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Gabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Ano 4 • Nº 41 • Janeiro-Fevereiro de 2009 Alphonse Naggib Sabbagh Delicadeza em mangas de camisa 15 a 18 11 a 14 Solícito, jovial e brilhante, como sempre foi em sua longa história na universidade, Jacques de Medina, atualmente professor convidado do Programa de Engenharia Civil (PEC), do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação em Engenharia (Coppe) da UFRJ, recebeu a equipe do Jornal da UFRJ com a mesma fidalguia com que recebia estudantes, técnico-administrativos e demais docentes do Coppe, em sua sala. Próximo de ser agraciado com o título de professor emérito pelo Conselho Universitário (Consuni) da UFRJ, Medina lecionou no PEC de 1967 a 1994 e nele continuou até 2006, como pesquisador. Seu pioneirismo e sua dedicação fizeram com que lhe fosse outorgado, pelo colegiado do Coppe, o título por notório saber. Desde criança, quando estudava em um pequeno colégio episcopal da sua cidade natal, no Líbano, Alphonse Nagib Sabbagh percebia uma forte aproximação entre a vocação religiosa e o magistério. Depois de concluir o seminário, não demorou muito para o padre dedicar parte do seu tempo ao seu outro sacerdócio: o acadêmico-cultural. E foi no Brasil, mais precisamente na Faculdade de Letras (FL) da UFRJ, que monsenhor Alphonse fez de seu encontro com a vocação acadêmica uma carreira repleta de realizações; destaque para a criação do Setor de Estudos Árabes da FL e a elaboração do primeiro dicionário português-árabe, uma das mais importantes obras da lexicografia árabe-lusófona editadas no Brasil. Às vésperas de completar 90 anos, monsenhor Alphonse Nagib Sabbagh concede esta entrevista ao Jornal da UFRJ na qual aborda diferentes questões e relembra aspectos importantes da sua trajetória de vida, de sua infância no Líbano, dos primeiros contatos com a religião no seminário do mosteiro Santíssimo Salvador e, posteriormente, na Universidade de Sorbonne, em Paris, no auge da II Guerra Mundial. A vez dos emergentes A criação de mecanismos que permitam a participação mais ativa dos países emergentes, inclusive o Brasil, nas decisões acerca da economia internacional foi um dos principais pontos discutidos na reunião de cúpula do G-20 (grupo das nações com as 20 economias mais importantes do mundo), novembro último, em Washington (EUA). Um monge dedicado a dois sacerdócios Jacques Medina Rio de Janeiro, início do século XX. Momento de profundas transformações urbanísticas na então capital da República que se pretendia moderna, européia e “civilizada”; quando Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, inscreve seu nome definitivamente na história do samba carioca e na formação de uma identidade musical brasileira. 28 Tia Ciata 19

Delicadeza em mangas de camisa Um monge dedicado a dois

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Page 1: Delicadeza em mangas de camisa Um monge dedicado a dois

Gabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Ano 4 • Nº 41 • Janeiro-Fevereiro de 2009

Alphonse Naggib Sabbagh

Delicadeza em mangas de camisa

15 a 18

11 a 14

Solícito, jovial e brilhante, como sempre foi em sua longa história na universidade, Jacques de Medina, atualmente professor convidado

do Programa de Engenharia Civil (PEC), do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação em Engenharia (Coppe) da UFRJ, recebeu a equipe

do Jornal da UFRJ com a mesma � dalguia com que recebia estudantes, técnico-administrativos e demais docentes do Coppe, em sua sala.

Próximo de ser agraciado com o título de professor emérito pelo Conselho Universitário (Consuni) da UFRJ, Medina lecionou no PEC

de 1967 a 1994 e nele continuou até 2006, como pesquisador. Seu pioneirismo e sua dedicação � zeram com que lhe fosse

outorgado, pelo colegiado do Coppe, o título por notório saber.

Desde criança, quando estudava em um pequeno colégio episcopal da sua cidade natal, no Líbano, Alphonse Nagib

Sabbagh percebia uma forte aproximação entre a vocação religiosa e o magistério. Depois de concluir o seminário, não demorou muito para o padre dedicar parte do seu tempo ao

seu outro sacerdócio: o acadêmico-cultural. E foi no Brasil, mais precisamente na Faculdade de Letras (FL) da UFRJ, que

monsenhor Alphonse fez de seu encontro com a vocação acadêmica uma carreira repleta de realizações; destaque para a criação do Setor de Estudos Árabes da FL e a elaboração do

primeiro dicionário português-árabe, uma das mais importantes obras da lexicogra� a árabe-lusófona editadas no Brasil.

Às vésperas de completar 90 anos, monsenhor Alphonse Nagib Sabbagh concede esta entrevista ao Jornal da UFRJ na qual

aborda diferentes questões e relembra aspectos importantes da sua trajetória de vida, de sua infância no Líbano, dos primeiros

contatos com a religião no seminário do mosteiro Santíssimo Salvador e, posteriormente, na Universidade de Sorbonne, em

Paris, no auge da II Guerra Mundial.

A vez dosemergentes

A criação de mecanismos que permitam a participação mais ativa dos países emergentes, inclusive o Brasil, nas decisões acerca da economia internacional foi um dos principais pontos discutidos na reunião de cúpula do G-20 (grupo das nações com as 20

economias mais importantes do mundo), novembro último, em Washington (EUA).

Um monge dedicado a dois sacerdócios

Jacques Medina

Rio de Janeiro, início do século XX. Momento de profundas transformações urbanísticas

na então capital da República que se pretendia moderna,

européia e “civilizada”; quando Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, inscreve seu nome

de� nitivamente na história do samba carioca e na formação de uma identidade musical

brasileira. 28

Tia Ciata

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Janeiro-Fevereiro 2009UFRJJornal da

2 Janeiro-Fevereiro 2009Janeiro-Fevereiro 2009

Reitor Aloísio Teixeira

Vice-reitora Sylvia da Silveira Mello Vargas

Pró-reitoria de Graduação (PR-1) Belkis Valdman

Pró-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa (PR-2)

Ângela Maria Cohen Uller

Pró-reitoria de Planejamento e Desenvolvimento (PR-3)

Carlos Antônio Levi da Conceição

Pró-reitoria de Pessoal (PR-4) Luiz Afonso Henriques Mariz

Pró-reitoria de Extensão (PR-5) Laura Tavares Ribeiro Soares

Superintendência Geral de Administração e Finanças

Milton Flores

Chefe de Gabinete João Eduardo do Nascimento Fonseca

Forum de Ciência e CulturaBeatriz Resende

Prefeito da Cidade UniversitáriaHélio de Mattos Alves

Sistema de Bibliotecas e Informação (SiBI) Paula Maria Abrantes Cotta de Melo

Coordenadoria de Comunicação (CoordCom) Fortunato Mauro

Fotolito e impressão Newstec Gráfica e Editora

25 mil exemplares

Av. Pedro Calmon, 550, térreo.Prédio da Reitoria – Gabinete do Reitor

Cidade Universitária CEP 21941-590

Rio de Janeiro – RJ Telefone: (21) 2598-1621 / 1622

Fax: (21) 2598-1605 [email protected]

JORNAL DA UFRJ é UmA PUBlICAção mENSAl DA CooRDENADoRIA DE ComUNICAção DA UNIVERSIDADE FEDERAl Do RIo DE JANEIRo.

Supervisão editorial João Eduardo Fonseca

Jornalista responsável Fortunato mauro (Reg. 20732 mTE)

Edição e pautaAntônio Carlos moreira e Fortunato mauro

RedaçãoAline Durães,Bruno Franco,

Coryntho Baldez, márcio Castilho,

Pedro Barreto Rafaela Pereira,

Rodrigo Ricardo e Vanessa Sol

Projeto gráfico Anna Carolina Bayer,

Jefferson Nepomuceno e Rodrigo Ricardo

Diagramação Anna Carolina Bayer

Ilustração Jefferson Nepomuceno e Zope

Fotosmarco Fernandes,

miguel Eichler,Valter Campanato/ABr e

William Santos

Revisãoluciana Crespo emônica machado

Instituições interessadas em receber esta publicação devem entrar em

contato pelo e-mail [email protected]

UFRJJornal da

Agenda

Imagem FAU

Apesar do período de férias, continuam os trabalhos em torno do Plano Dire-

tor UFRJ 2020. O Comitê Técnico do Plano Diretor (CTPD) já estuda as propostas para a elaboração do Plano de Ocupação e Uso da Praia Vermelha e Unidades Isoladas, que serão apre-sentadas no Conselho Universitário (Consuni) do dia 12 de março.

Para meados de 2009 está previsto o início das obras do novo sistema viário da Cidade Universitária, que inclui uma nova ponte de acesso à Linha Vermelha, um grande anel viário para o tráfego de veículos, além da criação de calçadas, ciclovias e de-mais estruturas para o transporte não motorizado. Os investimentos para tanto foram aprovados no Consuni do dia 27 de novembro último, a partir de recursos já disponíveis na UFRJ.

O Consuni autorizou, ainda, a con-tinuação das conversas com autoridades governamentais, nas esferas federal, estadual e municipal, no sentido de viabilizar novos investimentos, e a di-vulgação do documento elaborado pelo

Rumo ao Plano DiretorPedro Barreto

CTPD, onde são expostas as diretrizes e políticas como mobilidade, acessibili-dade, energia, alimentação, residências universitárias, entre outras.

Foram definidos também os inte-grantes dos grupos de trabalho dos Planos de Ocupação e Uso da Praia Vermelha (POUPV) das Unidades Isoladas (POUUI), além da consti-tuição de um Conselho Participativo do Plano Diretor. Composto por mais de 30 representantes dos colegiados superiores, unidades acadêmicas e da sociedade civil, como membros do governo do Estado, Prefeitura, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Sindicato dos Engenheiros (Senge), o conselho tem como objetivo ser um canal de comunicação com a socie-dade, que visa ampliar o diálogo e es-tabelecer alianças para a viabilização do Plano Diretor 2020 da UFRJ.

A próxima edição do Jornal da UFRJ, que circula no início de março, trará um encarte especial de oito pági-nas com todas as informações acerca das propostas para o Plano Diretor UFRJ 2020.

C@rtas

Errata Na edição 39, novembro de 2009, na matéria “O neoliberalismo morreu?”, página 21, 4º parágrafo, 3ª linha, onde se lê: proposto pelo FED, orçado em US$ 700 milhões. Leias-se: proposto pelo FED, orçado em US$ 700 bilhões.

O Jornal da UFRJ publica opiniões sobre o conteúdo de suas edições. Por questões de es-

paço as cartas sofrerão uma seleção e poderão ser resumidas. Os e-mails podem ser enviados

para [email protected].

***

***

Pertenço ao Centro Acadêmico (CA) de Engenharia Ambiental, aqui em Belém, da Universidade do Estado do Pará (Uepa). Obtivemos por acaso a edição 38 do Jornal da UFRJ (outubro de 2008) e gostamos muito da linha editorial de todas as matérias, focando muito a história do país, a atualidade e cultura, não somente nos assuntos e avanços da UFRJ. Precisamos de um jornal assim, com uma posição crítica e reflexiva.

Nesse sent ido, venho como coordenador geral do nosso CA pedir, se possível, o envio do Jornal da UFRJ para melhor formação e esclarecimento dos nossos alunos, pois carecemos muito de boa informação, visto que a maioria dos jornais faz espetáculos ao invés da notícia. Nossos estudantes saem com uma visão muito limitada do curso tornando-se profissionais ocos.

Certos de sua compreensão e melhor integração entre as instituições, desde já agradeço e deixo o endereço para possível postagem.

Rodrigo ErdmannCentro Acadêmico de Engenharia

Ambiental (CAEA-Uepa)Executiva Nacional dos Estudantes de

Engenharia Ambiental

Sou leitor assíduo do Jornal da UFRJ. Antes de tudo, gostaria de cumprimentá-los pela excelente série de reportagens sobre o nosso ano negro brasileiro. Realmente muito informativo e com certeza ajudará quem ainda está para fazer parte do nosso corpo discente no vestibular. Sempre levo um para casa de modo que toda minha família possa desfrutar do jornal.

Mas o motivo dessa mensagem se estende a um pedido. Eu, bolsista PIBIC/UFRJ, assim como centenas de outros bolsistas do PIBIC/UFRJ, ficamos com o recebimento de nossas bolsas atrasado, de outubro a novembro. As informações dadas a nós, nas vezes em que tentamos obter alguma diretamente com a PR-1 (Pró-reitoria de Graduação) ou com a Ouvidoria, nunca eram satisfatórias, chegando, inclusive, a ser mandado um e-mail aos bolsistas com uma data para o depósito (27/11), coisa que não aconteceu.

Como este, segundo matéria do próprio jornal, é o meio de comunicação interna mais acessado pela comunidade da UFRJ, pediria que alguma coisa fosse veiculada nos próximos números.

Fábio Figueiredo de OliveiraLaboratório de Doenças

Neurodegenerativas (LDN)Instituto de Bioquímica Médica

(IBqM-UFRJ)

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Janeiro-Fevereiro 2009 UFRJJornal da

3Janeiro-Fevereiro 2009

Coryntho Baldez

Trabalho

Velhos e novos direitos do trabalho

Depois de sofrer lenta pre-carização nos últimos 30 anos, o mundo do traba-

lho se depara, agora, com a ameaça de uma crise mundial sem paralelo na trajetória do capitalismo. Segundo a Organização Internacional do Tra-balho (OIT), 20 milhões de pessoas poderão perder o emprego até o fim de 2009, elevando – pela primeira vez na história – o número global de desempregados para mais de 200 milhões. Em cálculo que levou em conta as estimativas de crescimento da economia feitas pelo Fundo Monetá-rio Internacional (FMI), a OIT prevê, ainda, que os salários subam apenas 1,1% em 2009, média bem inferior ao patamar de 1,7% registrado em 2008. A entidade, contudo, não descarta a redução de salários em alguns países, até mesmo em economias maiores.

Neste momento de incertezas, o debate sobre o futuro de uma legislação social ainda de largo alcance em muitos países do mundo foi o que motivou a realização do seminário internacional

Especialistas recuperam a história das conquistas trabalhistas e debatem a necessidade de manter e ampliar proteção legal diante da crise mundial.

“Velhos e novos Direitos do Trabalho. Diálogo Brasil–Itália”, que aconteceu nos dias 27 e 28 de novembro, no Sa-lão Nobre do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, com a presença de conferencistas nacionais e estrangeiros. O evento recuperou a memória dos direitos trabalhistas e refletiu acerca dos impactos sociocul-turais da atual configuração do traba-lho, que inclui as chamadas atividades atípicas, a fragmentação produtiva, a redução do emprego industrial e as novas formas de regulação.

“No Brasil, apesar das propostas de desregulação das relações de trabalho, ainda vigoram conquistas trabalhistas importantes”, destacou, na abertura do seminário, Elina Pessanha, pes-quisadora e professora do Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ), núcleo de pesquisa do Pro-grama de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS, que organizou o seminário, ao lado da Associação Anita e Giuseppe Garibaldi-RJ e da revista Fórum Democrático. Segundo ela,

o avanço neoliberal dos últimos anos desregulou processos de contratação e de negociação da jornada de traba-lho, mas falhou ao buscar impor, em 2001, o “negociado” sobre o “legislado”, uma tentativa de fazer com que o acor-do direto entre patrão e empregado valesse mais do que a própria lei. A proposta foi arquivada no início do governo Lula.

Paola Cappellin, professora que também integra o AMORJ, ressaltou a importância deste tema na atual conjuntura de economia mundializada e lembrou que a consolidação da cida-dania social – núcleo central da Cons-tituição de 1988 – foi enunciada na contramão do pensamento neoliberal, hegemônico no mundo desde o final da década de 1970. No entanto, advertiu que a política social brasileira, desde o início dos anos 1990, vem sendo sub-metida a tensões entre dois paradigmas antagônicos: o embrionário Estado de Bem-Estar Social versus o Estado Mínimo. “As divergências oscilam entre os lemas da universalização dos

direitos sociais e o da focalização das ações públicas, entre a reformulação reguladora do Direito do Trabalho e a desregulamentação e a flexibilização”, comentou a pesquisadora.

De acordo com ela, o seminário buscou oferecer um contraponto à agenda conservadora, repensando o desafio da renovação do Direito do Trabalho de uma perspectiva compa-rada – no Brasil e na Itália – e discutir como a atual conjuntura impacta o mundo do trabalho.

Construindo direitosO Jornal da UFRJ acompanhou

algumas das exposições, entre elas a de Stefano Musso, do Departamento de História da Universitá degli Studi di Torino e membro da Fondazione Di Vittorio. Ele lembrou que inúmeros novos princípios ligados ao Direito do Trabalho foram afirmados, na Itália, antes da I Guerra Mundial. Na época, a legislação social foi pensada como uma forma de proteger e tutelar a parte fraca da relação contratual: o trabalhador.

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4 Janeiro-Fevereiro 2009Janeiro-Fevereiro 2009Trabalho

Durante a guerra, a estratégia refor-mista deu um passo adiante, segundo Musso, com a criação de instâncias li-gadas à indústria para apoiar o esforço de produção bélica. Foi nesse período que surgiram os primeiros organismos tripartites, com a presença de repre-sentantes de associações sindicais de trabalho, dos empresários e do Estado. Os Comitês de Mobilização Industrial então criados tiveram várias funções e, particularmente, aquela de dirimir e julgar confl itos que poderiam surgir em empresas declaradas auxiliares do Exército e mobilizadas para o esforço bélico. “Nestas empresas, o direito de greve não era reconhecido”, frisou o pesquisador italiano.

Para Musso, esta experiência de mediação sistemática das controvérsias de trabalho entre sindicatos e organi-zações empresariais nos Comitês de Mobilização foi apontada como posi-tiva tanto por sindicalistas reformistas como por empresários. Entre as duas guerras mundiais, esta experiência prosseguiu e representou a primeira tentativa de institucionalização de relações industriais. “Nessa época,

houve avanços na legislação social. Pela primeira vez, foram introduzidos o seguro obrigatório por invalidez e velhice, antes apenas facultativo, e o seguro desemprego para operários industriais”, observou o historiador. Mas todos esses avanços, que surgiram tarde, e em um período de enormes tensões sociais e políticas, foram ani-quilados com a chegada do fascismo, período no qual, para Musso, “todos os organismos que previam a partici-pação de representantes de livres as-sociações de trabalhadores não foram aceitos. A legislação criada depois da I Guerra Mundial foi substituída por outro sistema”.

