo do corpo sobre si mesmo, a deformao esttica. Todo o corpo percorrido porum movimento intenso. Movimento deformadamente disforme, que remete cadainstante a imagem real ao corpo, para constituir a Figura.

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    11

    IV o corpo, a carne e o esprito, o devir-animal

    O corpo, a Figura, ou melhor, o material da Figura. No confundiremos, no entanto, omaterial da figura com a estrutura material espacializante, que se tem do outro lado. Ocorpo Figura, no estrutura. Inversamente, a Figura, sendo corpo, no o rosto e nemtem um rosto. Ela uma cabea, pois a cabea parte integrante do corpo. Ela podemesmo se reduzir cabea. Retratista, Bacon um pintor de cabeas e no de rostos.Existe uma grande diferena entre estas duas coisas. Pois o rosto uma organizaoespacial estruturada que recobre a cabea, enquanto a cabea uma dependncia docorpo, mesmo ela sendo o seu extremo. No porque a ela falte esprito, mas umesprito que o corpo, sopro corporal e vital, esprito animal, o animal do homem:esprito-porco, esprito-bufalo, esprito-cachorro, esprito-morcego trata-se portanto deum projeto todo especial que Bacon persegue enquanto retratista: desfazer o rosto,encontrar ou fazer surgir uma cabea sob um rosto.

    As deformaes pelas quais passam os corpos so tambm traos animais da cabea. Nose trata de modo algum de uma correspondncia entre formas animais e formas do rosto.De fato, o rosto perdeu sua forma sofrendo as operaes de limpeza e raspagem que odesorganizam e fazem surgir em seu lugar uma cabea. As marcas ou traos deanimalidade no so formas animais, mas antes espritos que frequentam as partes 1, quearrancam da cabea, individualizam e qualificam a cabea sem rosto.2 Limpeza e traos,como procedimentos de Bacon, encontram aqui um sentido particular. Acontece mesmoda cabea do homem ser substituda por um animal; mas no o animal como forma, oanimal como trao, por exemplo um trao estremecido de pssaro que faz uma piruetasobre a parte limpada, enquanto o simulacro de retrato-rosto, por sua vez, serve somentede testemunho (assim se d no trptico de 1976). Pode acontecer at mesmo de umanimal, por exemplo um cachorro real, ser tratado com sendo a sombra de seu dono; ouinversamente que a sombra do homem tome uma existncia de animal autonoma eindeterminada. A sombra escapa do corpo como um animal que ns abrigamos. Ao invsde correspondncias formais, o que a pintura de Bacon constitui uma zona deindiscernibilidade, de indeciso, entre o homem e o animal. O homem se torna animal,mas ele no se torna sem que o animal ao mesmo tempo se torne esprito, esprito dehomem, esprito fsico de homem apresentado no espelho como Eumnides ou Destino.No nunca uma combinao de formas, antes um fato comum: o fato comum dohomem e do animal. Ao ponto em que a Figura a mais isolada de Bacon j uma Figuraacoplada; o homem acoplado a seu animal numa tauromaquia latente.

    Esta zona objetiva de indiscernibilidade, ela j o corpo, mas o corpo enquanto carne ouvianda. Sem dvida o corpo tambm tem osso, mas os ossos so somente a estruturaespacial. Ns distinguimos diversas vezes a carne dos ossos, e mesmo dos pais de carne

    1 A traduo correta para nttoyes limpas, porm optamos por limpas, remetendo ao de Bacon quelimpava as superfcies j pintadas de seus quadros, borrando a imagem nesta ao. No s estarem assuperfcies limpas, mas elas sofrerem a ao de serem limpas (limpas).2 Felix Guattari analisou este fenmeno de desorganizao do rosto: os traos de rostidade se liberam e setornam traos de animalidade da cabea. Cf. O inconciente maquinico (linconscient machinique, paris:recherche, pp. 75 sq.)

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    12

    e dos pais de osso. O corpo no se revela a no ser quando ele deixa de ser suspensopelos ossos, quando a carne deixa de recobrir os ossos, quando eles existem um para ooutro, mas cada um de seu lado, os ossos como estrutura material do corpo, a carne comomaterial corporal da Figura. Bacon admira as meninas de Degas; Aps o banho, cujacoluna vertebral interrompida parece sair da carne, a carne ficando vulnervel eengenhosa, acrobtica.3 Em uma outra reunio, Bacon pinta uma coluna vertebral parauma Figura contorcida de cabea para baixo. Vale notar esta tenso pictural da carne edos ossos. Pois justamente a vianda que realiza esta tenso na pintura, compreendidapelo explendor das cores. A vianda o estado tal do corpo em que a carne e os ossos seconfrontam locamente, ao invs de se comporem estruturalmente. At mesmo na boca enos dentres, que so pequenos ossos. Na vianda diremos que a carne descende dos ossos,enquanto que os ossos se elevam da carne. o que prprio de Bacon, o diferindo deRembrandt, de Soutine. Se h uma interpretao do corpo em Bacon, ns aencontramos em seu gosto de pintar as Figuras deitadas, das quais o brao ou a coxalevantada valem por um osso, tal qual a carne adormecida parece descer. Assim no painelcentral do trptico 1968: os dois gmeos adormecidos, cercados do testemunho dosepritos animais; tambm a srie do brao elevado adormecido, da perna verticaladormecida, e da coxa elevada adormecida ou drogada. Para alm do sadismo aparente,os ossos so como o mastro (carcaa) cuja carne o acrobata. O atletismo do corpo seprolonga naturalmente nesta acrobacia da carne. E naqueles de 1962 e de 1965, v-seliteralmente a carne descender dos ossos, no quadro de uma cruz-sof e de uma pista emforma de osso. Para Bacon, como para Kafka, a coluna vertebral no passa de uma espadasob a pele que um carrasco fez deslizar para dentro do corpo de um inocente que dorme.4

    Pode-se mesmo pensar que um osso foi somente sobreposto, em um jato de pinturalanado ao acaso.

    Piedade para a vianda! No h dvida, a vianda o objeto mais alto da piedade de Bacon,so somente objetos de piedade, sua piedade anglo-irlandesa. O mesmo o para Soutine,com sua imensa piedade judia. A vianda no uma carne morta, ela guarda todos ossofrimentos e toma sobre si as cores da carne viva. Um tanto de cor convulsiva e devulnerabilidade, mas tambm de inveno sedutora, de cor e de acrobacia. Bacon nopede piedade aos bichos, mas sim que todo homem que sofre a vianda. A vianda azona comum do homem e do bicho, sua zona de indicernibilidade, ela este fato, esteestado mesmo em que a pintura se identifica aos objetos de seu horror ou de suacompaixo. certo que o pintor um aougueiro, mas ele est neste aougue como quedentro de uma igreja, com a vianda por ser crucificada (Pintura de 1946). s noaougue que Bacon um pintor religioso. Sempre fiquei muito tocado pelas imagensreferentes a abatedouros e peas de vianda, e para mim elas esto estreitamente ligadas atudo o que a crucifixo claro, nos somos vianda, ns somos as carcaas empotncia. Se vou a um aougue, fico sempre surpreso de no estar l no lugar doanimal...5 O romancista Moritz, no final do sculo XVIII, descreve um personagem desentimentos bizarros: uma sensao extrema de isolamento, de insignificncia quaseigual negao; horror de um suplcio, ao assisitir a execuo de quatro homens,

