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38 Delfim F, Leão HESTER, D. A.: "The casting vote", AJPh ife (1981) 265-74. LEãO, Delfim F.: Sólon. Ética e política. (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001). — DE LúCIA, Roberto: "li processo ad Oreste nelle Eumenidi di Eschiio", in Dramaturgia y puesta en escena en el teatro griego, ed. E. Garcia Novo & I. Rodríguez Alfageme (Madrid, Ediciones Clásicas, 1998), 85-98. MACDOWELL, Douglas M.: Athenicm homicide law in the age of the orators (Manchester, University Press, 1963). The law in classical Athens (London, Thames and Hudson, 1978). MACLEOD, C. W.: "Politics and the Oresteia", ]HS 102 (1982) 124-44. MEIER, Christian: "Orestie", in Die politische Kimst der gríechíschen Tragõdie (Múnchen, C. H. Beck, 1988), 117-56. PARKER, Robert: Miasma. Pollution and purification in early Greek religion (Oxford, Clarendon Press, 1983). PODLECKI, Anthony J.: "Oresteía", in The politicai background, of Aeschylean tragedy (Ann Arbor, University of Michigan Press, 1966), 63-100. SIDWELL, Keith: "Purification and pollution in Aeschylus' Eumenides", CQ 46 (1996) 44-57. STROUD, Ronald S.: Dracons law on homicide (Berkeley, University of Califórnia Press,1968). WALLACE, Robert W.: The Areópagos council, to 307 B.C. (Baltimore, John Hopkins University Press, 1989). WIMNINGTON-INGRAM, R. P,: "Clytemnestra and the vote of Athena", in Oxford readings in Greek tragedy, ed. E. Segai (Oxford, University Press, 1983), 84-103, NOMOS E SEXO NA COMÉDIA DE ARISTÓFANES MARIA DE FáTIMA SILVA Univ. de Coimbra . Résumé: La sexualité a eu. depuis toujours, dans la comédie grecque anciemie, une projection remarquable. Cela provient, avant tout, de la nature rituelle du genre, associe à Dionysus et à la notion de fertilité. Mais le développement politique de la comédie est revenu sur la sexualité comine sur une ligne de continuité dans Fhistoire sociale et politique de la polis. En temps de guerre, la vie sexuelle peut symboliser la paix et les jouissances d'une douce nornalité, sous le plan domestique et civique. En même temps, 1'empreinte démocratique, de plus en plus forte, sur la société athénienne, et aussi les rapports devenus intenses avec la barbárie, ont provoque une révolution sur la sexualité, qui est devenue le signe d'un nouveau ordre social; surtout 1 education, 1'exercice politique et la condi ti on de la femme ont été três vulnérables aux changements. Finalement, quand la crise est arrivée, au début du siècle suivant,la sexualité a été regardée d'un point de vue utopique, comme le symbole d'une autre conception de société humaine, plus livre et vrainrent communitaire. São diversas as circunstâncias que fazem da sexualidade um motivo recorrente no teatro grego da época clássica. A primeira reside sobretudo no carácter religioso caie envolve o fenómeno teatral, pensado e exe- cutado no terreno sagrado de Dioniso e sob o alto patrocínio do deus da fertilidade. É portanto natural que o sentido do ritual, que apela às potencialidades renovadoras e produtivas da natureza, contagie a cena e traga Dioniso, a sua sacralidade, símbolos e ritos ao âmago da própria produção. teatral. Ao lado de Dioniso, também Deméter, patrocinadora do culto agrícola mais popular da Grécia, justifica algumas alusões ao carácter piedoso de certas evocações sexuais. No que à comédia parti-

Delfim F, Leão - Universidade de Coimbra · 38 Delfim F, Leão — HESTER, D. A.: "The casting vote", AJPh ife (1981) 265-74. — LEãO, Delfim F.: Sólon. Ética e política. (Lisboa,

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38 Delfim F, Leão

— HESTER, D. A.: "The casting vote", AJPh i fe (1981) 265-74.

— LEãO, Delfim F.: Sólon. Ética e política. (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001).

— DE LúCIA, Roberto: "li processo ad Oreste nelle Eumenidi di Eschiio", in Dramaturgia y puesta en escena en el teatro griego, ed. E. Garcia Novo & I. Rodríguez Alfageme (Madrid, Ediciones Clásicas, 1998), 85-98.

— MACDOWELL, Douglas M.: Athenicm homicide law in the age of the orators

(Manchester, University Press, 1963).

The law in classical Athens (London, Thames and Hudson, 1978).

— MACLEOD, C. W.: "Politics and the Oresteia", ]HS 102 (1982) 124-44.

— MEIER, Christian: "Orestie", in Die politische Kimst der gríechíschen Tragõdie (Múnchen, C. H. Beck, 1988), 117-56.

— PARKER, Robert: Miasma. Pollution and purification in early Greek religion (Oxford, Clarendon Press, 1983).

— PODLECKI, Anthony J.: "Oresteía", in The politicai background, of Aeschylean tragedy (Ann Arbor, University of Michigan Press, 1966), 63-100.

— SIDWELL, Keith: "Purification and pollution in Aeschylus' Eumenides", CQ 46 (1996) 44-57.

— STROUD, Ronald S.: Dracons law on homicide (Berkeley, University of Califórnia Press,1968).

— WALLACE, Robert W.: The Areópagos council, to 307 B.C. (Baltimore, John Hopkins University Press, 1989).