A lei fundamental para o ordena-mento dos sindicatos no fascismo, de abril de 1926, traduziu em diretriz legal um acordo assinado, no ano anterior, entre sindicatos fascistas e organiza-ções empresariais – este acordo assi-nado passou a ter valor de lei, sendo estendido a todas as outras relações de trabalho.

Outras normas foram estabelecidas pelo fascismo para tutelar o trabalho independente. A mais rígida de todas

foi introduzida em 1938: a que tornava a greve um crime. Após a II Guerra Mundial, com a queda do regime de Mussolini, o sindicalismo livre re-nasceu.

Entre as realizações do reformismo sindical após a I Guerra, Musso cita o primeiro contrato nacional de traba-lho prevendo jornada diária de oito horas: “foi uma conquista histórica para o movimento internacional dos trabalhadores, obtida sem uma única hora de greve porque o que se buscava era refrear os impulsos reivindicativos nascidos das tensões da guerra”.

Por fim, ao comentar a famosa Carta del Lavoro (Carta do Trabalho) fascista, Stefano Musso afi rma que ela não fez nada mais do que transpor para o campo do Direito Público o que antes era produzido pelas dinâmicas e dialé-ticas relações entre as partes sociais.

Proteção tardiaEm sua exposição, Hugo Melo Fi-

lho, presidente da Associação Latino-americana dos Juízes do Trabalho (ALJT), afi rmou que, quando se quer “desqualifi car a tutela estatal sobre o

trabalhador brasileiro”, repete-se que os direitos sociais trabalhistas são uma cópia mal feita da Carta del Lavoro e foram outorgados pelo presidente Getúlio Vargas. “Isso é uma lenda que não resiste a qualquer análise sobre a evolução dos direitos do trabalho no Brasil”, asseverou Melo Filho, para quem não existe outorga de direitos so-ciais, que invariavelmente dependem de conquistas dos trabalhadores.

Para o juiz, em especial no período varguista, o projeto era conservar a he-gemonia da burguesia industrial urbana, um objetivo que aponta como contradi-tório com a perspectiva de concessão de direitos. “Se examinarmos a história dos direitos do trabalho, notamos que, já no início do século XIX, na Europa, os tra-balhadores reunidos em organizações embrionárias tiveram que travar lutas sangrentas contra o status quo para alcançar direitos mínimos”, afi rmou Melo Filho. No caso brasileiro, o pre-sidente da ALJT frisou que o Direito do Trabalho aparece com um século de atraso em relação a países como Ingla-terra e França, em vias de industrializa-ção já no início do século XIX.

Sociólogo italiano mantém esperança de que as aspirações humanas possam se realizar por meio do trabalho.

Jornal da UFRJ: Como as mudanças no mundo do trabalho, nas últimas décadas, repercutiam sobre as classes trabalhadoras?Enzo Mingioni: Em primeiro lugar, é preciso dizer que houve o crescimento do nú-mero de trabalhadores. Pensava-se que, com o desenvolvimento industrial dos últimos anos, haveria uma redução do número de trabalhadores, mas isso não aconteceu. Pelo contrário. Há 20 anos, havia na Itália 19 milhões de trabalhadores e, hoje, esse número chega a 24 milhões.

Jornal da UFRJ: A idéia de que o trabalho tradicional estaria em crise, então, não seria uma hipótese correta?Enzo Mingioni: Não é correto pensar que o trabalho está em crise. O trabalho sempre

foi heterogêneo, sempre teve diferentes formas. Algo importante é que as mulheres entraram no mundo do trabalho. Existem

muito mais mulheres que trabalham. Do meu ponto de vista, esse é um fator

positivo e emancipatório, tanto em relação à posição da mulher como para o conjunto da sociedade.

Para onde caminha o mundo do trabalho?Intelectual de vasto trânsito internacional, o sociólogo do trabalho Enzo

Mingioni, professor da Faculdade de Sociologia da Universidade de Milão, foi um dos conferencistas do seminário Velhos e novos Direitos

do Trabalho. Diálogo Brasil–Itália. Em um dos intervalos do evento, concedeu entrevista exclusiva ao Jornal

da UFRJ. Sem revelar ceticismo face às mudanças produtivas, apontou alguns fatores que podem contribuir para libertar o trabalho de sua dimensão degra-dante, como a maior presença das mulheres no mercado e o intenso debate que

se trava para regular as chamadas “formas atípicas de trabalho” surgidas nas últimas décadas.

“Se examinarmos a história dos direitos do trabalho, notamos que, já no início do século XIX, na Europa, os trabalhadores reunidos em organizações embrionárias tiveram que travar lutas sangrentas contra o status quo para alcançar direitos mínimos.”

Hugo Melo Filho

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Janeiro-Fevereiro 2009 UFRJJornal da

Janeiro-Fevereiro 2009 5Trabalho

Segundo Melo Filho, os direitos do trabalho no Brasil surgiram, em primeiro lugar, na sua dimensão coletiva. Com a proibição do tráfi co de escravos, na segunda metade do século XIX, trabalhadores europeus, notadamente italianos, vieram para o Brasil para trabalhar nas lavouras de café do Rio de Janeiro e de São Paulo. “Eles vinham de uma experiência mais avançada na esfera do sindicalismo e provocaram uma agitação desconhe-cida no Brasil em um momento em que a nossa economia era baseada no trabalho escravo”, frisou o juiz. Esses trabalhadores formaram as primeiras ligas e uniões de operários, especial-mente a partir de 1870. Em sua origem, os direitos trabalhistas no Brasil foram marcados por essa atuação coletiva, uma infl uência direta dos trabalhado-res europeus. “Para se ter uma idéia, em 1900, havia no estado de São Paulo 50 mil operários, sendo 10% brasileiros e 90% estrangeiros. Desses últimos, a esmagadora maioria era de italianos”, observou Melo Filho, afi rmando que essa atmosfera social não foi trans-posta para a primeira Constituição brasileira, de 1891. Ela não trata de direitos sociais, limitando-se a assegu-rar o exercício de profi ssões, mas sem regulá-las e nem defi nir “que tutelas os trabalhadores teriam em decorrência destas atividades”.

Mas foi essa luta embrionária dos trabalhadores, ainda no fi nal do sécu-lo XIX, que produziu, segundo ele, a primeira norma de intervenção nos acordos para conter o poder econô-mico coercitivo. Trata-se do Decreto 1313, editado também em 1891. “Ele tinha o objetivo de limitar a possibili-dade de exploração da mão-de-obra infantil. Crianças com menos de 14 anos não poderiam ser admitidas e aquelas acima dessa idade passaram a ter jornada de até 9 horas. Passou a haver também fi scalização das fábricas em que a mão-de-obra infantil era uti-lizada. Tudo isso não existia antes no Brasil e corresponde ao que aconteceu na Inglaterra quase um século antes”, destacou o presidente da ALJT.

Hugo Melo ressalta, ainda, que a Constituição de 1934 foi avançadís-sima no que concerne aos direitos do trabalho, embora se fale muito que a Carta Magna promulgada em 1988 tenha sido pródiga na distribuição de direitos sociais. O juiz afi rma que a maioria das conquistas consagradas em nossa Constituição já tem mais de 70 anos, como a jornada de oito horas diárias, as férias e o repouso semanal remunerado, a aposentadoria e a pro-teção ao trabalho da mulher e do me-nor. Durante a ditadura militar, esses direitos sofreram diversas limitações e reduções, sendo a principal delas a

completa inibição dos movimentos sindicais. “Quando os trabalhadores não podem exercer o direito de greve e de sindicalização, os seus direitos indi-viduais não serão observados, fi carão no papel. E isso vale até hoje. Muitos sindicatos estão esfacelados. Por isso, na verdade, não fazem acordos, mas se submetem à coação econômica por parte do empregador”, completou Melo Filho.

Novas tutelasSayonara Grillo Coutinho, pro-

fessora da Faculdade de Direito (FD) da UFRJ, foi uma das expo-sitoras da mesa que debateu as experiências recentes em defesa do direito do trabalho. Logo no início, assinalou que houve um crescimen-to de formas atípicas de trabalho como expressão da ampliação de práticas voltadas para escamotear as relações de emprego e que prolife-raram no atual estágio do chamado modelo de produção flexível. Entre essas novas formas, destacou a não aplicação da legislação laboral por força do mero descumprimento das leis ou por força de exclusão norma-tiva e os trabalhos independentes em condições de dependência.

No Brasil, a crise do paradigma tradicional do trabalho, segundo Sayonara Grillo, levou à flexibiliza-

ção e à proliferação de contratos atí-picos e inaugurou um debate acerca de novas tutelas, especialmente no tocante à “parassubordinação” – que estaria além da subordinação carac-terística do vínculo de emprego tra-dicional. Como exemplo, lembrou do projeto de lei das cooperativas, que tramita no Congresso Nacio-nal. Citando Otávio Pinto e Silva, acentuou que o desenvolvimento dessa modalidade de trabalho está em sintonia com as tendências do mundo empresarial, de recurso às terceirizações e trabalhos temporá-rios. “Cresce o fenômeno da ‘pejo-tização’, um neologismo da sigla PJ, que é a pessoa jurídica”, explicou Sayonara.

Hoje, a defesa do direito do trabalho, segundo a professora da UFRJ, deve envolver uma série de ações, como o resgate do seu papel como meio de proteção e a resistên-cia aos ataques que vem sofrendo, tanto no plano político como no normativo.

Sayonara Grillo também elen-cou algumas inovações recentes no plano judicial, que chamou de novas tutelas para antigas deman-das. Entre elas, as condenações por assédio moral, os dissídios coletivos e a responsabilidade civil por danos causados no ambiente de trabalho.

Sociólogo italiano mantém esperança de que as aspirações humanas possam se realizar por meio do trabalho.Sociólogo italiano mantém esperança de que as aspirações humanas possam se realizar por meio do trabalho.Para onde caminha o mundo do trabalho?

Jornal da UFRJ: A retração do operariado fabril levaria à perda de importância do trabalhador tradicional como agente de mudanças sociais?Enzo Mingioni: Acho que não. Trata-se apenas de uma construção mental. Pensava-se que esses atores sociais, os trabalhadores, eram elementos e sujeitos de grandes transformações. Isto porque viviam uma situação de alienação e de sofrimento e poderiam se tornar os motores das mudanças. Hoje, é preciso separar as condições de alienação e sofrimento da capacidade de transformação. Portanto, esses atores, mesmo estando em trabalhos que comportam situações de alienação, têm à disposição outros elementos que lhes permitem se tornarem fatores de mudança a partir de outras formas de participação na sociedade.

Jornal da UFRJ: Com a crise global, o desemprego deve aumentar em todo o mundo. O senhor veria os Estados, de modo geral, predispostos a direcionar sua atenção também para o trabalho e não apenas para o capital?Enzo Mingioni: O primeiro passo dos Estados foi apoiar o capital fi nanceiro. A perspectiva era de que se a crise dos bancos fosse aprofundada isto teria atingido imediatamente todo o setor produtivo, tanto as empresas como os trabalhadores. O segundo passo, talvez, possa alcançar uma proteção também dos trabalhado-res, embora não existam ainda sintomas disso. Mas quando o presidente eleito dos Estados Unidos, Barack Obama, diz que pretende disponibilizar U$ 700 milhões para incentivar o crédito, ele muito provavelmente está pensando tanto no setor produtivo como no consumo dos trabalhadores.

Jornal da UFRJ: Em face da perda do vínculo de emprego tradicional, com di-reitos trabalhistas mínimos assegurados, e o surgimento de formas desreguladas de trabalho, a tendência do Direito do Trabalho seria rebaixar o seu patamar de proteção e se adaptar às novas condições?Enzo Mingioni: A princípio, não é seguro que isto aconteça. Na Itália, por exemplo, o trabalho tradicional continua protegido. Os contratos por tempo

indeterminado continuam mantendo todo o seu sistema legal de di-reitos. Tanto isso é verdade que não vingou a tentativa de modificar a atual situação com a introdução na Constutição do artigo 18, proposto durante o governo Berlusconi, que permitia às empresas a dispensa imotivada, sem justa causa. Mas há uma série de outros contratos no-vos, formas novas de trabalho, para as quais ainda não se encontraram sistemas adequados de proteção. Portanto, nesse momento, existe uma discussão acerca das melhores formas de dar proteção a esses trabalhos atípicos. Eles são muito diferenciados, heterogêneos e precisam de sis-temas capazes de responder a cada um deles.

Jornal da UFRJ: É possível caminhar para um modelo de sociedade em que o trabalho tenha uma dimensão emancipatória do homem ou prevalecerá ainda durante bastante tempo a sua forma alienante? Enzo Mingioni: Eu não sou pessimista e nem otimista. Alguns países poderiam servir como uma espécie de modelo, pois caminham na dire-ção de uma situação de satisfação, de emancipação. Em que sentido? No sentido de que quem trabalha tem o seu âmbito de proteção, uma relação de mútuo respeito e, no seu entorno, há uma série de possibilidades de poder mudar de trabalho, estudar, crescer profissionalmente e realizar suas aspirações. Ao mesmo tempo, em outro âmbito do trabalho, temos a China. Lá existem bilhões de trabalhadores vindos do campo, entrando nos processos industriais de produção e que se encontram em situações em que, por enquanto, não podem ter grandes aspirações a realizar. Mas também já se configura uma preocupação com esse tipo de trabalho por parte do governo chinês, que talvez comece a desenvolver algum sistema de regulação e proteção que caminhe para uma emancipação. Existem processos em andamento. Talvez possamos ser um pouco mais otimistas, pois temos clareza das ações e mudanças a serem feitas.

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Janeiro-Fevereiro 2009UFRJJornal da

6 Janeiro-Fevereiro 2009Janeiro-Fevereiro 2009

Rodrigo Ricardo

Desafios

Ensino

Vestida de azul e branco/ trazendo um sorriso fran-co/ no rostinho encanta-

dor,/ minha linda normalista”. A canção de 1949, composição de Benedito Lacerda e David Nasser, retrata um tempo de amores es-condidos e do sonho de se tornar professora. Os “anos dourados” passaram, assim como as belda-des do Instituto de Educação (IE) que namoravam os secundaristas dos colégios Pedro II ou Militar, pelas esquinas da Tijuca. Criado por Anísio Teixeira em 1932, o IE acabou transformado em Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro (Iserj). Com a modifica-ção, veio o fim do curso Normal Médio. A medida atende à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9394/96), que prevê formação superior para os docentes das séries iniciais. Con-tudo, a legislação ainda admite as escolas de Ensino Normal. Segun-do a Secretaria Estadual de Edu-cação (SEE), na rede fluminense de ensino são 95 escolas com cerca de 40 mil alunos. Entre os educadores há controvérsias e eles avis-tam outros d r a m a s p a r a o s que se ar-r i s c a m a lecionar.

“Não é o nó pr imor-dial e sim um dos estrangula-mentos importan-tes da área”, analisa Ana Maria Monteiro, professora e di-retora da Faculdade de Educação (FE) da UFRJ, criticando as pre-cárias condições de trabalho, além das salariais, oferecidas ao corpo docente. “O professor precisa tra-balhar em mais de uma escola e acaba exposto a problemas vocais e ao estresse, após cumprir uma carga de 50 ou 60 horas ao longo

da semana. Sem tranqüilidade, o profissional relaciona-se mal com os estudantes, em especial com os adolescentes que têm em si uma natural rebeldia. Antes eram im-pensáveis atitudes violentas entre alunos e professores, mas hoje, esses casos acontecem”, constata a diretora, que aposta em uma

formação mais con-sistente no desen-

volvimento dos p r i m e i r o s

anos esco-lares: “há q u e m defenda o Nor-

mal por ser ne-cessário e p o r c umpr ir uma fun-ção. Entre-tanto, minha opinião prof is-sional é a de que se deve caminhar numa pers-pectiva, em médio e longo prazos, em direção à recomendação da LDB, após 12 anos de sua exis-tência”.

Na rede estadual, o professor recebe R$ 607,26 para uma jor-nada de 16 horas semanais, uma

compensação longe da ideal ao magistério, ofício que envolve conhecimento e valores. “É pre-ciso sensibilidade ao lidar com as diferenças presentes e entendê-las sem discriminação para estabe-lecer diálogos”, afirma a diretora Ana Maria, destacando que a universidade precisa atuar no apoio aos professores. “Ela tem feito isto, há o Projeto Fundão que

completou 25 anos , p o r é m , p r e c i s a

fazer mais. O conceito de

reciclagem é inapro-p r i a d o , pois não s e ap a -n h a o p r o f e s -sor como

um mate-r i a l p a r a

aproveitá-lo em outra coi-

sa . O correto é formação contínua,

algo inevitável”, ressalta a professora.

Uma das mais antigas ativi-dades de Extensão da UFRJ, o Projeto Fundão é um esforço para melhorar a Educação nacional. Outrora, a iniciativa capacitava profissionais de Física, Geografia, Química, Biologia e Matemática. Hoje, restringe-se a atender as duas últimas áreas. Na quadra-genária Faculdade de Educação, as 26 licenciaturas enviam 1.200 alunos por ano para um estágio final (Prática de Ensino) às esco-las. “Nessa hora, muitos profes-sores ficam inseguros diante do aluno atualizado e da UFRJ, uma insígnia ainda respeitada. A nossa intenção é chamá-los para parti-cipar do curso de especialização Saberes e Práticas na Educação Básica e criar um ciclo”, planeja a diretora.

O curso de pós-graduação lato sensu, iniciado neste ano, con-templa 470 horas, é gratuito, tem

à educação

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7Janeiro-Fevereiro 2009 Ensino

turmas para docentes de História, Educação Física, Alfabetização e Políticas Públicas e com foco nos professores das escolas públicas. Em 2009, o projeto, em colabo-ração com o Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) e o Colégio de Aplicação (Cap), será ampliado para Geografia, Educa-ção de Jovens e Adultos e Língua Portuguesa.