    3 E, pp. 92-94.4 Kafka, A espada.5 E., p.55 e p.92.

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    13

    exterminados e esquartejados; os pedaos destes homens jogados na rua ou sobre abalaustrada; a certeza de que somos singularmente implicados, que somos toda estavianda atirada, que o espectador j o espetculo, massa de carne ambulante; da aidia de que os animais mesmos so o homem, e de que ns somos tanto o criminosoquanto o gado; e ainda este fascnio pelo animal que morre, um veado, a cabea, osolhos, o focinho, as narinas e por vezes ele se esquecia de tal modo na contemplaosuspensa do bicho que acreditava realmente existir um instante em que notou a espcie deausncia de tal serbreve, saber se entre os homens ele era um cachorro ou se um outroanimal j havia ocupado de tal modo seus pensamentos desde a infncia.6 As pginas deMoritz so explndidas. No um arranjo de homen e bicho, no uma semelhana, uma identificao de fundo, uma zona de indiscernibilidade mais profunda que todaidentificao sentimental: o homem que sofre um bicho, o bicho que sofre umhomem. a realidade do devir. Que homem revolucionrio, na arte, na poltica, nareligio ou no importa onde, nunca sentiu este momento extremo em que ele prprio nopassava de um bicho, e responsvel, no pelos vitelos que morrem, mas frente aos vitelosque morrem?

    Mas ser possvel dizer a mesma coisa, exatamente a mesma coisa, da vianda e dacabea, para saber qual a zona de indeciso objetiva do homem e do animal? Ser quepodemos dizer objetivamente que a cabea vianda (visto que a vianda esprito)? Detodas as partes do corpo, no seria a cabea a mais proxima aos ossos? Veja Greco, ouainda Soutine. Parece ento que Bacon no vive a cabea deste mesmo modo. O ossopertence ao rosto, e no cabea. No existe uma cabea de morto segundo Bacon. Acabea desossada, mais do que ossificada. No entanto ela no mole, mas firme. Acabea a carne, e a mscara no morturia, um bloco de carne firme que se separados ossos: assim como os estudos para um retrato de William Blake. A cabea pessoal deBacon uma carne perseguida por um belo olhar sem rbita. o que faz juz a Rembrandtde ter sabido pintar um ltimo autoretrato como um bloco de carne sem orbitas.7 Emtodas as obras de Bacon a relao cabea-charque percorre uma escala intensiva que astorna de mais a mais ntimas. Em princpio a vianda (carne de um lado, osso de outro)est colocada na borda da pista ou da balaustrada onde fica a Figura-cabea; mas ela tambm a espessa chuva carnal que encobre a cabea que desfaz o rosto sob o guarda-chuva. O grito que sai da boca do papa, a piedade que sai de seus olhos, tem por objeto avianda. Em seguida a vianda tem uma cabea com a qual ela foge e desce da cruz, comonas duas Crucifixes precedentes. Depois ainda todas as sries de cabeas de Baconafirmaro sua identidade com a vianda, e entre as mais belas h aquelas que so pintadascom a cor da vianda, o vermelho e o azul. Por fim a vianda ela mesma uma cabea, acabea se tornando a potncia no localizvel da vianda, como em Fragmento de umCrucifixo de 1950, onde toda vianda grita sob o olhar de um esprito cachorro quepende do alto da cruz. O que faz com que Bacon no goste deste quadro a simplicidadedo procedimento aparente: bastaria abrir uma boca em plena vianda. Ainda falta ver a

    6 Jean-Christophe Bailly apresentou este belo texto de K.P.Moritz (1756-1793) em La lgende disperse,anthologie du romantismo alemand, d. 10-18, pp. 35-43.7 E., p.114: Pois bem, se voc pega por exemplo o grande autoretrado de Rembrandt em Aix-en-Provence,e se o analisa, v que quase no tem orbita em volta dos globos oculares, que completamente anti-ilustrativo.

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    14

    afinidade da boca, e do interior da boca, com a vianda, e chegar ao ponto em que a bocaaberta torna-se estritamente a seco de uma artria cortada, ou mesmo a manga de umacamisa que vale por uma artria, como no pacote ensangentado do trptico Sweeneyagonistes. Ento a boca ganha esta potncia de no localizao que faz de toda viandauma cabea sem rosto. Ela no um rgo particular, mas o buraco pelo qual o corpointeiro escapa, e pelo qual desce a carne (faz-se necessrio o procedimento das marcaslivres involuntrias). O que Bacon chama de Grito na imensa piedade que arrasta avianda.

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    15

    V Nota de recaptulao: perodos e aspectos de Bacon

    A cabea-vianda, um devir-animal do homem. E neste devir, todo corpo tende aescapar, e a Figura tende a juntar-se estrutura material. J se v isto no esforo que elafaz sobre ela mesma para passar pelo bico ou pelo buraco; melhor ainda, no estado queela toma quando passada pelo espelho, sobre o muro. No entanto, ela ainda no dissolvea estrutura material, ela ainda no se juntou ao plano para se dissipar de vez, se apagarsobre o muro do csmos fechado, se confundir com a textura molecurar. Faz-senecessrio ir at este ponto, a fim de reinar uma Justia que no ser mais que Cores ouLuzes., um espao que no ser mais que Sahara.1 o mesmo que dizer que, qualquerque seja a importncia, o devir animal no passa de uma etapa para um devirimperceptvel mais profundo no qual a Figura desaparecer.

    Todos os corpos escapam pela boca que grita. Pela boca redonda do papa ou da ama deleite; o corpo escapar como que por uma artria. E entretanto esta no a ltima palavrana srie da boca segundo Bacon. Ele sugere que exista, para alm do grito, um sorriso aoqual ele no teve acesso2. Bacon certamente modesto; de fato ele pintou sorrisos queesto entre os mais belos quadros da pintura. E que tm a mais estranha funo, a deassumir o despedaar-se do corpo. Neste ponto Bacon se encontra com Lewis Carrol, osorriso do gato.3 Existe j um sorriso que cai, inquietante, na cabea do homem com umguarda-chuva, e em proveito deste sorriso que o rosto se desfaz como que sob um cidoque consome o corpo; e a segunda verso do mesmo homem acusa e refaz ao sorriso. Emais ainda no sorriso bonacho, quase insustentvel, do Papa de 1954 ou do homemsentado na cama: sentimos que ele deva sobreviver ao despedaar-se do corpo. Os olhos ea boca so as coordenadas espaciais onde s subsiste o sorriso insistente. Como nomearento tal coisa? Bacon sugere que se trate de um sorriso histrico.4 Sorriso abominvel,abjeo do sorriso. E se sonhamos em introduzir uma ordem em um trptico, acreditamosque o de 1953 impe esta ordem que no se confunde com a sucesso dos painis: a bocaque grita no centro, o sorriso histrico esquerda, e direita, enfim, a cabea que seinclina e se dissipa.5

    Neste ponto extremo da disperso csmica, em um csmos fechado mas ilimitado, bemevidente que a Figura no possa mais estar isolada, tomada em um limite, pista ouparaleleppedo: so outras as coordenadas das quais estamos diante. A Figura do papaque grita aparece atrs de uma lmina espessa, batentes de uma cortina de sombra etransparncia: a parte de cima do corpo se desvela, e s subsiste como uma marca sobreum sudrio arranhado, enquanto a parte de baixo do corpo permanece ainda fora da

    1 E., p.111: voc vai adorar poder fazer da aparencia de um retrato um Sahara, faz-lo parecer-se de talmaneira que parecer conter as distncias de um Sahara.2 E., p.98: sempre quis, sem jamais conseguir, pintar um sorriso3 Lewis Carrol, Alice no pais das maravilhas, capitulo 6: ele se esqueceu muito lentamente acabandoem um sorriso, que persistiu algum tempo depois que o resto do animal desapareceu.4 E., p.95.5 No podemos seguir aqui John Russel, que confunde ordem do trptico com a sucesso dos painis daesquerda direita: ele v esquerda um sinal de sociabilidade, ao centro um discurso publico (FrancisBacon. ed. du Chne).Mesmo que o modelo tenha sido o Primeiro ministro, difcil ver como que oinquietante sorriso pode passar por socivel, e o grito do centro, por um discurso.