— WIMNINGTON-INGRAM, R. P,: "Clytemnestra and the vote of Athena", in Oxford readings in Greek tragedy, ed. E. Segai (Oxford, University Press, 1983), 84-103,

NOMOS E SEXO NA COMÉDIA DE ARISTÓFANES

MARIA DE FáTIMA SILVA

Univ. de Coimbra

. Résumé: La sexualité a eu. depuis toujours, dans la comédie grecque anciemie, une projection remarquable. Cela provient, avant tout, de la nature rituelle du genre, associe à Dionysus et à la notion de fertilité. Mais le développement politique de la comédie est revenu sur la sexualité comine sur une ligne de continuité dans Fhistoire sociale et politique de la polis. En temps de guerre, la vie sexuelle peut symboliser la paix et les jouissances d'une douce nornalité, sous le plan domestique et civique. En même temps, 1'empreinte démocratique, de plus en plus forte, sur la société athénienne, et aussi les rapports devenus intenses avec la barbárie, ont provoque une révolution sur la sexualité, qui est devenue le signe d'un nouveau ordre social; surtout 1 education, 1'exercice politique et la condi ti on de la femme ont été três vulnérables aux changements. Finalement, quand la crise est arrivée, au début du siècle suivant,la sexualité a été regardée d'un point de vue utopique, comme le symbole d'une autre conception de société humaine, plus livre et vrainrent communitaire.

São diversas as circunstâncias que fazem da sexual idade u m mot ivo

recorrente no teatro grego da época clássica. A primeira reside sobre tudo

n o carácter religioso caie envolve o fenómeno teatral, pensado e exe­

cu tado no terreno sagrado de Dioniso e sob o alto patrocínio do deus da

fertilidade. É por tan to na tura l que o sent ido d o ritual, que apela às

potencia l idades renovadoras e p rodu t ivas d a natureza, contagie a cena e

t raga Dioniso, a sua sacral idade, s ímbolos e ritos ao âmago da própr ia

p rodução . teatral. Ao lado de Dioniso, t a m b é m Deméter, pa t rocinadora

d o culto agrícola mais popu la r da Grécia, justifica a lgumas alusões ao

carácter p iedoso de certas evocações sexuais. N o que à comédia part i -

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cularmente respeita, torna-se evidente o sentido profundo que assumem os símbolos fálicos e os gracejos sexuais'ao longo de boa parte da sua história.

Por trás destes ritos de fertilidade, é visível, na experiência diária de uma comunidade em guerra, um sentido de abundância e de normali­dade que só a paz pode proporcionar. Sexualidade torna-se então no símbolo de um anseio de tréguas, que devolvam à comunidade no seu todo e a cada indivíduo em particular a doce monotonia do quotidiano, onde as famílias progridam e desabrochem, em. convívio directo e salutar com a própria uberidade dos campos. Só por esta forma a terra e os homens poderão partilhar, em uníssono, de um riso profundo, que os deuses premeiam com a sua divina presença.

Mas, para além do sentido religioso do sexo, o teatro grego como uma manifestação eminentemente 'política', retratou com insistência as nuances que o fluir dos tempos e a imprevisibilidade da história impuse­ram a um fenómeno que faz parte da essência mais profunda da natureza humana. E porque se trata de algo que informa de uma maneira inevitá­vel os comportamentos do homem, toda a vida, pública ou privada, de qualquer comunidade está condicionada pela sua influência. Sobre a marca evidente que a sexualidade produziu nas estruturas cómicas e por certo também sociais ao longo do séc. V ateniense, é particularmente expressivo o testemunho da comédia e de Aristófanes. Diante das princi­pais condicionantes políticas da vida da Atenas contemporânea - a guerra e a experiência democrática da organização social -, a sexualidade vê-se abalada nas suas regras tradicionais e condicionada por um pro­cesso de inovação de princípios. Os sintomas de uma certa liberdade ou, na perspectiva caricatural da comédia, de uma perfeita anarquia perante a tradição, que a nova ordem dos tempos estimula, reflecte-se numa maior permissividade ou - ainda o exagero cómico - libertinagem que vai grassando a todos os níveis. Antes de mais no plano educativo, onde à severidade e discrição que suportavam a moralidade do passado se substituiu o passadismo, tolerado ou mesmo difundido e justificado. Por seu lado os poetas, que junto dos adultos exerciam por tradição um papel didáctico (Ra. 1053-1054), tornaram-se porta-voz da ordem dos tempos; com particular incidência o teatro, pela sua popularidade e intervenção directa junto de toda a polis, veiculou a noção de uma sexualidade mais livre, mais amoral, mais descontraída e isenta do peso da convenção social.

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Decisiva foi, acima de todas as outras condicionantes sociais, a guerra. Dentro de um princípio geral de que os grandes conflitos bélicos sempre são portadores de mudanças sociais profundas, a experiência, grega, do séc. V revestiu-se de marcas peculiares. O núcleo familiar, atin­gido pelo desequilíbrio que a ausência, ou morte dos combatentes repre­senta, viu-se privado de um controle e de uma disciplina ancestrais; em consequência a condição feminina tendeu a progredir no sentido da libertação de regras restritivas, que a moralidade tradicional lhe impu­nha. Para além do contexto mais próximo, o próprio contacto com outras comunidades humanas que a guerra proporcionava pôs em causa os princípios sociais estabelecidos. Conhecida a prática sexual, de algumas sociedades bárbaras, a vida grega passou a dispor de um termo de con­fronto e de consequente revisão dos seus nomoi. O que parecia ser regras absolutas viram-se minadas pela evidência de um carácter meramente convencional, de que um mesmo homem é o autor e o objecto.

Por consequência natural, de todos estes factores, a noção ateniense de sexualidade parece ter merecido alguma atenção ou mesmo mudança, a que a comédia, deu eco, revendo também a sua. leitura tradicional do tema. De acordo com o seu testemunho sempre exagerado, a amoralidade passou a campear em todos os planos. No terreno público, os desvios ou escândalos sexuais colaram-se aos políticos corno uma alínea natural e consentida do seu curriculum, que não evitou, antes promoveu, o sucesso. Na vida privada, as mulheres controlavam agora a cena, saíam da som­bra e, com o próprio aval dos maridos ausentes, abandonavam o recato para se entregarem ao escândalo e ao excesso.