TransformaçãoSônia de Castro No-

gueira Lopes , pro-f e s s o r a d o D e -p a r t a m e nt o d e Administ ração Educacional da FE, recorda que ao terminar o curso Normal, o professor in-gressava direta-mente na rede de ensino. “Com 17 anos, assinei o meu termo de posse ainda pelo Estado da Guanaba-ra. Com o fim dessa perspecti-va, entre 1968 e 1969, o disputado concurso de ingresso no Instituto de Educação passou a ter menor demanda. No final dos anos 1970, decidiram que a matrícula nas escolas normais devia ser para estudantes carentes. O perfil da normalista alterou-se. Não é que as camadas pobres deterioraram o ensino, mas não houve uma po-lítica direcionada para se cuidar da qualidade”, avalia Sônia, que é doutora em Educação, especialista em História da Educação e Edu-cação Brasileira.

Autora da tese “Ensino de mes-tres: história, memória e silêncio sobre a escola de professores do IE”, Sônia Lopes esclarece que as metrópoles até conseguiriam suprir a preferência, prescrita pela LDB, de professores das sé-ries inicias com diploma de nível superior, contudo, a prerrogativa ainda mostra-se incapaz de alcan-çar a realidade brasileira. “Com-pletamente inviável. Em muitos lugares, os professores ainda são leigos. Por outro lado, o Normal Médio, para continuar, precisa passar por uma verdadeira trans-formação. Mesmo os cursos nor-mais superiores, não sei até que ponto precisam ser reformulados, falta-lhes maior formação teórica. Também não vejo as faculdades de Pedagogia preparando bem os professores, pois falham na parte prática”, avalia a professora.

As últimas deliberações do Conselho Nacional de Educação (CNE), segundo Sônia Lopes, apontam que os institutos normais

s up e -r i o r e s

t r a n s f o r -mem-se em faculdades

de Pedagogia. ”A vocação daqu e l a c a s a é f o r m a r p r o f e s s o r e s . O criador do IE, Anísio Teixeira, acreditava que nada aconteceria se não fosse através do aperfeiço-amento do magistério em todos os níveis – este era o seu compro-misso – e, muito antes da LDB, já acenava com esta possibilidade. Anísio fundou a Universidade do Distrito Federal (UDF), na qual se formavam professores primá-rios em cursos superiores de dois anos, além da complementação pedagógica para outras discipli-nas”, rememora a pesquisadora, explicando que a UDF teve uma curta existência, aproximadamen-te três anos, sendo extinta para que não competisse com a então Universidade do Brasil, atualmen-te UFRJ.

Na FE-UFRJ, a graduação de Pedagogia também forma pro-

fissionais para atuar na Educa-ção Infantil e nas séries iniciais do Ensino Fundamental, além daquele que forma o professor do Ensino Normal. “Nesta fase, ensina-se o homem a ler o mundo, inserindo-o na cultura com os elementos simbólicos, matemáti-cos e eventos históricos”, diz Íris Rodrigues de Oliveira, coordena-dora do curso de licenciatura em Pedagogia da FE-UFRJ. Porém, segundo ela, ”agora, o aluno não vem para a escola para se tornar cidadão, pois já o é a partir do momento em que nasce”, filosofa a pesquisadora, que se assusta com a possibilidade de “pessoas despreparadas” atuarem no deli-cado espaço educacional.

Segundo Íris, a mão-de-obra nas salas de aula precisa ser ex-tremamente qualificada, porém, não se deve impedir a ninguém o desejo de ser professor. ”Certo, vamos exigir o diploma superior de todos para, pura e simples-mente, deixar popula-ções inteiras sem professores?”, i r o n i z a a professo-r a p a r a q u e m , “ p o d e ser uma utopia, m a s

poderíamos criar a f igura do professor auxiliar de ensino, com a obrigação de se qualificar pos-teriormente. Vivemos no Brasil e não na Suíça. O alunado se esforça para estudar, mas pesa a questão da sobrevivência”.

Questão de QuímicaOutra novidade na UFRJ, com

início neste segundo semestre, é o curso de especialização no Ensino de Química. A primeira turma contabiliza 21 inscritos, todos professores do Ensino Médio, que estão dispostos a renovar con-ceitos na área, além de descobrir novas metodologias e abordagens. Com duração de 18 meses, a ini-ciativa do Instituto de Química (IQ) da UFRJ funciona sem finan-ciamentos e os inscritos não pagam nada. “Há uma demanda enorme pedindo uma nova turma”, explica Joaquim Fernando Mendes da Sil-va, professor coordenador do curso, ressaltando o ânimo dos partici-pantes para as aulas de quarta-feira à noite e para as de sábado, manhã e tarde: “Impressiona a dedicação e o amor à docência. Há, na turma, de recém-formados a profissionais com 30 anos de magistério. Eles têm necessidade de encontrar alter-nativas e compartilhar angústias – a maior delas é não conseguir dialo-gar com o estudante –, mostrando o lado fascinante da Química e sua conexão com o cotidiano”.

Estima-se que apenas 13% das vagas para o ensino de Química es-tejam ocupadas no estado do Rio de Janeiro. A disciplina também cons-ta entre as de maior aversão junto

aos estudantes. Ecoa, com certo êxito, desde a

década de 1980, o “odeio Quími-

ca”, do gru-po Legião U r b a n a . “Sob essa inspira-ç ã o, n o s i t e d e r e l a c i o -

namentos Orkut , há

c omu n i d a -des que somam

mais de dez mil internautas. O estu-

dante a enxerga assim, por ser transmitida com uma série de fórmulas a serem decoradas”, critica Fernando, pontuando acerca dos co-mentários dos alunos: “Estudar para quê, se o jogador de futebol ganha milhões, sem ter estudado? Existem essas ilusões, alimentadas por pontos completamente fora da curva. Muitos não têm a perspectiva de mudar de vida através do estudo”.Sônia de Castro Nogueira Lopes

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Aline Durães

Recursos coletivos

Hospitais Universitários

Durante muitos anos, os hospitais universitários (HU) foram relegados

a segundo plano pelo Ministério da Educação. Os recursos destinados pelo órgão eram incipientes e não atendiam às necessidades cotidianas. O resul-tado foi um progressivo desgaste das atividades desempenhadas pelos hos-pitais. A falta de concurso público para preenchimento de vagas, por exemplo, levou muitas instituições a contratarem profissionais de saúde terceirizados extra-quadro, utilizando recursos de custeio (reservados, entre outras coisas, para a compra de insumos hospitalares) para o pagamento de pessoal.

Com o intuito de modificar essa realidade e de dar maior transparência à execução orçamentária e financeira dos HU, a Secretaria de Planejamento e Orçamento do Ministério da Educação publicou a Portaria nº 4, de 29 de abril de 2008. Nela, fica estabelecido que os créditos orçamentários para OCC (Outros Custeios de Capital ou despesas correntes e de capital) destinados aos hospitais de Ensino deverão ser empre-gados, única e exclusivamente, nestas instituições, sem passar, antes, pelas universidades das quais fazem parte.

Portaria publicada pelo Ministério da Educação

modifica a forma de financiamento dos

hospitais universitários e abre caminho para

o funcionamento integrado dessas

instituições.

Para o repasse direto ocorrer, no entanto, o Ministério determinou que os HU se transformassem em unidades orçamentárias. Enfim, cada hospital de Ensino deve implantar uma Unidade Gestora e Executora (UG).

Para atender à demanda do Ministé-rio, a UFRJ pretende criar o Complexo Hospitalar de Saúde, estrutura adminis-trativa que reúne os nove hospitais da universidade – Hospi-tal Universitário Cle-mentino Fraga Filho (HUCFF), Hospital Escola São Francisco de Assis (Hesfa), Ma-ternidade Escola, Ins-tituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (IPPMG), Instituto de Neurolo-gia Deolindo Couto (INDC), Instituto de Psiquiatria (Ipub), Instituto de Ginecologia, Instituto do Coração Edson Abdala Saad (Ices) e Instituto de Doenças do Tórax (IDT).

Em vez de o Ministério da Educação dedicar recursos para cada hospital separadamente, a UFRJ optou por instituir um órgão que terá a incum-bência de receber as verbas do governo

e repassá-las às unidades hospitalares. “O Complexo Hospitalar é uma superestrutura administrativa que vai funcionar para resolver alguns problemas comuns dos hospitais, tanto na área administrativa quan-to nas áreas de planejamento e de negociação. Os hospitais, porém, preservam sua autonomia”, explica Marcelo Land, diretor do IPPMG.

Com a criação do Complexo, o Mi-nistério da Educa-ção poderá conhe-cer mais a fundo os hospitais de ensino da UFRJ. “Durante muito tempo, fo-mos considerados instituições pro-blemáticas para a administração do

Ministério, porque os hospitais eram extremamente onerosos. Não havia uma atenção especial para eles. Essa portaria é um esforço do governo e das universidades de começar a dar uma solução para os nossos problemas. A criação da unidade orçamentária permite que os re-cursos de cada hospital sejam vistos

com clareza. Num futuro próximo, poderemos saber quantas pessoas estão trabalhando nos hospitais, quais são os recursos e de onde eles vêm”, pontua Land, que também é professor do Departamento de Pediatria da Fa-culdade de Medicina (FM) da UFRJ.

Na prática, existirão duas unidades orçamentárias na UFRJ: uma vincu-lada especificamente ao Complexo Hospitalar de Saúde e outra relacio-nada aos demais institutos, faculdades e escolas da universidade.

A implantação do Complexo possibilitará melhor administração das verbas, facilitando, em última instância, o funcionamento dos hos-pitais. Para Alexandre Pinto Cardoso, diretor do HUCFF, a nova forma de financiamento pode promover o aten-dimento imediato das necessidades destas unidades. “Encontramos pro-blemas quando nossos créditos são repassados para a Reitoria, pois há certa dificuldade de identificar quais são os nossos. Este tempo — entre a identificação e o repasse — gera transtornos no dia-a-dia do hospi-tal”, aponta o diretor, professor do Departamento de Clínica Médica da FM.

Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (IPPMG) – Aquário Carioca, espaço para tratamento de crianças com câncer.

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9Janeiro-Fevereiro 2009 Hospitais Universitários

Em 2004, peritos do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG) e do Ministério da Educação e da Saúde (MS) com-pareceram aos hospitais de ensino para fazer um levantamento de suas condições. Verificaram, entre outras questões, se as unidades produziam Ensino e Pesquisa; verificaram, também, o número de atendimentos que realizavam diariamente. Depen-dendo da avaliação da comissão, o hospital era certificado junto ao Ministério da Saúde ou não. No parque de hospitais da UFRJ, so-mente foram certificados o HUCFF, o IPPMG, o IPUB e a Maternidade Escola. Nesse sentido, a mudança no modelo de financiamento bene-ficia, principalmente, os hospitais de menor porte que não receberam certificação do MS. “Muitas dessas unidades, até hoje, passam por dificuldades por estarem isoladas, mesmo que façam trabalhos muito interessantes”, sublinha Alexandre Cardoso.

A estruturaAs universidades tiveram até o

dia 31 de dezembro de 2008 para realizarem a transferência dos sal-dos contábeis registrados na UG da instituição, referentes aos bens patri-moniais inerentes aos hospitais uni-versitários, para a respectiva UG.

Embora a UFRJ já tenha criado uma unidade orçamentária espe-cífica para os HU, o Complexo Hospitalar de Saúde e sua forma de funcionamento ainda está em discussão. Questões como a estru-turação do Complexo e sua localização ainda precisam ser decididas.

Idéias, no entanto, não faltam. Por enquanto, prevalece a de que o Comple-xo deve ser composto de um colegiado diretor, integrado pelos hospitais da rede da UFRJ; de uma superintendên-cia, que seria responsável pela recepção e repasse das verbas; duas secretarias, de Orçamento e de Planejamento e Gestão; e de um colegiado pleno, composto pelas unidades do Centro de Ciências da Saúde (CCS) e presi-dido pelo decano deste centro. “Este colegiado pleno se reuniria pelo menos duas vezes ao ano para traçar a política geral. Ficaria no CCS, mas com uma estrutura diferente. A Decania faria sua vinculação com a Reitoria”, opina o diretor geral do HUCFF.

Alexandre Cardoso ainda destaca a importância de o novo órgão, que poderá ter uma existência apenas virtual, sem sede física, ser ágil e evitar burocracias: “Não queremos uma estrutura apertada, burocráti-ca, que repita o que já existe hoje. Se formos criar uma estrutura pesa-da, pouco ágil, que não atenda aos interesses da atividades fim, não avançaremos”.

Rumo à integraçãoAlém dos benefícios no que tange ao

financiamento, a implantação de uma rede hospitalar na UFRJ possibilitará maior integração entre os hospitais de ensino da instituição. Hoje, essas unidades ainda funcionam de forma desconectada, o que provoca, muitas vezes, duplicação de esforços, de recursos humanos e de materiais.

Para Alexandre Cardoso, a integração é o ponto mais importante a ser discutido e promovido com o Complexo. “É funda-mental que nós trabalhemos efetivamente como uma rede, do ponto de vista acadê-mico, inclusive, atendendo aos interesses da universidade, gerando ensino, pesquisa e extensão. É para isso que existimos. Nós temos hospitais com perfis diferentes que podem se complementar, mas é impor-

tante que a gente estabeleça os critérios acadêmicos para que possamos trabalhar em rede”, salienta o dirigente.

Nesse sentido, Alexandre Cardoso tem algumas sugestões para, aproveitan-do a ocasião da criação do Complexo, promover a aproximação das unidades de saúde da UFRJ. Em sua opinião, a UFRJ precisa de um Instituto da Mu-lher. Esse instituto, segundo Cardoso, poderia ser formado, por exemplo, pela união do Instituto de Gineco-logia com a Maternidade Escola. O diretor sugere, também, vínculos mais estreitos entre o Instituto de Neurologia Deolindo Couto e o Setor de Neurologia do HUCFF.

Marcelo Land também enfatiza que, embora não se possa dizer que atualmente os hospitais sejam fragmentados, eles, de fato, não se intercomunicam de forma ampla. “Temos que começar a discutir a questão dos hospitais universitários. Todos os problemas estão vindo à tona e essa é a hora de resolver, sob pena de os hospitais universitários brasileiros sucumbirem. Se não tivermos uma po-sição clara de qual valor o Brasil dá para esses hospitais, vamos continuar neste quadro que vivemos nos últimos anos: falta de atenção que levou o sistema a, gradativamente, ir se deteriorando. Os hospitais precisam ter tranqüilidade e financiamento adequado para responder aos desafios que o país coloca, inclusive no setor econômico da saúde, que, por ser um setor extremamente competitivo e gerador de emprego, precisa estar forta-lecido”, afirma o professor.

Para Land, cabe também à comu-nidade universitária discutir e propor o modelo ideal de hospital de ensino: “O Complexo é o espaço onde esse debate pode ser feito. A melhoria dos hospitais vai se converter, no fim, em melhorias para a população”, finaliza o diretor do IPPMG.

William Santos

Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF) – Setor de tomografia computadorizada.

Maternidade Escola – Projeto Mãe Canguru.

Marco Fernandes

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Vanessa Sol

Mudanças na graduação

Em maio de 2007, o reitor Aloísio Teixeira instituiu uma comissão para anali-

sar o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), lançado pelo Mi-nistério da Educação em 15/3/2007. O relatório desta Comissão, aprovado pelo Conselho Universitário (Consuni), deu início à elaboração do Plano de Rees-truturação e Expansão (PRE) da UFRJ. Entre as orientações constantes do relatório, uma apontava para mudanças nos regulamentos: que “o Conselho de Ensino de Graduação (CEG) e poste-riormente o Consuni revejam a legis-lação apropriada, como regulamentos e procedimentos de gestão acadêmica e conselhos de cursos, em particular prevendo a implantação de cursos in-terunidades ou intercentros”.

Para dar agilidade ao processo, foi criada, em agosto de 2007, a Comissão de Sistematização do CEG e é por ela que estão sendo propostas resoluções para melhorar tanto a vida acadêmica dos estudantes quanto a acadêmico-administrativa, na instituição.

Até o momento, já foram apro-vadas, nas sessões do colegiado, três resoluções. A primeira visa o apri-moramento da política de Assistência Estudantil. Na sessão extraordinária de 27 de fevereiro de 2008, foram aprovadas as novas normas para a concessão e renovação das bolsas de auxílio oferecidas pela universidade, exclusivamente, aos seus alunos de graduação.

O Conselho de Ensino de Graduação já aprovou este ano, nas reuniões do colegiado, três resoluções que visam minimizar os trâmites burocráticos da vida acadêmica e administrativa da universidade. Entre elas, a unificação das Bolsas Auxílio e Apoio, a criação do

Programa de Bolsas de Estágio em Projetos Institucionais (PBEPI) e alterações nas normas de trancamento de matrícula.

Com a nova resolução, a Bolsa Apoio passou a integrar a modali-dade Bolsa Auxílio. Antes, elas coe-xistiam, basicamente, com a mesma função, porém, com nomes diferen-tes. A unificação não interferiu no quantitativo de bolsas oferecidas, que permaneceu igual (1.500 bolsas por ano), com valor referente a uma bolsa de Iniciação Científica.

Além da modalidade Bolsa Auxí-lio, há também a Bolsa Alojamento e Manutenção, na qual o estudante é contemplado com o benefício de moradia no Alojamento Estudantil da UFRJ, mais uma bolsa com valor, também, referente à de Iniciação Científica. Nesse caso, são ofereci-das 504 bolsas, que são concedidas, quando da publicação dos editais, aos estudantes que solicitarem tal benefício e que necessitam preencher os pré-requisitos estabelecidos. O processo seletivo de ambas é de in-teira responsabilidade da Divisão de Assistência ao Estudante (DAE) da Pró-reitoria de Graduação (PR-1).

As duas modalidades, que fazem parte da política de assistência ao estudante, visam garantir o apoio e as condições sócio-econômicas neces-sários à manutenção e à permanência do aluno de baixa renda na UFRJ a fim de que realize, plenamente, suas atividades acadêmicas, culturais, sociais e políticas na instituição.