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    16

    cortina que se evade. Vem da o efeito de um alongamento progressivo como se a partesuperior do corpo fosse esticada para trs. Por um longo perodo este procedimento serfreqente em Bacon. As mesmas lminas verticais de cortina envolvam e arranhemparcialmente o abominvel sorriso do Estudo para um retrato, enquanto a cabea e ocorpo parecem aspirados para o fundo, contra os batentes horizontais da persiana.Diremos ento que, durante todo um perodo, se impem convenes bem opostaquelas que definimos de incio. Por toda parte o reino do fluido e do indeterminado, aao de um fundo que destaca a forma, uma espessura onde se jogam as sombras, umasombra de textura nuanada, efeitos de aproximao e afastamento: um tratamentomalerich, como o diz Sylvester6. o que Sylvester funda para distinguir trs perodos napintura de Bacon: o primeiro que confronta a Figura precisa e a superfcie viva e dura; osegundo que trata a forma malerisch sobre um fundo tonal acortinado; o terceiro querene enfim as duas convenes opostas, e que volta ao fundo vivo e chapado,reinventando localmente os efeitos de esfumado por estriamento e escovao.7

    Todavia no apenas o terceiro perodo que inventa a sntese dos dois anteriores. Osegundo perodo j contradiz um pouco o primeiro ao no se sobrepr a este quanto unidade de estilo e de criao: aparece uma nova posio da Figura coexistindo com asoutras. De modo simplificado, a posio atrs das cortinas se conjuga perfeitamente coma posio sobre a pista, sobre a barra ou parareleppedo, para uma Figura isolada, colada,contrada, mas igualmente abandonada, escapada, evanescente, confusa: assim emtude pour un nu accroupi de 1952. LHomme au chien, de 1953, que retoma oselementos fundamentais da pintura, mas em um conjunto borrado em que a Figura no mais que uma sombra, uma poa, um contorno incerto, a calada, uma superfciesombreada. E isto o essencial: existe certamente uma sucesso de perodos, mastambm os aspctos coexistem, em virtude dos trs elementos simultneos da pintura queesto perpetuamente presentes. A armadura ou a estrutura material, a Figura em posio,o contorno como limite dos dois, no deixam de constituir um sistema de mais altapreciso; e neste sistema que se produzem as operaes de borramento, os fenmenosde fluxo, os efeitos de distanciamento e desparecimento, cada vez mais forte porcontituirem um movimento ele mesmo preciso neste conjunto.

    Haver ou talvez houvesse ainda um lugar para distinguir um quarto perodo maisrecente. Suponhemos em efeito que a Figura no tenha somente componentes dedissipao, e mesmo que ela no se contente mais em privilegiar ou galgar estacomponente. Suponhemos que a Figura tenha efetivamente desaparecido, deixandoapenas um trao vago de sua antiga presena. O chapado se abrir como um cu verticalao mesmo tempo que se encarregar de mais a mais de funes estruturantes: oselementos de contorno determinaro de mais a mais as divises, as sees planas e asregies no espao que forma a moldura livre. Mas ao mesmo tempo a zona de borramentoou de limpeza, que faz surgir a Figura, vai agora valer por si mesmo, independentementede toda forma definida, aparecer como pura Fora sem objeto, onda de tempestade, jato

    6 Mal deriva de mcula, a mancha ( de onde malen, pintar, Maler, pintor). Wlfflin se serve do termoMalerisch para designar o pictrico por oposio ao linear, ou mais precisamente a massa em oposio aocontorno. Cf. Principes fondamentaux de lhistoire de lart. d. Gallimard, p.25.7 E. II, pp.96: a distino dos trs perodos de David Sylvester.

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    17

    dgua ou de vapor, olho de ciclone, que lembra Turner em um mundo que se torna umbote. Por exemplo, tudo se organiza ( notadamente a seco negra) no confronto de doisblocos vizinhos, o do jato e o do achatamento. Visto que ainda s conhecemos algunscasos de organizao muito novas na obra de Bacon, no dado excluir que se trata deum perodo nascente: uma abstrao que lhe ser prpria e no ser mais do que areia,erva, poeira ou gota dgua8 A paisagem escoa por si mesma para fora do polgono deapresentao, guardando os elementos desfigurados de uma esfnge que parece j feita deareia. Mas agora a areia no retm mais nenhuma Figura, nada alm da grama, a terra oua gua. Para a articulao das Figuras e de seus novos espaos vazios advm um usoradiante do pastel. A areia poder mesmo recompor uma esfnge, mas to poeirenta epastel; que sentimos o mundo das Figuras profundamente ameaado por esta novapotncia.

    Se nos detivermos aos perodos narrados, o que difcil de se pensar, veremos acoexistncia de todos os movimentos. E portanto o quadro esta coexistncia. Dados ostrs elementos de base, Estrutura, Figura e Contorno, um primeiro movimento (tenso)vai da estrutura Figura. A estrutura se apresenta ento como um achatamento mas quevai se enrolar como um cilindro em torno do contorno; o contorno se apresenta como umisolamento, redondo, oval, barra ou sistema de barras; e a Figura est isolada nocontorno, um mundo de fato todo fechado. Mas eis que um segundo movimento, umasegunda tenso vai da Figura estrutura material: o contorno muda, ele se torna meia-esfra do lavabo ou do guarda-chuva, moldura do espelho, agindo como um deformante;a Figura se contrai, ou se dilata, para passar por um buraco ou em um espelho, elaexperimenta um devir-animal extraordinrio numa srie de deformaes gritantes; e elatende ela mesma a juntar-se ao chapado, a dissipar-se na estrutura, com um ltimosorriso, por intermdio do contorno que no age mais como deformante, mas como umacortina onde a Figura se delineia ao infinito. Este mundo o mais fechado era assimtambm o mais ilimitado. Se nos detivermos ao mais simples, o contorno que comea porum simples redondo, veremos a variedade de suas funes ao mesmo tempo que odesenvolvimento de sua forma: a princpio isolante, ltimo territrio da Figura; masassim ele j o despovoador, ou desterritorializante, visto que fra a estrutura a seenrolar, cortando a Figura de todo meio natural; ele ainda um veculo, pois guia opequeno passeio da Figura no territrio que lhe resta; e ele agregado, prtese, poissustenta o atletismo da Figura que se fecha; ele age em seguida como deformante, quandoa Figura passa por ele, por um buraco, por uma ponta; e ele se reencontra agregado eprtese em um novo sentido, para a acrobacia da carne; ele enfim cortina por detrs daqual a Figura se dissolve reencontrando a estrutura; em resumo ele membrana, e nodeixou de ser, assegurando a comunicao nos dois sentidos entre Figura e estruturamaterial. Em Pinture de 1978, vemos o laranja dourado do contorno que bate porta comtodas suas funes, pronto a tomar todas as suas formas. Tudo se reparte em distole esstole repercutida em cada nvel. A sstole, que aperta os corpos, e vai da estrutura Figura; a distole que o estende e o dissipa, indo da Figura estrutura. Mas j h umadistole no primeiro movimento, quando o corpo se alonga para melhor se fechar; e huma sstole num segundo movimento, quando o corpo se contrai para escapar; e mesmo 8 Conhecemos atualmente seix quadros desta nova abstrao; afora estes citados anteriormente, umapaysage de 1978, em 1982. gua escorrendo de uma torneira.