Por fim a comédia, orientada por uma fantasia que lhe era intrín­seca, podia prever novas etapas numa escalada de liberdade sexual, de consequências imprevisíveis. Imaginava o sucesso de um mundo onde a. mulher, pelo simples controle do sexo, impusesse as regras da vida comum e da administração pública de Atenas; ou alinhava com os teori-zadores políticos no sentido de uma revolução social, e subscrevia um projecto de vida comunista, onde as barreiras do individualismo desa­bassem para dar lugar a um sexo livre, que produzisse de embrião uma verdadeira reforma da sociedade.

Refaçamos agora, com maior atenção a alguns pormenores, o per­curso que em traços gerais alinhavámos/Detentor de uma paz individual, negociada à rebelia de todas as vontades 'atenienses, Diceopolis retira-se para o seu campo disposto a tirar de um estatuto de excepção todas as

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benesses. Tal ventura pressupõe uma celebração e o deus homenageado é Dioniso. O ritual enche a cena, naquela hora em que, em comunhão com. a família e a criadagem, o cidadão justo comemora a paz e a prosperi­dade. O ambiente é de recolhimento, a hora de oferta e de celebração (Ach. 241-244). É invocado o espírito divino, de Dioniso, o objecto da. homenagem. Mas no cortejo que mobiliza as vontades humanas, o sen­tido de pujança e de renovação que o momento aconselha exprime-se num símbolo, um falo erecto entregue aos cuidados do escravo (TòV ({MXãâQV òpõòv oTnoáxo), 243). Para ele vão todas as preocupações de rigor que o ritual exige (ôp0òs éK-céos ó ^akkó-i, 259-260): que se perfile no centro da. festa, logo atrás da canéfora com as oferendas. Para ele também vai o hino (âao\iai Tò ^aÂÀiKÓv, 261) que o celebrante, Diceópolis, entoa (263-279), em homenagem a Fales, companheiro de Baco e naturalmente sua insígnia como deus da fertilidade. O canto é de alegria, de folgança descontraída, de tolerância de um sexo espontâneo e livre de peias sociais; assim o reflectem os epítetos invocados de vuKX07iepi7tÀávr)Te, u-oi-xé, Tuaiôepaotá (264-265). Tal festa encontra o seu contexto próprio no ambiente que só a. paz proporciona e que é também o abandono do mundo citadino. No refúgio que a natureza, e Dioniso como seu deus, asseguram, a convenção social cede lugar à espontaneidade, livre, alegre e profundamente autêntica (271-275). Aí domina o prazer de esquecer a mulher legítima, para espiar com. gozo uma bonita escrava, propriedade alheia, que colhe lenha, também ela não legítima, mas roubada. Depois de todas as transgressões implícitas neste quadro rápido, o prazer atinge o auge, num acto sexual espontâneo, desejado e sem artifícios, que advém do puro instinto e se consuma em contacto directo com a terra. (274-275).

O mesmo espírito genuinamente dionisíaco justifica o quadro final desta comédia, onde um último agôn tem lugar; encarnadas em Diceópo­lis e em Lâmaco, todas as antíteses que.sustentam" os Acarnenses estão nele implícitas: a paz e a guerra, o prazer da festa e as dores do combate, Dioniso e Ares numa palavra, em eterno contencioso. Tudo se passa como um verdadeiro hino a Fales, onde Diceópolis, como herói vitorioso e redimido de todos os sofrimentos, ocupa o lugar do bem-aventurado. O coro antevê a cena (1146-1149), antecipando a entrada triunfante de um herói relaxado, feliz e sobretudo em euforia sexual. A cena erótica que ele protagoniza é livre de restrições, as carícias são espontâneas, os beijos plenos, estimulados por um espírito dionisíaco que penetra fundo na

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alma do vencedor da festa dos côngios. Por fim, em erecção, Diceópolis é o espelho de um quadro de vida, consentâneo com as tendências profun­das da natureza humana, que exprimem a libertação das cadeias do nomos e um gozo pleno e legítimo da physis.

Expressamente dedicada à paz, a peça de 421 a. C. celebra uma tré­gua passageira enfim alcançada depois de longos anos de guerra e de sofrimento, e de difíceis e lentas negociações. Mais abstracta no desen­volvimento de um tema, que no momento deixou de ser polémico ou reivindicativo para ser apenas comemorativo de uma trégua conseguida, a Paz é toda ela uma celebração da deusa que concede as tréguas, como das suas acólitas naturais, Oporá, a deusa dos frutos, e Teoria, a patroci­nadora das festas. Como etapa decisiva na alegoria reinante, a prosperi­dade e harmonia festiva que só a paz concede aos "homens ritualiza-se numa boda simbólica. Ao amor espontâneo e livre que os Acarnenses pressagiavam no convívio com a natureza, substitui-se a reestruturação da vida colectiva, em que campo e cidade se não opõem, antes se conci­liam corno as duas faces cooperantes da vicia humana. Neste mundo em festa que a. paz veio instalar, o lavrador que é Trigeu casa, em união legí­tima e em cerimónia ritual, com a deusa dos frutos. Hermes, que lha deposita nas mãos, enuncia a entrega oficial em termos que definem esta união como paradigma, de um vulgar casamento, em regras e propósitos (706-708). União, coabitação e a geração de filhos são as regras que, em clima de paz, os deuses reinstalam entre os homens. Todos os ritos de núpcias são, depois deste acordo, escrupulosamente cumpridos (868-870): o banho nupcial e todos os preparativos de toilette e de sedução da noiva; o bolo e os grãos de sésamo como símbolos de fertilidade. Tarda apenas o acto sexual, para consumar uma feliz e promissora, união. Mas o pacto de paz e de prosperidade que Trigeu consuma com Oporá não é exclusivo ou individual. Em paralelo, toda a comunidade ateniense e grega con­suma união semelhante, quando, nas mãos do Conselho, é deposta Teoria (886-891). A alegoria ganha vida na pele de uma jovem esbelta que se desnuda, para. se oferecer em plenitude ao governo da cidade. A lingua­gem é sexualmente explícita, convidando a um acto sexual que consagre a posse da Festança e, com ela, do apaziguamento civil.