A segunda resolução aprovada traz as normas para concessão e re-

novação para o Programa de Bolsas de Estágio em Projetos Institucionais (PBEPI). A PR-1 oferece, anual-mente, 100 bolsas desta modalidade que contempla, exclusivamente, estudantes de graduação da UFRJ cuja participação esteja vinculada a atividades e a projetos institucionais de desenvolvimento dos setores da Administração Central da UFRJ. Segundo Ana Maria Ribeiro, repre-sentante dos técnico-administrativos e presidente da Comissão de Sistema-tização do CEG, haverá a necessidade de fazer alterações nas cláusulas deste programa, em função da nova lei de estágio do Governo Federal.

Com a aprovação da terceira reso-lução, foram estabelecidas as normas para o trancamento solicitado e o trancamento automático de matrí-cula. Para o primeiro, o estudante pode solicitar a qualquer tempo, o trancamento, desde que tenha cursa-do, com aproveitamento, no mínimo 12 créditos e não esteja na última metade do período.

O trancamento automático ocor-re quando o aluno não efetua sua inscrição no período estabelecido pelo calendário acadêmico. Antes da resolução, os estudantes que não solicitassem o trancamento e não se inscrevessem em nenhuma disciplina, tinham a matrícula cancelada. Agora, com a nova resolução, a coordena-ção do curso no qual o aluno está matriculado convoca-o a fim de que

regularize sua situação. A Comissão de Orientação e Acompanhamento Acadêmico (COAA) avaliará a jus-tificativa apresentada pelo estudante e poderá autorizar a efetivação da inscrição em disciplinas ou reverter sua situação para o trancamento solicitado.

De acordo com Ana Maria, as mu-danças são essenciais ao processo de reorganização da graduação, além de minimizar a burocracia na vida aca-dêmica e administrativa da UFRJ. Ela afirma, ainda, que esta é uma forma de aperfeiçoamento da ocupação de vagas na universidade buscando eli-minar as ociosas. “Para diminuí-las, pretendemos colocar em discussão, também, o Programa de Ocupação de Vagas Ociosas e Remanescentes (Povoar) que trata desta questão”, declara a conselheira do CEG.

Nos próximos meses, serão discu-tidos o ingresso na UFRJ, a mudança de curso, de campus e de habilita-ção, além da resolução de estágios. Para este último tópico, Ana Maria informa que serão convocados os coordenadores de curso e estágios para que contribuam na formulação da resolução de estágios, curriculares ou não, para o CEG. “É preciso fazer um debate amplo acerca da política de estágios oferecidos pela UFRJ e os coordenadores precisam se engajar nesse processo, pois as mudanças na lei foram muito profundas”, explica Ana Maria.

Universidade

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Alphonse Naggib Sabbagh

Desde criança, quando estudava em um pequeno colégio episcopal da sua cidade-natal, no Líbano, Alphonse Nagib Sabbagh percebia uma forte aproximação entre a vocação religiosa e o magistério. Depois de concluir o seminário, complementando os estudos em Filosofia e Teologia na Europa, não demorou muito para o padre dedicar parte do seu tempo ao seu outro sacerdócio: o acadêmico-cultural. E foi no Brasil, mais precisamente na Faculdade de Letras (FL) da UFRJ, que monsenhor Alphonse fez do seu encontro com a vocação acadêmica uma carreira repleta de realizações; destaque para a criação do Setor de Estudos Árabes da FL e a elaboração do primeiro dicionário português-árabe, uma das mais importantes obras da lexicografia árabe-lusófona editadas no Brasil. As dificuldades de aplicar um método para o ensino do idioma sem um material didático específico foram a sua principal motivação para o dicionário. “Começamos a dar aula de língua árabe, mas não tínhamos manuais, gramáticas nem dicionários do árabe para o português ou do português para o árabe. Começamos na faculdade, em fichas, tudo manuscrito, a reunir as palavras e fazer as traduções. Assim nasceu o primeiro dicionário”, recorda Alphonse.

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12 Janeiro-Fevereiro 2009Janeiro-Fevereiro 2009

Márcio Castilho

Entrevista

Jornal da UFRJ: Sua vocação religiosa despertou então nesta igreja, quando tinha 11 anos?

Alphonse Nagib Sabbagh: Eles acha-vam que talvez eu poderia ser padre. O mosteiro Santíssimo Salvador, no Lí-bano, nas férias, costumava correr as al-deias e as crianças que eles achavam que poderiam ser seminaristas, futuramente padres, levavam para estudar na escola do mosteiro. Os alunos com disposição e vocação para padre continuavam. Os outros eram dispensados, mas estariam formados e com diplomas básicos na mão. Eles me indicaram como candi-dato do mosteiro para bolsas na Europa – o Líbano costuma receber bolsas da Itália, Vaticano, Alemanha, França e Es-panha por causa de sua ligação com os árabes através dos tempos. Então, meu destino foi a França, quando estava no final do secundário.

Jornal da UFRJ: Como foi essa expe-riência na França, em 1938 e depois, durante a II Guerra Mundial?

Às vésperas de completar 90 anos, dos quais 51 residindo no Brasil, monsenhor Alphonse Nagib Sabbagh concede esta entrevista ao Jornal da UFRJ, realizada em sua casa, na rua República do Líbano,

(onde também está situada a paróquia São Basílio), no Centro do Rio, na qual aborda diferentes questões e relembra aspectos importantes da sua trajetória de vida, de sua infância na cidade de Deir El Kamar,

no Líbano, dos primeiros contatos com a religião no seminário do mosteiro Santíssimo Salvador e, posteriormente, na Universidade de Sorbonne, em Paris, no auge da II Guerra Mundial.

Alphonse Nagib Sabbagh mantém uma rotina ativa, combinando atividades em seus dois “sacerdócios”: na vida religiosa, embora aposentado, continua rezando missas e realizando batizados e casamentos

sempre que convidado; no magistério, elabora, com uma equipe de estudantes e professores da Faculdade de Letras, com edição do professor João Baptista Vargens, um novo dicionário, desta vez em versão árabe-

português. A obra poderá ser publicada ainda este ano.

Alphonse Nagib Sabbagh: Fui prin-cipalmente estudar matéria religiosa na Universidade de Estrasburgo, na fronteira com a Alemanha. Depois fui para a Sorbonne, em Paris. Estudei Filosofia, Teologia e, com o tempo so-brando, renovei meus conhecimentos em grego e latim. Para completar o ciclo cultural, fiz também um curso de língua árabe a partir de métodos ocidentais. Foi tudo novo para mim como método de aprendizado. Não fiquei sete anos por causa do estu-do, mas porque a guerra estourou em 1938 e continuou até 1943, na França. Somente consegui voltar para o Líbano em 1945. Passei toda essa parte do tempo estudando. Como estudante estrangeiro, tanto o governo francês como o alemão, naqueles tempos, concediam o cha-mado empréstimo de honra, eram as bolsas para continuar estudando enquanto não podíamos voltar para o nosso país. Entretanto, todo mundo sabia que o empréstimo não seria pago e nunca o foi.

Jornal da UFRJ: Até que ponto essa passagem na França, em um contexto de adversidade, influenciou sua vida pessoal e profissional?

Alphonse Nagib Sabbagh: No tempo em que estudei na França, já havia adquirido o que poderia me ser útil, em termos de métodos, no primeiro ou no segundo ano, no máximo. Esse tempo que passei lá foi porque não podia voltar para o Líbano e percebi o valor da cultura de um país. Em um ano na Sorbonne aprendi mais do que os sete anos estudando grego e latim no seminário, no Líbano. Essa é a vantagem da minha formação por um lado como padre e por outro como pro-fessor. Ser padre é uma vocação muito séria, muito profunda, mas sempre ouvi dizer que o magistério, a cultura é o campo mais perto do sacerdócio. Isso deu um conjunto muito harmo-nioso na minha mentalidade. Estudava e trabalhava também. Trabalhava na tradução do noticiário da guerra para a Radiodifusão Francesa, traduzindo

as informações ou gravações das rádios estrangeiras. Traduzia para o francês o que era veiculado na rádio do Cairo e em rádios de outros países árabes, e passava para o governo francês. Esse trabalho era muito importante para ter notícia de fora, porque o relaciona-mento da França estava cortado com o mundo inteiro.

Jornal da UFRJ: Quais foram as maio-res dificuldades nesse período?

Alphonse Nagib Sabbagh: Nessa guerra, a gente sofreu tanto que não era preciso mais falar em religião, mortificação, sacrifício, porque toda nossa vida era na base do sacrifício do ponto de vista do alimento, do pão e da manteiga racionados. O racionamento era duríssimo. A cota de manteiga era de 100 gramas por mês. Para os fu-mantes também, um pacote por mês. O vinho francês era usado para fazer gasolina de avião para os alemães. A França é um país muito frio e não tinha calefação. Mesmo sem aquecimento

Um monge dedicado

a dois sacerdócios

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13Janeiro-Fevereiro 2009 Entrevista

Eduardo Portella

central, todos os professores da Sor-bonne nunca deixaram de dar sua aula. A gente aprende a valorizar tudo. É isso que torna o ser humano preparado para enfrentar qualquer situação. O ser hu-mano, para progredir, tem que vencer todas essas dificuldades que eventual-mente encontra na vida. O sacrifício faz parte da religião e também da cultura. A religião não é obscurantista no sentido de fazer com que as pessoas acreditem naquilo que elas não co-nhecem. A religião p o de camin har com a cultura e a ciência para vencer muitos problemas, tanto sociais como individuais. Depois dessa experiência na França, não po-dia mais distinguir entre minha situa-ção de padre e meu posto no magis-tério. Meu campo ficou fácil, porque a cultura árabe é ampla e pouco conhecida, traduzida, ensinada.

Jornal da UFRJ: De volta ao Líbano, em 1957, o senhor presenciou um forte terremoto que provocou destruição em seu país. Quais são suas lembranças sobre esse episódio?

Alphonse Nagib Sabbagh: A nossa região talvez seja uma das mais ex-postas aos terremotos. Houve esse terremoto, em 1957, que abrangeu uma zona localizada, mas bastante grande. As casas dos camponeses eram fracas. O cimento estava começando a entrar nas construções nas aldeias. Então veio o terremoto e provocou muita destruição. Do ponto de vista político, os Estados Unidos fizeram um pro-grama para ajudar o Líbano, que criou um Departamento da Reconstrução Nacional. Eu era superior do mosteiro. Trabalhava para os meus camponeses. Outros conventos também foram dani-ficados. Cada um tomou a decisão que lhe convinha. Aceitei os recursos para fazer o trabalho de reconstrução em minha comunidade. Foi um trabalho muito gratificante. Agora as guerras, as destruições, as matanças são sempre uma coisa lastimável. Numa guerra, ninguém sai vitorioso. Até o vito-rioso vai pagar o preço. Na guerra, aquele que ataca sempre tem mais perdas do que aquele que defende.

Jornal da UFRJ: O senhor se refere à Guerra do Líbano?

Alphonse Nagib Sabbagh: Essa guerra que teve no Líbano foi cem vezes pior do que o terremoto, em destruições, perdas e gastos. As guerras têm aspec-

to interno e externo. A guerra não é libanesa, foi imposta de fora ao Líbano. Mas havia também uma divisão inter-na no país. Meu mosteiro era oposição. Larguei a oposição e passei a trabalhar com o governo. É um problema em todos os países do mundo. A Guerra do Líbano nem Deus resolve. Enquanto houver petróleo lá, não haverá paz. A pobreza tem solução, a miséria tem

solução, a cobiça não tem, o orgulho não tem. Jornal da UFRJ: Esse trabalho de reconstrução teve relação com a sua vinda para o Bra-sil?

Alphonse Nagib Sabbagh: Estava cansado de tanto trabalhar e de re-ceber ingratidões t a m b é m . Pe d i para descansar um

pouco e eles me autorizaram a viajar para ver a família no Brasil. Cheguei e fiquei. Aqui passei a dar aulas em igrejas, clubes, cidades. Naturalmente, depois desse tempo, encaminhei-me para a universidade. Encontrei no Rio um cardeal – D. Jaime de Barros Câ-mara –, uma extraordinária autoridade religiosa. Éramos quatro padres e ele disse: “não sei por que o transferiram de São Paulo para cá, mas aqui não faltará apoio para o senhor”. Dois ou três meses depois, ele me apresentou para a PUC-Rio, onde trabalhei na Extensão Universitária e na graduação, lecionando Doutrina Social da Igreja.

Jornal da UFRJ: Como foi o convite para trabalhar na UFRJ?

Alphonse Nagib Sabbagh: Quando fazia o ensino de língua árabe na PUC, Afrânio Coutinho era diretor da Facul-dade de Letras. Naqueles anos, quando houve a primeira crise do petróleo, ele me chamou para organizar o curso de língua árabe na UFRJ. Ele dizia: “Vou te pagar, mas te pagarei quanto puder”. Fiquei 12 anos como diarista na Facul-dade de Letras.

Jornal da UFRJ: Quando ingressou na universidade?

Alphonse Nagib Sabbagh: Foi em 1965. A vantagem de um país novo como o Brasil é que precisa de tudo. Na Europa, todos os países estão saturados de cultura, saturados de história, de tradição. Aí está o valor da universidade para mim. Não entrei na universidade apenas. Estava em-polgado com a possibilidade de uma realização, de uma criação. O curso de árabe no Líbano é uma coisa necessá-

ria e elementar. Criança tem curso de árabe. Então, fazer uma coisa do zero empolga, atrai, compensa. Isso é muito bom. Tanto o ensino e a cultura como a religião têm um pouco de sacrifício no meio. A maioria dos professores tem aquele salário apertado, convive com falta de recursos para pesquisa uni-versitária, por exemplo. A parte mais importante nos países velhos é o acesso às pesquisas. Aqui, a luta é mais dura para fazer pesquisas, conseguir bolsas e apoio para publicar um livro.

Jornal da UFRJ: Gostaria que o senhor falasse um pouco acerca da criação do Setor de Estudos Árabes e a elaboração do dicionário, aproximando os brasilei-ros da língua árabe.

Alphonse Nagib Sabbagh: Começa-mos a dar aula de língua árabe, mas não tínhamos manuais, nem gramáticas e dicionários do árabe para o português ou do português para o árabe. Havia dicionários para grande parte das línguas do mundo, menos o de árabe para o português. Então começamos na faculdade, por ficha, tudo manual, a reunir as palavras e fazer as traduções. Assim nasceu o primeiro dicionário. A pesquisa levou 30 anos, no mínimo. No começo, cada palavra tinha uma ficha para atender o aluno. Antigamente, não havia a facilidade dos recursos audiovisuais. Mostrávamos a palavra pela ficha. Começou assim. O primei-ro dicionário levou 11 anos para ser editado por uma editora especializada. Fizemos a primeira edição português-árabe no Líbano, em 1983.

Jornal da UFRJ: Em sua avaliação, qual é a importância deste trabalho?

Alphonse Nagib Sabbagh: O dicio-nário é a expressão de um trabalho didático e profissional acumulado para traduzir a riqueza de uma língua e da cultura de um povo, que depois se torna instrumento de trabalho. Não existe ensino de língua árabe ou qualquer outra língua sem dicionário. A universidade, para mim, é a semen-teira da cultura, atuando a serviço da sociedade.

Jornal da UFRJ: A universidade brasi-leira está cumprindo bem este papel?

Alphonse Nagib Sabbagh: É preciso mais atenção, melhores salários, apoio para pesquisa. A vantagem das nações mais adiantadas, como os Estados Unidos e os países da Europa, é que a pesquisa está adiantada. Os recur-sos colocados pela própria natureza devem estar a serviço de toda nossa grande família humana. Infelizmente, os países adiantados na pesquisa fazem do conhecimento um monopólio. Não deveriam. Veja a utilidade do com-putador no mundo de hoje. A parti-lha material tem seus limites. A partilha técnica e cultural não tem limites, muito embora tenha seus segredos também. A política separa, a econo-mia separa, os dólares separam; por outro lado, a cultura une, aproxima. A cultura é a maior diplomacia do mun-do. A universidade deve pautar sua atuação na busca de novos caminhos para o progresso. O que quer dizer o

“Veja a utilidade do computador no

mundo de hoje. A partilha material tem seus limites.

A partilha técnica e cultural não tem

limites, muito embora tenha seus segredos

também.“

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progresso? Bem-estar do ser humano. Essas coisas sempre me empolgaram em meu trabalho.

Jornal da UFRJ: O senhor já fez também muitas traduções em par-ceria com o professor João Baptista Vargens, inclusive da obra As co-dornas e o outono (Espaço e Tempo, 1989), do escritor Naguib Mahfouz, Prêmio Nobel de Literatura, em 1988. Quantos livros foram editados e, em sua opinião, qual deve ser o papel do tradutor para manter a essência de uma obra originalmente escrita em outra língua?

Alphonse Nagib Sabbagh: As tra-duções foram feitas em parceria com o professor João Baptista. Traduzi dezenas de documentos e, acho, em torno de dez livros, no máximo. A melhor tradução nunca é perfeita. Por exemplo, a palavra saudade. A ressonância que ela tem na língua portuguesa não existe em nenhuma outra língua.

Jornal da UFRJ: Sua tese de doutora-mento foi sobre a produção literária árabe no Brasil. Fale um pouco desse trabalho.

Alphonse Nagib Sabbagh: Foi sobre a influência do ambiente brasileiro na literatura árabe escrita no Brasil. Os povos árabes têm muitas afinidades com o povo brasileiro em termos de procura de conhecimento e casamen-tos mistos. Isso reforça a participação de todas as nacionalidades.

Jornal da UFRJ: No campo político, o senhor percebe no atual governo brasileiro um interesse maior no es-treitamento de relações com os países árabes?

Alphonse Nagib Sabbagh: A gente sempre lembra, com muita satisfa-ção, do governo Lula e do que ele fez para a aproximação do Brasil com o mundo árabe. Isso nunca foi feito. Ele realizou aqui uma cúpula entre os países árabes e os da América do Sul, sem com isso abandonar as relações com a África, China, Alemanha, In-glaterra e Cuba. Política é isso. Deve aproximar os povos, não dominá-los. Se o Brasil conquistar, um dia, um lugar nas Nações Unidas, será por causa dessa simpatia que conseguiu angariar. Ninguém sozinho faz nada hoje. Nem na família, muito menos na grande família humana.