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    18

    quando o corpo se dissipa, permanece ainda contrado por suas foras que o abocanhampor rend-lo ao entorno. A coexistncia de todos os movimento neste quadro o ritmo.

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    19

    VI Pintura e sensao

    H duas maneiras de ultrapassar a figurao (ilustrativa ou narrativa): em face formaabstrata, ou Figura. Para esta via da Figura, Czanne d um nome simples: a sensao.A Figura a forma sensvel relacionada sensao; ela age imediatamente sobre osistema nervoso, que a prpria carne. Enquanto a Forma abstrata se volta para ocrebro, agindo por intermdio deste crebro, mais prxima ao osso. claro que no foiCzanne que inventou esta via da sensao na pintura. Mas ele deu a ela uma posiosem precedente. A sensao o contrrio do fcil ou do j feito, do clich, mas tambm ocontrrio do sensacional, do espontneo etc. A sensao tem uma face voltada parao sujeito (o sistema nervoso, o movimento vital, o instinto, o temperamento, todo umvocabulrio comum ao naturalista e a Czanne), e a outra face voltada para o objeto (ofato, o lugar, o acontecimento). Ela pode tambm no ter face nenhuma, ser as duascoisas indissoluvelmente, ser o estar-no-mundo como dizem os fenomenologistas: porsua vez eu me torno na sensao e alguma coisa me acontece pela sensao, um pelooutro, um no outro1

    uma linha um tanto quanto genrica que liga Bacon a Czanne: pintar a sensao, ou,como diz Bacon com palavras muito prximas s de Czanne, registrar o fato: umaquesto muito densa e difcil a de saber porque uma pintura toca diretamente osnervos2. Digamos que as diferenas entre os dois pintores sejam, evidentes: o mundo deCzanne como paisagem e natureza morta, mesmo diante dos retratos que so tambmtratados como paisagens; e a hierarquia inversa em Bacon que destitui natureza morta epaisagem3. O mundo como natureza em Czanne e o mundo como artefato em Bacon.Mas justamente, tais diferenas to evidentes no estariam elas levando em conta asensao e o temperamento, isto no estariam ambas inscritas no que liga Bacon aCzanne, naquilo que lhes comum? Quando Bacon fala da sensao ele quer dizer duascoisas muito prximas a Czanne. Negativamente, ele fala que a forma remete sensao(Figura), o contrrio de ver a forma remetendo a um objeto que ela buscaria representar(figurao). Seguindo as palavras de Valry, a sensao aquilo que transmitediretamente, evidenciando o desvio ou o desgosto de uma histria a ser contada4. De ummodo positivo, Bacon no deixa de dizer que a sensao aquilo que passa de umaordem a outra, de um nvel a outro, de um domnio a outro. Esta a razo pelaqual a sensao a mo da deformao, o agente da deformao dos corpos. E nestesentido, podemos tecer uma mesma censura, tanto pintura figurativa quanto abstrata:elas passam pelo crebro, elas no agem diretamente sobre o sistema nervoso, elas notm acesso sensao, elas no libertam a Figura, razo pela qual permanecem a um s e

    1 Henri Maldiney, Regard parole espace, d. lAge dHomme, p.136. Os fenomenlogos como Maldiney eMerleau-Ponty viram em Czanne o pintor por excelncia. Analisam a sensao, ou antes o sentir, no spor ele relacionar as qualidades sensveis com um objeto identificvel (momento figurativo), massobretudo porque cada qualidade constitui um campo que vale por si mesmo e interfere com os outros(momento pathico). este aspecto da sensao que a fenommenologia de Hegel curto-circuitou, e queest portanto na base de toda esttica possvel. Cf. maurice Merleau-Ponty, Phnomenologie de laperception, d. Gallimard2 E.I, p.44.3 E.I, pp. 122-123.4 E.I, p.127.

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    20

    mesmo nvel5. Elas podem operar transformaes da forma mas no chegam a deformaros corpos. Teremos a ocasio de ver mais adiante no que Bacon czaneano, mais do queum discpulo de Czanne.

    O que quer dizer Bacon, em todas suas entrevistas, cada vez que fala de ordens desensao, de nveis sensitivos, de domnios sensveis de sequncias mveis? Aprincpio poderamos acreditar que a cada ordem, nvel ou domnio, corresponde umasensao especfica; cada sensao seria ento um termo em uma seqncia ou em umasrie. Por exemplo a srie dos auto-retratos de Rembrandt nos conduz por domniossensveis distintos6. E tambm verdade que a pintura, singularmente aquela de Bacon,procede por sries. Srie de crucifixes, srie de papas, srie de retratos, de autoretratos,srie da boca, da boca que grita, da boca que ri Alm do mais, a srie pode ser desimultaneidade, como nos trpticos que fazem coexistir pelo menos trs ordens ou trsnveis. A srie tambm pode ser fechada quando ela tem uma composio contrastante ouaberta, quando continuada ou continuvel para alm das trs7. Tudo isto vale. Mas,justamente, no seria verdade se no houvesse tambm uma outra coisa que valha aindapara cada quadro, cada Figura, cada sensao. cada quadro, cada Figura, que umaseqncia mvel, ou uma srie (e no somente os termos na srie). cada sensao queest em diversos nveis, de diferentes ordens ou em demais domnios. Se bem que noexistam as sensaes de ordens diferentes, mas diferentes ordens de uma s e mesmasensao. prprio da sensao envelopar uma diferena de nvel constitutiva, umapluralidade de domnios constituintes. Toda sensao, e toda Figura j uma sensaoacumulada, coagulada, como em uma figura [sic.] de calcrio8. Vem da o carterirredutivelmente sinttico da sensao. Nos perguntamos de onde vem tal carter sintticopelo qual cada sensao material tem mais de um nvel, mais de uma ordem ou domnios.O que vem a ser este nvel, e o que torna sua unidade sentinte ou sentida?