Para além de uma sexualidade simbólica e ritual, a. comédia prestou ao fenómeno, em todo o seu alcance pessoal e cívico, uma atenção cons­tante. O potencial cómico que lhe era também natural assim o aconse­lhava. Valorizou-a, antes de mais, na caricatura de um plano educativo.

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Quando, em Nuvens, os Argumento'- fusto e Injusto confrontam dois modelos educativos opostos, o antigo e o moderno, a sexualidade é maté­ria sobre a qual os dois contendores confluem, na medida em que ela constitui motivo de opções de comportamento fundamentais. Do pro­grama difundido pelo padrão antigo, são regras elementares otiôoSs 'a discrição' (995) e eÚKÀeícc 'a boa reputação' (997). A. repressão exerce-se desde os bancos cia escola, fazendo do esconder e do apagar de qualquer sinal cie virilidade o exercício elementar de um conjunto de práticas lou­váveis (972-976). Actos simples como o de se sentar exigem um código estudado de 'não mostrar nada que seja chocante aos de fora'; como o não menos simples levantar recomenda que se alise o assento, 'para não deixar marcas dos órgãos viris', atractivos para os amantes. Mas este é apenas um exercício escolar, ingénuo ensaio de outras restrições futuras. Em nome de um comportamento adequado e respeitador dos mesmos princípios, os excessos ou caprichos sexuais devem ser reprimidos. O jogo de sedução que dá origem a uma relação homossexual não se compadece com as regras desejáveis de aiÔás (979-980). Dar à voz modulações adocicadas e aos olhos inflexões langorosas são estratégias que conduzem a uma espécie de prostituição voluntária (COITOS éccuTÒv npoaYcoyetjcov, 980). Por outro lado, o atractivo da iniciação sexual de um adolescente, que se deixa seduzir por bailarinas ou cortesãs, num espanto ingénuo perante a tentação de um presente, como pactuá-lo com a reserva que uma boa reputação exige (996-997)?

Aos travões que uma educação rígida impõe, responde o modelo nova vaga com liberdades e facílitismos. Nos tempos que correm, em que a moral e os princípios caíram em desuso, virtu.de e restrições passaram a soar a estupidez e a inépcia. Sentenciosamente, o'Argumento Injusto introduz a sua filosofia educativa com uma recomendação (1000-1001): 'Se tu, meu rapaz, fores na cantiga, caramba, vais fazer figura de porqui­nho do Hipócrates1 e vais passar por menino da mamã (PÀiTOií-ápuev)'. Mas a tolerância moderna tem perigos evidentes, de que o principal é a subversão completa do bem e do mal (1019-1023). Desta confusão e amo­ralidade é consequência inevitável que, em vez de uma sólida sophrosyne (962, 1006, 1060), a sensatez e a temperança tão louvadas, se imponha a kotapygosyne (1023), a desvergonha completa.

1 Hipócrates, sobrinho de Péricles, tinha três filhos a quem, por manifesta, estupidez, se pôs a alcunha de 'porquinhos' (cf. Eq. 986, Fax 928).

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Para fazer valer os seus princípios inovadores e subversivos, o Argumento Injusto dispõe também de ferramentas que a nova mentali­dade domina na perfeição e, acima de todas elas, de um conhecimento sólido da retórica argumentativa. Não basta encolher os ombros perante a virtude, é preciso provar que essa é uma atitu.de correcta (1036-1042). Na desmontagem que faz, sistemática, de cada um dos pontos metodoló­gicos defendidos pelo adversário, o Adikos Logos repõe a discussão sobre os dois pontos de princípio fundamentais e em voga no momento: o valor e a utilidade do sophronein (1060-1061) e a polémica candente da prioridade relativa de nomos e physis (1075). Primeiro o sophronein, a moderação, para que serve? E a comprovar a excelência, da utilidade, o único critério válido numa sociedade prática e utilitarista como o foi a ateniense do séc. V, introduz-se na discussão o caso mítico e paradigmático de Peleu (1063-1070). Ele é a prova de que a sophrosyne, se à primeira vista atractiva, deixa fragilizado um amante que se não mostre bppiatrjç e fjôúç bastante. Mas se a moderação não parece favorecer a solidez de um casamento, é sobretudo na plenitude da vida, fora das peias da convenção social, que ela exerce sobre o indivíduo uma pressão devastadora. Tudo aquilo que constitui o prazer real da vida é por ela proibido (1071-1074): rapazinhos, mulheres, jogo, comida, bebida e uma boa gargalhada. Por isso, um plano de educação adequado à nova ordem dos tempos não pode valorizar as virtudes ancestrais, em que a. convenção social, o nomos, tende a apoiar-se. Impõe-se ir ao encontro das aspirações naturais do ser humano, dar à physis a liberdade de realização que ela exige e que lhe é devida. Em vez do mito, é no quotidiano que um novo exemplo prático se vai inspirar. Veja-se o adultério, que o nomos julga com severidade e reprovação (1076): 'fraquejaste, apaixonaste-te, cometeste adultério e foste apanhado' (fju,apT€Ç, lípáoOri?, éjiGÍxeuoás TI, KCíT' èÂiííj)0rjs). Quando afinal, do ponto de vista da physis, o que o adultério representa, é tão somente a realização de uma tendência espontânea, livre e autêntica. Firme na capacidade de defesa que detém, a retórica lá estará para contrapor razões (àvTepjiç rtpòç aiitóv és obôèv fjôÍKqKas, 1079-1080), ou para invocar exemplos consagrados: 'Atira a culpa para Zeus, que também se deixou dominar pelo amor e pelas mulheres' (1080-1081). Da execução desta filosofia pedagógica, o resul­tado é o produto bem conhecido dos éíípvmpcÓKTOves, 'os devassos', os âpioToi do momento, que dominam - é a comédia quem o diz - todo o bloco social: Quem são os políticos? Os devassos. E os poetas? Os

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devassos. E os oradores? Os devassos. Ou até os espectadores? Os devassos (1084-1102).