Jornal da UFRJ: Como o senhor vê as relações dos Estados Unidos com o Oriente Médio?

Alphonse Nagib Sabbagh: Tem mais gente interessada na guerra do que na paz. Infelizmente, no mundo

de hoje, uma minoria governa. Nos-so mundo do Oriente próximo até hoje foi dominado, principalmen-te, por causa do petróleo. Quanto tempo vai durar isso? Uns dizem 50 anos, 100 anos. Ninguém sabe. A Arábia Saudita tem apenas petró-leo e areia. Não tem outra coisa. Olha a nossa terra aqui: agricultura, açúcar, petróleo, etanol, in-dústrias, máquinas. Vou fazer 90 anos e já existia o pro-blema da Palestina. Quem criou? Quem vai resolver?

Jornal da UFRJ: E agora, com a recen-te eleição do novo pres idente nor te-americano, Barack Hu ss e i n O b a m a , as perspectivas são mais positivas?

A l p h on s e Na g i b S a b b a g h : To r ç o pelo Obama e pela evolução da compreensão de todas as raças. Não poderia haver recom-pensa maior para os Estados Unidos do que essa demonstração que os norte-americanos deram para o resto da humanidade. É mais uma conquista daquela nação. Essa con-quista social vai coroá-los também. Esperamos apenas um pouco mais de compreensão, um pouco mais de respeito aos outros povos. A terça

parte da fortuna do mundo está nos Estados Unidos. Então acho impor-tante colocar esse poder a serviço dos outros povos. É o que espero.

Jornal da UFRJ: Dentre as suas atividades favoritas está a leitura de

jornais, principal-mente o noticiário econômico. É ver-dade?

Alphonse Nagib Sabbagh: Leio o Valor Econômi-co todo dia para a c o m p a n h a r a marcha do dó-lar que governa o mundo.

Jornal da UFRJ: E como o senhor vê os acontecimentos recentes sobre a crise do sistema financeiro inter-nacional?

Alphonse Nagib Sabbagh: Tenho

uma péssima imagem do Bush, em primeiro lugar. Em segundo lugar, essa foi uma crise criada. Muitas vezes já fiquei preocupado para saber onde está esse mercado. Onde está esse mercado que fixa o valor do dólar? Esse mercado é a bolsa de valores. Lá, tudo se vende e tudo se compra. É o mercado que domi-na. Com o dólar subindo, muitas moedas agora vão cair. Mais uma

vez é a América mais forte, mais dominante.

Jornal da UFRJ: Quais são as suas atividades hoje?

Alphonse Nagib Sabbagh: Na igreja estou aposentado, mas esse trabalho não pára. Sempre que sou convidado, vou rezar missa, fazer batizados e casamentos, participar de cerimô-nias sociais em clubes ou entidades. Até hoje os convites aparecem com freqüência. A tendência é diminuir. Mas com amizade no que se faz, nada perde o valor. Porque você recebe também.

Jornal da UFRJ: O senhor mantém contato com a Faculdade de Letras?

Alphonse Nagib Sabbagh: Sempre que sou convidado, participo das atividades na universidade. O novo dicionário é uma forma de manter esse contato. Estamos produzindo uma nova versão, árabe-português. A pesquisa universitária é um trabalho individual, mas tem a parte da equipe que não é menos importante. Nosso trabalho de língua árabe é um traba-lho de participação. Essa última etapa não poderia ser feita apenas por uma pessoa. O João Baptista será o editor. Ele conseguiu montar uma equipe de alunos e professores do curso de Língua Árabe para essa última fase, decisiva, antes da publicação.

Jornal da UFRJ: Como o senhor de-fine a vida?

Alphonse Nagib Sabbagh: A vida é o bem mais precioso que recebemos da generosidade divina e, para os ateus, o bem mais precioso que recebemos da nossa mãe natureza. A vida tem que ser valorizada ao máximo. Não pode ser nunca submetida, esma-gada ou desprezada pela matéria. A vida é a pedra de toque de todas as iniciativas sociais, políticas e eco-nômicas. A luta não pára. A vida é uma luta incansável desde o primeiro até o último suspiro do ser humano. Antigamente, a primeira idade ia até os 20 anos, a segunda até os 40, a terceira até os 60. Hoje já temos a quarta, a quinta idades. Dizem até que a vida começa aos 60. Tudo deve ser valorizado nas possibilidades de cada idade. A infância, a mocidade, a juventude, cada fase de nossa vida, nenhuma pode ser desprezada. Sempre foi meu desejo viver a minha vida inteiramente com trabalho, produção e satisfação íntima de uma pessoa realizada em cada fase da sua vida. Cada parte tem seu valor próprio que não prejudica em nada a fase que já passou e muito menos a que está por vir. A vida vale a pena ser vivida.

A luta não pára. A vida é uma

luta incansável desde o primeiro

até o último suspiro do

ser humano. Antigamente, a

primeira idade ia até os 20 anos, a segunda até os

40, a terceira até os 60. Hoje já

temos a quarta, a quinta idades.

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Jacques de Medina

Solícito, jovial e brilhante, como sempre foi em sua longa história na universidade, Jacques de Medina, atualmente professor convidado do Programa de Engenharia Civil (PEC), do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação em Engenharia (Coppe) da UFRJ, recebeu a equipe do Jornal da UFRJ com a mesma fidalguia com que recebia estudantes, técnico-administrativos e demais docentes do Coppe, em sua sala.

Próximo de ser agraciado com o título de professor emérito pelo Conselho Universitário (Consuni) da UFRJ, Medina lecionou no PEC, de 1967 a 1994, e nele continuou até 2006, como pesquisador. Seu pioneirismo e sua dedicação fizeram com que lhe fosse outorgado, pelo colegiado do Coppe, o título por notório saber, e o de sócio-emérito da Associação Brasileira de Mecânica dos Solos.

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Jornal da UFRJ: Quando o senhor come-çou sua carreira como engenheiro havia pouca informação acerca de nossos solos?

Jacques de Medina: Eu sou um profes-sor de pós-graduação atípico porque somente entrei para o magistério com 44 anos. Eu tinha 20 anos de carreira como engenheiro, ligado sempre à Geotecnia Rodoviária, de estabilização e aterros sobre solos argilosos na Baixada Flumi-nense. Fiz a viagem de inauguração da rodovia Rio—Bahia. Essas experiências que trouxe da carreira como engenheiro foram válidas para que eu desenvolvesse meus estudos. Quando entrei na pós-gra-duação, em janeiro de 1967, licenciado do Departamento de Estradas de Rodagem (DER) do estado da Guanabara, encontrei muitos professores estrangeiros, de coo-peração técnica, principalmente jovens cooperadores militares franceses. Eu não tinha experiência além de ter lecionado na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e de fazer interpretação de fotografias aéreas para identificação de solos, durante três meses. Técnica que aprendi no meu mestrado, nos Estados Unidos, em 1951.

Jornal da UFRJ: O clima tropical, predo-minante no Brasil, prejudica o manejo e estabilização de solos para a Engenharia Civil?

Jacques de Medina: Não, a estabilização do solo se adequa ao clima. O Brasil tem um manto muito espesso de intempe-rismo – é a parte alterada dos solos –, tem cerca de 30, 40 metros. Na década

de 1950, começou-se a utilizar técnicas de estabilização de solo usando saibro, que é um solo residual de rochas. As condições tropicais nos foram boas, pois provocaram intemperização intensa das rochas, o que gerou jazidas de saibro em grande quantidade. Outro aspecto é o uso de areia de cal, que mistura cal hidratada com solo argiloso. Essa técnica surgiu no Hemisfério Norte, utilizada sobretudo nos Estados Unidos, mas as condições de solo e clima lá são muito diferentes das nossas. Eles possuem, no Norte de seu país, grandes depósitos de sedimentos for-mados por glaciação, portanto diferentes dos nossos. Nós precisamos de técnicas próprias. O que facilita no Brasil é que temos áreas de concreção ferruginosa. Óxidos de alumínio e de ferro cimentam grãos arenosos, que são as chamadas la-teritas, utilizadas em pavimentação e em substituição da brita. Isso também existe na África Ocidental. No Senegal e na Costa do Marfim eu encontrei formações de laterita semelhantes às que eu encontrei no Paraná. Foram técnicas que tivemos de aprender com a experiência.

Jornal da UFRJ: A experiência profis-sional, mais do que a acadêmica, trouxe dificuldades ao ingressar na universidade como docente?

Jacques de Medina: Havia um boom de crescimento econômico no país. Um terço dos alunos era imediatamente contratado pelas empresas, um terço não tinha nota média nem aptidão para pesquisa e o ou-tro terço ia para o mestrado e tinha con-dições de trabalho muito boas. Hoje, esse

perfil mudou. O número de bolsas caiu. Há um contingente importante de alunos que trabalham. Evidentemente que o fazem porque isso traz benefícios às suas vidas profissionais. Em minha modestís-sima opinião, as empresas privadas não têm interesse em empregar gente muito qualificada, ao contrário das estatais. Nós tínhamos projetos muito bons com a Vale do Rio Doce que acabaram após a privatização. Quanto ao mercado de trabalho, há um aquecimento na cons-trução civil e na contratação de grandes obras de engenharia. Isso aumentará a demanda por profissionais qualificados com pós-graduação.

Jornal da UFRJ: O senhor defende a função do Estado como indutor do desen-volvimento e da pesquisa científica?

Jacques de Medina: A Petrobrás é uma empresa que, apesar do fim do monopólio do petróleo, tem marcante presença do Estado e faz política de cooperação com as universidades. Na Cidade Universitária temos o Labora-tório de Geotecnia e o seu prédio anexo, inaugurado em 2007, financiados pela Petrobrás. Esse relacionamento é muito bom. Estimula a pesquisa em solos, pa-vimentos. Uma empresa particular não faria isso.

Jornal da UFRJ: O uso da Cidade Univer-sitária para testes de inovação tecnológica em coberturas asfálticas, em parceria com o Centro de Pesquisas e Desenvolvimento Le-opoldo Américo Miguez de Mello (Cenpes), é uma medida importante?

Jacques de Medina: Sim, é um projeto que dá margem ao desenvolvimento de vários tipos de revestimento. Estão usan-do um simulador de tráfego, que simula a passagem de um caminhão. Não é ainda um estudo em grande escala, que permita a pesagem sistemática de veículos que pas-sam e a instalação de equipamentos caros, mas é um passo muito importante.

Jornal da UFRJ: Isso pode resultar em revestimentos mais duradouros.

Jacques de Medina: Houve uma grande modificação nos últimos 25 anos, sobre-tudo nos Estados Unidos, em relação à qualidade do asfalto. Durante 20 anos eles fizeram estudos que resultaram em novas especificações. Nós já fazemos pesquisas levando em conta essa metodologia, que os norte-americanos chamam de super-pav. O que nos falta é o passo adiante, o de termos trechos experimentais. Com a pro-fessora Laura Borba, que me sucedeu, e é uma amiga de grande valor, muito foi feito, inclusive o tratamento contra a formação de poros usando xisto betuminoso.

Jornal da UFRJ: A construção rodoviária pode aproveitar a utilização de rejeitos industriais?

Jacques de Medina: Nós temos essa preocupação já de há muito tempo. Desde 1975. Os primeiros rejeitos que aproveitamos foram as cinzas volantes. Quando se queima carvão, como se faz muito na Região Sul, sobretudo em terme-létricas, forma-se uma poeira desse carvão. Essa é a cinza volante, que misturada a cal

Bruno Franco

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e areia dá um concreto, uma argamassa fortíssima e nós chegamos a fazer com o IPR – o antigo Instituto de Pesquisa Rodoviária – um trecho experimental em Santa Catarina. Mas há grande resistência na engenharia para adotar certas técnicas – prefere-se a brita – até que haja uma necessidade premente de fazê-lo.

Jornal da UFRJ: Mesmo na academia há muito conservadorismo no emprego dessas técnicas?

Jacques de Medina: A cinza volante tem uma propriedade que chamamos de pozolânica. A mistura com a cal e com a areia, após um tempo, forma um cimento. Isso é usado em grandes barragens de concreto, porque o concreto, ao reagir e se solidificar, emite grandes quantidades de calor; ao resfriar, pode gerar fissuras. Há o recurso de fazer refrigeração por meio de tubulações ou de usar o cimento pozolânico, que libera calor gradualmente, evitando o surgimento de fissuras. Há usos de rejeitos da indústria siderúrgica também, mas eles devem ser utilizados apenas nas imediações de onde são produ-zidos, pois acarretam custos de transporte caso sejam utilizados a uma distância de 100 quilômetros, por exemplo. Vai chegar um ponto no qual as estradas terão que reciclar seus componentes e reutilizá-los misturados a mais asfalto. Essa é a forma de introduzir “a muque” os rejeitos na prática da Engenharia.

Jornal da UFRJ: Após a afirmação hege-mônica do neoliberalismo na América La-tina, com a prática recorrente das privatiza-ções e esvaziamento das funções do Estado, bem como de sua capacidade de investir, os diferentes níveis de governo têm recorrido à concessão de estradas à iniciativa privada. Essa é a melhor solução? As estradas devem ser geridas por investidores privados, ainda que recaia sobre os cidadãos o ônus dos pedágios, ou o Estado deve recompor sua

capacidade de manter, com qualidade, as rodovias do país?

Jacques de Medina: É verdade, eles ga-nham para isso. O pedágio é feito para cobrir, no planejamento inicial, todos os gastos de conservação. Ainda há um grande problema, pois se fissura ou se trinca um trecho, o agente concessionário argumenta que o tráfego é muito pesado e o trecho terá de ser refeito. O Estado vai lá e paga. É preciso instalar uma rede de postos de pesagem dinâmica, com sen-sores de peso em um trecho da rodovia, capaz de fazer a pesagem em quatro eixos. Caso o peso, em algum dos eixos ou no total, exceda as normas, o caminhão seria colocado de lado e obrigado a descarregar o excesso. A fiscalização seria feita pela Polícia Rodoviária e, se determinado ca-minhão passasse com excesso de carga e danificasse a estrada, competiria ao Estado ressarcir o prejuízo. As empresas sempre argumentam que eventuais fissuras são problema de excesso de tráfego, nunca é defeito de conservação. Mas a falta de capital obriga a este recurso. Os departa-mentos rodoviários (DER) foram muito desmontados. Entrou muita consultoria americana e eles foram desestimulados. Mas, nos Estados Unidos, os DER são fortíssimos. Eu conheci o da Califórnia, era muito bom. Com engenheiros compe-tentes, decentemente pagos. Há interação com as universidades e as consultoras colocam dois ou três funcionários para atuarem junto a eles. No DER da Guana-bara, onde trabalhei, nós tínhamos um bom laboratório, inaugurado em 1957; hoje está cercado por favelas, tornou-se uma área perigosa. Tínhamos uma gran-de produção de ensaios, fiscalização de obras. Carlos Lacerda, que tinha um lado administrativo muito bom, criou o tempo integral para engenheiros e arquitetos, pois ele tinha interesse em tocar as obras. Eu optei, então, pelo tempo integral e abandonei uma firma de consultoria, que

eu tinha ajudado a criar. Chamaram-me de “cdf”, mas eu não liguei e cheguei ao cargo de chefe da Divisão de Tecnologia do DER da Guanabara. Até que a política mudou e eu fui posto de lado.

Jornal da UFRJ: O senhor trabalhou na Secretaria de Serviços Públicos do estado da Guanabara. Essa experiência trouxe novos elementos para a sua atividade como docente?

Jacques de Medina: É, fiquei menos de um ano lá. Nesse tempo, revisei notas de aulas, de quan-do eu estudei nos Estados Unidos e preparei umas apos-tilinhas para meu próprio uso. Então fui convidado para trabalhar na Coppe pelo professor Willy Lacerda, que tinha sido meu companhei-ro no DER da Guanabara. Ele, quando foi fazer seu doutorado na Califórnia, convidou-me para cobrir o seu trabalho. Nessa época mandávamos os alunos para fazerem mestrado e doutorado no exterior. Estes, na medida em que regressavam, passavam a formar novos alunos em mes-trado e doutorado aqui mesmo. Com isso, o perfil se inverteu e hoje mais da metade dos nossos alunos faz sua pós-graduação aqui no Brasil.

Jornal da UFRJ: O senhor trabalhou e estudou em diversos países. Alguns muito desenvolvidos como França e Estados Uni-dos, e outros nem tanto, como a Costa do Marfim. A situação do manejo de solos para a construção civil do nosso país se compara à das potências que o senhor conhece de perto? Países emergentes como a Costa do Marfim e o Senegal também têm lições a nos dar nesse aspecto?

Jacques de Medina: Tudo o que eu aprendi, todo meu aprendizado constou em trabalhar em serviços interessantes. Conhecer, na parte de consultoria, solos tropicais de diversas regiões do país: Pará, Maranhão, Bahia, Minas Gerais. A vivência na área profissional também foi valiosa: primeiro o mestrado, depois Fran-ça, África (Senegal e Costa do Marfim), sendo bolsista do governo francês. Estava

interessado em estu-dar lateritas e sabia que iria encontrá-las na África Ocidental francesa. Senegal pos-sui seu território quase todo constituído no período terciário, o que é ideal para esse tipo de pesquisa. Eu fui à ilha Goré, que é como se fosse a Paque-tá de Dakar, que tinha vestígios de depósitos de escravos que eram

enviados ao Brasil, em nosso passado colonial, e, quando nosso presidente Lula visitou a África pela primeira vez, a ilha tinha sido preparada para expor esses vestígios e o ministro Gilberto Gil cantou a capella “Ih Goré”, composição dele, que fez o pessoal chorar. Uma música linda.

Jornal da UFRJ: A experiência na África foi mais enriquecedora que na França ou nos Estados Unidos?