    Uma primeira resposta deve evidentemente ser relanada. O que far a unidade materialsinttica de uma sensao ser o objeto representado, a coisa figurada. teoricamenteimpossvel, pois a Figura se ope figurao. Mas mesmo se notamos praticamente,como o faz Bacon, que qualquer coisa j figurada (por exemplo um papa que grita), estafigurao segunda repousa sobre a neutralizao de toda figurao primria. Bacon seprope alguns problemas ligados sustentao inevitvel de uma figurao prtica, nomomento em que a Figura afirma sua inteno de romper com o figurativo. Vejamoscomo ele resolve o problema. De qualquer modo Bacon no deixou de querer eliminar osensacional, ou seja, a figurao primria naquilo que provoca uma sensao violenta.Tal o sentido da frmula; quis pintar o grito mais do que o horror. Quando pinta opapa que grita, nada se faz horror, e a cortina diante do papa no apenas uma maneirade isolar, de subtra-lo dos olhares, mais uma maneira na qual ele no v nada de simesmo, e grita diante do invisvel : neutralisado, o horror mltiplo pois ele se concluido grito, e no o inverso. claro que no fcil renunciar ao horror, ou figuraoprimria. preciso voltar-se contra os prprios instintos, renunciar sua experincia.

    5 Todos estes temas so uma constante nas Entretiens.6 E.I, p.62.7 E.II, pp. 38-408 E.I, p.114 (coagulo de marcas no representativas)

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    21

    Bacon traz consigo toda a violncia da Irlanda, e a violncia do nazismo, a violncia daguerra. Ele passa pelo horror das Crucifixes, e sobretudo do fragmento de Crucifixo, ouda cabea-vianda, ou da maleta sangrenta. Mas quando julga seus prprios quadros, elese livra de todos aqueles que so muito sensacionais, pois a figurao que lhes subsistereconstitui, mesmo que secundariamente o horror e reintroduz assim uma histria a sercontada: mesmo as Touradas so muito dramticas. E desde que haja horror, umahistria se reintroduz, e rasuramos o grito. E finalmente, o mximo de violncia se farnas Figuras sentadas ou agachadas, que no sofrem nenhuma tortura nem brutalidade, squais nada de visvel se d, e que efetuam melhor a potncia da pintura. que a violnciatem dois sentidos muito diferentes: quando falamos de violncia da pintura, isto no temnada a ver com violncia da guerra9. violncia do representado (o sensacional, oclich) se ope a violncia da sensao. E esta se faz uma s na sua ao direta sobre osistema nervoso, os nveis pelos quais ela passa, os domnios que atravessa: sendo elamesma uma Figura, ela no deve nada natureza de um objeto figurado. como emArtaud: a crueldade no o que acreditamos ser, depende cada vez menos do que estrepresentado.

    Uma segunda interpretao deve ser re-lanada, confundindo os nveis de sensao, ouseja, as valncias da sensao, com uma ambivalncia do sentimento. Neste pontoSylvester sugere: como voc fala de registrar em uma s imagem diferentes nveis desensao pode-se dizer que, dentre outras coisas, voc exprime, em um s e mesmomomento, o amor pela pessoa e a hostilidade a seu respeito ao mesmo tempo umacarcia e uma agresso?. Ao que Bacon responde: lgico, eu no acredito que hajaacaso. Creio que isto toca algo mais profundo para mim: como que sinto que eu possatornar esta imagem o mais imediatamente real para mim? tudo10 De fato a hiptesepsicanaltica da ambivalncia no tem apenas o inconveniente de localizar a sensao dolado do espectador que olha o quadro. Mas mesmo que se suponha uma ambivalncia daFigura em si mesma, tratar-se- de sentimentos que a Figura provaria com relao coisarepresentada, com relao a uma histria contada. Portanto no h sentimento em Bacon:nada mais do que afetos, ou seja, sensaes e instintos, seguindo a frmula doNaturalismo. E a sensao, que determina o instinto em tal momento, assim como oinstinto, a passagem de uma sensao a outra, a busca da melhor sensao (no amais agradvel, mas aquela que preenche a carne no momento de sua descida, de suacontrao ou de sua dilatao).

    Existe ainda uma terceira hiptese, mais interessante. a hipotese motora. Os nveis desensao so como que paradas ou instantneos do movimento, que recomporiam omovimento sinteticamente em sua continuidade, sua velocidade e sua violncia: assimcomo o cubismo sinttico, ou o futurismo, ou o Nu de Duchamp. claro que Bacon

    9 E.II, pp.29-32 (e I, pp. 94-95: eu nunca experimentei algo to terrificante.10 E.I, p.85. Bacon parece rebelar-se contra as sugestes psicanalticas, e Sylvester que lhe diz, em outraocasio, o papa o pai, ao que e ele responde polidamente eu no estou seguro de ter compreendido oque voc disse (II, p.12). Para uma interpretao psicanaltica mais elaborada dos quadros de Baconreferimos o livro, de Didier Anzieu, Le corps e loeuvre, Gallimard, p.333-340.

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    22

    fascinado pela decomposio de movimentos de Muybridge11, e se serve disto comomaterial. claro tambm que ele obtem por sua prpria conta movimentos violentos deuma grande intensidade, como os giros de cabea de 180 de George Dyer voltando-separa Lucien Freud. E geralmente as Figuras de Bacon esto agarradas ao vivo em umestranho passeio: Homem carregando criana, ou o Van Gogh. Isolando a Figura, ocirculo ou o paralelepipedo, se tornam eles mesmos motores, e Bacon no renuncia aoprojeto que uma escultura mvel realizaria mais facilmente: que o contorno ou o pedestalpossam se deslocar ao longo da armao de modo que a Figura faa um pequenopasseio cotidiano12. Mas justamente o carter deste pequeno passeio que pode nos falarmais sobre o preceito do movimento segundo Bacon. Nunca Beckett e Bacon estiveramto prximos, por um pequeno passeio ao modo dos personagens de Beckett que, tambmse deslocam aos trancos sem sair do circulo ou do paralelepipedo. o passeio da crianaparalitica e de sua me, enganchadas beira da balaustrada, numa curiosa corrida deobstculos. a reviravolta da Figura giratria. o passeio de bicicleta de George Dyer,que parece bastante aos herois de Moritz: a viso estava limitada ao pequeno pedao deterra que via ao seu redoro fim de todas as coisas lhe parecia saindo para a extremidadede seu passeio a um tal ponto. Se bem que, mesmo quando o contor no se desloca, omovimento consiste menos neste deslocamento do que na explorao microbiana qual aFigura se lana em seu contorno. O movimento no explica a sensao, pelo contrrio,ele se explica pela elasticidade da sensao, sua vis elastica. Seguindo a lei de Beckett oude Kafka, existe imobilidade para alm do movimento; para alm do estar em p existe oestar sentado, e para alm do estar sentado, estar deitado, para se dissipar enfim. Overdadeiro acrobata aquele da imobilidade no crculo. Os grandes ps das Figuras,seguidamente, no favorecem seu andar: quase que ps botas (e os sofs por vezes tm oar de sapatos para ps botas). Em suma, no o movimento que explica os nveis desensao, so os nveis de sensao que explicam o que subsiste no movimento. E defato, o que interessa em Bacon no exatamente o movimento, se bem que sua pinturatorne o movimento intenso e violento. Mas no limite, um movimento no mesmo lugar,um espasmo, que testemunha um outro problema prprio a Bacon: a ao das forasinvisveis sobre os corpos (de onde vem as deformaes do corpo devidas a esta causamais profunda). No trptico de 1973, o movimento de translao se d entre doisespasmos, entre dois movimentos de contrao no mesmo lugar.