Ao desempenho exercido pelos pedagogos modernos vêm os auto­res dramáticos trazer a sua colaboração. Sujeita também à ordem dos tempos, a literatura revia as razões do seu mérito e a função social que dela se esperava. Entre os adultos, como reconhecia com autoridade o Esquilo de Rãs (1054-1055), ela exercia uma intervenção equivalente à de uma escola, prestigiando-se pela sua tradicional missão educativa. No momento, as atenções concentravam-se sobretudo na produção dramá­tica, que vivia tempos áureos como fenómeno de massas, catalizador de um interesse generalizado. Várias razões de fundo se reavaliavam a pro­pósito do processo de criação literária, com relevo para uma questão de base: Que se espera da poesia? Que esconda o mal e projecte uma forma depurada e ética de vida? Ou que se inspire na realidade e a recrie sem restrições, consentindo ao vício o espaço que ele detém na vida? Realismo e didacticismo travam um agem, de que a vitória, parece, no momento, galardoar o primeiro. O mesmo Eurípides que, em Rãs (1049-1053), reco­nhecia, a superioridade de uma tragédia voltada para o quotidiano, é também aquele poeta, que a comédia retrata como o mais escandaloso, mas também o mais popular, moderno, polémico e sedutor, sobretudo para as gerações mais jovens. Uma caracterização geral dos temas e das personagens predilectas do seu. teatro trará inevitavelmente a primeiro plano o erotismo feminino e aquelas figuras que se tornaram a sua ima­gem, de marca., as Fedras, as Estenebeias e as Melanipas, todas elas rcópvat dentro cie uma avaliação conservadora (Th, 497, 545-547, Ra, 1043).

Atento, com acuidade particular, à natureza feminina, que a guerra projectou como um fenómeno social de contornos inéditos, o teatro de Eurípides deu acolhimento às paixões e reacções mais recônditas da alma humana, que a comédia traduziu, numa listagem, de pechas ou vícios subscritos pela condição dissoluta (-iiajKaxáTcvjov, Lys. 137) das mulhe­res. Para além de legendas meramente convencionais e genéricas com que a comédia resume o retrato euripid.ia.no da. mulher - 'adúlteras, lou­cas por homens' (poixorúna?, ávôpepacrtpías, Th. 392) - Aristófanes testemunha também a subtileza com que, como verdadeiro psicólogo, Eurípides registava, nos gestos involuntários do dia-a-dia, o fogo da pai­xão como uma mola vital da existência feminina: 'Uma coroa que se tece' (Th, 400-401), um objecto que se deixa escapar das mãos (Th. 401-404), a cor pálida de um rosto (Th. 405-406). Mas, prosseguindo na abordagem

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cia temática amorosa, Eurípides passou dos sintomas de superfície para os gestos decisivos, sem hesitar diante das atitudes que o código social reprovava. Por suas mãos, digamos que a pornografia se instalou nos media do séc. V ateniense. Aristófanes recorda alguns dos padrões mais escandalosos (Ra. 1079-1081): aquelas alcoviteiras activas, como a Ama de Fedra por exemplo, que desencadeiam, com generosa amoralidade, amo­res culpados; ou. as mulheres que dão à luz os seus bastardos nos tem­plos, como Auge, a mãe de Télefo, sem escrúpulo pela poluição do que há de mais sagrado; ou aqueles que avançam sem um estremecimento para o incesto, como os filhos de Éolo. Do acolhimento destas novidades teatrais dá testemunho a cena. de Nuvens (1370-1373), em que a crise estala à mesa, em casa de Estrepsíades, quando Fidípídes, a pedido do pai, recita urna dessas novidades euripidianas que tem por motivo um caso de incesto. Esse é um tipo de modernice que cai bem entre os jovens, para quem Eurípides é oo^cáiaxos (1377-1378), perante o horror dos mais velhos. Da cena se patenteia uma clara divergência de gerações e a. ideia do modo progressivo como a imoralidade se vai instalando.

E porque este caminho perigoso parece sem recuo, lá está o Ágaton cómico a provar que o futuro da tragédia será ainda mais tenebroso. Esta promessa é garantida pelo modelo em voga do poeta efeminado e sexy, que compõe uma poesia à sua medida. Não o tinham assim reconhecido os dois Argumentos do Pensadoiro, que os poetas de sucesso todos alinham nos KatartÚYOves? A crítica conservadora é agora avançada pelo Parente de Eurípides, como antes pelo surpreendido Estrepsíades. Mas a questão vai, desta vez, mais fundo, porque radica não apenas na aparência exterior da produção, mas na própria physis do criador. Porque antes de nos proporcionar uma melodia erótica (Th. 130-133), afrodisíaca, a tresandar a golpes de língua (Kaxejkaxxiaiiévov) e a beijos lascivos (uavôccÂsatóv), Aristófanes proporciona-nos a imagem, de um Ágaton que mais parece uma prostituta de luxo, a famosa Cirene (97-98). Para a coincidência, há mesmo uma teoria abonatória que garante que Ágaton não representa caso único, mas simplesmente um grupo que partilha uma mesma filosofia poética (148-156). Para os novos criadores as peças parecem ter sexo, ou são masculinas ou femininas conforme as tendências temáticas e as personagens dominantes. E corno regra de base de uma produção convincente impõe-sém uniformidade com a. physis do poeta, retocada, se necessário, pela jií[i,rj0i5, 'a imitação ou ficção'. De resto, a própria tradição abona os méritos cia teoria: poetas consagrados