Jacques de Medina: Não, na França eu vi muita coisa interessante, também: a estabilização de solos com material asfál-tico, novas técnicas de ensaios. Teve uma técnica com equivalentes de areia que eu trouxe para o Brasil. Mas, em geral, as téc-nicas de lá estavam à frente do tempo em relação ao que era feito aqui. Vi coisas que não eram adaptáveis de pronto, mas fui enriquecendo minha experiência. Inclu-sive uma experiência de um doutorando português de Ensaios de Sucção que, hoje, são feitos com mais requinte na área de Engenharia. Isso eu vi, pela primeira vez, em 1958, na França. O solo, para ser irriga-do, a umidade não pode baixar aquém de certo valor, senão ele resseca e fissura. Esse desejo de água pelo solo chama-se sucção. Eu vi esse colega medindo a absorção de água por colunas de areia e de argila em diferentes níveis com radioisótopos e fiquei boquiaberto.

Jornal da UFRJ: O Brasil já está mais próximo dos países desenvolvidos no que tange à Geociência?

Jacques de Medina: Existe um lapso ainda na parte de asfalto. Existe um ramo da ex-periência européia, francesa e italiana, que não foi ainda aproveitado, que percebo ser interessante. É o uso em vias ferroviárias de asfalto em vez de lastros de pedra pura. O que é muito usado na Europa, nas ferrovias de alta velocidade. Caso sejam implementados trens de superfície de alta

“A Petrobras é uma empresa que, apesar do

fim do monopólio do petróleo,

tem marcante presença do Estado

e faz política de cooperação com as

universidades.”

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velocidade, eu acredito que essa técnica terá vez aqui. Mas, os Estados Unidos têm uma riqueza em universidades que os franceses não têm, laboratórios e dinheiro para fazer pesquisas experimentais. Eles têm, na Bretanha, uma pista circular para ensaios, que é outra modalidade de simu-lação. Essa modalidade móvel que temos aqui na Cidade Universitária tem muito futuro. O equipamento é desenvolvido na África do Sul que é um país com grande desenvolvimento de tecnologia.

Jornal da UFRJ: É na obra inicial em si ou nas atividades corriqueiras de conservação que os europeus conseguem, em contraste com as nossas, manter em tão bom estado suas estradas?

Jacques de Medina: As dimensões do nosso país são incríveis. Os recursos fi-nanceiros não são suficientes. É toda uma corrente: a divulgação técnica, a execução de acordo com as normas técnicas, a fiscalização não apenas de como gastou, mas ficar ali ao lado vendo a obra ser bem feita, ver se a mistura na usina foi bem preparada, se a temperatura do asfalto foi adequada. E a mão-de-obra nem sempre é competente.

Jornal da UFRJ: O Rio de Janeiro é uma cidade marcada por grandes obras de Engenharia, como a Ponte Rio—Niterói e o aterro do Flamengo. Essa é uma vocação da cidade e traduz a excelência de nossas escolas de Engenharia?

Jacques de Medina: É uma tradição em várias áreas. Na adução de águas, por exemplo, o sistema Guandu é o maior do mundo. O túnel Rebouças é o maior túnel urbano de superfície do mundo. São grandes intervenções urbanas, imponentes e essenciais. Mas não é possível essa explosão de veículos individuais em detrimento do transporte público. Isso tem que acabar. Não pode-mos nos dar a esses luxos. Claro que isso toca em interesses da indústria automo-bilística, nos empregos por ela gerados. Os noticiários não falam que há cinco mil ônibus escolares especialmente pro-jetados para estradas não pavimentadas, que serão distribuídos por municípios carentes. Como seria possível transportar crianças que vivem em locais de difícil acesso até escolas a mais de 20 km se não fosse com transporte público? A gente fala muito das exceções, mas não fala das regras gerais.

Jornal da UFRJ: Quais regras gerais?

Jacques de Medina: Acho o seguinte: se nós mostrarmos o lado bom do Brasil, fis-calizando sempre as coisas erradas, aí dá certo. Mas há ênfase no lado ruim – e você conhece o jornalismo melhor do que eu –, com a omissão de questões boas ou ruins. Há o realce, por exemplo, de uma questão verdadeira mas com uma dimensão que não lhe é própria. Há distorções para

que pareça outra coisa. Há, na imprensa hegemônica, uma tendência em distorcer e omitir os fatos bons. Devemos ter mais metrô de superfície, que é um investimen-to alto. A rede ferroviária deve ser bastante ampliada. Quando jovem ia para São Lourenço pegando dois trens, e era uma beleza. Eu subia a serra de Petrópolis de trem, era um passeio encantador.

Jornal da UFRJ: Há algum entrave geotéc-nico para que se amplie a linha de metrô no Rio de Janeiro?

Jacques de Medina: Tendo recursos se constrói em qualquer terreno. As áreas difíceis são as áreas sedimentares, de ar-gila e de areia. O Rio de Janeiro possuía, quando foi descoberto, um mar de morros entremeados por alagadiços malsãos. Os morros foram sendo raspados para forma-ção de aterros e estradinhas de terra, como a que levava ao campo de São Cristóvão. Fo-ram alterando e alar-gando a orla marítima. Nosso terreno tem re-giões de argila escura e mole, pegamos isso na avenida Presidente Vargas. Nosso grupo de Geotecnia, quando era efervescente e jo-vem, trabalhou muito nessa área de metrô, fazendo medições. E temos muitos morros, o que é uma vantagem. Você perfura o morro e não atravessa o tráfe-go. Atravessa o morro pela Siqueira Campos até o Cantagalo, faz uma estação de acesso, vai pelo morro até General Osório e daí um corredor enor-me de acesso para os trens. Escavar a céu aberto é que é problemático. Mas não se pode fazer a besteira que foi feita em São Paulo. O risco na engenharia não pode ser conscientemente tomado.

Jornal da UFRJ: O senhor trabalhou com o professor Alberto Luiz Coimbra e foram mesmo amigos. O Coppe atual reflete as intenções e os objetivos originais de sua criação?

Jacques de Medina: O Coimbra, criador do Coppe, criou a pós-graduação em Engenharia Química, no campus da Praia Vermelha, em 1963. Ele dirigiu o Instituto de Química (IQ), conseguiu apoio e recur-sos, trouxe professores muito bons e deu ênfase sempre aos fundamentos de Ma-temática, o que é uma sua característica. Depois veio a Metalurgia e, quando vie-mos para a Cidade Universitária, em 1967, criamos a pós-graduação em Engenharia Civil, para a qual me convidou. Agora já são 12 cursos. Eu conheço o Coimbra desde os 11 anos. Estudamos juntos no ginásio, depois ele foi fazer Química Industrial e eu Engenharia. Assim que se formou foi correndo aos Estados Unidos

para estudar Engenharia Química e, quando voltou, foi trabalhar em São Paulo. Retornou ao Rio e lecionou dez anos na Pontifícia Universidade Católica (PUC) e também no curso de Refino de Petróleo da Petrobrás. Dividiu-se entre o ensino e a consultoria e acumulou uma experiência muito grande como engenheiro e como professor. Ele queria aplicar a experiência que tivera nos Estados Unidos, de estudan-tes, com bolsas, envolvidos o dia todo com atividades na universidade. Deveríamos incentivar estudos no exterior, para que aportem novas técnicas. Willy Lacerda, que é a pessoa que eu considero a mais expressiva do nosso grupo de Mecânica de Solos, reconhecido internacionalmente, recebeu, inclusive, um prêmio da Ame-rican Society of Civil Engineering, foi o primeiro estrangeiro a ganhá-lo, associado a outro pesquisador norte-americano. De forma geral, estamos nos adaptando aos

rumos do país, com ligeiras correções, como sempre devem ser fei-tas. Uma coisa me pre-ocupa muito. O Coppe completou 45 anos. Na graduação tem sido feita uma renovação, que deve ser feita com bons profissionais, de boa didática, interesse pelo aluno, mas que não tenha obrigação de pro-duzir conhecimento novo. O meu grupo de Mecânica de Solos tem 10 professores, a idade média é de 58 anos, ou seja, há mais dez anos

de atividade acadêmica antes da aposen-tadoria compulsória. E não está chegando gente nova. Eu tenho, hoje, uma ex-aluna, a professora Laura Motta, que entrou com 28 anos – e até fui ao casamento dela, em Juiz de Fora – a vi crescer e já é uma senhora de 58 anos e não tem quem a substitua. Então, na linha de pesquisa que eu criei tive a sorte de tê-la como suces-sora, porém não há quem a suceda. Isso é de grande importância estratégica, pois não acontece somente na minha área, mas em vários programas de toda a universi-dade. Deve haver levantamento de vida acadêmica restante e disponibilização de recursos, pois há risco de várias linhas serem interrompidas pela aposentadoria ou morte de seus titulares.

Jornal da UFRJ: O senhor propôs a disciplina Físico-química dos Solos que colocou o Coppe na vanguarda de estudos de Geotecnia Ambiental.

Jacques de Medina: Em 1962, fiz nos EUA o curso Propriedades Físico-quími-cas dos Solos e me apaixonei pela coisa. Quando eu entrei e propus essa disciplina, isso foi visto como uma excentricidade. Depois foi reconhecida sua importância. Isso explicava a estabilização do solo, com cal, com fosfato. Tínhamos de conhecer

a composição mineralógica do solo. Mas, eu não inventei nada, apenas apliquei o que tinha aprendido.

Jornal da UFRJ: O senhor sempre foi muito elogiado e muito benquisto por seus alunos. Como o senhor conduzia sua relação com os estudantes?

Jacques de Medina: Eu me aposentei e continuei vindo ao Coppe. Depois de aposentado eu escrevi um livro. Essa é outra coisa. É preciso que, no Brasil, o pro-fessor tenha tempo e reconhecimento para escrever, porque os sistemas de pontuação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) não são bons. Um livro deveria valer por 10 papers (artigos). Ele vai ser lido por centenas de estudantes. O meu livro, Mecânica dos pa-vimentos (Editora UFRJ), teve sua primeira edição em 1997 e a segunda, fiz em 2005, em parceria com a professora Laura Motta. Comentei com ela que deveríamos colocar à disposição, futuramente, para download, da mesma forma como fazemos com nos-sas teses. Os alunos sempre perceberam que eu era um cara muito concentrado no trabalho. Eu interagia muito com eles. Era um ser humano normal que tentava ser cordial. Uma vez fui fazer uma conferência em São Paulo, na Associação Brasileira de Mecânica dos Solos (ABMS), e havia uma homenagem a um dos pioneiros na área, o professor Francisco Pacheco, e, também, ao conferencista. Pediram ao professor Ian Martins, que falasse acerca de minha pessoa e foi uma coisa engraçadíssima. Ele disse que tínhamos um laboratório no subsolo. Passei dois verões lá, no calor, so-mente com um ventiladorzinho de mesa. Os alunos me viam lá, na sala envidraçada, cercado por livros e não queriam me inter-romper, mas aí um dia ele falou comigo e me propôs que participasse de um bolão de loteria. Eu declinei e respondi que não gostava dessas coisas, mas depois fui à sala dele e disse: “Escuta, eu quero participar desse bolo, pois depois vocês ganham, vão embora e eu vou ficar aqui sozinho”. Em sua apresentação, Ian Martins falou desse meu jeito recluso e disse que se Nelson Rodrigues estivesse presente à conferência, ele me descreveria como a “delicadeza em mangas de camisa”. O pessoal da Geotec-nia é uma grande família. Somos muitos unidos e não nos colocamos em pedestal, de forma alguma. Quando o novo labora-tório foi inaugurado pelo Pinguelli Rosa, em 1995, nós fizemos uma cerimônia de encerramento do laboratório antigo e foi felliniano. Todo mundo tomando cafezi-nho, batemos palmas, e depois, o Bororó, que é um funcionário estupendo, fechou a porta, tudo filmado pelo Eduardo Paiva, nosso melhor laboratorista de Pavimentos, Dinâmica de Solos e Mistura Asfáltica. Ele entrou na UFRJ vindo do segundo grau técnico, foi laboratorista, se formou, fez mes-trado e doutorado no Coppe. Então, eu tenho um grande carinho por todo esse pessoal.

“Se nós mostrarmos o lado bom do

Brasil, fiscalizando sempre as coisas

erradas, aí dá certo. Mas há ênfase

no lado ruim – e você conhece o

jornalismo melhor do que eu –, com

a omissão de questões boas

ou ruins. “

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19Janeiro-Fevereiro 2009

A vez dos emergentes

Internacional

Marcio Castilho

. A criação de mecanismos que permitam a parti-cipação mais ativa dos

países emergentes, inclusive o Brasil, nas decisões acerca da economia internacional foi um dos principais pontos discutidos na reunião de cú-pula do G-20 (grupo das nações com as 20 economias mais importantes do mundo), novembro último, em Washington (EUA). Dois fatores ajudam a explicar a postura do go-verno brasileiro ao defender maior representatividade dos emergentes

em organismos internacionais, como o Banco Mundial (ou Banco Internacio-nal para a Reconstrução e o Desenvol-vimento – Bird) e o Fundo Monetário Internacional (FMI): o primeiro diz respeito ao novo papel desempenhado pelo Brasil e países como Rússia, Índia e China; o segundo tem origem na recente e mais grave crise na história do sistema financeiro internacional, que derrubou o sistema de crédito nos Estados Unidos e se alastra pelo mundo, provocando recessão princi-palmente na Europa e no Japão. Apesar

de a reunião de cúpula ter sinalizado para uma maior aproximação entre os países ricos e os chamados emergentes, respeitando a mudança no peso econô-mico das nações que compõem o G-20, os líderes não indicaram, contudo, como se daria essa nova divisão de poderes. Por enquanto, as decisões na economia mundial continuam a ser tomadas no âmbito do G-7 (Estados Unidos, Japão, Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Canadá).

O discurso adotado pelo Brasil e outros países que reivindicam maior

participação no debate sobre a crise parece ser mais um gesto político do que propriamente uma solução para estabilizar os mercados mundiais. Essa é a avaliação de Ronaldo Fiani, professor do Núcleo de Estudos Internacionais (NEI), do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas (CCJE) da UFRJ. Segundo ele, economias emergentes como as da China e da Índia não estão sendo muito afetadas pela falta de crédito, enquanto outras nações, como Brasil e África do Sul, são atingidas, porém não têm im-pacto na economia global.

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20 Janeiro-Fevereiro 2009Janeiro-Fevereiro 2009Internacional

“Acho que a contribuição dos emer-gentes é muito mais política do que econômica. A Índia tem um sistema financeiro com forte participação estatal e controle no fluxo de capitais. Portanto, é muito menos vulnerável a essa crise internacional de liqüidez do que outros países. A China também é um país que dispõe de reservas volumosas e com um sistema financeiro controlado. Para o Brasil a crise é um problema, mas devemos ter em torno de 1% a 2% das exportações mundiais. Então, o impacto do Brasil, em termos de atividade global, é muito pequeno”, afirma Fiani.

Outro especialista consultado pelo Jornal da UFRJ, Antônio Luis Licha, professor do grupo de Conjuntura Eco-nômica do Instituto de Economia (IE) da UFRJ, não acredita que a crise nos merca-dos internacionais desencadeie uma nova arquitetura financeira mundial, como chegou a propor o presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante a reunião de cúpula do G-20. Salientando a importância de medidas cooperativas que possam resta-belecer o crescimento das economias de modo global, Antônio Licha acredita que as ações anunciadas até agora por países com sistema financeiro mais fortalecido, como a China, vão à contramão de po-líticas mais colaborativas. Ele se refere ao pacote de US$ 586 bilhões em inves-timentos públicos, políticas de estímulo fiscal e provavelmente nova redução dos juros, anunciado pelo governo chinês, para garantir um crescimento interno entre 8% e 9% no ano que vem.

“As medidas vão ajudar a China a não desacelerar o crescimento. Antes de vender para fora vai vender para den-tro, não dando espaço para os chineses comprarem produtos de fora. O que se precisa agora é que os países com uma crise mais forte, como os Estados Uni-dos, a Inglaterra e a Espanha, vendam para o exterior. Não há muita colabo-ração”, analisa Licha, para quem a falta de liderança e articulação política do governo Bush contribui ainda mais para que os emergentes adotem uma postura mais protecionista neste momento de crise econômica, avalia o professor. “Estamos diante de um contexto com várias questões multilaterais e sem uma potência hegemônica inconteste”, avalia o professor.

Sobre as medidas anunciadas pelo governo brasileiro para reduzir os efeitos da crise, Antônio Licha afirma que a atuação da equipe econômica foi adequada. Recentemente, o governo anunciou um pacote de ajuda ao setor produtivo. As novas frentes, somando R$ 40 bilhões, incluem a criação de linhas de financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econô-mico e Social (BNDES) e do Banco do Brasil, a extensão do prazo de recolhi-mento de alguns impostos federais e a destinação de R$ 4 bilhões deste total para as montadoras, um dos setores mais atingidos pela desaceleração da

economia. No mercado de câmbio, Li-cha critica a hesitação inicial do Banco Central. “A partir de setembro, quando o mercado financeiro entrou em pâ-nico com a quebra do banco Lehman Brothers, o Banco Central demorou a perceber que a crise era grande. Depois interveio bem, oferecendo um câmbio com recompra, atuando nos mercados futuros e vendendo papel à vista. O mercado se tranqüilizou mais”, observa o economista.

Ronaldo Fiani também avalia que as medidas do governo brasileiro diante do quadro econômico atual estão na direção correta, porém res-salta que a política de juros deve ser revista pelo Banco Central. “Não dá para conti-nuar nesse conser-vadorismo, porque estamos chegando numa situação em que uma coisa anula a outra: você realiza mais gastos, injeta recursos nas empre-sas, mas, ao mesmo tempo, mantém uma taxa de juros elevada”, afirma o economista, criticando esse possí-vel contra-senso.