    Mas ainda existe uma outra hiptese, mais fenomenolgica. Os nveis de sensaoseriam verdadeiramente domnios sensveis remetendo aos diferentes rgos dossentidos; mas cada nvel, cada domnio teria uma maneira de remeter aos outros,independente do objeto comum representado. Entre uma cor, um gosto, um toque, umodor, um rudo, um peso, existiria uma comunicao existencial que construiria omomento pathico (no representativo) da sensao. Por exemplo, em Bacon, nasTouradas ouvimos os cascos da fera, no trptico de 1976 tocamos o estremecer dopssaro que se pe no lugar da cabea, e cada vez que a vianda representada, a tocamos,a sentimos, a comemos, a pesamos, como em Soutine; e o retrato de Isabel Rawthorne fazsurgir uma cabea para a qual os ovais e os traos so juntados para encarquilhar os

    11 NT. Muybridge: fotgrafo e cineasta norte-americano do qual Bacon guardava diversas fotografias delutas masculinas recortadas de uma revista.12 E.I, p.34 e p.83.

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    23

    olhos, inflar as narinas, prolongar a boca, mover a pele, em um exerccio comum de todosos rgos de cada vez. Caberia ento ao pintor fazer ver um tipo de unidade original dasensao, e fazer aparecer visualmente uma Figura multisensvel. Mas esta operao s possvel se a sensao de tal ou tal domnio (aqui a sensao visual) estiver diretamentetomada de uma potncia vital que transborde todos os domnios e os atravesse. Estapotncia, este Ritmo, mais profundo que a viso, a audio, etc. E o ritmo aparece comomsica quando ele investe sobre o nvel auditivo, como pintura ao investir o nvel visual.Uma lgica do sentido diria Czanne, no racional, no cerebral. A ltima , portanto,a relao do ritmo com a sensao que pe em cada sensao os nveis e os domniospelos quais passam. E este ritmo percorre o quadro como ele percorre uma msica. asitole-diastole: o mundo que prende a mim mesmo se fechando sobre mim, o eu que seabre ao mundo, e o abre a si mesmo13. Czanne, digamos, precisamente aquele que pso ritmo vital na sensao visual. preciso falar a mesma coisa sobre Bacon, com acoexistncia de movimentos, quando o plano chapado se fecha sobre a Figura, e quando aFigura se contrai ou ao contrrio, se dilata, para se reunir ao plano chapado, at que sefunda? Sera possvel ao mundo artificial e fechado de Bacon testemunhar o mesmomovimento vital que a Natureza de Czanne? No so s palavras quando Bacon declaraser cerebralmente pessimista, mas nervosamente otimista, de um otimismo que sacredita na vida14. O mesmo temperamento que Czanne? A frmula de Bacon, serfigurativamente pessimista mas figuralmente otimista.

    13 Cf. Henri Maldiney, op.cit, pp.147-172: sobre a sensao e o ritmo, a sistole e a distole (e as paginassobre Czanne sobre tal questo).14 E.II, p.26.

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    24

    VII histeria

    Este fundo, esta unidade rtmica do sentido, s pode ser descoberta ao ultrapassarmos oorganismo. A hiptese fenomenolgica talvez insuficiente pois ela invoca somente ocorpo vivido. Mas o corpo vivido ainda pouco em vista de uma Potncia mais profundae quase invivel. De fato, s podemos buscar a unidade do ritmo l onde o ritmo ele-mesmo mergulha em um caos, na noite, e onde as diferenas de nvel so perpetuamenterevolvidas com violncia.

    Para alm do organismo, mas tambm como limite do corpo vivido, existe aquilo queArtaud descobriu e nomeou: corpo sem rgos. O corpo o corpo Ele sozinho E noprecisa de rgos. O corpo nunca um organismo. Os organismos so os inimigos doscorpos.1 O corpo sem rgos se ope menos aos rgos que a esta organizao dosrgos a que chamamos organismo. um corpo intenso, intensivo. Percorrido de umaonda que traa no corpo os nveis ou os limites segundo as variaes de sua amplitude. Ocorpo no tem, portanto, rgos, mas limites ou nveis. Se bem que a sensao no sejaqualitativa e qualificada, ela s tem uma realidade intensiva que no determina mais neladados representativos, mas variaes alotrpicas. A sensao vibrao. Sabemos que oovo apresenta justamente este estado do corpo antes da representao orgnica: eixos evetores, gradientes, zonas, movimentos cinemticos e acessrios. Nada de boca. Nada delngua. Nada de dentes. Nada de laringe. Nem exfago. Nem estmago. Nem ventre.Nem nus. Toda uma vida no orgnica, pois o organismo no a vida, e a aprisiona. Ocorpo inteiramente vivo, e portanto no orgnico. Assim a sensao, quando atinge ocorpo atravs do organismo, toma um movimento excessivo e espasmdico, rompe oslimites da atividade orgnica. Em plena carne ela diretamente levada pela onda nervosaou emoo vital. Podemos acreditar que Bacon reencontra Artaud em muitos pontos: aFigura precisamente o corpo sem rgos (desfazer o organismo em prol do corpo, orosto em proveito da cabea); o corpo sem rgos carne e nervo; uma onda o percorrelhe traando nveis; a sensao como o reencontro da onda com Foras que agem sobreo corpo, atletismo afetivo, grito-sopro; quando assim se remete ao corpo, a sensaodeixa de ser representativa e se torna real; e a crueldade sera ainda menos ligada representao de qualquer coisa de horrvel, ela ser somente a ao das foras sobre ocorpo, ou a sensao (o contrrio do sensacional). Ao contrrio de uma pinturamiserabilista, que pinta pedaos de rgos, Bacon no deixou de pintar os corpos semrgos, o fato intensivo do corpo. As partes limpas ou raspadas, em Bacon, so as partesdo organismo neutralizado, rendido ao seu estado de zona ou nvel: o rosto humanoainda no encontrou sua face

    Uma potente vida no orgnica: assim que Wrringer definia a arte gptica, a linhagptica setentrional2. Ela se ope em princpio representao orgnica da arte clssica.A arte clssica pode ser figurativa, na medida em que remete a algo representado, maspode tambm ser abstrata, quando despreende uma forma geomtrica da representao.J, a linha pictural gptica, sua gometria e sua figura so bem outras. Esta linha aprincpio decorativa, na sua superfcie, mas uma decorao material, que no traa 1 Artaud, in 84, n 5-6 (1948).2 Wrringer, Lart gotique, d. Gallimard, pp. 61-115.

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    25

    nenhuma forma; uma geometria que no est a servio do essencial ou do eterno, masuma geometria a servio dos problemas e acidente, afastamento, juno, projeo,interseco. assim uma linha que no para de mudar de direo, curvada, quebrada,contornada, voltada sobre si, enrolada, ou ainda prolongada para fora de seus limitesnaturais, morrendo numa convulso desordenada: existem marcas livres queprolongam ou param a linha, agindo sob a representao ou fora dela. portanto umageometria, uma decorao tornada vital e profunda, com a condio de no ser maisorgnica: ela eleva intuio sensvel as foras mecnicas, ela procede por movimentoviolento. E se ela reencontra o animal, se ela se torna animalica, isto n se d traandouma forma, mas pelo contrrio, impondo-se por sua nitidez, por sua preciso ela mesmano orgnica, uma zona de indiscernibilidade de formas. Ela testemunha tambm umaalta espiritualidade, por ser uma vontade espiritual que a leva para fora do orgnico embusca de foras elementares. Somente esta espiritualidade, aquela do corpo: o esprito ocorpo ele mesmo, o corpo sem rgos (A primeira Figura de Bacon ser esta dodecorativo gptico).