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como íbico, Anacreonte o Alceu, criadores de uma poesia requebrada, à ióníca (160-163) foram deste mesmo ponto de vista modelos práticos. Dentro da mesma linha, os criadores de vanguarda, reconhecendo que a rudeza espontânea e a masculinidade são características incompatíveis com a delicadeza da arte (ájiouoov, 159), trataram de adoptar uma apa­rência e um padrão de vida efeminado e devasso, como condição de um novo modelo artístico. Por isso Agaton, perfeito em todos os traços exigi­dos a um figurino popular - bonita figura, pálido, bem barbeado, com voz de mulher, delicado e agradável à vista (191-192) - é o padrão dos KKTaTCijyoveç ou dos eúpímpcoicroi (200) que são as estrelas aplaudidas do momento.

A todos estes factores que vinham condicionando a formação de uma outra mentalidade, veio juntar-se o contexto histórico traduzido nas consequências sociais de um longo conflito armado. Na vida pública, como na privada, a alteração da ordem tradicional, em paralelo com a fragilização de princípios ancestrais, abriu portas à permissividade e subverteu os valores. Sinais preocupantes se manifestavam na vida pública ateniense desde há anos, quando razões pessoais passaram a condicionar os interesses colectivos. O romance ilícito, mas dominador, de Péricles e de Aspásía é dessa mesma decadência um indício terrível. Porque, para alguns, a motivação do famoso político para defender o desencadear de hostilidades com Mégara - e previsivelmente com Esparta - não passou de uma mera questão de raptos de prostitutas (Ach. 524-529). Num jogo de assaltos a mulheres, que faz lembrar aquele com que Heródoto, no prólogo das suas Histórias2, justificava o conflito que opôs o oriente e o ocidente, se pressente a decadência dos tempos. Em vez das princesas que sucessivamente foram sacadas ao campo oposto -Io, Europa, Medeia, Helena - até ao eclodir tremendo da guerra de Tróia, o caso não passa agora de uma mera polémica de prostitutas, uma mega-rense e duas outras raptadas do clã ateniense que a bela Aspásia gover­nava (528-529). Mais do que uma referência justificada por um propósito

2 D. M. MacDowell, Aristophanes and Athens, Oxford, 1995, 62, discorda da. ideia, defendida por alguns, de que haja nesta alusão dos Acamenses uma paródia directa de Heródoto. Sem querer enveredar por esta discussão, que criaria questões de cronologia relativa entre os textos e o problema da difusão das Histórias em Atenas, a simples coincidência de motivos justificativos do eclodir de uma guerra de violência paradigmática não pode deixar de ser sugestiva.

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de paródia literária, o rapto das cortesãs faz sobretudo sentido como um comentário sugestivo da corrupção política que nos novos tempos se agudiza.

Mas se já nas causas do estalar da guerra se julgou ver um sinal da devassidão dos políticos, o progresso do conflito só veio generalizar o sintoma. O enriquecimento que a guerra trouxe a. uma nova classe dedi­cada à indústria e ao comércio catapultou para a ribalta outro padrão de político, gente sem escrúpulos, familiarizada com a corrupção dos negó­cios, para quem os maus costumes constituem uma garantia de publici­dade. Numa caricatura do padrão político nova vaga, o Salsicheiro recorda, em Cavaleiros (423-426), como ao vê-lo, nos seus verdes anos de mercado, a roubar um naco de carne que escondia no rabo, uma voz experiente se ergueu para reconhecer: 'Está na cara, o moço está talhado para governar o povo'. Votada, por tradição, ao ataque pessoal desas­sombrado, a comédia multiplicou a. denúncia de muitas personagens públicas e dos seus vícios, onde os desvios sexuais têm um papel desta­cado, desde o cidadão comum, por vezes de uma ascendência respeitável, até àqueles a quem obstado confiava missões e cargos. Assim Clístenes, um valente 'cu rapado de ardentes desígnios' (0epu.óPoi)Àov itpwKTÒv éÇopnuéve, Ach. 119) e o seu indispensável Estratão (Eq. 1374); ou Arí-frades, que respondia à celebridade do irmão Árígnoto, cítaredo de reco­nhecidos méritos, com um invejável curriculum de frequentador de lupanares e de autor de exercícios eróticos sofisticados (Eq. 1280-1286, V. 1280-1283, Pax 883-885); ou Agírrio, encarregado por Atenas de altas funções militares, que mal disfarçava, sob uma barba de empréstimo, a. sua qualidade de mulher (Ec. 102-104, PI. 176).

Para além do plano da administração pública, onde os políticos são referência, a vida social no seu todo, perante os anos de crise, encara a sexualidade como um negócio e vê implementada a prática da exploração erótica como um modo de subsistência. A prostituição parece recrutar novas vítimas, nas esposas e filhas de honrados cidadãos, que se vêem inclinadas a correr esse risco para fugir à fome. Este é um fenómeno social previsível, ainda que deformado pelas cores vibrantes da comédia. A cena do Megarense, em Acamenses, parece, sob este ponto de vista, falante, para além de todos os ingredientes que a condimentam como 'uma grosseria à moda de Mégara'. Encurralado pela fome e pela miséria, o cidadão de Mégara encara a possibilidade de prostituir as filhas, corno resposta única à pergunta fundamental (734): 'O que preferem vocês?