A forte carga tri-butária é apontada como um dos prin-cipais obstáculos ao desenvolvimento do país. O Brasil tem uma carga tributária equivalente a 37% do Produto Interno Bru-to (PIB), que é o va-lor de toda a riqueza gerada no país. Para Antônio Licha, o pa-drão ideal deveria ser 27%, como era pou-co mais de dez anos atrás. Reduzindo pra-ticamente 10% do PIB em impostos, a questão política é sa-ber quem vai querer perder essa arreca-dação, se a União, os estados ou os muni-cípios. “Provavelmente será a União, mas ela estará disposta a reduzir sua arrecadação quando a dívida pública cair. Quando os juros caem e a dívida pública também, há mais espaço para uma reforma tributária”, avalia o pro-fessor do IE. O país tem uma dívida de aproximadamente R$ 1,3 trilhão, a maior parte da União. Regulamentação dos mercados

Além da reivindicação por uma participação maior dos países emer-gentes no foro de decisões sobre a economia mundial, um ponto

prioritário discutido na reunião do G-20 foi a necessidade de regulação e criação de mecanismos de supervisão e acompanhamento permanente dos mercados financeiros. Os países que compõem o bloco das nações mais industrializadas do mundo concluí-ram que a turbulência financeira teve como causa principal a falta de prá-ticas de gerenciamento e normas de prevenção de crises. Sem regulação e empolgadas com a possibilidade de lucros cada vez maiores, muitas instituições realizaram operações de alto risco, gerando inadimplência e criando enorme vulnerabilidade no

sistema de crédito.O problema se

agravou, sobretudo, em razão do proces-so conhecido como “desintermediação financeira”, como ex-plica Ronaldo Fiani: “Os bancos centrais controlam a expan-são dos créditos nos bancos comerciais, mas não controlam bancos de investi-mentos e outros ti-pos de instituições financeiras. Quando você tira o controle dessas operações, os bancos centrais ficam no escuro. Em função da falta de dimensionamento do problema, todos os agentes financei-ros entram num pro-cesso para aumentar sua liqüidez própria e limitam a conces-são de novos em-préstimos de forma a garantir dinheiro para fazer frente a qualquer exigência de recursos. A cor-rida em busca de liqüidez faz com que o sistema financeiro mundial tenha uma disposição cada vez menor de emprestar dinheiro”.

Um passo importante para garan-tir maior controle sobre os mercados e um sistema de fiscalização mais transparente foi tomado na reunião em Washington. Os países do G-20 decidiram criar um colegiado de supervisores para monitorar 30 dos principais bancos globais. A escolha dessas instituições deverá ser feita, segundo o acordo, até o próximo dia 31 de março, podendo incluir o grupo Itaú Unibanco Holding, que se tornou o maior grupo financeiro do Hemisfério Sul após a fusão. Se a experiência funcionar, o colegiado

poderá até servir como modelo de uma agência reguladora internacio-nal. Os líderes também propuseram a expansão do Fórum de Estabilidade Financeira (FSF, na sigla em inglês), incluindo as economias emergentes.

Todas as medidas foram tomadas para tranqüilizar os mercados e retomar o crescimento econômico mundial. Os indicadores, no entanto, não são ani-madores. Projeções do FMI, divulgadas em novembro último, indicam que os países industrializados poderão sofrer a primeira contração desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. A retração será de 0,3% em 2009 nestes países. No Brasil, o FMI reduziu a pro-jeção de crescimento da economia de 3,5% para 3%, neste ano. Para Ronaldo Fiani, não há como dimensionar o ta-manho da crise até em razão do proces-so de “desintermediação bancária”.

“Quando temos uma crise clássica dos bancos comerciais, o Banco Cen-tral tem dimensão das necessidades de liqüidez. Então minha avaliação é a de que se alguém disser que a crise vai du-rar 10, 20 anos ou se já acabou não sabe o que está falando. Vai ser um processo de apagar incêndios à medida que eles forem surgindo”, afirma o economista.

Fiani acredita que um dos mecanis-mos que pode ajudar a conter o quadro de uma recessão generalizada na econo-mia é a adoção, por parte da China e do novo governo de Barack Obama, nos Estados Unidos, de uma política fiscal expansionista. Essa decisão implica re-dução de impostos e aumento de gastos, em investimentos públicos e políticas de transferência de renda de modo a estimular o consumo e, conseqüen-temente, a atividade econômica. “O novo presidente norte-americano fez declarações no sentido de uma inter-venção fiscal expansionista vigorosa, mas os Estados Unidos são um país com grupos de interesses muito fortes e bem articulados. Acredito que ele vai conseguir executar essa política, mas em que medida eu realmente não sei, até porque a previsão é que o déficit fiscal estadunidense se expanda subs-tancialmente”, analisa o professor.

Essa expectativa em torno da apli-cação de uma política fiscal expan-sionista por parte do governo Obama também é compartilhada por Antô-nio Licha. O economista salienta que medidas fiscais foram responsáveis pelo crescimento de 2,8% da eco-nomia norte-americana no segundo trimestre de 2008. “Houve devolução do imposto de renda e isso implicou em um aumento de consumo que fez com que o PIB crescesse naquele período. Esse parece ser o caminho de Obama e pode ajudar a economia de seu país a não ter uma recessão profunda”, avalia o professor, explicando que a recessão se confirma quando a economia registra dois trimestres seguidos com taxa de crescimento do PIB negativo.

“O novo presidente norte-

americano fez declarações no sentido de uma

intervenção fiscal expansionista

vigorosa, mas os Estados Unidos

são um país com grupos de interesses muito fortes e

bem articulados. Acredito que ele

vai conseguir executar essa

política, mas em que medida eu realmente não

sei, até porque a previsão é que o déficit fiscal estadunidense se expanda

substancialmente.”

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21Janeiro-Fevereiro 2009 Internacional

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ministros da Fazenda e presidentes dos bancos centrais das maiores economias do mundo participam da reunião do G20, em São Paulo, que discutiu ações para enfrentar a crise financeira internacional. Em 8/11/2008.

Diferentes modelos de desen-volvimento permanecem

sendo alvo de grandes debates no campo econômico. De um lado, os defensores de um Estado ativo, com forte poder de intervenção, promovendo crescimento através de programas sociais na área de educação e trabalho. De outro, aqueles mais identificados com o ideário neoliberal, no qual o se-tor privado deve agir livremente na idéia de um Estado mínimo que deve atuar apenas no espaço institucional e da regulação, ela-borando normas e fiscalizando o cumprimento das regras. O de-bate em torno do grau de inter-venção do Estado na economia está longe de ser consensual no Brasil e em outros países, pois faz parte das lutas ideológicas que atravessam a história.

Em cenário de globalização da crise econômica – para mui-

tos, resultado de políticas fracas-sadas de governos neoliberais que exerceram papel hegemônico nas últimas décadas – parece

Um velho dilemaganhar força a tese intervencio-nista. Antônio Luis Licha afirma ser “mais pragmático”. “Acho que em época de crise como agora, o Estado deve intervir mais e dar sustentação maior para o mer-cado financeiro e para o setor produtivo. Nos momentos em que os mercados funcionam de forma adequada ou com alguma normalidade, o governo pode atrapalhar. A sociedade funciona assim. Independentemente do debate ideológico, o pêndulo en-tre os modelos intervencionistas e neoliberais depende dos momentos históricos”, avalia o professor do Instituto de Economia da UFRJ.

Uma das decisões que o Esta-do brasileiro precisará tomar

diante da crise envolve o uso de suas reservas acumuladas princi-palmente no período entre 2004 e 2008. Uma pequena parte dos US$ 205 milhões já foi usada esse ano para evitar uma escalada excessiva do dólar, mas a tendência é dispo-nibilizar mais reservas para que o preço da moeda norte-americana

não dispare em 2009. Antônio Licha acredita que o governo use em torno de US$ 40 milhões para conseguir fechar suas contas externas e estabilizar o valor do dólar em torno de R$ 2,10. As reservas funcionam como seguro cambial, embora não tenham sido criadas – salienta Licha – para essa finalidade.

Para Ronaldo Fiani, a medida mais adequada para equili-

brar o câmbio deveria ser o con-trole de capital. “Como o Brasil tem uma resistência muito gran-de a impor controle na entrada e saída de capitais, acaba tendo que utilizar essas reservas. Seria muito mais interessante impor esse controle do que sair quei-mando as reservas para tentar manter uma taxa de câmbio que não gere um impacto inflacio-nário interno brutal”, afirma o economista.

Não apenas o governo, o contribuinte também deve

estar atento aos novos tempos de

turbulência econômica. Imóveis, carros e outros bens que normal-mente exigem do consumidor a tomada de empréstimos, estão com taxas de juros elevadas e prazo de financiamento mais curto. Fiani afirma que a pers-pectiva é que haja redução de juros no médio prazo. “Se for um gasto que você pode adiar, o conselho é mesmo adiar, porque a tendência é redução de juros”, explica o professor, fazendo uma recomendação especia l para aqueles empregados que atuam no setor primário exportador e de prestação de serviços: “É muito importante que o cidadão avalie suas fontes de renda. Se real-mente a economia internacional sofrer uma desaceleração forte, isso vai ter impacto na renda e, portanto, no emprego, prin-cipalmente nestes setores. Meu conselho é ter cuidado não ape-nas com as dívidas assumidas, mas principalmente ter atenção nesse processo de contração da atividade econômica caso esteja em um setor vulnerável”.

Valter Campanato/ABr

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22 Janeiro-Fevereiro 2009Janeiro-Fevereiro 2009Comportamento

Atualmente é cada vez mais comum as mulheres traba-lharem, exercerem seus di-

reitos de cidadãs e participarem da vida pública do país. Não foi sempre assim, no entanto. Ao longo dos séculos, elas foram alvo de perseguição e preconceito. Para se ter idéia da repressão exercida historicamente sobre elas, estatísticas mostram que, na Idade Média, o núme-ro de representantes do sexo feminino mortas nas fogueiras da Inquisição é proporcionalmente maior do que o de judeus assassinados durante o holo-causto patrocinado por Hitler, durante a II Guerra.

A violência acometia, principalmen-te, as mulheres tidas como perigosas pelas diferentes esferas masculinas de poder, seja porque detinham conheci-mentos acerca de ervas medicinais cura-tivas, desafiando a ação da Igreja e dos médicos de então, seja porque exercita-vam sua sexualidade com independência inaceitável aos padrões da época.

Durante muito tempo as mulheres se calaram. As poucas que buscavam

Aline Durães

ressoar suas vozes acabavam silenciadas pelo domínio, por vezes violento, do poder masculino. “A história da mulher é muito oculta. Isso porque a repressão contra ela é a mais antiga. É milenar e muito mais intensa do que a coerção aos negros, por exemplo,” explica Lia Faria, professora e diretora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e organizadora do livro Vozes femininas do Império e da República, recém-lançado pela Editora Quartet. A obra resgata a história e a luta de algumas mulheres pioneiras que, des-de o século XIX, ergueram e vêm erguen-do suas vozes para a conquista de espaço

Carmen Dolores

em sociedades que lhe reservam papéis secundários. Mulheres portuguesas e brasileiras que ganharam destaque na cultura, na educação, na literatura e na política. A educadora, poeta e escritora Nísia Floresta, a contista e crítica literá-ria Carmen Dolores e a professora Maria Yedda Linhares (da UFRJ) são algumas personagens que ilustram o livro.

Lia Faria esclarece que, apesar de tratar de mulheres do século XIX, não é esse o período no qual as vozes femininas começam a ecoar. “Elas se pronunciavam antes. Sendo que o século XIX reúne um vulto de mulheres brasileiras, européias e norte-americanas mais visíveis aos

pesquisadores. Nessa época, já existe um discurso da mulher que exige o sufrágio universal. No século XIX, o mundo estava caminhando mais em direção à República e à democracia. As mulheres entram, então, nesse conjunto de idéias políticas mais avançadas e progressivas”, explica a professora.

O papel do feminismoRecentemente, Maria Elisa Cevasco,

pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), declarou, publicamente, que o feminismo foi derrotado. Segun-do ela, a efetivação desse movimento somente seria possível em outro tipo de sociedade, na qual os valores humanos prevalecessem sobre os mercadológicos.

Derrotado ou não, é inegável a con-tribuição do movimento feminista para a conquista dos direitos das mulheres. Or-ganizado nos Estados Unidos na década de 1960, imediatamente o movimento espraiou-se para o restante do continente americano e chegou com força ao Brasil. Já nos anos 1970, o tema da emancipação

Maria Yedda Linhares

Nísia Floresta

feminina

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23Janeiro-Fevereiro 2009 Comportamento

“Além de representante feminina, única nesta Assembléia, sou, como todos os que aqui se encontram, uma brasileira, integrada nos destinos do seu país e identificada para sempre com os seus problemas. (...) Acolhe-nos, sempre, um ambiente amigo. Esta é a impressão que me deixa o convívio desta Casa. Nem um só momento me senti na presença de adversários. Porque nós, mu-lheres, precisamos ter sempre em mente que foi por decisão dos homens que nos foi concedido o direito de voto. E, se assim nos tratam eles hoje, é porque a mulher brasileira já demonstrou o quanto vale e o que é capaz de fazer pela sua gente. Num momento como este, em que se trata de refazer o arcabouço das nossas leis, era justo, portanto, que ela também fosse chamada a colaborar. (...) Quem observar a evolução da mulher na vida, não deixará por certo de compreender esta conquista, resultante da grande evolução industrial que se operou no mundo e que já repercutiu no nosso país. Não há muitos anos, o lar era a unidade produtora da sociedade. Tudo se fabricava ali: o açúcar, o azeite, a farinha, o pão, o tecido. E, como única operária, a mulher nele imperava, empregando todas as suas atividades. Mas, as condições de vida mudaram. As máquinas, a eletricidade, substituindo o trabalho do homem, deram novo aspecto à vida. As condições financeiras da família exigiram da mulher nova adaptação. Através do funcionalismo e da indústria, ela passou a colaborar na esfera econômica. E, o resultado dessa mudança, foi a necessidade que ela sen-tiu de uma educação mais completa. As moças passaram a estudar nas mesmas escolas que os rapazes, para obter as mesmas oportunidades na vida. E assim foi que ingressaram nas carreiras liberais. Essa nova situação despertou-lhes o interesse pelas questões políticas e administrativas, pelas questões sociais. O lugar que ocupo neste momento nada mais significa, portanto, do que o fruto dessa evolução.” (Discurso proferido em 13 de março de 1934)

feminina ocupava fóruns nacionais de debates.

As mulheres participaram do com-bate à ditadura militar, lutaram pela redemocratização política do país, queimaram sutiãs em praças públicas. Mais do que isso, várias e várias mulheres colocaram em evidência suas demandas de cidadãs e, assim, conseguiram inova-ções em leis e em programas de políticas públicas.

Paola Cappellin, professora do Ins-tituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, destaca que “hoje, várias iniciativas da esfera pública em favor da igualdade e da promoção, se desenvolvem graças à contribuição do pensamento feminista e dos movimen-tos sociais que incorporaram o ideário feminista como, por exemplo, a lei que coíbe a violência contra mulher; as delegacias especializadas; a titulação da terra; o direito ao aborto; o respeito aos direitos humanos; a proteção dos direitos trabalhistas para as trabalhadoras do-mésticas; as cotas nos partidos; as cotas nas direções das instituições; as cotas no acesso à universidade para a comunida-de afrodescendente etc.”

Para Lia Faria, embora o feminismo tenha influenciado gerações posteriores de mulheres brasileiras, atualmente, ele não existe como no passado. “Não podemos falar de um movimento fe-minista semelhante ao da década de 1970, até porque as mulheres de hoje foram ‘salvas’ por esse movimento. De qualquer maneira, a força de mulheres historicamente mais antigas preparou o caminho para que avançássemos”, pontua a pesquisadora.

Acesso ao ensino superior e ao mercado de trabalho

Foi em meados da década de 1950 que Maria Yedda Linhares, historiadora, professora e a primeira mulher a ocupar uma cátedra em uma universidade brasi-leira, assumiu a cadeira deixada por Del-gado de Carvalho na extinta Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) da então Universidade do Brasil – a atual UFRJ.

Apesar de o ingresso de professoras nas Instituições de Ensino Superior ter sido tardio, o acesso de mulheres para aquisição do diploma universitário vem aumentando nos últimos anos. De acor-do com a pesquisa intitulada Gênero e trabalho no contexto da responsabilidade social das empresas, realizada por Paola Cappellin, as mulheres representavam 38% dos graduados, em 1929. Em 2005, a situação se inverte: das 717.858 pessoas com nível superior, 62% eram mulheres e 38% homens.

Há, de fato, um número maior de mulheres com formação superior com-pleta, mas, em contrapartida, as empresas ainda resistem em aceitar e incentivar a ascensão e a promoção de mulheres para cargos de chefia. “O simples aumento da presença de mulheres nas organizações empresariais esconde a efetiva redução

e disparidade por parte da cultura em-presarial em aceitar a alocação das mu-lheres em postos de direção. São menos mulheres e, quando estão nas empresas, recebem remunerações descompassadas frente aos homens”, destaca Cappellin em sua pesquisa.

A desigualdade de remuneração entre homens e mulheres é um dos elementos que chamam a atenção. Apesar da exis-tência de leis que asseguram a eqüidade salarial e embora o Brasil seja signatário

da Convenção nº 100 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – que dispõe acerca da igualdade de remune-ração entre a mão-de-obra masculina e a feminina, em trabalho de valor igual —, 80% dos homens, em funções de direção, ganham níveis salariais bem superiores aos das suas colegas mulheres.

Durante séculos foi atribuição mas-culina o provimento da casa, enquanto às mulheres eram destinadas as tarefas do lar. Há algum tempo, essa realidade vem

mudando, mas o Brasil ainda carece de políticas públicas que facilitem a inser-ção da mulher no mercado de trabalho. Creches públicas e licença-maternidade ampliada são, segundo a educadora Lia Faria, algumas medidas urgentes para as mulheres que acumulam as funções de mãe e profissional. “Precisamos discutir mecanismos de reengenharia do tempo. As mulheres saíram de casa, foram para a vida pública, mas o Estado não rede-senhou os papéis sociais do homem e da mulher. O resultado disso é que a mulher fica muito sobrecarregada. Não podemos reconfigurar esses papéis se o Estado e as políticas públicas não nos fornecerem condições de transformar as relações em casa, se não forem redu-zidas as formas de repressão e exclusão”, sublinha Lia Faria.

Inserção na políticaO Código Eleitoral Brasileiro, de

1932, foi o primeiro a instituir o direito de voto para as mulheres. A lei permitiu que, um ano depois, durante a eleição para a Assembléia Nacional Constituinte de 1934, fosse eleita Carlota Pereira de Queiróz, primeira deputada do Brasil.