    Existem na vida muitas outras ambigidades do corpo sem rgos (o lcool, a droga, aesquizofrenia, o sado-masoquismoetc). Mas a realidade viva deste corpo ser que nspodemos nome-la histeria, e em que sentido? Uma onda de amplitude varivelpercorre o corpo sem rgos; traa zonas e nveis segundo as variaes de amplitude. Noencontro da onda, a tal nvel, e de foras exteriores, aparece a sensao. Um rgo serento determinado por este encontro, mas um rgo provisrio, que no dura a no ser adurao da passagem da onda e da ao da fora, e que se deslocar para se colocar emoutro lugar. Os rgos perdem toda sua consistncia, quer se trate de sua localizao oude sua funo os rgos sexuais aparecem um pouco em toda parteos nus brotam,se abrem para defecar, depois se fecham o organismo por inteiro muda de textura e decor, variao alotrpica regulada em dcimos de segundo3 De fato, ao corpo semrgos no faltam rgos, falta somente o organismo, esta organizao dos rgos. Ocorpo sem rgos se define assim por um rgo indeterminado, enquanto o organismo sedefine por rgos determinados: ao invs de uma boca e de um nus que se arriscam a seturvar, porque no termos apenas um orifcio polivalente para a alimentao e defeco?Poderamos fechar a boca e o nariz, encher o estmago e abrir um buraco de arejamentodiretamente nos pulmes o que deveria j ter sido feito desde o comeo4. Mas comofalar que se trata de um orifcio polivalente ou de um rgo indeterminado? J no huma boca e um nus suficientemente distintos, com necessidade de uma passagem ou deum tempo para ir de um ao outro? Mesmo na vianda, no existe j uma boca distinta, naqual reconhecemos os dentes, e que no se confunde com outros rgos? Eis o que preciso compreender: a onda percorre o corpo; em um dado nvel um rgo sedeterminar, segundo as foras de encontro; e este rgo mudar se a prpria fora mudarou se passar de um nvel a outro. Resumindo, o corpo sem rgos no se define pelaausncia de rgos, nem somente pela existncia de rgos indeterminados, ele se defineenfim pela presena temporria e provisria de rgos determinados. um modo deintroduzir o tempo no quadro; e em Bacon h uma grande fora do tempo, o tempo pintado. A variao de texturas e de cores sobre um corpo, sobre uma cabea, ou sobre as 3 Burroughs, Le festin nu, d. Gallimard, p.21.4 p. 164.

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    26

    costas (como em Trs estudos de costas de homens) verdadeiramente uma variaotemporal regulada em dcimos de segundos. Vem da o tratamento cromtico do corpo,muito diferente daquele dos planos chapados: haver um cromatismo do corpo emoposio ao monocromatismo do chapado. Colocar o tempo na Figura, esta a fora doscorpos em Bacon: as largas costas de homens como variao.

    Vemos ento que toda sensao implica uma diferena de nvel (de ordem, de domnio), epassa de um nvel a outro. Mesmo a unidade fenomenolgica no dar conta disso. Masos corpos sem rgos sim, se obervamos a srie completa: sem rgos de rgoindeterminado e polivalente para rgos temporrios e transientes. O que uma bocaem um nvel se torna nus em um outro, ou no mesmo nvel sob a ao de outras foras.Portanto esta srie completa a realidade histrica do corpo. Se nos reportamos aoquadro da histeria tal como se d no sculo XIX, na psiquiatria e em outras reas,encontramos um certo nmero de caractersticas que no deixam de animar os corpos deBacon. E em um primeiro momento as clebres contracturas de paralisias, ashiperestesias ou as anestesias, associadas ou alternantes, sejam fixas ou migrantes,seguem a passagem da onda nervosa, seguem as zonas que ela [a sensao] investiu e seretira. Seguem ainda os fenmenos de precipitao e de antecipao, e o contrrio deretardo (histerese), daprs coup, seguindo as oscilaes da onda antecipada ou emretardo. Em seguida, o carter transiente da transio de rgos segue as foras que seexercem. Ainda mais uma vez, segue a ao direta de tais foras sobre o sistema nervoso,como se o histrico fosse um sonmbulo em estado de velhice, um vigilambule. Enfimum sentimento muito especial do interior do corpo, visto que o corpo precisamentesentido sob o rgos, os rgo transientes so precisamente sentidos sob a organizaodos rgos fixos. Alm do mais, este corpo sem rgos e seus rgos transientes seroeles mesmos vistos, em fenmenos de autoscopia interna e externa: no mais minhacabea, mas eu me sinto em uma cabea, eu vejo e eu me vejo em uma cabea; ou bem euno me vejo em um espelho, mas me sinto em um corpo que eu vejo e que eu me vejoneste corpo nu quando estou vestidoetc.5 Ser que existe uma psicose do mundo queno comporte este paradeiro histrico? Um tipo de paradeiro incompreensvel e to retono seu miolo quanto no esprito6

    O quadro comum dos Personagens de Beckett e as Figuras de Bacon, uma mesmaIrlanda: o crculo, o isolante, o Despovoador; a srie de contraes e paralisias no crculo;o pequeno passeio do Vigilambule; a presena da Testemunha, que escapa aoorganismo Ele escapa pela boca aberta em O, pelo nus ou pelo ventre, ou pelagarganta, ou pelo redondo do lavabo, ou pela ponta do guarda-chuva.7 A presena de umcorpo sem rgos sob o organismo, presena dos rgos transientes sob a representao

    5 No importa importa a qual manual do sculo XIX sobre a histeria nos reportamos. Mas sobretudo a umestudo de Paul Sollier, Les phnomnes dautoscopie, d. Alcan, 1903 (que cria o termo vigilambule).6 Artaud, Le pse-nerfs.7 Ludovic janvier, em seu Beckett par lui mme (d. Du Seuil) teve a idia de fazer um lxico das principaisnoes de Beckett. So cnceitos operatrios. Nos reportaremos sobretudo aos artigos Corpo, Espao-tempo, Imobilidade, Tetemunha, Cabea, Voz. Cada um deles aproxima-se forosamente Bacon. E verdade que Bacon e Beckett so bastante prximos para se conhecerem. Mas nos repoetaremosao texto de Beckett sobre a pintura de Van Velde (d. Muse de Poche). Muita coisa convir a bacon:sobretudo a ausencia de relaes, figurativas e narrativas, como um limite da pintura.