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Serem vendidas ou. morrerem a forn0 ' ot i situação era já compulsiva no início da guerra, sobre as suas prim m ~ tinias, o desfecho de um longo conflito só fez agravar a crise. Num i i i o de pós-guerra, em que só por milagre Pluto aparece à face da terra, a prostituição foi-se banalizando, cada vez mais exigente e amoral. Exemplo disso são as profissionais da actividade, as cortesãs de Corinto, prontas para os clientes endinheirados, mas esquivas para os de bolso vazio (PI. 151-152; cf. Th. 346). Mas não menos exigentes se mostram os rapazes à caça de amantes, não por amor, naturalmente, mas por dinheiro; e mesmo os que se consideram honestos e indiferentes ao vil metal não desdenham de um presente que os com­pense dos favores concedidos (PI. 153-159) e disfarçam, com cores suaves, a ganância. As velhas, por seu lado, encontravam por essa via meio de satisfazer as últimas exigências de um erotismo caduco. Com dinheiro podiam ainda seduzir (PI. 975-977) o amor de um rapazinho, pobre, é bom de ver, mas bonita figura, gentil e sério. Em troca de umas roupas ou de uns petiscos, não lhes faltavam palavras de amor, consoladores ciúmes ou uns irónicos elogios à beleza (1011-1022)3.

Mas os anos difíceis da guerra não se repercutiram apenas nos inte­resses comuns. Á sociedade íaz-se de indivíduos que representam o oitos, a casa e a família, também elas profundamente atingidas. Em plena der­rocada, a comédia encara pela utopia a saída para a crise. Num mundo do avesso, em que a guerra subverteu os papéis tradicionais do mas­culino e do feminino, só às mulheres pode caber ainda a função de salvadoras. Porque sobreviventes na ausência dos homens, e nunca experimentadas na vida política, elas são, na perspectiva da fantasia, a única carta, ainda não jogada. Com que argumentos ou trunfos pode a autoridade feminina impor-se na anarquia reinante? Lisístrata dispõe de uma fórmula salvadora (149-154): 'Se nos sentássemos em casa, todas maquilhadas, com as nossas camisinhas de Amorgos e nuas por baixo, de púbis depilado, e quando os nossos maridos, de pito aceso, nos quises­sem derrubar, nós não cedêssemos e não lhes déssemos entrada, era só ver como as tréguas se fariam, posso apostar'. É, portanto, no sexo com os seus artifícios requintados, que reside a salvação para a crise. Por esta via, a comédia retomava um dos seus motivos de força - a paródia feminina -posta agora ao serviço de objectivos superiores, a salvação de Atenas.

3 Cf. ainda Th. 345. O poder dos presentes na conquista amorosa é atestado também em Av. 703-707.

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Mulher e sexo são, na perspectiva cómica, como unha e carne4. Por trás das restrições impostas pelo nomos, a comédia denuncia o vício pró­prio à phi/sts feminina, patente sob todas as formas de aventura ilícita: os processos hábeis para enganar os maridos (Th. 416-417, 493-496, 498-501, Ec. 522-525), com a eterna conivência das criadas (Th. 340-341); a entrega fácil a escravos e almocreves (Th. 491-492); ou mesmo o recurso a produ­tos da indústria erótica quando os homens escasseiam (Li/s. 107-110). Se a mulher é citadina, filha de boas famílias, habituada a luxos caros, a ânsia de sexo redobra, para tortura de um pobre marido; eis o caso de Estrep-síades de Nuvens (51-52), o rústico endinheirado que se casou com uma Mégacles e assim juntou, à desdita natural de um marido, a agravante da sua condição, frágil e subserviente, de rústico. A guerra, com a solidão e liberdade que impôs à mulher, veio ainda piorar a situação. Não só as mulheres se viram à solta para. a realização indisciplinada dos seus dese­jos, como os próprios maridos lhes proporcionaram, uma perigosa coni­vência. Na hora da partida para o campo de batalha, ei-los que franqueiam as portas das suas casas e a. seriedade das suas mulheres a. qualquer sapateiro ou ourives, para que lhes não faltem com. a. prestação de diligentes serviços (Li/s. 404-420).

Além da. simples paródia cómica, dentro de uma linha tradicional, Aristófanes focou a condição feminina com os olhos da solidariedade que merecem as principais vítimas de uma guerra insensata. O sexo, na vida da mulher, surge como um objectivo primordial, aquele que a realiza como alicerce da estrutura familiar, na qualidade de esposa e de mãe. Lutar pelo sexo, retendo po:r todos os meios em casa os combatentes, simboliza muito mais do que a satisfação sensual de desejos inconfessá­veis. Significa normalidade, paz, segurança e prosperidade. A par do contributo dos superiores desígnios dos deuses, são as mulheres quem, na sociedade humana, se incumbe da difícil ou mesmo utópica missão de salvar vidas e de preservar o casamento, a família e a comunidade. Ainda a guerra seguia um curso promissor para Atenas e já, em Accirnenses, Aristófanes colocava o drama das mulheres e das famílias perante a guerra. Ao mercado de Diceópolis chegava a solicitação, da parte de uma noiva, cie um pingo de paz, que lhe permitisse manter em. casa ... o sexo do marido (1059-1060). Sensível, o feliz pacifista acedia, por reconhecer que ela era uma vítima inocente do estado de coisas. Mas à medida que o