Embora tenha sido um dos pioneiros a aceitar a participação eleitoral feminina na América Latina, o Brasil, ao longo das décadas, não verificou grandes avan-ços na representatividade política das mulheres. Atualmente, o país amarga a 104ª posição no ranking de países com presença feminina no parlamento.

As mulheres, segundo dados do Tri-bunal Superior Eleitoral (TSE), com-põem 51,53% do eleitorado brasileiro, mas, nas eleições de 2006, ocuparam apenas 11,61% das vagas disponíveis em todo o território nacional. O Brasil fica aquém, inclusive, de países em menor nível de desenvolvimento. Nicarágua, Equador e Panamá, por exemplo, já elegeram presidentes do sexo feminino, enquanto por aqui, nenhuma mulher chegou sequer ao segundo turno de uma eleição presi-dencial.

Lia Faria lembra que a maior parte das mulheres bem-sucedidas na cena política brasileira possui algum grau de parentesco que as beneficia. “São, geralmente, esposas, irmãs ou filhas de políticos já conceituados entre os eleitores”, destaca a professora, reconhecendo a necessidade de maior participação feminina nos parlamen-tos brasileiros e sugere que homens e mulheres unam forças contra as classes hegemônicas do país: “É preciso que a sociedade como um todo e aqueles que se sentem explorados, juntem-se para discutir as diversas exclusões encontra-das hoje. Devemos nos perguntar a quem interessa manter mulheres em um grupo apartado, índios em outro e negros em outro? Se pensarmos, veremos que isso interessa a um grupo pequeno de pessoas que, historicamente, vem mantendo sua hegemonia política e econômica”.

Maria Yedda Linhares

Carlota Pereira de QueirózA primeira deputada brasileira

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A análise destas relações de comércio e de so-ciedade faz parte de

uma pesquisa de Iniciação Cien-tífica que reuniu estudantes do Laboratório de Etnografia Metro-politana (Lemetro) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ e da Universidade Cândido Mendes (Ucam).

Para Felipe Berocan Veiga, pesquisador associado do Leme-tro, as metrópoles se caracterizam pela aceleração, pela impessoali-dade nas relações, pelo relógio, pela pressa e pelo anonimato. “E

Mercadão de Madureira, Saara e Porto das Caixas. Esses são alguns exemplos dos mercados populares que existem na cidade do Rio de Janeiro e em Niterói. Em comum, promovem a forma de fazer comércio em que o

tempo é outro e o objetivo não é apenas vender, é também fortalecer as relações sociais.As fotos que ilustram esta matéria foram feitas no Saara.

a gente observa nessas áreas dos mercados populares exatamente o contrário. A gente pode ver que em um espaço de alto fluxo de pessoas e mercadorias, o dono do comércio tem um caderno com os telefones dos clientes, por exem-plo. Nesses locais, estabelecem-se outras maneiras de se relacionar”, analisa o especialista em Antropo-logia Urbana.

Saara, um mercado a céu aberto

Sons, cheiros e cores. Tudo isso se mistura nas 11 ruas e nas

mais de 1.200 lojas do mercado da Saara (Sociedade de Amigos e Adjacências da Rua da Alfânde-ga), no centro do Rio de Janeiro, que tem seus limites demarcados por cavaletes amarelos, facilmen-te identificados, e que tem como principais ruas a da Alfândega, a Uruguaiana, a Luiz de Camões, a República do Líbano, a Travessa São Domingos e a avenida Buenos Aires.

Caminhar pelas ruas da Saara pode ser uma experiência ímpar. Lá é possível encontrar as mais variadas mercadorias, desde ar-

tigos para cozinha, passando por lojas de roupas e de comida. Aliás, são as lojas de alimentação, como a Casa Pedro, que oferecem uma viagem ao olfato e à visão – são de-zenas de temperos nos seus mais variados perfumes e cores.

E, pela tradição local, pela qual é possível achar diferentes artigos por preço acessível, a Saara recebe um público eclético. Para Pedro Paulo Thiago de Mello, também pesquisador do Lemetro, em época de festas como Carnaval ou Dia das Bruxas, as diversas clas-ses sociais procuram o mercado

Construindo identidades

Rafaela Pereira

Mercados populares

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em busca de fantasias e de outros adereços.

Como tudo começouPaulo Thiago de Mello explica

que a Saara surgiu na virada do século XIX para o século XX, num processo iniciado quando os primeiros imigrantes começam a chegar. “Eles iam ocupando os sobrados dessa região. Moravam em cima e trabalhavam no térreo”, explica o pesquisador. Hoje, com o mercado tradicional ainda pre-servado, muitos desses sobrados foram e estão restaurados.

No início, a venda era apenas por atacado e as mercadorias eram distribuídas pelos caixeiros-viajantes e comerciantes. Depois, no início do processo de indus-trialização do país, o comércio da rua da Alfândega mudou e as indústrias começaram a distribuir seus produtos diretamente aos lojistas. Era o início do comércio varejista.

Mais tarde, já na década de 1940, com as intervenções ur-banísticas na cidade do Rio de Janeiro, a região corria o risco de desaparecer. Foi então que os comerciantes se uniram e criaram a Saara. “A construção da avenida Presidente Vargas iria afetar o

tecido urbano que caracterizava a região e a possibilidade de cons-trução da avenida Diagonal faria desaparecer de vez o grande bazar a céu aberto. Assim surge a Socie-dade, que desde a sua primeira diretoria, definiu os limites da região”, explica Paulo Thiago.

A pequena ONU brasileiraSírios, libaneses, turcos, armê-

nios, judeus de diversas origens e, mais recentemen-te, os asiát icos. Essas são algumas das etnias presen-tes no mercado da Saara.

Apesar das di-ferenças culturais e religiosas, que se mantêm preserva-das, em comum têm a atração pelo comércio. Por isso o t ítulo de “pe-quena ONU brasileira”. “Essa é uma representação que os pró-prios comerciantes construíram desse espaço do comércio. O que fica claro é que eles têm um grande interesse comum que é o comércio”, explica a pesquisadora Neiva Vieira da Cunha, para quem na Saara, em especial, no Lemetro

“procura-se discutir a ambiência”, ou seja, busca-se “entender como a atmosfera do local foi e ainda é construída”.

A pesquisadora lembra também que em meados dos anos 1990 coreanos e chineses começam a chegar à região de forma intensa. Vindos geralmente de Taiwan e da China. Mais de 90% deles estabeleceram-se em São Paulo – ocupando a rua Vinte e Cinco de

Maio e os bairros da L iberdade e do B om Ret i ro – , e o res t ante espalhou-se pelo país, com predo-minância no Rio de Janeiro, no Pa-raná e na Zona Franca de Manaus (AM).

E, na bagagem, os asiáticos trou-xeram novas prá-

ticas comerciais, com maneiras diferentes de financiamento e com a presença ativa de mulheres na administração de lojas, diferente-mente do comércio de origem ára-be, no qual as mulheres exercem funções de bastidores. Contudo, eles tinham como destino final os Estados Unidos da América e a

Europa. “E por isso essa diáspora é diferente das anteriores. Sírios, li-baneses e armênios, por exemplo, vieram para cá para morar. Já os asiáticos estão de passagem. É o que chamamos de diáspora rotativa”, analisa Paulo Thiago de Mello.

Atual realidadeSegundo Neiva Vieira, a pesqui-

sa realizada pelo Lemetro mostrou que grande parte dos estabeleci-mentos comerciais, dos mais an-tigos, está fechando. Entre eles o botequim Bunda de Fora e o cente-nário restaurante Penafiel. “O Bun-da de Fora era o único da região e um ponto político fundamental, no qual concentravam-se todas as campanhas políticas”, recorda a pesquisadora, acrescentando ainda ter percebido muitas mudanças, embora a Saara ainda tenha o apelo do mercado tradicional: “por isso a pesquisa é importante, pois res-gata a memória urbana, a memória recente da cidade; porque muitos desses comerciantes estão falecendo, como é o caso do dono da Charutaria Syria, seu Mamed, que morreu aos 96 anos. Hoje as filhas estão intro-duzindo algumas inovações, como a venda de café, mas mantendo o apelo ao tradicional que é a tabacaria”, analisa Neiva.

“A pesquisa é importante, pois

resgata a memória urbana, a memória recente da cidade;

porque muitos desses comerciantes estão

falecendo.”

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26 Janeiro-Fevereiro 2009Janeiro-Fevereiro 2009

Boas melodias e letras, cada vez

mais raras na festa de Momo

Rodrigo Ricardo

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27Janeiro-Fevereiro 2009 Carnaval

Bumbum paticumbum prugurundumO nosso samba minha gente é isso aí, é isso aíBumbum paticumbum prugurundum,Contagiando a Marquês de Sapucaí (Eu enfeitei )

Enfeitei meu coração(enfeitei meu coração )De confete e serpentinaMinha mente se fez meninaNum mundo de recordaçãoAbracei a coroa imperial,

fiz meu carnaval,Extravasando toda a minha

emoçãoÓh, Praça Onze, tu és imortalTeus braços embalaram o

sambaA sua apoteose é triunfalDe uma barrica se fez uma cuícaDe outra barrica um surdo

de marcação

Com reco-reco, pandeiro e tamborim

E lindas baianas o samba ficou assim

Bumbum paticumbum prugurundum

(Samba enredo do Império Serrano, ganhador do desfile de 1982. Composição de Beto Sem Braço e Aluísio Machado.)

Com reco-reco, pandeiro e tamborim

E lindas baianas o sambaficou assim

E passo a passo no compasso o samba cresceuNa Candelária construiu seu

apogeuAs burrinhas, que imagem, para os olhos um prazerPedem passagem pros

moleques de DebretAs africanas, que quadro

originalIemanjá, Iemanjá, enriquecendo o visual (Vem meu amor)

Vem, meu amor, manda a tristeza emboraÉ carnaval, a folia,neste dia ninguém chora

Super Escolas de Samba S/ASuper-alegoriasEscondendo gente bambaQue covardia!

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28 Janeiro-Fevereiro 2009Persona

io de Janeiro, início do século XX. Momento de profundas trans-

formações urbanísticas na então capital da República que se pretendia moderna, eu-ropéia e “civilizada”; quando Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, inscreve seu nome na história do samba e na formação de uma identidade musical brasileira. Sua casa ficava no coração da chamada “Pequena África”, como define o historiador Roberto Moura. Para essa região, que compreendia a Zona Portuária, a Praça Onze e a Cidade Nova, foram deslocadas muitas famílias negras, pobres e proletárias que ocupavam as áreas centrais da cidade. Expulsas após a abertura da avenida Central, hoje avenida Rio Branco, no projeto de reformas do prefeito Pereira Passos, muitas seguiram posteriormente para o subúrbio ou subiram os morros.

Nascida em Salvador em 1854, Tia Ciata veio para o Rio de Janeiro aos 22 anos, a exemplo de outros baianos que perderam mercado de trabalho, com a decadência da produção de açúcar. Tentavam me-lhores oportunidades em outros centros, principalmente na região Sudeste, com a expansão do café.

Dados reproduzidos por Roberto Moura em seu livro Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro (Funarte, 1983) mostram que a província do Rio passou de 119.141 escravos, em 1844, para mais de 300 mil no início da década de 1870. Na mesma proporção, a Bahia foi perdendo sua população escrava: de cerca de 500 mil no início do século XIX, para pouco mais de 170 mil, em 1874. A Abolição engrossou ainda mais o contingente de negros no Rio de Janeiro.

Na bagagem, Tia Ciata trouxe a música, a religiosidade e a gastronomia de origem africana. Através dos centros religiosos e dos encontros musicais promovidos em seus terreiros, Ciata e outras tias, como Bebiana, Amélia e Perciliana, passaram a exercer um papel de liderança na comunidade. Forma-vam um “núcleo de solidariedade”, segundo Raquel Valença, pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa e vice-presidente do Grêmio Recreativo Escola de Samba Im-pério Serrano. “A casa da Tia Ciata era um lugar no qual as pessoas encontravam abri-go, porque a vida do negro, com as reformas urbanas na cidade, era extremamente difícil. Naturalmente, essas pessoas acabaram tra-zendo consigo a cultura, a dança, a religião e o samba, promovendo uma efervescência

cul-t u r a l”, afirma a pes-quisadora.

As festas de Tia Ciata, na Praça Onze, eram concorridas e democráticas. Para lá corriam estivadores, artesãos, funcionários públicos e policiais. Negros, brancos e mulatos participavam dos batuques, partidos altos e ro-das que dariam origem mais tarde ao samba carioca. Im-portantes nomes do cenário musical também marcavam presença em sua casa, como Pixinguinha, Donga, João da Baiana e Heitor dos Prazeres. Foi numa dessas festas musicais que foi composto, em 1917, o primeiro samba a fazer sucesso no país: “Pelo telefone”. Oficialmente atribuída a Donga, a música tem origem controvertida, pois teria sido elaborada coletivamente numa roda de sambistas, sem preocupações autorais.

Nos dias festivos, a própria Ciata fazia as improvisações nos pagodes, respon-dendo aos refrões e acompanhando os temas puxados pelos partideiros da épo-ca. A imprensa chegou a noticiar que ela também contribuiu com alguns versos de “Pelo telefone”. Segundo o compositor Fred Góes, professor da Faculdade de Letras (FL) da UFRJ, as mulheres, conhecidas também como pastoras, tinham a função de “avalizar os sambas”, seguindo a tradição religiosa do rancho.

As tias baianas exerciam uma função aglutinadora, reunindo pessoas ligadas ao universo musical popular do Rio de Janeiro em encontros que recebiam permanente vigilância policial. Era comum ir até a Che-fatura de Polícia pedir uma autorização para os bailes. Samba e candomblé eram vistos

pelas elites como práticas primitivas que ameaçavam uma sociedade imbuída dos ideais modernizantes da belle

époque na virada do século.Raquel Valença atribui a esses

pioneiros da história do samba o papel de mediadores culturais, captando o interesse da sociedade como um todo. “A capacidade que o samba tem de agregar pessoas vem dessa época. A mediação cultural foi uma marca do samba desde o início. A casa de Tia Ciata era um reduto cultural, que permeava outras classes sociais”, observa a pesquisadora.

Se a formação do samba se deu ao lon-go de um processo contínuo de interações entre diferentes classes sociais, o terreiro de Tia Ciata pode ser visto como uma síntese dessa diversidade cultural. O desenvolvi-mento do samba resulta de uma mistura de influências musicais, relacionando-se com as modinhas, cantadas nos salões e nas ruas do Rio de Janeiro, os lundus e batuques, originários das danças africanas, e até as danças de salão européias, como a polca. O maxixe também contribuiu para esse Mistério do samba, utilizando a expressão título do livro de Hermano Vianna, editado pela Zahar (1995). O maxixe, mais uma dança do que um estilo musical, encontrou espaço privilegiado nos bailes e gafieiras da Cidade Nova, que passaram a atrair a aten-ção da classe média pela sensualidade dos movimentos corporais da cultura negra.

Entre quitutes e oferendas Não apenas a música celebrizou a traje-

tória de Tia Ciata no Rio de Janeiro. Outras atividades comuns eram o aluguel de roupas para mulheres da alta sociedade, fascinadas com o exotismo do figurino das baianas, e as consultas espirituais que fazia em sua casa. Seus dotes culinários também eram conhecidos e lhe garantiam o sustento. Ciata iniciou a tradição das baianas quituteiras na cidade, vendia doces que faziam parte do ritual religioso do candomblé. Nas ruas Sete de Setembro e da Carioca, ela comercializa-va bolos, manjares e cocadas, sempre vestida de saia rodada, turbante e ornamentada por colares e pulseiras. Mulher dotada de grande

sabedoria re-ligiosa, antes de seguir

para seus pontos de venda, oferecia doces no altar montado em sua casa, de acordo com o orixá home-nageado do dia.

As negras doceiras, que trouxeram essa tra-dição da Bahia para a

capital, eram uma atração à parte na Festa da Penha,

realizada nos fins de semana dos meses de outubro. A cele-

bração religiosa era uma festa gastronômica, com uma grande variedade de quitutes: mocotós, vatapás, mingaus, pamonhas, canjicas, pão-de-ló de arroz e de milho, bo-linhos de goma e sequilhos, dentre muitas guloseimas apreciadas pelos visitantes. Tia Ciata também servia pratos de moqueca de peixe, todos os anos, precedendo as rodas de samba que se formavam em torno das barracas. Depois do Carnaval, a Festa da Penha era a mais popular manifestação

naqueles tempos, ponto de encontro da comunidade negra com a burguesia urbana que se formava no início do século XX. Muitas músicas nascidas nestes encontros de partideiros seriam consagradas meses depois

no Carnaval.Tia Ciata morreu em 1924,

aos 70 anos, tornou-se um símbolo de resistência cul-tural. Líder de um núcleo de solidariedade na Cidade Nova, ela contribuiu para a afirmação do negro no meio social, com seu espírito agregador, religioso e festeiro por excelência. Fez a ponte entre sua comunidade de origem e o restante da ci-dade; deixou como legado uma das mais importantes páginas da história do sam-ba, um gênero musical que se mistura com a própria identidade cultural do brasileiro.

Raquel Valença perce-be traços de permanência entre os encontros musicais promovidos por Tia Ciata no passado e as feijoadas e rodas de samba de terreiro e partido-alto organizadas até hoje por integrantes das velhas guardas das escolas de samba.

“As feijoadas hoje em dia são espaços de convivência e também de mediação cultural. Tia Surica foi uma agregadora na Portela, capaz de ter em volta de si um grupo de sambistas. Mangueira, Império Serrano e Salgueiro também contam com essas pesso-as. É isso que salva. As matrizes dos sambas nos desfiles vão sendo enfraquecidas por pessoas que entram na bateria sem ter con-dições, por exemplo. Paulo da Portela dizia, em 1935, que o samba estava acabando. Ele já via alguns traços sendo modificados. O samba permaneceu. Teve uma pujança que permitiu a ele se manter ao longo dos anos, lutando pelas suas características”, avalia a pesquisadora.

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