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    27

    orgnica. Vestida, a Figura de Bacon se v nua no espelho ou sobre a tela. Ascontracturas e as hiperestesias so seguidamente marcadas de zonas , raspadas, e asanestesias, as paralisias, zonas faltantes (como em um trptico bastante detalhado de1972). E sobretudo, veremos que toda a maneira de Bacon se passa em um ante-lance eum ps-lance: o que se passa antes que o quadro seja comeado, mas tambm o que sepassa aps-lanado, hiperestesia que vai, a cada vez, romper o trabalho, irromper o cursofigurativo, e contudo recomear em seguida

    Presena, presena, esta a primeira palavra que vem frente de um quadro de Bacon8.Pode esta presena ser histrica? O histrico tanto aquele que impe sua presena,quanto aquele para o qual as coisas e os seres esto presentes, muito presentes, e que d atodas as coisas e comunica a todos os seres este excesso de presena. Existe ento poucadiferena entre o histrico, o histerizado, o histerizante. Bacon pode dizer, com humor,que o sorriso histrico que ele pinta em um retrato de 1953, na cabea humana de 1953,no papa de 1955, vm do modelo que era muito nervoso, quase histrico. Mas todoo quadro que histrico9. E Bacon ele mesmo histerizante quando, num ante-lance, seabandona inteiro imagem, abandona toda sua cabea ao aparelho fotomtico, ou, ainda,v a si mesmo em uma cabea que pertence ao aparelho, que se passa no aparelho. E, oque vem a ser o sorriso histrico, onde est a abominao, a abjeo deste sorriso?Presena ou insistncia. Presena interminvel. Insistncia do sorriso para alm do rosto esob o rosto. Insistncia do grito que subsiste boca, insistncia de um corpo que subsisteao organismo, insistncia dos rgos transientes que subsistem aos rgos qualificados. Ea identidade de um j estar l e de um estar sempre em retardo na presena excessiva. Emtoda parte uma presena agindo diretamente sobre o sistema nervoso, e torna impossvelo localizar ou distanciar de uma representao. o que Sartre queria tambm dizerquando se dizia histrico, e falava da histeria de Flaubert10.

    De qual histeria se trata? Daquela de Bacon, a do pintor, ou a da pintura ela mesma, e dapintura em geral? verdade que h tanto perigo em se fazer uma clnica esttica (com avantagem de que no se trata de uma psicanlise). E por que diz-lo especialmente dapintura, j que podemos invocar isto tanto nos escritores quanto nos msicos (Schumanne as contracturas de dedos, a audio de vozes)? O que queremos dizer que h umarelao especial da pintura com a histeria. muito simples. A pintura se prope adestacar diretamente a presena da representao, para alm da representao. O sistemadas cores ele mesmo um sistema de ao direta sobre o sistema nervoso. No umahisteria do pintor, uma histeria da pintura. Com a pintura a histeria torna-se arte. Oumelhor, com o pintor a histeria se torna pintura. O que a histeria totalmente incapaz defazer, um pouco de arte, a pintura o faz. preciso dizer tambm a respeito do pintor queele no histrico, no sentido de uma negao na Teologia negativa. A abjeo se tornaesplendor, o horror da vida se torna vida muito pura e muito intensa. A vida assustadora, dizia Czanne, mas no grito se elevam j todas as alegrias da linha e da cor.

    8 Michel Leiris consagrou um bonito texto quanto a esta ao da presena em Bacon: cf. Ce que montdit les peintures de Francis Bacon, Au verso des images, d. Fata Morgana.9 E.I. p.95.10 Os temas sartreanos como o do excesso de existncia (a raiz da rvore em Nause) ou a fuga do corpo edo mundo (como pelo buraco de vidange em LEtre et le nant) participam de um quadro histrico.

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    28

    o pessimismo cerebral que a pintura transmuda em otimismo nervoso. A pintura histeria, ou converte a histeria, porque ela faz ver a presena, diretamente. Pelas cores epelas linhas ela investe-se sobre o olho. Mas ela no trata o olho como sendo um rgofixo. Liberando as linhas e as cores da representao, ela libera ao mesmo tempo o olhode seu pertencimento ao organismo, ela o libera de seu carter de rgo fixo equalificado: o olho se torna virtualmente um rgo indeterminado, polivalente, que v ocorpo sem rgos, ou seja a Figura, como pura presena. A pintura nos pe os olhos emtoda parte: na orelha, na barriga, nos pulmes (o quadro respira). a dupla definioda pintura: subjetivamente ela investe nosso olho que deixa de ser orgnico para se tornarrgo polivalente e transiente; objetivamente ela desvenda diante de ns a realidade docorpo, linhas e cores livres da representao orgnica. E um se faz pelo outro: a purapresena do corpo ser visvel ao mesmo tempo em que o olho ser o rgo destinadodesta presena.

    A pintura tem dois modos de conjurar esta histeria fundamental: conservar ascoordenadas figurativas da representao orgnica, deixando de jogar sutilmente,deixando de se fazer passar sob essas coordenadas ou entre elas as presenas liberadas eos corpos desorganizados. a via da arte dita clssica. Ou voltar-se para a forma abstratae inventar uma celebridade propriamente pictural (acordar a pintura neste sentido). Detodos os clssicos, Vlasquez foi sem dvida o mais sbio, de uma imensa sabedoria:suas audcias extraordinrias, ele as fazia passar mantendo firmemente as coordenadas darepresentao, assumindo plenamente o papel de um documentarista11 O que faz Baconcom relao aVlasquez tomado como mestre? Por que ele declara sua dvida e seudescontentamento quando pensa em sua retomada do retrato de Inocncio X? De certomodo, Bacon histerizou todos os elementos de Vlasquez. No necessrio comparar osdois Inocncios X, o de Vlasquez e aquele de Bacon que o transforma no papa que grita. preciso comparar o de Vlasquez com o conjunto dos quadros de Bacon (12emVlasquez o sof j desenha a priso do paraleleppedo; a cortina pesada por trstendendo a passar para a frente, e o mato com aspectos de nacos de vianda; umpergaminho ilegvel mas ntido na mo, e o olho fixo e atento do papa j v surgir algo deinvisvel. Mas tudo isto est estranhamente contido, tudo isto vai se fazer, ainda noadquiriu a presena inlutvel, irrepreensvel dos dirios de Bacon, dos sofs quaseanimais, das cortinas frente, da vianda bruta e da boca que grita. Ser que precisodesencadear esta presena? pergunta Bacon. Isto no estaria melhor, infinitamente melhorem Vlasquez? Ser necessrio trazer luz do dia esta relao da pintura com a histeria,recusando por sua vez a via figurativa e a via abstrata? Enquanto nossos olhos seencantam pelos dois Inocncios X, Bacon se interroga13.

    Mas enfim, por que isto seria especial pintura? Poderamos falar de uma essnciahistrica da pintura, em nome de uma clnica puramente esttica e independente de todapsiquiatria, de toda psicanlise? Por que a msica no desencadearia, ela tambm, puraspresenas, agora em funo de uma orelha tornada rgo polivalente para os corpossonoros? E por que tambm no a poesia e o teatro, quando falamos daquele de Artaud e

    11 E. I, pp.62-63.12 No original em francs este pargrafo no fecha13 E.I, p.77.

  • Traduo de: Deleuze, Gilles (1981) Francis Bacon: Logique de la Sensation. Paris: auxditions de la diffrence. por Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe sem reviso.

    29

    de Beckett? Este um problema menos difcil do qual no estamos falando, aquele daessncia de cada arte, e eventualmente de sua essncia clnica. certo que a msicaatravessa profundamente nossos corpos, e nos pe uma orelha no ventre, nospulmesetc. Ela se conhece em onda e nervosidade. Mas ela arrasta justamente nossocorpo, e os corpos, em um outro elemento. Ela livra os corpos de sua inrcia, damaterialidade de sua presena. Ela desencarna os corpos. Se bem que possamos falarcom exatido de corpos sonoros, e mesmo de corpo-a-corpo na msica, por exemplo emum motivo, mas como dizia Proust, um corpo-a-corpo imaterial e desencarnado, ondeno subsiste mais um s resduo de matria inerte e refratria ao esprito. De certo