4 Cf. Lijs. 23-24,142-143, 718-725, Th. 478-489, Ec. 225, 228.

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efeito pernicioso da guerra se te riais insustentável, a comédia incrementava também o seu argui ai nome da questão feminina e social. Lisístmta, apresentada nos anos negros que se seguiram ao desas­tre da Sicília, é toda ela. uma vibrante utopia, onde é peio sexo que a vitó­ria pacifista se ganha. O eterno motivo cómico da histeria erótica da mulher garante à peça uma pujança imediata e de superfície. Da greve ao sexo são as mulheres as principais lesadas e só o carácter excepcional da heroína, uma quase máscula Lísístrata, apoiada na vontade lúcida da espartana Lâmpito, consegue mobilizar o clã feminino para o projecto. E com que fraquezas e quebras! Debaixo de unia bandeira que é a sua - o sexo -, a mulher mostra-se no entanto capaz de uma mobilização corpo­rativa, que pressupõe uma solidariedade e união de que os homens sempre se mostraram incapazes. Sob o exterior de aparato obsceno, Aristófanes penetra no lado afectivo e familiar do sexo. Perante a even­tual reacção violenta dos maridos, as mulheres organizam a resistência, na certeza de que, se se virem, obrigadas a ceder pela força, o prazer estará ausente de uma relação não partilhada (160-166); porque Lisístrata pode sabiamente garantir: 'Nunca haverá prazer para um homem, se a mulher não colaborar'. Chegada a hora do confronto, que se revela no episódio paradigmático do casal Mírrina e Cinésias, atinge também o seu cúmulo cómico o jogo conjugal do sexo. A um marido em. brasas pela ausência da mulher, Mírrina impõe um esquema de sedução. Prometer amor e não amar, dar tudo e tudo recusar, eis a estratégia. Uma certa reserva e amuo ofendido desafiam um qualquer Cinésias, o pobre, frágil e iludido marido. Exigem-se pazes, sempre doces e promissoras. Ven-cem-se todas as barreiras, sem. quebra de argumentos: o bebé sem os cui­dados da mãe, a casa ao deus-dará, o crochet arrastado pelas patas das galinhas (Lys. 870-897). Sucede-se a cedência e o prazer adiado. Mírrina promete o tão desejado sexo, mas amontoa dificuldades e preparativos. Cozido em lume brando, Cinésias insiste; mas à urgência dele, respon­dem, as delongas dela; com um beijo leve e uma peça de roupa que se despe, Mírrina mantém acesa a chama, enquanto se desdobra num vai­vém de arranjos e preparos. Apenas para que a decepção seja mais dorida. Levada a cozedura ao ponto certo, a bela foge perante um amante frustrado, mas mesmo assim fiel, apaixonado e mais saudoso ainda. Com este quadro de vida doméstica, de um realismo absoluto e intemporal, Aristófanes reconhecia, por trás da caricatura, uma verdade profunda na sociedade humana. Visto como um elemento mobilizador das reacções

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interpessoais, encaradas agora numa perspectiva, conjugal, o sexo justi­fica, em última análise, a realização feminina, mas é também um factor subjacente à própria sociedade e equilíbrio social. Dentro de uma fórmula já antes explorada pela comédia, só quando o sexo se converte para todos em satisfação e prazer, a paz regressa, a solidariedade se estabelece e a vida ganha o sentido profundo de unia saudável e próspera norma­lidade.

Com. o curso dos anos e o agravamento da crise, depois que Atenas viu perdida a sua armada e derrubados os muros como um último bas­tião de cedência após uma. guerra perdida, um sentimento de descon­fiança e de desânimo se instalou. Ao mesmo tempo que ruía o prestígio externo com a perda do império ateniense, o modelo democrático de gestão da cidade patenteava também uma profunda ineficácia. A hora era de reflexão, o descontentamento sugeria a subversão de todas as regras e convidava à criação fantasista de um padrão utópico de sociedade, onde tudo fosse simplesmente contrário à dura realidade. Para esta revisão visceral de um modelo ocidental ou. helénico de sociedade contribuía o conhecimento adquirido no contacto com outras comunidades, sobretudo orientais, que incentivava, a uma relativização de modelos. Bárbaros e Gregos tendiam a aproximar-se dentro de um sentido mais universal de existência. Foi então que, certamente ecoando teorias em voga entre os filósofos e intelectuais da época, Aristófanes instalou numa. Atenas utó­pica um regime comunista de bens e de mulheres. Em vez de um. programa de regresso a uma normalidade conhecida, através da reivindicação da sexualidade conjugal, como aquele que Lisístrata defen­dia, o projecto era desta vez de ruptura, com a ordem estabelecida: que as paredes da casa desabassem, para dar lugar a uma única família, dentro da qual o sexo fosse livre e democrático. Como regra de ouro a orientar o comportamento masculino, o princípio fundamental traduz-se numa fórmula simples, 'se não fazes amor não comes', como suspeitam, em conversa avisada, Bléfiro e Cremes (Ec, 465-469). Na lógica feminina, para as mulheres é chegada a hora dé darem desafogo pleno, e legitimado pela lei, ao seu. eterno erotismo: amor livre para. todas, com a única restrição de uma prioridade devida às velhas, deterioradas e caquécticas. A vanta­gem antes detida pelas escravas, por via da prostituição e do adultério, percle agora terreno perante a igualdade democrática que se instala. O tempo pertence às mulheres livres, desvinculadas de todos os blo­queios impostos pelo nomos tradicional. É esta a. resposta que a fantasia

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encontra para opor ao ronani > 'o de unia estrutura política em crise. A ruptura do colectivo, resioiia». e com a ruptura completa do privado. Mas ainda uma vez, a revolução inevitável ergue a bandeira do sexo, ele padrão tão inovador com a própria teoria a propor a Atenas. De persistente fica apenas a ideia de um jogo sem fim entre os desígnios profundos da physis perante a inconstância e relatividade do nomos.

Assumindo, como critério "de base, a prática sexual, estabelecida ou imaginada, a comédia avaliava o percurso histórico de uma sociedade que chegava ao fim da sua curva de existência: depois de anos de ascen­são e de grandeza, cumpria-se um desfecho de decadência e de crise. Reflexão esta que se propunha em parâmetros convencionais: a exube­rância e o humor cáustico que sempre foram de regra na produção cómica antiga aasim o exigiam.

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